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O campo intelectual sobre violência, crime e segurança e a
corrente intelectual liberal sobre segurança pública
Este capítulo inicial dedica-se à compreensão do que se trata por campo
intelectual sobre violência, crime e segurança pública e pela corrente liberal sobre
segurança pública. Para tanto, serão abordados, primeiramente, o enfoque teórico
a partir do qual se trabalha as noções de campo e de práticas discursivas,
fundamentais para a compreensão da análise da corrente objeto desse trabalho.
Em um segundo momento, será analisada, de forma introdutória, a formação
histórica desse universo e dessa corrente intelectual hegemônica no Brasil. 3
2.1.
O sentido teórico do campo sobre violência, crime e segurança
pública e caracterização da corrente liberal sobre segurança pública
A afirmação a respeito da existência de um campo de produção intelectual
sobre temas relativos à violência, à criminalidade, à segurança pública e ao
sistema de justiça não é de forma alguma uma inovação. Esse campo tem sido
afirmado, identificado, analisado e reivindicado historicamente, ao longo de sua
formação assim como, nos últimos vinte anos, em esforços bibliográficos de
revisão, balanço ou estado da arte da produção intelectual atribuída a este campo.
Além disso, sem sua afirmação, não seriam possíveis grupos específicos em
3 É importante ressaltar que se fez a opção de tratá-la como uma corrente de estudos sobre segurança pública, apesar de haver outras formas de designar o campo mais abrangente de estudos conforme alguns autores vêm fazendo. Alguns exemplos de denominações são: “sociologia da violência”, “sociologia do crime”, “violência e criminalidade”, “crime, violência e direitos humanos”, “criminalidade urbana violenta” e “estudos de criminologia”. Vale notar que os autores que utilizam essas diversas denominações não têm afirmado a distinção entre o ‘campo’ mais abrangente de estudos sobre ‘violência e crime’ e correntes dominantes ou hegemônicas, como é o caso das correntes sobre segurança pública, conforme sugiro neste trabalho. Adorno e Barreira em estudo recente sobre o campo apontam para um debate acerca da nomenclatura e a ausência de consenso. Os autores optam pelo termo “sociologia da violência”. Em: ADORNO, Sérgio e BARREIRA, César. A violência na Sociedade Brasileira. In: MARTINS, Carlos Benedito e MARTINS, Heloisa Helena T. De Souza. Horizontes das Ciências Sociais no Brasil: sociologia. São Paulo: ANPOCS, 2010. p.308. Também a atribuição de corrente hegemônica será abordada mais adiante, mas vale destacar desde logo que se utiliza essa terminologia não em sentido estrito, mas de forma livre, para designar certa predominância, que, como será visto, não é aleatória ou por coincidência, muito menos pela afirmação de um saber incontestável.
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associações de pesquisa ou financiamentos para a sustentação de centros, núcleos
e grupos de pesquisa.
A designação ‘campo’, tampouco é uma novidade, do ponto de vista
nominativo. Há esforços de balanço bibliográfico que já designaram este universo
produtivo de pensamento e ação de diferentes maneiras, seja por meio da
afirmação da existência do debate e de diversos estudos distintos sobre objetos
relativos à violência e à criminalidade,4 ou de certa produção científica sobre
criminalidade violenta,5 ou como uma área temática ou contribuição sociológica
sobre esses temas,6 recorte temático,7 ou mesmo campo temático8. No entanto,
nota-se que a afirmação e reivindicação de um campo de produção intelectual tem
se dado de forma descritiva, parcial e sem uma elaboração acerca da
caracterização desse universo, sua forma de operar e sua relação com outras
dimensões da vida social. Também tem se dado de forma normativa, o que se
verifica na reivindicação de sua existência, de seu desenvolvimento gradativo, na
comparação com produção de outros países e grupos de países (como os Estados
Unidos, o Canadá e a “Europa”), na sua consolidação e na necessidade de maior
4 ZALUAR, Alba. Violência e crime. In: MICELLI, Sérgio (org). O que ler nas Ciências Sociais brasileiras. v.1. São Paulo: Anpocs, Editora Sumaré, 1999. p.4. 5 ADORNO, Sérgio. A Criminalidade Urbana Violenta no Brasil: Um Recorte Temático. BIB, Rio de Janeiro. n.35, 1o semestre. 1993. p.3. 6 LIMA, R. Kant de; MISSE, Michel e MIRANDA, Ana Paula Mendes de. Violência, Criminalidade Segurança Pública e Justiça Criminal no Brasil: Uma bibliografia. BIB, Rio de Janeiro, n.50, 2osemestre. 2000. p.45. 7 LIMA, R. Kant de; MISSE, Michel e MIRANDA, Ana Paula Mendes de. Violência, Criminalidade Segurança Pública e Justiça Criminal no Brasil: Uma bibliografia. BIB, Rio de Janeiro, n.50, 2osemestre. 2000. nota n.1. 8 LIMA, R. Kant de; MISSE, Michel e MIRANDA, Ana Paula Mendes de. Violência, Criminalidade Segurança Pública e Justiça Criminal no Brasil: Uma bibliografia. BIB, Rio de Janeiro, n.50, 2osemestre. 2000. p.47; ADORNO, Sérgio. O Monopólio estatal da violência na sociedade brasileira contemporânea In: MICELI, Sérgio (org.). O que ler nas ciências sociais brasileiras 1970-2002. Volume IV. 2002. p.3; LIMA, Renato Sérgio de (coord.). Mapeamento das conexões teóricas e metodológicas da produção acadêmica brasileira em torno dos temas da violência e da segurança pública e as suas relações com as políticas públicas da área adotadas nas duas últimas décadas (1990-2000). FAPESP. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 2009. p.4; VASCONCELOS, Francisco Thiago Rocha. A sociologia da violência em São Paulo: a formação de um campo em meio à fragmentação de uma intelligentsia na transição democrática. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, Departamento e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, 2011, p.1; ADORNO, Sérgio e BARREIRA, César. A violência na Sociedade Brasileira. In: MARTINS, Carlos Benedito e MARTINS, Heloisa Helena T. De Souza. Horizontes das Ciências Sociais no Brasil: sociologia. São Paulo: ANPOCS, 2010. p.308; LIMA, Renato Sérgio de e RATTON, José Luiz. Trajetórias Intelectuais e Representações no Campo da Segurança Pública. In: LIMA, Renato Sérgio de e RATTON, José Luiz (Orgs.) As Ciências Sociais e os pioneiros nos estudos sobre crime, violência e direitos humanos. São Paulo: Forum Brasileiro de Segurança Pública, Urbania, ANPOCS, 2011. p.11.
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investimento e desenvolvimento desse campo de produção intelectual sobre esses
temas.
Pierre Bourdieu trabalha com a noção de campo, a partir de 1971, para dar
conta de determinados espaços sociais que identificou como espaços de criação
autônoma e com determinações específicas, como era o caso dos universos
artísticos, literários e científicos.9 Em 1975, a partir do ensaio intitulado “A
especificidade no campo científico e as condições sociais do progresso da razão”,
texto fundador das noções de campo científico e de capital científico,10 Bourdieu
dedicou-se a analisar universos de produção científica e a propor essas noções
como ferramentas de análise que possibilitassem outro olhar para um conjunto de
autores, instituições e publicações científicas mais ou menos específicos, assim
como para sua forma própria de se relacionar. Assim, no ensaio intitulado “O
campo científico”,11 de 1976, o autor procurou apresentar uma problematização
acerca da caracterização sociológica do universo científico, da natureza do
discurso científico e da “cientificidade” da produção do que chama de “sociologia
oficial” 12.
Também no início da década de 1970, Michel Foucault em seus cursos
ministrados no Collège de France, intitulados “A Vontade de Saber” e “Teorias e
Instituições Penais”, 13 aprofundou a noção de práticas discursivas com a qual
passa a trabalhar na análise dos dispositivos de poder. Em um esforço de explorar
9 CHAMPAGNE, Patrick e CHRISTIN, Olivier. Pierre Bourdieu. Une iniciation. Presses universitaires de Lyon: Lyon, 2012. p.148. Os autores notam que esta noção de campo foi tomada por Bourdieu de Kurt Lewin, psicólogo alemão que viveu nos Estados Unidos e desenvolveu a noção de campo de força na década de 1940. 10 CHAMPAGNE, Patrick. Prefácio. In: BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora UNESP, 2004. p.12. 11 BOURDIEU, Pierre. “O campo científico”. Reproduzido de BOURDIEU, P. Le champ scientifique. Actes de Ia Recherche en Sciences Sociales, n. 2/3, jun. 1976, p.88-104. Tradução de Paula Monteiro. Disponível em: http://uaiinformatica.net/luciana/campo_cientifico_bourdieu.pdf. Acessado em 25 de Março. 12 Bourdieu foi um grande crítico da sociologia tradicional e um idealizador de outra sociologia. A noção de campo científico traz para seu pensamento a possibilidade de colocar e ver o universo científico de outra forma, no seu entender, de forma “verdadeiramente científica”. Conforme afirma Bourdieu: a análise científica de um campo pode, à primeira vista, parecer muito próxima das representações que os agentes produzem especialmente, para a necessidade das polêmicas contra seus concorrentes. Mas, a diferença é radical: a objetivação do campo como um conjunto de pontos de vista, que implica tomar distância com relação a cada um dos pontos de vista particulares e tomadas de posição opõe-se às objetivações parciais e interessadas dos agentes engajados no campo. BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora UNESP, 2004. pp.44 e 45. 13 FOUCAULT, Michel. Resumo dos Cursos do Collège de France (1970-1972). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1997. p.11.
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o que chamou de a ‘vontade de saber’ e seu lugar e papel nos sistemas de
pensamento da sociedade moderna, Foucault propõe a noção de práticas
discursivas como um dos níveis de análise dos sistemas de pensamento.14
Posteriormente, em 1976, trabalha com as noções de intelectual específico e
regimes de verdade, problematizando a figura e a posição do intelectual assim
como a produção da verdade nas sociedades capitalistas.15
As análises de Bourdieu, sobre o campo científico, e as de Foucault, sobre
práticas discursivas e dispositivos contribuem para problematizar essa corrente
intelectual de estudos e proposições sobre temas relativos à violência, crime e
segurança pública, que se engendra a partir da década de 1970, início do processo
de transição do regime ditatorial para o democrático no Brasil, mas que se
consolida na década de 1990.
Esta corrente é apresentada neste trabalho como uma corrente intelectual
manifestada por meio de práticas discursivas de trato fundamentalmente liberal
em relação a categorias centrais da teoria política. Suas análises pretendem-se
críticas e abordam fenômenos como a violência de Estado, a seletividade social do
sistema de justiça que recai sobre a população pobre das cidades, e os fenômenos
sociais mais amplos que entram sob as insígnias “violência urbana” e “segurança
pública” durante o regime político democrático no Brasil.
Problematizar esse universo significa compreender mais profundamente o
que o caracteriza, como ele opera enquanto universo prático discursivo produtor
de interpretações muitas vezes reivindicadas como científicas e críticas, sobre
esses fenômenos sociais e como se relaciona com outras dimensões da vida social
e suas formas institucionais.
Para Bourdieu, mesmo “o universo puro da mais ‘pura’ ciência é um
campo social como outro qualquer”, 16 ou seja, é formado por “suas relações de
força e monopólios, suas lutas e estratégias, seus interesses e lucros” e é um
14 Gustave Callewaert em ensaio no qual explora a relação entre Pierre Bourdieu e Michel Foucualt, nota que as vidas e obras dos autores desenvolveram-se de forma próxima, porque conviveram na École Normal Superieur e tornaram-se amigos, mas de forma dissociada. Não teria havido, segundo o autor, nenhum debate público entre Bourdieu e Foucault e somente após a morte de Foucault e por preocupações relativas aos usos e às possíveis aberturas que seus trabalhos possibilitaram a esses usos, é que Bourdieu publicou textos críticos à sua obra. In: Bourdieu, Crítico de Foucault. Educação, Sociedade & Culturas no 19. 2003. 15 FOUCAULT, Michel. Verdade e poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. ed. 25a. São Paulo: Graal, 2012. 16 BOURDIEU, Pierre. “O campo científico”. Op. Cit. p.1.
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universo em que “essas invariantes revestem-se de formas específicas”. 17 Nesse
sentido, afirma que para se compreender dada produção intelectual, não bastaria
uma referência ao texto ou ao contexto mais amplo, e invoca a ideia de que entre
estes dois polos há um universo intermediário que chama de campo, em que estão
inseridos agentes e instituições que produzem e reproduzem a ciência. É um
universo, dentre outros, no conjunto de campos sociais, mas obedece a leis sociais
mais ou menos específicas. 18
É importante notar que, para Bourdieu a noção de campo tem um alcance
fundamental e abrangente em seus esforços teóricos sobre a realidade social, 19 em
seu posicionamento nos debates teórico-políticos de seu tempo, 20 assim como nas
lutas concretas em que se envolveu. No caso do campo científico, a afirmação da
finalidade do “progresso da razão”21e sua reivindicação sobre a necessidade de
17 BOURDIEU, Pierre. “O campo científico”. Op. Cit. p.1. 18 BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora UNESP, 2004. p. 20. 19 Segundo Champagne e Christin, para Bourdieu, a noção de campo é uma postura teórica e metodológica destinada a preservar a dupla tentação de naturalização das representações do senso comum e de essencialização de condições sociais. Segundo essa percepção, o processo histórico de diferenciação do mundo social conduziu à existência de campos autônomos – a emergência, às vezes demorada, e a multiplicação de universos particulares: religioso, artístico, político, jornalístico etc.. Formou uma espécie de cosmos social constituído de um conjunto de microcosmos sociais relativamente autônomos. A noção de campo permitiria pensar o universo de produção simbólica como parcialmente autônomo e funcionando segundo regras próprias, além de pretender dar uma resposta à questão existente desde Weber e Durkheim sobre a transformação das sociedades com o aparecimento progressivo de espaços distintos, especializados, que conquistam aos poucos sua autonomia, em oposição aquele das sociedades primitivas e das sociedades da idade média ocidental. Além disso, notam que para Bourdieu, falar em termos de campo é levar em conta a divisão social do trabalho e procurar dar conta e lembrar que nas sociedades diferenciadas a diferenciação de capitais crescia paralelamente. Em: CHAMPAGNE, Patrick e CHRISTIN, Olivier. Op. Cit. pp.167 e 168. 20 Por exemplo, conforme salienta Loiq Wacquant a categoria de campo oferecida por Bourdieu renovou seu uso da noção de estrutura, muito debatida na década de 1960: “Ele forjou a nova ferramenta analítica do campo, designando espaços relativamente autônomos de forças objetivas e lutas padronizadas sobre formas específicas de autoridade, para dar força à estática e retificar a noção de estrutura dotando-a de dinamismo histórico.” Em: WACQUANT, Loiq. O legado sociológico de Pierre Bourdieu. Duas dimensões e uma nota pessoal. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 19, p.95-110, nov. 2002. p.98. Além disso, é uma categoria que possibilitou posicionar-se em relação a determinadas correntes do marxismo, por exemplo, conforme ressaltam Champagne e Christin, a partir da obra de Weber, Bourdieu expõe as implicações teóricas e práticas da noção campo, insistindo no caráter relacional da lógica dos campos: “pensar em termos de campos é pensar relacionalmente”, é estabelecer que aquilo que constitui o mundo social não são classes fixas de população, categorias sociais essencializadas, ou simples interações que colocariam em contato indivíduos isolados e sem qualidades, propriedades e herança, mas sim relações objetivas que podem ser descritas de fora da consciência mais ou menos clara dos agentes. Em: CHAMPAGNE, Patrick e CHRISTIN, Olivier. Op. Cit. p.152. 21 BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora UNESP, 2004. p.68; Conforme destacam Champagne e Christin: O conceito de campo permite compreender que é pela concorrência e com as submissões coletivas e voluntárias às regras de funcionamento do campo e, notadamente, àquelas da crítica interna por
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autonomia da razão em relação à “lógica da política” (de falsificação, difamação,
da denúncia do pensamento adversário) para que os intelectuais (artistas,
filósofos, cientistas) cumprissem com o que chama de sua “função de serviço
público”, 22 expressa sua aposta na figura e atuação do intelectual e na
possibilidade de autonomia em relação às relações sociais, em certa medida
exteriores ao campo científico, assim como o conteúdo normativo prescritivo que
esta noção de campo científico tem para o autor.23
Para os fins do presente trabalho e de acordo a perspectiva que será
desenvolvida acerca da corrente intelectual liberal sobre segurança pública, a
noção de campo oferecida por Bourdieu opera como uma ferramenta de análise
específica, que permite compreender de forma estruturada e relacional o conjunto
formado pela produção intelectual, seus atores e instituições sobre violência e
crime, como se verá adiante. Entretanto, as relações de agentes ou correntes, no
interior deste campo, com agentes e estruturas exteriores ao campo específico de
que se trata é fundamental e não é analisada necessariamente de maneira
normativa, mas sim identificada e problematizada. Dessa forma, não se toma para
este trabalho a categoria de campo como uma estrutura tão fundamental de
teorização das relações e universos sociais, nem se amplia a noção de campo para
o domínio do Estado, por exemplo. Tampouco se toma acriticamente o conteúdo
normativo da noção de campo científico oferecida por Bourdieu. Portanto, as
noções bourdianas de campo e de capital científicos são ferramentas de análise, as
quais se mostram produtivas para a compreensão desse universo de produção
intelectual específico e parte de sua forma de operar que, de outro lado, ganha
outros produtores, que se pode captar as condições históricas do progresso da razão. Em: CHAMPAGNE, Patrick e CHRISTIN, Olivier. Pierre Bourdieu. Une iniciation. Presses universitaires de Lyon: Lyon, 2012. p.158. 22 BOURDIEU, Pierre.“No hay democracia efectiva sin verdadeiro contra-poder crítico” (1993). In: LISCHETTI, Mirtha, NEUFELD, María Rosa e TRINCHERO, Hugo. Pierre Bourdieu: Intelectuales, política y poder. Universidad de Buenos Aires: Buenos Aires, 1999. p.185. 23 Em uma das suas últimas conferências, Bourdieu afirma que a própria objetivação do campo como um conjunto de pontos de vista, possível com a noção de campo científico, “implica tomar distância com relação a cada um dos pontos de vista particulares e tomadas de posição” e “opõe-se às objetivações parciais e interessadas dos agentes engajados no campo”, ou seja, a categoria de campo científico teria propiciado uma posição “não interessada” para a análise do campo científico. Em: Bourdieu, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora UNESP, 2004. pp.44 e 45.
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sentido mais completo com as noções de práticas discursivas de Michel Foucault. 24
Quanto à noção de campo científico, tal como ela é concebida por
Bourdieu e nos limites em que é utilizada para a presente análise, deve-se começar
por compreender que Bourdieu caracteriza este universo como um espaço
estruturado de posições ou uma configuração de relações objetivas. 25 A estrutura
dessas relações objetivas entre os agentes é que constitui os princípios do campo,
é o que implica em determinados pontos de vista, em determinadas intervenções
científicas, em lugares de publicação, em temas escolhidos, em objetos de
interesse, 26 ou seja, somente compreende-se o que faz ou diz um agente engajado
num campo a partir da posição que ele ocupa na estrutura de relações, porque esta
estrutura condiciona ou determina o que fazem ou não os agentes.27 Tal estrutura
do campo é determinada pela distribuição do capital científico em um
determinado momento. Os agentes são caracterizados por seu volume de capital e
determinam a estrutura do campo em proporção a esse volume, que sempre
depende de todos os outros agentes, de todo o espaço.28 Nesse sentido,
Champagne e Christin notam que o campo deve ser pensado como relacional. É
um campo de forças no qual os agentes se enfrentam em função de estratégias que
lhes ditam o volume e a repartição do capital científico e, a partir dele, sua posição
na estrutura de relações. 29
Bourdieu define o capital científico como uma forma especial de capital
simbólico, fundado sobre atos de conhecimento e reconhecimento. Nesse sentido,
é o reconhecimento atribuído pelo conjunto de pares-concorrentes no interior do
campo científico. Exemplos de indicadores de capital científico são: citações,
prêmios, traduções estrangeiras, entre outros. Dessa forma, o capital repousaria
24 A possibilidade de articulação entre categorias de análise de Pierre Bourdieu e de Michel Foucault existe a partir da delimitação que se faça dos termos em que tais categorias são utilizadas e dos pesos que cada conjunto de noções dos autores tem para a análise que se desenvolve. 25 CHAMPAGNE, Patrick e CHRISTIN, Olivier. Op.Cit. p. 148. 26 Bourdieu, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. Op. Cit. p.23. 27 Bourdieu 23 e 24. Bourdieu utiliza o exemplo de Einstein: “Einstein (...) deformou todo o espaço em torno de si. Essa metáfora “einsteiniana” a propósito do próprio Einstein significa que não há físico, pequeno ou grande, em Brioude ou em Harvard que (independentemente de qualquer contato direto, de qualquer interação) não tenha sido tocado, perturbado, marginalizado pela intervenção de Einstein (...)” p.23. 28 Bourdieu, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. Op.Cit. pp.24 e 25. 29 CHAMPAGNE, Patrick e CHRISTIN, Olivier. Op.Cit. pp.158 e 159.
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sobre uma competência que proporciona autoridade e contribui para definição de
regras do jogo: as leis de distribuição dos lucros nesse jogo, as leis sobre a
importância dos temas, aquilo que é brilhante ou ultrapassado, onde é mais
compensador publicar etc. 30
Esse capital científico é equivalente à autoridade científica e pode ser
“acumulado, transmitido e até mesmo, em certas condições, reconvertido em
outras espécies”. O capital científico guarda certa relação de dependência com a
obtenção de fundos para pesquisa, a atração de estudantes de qualidade, a
aquisição de subvenções e bolsas, convites, consultas e distinções ou prêmios,
para os quais o pesquisador depende de sua reputação junto aos colegas no campo. 31 O autor ainda aponta que o processo de acumulação de capital científico
também pode englobar a reconversão deste capital e a relação de continuidade que
pode se estabelecer entre universidade e cargos administrativos, comissões
governamentais, entre outros. 32
A partir da compreensão do campo científico enquanto estrutura de
relações entre posições determinadas por seu volume de capital aferido de forma
relacional, pode-se compreender que esse espaço é um “jogo”, uma “luta
concorrencial” pelo “monopólio da autoridade científica”, da “competência
científica”, em que competência técnica e poder estão inseparavelmente
articulados.33 Essa articulação implica em “capacidade de falar e agir
legitimamente”, “de maneira autorizada e com autoridade”, o que seria
socialmente outorgado aos agentes sociais.34 As posições dos agentes na estrutura
dependem do capital, as estratégias por sua vez, dependem das posições, porque
orientam-se para conservação ou transformação da estrutura, ou seja, quanto mais
as pessoas ocupam posições favorecidas mais tendem a conservar as posições e a
estrutura.35
30 Bourdieu, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. Op.Cit. p.29. 31 BOURDIEU, Pierre. “O campo científico”. In: BOURDIEU, Pierre. Sociologia. São Paulo: Ática, 1982. p.10. 32 BOURDIEU, Pierre. “O campo científico”. In: BOURDIEU, Pierre. Sociologia. São Paulo: Ática, 1982. p.10. 33 Id. 34 BOURDIEU, Pierre. “O campo científico”. Op.Cit. p.1. 35 Bourdieu, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. Op.Cit. p.29.
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A ideia de campo científico, para Bourdieu, rompe com a imagem da
“comunidade científica” e afirma ou recorda que “o próprio funcionamento do
campo científico produz e supõe uma forma específica de interesse” 36, quer dizer,
recorda que as práticas científicas não são desinteressadas.37 Assim, afirma o
autor, “a definição do que está em jogo na luta faz parte da luta”. O campo é um
jogo no qual as próprias regras estão postas em jogo, ou seja, aquilo que está
dentro do campo ou fora também é objeto e resultado de disputas políticas: o que
é ou não científico, digno de cientificidade, o que é ou não é parte do campo. 38
Em decorrência dessa dinâmica, afirma Bourdieu, “esbarramos sempre com
antinomias da legitimidade”. 39
Por meio dessas disputas, em torno das quais o campo se organiza, os
agentes não param de transformar o campo, conforme notam Champagne e
Christin. Dessa forma, determinam a estrutura do campo que lhes determina. No
mesmo sentido, os novos agentes, as novas gerações, tendem a modificar a
relação de força no interior do campo porque é a distribuição de propriedades dos
agentes de um campo que contribui para definir sua estrutura. Por isso, apontam
os autores, o recrutamento nesse universo é sempre objeto de uma atenção muito
particular e toma, frequentemente, a forma de cooptação quase declarada, uma vez
que o que está em questão é a reprodução do campo. 40
Mas, para compreender a organização de um conjunto de agentes,
instituições, temas, estratégias enquanto campo é fundamental o consenso que os
une. Quer dizer, a noção de que o campo para ser científico necessita, por parte
dos concorrentes, de acordo sobre: “os princípios de verificação da conformidade
ao “real” e os métodos comuns de validação de teses e de hipóteses”, ou seja,
aponta Bourdieu, um consenso tácito, inseparavelmente político e cognitivo que
36 Aqui, vale notar que com “forma específica de interesse” Bourdieu pretende também desembaraçar o interesse dos agentes no interior do campo com os interesses em relações exteriores que poderia determinar diretamente as ações no campo. É justamente para dar conta de um microcosmo relativamente autônomo que o autor passa a trabalhar com a noção de campo. BOURDIEU, Pierre. p.21. 37 BOURDIEU, Pierre. “O campo científico”. In: BOURDIEU, Pierre. Sociologia. São Paulo: Ática, 1982. p.2. 38 CHAMPAGNE, Patrick e CHRISTIN, Olivier. Op.Cit. p.155. 39 BOURDIEU, Pierre. “O campo científico”. In: BOURDIEU, Pierre. Sociologia. São Paulo: Ática, 1982. p.8. 40 CHAMPAGNE, Patrick e CHRISTIN, Olivier. Op.Cit. p.159 e 160.
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funda e rege o trabalho de produção científica. 41 Sobre o consenso que os une e
em disputa pelo que define as fronteiras do campo e hierarquiza posições em seu
interior, as construções sociais e representações defrontam-se no campo. São
construções sociais concorrentes e representações que se pretendem fundadas
numa realidade dotada de meios de impor seu veredito mediante um conjunto de
métodos, instrumentos e técnicas de experimentações coletivamente acumuladas e
coletivamente empregadas, sob a imposição das disciplinas e censuras do campo.
Portanto, o campo científico consiste num sistema complexo de relações objetivas
que são relações de cumplicidade e concorrência que os une e opõem ao mesmo
tempo. 42
No que se refere às disputas no interior do campo, Champagne e Christin
apontam que Bourdieu localiza, de um lado, aqueles que ocupam posições
dominantes, detêm o capital específico mais importante e que, naturalmente,
desenvolvem estratégias de conservação desse capital e de ortodoxia.
Champagne e Christin notam bem que a noção de campo tem como
benefício teórico a importância concedida aos interesses e às lutas específicas do
campo, que possibilitam sair da oposição entre uma leitura interna das obras e a
redução ao contexto43, ou seja, concebe relações que não são mecânicas uma vez
que o espaço de posições tende a comandar o espaço de tomada de posições. As
relações exteriores, assim, não se exercem diretamente, mas indiretamente, por
intermédio da estrutura do campo e como um efeito de refração. 44
No entanto, Bourdieu, como já salientado, segue na análise sobre o campo
científico um caminho normativo que o leva a conceber ideal a autonomia do
campo científico das relações sociais exteriores ao campo, em sua busca pela troca
racional e pelo progresso da razão, realocando a figura do intelectual enquanto
detentor de interesses intelectuais específicos e genuínos, o que terminaria por
isolar e impossibilitar tal efeito indireto das relações sociais exteriores sobre a
estrutura do campo. O autor também opõe esse ideal de autonomia ao estado de
41 Bourdieu, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. Op.Cit. p. 33. 42 CHAMPAGNE, Patrick e CHRISTIN, Olivier. Op.Cit. p.152. 43 CHAMPAGNE, Patrick e CHRISTIN, Olivier. Op.Cit. p.173. 44 CHAMPAGNE, Patrick e CHRISTIN, Olivier. Op.Cit. p.173. Aqui haveria clara oposição à tradição marxista que via no universo de produção simbólica a expressão direta dos interesses de classe, conforme os autores.
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heteronomia do campo, em que os problemas políticos exteriores ao campo nele
se exprimiriam de forma direta.
Além disso, é a partir dessas noções de autonomia e heteronomia que o
autor concebe a relação entre o campo científico e o Estado, notando que: o
Estado pode financiar e propiciar a autonomia de campos científicos e não deixá-
los na dependência do mercado. Diz, no entanto, que esse é um grande paradoxo
dos campos científicos. O Estado que assegura autonomia também pode impor
constrangimentos geradores de heteronomia e se fazer de expressão ou
transmissor das pressões de forças econômicas. 45
Esse ideal normativo de autonomia é um dos elementos principais que
coloca limites à utilização da categoria de campo científico para esta análise do
campo intelectual sobre violência, crime e segurança pública e a corrente liberal
sobre segurança pública em seu interior. Isto porque, parte de outra percepção da
relação desse campo com o Estado e com a mídia, possivelmente também um
campo social específico. Como será desenvolvido adiante, essas relações são
centrais para a caracterização e a compreensão mais ampla do lugar social desta
corrente liberal sobre segurança pública no conjunto mais amplo de relações de
poder, em especial entre Estado e população empobrecida das cidades, na
democracia brasileira.
A noção de campo científico ou intelectual é, assim, uma ferramenta de
análise que permite conceber o campo intelectual sobre violência, crime e
segurança pública como uma estrutura de posições em que intelectuais, correntes,
instituições e publicações se organizam em torno de disputas (temáticas,
metodológicas e teóricas), que são tanto cognitivas quanto políticas, e que
organizam a distribuição do capital científico no interior do campo. Permite ainda
perceber que as estratégias de todos os agentes/intelectuais têm repercussões
mútuas no que se refere a resultados de pesquisas, publicações “inovadoras”,
recebimento de financiamentos etc., uma vez que este é um campo relacional, ou
seja, a noção de campo é rica e operativa para a concepção, organização e, em
parte, para a compreensão do funcionamento do campo.
Além dela, e saindo dos limites por ela apresentados, em um sentido
bastante produtivo para o que se pretende neste trabalho, as noções de regime de
45 BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. Op.Cit. pp.22, 55 e 56.
25
verdade, de intelectual específico e de práticas discursivas oferecidas por Michel
Foucault são fundamentais. A articulação das ferramentas teóricas de Bourdieu e
Foucault são importantes para a problematização e compreensão do universo
intelectual, seu funcionamento e suas possíveis posições de poder. Para procurar
entender este espaço de produção intelectual sobre segurança pública na formação
social capitalista brasileira é quase inevitável uma articulação de ambas as
contribuições. Fazê-la, no entanto, a ponto de se considerar todas as diferenças,
disputas ou mesmo incompatibilidades existentes entre os dois pensamentos não é
o objetivo deste trabalho. Esta é uma tarefa de um projeto de pesquisa mais amplo
e profundo que poderá desenvolver-se oportunamente. Assim, a utilização do
arsenal teórico de Bourdieu e Foucault desenvolvida adiante é consciente de que
existem importantes diferenças, mas pretende ser cuidadosa.
Para essa articulação, a partir da produção de Bourdieu, são cruciais as
ideias de que o campo intelectual organiza-se em torno de disputas cognitivas e
políticas; de que as posições neste campo são condicionadas pelo acúmulo de
capital científico; de que este capital deve ser entendido em termos de legitimação
e, por fim, de que há conexões entre capital científico e outras formas de poder
exteriores ao campo, permitindo sua conversão e, assim, a ocupação de outras
posições.
Esses são pontos que se comunicam analiticamente com as noções
foucaultianas propostas para se pensar a relação entre verdade e poder e se
problematizar o lugar do intelectual nas relações de poder, entre forças sociais no
capitalismo.
Primeiramente, é fundamental ter em conta a noção de práticas
discursivas. Segundo Foucault, as práticas discursivas “caracterizam-se pelo
recorte de um campo de projetos, pela definição de uma perspectiva legítima para
o sujeito de conhecimento, pela fixação de normas para a elaboração de conceitos
e teorias.” 46 Portanto, neste campo de práticas discursivas recortado está
pressuposto também “um jogo de prescrições que determinam exclusões e
escolhas”.
Foucault esclarece que mais do que “modos de fabricação de discursos”,
as práticas discursivas engendram-se, “ganham corpo”, em “conjuntos técnicos,
46 FOUCAULT, Michel. Resumo dos Cursos do Collège de France (1970-1972). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1997. p.11.
26
em instituições, em esquemas de comportamento, em tipos de transmissão e de
difusão, em formas pedagógicas, que ao mesmo tempo as impõem e as mantêm” 47. Esses atores intelectuais produzem conjuntamente sua própria legitimidade,
institucionalizam-na e por meio dela atuam, produzindo regimes de verdade. Não
há discursos, há práticas-discursivas. E não há neutralidade científica, há produção
de legitimidade e luta política.
Foucault aborda a figura do intelectual específico ou especialista, como
designa-se neste trabalho, no sentido político. Ou seja, naquilo que vai além de
seu sentido sociológico ou profissional. O intelectual específico, politicamente,
“faz uso de seu saber, de sua competência, de sua relação com a verdade nas lutas
políticas”48. O surgimento do intelectual específico na história está intimamente
relacionado à formação do Estado e à operação do que Foucault denominou o
biopoder, o poder sobre a vida.49 O intelectual específico, segundo Foucault,
detém, “ao serviço do Estado ou contra ele, poderes que podem favorecer ou
matar definitivamente a vida”50. Ou seja, sua posição é constitutivamente política
e estratégica e, no contexto da correlação de forças no capitalismo. Esta posição
pode também ser a de operar a serviço do Estado e do capital. Porém, afirma o
autor, o que é crucial para compreender esta posição de intelectual específico é
compreender que a verdade não existe fora das relações de poder. A verdade é
produzida em meio a múltiplas coerções e produz efeitos reais de poder.
A partir da noção de que a verdade se produz em meio a variadas disputas,
o autor apresenta a noção de regime de verdade. Os regimes de verdade são ou
não acolhidos por sociedades. Os regimes de verdade ou a “economia política” da
verdade se estabelecem, por exemplo, em nossa sociedade, de acordo com:
“os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os
47 FOUCAULT, Michel. Resumo dos Cursos do Collège de France (1970-1972). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1997. p.12. 48FOUCAULT, Michel. Verdade e poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. ed. 25a. São Paulo: Graal, 2012. p. 49. 49 A noção de biopoder designa as transformações no exercício do poder pelo Estado na virada para o século XX, em este passa não somente a governar indivíduos disciplinarmente, mas também como conjunto de seres vivos, como população. Assim, a biopolítica, por meio de biopoderes tomará em questão a saúde, a higiene, as raças, a sexualidade, a natalidade, etc.. (O nascimento da biopolítica. In: Resumos do Collège de France. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. p. 90; REVEL, Judith. Dicionário Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.) 50 FOUCAULT, Michel. Verdade e poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. ed. 25a. São Paulo: Graal, 2012. p. 50.
27
procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro”.51 Foucault aponta que na sociedade capitalista ocidental, que para esses
efeitos não diverge da nossa, a produção da verdade tem cinco caraterísticas:
“a "verdade" é centrada na forma do discurso científico e nas instituições que o produzem; está submetida a uma constante incitação econômica e política (necessidade de verdade tanto para a produção econômica, quanto para o poder político); é objeto, de várias formas, de uma imensa difusão e de um imenso consumo (circula nos aparelhos de educação ou de informação, cuja extensão no corpo social é relativamente grande, não obstante algumas limitações rigorosas); é produzida e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos políticos ou econômicos (universidade, exército, escritura, meios de comunicação); enfim, é objeto de debate político e de confronto social (as lutas "ideológicas").” A posição estratégica do intelectual específico, portanto, está relacionada
ao fato de que ele opera na produção de regimes de verdade, os quais foram
condições para o desenvolvimento do capitalismo e permanecem centrais para as
estruturas e o funcionamento das sociedade capitalistas.
Sendo assim, nesta questão específica sobre a problematização de campos
científicos ou de produção de regimes de verdade, não há separação possível entre
o que é discurso e o que é prática, da mesma forma como não se considera o
conjunto de intelectuais de determinando campo ou corrente de modo neutro ou
descritivo. Os intelectuais, principalmente os especialistas, que se debruçam sobre
conhecimentos localizados, lutam por meio de sua produção e acumulam capitais,
de formas variadas, no jogo de relações no campo.
A percepção possível sobre esses universos intelectuais ou campos, a
partir destes trabalhos de Bourdieu e Foucault, é de que atores sociais intelectuais,
organizados e em constante disputa em um sistema bem específico de relações - o
campo científico - atuam por meio de sua produção intelectual, a qual é
inseparável de estratégias, instituições, técnicas, políticas etc., com as quais se
relacionam, concedendo e ganhando sentido na relação. Pode estabelecer-se,
então, uma rede, conforme aponta Foucault sobre a noção de dispositivo.52 No
51 Id. p. 52. 52 Por “dispositivo”, Foucualt entende: “um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não ditos são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos. (...) entendo dispositivo como um tipo de formação que, em um determinado momento histórico teve como função principal responder a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica
28
presente caso, uma rede entre “discursos, instituições, organizações
arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados
científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas” relativas às questões
sob a insígnia ‘violência, criminalidade e segurança pública’ e, mais
especificamente sobre ‘segurança pública’.53
Sobre a formação de dispositivos de operação do poder nas sociedades
modernas, Foucault sugere que esses dispositivos se formam a partir da
necessidade de resposta a uma urgência. Esta é uma sugestão operativa para o que
está em análise neste trabalho. A ideia de que se forma um dispositivo de
segurança, historicamente, na democracia brasileira é produtiva para a
compreensão dos fenômenos em torno do tema ‘segurança pública’ tal como é
hegemonicamente apresentado.54 E, ainda, a ideia de que esse dispositivo de
segurança pública teve como função responder a uma urgência, em determinado
momento histórico, dá sentido ao que atestam as análises dos intelectuais das
ciências sociais no Brasil, conforme será demonstrado adiante no que se refere à
formação e consolidação do campo frente ao surgimento da “questão da
violência”. Isso remete ao que Foucault chama de “imperativo estratégico” o qual
funcionaria como a “matriz de um dispositivo” que, com o tempo, se torna ou
pretende se tornar um dispositivo de controle-dominação, 55 no presente caso, um
dispositivo securitário.
Além disso, os atores sociais, intelectuais produtores de práticas-
discursivas sobre violência, criminalidade e segurança pública muitas vezes, na
história dos governos, das cidades e estados brasileiros das últimas três décadas,
exerceram diretamente funções administrativas ou, por meio da institucionalidade
dominante. (...) Disse que o dispositivo era de natureza essencialmente estratégica, o que supõe que trata-se no caso de uma certa manipulação das relações de força, seja para desenvolvê-las em determinada direção, seja para bloqueá-las, para estabilizá-las, utilizá-las, etc.. O dispositivo, portanto, está sempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre, no entanto, ligado a uma ou a configurações de saber que dele nascem mas que igualmente o condicionam. É isto, o dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles.” FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 22ª ed. Rio de Janeiro: Gral, 2006, p. 244-246. 53 FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos IV. Estratégia, Poder-Saber. Org. Manoel Barros da Motta. Trad. Vera Lucia Avellar Robeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 364. 54Este é um tema que não pode ser desenvolvido no presente trabalho. No entanto, há uma considerável literatura que apresenta análises nesse sentido e que em grande parte é utilizada em diferentes momentos deste trabalho. Alguns autores decisivos para aprofundar esse tema são: Vera Malaguti Batista, Nilo Batista, Marildo Menegat, Juarez Cirino dos Santos, Regina Rauter, Orlando Zacone, Silvia Moretzon, Cecília Coimbra, Felipe Brito, Edson Lopes, Tomás Ramos. 55 FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos IV Estratégia, Poder-Saber. Org. Manoel Barros da Motta. Trad. Vera Lucia Avellar Robeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p.365.
29
de núcleos de pesquisa, prestaram consultoria ao Estado, participaram de
conselhos públicos, realizaram estudos voltados para políticas públicas,
auxiliaram ONGs em casos e análises sobre violência de Estado etc. Nesse
sentido, não há como dissociar a produção intelectual que, em si, já é prático-
discursiva, da prática política, da estratégia e das instituições propriamente ditas.
Os intelectuais dessa corrente liberal sobre segurança pública vêm ocupando
diferentes posições no dispositivo securitário que se tem constituído no regime
democrático liberal, pós-ditadura civil-militar. Dispositivo este que se engendra
na relação entre o Estado e a população empobrecida, e no qual os intelectuais
especialistas são elementos constitutivos.
Ora, para a compreensão de como se forma historicamente, o que produz,
o que questiona, o que engendra e o que legitima a produção intelectual de um
campo prático discursivo integrante do pensamento social brasileiro é
fundamental estabelecer em que termos teóricos ele é abordado. Assim, como será
analisado adiante, compreende-se que a partir da década de 1970, um campo
prático discursivo amplo e heterogêneo de produção que se denomina de campo
sobre violência, crime e segurança pública, entra em formação. Este campo foi
composto de algumas correntes teóricas no interior das quais se organizam linhas
analíticas, temáticas e metodológicas que se combinam de forma diversificada
desde então. No interior deste campo, mais especificamente, identifica-se a
formação, também a partir da década de 1970, porém com marco principal de
consolidação na década de 1990, desta corrente liberal de produção intelectual
sobre segurança pública que se conforma hegemonicamente no interior desse
campo. 56
Sobre as diferentes linhagens, correntes teóricas e subcampos no interior
do campo intelectual é fundamental apontar que há outros(as) intelectuais que
vêm desenvolvendo reflexões sobre temas relativos à violência urbana, crime,
sistema prisional, pena e o papel do Estado. Essas abordagens, no entanto, são
realizadas de forma a desconstruir politicamente o discurso que embasa e que é
reproduzido e reafirmado pela corrente liberal identificada. Essas linhagens, por
exemplo, não reivindicam o campo/subcampo da mesma forma. Pelo contrário,
56 Aqui, utiliza-se a noção de hegemonia no sentido de dominante ou preponderante e não propriamente no sentido desenvolvido por Gramsci, no qual haveria uma combinação desigual de consenso e coerção na formação de projetos hegemônicos.
30
apontam e questionam muitas vezes política, teórica, analítica, epistemológica e
até eticamente, os que reivindicam esse lugar de especialista, este saber
diferenciado, neutro e científico.
Neste sentido, é fundamental perceber que, conforme nota Bourdieu sobre
a estrutura do campo intelectual, há neste campo intelectual sobre violência, crime
e segurança diferentes posições de poder que correntes teóricas ocupam. São
posições que se definem de acordo com estratégias prévias e com o capital
científico acumulado. Ou, como aponta Foucault, no jogo de exclusões e escolhas
dos recortes desse campo, as práticas discursivas determinam objetos, afinam e
ajustam conceitos e acumulam informações. 57
Nota-se que a corrente liberal sobre segurança pública confunde-se em
alguns momentos com um núcleo precursor do campo intelectual mais amplo o
qual se identifica neste trabalho como o campo sobre violência, crime e segurança
pública, justamente porque esta linhagem teórica está na gênese deste campo
específico de estudos, em disputa com abordagens referidas como “marxistas” e
em diferenciação das foucaultianas. O que se verifica, no que se refere à
reivindicação da existência de tal campo intelectual, dotado de especificidade e de
autonomia científica - portanto teórica, analítica e metodológica - é a hegemonia,
da corrente liberal, a partir de seu capital científico, que produz resultados no jogo
de poder relativo à delimitação de objetos, à forma de abordá-los e ao grau de
circulação, publicização e adesão à sua perspectiva.
O que se percebe é que esta produção de verdade por especialistas sobre
segurança opera ocultando o aspecto constitutivo capitalista do Estado brasileiro,
com suas modalidades disciplinares e biopolíticas de exercício do poder seletivo
em relação à vida das classes subalternizadas no Brasil. Isto se dá, entre outras
formas, pela abordagem jurisdicista liberal sobre o Estado, uma vez que esta
produz o silenciamento ou mesmo a ocultação das relações de dominação e de
poder de múltiplas naturezas que se exercem por meio ou a partir dele.
A abordagem sobre o campo intelectual ou científico oferecida por
Bourdieu, assim como a noção de práticas discursivas formulada por Foucault,
portanto, informarão, ao longo deste trabalho, a compreensão da formação deste
subcampo intelectual, a abordagem das análises que o integram e a posição que
57 FOUCAULT, Michel. Resumo dos Cursos do Collège de France (1970-1972). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1997. p.12.
31
ocupam no contexto político mais amplo de disputas de classe na sociabilidade
urbana capitalista periférica brasileira.
Em outro nível de análise sobre a corrente liberal, algumas observações a
respeito de sua composição e delimitação são importantes. Luiz Antônio
Machado, professor e pesquisador reconhecido como um dos pioneiros do campo,
em entrevista para o livro “As Ciências Sociais e os pioneiros nos estudos sobre
crime, violência e direitos humanos”, abordou de forma muito interessante a
questão da natureza desse universo intelectual, por muitos chamado de
“sociologia do crime”. Discordando de sua organicidade ou possibilidade de
totalização, Machado apresentou, no que se pode considerar um nível analítico de
observação, o funcionamento desse campo e uma outra forma de compreendê-lo.58
Na visão do pesquisador, essa produção intelectual não constitui um
corpus orgânico e estruturado. Afirma, na segunda pessoa do plural, que todos os
estudiosos tematizam os tópicos que estão na agenda pública, que, por sua vez, é
pautada pela “linguagem da violência urbana”. Para ele, esses tópicos apenas se
entrecruzam, mas não se estruturam de modo a formar “uma totalização que
supere ou unifique a diversidade de perspectivas, pontos de vista etc., nem sequer
como horizonte de um processo possível”. Sem adentrar o debate em um nível
teórico de análise, o autor afirma, então, sua preferência por falar em
“perspectivas e objetos construídos” ao invés de “campos”, em termos
bourdianos. 59
Em seguida, Machado explicita sua percepção sobre a composição desse
universo de “perspectivas e objetos construídos” da seguinte forma: haveria um
continum entre duas perspectivas que articulam vários problemas de investigação
e pontos de vista. Uma seria jurídico-institucional, estatal, associada à moralidade
dominante, instituída, em que as atividades criminais e o processamento de
disputas estão presentes, mas o foco de análise é o funcionamento das estruturas
institucionais e que fundamenta muitos debates e pesquisas (ex: discussão sobre
funcionamento e práticas específicas dos subsistemas penitenciário, policial,
judiciário). É a perspectiva estatal. A outra seria aquela em que, o que está em
58 LIMA, Renato Sérgio de e RATTON, José Luiz (Orgs.) As Ciências Sociais e os pioneiros nos estudos sobre crime, violência e direitos humanos. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Urbania, ANPOCS, 2011. pp.168 a 172. 59 LIMA, Renato Sérgio de e RATTON, José Luiz (Orgs.) As Ciências Sociais e os pioneiros nos estudos sobre crime, violência e direitos humanos. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Urbania, ANPOCS, 2011. pp.168 e 169.
32
questão são as práticas e vivências da população sobre a qual o Estado exerce sua
soberania, a que chama de societal e na qual os aparelhos de Estado estão
presentes, porém, como referências axiológicas lidas pelos atores, conforme
aponta Machado.60
O pesquisador conclui que essas perspectivas são inseparáveis, uma vez
que tematizam as mesmas práticas e organizações, mas são irredutíveis uma a
outra. Tais perspectivas que dividem o universo de estudos sobre violência urbana
seriam, então, complementares, sendo impossível fundi-las em uma terceira forma
que as englobasse. Machado conclui pela impossibilidade de totalização,
afirmando que: “Nem a experiência social é uniforme, nem suas racionalizações”.
61
Por fim, ao ser perguntado sobre a questão da relação entre Estado e
universidade por meio de consultorias e programas de formação, o pesquisador
apresentou três observações que condicionam a universidade: i) sobre o fato de a
universidade ser parte das instituições estatais ou aparelhos de Estado, por mais
autonomia intelectual, econômica, politico-administrativa que tenha; ii) sobre a
conflitividade, disputa, divergências, desencontros entre pessoas serem aspectos
fundamentais de qualquer interação social minimamente duradoura e iii) sobre o
fato de que perspectivas são ângulos de observação e reflexão e não conteúdo.
A partir disto, Machado afirma que as duas perspectivas estão presentes,
mas de uma forma desequilibrada na universidade, pois a perspectiva societal é
minoritária, recebe menos financiamento, tem menos reputação, enquanto os
estudos sobre segurança pública - os temas que interessam às políticas de controle
institucional do crime, da violência etc. - recebem (“obviamente”, enfatiza) muito
mais atenção da universidade. E ressalta: “Isso é não por falta de democracia, mas
porque nós, da universidade, tendemos a privilegiar esses temas devido à nossa
adesão majoritária à perspectiva estatal”.62
60 LIMA, Renato Sérgio de e RATTON, José Luiz (Orgs.) As Ciências Sociais e os pioneiros nos estudos sobre crime, violência e direitos humanos. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Urbania, ANPOCS, 2011. pp.168 e 169. 61 LIMA, Renato Sérgio de e RATTON, José Luiz (Orgs.) As Ciências Sociais e os pioneiros nos estudos sobre crime, violência e direitos humanos. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Urbania, ANPOCS, 2011. p.169. 62 LIMA, Renato Sérgio de e RATTON, José Luiz (Orgs.) As Ciências Sociais e os pioneiros nos estudos sobre crime, violência e direitos humanos. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Urbania, ANPOCS, 2011. p.172.
33
A partir dessas colocações de Luiz Antônio Machado sobre o universo
intelectual em análise, a que se denominou, a partir da problematização de
Bourdieu e Foucault, de campo e corrente prático-discursivos, pode-se avançar na
caracterização da corrente liberal sobre segurança pública.
Discordando da abordagem teórica que Machado acabou por atribuir a este
universo, porque o compreendo enquanto uma corrente prático-discursiva,
entendo, no entanto, que sua descrição analítica da forma de organização deste
universo intelectual é muito pertinente e é complementar à problematização
teórica que se propõe sobre esta corrente intelectual do campo.
Assim, a partir do que o autor propôs em sua entrevista, pode-se afirmar
que há linhas temáticas e linhas metodológicas que se articulam ou que se
organizam pela perspectiva estatal, a qual tem como foco o funcionamento das
estruturas institucionais; ou societal, a qual tem foco sobre as práticas e vivências
da população. Além disso, reafirma-se a percepção sobre sua combinação e
complementariedade, conforme propõe Machado.
No que se refere à possibilidade ou não de totalização dessas perspectivas,
além do posicionamento de Machado, deve-se notar que Sérgio Adorno, ao ser
consultado em sua entrevista sobre aproximações que veria entre a “produção
sociológica brasileira” e as “vertentes teórico-metodológicas”, marxista, liberal,
hermenêutica, genealógica e analítica, responde que as perspectivas teóricas
refletem tendências que apareceram na literatura internacional e que os
pesquisadores brasileiros realizaram certa incorporação dessas tendências, cada
um a seu modo.63 Para Adorno, a literatura especializada sobre violência e crime,
especialmente por sociólogos e antropólogos, trabalha com diferentes fontes de
análise e interpretações dos fatos e não revela filiações teóricas absolutas a certas
correntes, o que faria vigorar o “ecletismo teórico”64 nas ciências sociais
brasileiras. 65
63 LIMA, Renato Sérgio de e RATTON, José Luiz (Orgs.). Entrevista Sérgio Adorno. In: As Ciências Sociais e os pioneiros nos estudos sobre crime, violência e direitos humanos. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Urbania, ANPOCS, 2011. p.80. 64 Adorno aponta que esse ecletismo teórico propiciou evitar-se a reafirmação de teorias universalistas desprovidas de comprovação empírica e que se deve ter cuidado com tal ecletismo para não se incorrer em associações de conceitos de raízes teóricas incompatíveis. Nota, entretanto, que “os autores brasileiros de uma maneira geral têm formação muito sólida e sabem fazer esse diálogo entre teorias com muita competência”. (p.81). 65 LIMA, Renato Sérgio de e RATTON, José Luiz (Orgs.). Entrevista Sérgio Adorno. In: As Ciências Sociais e os pioneiros nos estudos sobre crime, violência e direitos humanos. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Urbania, ANPOCS, 2011. p.80 e 81.
34
Quanto a esta impossibilidade de totalização ou filiações teóricas de
perspectivas sobre violência, criminalidade e segurança pública, afirmadas por
Machado e Adorno, pondera-se: Identifica-se a existência de um horizonte
teórico-político conformador desta corrente prático-discursiva, objeto deste
trabalho. Argumenta-se aqui, no entanto, pela existência ou conformação de um
horizonte, não de uma síntese.
A possibilidade de totalização desta corrente liberal sobre segurança
pública reside em duas questões: na complementariedade das perspectivas societal
e estatal e na relação destas com categorias teórico-políticas, fundamentalmente
aquelas relativas ao Estado. Talvez tenha sido a essas categorias que Machado se
referiu como “referências axiológicas”66 aos aparelhos de Estado. Primeiramente,
a complementariedade entre as perspectivas estatal e societal demonstra que
independente de serem análises de ângulos distintos, muitas vezes
complementam-se porque partilham da mesma abordagem teórico-política. Por
exemplo, uma série de estudos sobre a sociabilidade violenta da juventude que se
relaciona ao tráfico de drogas em áreas empobrecidas de metrópoles brasileiras
reafirma premissas relativas a manutenção da legalidade e da ordem pública por
instituições estatais, mesmo criticando práticas estatais existentes, e abre caminho
para sua complementação, a partir da perspectiva estatal, sobre os estudos acerca
de políticas públicas e reforma no aparato policial para lidar com aquelas
características identificadas nas análises sobre sociabilidade violenta.
A segunda questão é relativa às categorias políticas que são tomadas como
premissas ou trabalhadas como projeções normativo-prescritivas, sobre o Estado,
sua natureza, função e relação com a sociedade. Portanto, independente da
perspectiva que se adote, se estatal ou societal, é possível identificar uma
abordagem teórico-política determinada, como é a abordagem liberal que
analisamos. E, dessa forma, é possível falar-se em uma base e um horizonte
teórico político comum que, este sim, permite uma espécie de totalização, ao
mesmo tempo em que acomoda a heterogeneidade temática, metodológica e de
perspectiva das análises sobre segurança pública no interior desta corrente
66 LIMA, Renato Sérgio de e RATTON, José Luiz (Orgs.). Entrevista Luiz Antônio Machado. In: As Ciências Sociais e os pioneiros nos estudos sobre crime, violência e direitos humanos. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Urbania, ANPOCS, 2011. p.169.
35
identificada. É, portanto, em torno da abordagem teórico-política, que correntes e,
em especial, esta corrente liberal se organiza.
Aliada à complementariedade das perspectivas societal e estatal e à relação
que as várias linhas teórico-analíticas de abordagens sobre violência e crime
guardam com determinadas categorias teórico-políticas, tem-se o dado de que, a
partir de um determinado período, entre o final da década de 1990 e o início da
década de 2000, mesmo aquelas linhas reunidas em torno da perspectiva societal
passam a abordar explicitamente, e talvez de outra forma, a questão da segurança
pública como política pública de manutenção da ordem capitalista e liberal
vigente e garantida pelo Estado. Em muitos casos, mais do que relacionar-se com
linhas de perspectiva estatal e institucional de forma complementar e por meio de
premissas e prescrições normativas comuns, intelectuais especialistas de tais
correntes passam a abordar diretamente os temas das políticas de segurança
pública do Estado.
É fundamental notar, desde o princípio desta análise que a corrente liberal
a que este trabalho se refere, como já pontuado, é heterogênea em termos de
perspectivas (societal ou estatal), metodologias (quantitativas, qualitativas e suas
derivações) e também de graus de adesão a determinadas abordagens teórico-
políticas liberais e a determinadas abordagens epistemológicas, que, conformam
esse horizonte identificado.
Tal como aponta Foucault, sobre as práticas discursivas não coincidirem
com, mas sim reunirem e atravessarem disciplinas ou ciências, o campo a que se
refere este trabalho engloba formulações prático-discursivas provenientes de
diferentes disciplinas das chamadas ciências humanas, tal como instituídas no
sistema de ensino e produção acadêmica. As principais são a antropologia, a
sociologia e a ciência política – as ciências sociais –, não deixando de englobar
análises provenientes do direito, da história, da psicologia, e do serviço social
principalmente e, 67 eventualmente, da saúde, da economia, da administração
pública etc..
67 ADORNO, Sérgio. A Criminalidade Urbana Violenta no Brasil: Um Recorte Temático. BIB, Rio de Janeiro. n.35, 1o semestre. 1993. p.3; ZALUAR, Alba. (1999). Violência e crime. In: MICELLI, Sérgio (org).O que ler nas Ciências Sociais brasileiras. São Paulo: Anpocs; Editora Sumaré. v.1, p.4; LIMA, R. Kant de; MISSE, Michel e MIRANDA, Ana Paula Mendes de. Violência, Criminalidade Segurança Pública e Justiça Criminal no Brasil: Uma bibliografia. BIB, Rio de Janeiro, n.50, 2o semestre. 2000. p.45; LIMA, Renato Sérgio de (coord.). Mapeamento das conexões teóricas e metodológicas da produção acadêmica brasileira em torno dos temas da
36
Ainda, para efeito de caracterização tanto do campo mais amplo sobre
violência e crime, mas principalmente, da corrente liberal sobre segurança
pública, é relevante identificar alguns elementos operativos que os constituem, os
produzem e reproduzem. Tomou-se por elementos operativos relevantes, para o
que se pretende abordar neste trabalho, as principais análises (diagnósticos,
prognósticos e concepções teóricas) dos temas desta corrente por intelectuais
pioneiros e por outros especialistas, por vezes de gerações seguintes de
pesquisadores, de recorrente produção sobre tais temas; as revistas e publicações
periódicas historicamente relevantes para o subcampo; a formação de grupos de
pesquisa e centros de; e as linhas teórico-políticas inauguradas que justificam o
subcampo. 68
Esses elementos são considerados, para o fim desse trabalho, como os
operadores internos ao campo e à corrente. Eles organizam-se em diferentes
temáticas, utilizam diferentes metodologias, tomam a perspectiva estatal ou
societal e, é por meio deles que interesses afirmam-se, estratégias exercem-se,
lucros e capital científico acumulam-se, escolhas e exclusões realizam-se e
monopólios são disputados e, possivelmente, conquistados.
Certamente, há outros elementos que se relacionam com a corrente liberal
de produção teórico-política que não serão analisados profundamente aqui, porque
ultrapassam a delimitação do que se pretende neste trabalho. Alguns exemplos são
as apresentações em fóruns e associações acadêmicas internacionais, além das
relações íntimas ou mesmo da identidade do trabalho intelectual ou da
reconversão do capital científico da intelectualidade na atuação de organizações
não governamentais nacionais e internacionais, de agências e secretarias estatais
de segurança e suas formulações de políticas de segurança e de agências
interestatais internacionais, como a Organização das Nações Unidas e a
Organização dos Estados Americanos.
violência e da segurança pública e as suas relações com as políticas públicas da área adotadas nas duas últimas décadas (1990-2000). FAPESP. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 2009. 68 Um programa de pesquisa aprofundado com levantamentos empíricos quantitativos e qualitativos atualizados sobre toda produção de livros e artigos, de grupos em associações de pesquisa, de disciplinas de pós-graduação e graduação, de dissertações e teses e de grupos e linhas de pesquisa seria muito útil para a caracterização exaustiva da gênese e reprodução desse campo. No entanto, o que se pretende neste trabalho é uma aproximação suficiente desses elementos para que se possa desenvolver a análise específica relativa aos pressupostos teóricos sobre o Estado e a sociedade encontrados no subcampo enfocado, o que é feito por meio da utilização de fontes secundárias de pesquisa – os levantamentos e pesquisas dos próprios cientistas sociais acerca do campo.
37
2.2
Campo intelectual e corrente liberal: formação e diferenciação
históricas
Para uma aproximação satisfatória da hipótese relativa à existência de um
campo sobre violência, crime e segurança pública e à existência e reivindicação
de uma corrente liberal sobre segurança pública, foram utilizados os
levantamentos e análises de balanço da produção bibliográfica acadêmica das
ciências sociais realizados por intelectuais pioneiros do campo e integrantes da
corrente em análise. 69 Como já ressaltado, a partir da interpretação de autores que
integrarão a corrente liberal, campo e corrente por vezes confundem-se. 70 No
entanto, é possível identificar rupturas, adesões e especificidades que ensejam,
historicamente, a delimitação dessa corrente liberal a partir das contribuições que
dão corpo e significado histórico à existência desses universos intelectuais.
Nesse mapeamento, têm papel fundamental os balanços bibliográficos
publicados por Alba Zaluar, Sérgio Adorno, César Barreira, Kant de Lima, Michel
Misse e Ana Paula Miranda; dois estudos sobre esse campo/corrente, um de
Francisco Vasconcelos e outro coordenado por Renato de Lima; e o livro
intitulado “As Ciências Sociais e os Pioneiros nos Estudos sobre Crime, Violência
e Direitos Humanos no Brasil”,71 que traz entrevistas com os principais nomes da
intelectualidade desse campo identificado por intelectuais e pesquisadores tanto
da primeira quanto da segunda geração. As entrevistas abordam a formação do
69 A designação “pioneiros” refere-se aos trabalhos coordenados por Renato Sérgio de Lima que desde 2009 vem trabalhando sobre a constituição e desenvolvimento deste campo e que se refere a esses intelectuais como “aqueles que, desde meados da década de 1970 e 1980 construíram uma reflexão sistemática e permanente, voltada, prioritariamente para as questões sobre violência, criminalidade, organizações policiais e do sistema de justiça e políticas públicas de segurança”, LIMA, Renato Sérgio de e RATTON, José Luiz (Orgs.) As Ciências Sociais e os pioneiros nos estudos sobre crime, violência e direitos humanos. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Urbania, ANPOCS, 2011. p.11. Outro trabalho fundamental é: LIMA, Renato Sérgio de (coord.). Mapeamento das conexões teóricas e metodológicas da produção acadêmica brasileira em torno dos temas da violência e da segurança pública e as suas relações com as políticas públicas da área adotadas nas duas últimas décadas (1990-2000). FAPESP. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 2009. 70 Isso porque a reivindicação sobre a existência de um campo é uma estratégia comum de afirmação de uma posição, um lugar e certa acumulação de capital científico. 71 LIMA, Renato Sérgio de e RATTON, José Luiz (Orgs.) As Ciências Sociais e os pioneiros nos estudos sobre crime, violência e direitos humanos. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Urbania, ANPOCS, 2011.
38
campo, as conexões teórico-metodológicas e os percursos intelectuais e
profissionais de cada um. 72
A partir da existência de diversas leituras sobre esse campo, uma
abordagem sobre a formação, diferenciação e consolidação desses universos, deve
iniciar-se com a identificação de alguns consensos entre os diferentes intelectuais
no esforço de realização de balanços sobre essa produção intelectual. Esses
consensos são fundamentais para que se possa delimitar suficientemente temporal,
temática, política e teoricamente isto que é chamado de corrente liberal sobre
segurança pública e sua formação no interior de um campo que guarda
heterogeneidades e organiza-se em torno de disputas, inclusive sobre seu
significado.
O primeiro e fundamental consenso dessa literatura acadêmica formadora
do campo/corrente intelectual 73 é a afirmação de que estes temas ganharam
grande destaque em um cenário social em que autoridades públicas, mídia e
intelectuais no meio urbano se voltaram para a ‘questão da violência’. Conforme
aponta Cecília Coimbra em “Operação Rio: o mito das classes perigosas”, em que
aborda o papel da comunicação de massa no incremento da violência por meio da
produção de determinadas formas de existência, 74 “os mal estares sociais só
passam a ter existência quando são enunciados/mostrados pela mídia, ou seja,
reconhecidos como realidade”. 75
As revisões afirmam também que este movimento ocorre desde a primeira
metade da década de 1970, 76 ou seja, desde o início do período de transição para
72 A diferenciação entre campo e subcampo que se propõe no presente trabalho não coincide totalmente com o que os autores das revisões bibliográficas e dos trabalhos mais recentes sobre os campos que se intitulam de “sociologia da violência” no caso de Vasconcellos ou de “violência e segurança pública”, “sociologia do crime”, “crime, violência e direitos humanos” no caso de Renato Sérgio de Lima e José Luiz Ratton. Por este motivo, por vezes não será possível distinguir nominalmente entre campo e subcampo e serão utilizadas ambas expressões para tornar visível essa impossibilidade e ausência de coincidência. Neste trabalho, propõe-se uma diferenciação própria, fundamentada na teoria política afirmada e na operatividade sócio-política das análises de um grupo de intelectuais especialistas em temas sobre violência, criminalidade e segurança pública. 73 Vale lembrar que identificamos os autores das resenhas bibliográficas com as quais trabalhamos como pertencentes à corrente liberal sobre segurança pública, objeto desse trabalho. 74 COIMBRA, Cecília. Operação Rio: o mito das classes perigosas: um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública. Rio de Janeiro, Oficina do Autor; Niterói: Intertexto, 2001. p.31. 75 COIMBRA, Cecília. Operação Rio: o mito das classes perigosas: um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública. Rio de Janeiro, Oficina do Autor; Niterói: Intertexto, 2001. p.44. 76 Alguns trabalhos anteriores são lembrados como estudos preliminares, consolidando-se a visão de que é na década de 1970 que aconteceriam os primeiros marcos de surgimento desse campo:
39
o regime democrático no Brasil. 77 Os diagnósticos sobre que fenômeno causaria
essa mudança variam entre as questões do aumento e mudança no perfil da
criminalidade e da repressão ou autoritarismo político, sendo que a maioria dos
autores consideram ambos em suas resenhas. 78 Acerca dos temas de pesquisa que
inauguram o campo, são simbólicas algumas falas em entrevistas contidas no já
referido livro “As Ciências Sociais e os pioneiros nos estudos sobre crime,
violência e direitos humanos”. Michel Misse, Sérgio Adorno e Paulo Sérgio
Pinheiro concordam que os estudos sobre prisão são aqueles que inauguram esse
campo, apesar de manterem interpretações distintas sobre a causa que o faz
emergir, conforme a divergência acima referida.
Em segundo lugar, também avaliam consensualmente que as referências
sobre violência e crime no Brasil, anteriores a este momento, são de caráter
médico-psiquiátrico e jurídico–penalista. O interesse pelo crime e pela violência
até esse marco temporal figuraria no registro do desvio de comportamento e do
estudos de Bastide sobre cor e criminalidade em São Paulo, de 1968, análises estatísticas de justiça criminal do IBGE, entre 1955-1959, estudos de Paulo Duarte sobre penitenciárias em São Paulo, em 1950 e 1951, publicados na Revista Anhembi. 77 ADORNO, Sérgio. A Criminalidade Urbana Violenta no Brasil: Um Recorte Temático. BIB, Rio de Janeiro. n.35, 1o semestre. 1993. p.3; ZALUAR, Alba. (1999). Violência e crime. In: MICELLI, Sérgio (org).O que ler nas Ciências Sociais brasileiras. São Paulo: Anpocs; Editora Sumaré. v.1, p.17; LIMA, R. Kant de; MISSE, Michel e MIRANDA, Ana Paula Mendes de. Violência, Criminalidade Segurança Pública e Justiça Criminal no Brasil: Uma bibliografia. BIB, Rio de Janeiro, n.50, 2o semestre. 2000. p.47; LIMA, Renato Sérgio de (coord.). Mapeamento das conexões teóricas e metodológicas da produção acadêmica brasileira em torno dos temas da violência e da segurança pública e as suas relações com as políticas públicas da área adotadas nas duas últimas décadas (1990-2000). FAPESP. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 2009.p.36; VASCONCELOS, Francisco Thiago Rocha. A sociologia da violência em São Paulo: a formação de um campo em meio à fragmentação de uma intelligentsia na transição democrática. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, Departamento e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, 2011, n.1, p.149. ADORNO, Sérgio e BARREIRA, Cé sar. A violência na Sociedade Brasileira. In: MARTINS, Carlos Benedito e MARTINS, Heloisa Helena T. De Souza. Horizontes das Ciências Sociais no Brasil: sociologia. São Paulo: ANPOCS, 2010. p.316. 78 Neste ponto, há variações. Alguns autores citam ambas as questões, outros restringem a interpretação a uma das causas. Por exemplo, Michel Misse, é categórico ao afirmar que foi “a mudança do perfil da criminalidade no Brasil, nas grandes cidades brasileiras, pelo aumento das taxas de crimes violentos”. LIMA, Renato Sérgio de. Entrevista Michel Misse. In: LIMA, Renato Sérgio de e RATTON, José Luiz (Orgs.) As Ciências Sociais e os pioneiros nos estudos sobre crime, violência e direitos humanos. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Urbania, ANPOCS, 2011. p.21. Já Sérgio Adorno, Alba Zaluar, e Francisco Vasconcelos apontam para um conjunto de questões, conforme: ADORNO, Sérgio. A Criminalidade Urbana Violenta no Brasil: Um Recorte Temático. BIB, Rio de Janeiro. n.35, 1o semestre. 1993. p.3; ZALUAR, Alba. (1999). Violência e crime. In: MICELLI, Sérgio (org).O que ler nas Ciências Sociais brasileiras. São Paulo: Anpocs; Editora Sumaré. v.1, p.31; VASCONCELOS, Francisco Thiago Rocha. A sociologia da violência em São Paulo: a formação de um campo em meio à fragmentação de uma intelligentsia na transição democrática. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, Departamento e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, 2011, n.1, p.150.
40
desafio da lei, ainda em um ‘campo de relações privadas’. 79 Os crimes que
ganhavam impacto na imprensa e atenção da opinião pública, segundo Adorno e
Barreira, eram aqueles relacionados a vinganças pessoais, mando político ou de
casos passionais. 80 Ainda sem o status de ‘problema social’, a violência não era
grande preocupação da “sociedade e do Estado”. 81
Nesse sentido, também é consenso o papel fundamental que o ‘clamor
popular’ ou o debate público, permeado pelos sentimentos de medo e insegurança
coletivos,82 em torno do aumento das taxas de crimes violentos na década de
1970,83 principalmente de roubos e linchamentos, 84 e também em torno da
violência exercida pelas forças do Estado e por grupos de extermínio, 85 segundo
alguns autores.
79 ZALUAR, Alba. Violência e crime. In: MICELLI, Sérgio (org).O que ler nas Ciências Sociais brasileiras. São Paulo: Anpocs; Editora Sumaré. 1999. v.1, p. 29; LIMA, Renato Sérgio de (coord.). Mapeamento das conexões teóricas e metodológicas da produção acadêmica brasileira em torno dos temas da violência e da segurança pública e as suas relações com as políticas públicas da área adotadas nas duas últimas décadas (1990-2000). FAPESP. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 2009.p.37; VASCONCELOS, Francisco Thiago Rocha. A sociologia da violência em São Paulo: a formação de um campo em meio à fragmentação de uma intelligentsia na transição democrática. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, Departamento e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, 2011, n.1, p.149. É necessário notar aqui, no entanto, que esta é uma afirmação de um determinado ângulo, o dos cientistas sociais que passam, em complexas articulações com o Estado e a mídia a tratar a ‘violência urbana’ como um ‘problema’ autônomo e o fazem a partir de determinada abordagem, a qual, no plano teórico político, identifico como liberal. Há, porém, outras perspectivas, que a partir de análises históricas e críticas não afirmam que a violência tenha se tornado uma questão pública apenas na década de 1970. Alguns exemplos são os trabalhos de: Sidney Chaloub, Gizlene Neder, Vera Malaguti Batista, Nilo Batista, João Ricardo Dornelles. 80 ADORNO, Sérgio e BARREIRA, César. A violência na Sociedade Brasileira. In: MARTINS, Carlos Benedito e MARTINS, Heloisa Helena T. De Souza. Horizontes das Ciências Sociais no Brasil: sociologia. São Paulo: ANPOCS, 2010. p.303. 81 A partir desse tipo de afirmação pode-se identificar o que é ou não considerado violência pelos autores. 82 Adorno, Sérgio e Cardia, Nancy. Nota de Apresentação. Edição Violência. Ciência e Cultura. 2002; ADORNO, Sérgio e BARREIRA, César. A violência na Sociedade Brasileira. In: MARTINS, Carlos Benedito e MARTINS, Heloisa Helena T. De Souza. Horizontes das Ciências Sociais no Brasil: sociologia. São Paulo: ANPOCS, 2010. p.307. 83 ADORNO, Sérgio e BARREIRA, César. A violência na Sociedade Brasileira. In: MARTINS, Carlos Benedito e MARTINS, Heloisa Helena T. De Souza. Horizontes das Ciências Sociais no Brasil: sociologia. São Paulo: ANPOCS, 2010. p.307. 84 LIMA, Renato Sérgio de. Entrevista Michel Misse. In: LIMA, Renato Sérgio de e RATTON, José Luiz (Orgs.) As Ciências Sociais e os pioneiros nos estudos sobre crime, violência e direitos humanos. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Urbania, ANPOCS, 2011. p.21. ADORNO, Sérgio e BARREIRA, César. A violência na Sociedade Brasileira. In: MARTINS, Carlos Benedito e MARTINS, Heloisa Helena T. De Souza. Horizontes das Ciências Sociais no Brasil: sociologia. São Paulo: ANPOCS, 2010. p.316. 85 ADORNO, Sérgio e BARREIRA, César. A violência na Sociedade Brasileira. In: MARTINS, Carlos Benedito e MARTINS, Heloisa Helena T. De Souza. Horizontes das Ciências Sociais no Brasil: sociologia. São Paulo: ANPOCS, 2010. p.316.
41
Michel Misse, em “Malandros, Marginais e Vagabundos e a acumulação
social da violência no Rio de Janeiro”, sua tese de doutorado, propõe o que
chamou de ‘acumulação social da violência’ e aponta que no início dos anos 70 a
visibilidade do crescente aumento de homicídios e crimes graves nas grandes
cidades no Brasil teria rompido com um imaginário da “malandragem”, que seria
oposto à violência. 86
Em uma abordagem que enfatiza o aumento e a transformação da chamada
“criminalidade”, segundo o autor, nos anos 1970, a dimensão da violência de
“bandidos, policiais e ex-policiais já se encontra em outro patamar, absolutamente
inédito na cidade”. Afirma que, o aumento incontrolável da violência urbana, no
Rio de Janeiro e em outras cidades, antes de ser associado ao tráfico da cocaína,
que pautará o debate durante grande parte da década de 1980, já estava
consolidado no início da década de 1970. Nota que, essa escalada da violência
urbana era representada pelo aumento de assaltos a bancos e residências, assim
como o aumento de furtos e roubos de automóveis, pela atuação dos “pivetes” nas
ruas da cidade, pelas rebeliões e mortes em presídios, pelos sequestros e extorsões
a comerciantes e empresários, pela atuação dos grupos de extermínio, no Rio de
Janeiro e em São Paulo. 87
Essa percepção, sobre a escalada da violência urbana, teria desencadeado
uma concepção autoritária de ordem pública que “preconiza o extermínio dos
ladrões e dos bandidos, num movimento de purificação do próprio caráter
nacional” desde os anos 70. 88 Ao tratar o período de 1968 até o momento em que
escreveu (em 1999) como terceiro ciclo da periodização que propõe para o
processo de “acumulação social da violência”, Misse destaca que este ciclo tem
seu ápice entre 1986 e 1989 e que se caracteriza “pela percepção social de uma
violência generalizada instalada nos morros e favelas que ninguém mais parece
capaz de combater”. Além disso, afirma que este período:
“especializará e introduzirá novas práticas, acumulará sínteses de tipos, aumentará a abrangência de sua esfera de ação e introduzirá mudanças de
86 MISSE, Michel. Malandros, Marginais e Vagabundos e a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese apresentada no Programa de de Doutorado do IUPERJ. 1999. p.13. 87 MISSE, Michel. Malandros, Marginais e Vagabundos e a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. IUPERJ. 1999. p.196. 88 MISSE, Michel. Malandros, Marginais e Vagabundos e a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. IUPERJ. 1999. p.13.
42
recursos de tal monta que produzirá efeitos de visibilidade social inéditos, incomparáveis em relação aos ciclos anteriores.” 89 Em outra linha de análise sobre a questão da violência, Paulo Sérgio
Pinheiro, acompanhado, por exemplo, por José Vicente Tavares dos Santos,
afirma que a questão da violência nasce no Brasil como questão social durante o
período histórico da ditadura militar tendo em vista a violência de Estado
cometida tanto contra os presos políticos quanto contra as classes populares na
forma de um exercício ilegal e autoritário da violência, por meio de instituições da
violência, como a tortura, o racismo e os aparelhos repressivos, como prisões e
manicômios.90 A linha de abordagem sobre violência e autoritarismo no Brasil,
preconizada por Paulo Sérgio Pinheiro, segue com o conceito que desenvolve, na
década de 1990, de “autoritarismo socialmente implantado”.
Neste contexto, com a contribuição de ambos os conjuntos de fenômenos
propostos nessas interpretações, os estudos sobre violência tomam forma e
afirmam-se como um campo/subcampo legítimo e autônomo de produção
intelectual, acadêmica e científica em relação direta com o “debate público”,
como aponta Vasconcelos, já notando adesões a linhas teóricas deste
campo/subcampo, em um trabalho que analisa a emergência desses estudos e
instituições dos universos intelectuais em São Paulo:
“Um novo espaço de legitimidade à violência como objeto sociológico será reivindicado a partir da conjugação entre, de um lado, a influência de referenciais teórico-metodológicos da sociologia norte-americana para o estudo da criminalidade e da análise de Michel Foucault sobre a prisão e, de outro, a atenção a questões de conjuntura presentes no debate público – como a preocupação com as transformações urbanas, com o crime violento e com a repressão política.” 91
É pela ‘emergência enquanto problema social’ e pela entrada no cenário
público que a violência é reivindicada como objeto de produção científica e ganha
o estatuto de objeto relevante e digno de reflexão teórica e pesquisa empírica para
89 MISSE, Michel. Malandros, Marginais e Vagabundos e a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. IUPERJ. 1999. pp. 34 e 35. 90 PINHEIRO, Paulo Sérgio. Autoritarismo e Transição. Revista USP. Março, Abril e Maio, 1991. p.45. 91 VASCONCELOS, Francisco Thiago Rocha. A sociologia da violência em São Paulo: a formação de um campo em meio à fragmentação de uma intelligentsia na transição democrática. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, Departamento e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, 2011, n.1, p.149.
43
as ciências sociais. 92 Portanto, é na confluência da compreensão da violência e da
criminalidade como um ‘problema social’, não mais relativo ao ‘mundo privado’,
e da afirmação das ciências sociais como a área do conhecimento científico que
tem por objetivo compreender e explicar a violência e a criminalidade, suas
formas de representação social e as dinâmicas de reação social e estatal, 93 que
tem início a formação do campo propriamente dito de estudos e intervenções no
início da década de 1970, já marcado com a impressão desta corrente que aqui é
analisada.94
Uma afirmação que sintetiza esses elementos iniciais de análise do campo
e aponta para o sentido operativo deste campo ou do subcampo pode ser
encontrada no já referido livro “As Ciências Sociais e os pioneiros nos estudos
sobre crime, violência e direitos humanos”. Neste livro foi publicado um estudo,
de 2009, promovido pela FAPESP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e
coordenado por Renato Sérgio de Lima, em que pesquisadores considerados
pioneiros do campo de pesquisa foram entrevistados sobre o seu desenvolvimento
e consolidação:
“(...) os estudos sobre violência surgem em um contexto de reconstrução da democracia, em que simultaneamente a violência emerge como grave problema social, e de afirmação das ciências sociais no Brasil, com a criação da pós-graduação nessa área.” 95
92 Os trabalhos que desenvolvem um pouco mais essa questão são: BARREIRA, César e ADORNO, Sérgio. A violência na Sociedade Brasileira. In: MARTINS, Carlos Benedito e MARTINS, Heloisa Helena T. De Souza. Horizontes das Ciências Sociais no Brasil: sociologia. São Paulo: ANPOCS, 2010. p. 305 e VASCONCELOS, Francisco Thiago Rocha. Op Cit. p.149. 93 LIMA, Renato Sérgio de e RATTON, José Luiz. Trajetórias Intelectuais e Representações no Campo da Segurança Pública. In: LIMA, Renato Sérgio de e RATTON, José Luiz (Orgs.) As Ciências Sociais e os pioneiros nos estudos sobre crime, violência e direitos humanos. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Urbania, ANPOCS, 2011. p.11. 94 ADORNO, Sérgio. A Criminalidade Urbana Violenta no Brasil: Um Recorte Temático. BIB, Rio de Janeiro. n.35, 1o semestre. 1993. p.3; LIMA, R. Kant de; MISSE, Michel e MIRANDA, Ana Paula Mendes de. Violência, Criminalidade Segurança Pública e Justiça Criminal no Brasil: Uma bibliografia. BIB, Rio de Janeiro, n.50, 2o semestre. 2000. p.46; LIMA, Renato Sérgio de (coord.). Mapeamento das conexões teóricas e metodológicas da produção acadêmica brasileira em torno dos temas da violência e da segurança pública e as suas relações com as políticas públicas da área adotadas nas duas últimas décadas (1990-2000). FAPESP. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 2009. p.37. BARREIRA, César e ADORNO, Sérgio. A violência na Sociedade Brasileira. In: MARTINS, Carlos Benedito e MARTINS, Heloisa Helena T. De Souza. Horizontes das Ciências Sociais no Brasil: sociologia. São Paulo: ANPOCS, 2010. p.305 e 306. 95 LIMA, Renato Sérgio de (coord.). Mapeamento das conexões teóricas e metodológicas da produção acadêmica brasileira em torno dos temas da violência e da segurança pública e as suas relações com as políticas públicas da área adotadas nas duas últimas décadas (1990-2000). FAPESP. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 2009. p.36. Os entrevistados foram: Alba Zaluar, Sérgio Adorno, Paulo Sérgio Pinheiro, José Vicente Tavares Santos, Michel Misse e Roberto Kant de Lima.
44
Para além do objetivo de explicar e estabelecer relações causais sobre
fenômenos de violência e criminalidade como graves problemas sociais, as
iniciativas que formam a corrente liberal em análise implicam, na tematização das
políticas públicas de segurança e do sistema de justiça como área de atuação do
Estado, em que soluções devem ser desenvolvidas e implementadas. Isto ocorre
desde os primeiros estudos, encomendados pelo próprio Estado, mas de forma
mais consolidada a partir da década de 1990. Dessa forma, não somente são
desenvolvidas interpretações acerca da causalidade da ação humana violenta ou
do cometimento de crimes violentos e do aumento desses crimes nas grandes
cidades. O papel do Estado no desenvolvimento de políticas de segurança pública,
basicamente por meio da ação policial de patrulhamento e de investigação, e de
tratamento dos crimes por meio do sistema de justiça - poder judiciário, ministério
público, defensoria pública e o sistema prisional - passam a fazer parte dos
estudos de um conjunto de intelectuais e grupos de pesquisa, com forte interesse
do Estado e da mídia. Em contrapartida, emerge a figura do especialista em
segurança pública. Os meios de comunicação são um elemento importante
considerando que cada vez mais se demonstraram, no período aqui analisado,
subordinados ao mercado da venda de notícias e manchetes, além de concentrados
sob a direção de pouquíssimos grupos da elite brasileira. Conforme ressaltou Luiz
Antônio Machado, estes temas sobre segurança pública ocuparão um lugar de
destaque no interior do grande campo de estudos sobre violência e crime, e é
principalmente por essas perspectivas que a corrente liberal sobre segurança
pública será composta.
Entre os temas que os estudos formadores do campo mais abrangente
sobre violência e crime passaram a tratar, segundo os balanços bibliográficos
existentes, estão: as modalidades de violência; os perfis de agressores e vítimas; a
evolução do crime, medo e a insegurança nos coletivos; as características da
organização social do crime e da violência; os efeitos do crime organizado; os
meios e modos empregados nas ações criminais; as relações entre medo,
insegurança e violência; as transformações psicológicas e sociais que retirariam a
sensibilidade contra práticas violentas; as conexões entre recrudescimento da
violência, o modelo de desenvolvimento econômico-social e a desigualdade
social; o apoio da sociedade a politicas extremamente repressivas; o estilo de
exercício do poder pelo Estado; as heranças do regime autoritário em relação a
45
políticas de segurança e justiça penal; as políticas públicas de segurança e justiça
criminal em geral; a estrutura e o funcionamento das agências encarregadas de
controle do crime; o desempenho dos agentes policiais e outros agentes da lei;
instituições da sociedade civil, entre outros.96
A partir da década de 1970, portanto, proliferam-se estudos sociológicos,
antropológicos, históricos e políticos, com diferentes recortes sobre violência
criminal que, em retrospectiva, a própria intelectualidade, pioneira em seus
estudos de balanço bibliográfico, de forma heterogênea e com diversas
nomenclaturas, designou e reivindicou como um campo particular e próprio de
estudos e pesquisas das ciências sociais sobre o(s) objeto(s) violência, crime,
criminalidade e segurança pública. Esse campo, inaugurado na década de 1970, se
desenvolve e alcança os primeiros marcos importantes na década de 1980,
consolida-se com maior legitimidade na década de 199097 e tem desdobramentos a
partir dos anos 2000, tendo como estudos preponderantes, durante seu
desenvolvimento e consolidação, aqueles pertencentes à corrente liberal.
Nos anos 1980 e 1990, conforme aponta João Ricardo W. Dornelles, em
“Segurança Pública e Direitos Humanos: Entre Pombos e Falcões” e também
Teresa Caldeira, em “Cidades de Muros. Crime, Segregação e Cidadania em São
Paulo”, diversas estratégias de controle social pautadas no medo e em concepções
autoritárias de ordem pública passaram “a fazer parte da cena social e política,
legitimando as transformações das relações no espaço urbano com novos padrões
de segregação” 98, o que implicou em transformações espaciais, deslocamentos de
segmentos das classes altas, novas construções urbanas, construção de espaços
segregados com “enclaves fortificados”, redefinição do espaço público e a
96 ZALUAR, Alba. Violência e crime. In: MICELLI, Sérgio (org).O que ler nas Ciências Sociais brasileiras. São Paulo: Anpocs; Editora Sumaré. 1999. v.1, p.18; ADORNO, Sérgio. A Criminalidade Urbana Violenta no Brasil: Um Recorte Temático. BIB, Rio de Janeiro. n.35, 1º semestre. 1993. p.2-3; LIMA, Renato Sérgio de (coord.). Mapeamento das conexões teóricas e metodológicas da produção acadêmica brasileira em torno dos temas da violência e da segurança pública e as suas relações com as políticas públicas da área adotadas nas duas últimas décadas (1990-2000). FAPESP. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 2009. p.2 e 37. 97 LIMA, R. Kant de; MISSE, Michel e MIRANDA, Ana Paula Mendes de. Violência, Criminalidade Segurança Pública e Justiça Criminal no Brasil: Uma bibliografia. BIB, Rio de Janeiro, n.50, 2osemestre. 2000. p. 46-47. 98 DORNELLES, João Ricardo W. Segurança Pública e Direitos Humanos: Entre Pombos e Falcões. Rio de Janeiro, Lume Juris: 2003. p. 125.
46
intensificação da exclusão social, da discriminação, da estigmatização, dos
preconceitos de classe e raça. 99
É, portanto, no contexto de transformações da sociabilidade urbana nas
grandes cidades brasileiras a partir da década de 1970, com novos fenômenos de
abrangência coletiva e, especialmente, de interpretações sobre eles, que o campo
intelectual sobre temas relativos à violência e crime começa a se formar. 100
Ainda acerca dos consensos sobre a formação e o papel do campo, todos
os balanços bibliográficos atribuem a ele avanços na “compreensão da
complexidade” do tema da violência criminal, pelo menos nos últimos 30 anos,
assim como um lugar importante nas ciências sociais brasileiras. Inclusive, é
afirmado por alguns autores que as ciências sociais se consolidam ao mesmo
tempo em que se desenvolvem tais estudos sobre violência e segurança pública, 101 o que concederia um lugar constitutivo a este campo na consolidação das
ciências sociais como um todo, no Brasil. É importante também destacar que essas
afirmações de valorização dos avanços não excluem desafios ressaltados pelos
autores nas entrevistas e em resenhas, em grande parte, relacionados à incidência
nas tomadas de decisão sobre políticas públicas e à elaboração teórica e
metodológica.
Da mesma forma, é comum e consensual a muitas perspectivas a
percepção sobre o papel central que estes temas da violência e criminalidade têm
para a retomada da democracia brasileira na virada do final dos anos 1970. 102 De
acordo com Sérgio Adorno: “O tema da violência coloca em evidência rumos da
democracia brasileira, sua institucionalização e consolidação, futuro e desafios".
99 Id. 100 Vale lembrar, no entanto, que reconhecer certo contexto de transformações sociais não implica necessariamente reafirmar a “emergência da ‘questão’ violência” como questão pública. 101 LIMA, R. Kant de; MISSE, Michel e MIRANDA, Ana Paula Mendes de. Violência, Criminalidade Segurança Pública e Justiça Criminal no Brasil: Uma bibliografia. BIB, Rio de Janeiro, n.50, 2osemestre. 2000. p.45. Michel Misse, em outro momento, ressalta que na década de 1970 quase ninguém tinha pós-graduação e que a maioria dos professores da pós-graduação da UFRJ e do IUPERJ não tinha doutorado. Aqueles que tinham, a maior parte deles, havia cursado no exterior como Wanderley Guilherme dos Santos (Stanford), Fernando Uricoechea (Berkley), Machado da Silva (Rutgers), Edmundo Coelho (UCLA), entre outros. Ver: LIMA, Renato Sérgio de. Entrevista Michel Misse. In: LIMA, Renato Sérgio de e RATTON, José Luiz (Orgs.) As Ciências Sociais e os pioneiros nos estudos sobre crime, violência e direitos humanos. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Urbania, ANPOCS, 2011. p.18. 102 Adorno, Sérgio. O Monopólio estatal da violência na sociedade brasileira contemporânea In: MICELI, Sérgio (org.). O que ler nas ciências sociais brasileiras 1970-2002. Volume IV. 2002. p.2 e 3; ADORNO, Sérgio e BARREIRA, César. A violência na Sociedade Brasileira. In: MARTINS, Carlos Benedito e MARTINS, Heloisa Helena T. De Souza. Horizontes das Ciências Sociais no Brasil: sociologia. São Paulo: ANPOCS, 2010. p.311.
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103 Na mesma linha, Michel Misse aponta que no Brasil, assim como na
Colômbia, a ‘violência’ transformou-se a partir da década de 1970, em
“substantivo próprio” e “ganhou status de uma representação social do ‘destino
nacional’”. 104 Este parece ser todo o sentido do campo que se formou e, em
especial, dessa corrente que tanto o reivindica, desde o período de transição, e se
consolidou entre as décadas de 80 e 90, para lidar com as formas de sociabilidade
no Brasil, nas cidades e no interior, 105 a partir das transformações sociais
ocorridas durante mais de uma década de regime ditatorial de aceleração do
desenvolvimento do capitalismo periférico. No entanto, há distintas abordagens
que podem ser tomadas em relação às questões emergentes nas grandes cidades
em nossa sociabilidade democrática capitalista periférica violenta.
A partir de uma síntese dos balanços bibliográficos do campo que vêm
sendo escritos nos últimos vinte anos, pode-se afirmar que este campo se
constituiu historicamente, cresceu em abrangência de temas e em importância no
debate público. A corrente liberal hegemônica, constitutiva e fundacional desse
campo, em especial teve seu capital científico acumulado e sua decorrente
legitimidade tecida a partir das relações entre instituições acadêmicas - com a
proliferação de cursos, linhas de pesquisa e suas articulações em rede e com
associações científicas nacionais e internacionais - 106 mas, fundamentalmente, por
suas relações com o Estado e meios de comunicação formadores de opinião.
Nesse sentido, é crucial para a compreensão do que se pretende neste
trabalho perceber que ela também é uma corrente de um campo intelectual que
103 Adorno, Sérgio. O Monopólio estatal da violência na sociedade brasileira contemporânea In: MICELI, Sérgio (org.). O que ler nas ciências sociais brasileiras 1970-2002. Volume IV. 2002. p.2 e 3. 104 MISSE, Michel. Malandros, Vagabundos e Marginais: a acumulação social da violência no Rio de Janeiro....p.13 105 LIMA, Renato Sérgio de (coord.). Mapeamento das conexões teóricas e metodológicas da produção acadêmica brasileira em torno dos temas da violência e da segurança pública e as suas relações com as políticas públicas da área adotadas nas duas últimas décadas (1990-2000). FAPESP. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 2009. p.2.: “(...) a violência, tema central na agenda de preocupações da população brasileira, sobretudo nos últimos 30 anos, tem sido objeto de não poucos estudos, pesquisas e, com destaque, políticas públicas.” 106 ADORNO, Sérgio e BARREIRA, César. A violência na Sociedade Brasileira. In: MARTINS, Carlos Benedito e MARTINS, Heloisa Helena T. De Souza. Horizontes das Ciências Sociais no Brasil: sociologia. São Paulo: ANPOCS, 2010. p.320. Há um grande número de grupos de referência cadastrados no CNPq, inclusive grupos incluídos no Programa de Apoio a Núcleos de Excelência (PRONEX) e no Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID-FAPESP), além da recente criação de dois institutos nacionais de pesquisa (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia - INCT - CNPq) com o propósito de investigar a violência e suas relações com o sistema de justiça e o regime democrático: INCT Violência, Democracia e Segurança Cidadã (USP) e o INCT Estudos em Segurança Pública e Justiça Criminal (UFF).
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nasce e se afirma no jogo político frente às gestões governamentais da segurança
pública das metrópoles brasileiras, muitas vezes de forma crítica e em oposição à
linha política pautada nas grandes operações policiais e militares e na lógica
defensora da ideia de “bandido bom é bandido morto”. A abordagem crítica desta
corrente intelectual liberal está, portanto, no seu posicionamento, via de regra e
até certo limite, contrária às políticas repressivas do chamado modelo do
“eficientismo penal” baseado na militarização e nas metáforas do inimigo e da
guerra, conforme analisado por João Ricardo Dornelles. 107 No entanto, é
igualmente fundamental ater-se à dimensão gradual tanto das adesões teórico-
políticas quanto dos posicionamentos no jogo político das gestões
governamentais. Isso porque, as já mencionadas relações com o Estado e as
gestões de governo são uma característica fundamental dessa corrente hegemônica
liberal.
Sobre as relações com o Estado, Adorno e Barreira ressaltam a
importância das agências de fomento e financiamento de pesquisa, grupos,
seminários e publicações, como CNPq, Capes, Finep e fundações estaduais de
amparo à pesquisa, para a construção da credibilidade do campo.108 No entanto,
para além disso, tem-se a relação muito próxima, por vezes confundindo-se, entre
a produção acadêmica e a formulação de políticas públicas a serem
implementadas pelas secretarias de segurança pública e as polícias estaduais,
assim como a ocupação de cargos públicos, de forma direta, por intelectuais
especialistas parte dessa corrente liberal. Vale ressaltar que este é tema de uma
das disputas internas ao campo intelectual e mesmo à corrente liberal identificada
e deve ser analisado de forma gradual no que se refere aos intelectuais
especialistas integrantes dessa corrente. Há posicionamentos contrários, no
interior da corrente, acerca do papel do intelectual e sua relação com o Estado,
mas, o impacto dos estudos sobre violência e segurança pública nas políticas
governamentais não deixa de ser tema recorrente de auto-avaliações de
107 Dornelles, João Ricardo W. Conflito e Segurança: Entre pombos e falcões. Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2008. pp. 46-51. 108 ADORNO, Sérgio e BARREIRA, César. A violência na Sociedade Brasileira. In: MARTINS, Carlos Benedito e MARTINS, Heloisa Helena T. De Souza. Horizontes das Ciências Sociais no Brasil: sociologia. São Paulo: ANPOCS, 2010. p.320.
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especialistas que apostam nessas relações como estratégias de incidência e
transformação interna das políticas públicas. 109
Além disso, a relação com os meios de comunicação formadores de
opinião é outra característica fundamental. Esta relação, assim como a relação
com o Estado, deve ser vista de uma perspectiva também gradual. 110 A relação
com a mídia ocorre de variadas formas, mas, em momentos cruciais da luta
política nas cidades, ela não deixa de acontecer e de legitimar e gerar capital
científico e político para a corrente intelectual hegemônica, o que não
necessariamente se pode afirmar em relação a outras linhas ou correntes de
abordagens do campo.
De modo muito sucinto, é importante notar que, conforme apontado por
Cecília Coimbra, em “Operação Rio: o mito das classes perigosas”, a mídia
produz e faz circular signos e imagens que sugerem a criação de realidades.
Assim, a comunicação midiática engendra noções daquilo que é positivo e
negativo. Ela também organiza os múltiplos fluxos de acontecimentos e, assim,
hierarquiza os temas, selecionando os que deverão ser do conhecimento público e,
dentre estes, os que deverão ser debatidos, discutidos, pensados. Dessa forma,
simula padrões consensuais de conduta e produz processos de subjetivação. 111
Nesta produção da informação, do real e da subjetividade, constroem-se
verdades que têm a participação direta dos chamados especialistas ou intelectuais.
Estes estão, em qualquer setor da vida social, com suas práticas, produzindo
regimes de verdade “científicos” e, portanto, “neutros, objetivos e universais” 112 e
é, especialmente, pela mídia que eles nos são apresentados.
Sobre este lugar estratégico, de prestígio, legitimação, produção de
verdade, portanto, de capital científico e de poder, Cecília Coimbra nota:
109 ZALUAR, Alba. Op Cit. p. 89. 110 Um exemplo é a crítica veemente de Alba Zaluar feita ao que chama de acadêmicos midiáticos. Entrevista Alba Zaluar. In: : LIMA, Renato Sérgio de e RATTON, José Luiz (Orgs.). Op. Cit. 111 COIMBRA, Cecília. Operação Rio: o mito das classes perigosas: um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública. Rio de Janeiro, Oficina do Autor; Niterói: Intertexto, 2001. pp.36 e 37. Outra referência em sentido semelhante sobre esse aspecto é SILVA, Edilson Márcio Almeida da. Notícias da “violência urbana”: um estudo antropológico. Niterói. Editora da Universidade Federal Fluminense, 2010. 112COIMBRA, Cecília. Operação Rio: o mito das classes perigosas: um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública. Rio de Janeiro, Oficina do Autor; Niterói: Intertexto, 2001. pp.44 e 48. Cecília Coimbra cita, entre outros, as análises de Andre Gorz em “Critica da Divisão Social do Trabalho” SP Martins Fontes. 1980 e de Marilena Chauí em “Cultura e Democracia” SP Cortez. 1989.
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“Hoje, em nosso mundo midiático, as falas “competentes” são cada vez mais autorizadas pelos meios de comunicação de massa que elegem interlocutores privilegiados com os quais mantêm relações de afinidade e interesse. É preciso estar sempre dentro do chamado “processo de visibilidade” para poder vender sua imagem, suas falas, suas fórmulas, indicando caminhos e soluções: é necessário participar do marketing, estar nele cotidianamente”. 113
Um indicador simbólico dessa realidade e das relações fundamentais dessa
intelectualidade com o Estado e a mídia está na afirmação da dimensão evolutiva
do desenvolvimento do/a campo/corrente pelo levantamento, coordenado por
Renato Sérgio de Lima e publicado no já citado livro de entrevistas com os
pioneiros do campo:
“Sinal de novos tempos é a frequência com que os pesquisadores desta área são convocados para o debate público, para a divulgação de pesquisas e de pontos de vista através da mídia eletrônica e imprensa e (...) [para] dar consultoria a organizações governamentais e não-governamentais.” 114
No entanto, Cecília Coimbra nota a seletividade das falas e, portanto, das
referências de “verdade”, ou seja, os que exercem poder social o fazem porque
recebem atenção especial. Fazendo referência a uma pesquisa realizada por Costa
em dois dos maiores jornais do Brasil, O Estado de São Paulo e a Folha de São
Paulo, acerca do espaço reservado a artigos sobre educação, a autora aponta para
as conclusões de que os jornais “pouca relevância atribuem como fonte
informativa às associações de docentes” e de que “as vozes legitimadas são de
determinados segmentos da sociedade (...), de determinadas instituições
acadêmicas” em detrimento do outras vozes, estabelecimentos, organizações e
movimentos sociais que, por serem excluídos, passam a não existir aos olhos do
grande público. 115
A partir, portanto, da afirmação dessa hipótese de formação de um campo
e de uma corrente intelectual hegemônica e liberal de especialistas, os quais
113 COIMBRA, Cecília. Operação Rio: o mito das classes perigosas: um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública. Rio de Janeiro, Oficina do Autor; Niterói: Intertexto, 2001. p.47. 114 LIMA, Renato Sérgio de (coord.). Mapeamento das conexões teóricas e metodológicas da produção acadêmica brasileira em torno dos temas da violência e da segurança pública e as suas relações com as políticas públicas da área adotadas nas duas últimas décadas (1990-2000). FAPESP. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 2009. p.3. 115 COIMBRA, Cecília. Operação Rio: o mito das classes perigosas: um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública. Rio de Janeiro, Oficina do Autor; Niterói: Intertexto, 2001. p.48. A fonte utilizada é Costa B. C. G. O Estado da Educação na ‘Folha’ de Jornal: como os jornais de grande circulação abordam a questão educacional. Dissertação de Mestrado em Educação, Universidade Federal de São Carlos, 1993.
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operam prática-discursivamente, a partir da década de 1970, com sua
consolidação na década de 1990, segue-se adiante com uma proposta de análise de
sua formação histórica, no próximo capítulo. Adiante, portanto, delineia-se a
formação histórica desse conjunto de especialistas, instituições, publicações,
intelectualmente hegemônico. Esses especialistas, suas produções e as instituições
acadêmicas que, nas distintas gradações das adesões a perspectivas teóricas, nas
suas relações com o Estado, e na relação com a mídia, conformam essa corrente
liberal de especialidade em segurança pública.