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A QUESTÃO HABITACIONAL NO CAMPO DA HISTÓRIA NO BRASIL NOS ANOS 1970-1980 1 Esse texto apresenta parte do levantamento bibliográfico e historiográfico, em andamento, da questão habitacional no Brasil, em particular das relações entre movimentos sociais, habitação e cidade, que busca subsidiar o desenvolvimento do projeto de pesquisa Nova Rosa da Penha e as invasões urbanas na região da cidade de Vitória-ES nos anos 80, cujo objeto da pesquisa é a configuração política que envolveu o processo de formação do Bairro Nova Rosa da Penha em Cariacica-ES 2 (1983-1986). O debate sobre a cidade e a moradia, em particular, a moradia operária e popular (vilas operárias, cortiços, favelas, mocambos, invasões, ocupações) e as ações coletivas em seu entorno, ainda é um campo de investigação em expansão entre os historiadores brasileiros, ao contrário dos geógrafos, arquitetos, urbanistas, advogados, assistentes sociais, antropólogos, cientistas políticos, assistentes sociais, economistas e sociólogos, que se destacam por uma tradição de reflexão, balanços bibliográficos e de inovações teórico-metodológicas 3 . No campo da história, observamos diversas tentativas, como ilustram Carpintéro e Cerasoli (2009) 4 , de “historiar” e de reconhecer a historicidade dos objetos e temáticas, mas, muitas vezes, infelizmente, governadas pela busca das origens e das “dinâmicas de transformações”, de modo que acabam mergulhadas numa ideia de história ainda cronológica, linear, progressiva e homogênea 5 , em que o passado aparece como inventário de eventos, 1 Igor Vitorino da Silva. Mestrando em História/UFPR e professor de História Campus Pinhais/IFPR. 2 A região da cidade Vitória, capital do estado Espírito Santo, nos anos 80 era formada pelos municípios de Vila Velha, Vitória, Cariacica, Serra e Viana. Ela viveu os efeitos do processo metropolização impulsionados pelo desenvolvimento econômico, particularmente a implantação dos grandes projetos industriais. Em 1980, aqueles municípios aglomeravam juntos 706.263 mil habitantes, sendo a cidade de Cariacica 189.099 mil habitantes, o que era quase 27% da população da Região da cidade de Vitória. Já em 1991 a Região da cidade de Vitória tinha 1.136.842 habitantes, tendo a cidade de Cariacica 274.532, representando 24 % da população. 3 CARPINTÉRO, M. V. T.; CERASOLI, J. F. A cidade como história. In: História: questões & debates, Curitiba, n. 50, p. 61-101, jan./jun., 2009. 4 Idem. 5 Idem.

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Page 1: A QUESTÃO HABITACIONAL NO CAMPO DA HISTÓRIA NO … · 8 No campo intelectual que discutiu a questão urbana no Brasil sob seus aspectos habitacional e movimentos sociais destacando-se

A QUESTÃO HABITACIONAL NO CAMPO DA HISTÓRIA NO

BRASIL NOS ANOS 1970-19801

Esse texto apresenta parte do levantamento bibliográfico e historiográfico, em

andamento, da questão habitacional no Brasil, em particular das relações entre movimentos

sociais, habitação e cidade, que busca subsidiar o desenvolvimento do projeto de pesquisa

Nova Rosa da Penha e as invasões urbanas na região da cidade de Vitória-ES nos anos 80,

cujo objeto da pesquisa é a configuração política que envolveu o processo de formação do

Bairro Nova Rosa da Penha em Cariacica-ES2 (1983-1986).

O debate sobre a cidade e a moradia, em particular, a moradia operária e popular (vilas

operárias, cortiços, favelas, mocambos, invasões, ocupações) e as ações coletivas em seu

entorno, ainda é um campo de investigação em expansão entre os historiadores brasileiros, ao

contrário dos geógrafos, arquitetos, urbanistas, advogados, assistentes sociais, antropólogos,

cientistas políticos, assistentes sociais, economistas e sociólogos, que se destacam por uma

tradição de reflexão, balanços bibliográficos e de inovações teórico-metodológicas3.

No campo da história, observamos diversas tentativas, como ilustram Carpintéro e

Cerasoli (2009)4, de “historiar” e de reconhecer a historicidade dos objetos e temáticas, mas,

muitas vezes, infelizmente, governadas pela busca das origens e das “dinâmicas de

transformações”, de modo que acabam mergulhadas numa ideia de história ainda cronológica,

linear, progressiva e homogênea5, em que o passado aparece como inventário de eventos,

1 Igor Vitorino da Silva. Mestrando em História/UFPR e professor de História Campus Pinhais/IFPR. 2 A região da cidade Vitória, capital do estado Espírito Santo, nos anos 80 era formada pelos municípios de Vila

Velha, Vitória, Cariacica, Serra e Viana. Ela viveu os efeitos do processo metropolização impulsionados pelo

desenvolvimento econômico, particularmente a implantação dos grandes projetos industriais. Em 1980, aqueles

municípios aglomeravam juntos 706.263 mil habitantes, sendo a cidade de Cariacica 189.099 mil habitantes, o

que era quase 27% da população da Região da cidade de Vitória. Já em 1991 a Região da cidade de Vitória

tinha 1.136.842 habitantes, tendo a cidade de Cariacica 274.532, representando 24 % da população. 3 CARPINTÉRO, M. V. T.; CERASOLI, J. F. A cidade como história. In: História: questões & debates,

Curitiba, n. 50, p. 61-101, jan./jun., 2009. 4 Idem. 5 Idem.

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personagens e fatos (conhecido como gênero biografias urbanas6) ou campo de

experimentação de teorias.

Essa distância e o interesse fragmentado da investigação sobre cidade, habitação e

movimentos sociais dos anos 70 e 80, no campo histórico, pode ser explicada pela própria

emergência da questão urbana no Brasil, nos 1960 e 70, dentro do contexto do processo de

modernização econômica sob o Regime Militar. Esse processo sustentado por um intenso

fluxo migratório e um acelerado processo de urbanização, o que fazia dessa temática um

objeto inscrito no “tempo presente”, sendo, naquele período, “inapropriado” aos historiadores.

O urbano que se constituía nos anos 1970 e 80, principalmente nas grandes cidades,

reconhecido como processo de metropolização, marcado por desigualdades e diferenças

socioeconômicas profundas e pelo crescimento das favelas e das periferias, constituía-se em

objeto de investigação da geografia, sociologia, arquitetura e urbanismo, antropologia,

resultando inclusive na emergência das disciplinas especializadas tais como planejamento

urbano, geografia urbana, sociologia urbana e antropologia urbana7.

Além disso, em parte do debate acadêmico, aquecido pelos ares marxistas, colocava-se

a questão de compreender a lógica da constituição ditas (ou categorizadas políticas e

socialmente com) “populações marginais”, das quais a grande massa de migrantes e

moradores das favelas e periferias constituía uma expressão empírica. Desvelar esse universo

social, compreender suas conexões, as centralidades sociais e econômicas, marcaram as

grandes obras antropológicas e sociológicas do período8. Pereira e Peixoto (2014) ao

6 Segundo Luis Octávio da Silva a história urbana de linhagem anglo-saxônica e norte-americana buscou

nos anos 60 e 70 afastar-se do gênero biografia urbana, construindo estratégias metodológicas e epistemológica

para instituir o campo da história urbana e a cidade como objeto autônomo de pesquisa. SILVA, Luis Otávio da.

Cidade e História: um olhar epistemológico. In: Integração, abr./mai./jun., 2004, ano X, n. 37, p. 111-126. 7 Os textos indicados permitem compreensão panorâmica da emergência da questão urbana no Brasi nos

70l e diferentes incursos teóricas e acadêmicas para compreendê-la. SCHMIDIT, Benicio Vieiro. O Estado e a

política urbana no Brasil. Porto Alegre: EdUFRGS, 1983. FELDMAN, Sarah. 1959. A década de crença no

planejamento regional no Brasil. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 13, Florianópolis, 2009. Anais...

ANPUR: Florianópolis, 2009. VILLAÇA, F. J. M. Uma contribuição para a história do planejamento urbano no

Brasil. In: DEAK, C.; SCHIFFER, S. R. (Org.). In: SHIFFER, Sueli Ramos et al. O processo de urbanização

no Brasil. São Paulo: Edusp, 1999. p. 169-244. 8 No campo intelectual que discutiu a questão urbana no Brasil sob seus aspectos habitacional e

movimentos sociais destacando-se as obras aqui listadas, que se constituem na historiografia do campo e, muitas

outras obras, em referencial teórico de várias áreas. São obras significativas para o desenvolvimento de nossa

pesquisa, pois o engajamento social dos seus escritores e sua contínua participação na “agenda pública” da época

permite perceber a circularidade social e política das ideias produzidas nesse contexto, principalmente quando

analisamos os manuais e cartilhas, panfletos e periódicos divulgados pelos movimentos populares, especial

movimento de moradia ligados a Igreja Católica e assessorias da FASE – Federação de Órgãos para Assistência

Social e Educacional: VALLADARES, Lícia do Prado. Estudos recentes sobre a habitação no Brasil: resenha da

literatura. In: VALLADARES, Lícia do P. (Org.). Repensando a habitação no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar

Editores, 1983. p. 21-77. SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. Movimentos urbanos no Rio de Janeiro. Rio

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comentarem sobre a historiografia dos anos 70 argumentam sobre emergência da história

urbana no Brasil:

A história era resgatada na medida em que permitia compreender a natureza do

artefato urbano, entendido como obra humana, e com tal dotada de sentidos que se

formam em temporalidades diversas. O espaço construído começava a ser entendido

como um suporte privilegiado para a leitura destas inscrições de sentido e a história

permitia captar a diversidade no tempo e complexidade dos laços que unem objeto

urbano e práticas sociais9.

Observa-se que, com a erupção de movimentos sociais reivindicatórios de contestação,

as condições de vida urbana precária impostas nas grandes cidades nos anos 70, o debate

acadêmico nas ciências humanas voltou-se à discussão sobre a constituição dos sujeitos

sociais10 tendo como foco, não as relações produção e espaço da fábrica, mas as relações

sociais e o espaço social como campo da produção da consciência de classe. De outro lado,

buscou-se perceber o quanto essas ações coletivas rompiam com a cultura política tradicional

brasileira, chegando, muitas vezes, a enquadrá-las em programas ideológicos políticos pré-

estabelecidos, como bem evidenciou Doimo (1995) nas discussões sobre a teoria dos

movimentos sociais11.

O mais importante desse período dos anos 1980 foi que as categorias cotidiano e

de Janeiro: Zahar Editores, 1981. VALLADARES, Lícia do Prado. Passa-se uma casa: análise do programa de

remoção de favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. VALLADARES, Licia. Propostas

alternativas de intervenção em favela: o caso do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1985.

VALLADARES, Lícia do Prado; MEDEIROS, Lídia. Pensando as favelas do Rio de Janeiro: 1906-2000: uma

bibliografia analítica. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 2003. PERLMAN, Janice. O mito da marginalidade:

favelas e política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. ZALUAR, A. A máquina e a revolta: as

organizações populares e o significado da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 1985. LEEDS, A.; LEEDS E. R. A

sociologia do Brasil urbano, Rio de Janeiro, Zahar, 1978. DURHAM, Eunice. A caminho da cidade. São Paulo:

Perspectiva, 1978. CALDEIRA, Teresa P. R. A política dos outros - o cotidiano dos moradores de periferia e o

que pensam do poder e dos poderosos. São Paulo, Brasiliense, 1984. 9 PEREIRA, Margareth da Silva Pereira; PEIXOTO, Priscilla Alves. O passado como construção: perfis

da historiografia sobre o Rio de Janeiro - temas e problemas (1978-1992). In: PEIXOTO, Elane Ribeiro;

DERNTL, Maria Fernanda; PALAZZO, Pedro Paulo; TREVISAN, Ricardo (Orgs.). Tempos e escalas da cidade

e do urbanismo. In: SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO, 13, Brasília, 2014.

Anais... Brasília, DF: Universidade Brasília- Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, 2014. Disponível em:

<http://www.shcu2014.com.br/content/passado-como-construcao-perfis-da-historiografia-rio-janeiro-temas-e-

problemas-1978-1992>. Acesso em:10 jul. 2016. 10 Os historiadores Sidney Chalhoub e Fernando Teixeira da Silva comentam essa ginada interpretativa

dos anos 1980: “as transformações nas formas e práticas de participação política e na experiência do trabalho

entrelaçam-se de modo historicamente particular desde o contexto dos anos 1980, reverberando na produção

acadêmica em diálogo contínuo[...]por mais separados que estivessem em seus nichos institucionais específicos,

historiadores sociais sempre souberam que compartilhavam com seus pares a ênfase nos modos de os sujeitos

históricos dominados — ou oprimidos, subordinados, subalternos, segundo o pedantismo teórico de cada um —

lidarem com as estruturas de reprodução de injustiças e desigualdades às quais, via de regra, não podiam

escapar”. CHALHOUB, Sidney & SILVA, Fernando Teixeira da. Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e

trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980. Cadernos AEL, v.14, n.26, 2009, p.44-45. 11 DOIMO, Ana Maria. A vez e a voz do popular: movimentos sociais e participação política no Brasil

pós-70. Rio de Janeiro: Relume-Dumará: ANPOCS, 1995.

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cultura emergiram como campo fundamental para pensar a formação da classe operária e as

ações coletivas. No caso dos estudos marxistas, houve uma grande diversidade téorico-

metodológica, destacando-se tanto as obras dos marxistas estruturalistas, como Cristian

Topolov, Jean Lojkine e Manuel Castells, em que a cidade é pensada a partir da lógica

estrutural do capital, os seus sujeitos e suas dinâmicas derivadas12, quanto investigações no

campo da antropologia, sociologia e história, já sob inspiração da história social inglesa, em

que a formação dos sujeitos sociais são pensadas a partir dos contextos de lutas e experiências

dos sujeitos13.

Nesse contexto, os estudos que tomam as relações entre cidade, habitação e

movimentos sociais no campo da História no Brasil ainda são diminutos. Tal situação pode

ser explicada pela própria dinâmica política do campo que tendia, como já comentamos, a ser

dominada pela tradição disciplinar que privilegiava objetos recuados no tempo. Cabe lembrar

que ainda nos anos 1980 e 1990 a história do tempo presente não havia florescido no país

(apesar de a história oral já ter predominância). Além disso, a própria subordinação às

temáticas que envolviam a história social e a história econômica, como escravidão, classe

operária e cidade moderna, em que a questão da habitação e seus movimentos sociais

correlatos podiam aparecer como ilustração ou subtema14.

12 Esses são teóricos do urbano que influenciaram o debate teórico no Brasil: TOPALOV, Christian. La

urbanizacion capitalista. Cidade do México: Ed. Edico, 1979; CASTELLS, M. A questão urbana. São Paulo:

Paz e Terra, 1983; LOJKINE, Jean. O estado capitalista e a questão urbana. São Paulo: Martins Fontes, 1981;

LÉFÈBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: EDUFMG, 2004. 13 Nos anos 1980, houve um grande empreendimento, principalmente de campos teóricos filiados ao

marxismo, para instituir a noção de classes populares, que tentavam compreender os processos e estratégias de

constituição de sujeitos políticos no interior de “uma sociedade” constituída pela heterogeneidade social. Trata-

se, ainda, de descobrir os sujeitos da história, o que no caso de muitas análises políticas e social significava

reconhecer a capacidade dos “novos movimentos” de imporem uma transformação social, os textos que seguem

são testemunhos desse debate: PAOLI, M. C.; SÁDER, E. Sobre 'classes populares' no pensamento sociológico

brasileiro (notas de leitura sobre acontecimentos recentes)". In: CARDOSO, R. (Org.). A aventura

antropológica. Teoria e pesquisa, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986. p. 39-67. SADER, Eder. Quando novos

personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-80).

2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 11. 14 Os textos selecionados seriam exemplos do exposto, neles se tece uma história da moradia popular, dos

espaços da pobreza e dos pobres em contraste aos processos de modernização e buscam “disciplinarização e

normalização” do espaço urbano e da vida urbana. FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano (1880-1924). São Paulo:

EDUSP, 2001; PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma outra cidade: o mundo dos excluídos no final do século

XIX. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001; BRESCIANI, Stella. Londres e Paris no séc. XIX: o

espetáculo da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 1994; PINTO, Maria Inês Machado Borges. Cotidiano e

sobrevivência: a vida do trabalhador pobre na cidade de São Paulo, 1890-1914. São Paulo: USP, 1984. 303 p.

Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, 1984. SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na

metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. RAGO,

Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil: 1890-1930. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1997. GOMES, Flávio dos Santos et al. Cidades negras: africanos, crioulos e espaços urbanos no Brasil

escravista do século XIX. São Paulo: Alameda, 2006. A historiografia inglesa e francesa publicada nos 1980,

também, tocava a discussão sobre a moradia a partir das condições de vida da classe trabalhadora das quais se

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Na realidade, o campo da história urbana no Brasil privilegiou a investigação da

emergência da cidade moderna nos trópicos tendo como pano de fundo as experiências

urbanas, transformações sociais e culturais e intervenções sociais e políticas, tendo como

objeto de investigação cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre e

outras15. Nessas investigações desponta-se a “questão da moradia popular” no contexto da

política de medicalização da cidade apresentando-se como elas eram vistas social e

politicamente pelos “modernizadores urbanos e pelas elites” e as práticas sociais que lhes

eram dirigidas [estigmatização, despejos, remoção], como sugere a historiadora Margareth

Rago (1997):

A preocupação que sustenta toda a discussão sobre o problema da moradia dos

pobres está centrada muito mais na vontade de regenerar as classes populares

decaídas, segundo a representação imaginária do poder, do que no sentido de

responder funcionalmente ao problema habitacional16.

Nessa perspectiva, destaca-se a obra Cidade Febril, de Sidney Clhoulb, que nos mostra

as estratégias políticas e sociais, apoiadas numa rede de saberes especializados, que levaram à

remoção dos cortiços da cidade do Rio de Janeiro no final do século XIX17. Assim como

Paulo César Garcez Marins18 no texto “Habitação e vizinhança: limites da privacidade no

surgimento das metrópoles brasileiras”, ao destacar a articulação entre políticas

segregacionistas das elites políticas republicanas do final do século XIX e início XIX e o

intenso investimentos das elites econômicas em espaços urbanos com vizinhanças

homogêneas, revela-nos o lugar e as condições socioeconômicos destinadas as camadas mais

pobres da população.

descatam: PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1988; HOBSBAWM, Eric. Os trabalhadores: estudos sobre a história do operariado. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1981;THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa, v. I, A árvore da liberdade. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1987 THOMPSON, E. P.. A formação da classe operária inglesa, v. II, A maldição de

Adão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; THOMPSON, E. P.. A formação da classe operária inglesa, v. III, A

força dos trabalhadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; 15 Essa abordagem historiográfica aponta Carpinteiro e Carasoli, ainda, “apreende a cidade como cenário,

panorama, ou depositária de uma trajetória histórica” 2009. p. 97. 16 RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: A utopia da cidade disciplinar: Brasil: 1890-1930. 3. ed. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1997. p. 189. 17 CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia

das Letras, 1999. p. 23. 18 MARINS, Paulo César Garcez. Habitação e vizinhança: limites da privacidade no surgimento das

metrópoles brasileiras. In: NOVAIS, Fernando A. (Coord.); SEVCENKO, Nicolau (Org.). História da vida

privada no Brasil, v. 3 - República: da Bélle Époque à Era do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998,

p. 131-214.

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Maria Stella Martins Bresciani19 em “As sete portas da cidade”, ao listar as diferentes

formas de abordagem de pesquisa em relação à cidade na historiografia brasileira, destaca a

porta pelo viés da questão social, no que se encaixa as obras citadas, em que, às vezes, como

tema central, ou outra, como ilustração, aparece a questão da moradia. Carpinteiro e Carasoli

(2009) ao realizarem, também, um balanço da história da cidade no campo da história

afirmam:

Inicialmente, as chamadas histórias de cidades, como narrativas evolutivas desde as

origens; nas décadas de 1960 a 80, a história econômica e social, sobretudo de

matriz teórica marxista, que apreende a cidade como lugar de engendramento das

forças capitalistas e de tensões sociais e políticas; por fim, na década de 1990, a

história cultural, que “veio proporcionar uma nova abordagem do fenômeno

urbano”20.

No artigo “História e Historiografia das cidades, um percurso”, a historiadora

Bresciani (1998), ao resenhar as possibilidades de investigação da cidade, a partir de sua

materialidade urbana, ressaltando a moradia como temática, tece as relações políticas e de

poder que envolvem os saberes sobre o urbano, em especial o urbanismo, colocando entre

parêntesis sua retórica de neutralidade. A autora, também, apresenta como ideia de progresso

permeia e alimenta as representações e práticas sobre a cidade moderna, fazendo sua

expressão estética o elemento regulador, ordenador e avaliador de sua organização e

funcionamento da vida urbana21.

O historiador Ronald Ramielli (1997)22, ao discutir a constituição do campo da história

urbana, arrola as distintas abordagens teóricas e metodológicas que estruturam o debate sobre

a cidade no Brasil e na historiografia internacional, ressaltando o avanço na ampliação das

fontes históricas e a problematização da história urbana a partir das relações sociais, o que se

desdobrará com a emergência da história urbana cultural. Aliás, Ronald Ramielli faz uma dura

crítica à tendência, na época da produção de seu artigo, de investigar as cidades brasileiras a

partir dos modelos europeus, tendo como referencial teórico e metodológico, quase exclusivo,

a obra filosófica e histórica de Walter Benjamin.

Nesses dois balanços historiográficos, percebe-se o quanto cidade, moradia e luta por

19 BRESCIANI, Maria Stella Martins. As sete portas da cidade. Espaço & Debates. Cidade e História, n.

34, ano XI, neru, 1991. BRESCIANI, Stella. História e historiografia das cidades um percurso In: Historiografia

brasileira em perspectiva. FREITAS, Marcos César (Org.). São Paulo, Contexto, 1998, 237-258. 20 CARPINTÉRO; CERASOLI, Ob. Cit., 2009, p. 88. 21 BRESCIANI, Stella, Ob. Cit.,1998, p. 239. 22 RAMINELLI, Ronald. História urbana. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.).

Domínios da História: ensaios de teoria e método. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997. p.185-202.

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moradia, ainda, encontram-se como temas periféricos nos investimentos de grupos de

pesquisas no campo da História. Dos trabalhos produzidos, desde os anos 80, buscando

produzir uma história da habitação, em especial da moradia popular e das políticas públicas de

habitação, grande parte foram produzidos por geógrafos, arquitetos, urbanistas e sociólogos23.

O historiador Lucas Eduardo Gaspar (2015)24, em recente revisão historiográfica,

apresenta um pequeno número de teses e dissertações envolvendo cidade, moradia e luta por

moradia, ligadas à produção do Programa de Pós-graduação em História da UFU e do

Programa de Pós-graduação em História da Unoeste. Tais obras se destacam por capturar

processo de apropriação do espaço, a partir das lutas por moradia (ou direito à cidade), tendo

como fontes históricas principais depoimentos orais e as fontes jornalísticas25. Há uma

23 Todas as obras aqui levantadas são referências historiográficas do debate da habitação no Brasil,

entretanto, quase todas, foram produzidas por especialistas não historiadores, distantes das abordagens teóricas e

metodológicas do campo histórico: AZEVEDO, Sérgio. A crise da política habitacional: dilemas e

perspectivas para o final dos anos 90. In. AZEVEDO, Sérgio de; ANDRADE, Luis Aureliano G. de (Orgs.). A

crise da moradia nas grandes cidades – da questão da habitação à reforma urbana. Rio de Janeiro: Editora

UFRJ, 1996. PECHMAN, Robert M.; RIBEIRO, Luiz C. de Queiroz. O que é questão da moradia. Coleção

Primeiros Passos, n. 92. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983. SACHS, C. São Paulo – Políticas públicas e

habitação popular. São Paulo: Edusp, 1999. SILVA, M. O. S. Política habitacional brasileira: frente e verso.

São Paulo: Cortez, 1989. BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do

inquilinato e difusão da casa própria. São Paulo: estação liberdade, 2004. RODRIGUES, Arlete Moysés.

Moradia nas cidades brasileiras. 5. ed. São Paulo: Contexto, 1994. SANTOS, Milton. A urbanização

brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993; BLAY, E. A. Eu não tenho onde morar: vilas operárias na cidade de São

Paulo. São Paulo: Nobel, 1985. MARICATO, Ermínia (Org.) A produção capitalista da casa e da cidade no

Brasil industrial. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1982; BOTELHO, Adriano. O urbano em fragmentos. A

produção do espaço e da moradia pelas práticas do setor imobiliário. São Paulo: Annablume Fapesp, 2007;

ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo:

Studio Nobel: Fapesp, 1997. BLAY, Eva Alterman. A luta pelo espaço: textos de Sociologia Urbana. 2. ed.

Petrópolis: Vozes, 1979; SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. 7. ed. São Paulo: Editora da Universidade de

São Paulo, 2007. SHIFFER, Sueli Ramos et al. O processo de urbanização no Brasil. São Paulo: Edusp, 1999.

MARICATO, Ermínia. Habitação e cidade. Série Espaço & Debate. 3. ed., São Paulo: Atual Editora, 1997.,

VALLA, V (org). Educação e favela: políticas para as favelas do Rio de Janeiro, 1940-1985. Rio de Janeiro, Ed.

Vozes, 1986, PERLMAN, Janice. O mito da marginalidade: favelas e políticas públicas no Rio de Janeiro.

3ªed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2002 24 GASPAR, Eduardo Lucas. Cidade, moradia e trabalhadores. In: Revista SURES, n. 6, p. 176-190, jul.,

2015. Disponível em: <https://ojs.unila.edu.br/ojs/index.php/sures>. 25 Os textos indicados Gaspar (2015, p. 184-190); BOSI, Antônio de Pádua. Reforma urbana e luta de

classes: Uberabinha (1888 a 1922). São Paulo: Xamã, 2004. PETUBA, Rosângela Maria Silva. Pelo direito à

cidade: experiências de luta dos ocupantes de terra do bairro D. Almir- Uberlândia (1990-2000). Dissertação

(Mestrado em História) - Uberlândia: UFU, 2001.; SILVA, Rosane Marçal da. Trabalhadores e luta por

moradia em Santa Helena – PR (Décadas de 1990 e 2000). Dissertação (Mestrado em História) Marechal

Cândido Rondon: UNIOESTE, 2011; FREITAS, Sheille Soares de. Buscando a cidade e construindo viveres.

Relações entre o campo e a cidade. Dissertação (Mestrado em História) - Uberlândia: UFU, 2003. GONZALEZ,

Emilio. Memórias que narram a cidade: experiências sociais na constituição urbana de Foz do Iguaçu.

Dissertação (Mestrado em História) - São Paulo: PUC, 2005; GONZALEZ, Emilio. Cidade, experiência,

memória: aspectos sociais na constituição urbana de Foz do Iguaçu; alguns elementos teóricos. In: SIMPÓSIO

NACIONAL DE HISTÓRIA, 23, Londrina, 2005. Anais... ANPUH, Londrina, 2005. Esses textos já foram

coletados e estão sendo lidos, fichados e analisados com parte da revisão biográfica em construção. Ainda, foram

coletados: LIMA, Gisele Oliveira de. Movimento baixa do Marotinho: a luta pela moradia em Salvador (1974-

1976). 2009. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências

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dispersão de trabalhos envolvendo a temática da questão urbana, especificamente a habitação,

produzidos por outras pós-graduações em História, que precisam ser identificados,

categorizados e resenhados, muitos sequer foram publicados – esforço, esse, impossível para

uma dissertação de mestrado.

Tendo como foco a urbanização e a habitação no governo Costa e Silva (1945-50), o

historiador Alberto Gawryszemwski (2012)26, a partir de uma diversidade de fontes primárias

(documentos oficiais, músicas, periódicos e outras), reconstrói o cenário social e político da

crise da moradia no Rio de Janeiro (Distrito Federal). O pesquisador o jogo político e

econômico que estruturavam as reivindicações populares por moradia e formulação de

soluções para a crise habitacional (remoção, Lei do Inquilinato, criação da Fundação da Casa

População, primeira instituição brasileira para formulação de política habitacional e produção

de moradias). Seu trabalho destaca-se ao chamar a atenção do leitor para os conflitos que

estruturavam a organização da cidade, criticando a imagem mítica dos espaços populares

como lugares da solidariedade, tutela e da apatia (meros reféns dos políticos populistas):

Manifestações coletivas várias foram descritas neste trabalho. Invasões de terreno

para construções de barracos, usuários organizando-se para terrenos consertarem as

linhas de trem; quebra-quebra de trens, bondes e estações demonstrando

descontentamento pelos serviços; “memoriais”, abaixo-assinados dirigidos às

autoridades federais e municipais, poderes Executivos e Legislativos, imprensa etc.

Quanto aos problemas enfrentados pelos favelados, cabe destacar os embates entre

estes e os donos (falsos e verdadeiros) dos terrenos em que estavam localizados os

barracos. A historiografia sobre a questão, em aspecto ligado ao aluguel do terreno

e/ou do barraco. Perlman (1977), por exemplo, que estudou favela carioca na década

1960, afirmou que a moradia era de graça. Afirmamos que para a década de 1940 tal

fato não foi realidade, dado que redimensiona a questão. Assim faz-se necessária

uma nova abordagem historiográfica para se entender o processo de mudanças

ocorridos nas favelas cariocas27

.

As observações de Alberto Gawryszemwski sobre as lutas internas e sua capacidade

Humanas, Salvador, 2009; OLIVEIRA, Samuel. Política urbana e movimento de favelas em Belo Horizonte

(1947-1964). Saeculum – Revista de História, n. 24, p. 39-54, jan. /jun., 2011; OLIVEIRA, Samuel Silva

Rodrigues de. Movimento de favelas de Belo Horizonte (1959-1964). Rio de Janeiro: Epapers, 2010.

MONTE, Regianny Lima. Vidas Incertas: o processo de modernização e segregação urbana de Teresina na

década de 1970. Teresina,PI:IFPI,2017; LIMA, Antônia Jesuíta de. Favela COHEBE: uma história de luta por

habitação popular. Teresina: EDUFPI, 1996; NASCIMENTO, Francisco Alcides do. A cidade sob o fogo:

modernização e violência policial em Teresina (1937-1945). Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves,

2002. 26 GAWRYSZEMWSKI, Alberto. Agonia de morar: urbanização e habitação na cidade do Rio Janeiro

(DF) – 1945/50. Lodrina: Eduel, 2012. 27 Idem, p. 350.

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de organização e articulação política dos favelados28 coadunam-se com as análises feitas por

Doraci Alves Lopes (1997)29, em Marginais da História, que problematizam o impacto da

teoria e do imaginário da marginalidade urbana sobre os moradores de favelas de Campinas-

SP. A autora acabou construindo a história da luta pela terra daquela localidade, desde anos

50 até os anos 80, navegando entre atas, jornais e panfletos, e demonstrando os movimentos

favelados que se organizaram em torno da Assembleia do Povo que questionava as habitações

provisórias e os despejos, exigindo a fixação das favelas nos lugares que já estavam e

instituíndo, mesmo que de modo tenaz e provisório, um espaço de interlocução com poder

local. A socióloga comenta sobre esse processo:

Assim sendo, os favelados foram enfrentando as discriminações enquanto

produziam as mudanças possíveis para sobreviver na realidade urbana do país.

Algumas favelas mudaram mais, outras menos, mas passaram a não se submeter a

qualquer tipo de projeto habitacional, sem discussões coletivas prévias. O poder

público, por sua vez, foi obrigado a adaptar-se à existência dos movimentos

favelados pela posse da terra e criar novos mecanismos administrativos para

negociar como os seus moradores, debatendo certas demandas jurídicas e

urbanísticas30.

Observa-se, também, dentro dessa perspectiva analítica, a coletânea A conquista da

Cidade: Movimento Populares em Brasília31 organizada por Aldo Paviani (1998), em que os

movimentos populares em Brasília que emergem contra a remoção (movimento pró-fixação e

urbanização Núcleo Bandeirante, nos anos 60) e de uma ocupação (Vila Paranoá e Ceilândia)

constituem intensa rede política, dando visibilidade pública as suas demandas sociais,

influenciando nas tomadas de decisão do Poder Público e conquistando um lugar no

ordenamento urbanístico da capital federal.

Recentemente, historiadores cariocas, num contexto de política de preservação e

28 SANTOS, Carlos Nelson F. dos. Movimentos urbanos no Rio de Janeiro. Rio, Zahar, 1981;

ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta. SP: Brasiliense, 1985. 29 LOPES, Doraci Alves. Marginais da História? O movimento dos favelados da Assembleia do Povo.

Campinais, SP: Editora Alínea, 1997. 30 Idem, p. 179. 31 Na segunda parte da coletânea estão os textos referentes aos movimentos populares em Brasília com

enfoque históricos, escritos por urbanistas, sociólogos e geógrafos: JACCOUD, Luciana. Lutas sociais:

populismo e democradia:1960/1964. In: PAVIANI, A. (Org.). A conquista da cidade – Movimentos populares

em Brasília. 2. ed. Brasília: Ed. UnB, 1998. p.145-168; SOUSA, Nair H. Bicalho. O movimento pró-fixação e

urbanização Núcleo Bandeirante: a outra face do populismo janista. In: PAVIANI, A. (Org.). A conquista da

cidade – Movimentos populares em Brasília. 2. ed. Brasília: Ed. UnB, 1998. p. 169-208; RESENDE, Mara.

Movimentos de moradores: a experiência dos inquilinos de Ceilândia. In: PAVIANI, A. (Org.). A conquista da

cidade – Movimentos populares em Brasília. 2. ed. Brasília: Ed. UnB, 1998. p. 209-203; IWAKAMI, Luiza

Naomi. Vila Paranoá: a luta desigual pela posse da terra urbana. In: PAVIANI, A. (Org.). A conquista da

cidade – Movimentos populares em Brasília. 2. ed. Brasília: Ed. UnB, 1998. p. 231-256.

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valorização das “comunidades faveladas”, de emergência da violência urbana, dos impactos

políticos dos megaeventos, das obras do PAC intervindo na configuração urbana da metrópole

carioca (nova onda de remoção, especulação imobiliária etc), tomaram as favelas e periferias

cariocas como objeto de investigação32, ao problematizar suas origens, as relações entre a

cidade e as favelas, o ativismo social e político e as estratégias de sobrevivência, resistências e

negociações33.

Dentre eles, destaca-se o historiador Linderval Augusto Monteiro, que ao discutir a

formação da Baixada Fluminense no Rio de Janeiro, operacionaliza o conceito de colonização

proletária e de rede de soluções práticas ao mostrar como a população, em sua maioria

migrantes, largados à sua própria sorte (“cidadão-só”, como afirma o historiador), foram

produzindo a localidade instituindo estratégias e práticas para solucionarem seus problemas

diários prementes num contexto de intensa precariedade, instabilidade e ausência do poder

público. Esse trecho ilustra o que foi assinalado:

A Baixada Fluminense é um mundo em constante crise, uma vez que para ali se

destinaram indivíduos oriundos do interior do Brasil, socialmente invisíveis e quase

integralmente esquecidos pelas diversas esferas do poder público: cidadãos-só, em

suma. Estabeleceu-se na Baixada Fluminense uma estrutura de carências capaz de

alimentar as condições adversas já existentes desde os momentos iniciais da

ocupação34.

32 VALLADARES, Lícia do P. A gênese da favela carioca: a produção anterior às ciências sociais. In:

Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 15, 2000. Disponível em:

<http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v15n44/4145.pdf>. Acesso em: jan. 2006; VALLADARES, Lícia do P. (Org.).

A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2005. 33 Lista-se obras encontradas escritas por historiadores que buscam construir uma história da habitação,

em especial das favelas, e dos movimentos de luta pela moradia (aqui os movimentos de favela) na cidade do

Rio de Janeiro: MELLO, Marco Antonio da Silva et al. Favelas cariocas: ontem e hoje. Rio de Janeiro:

Garamond, 2012; GONCALVES, Rafael Soares. Favelas do Rio de Janeiro: história e direito. Rio de Janeiro:

Pallas/PUC-RJ, 2013; SILVA, Maria Lais Pereira da. Favelas cariocas, 1930-1964. Rio de Janeiro:

Contraponto, 2005. ALVITO, Marcos. As cores de Acari: uma favela carioca. Rio de Janeiro: FGV, 2001;

BRUM, Mario Sergio. Cidade Alta: história, memórias e estigma de favela num conjunto habitacional do Rio

de Janeiro. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012; PANDOLFI, Dulce Chaves; GRYNSZPAN, Mario. A favela fala:

depoimentos ao CPDOC. 3. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2003; SILVA, Jailson S. Um espaço em busca de seu

lugar: as favelas para além dos estereótipos. Tese (Doutorado em Geografia) - Niterói: PPGEO-UFF/AGB,

2002; Amoroso, Mauro. Nunca é tarde para ser feliz: a imagem das favelas pelas lentes do Correio da Manhã,

Editora CRV, Curitiba, 2011; AMOROSO, Mauro. Caminhos do lembrar: a construção e os usos políticos da

memória no Morro do Borel. Rio de Janeiro: Ponteio, 2014. 34 MONTEIRO, Linderval A. Para além do “voto de sangue”: escolhas populares e liderança política

carismática na Baixada Fluminense. O caso Joca. Cadernos do Desenvolvimento Fluminense, Rio de Janeiro,

n. 2, p.121-152, jul., 2013. Deve-se compreender Colonização proletária como processo de ocupação e

construção trabalhadores, formais e informais, dos bairros e favelas que formavam a Baixa Fluminense e por

rede de soluções práticas as ações populares que buscavam substituir “minimamente” ausência do poder público

nas resoluções de conflitos e problemas da localidade, que envolviam desde prover a infraestrutura urbana,

construir residências (mutirões), prestar serviços assistências auxiliar à práticas de justiçamento popular. Ver:

MONTEIRO, L. A. Andando pelo vale da sombra da morte: a trajetória política de Joca, primeiro prefeito de

Belford Roxo. Revista Universidade Rural: Série Ciências Humanas, Seropédica, RJ: EDUR, v. 29, n 2, p.

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Também, a rediscussão do ativismo popular, em especial do favelado, no contexto da

cidade do Rio de Janeiro, numa perspectiva histórica, tem contribuído para problematizar a

ideia das favelas (e, também, dos bairros periféricos) teleguiadas e conduzidas pelo

clientelismo político e por políticos populistas. Novos trabalhos historiográficos apontam as

particularidades das mobilizações dos favelados, estratégias para constituição de suas

associações e federações, as suas complexas redes de relação entre sindicatos e partidos

políticos e os impactos na estruturação do espaço público da cidade35.

Por fim, esse levantamento historiográfico, ainda incompleto, nos revela uma

compreensão mais complexa e atenta das relações entre cidade, movimentos populares e

habitação, impondo-nos a necessidade de discutir as tensões e estratégias políticas dos atores

sociais para conquistarem seus objetivos (no caso particular deste projeto, conquistar a terra,

conter a expansão das invasões urbanas) e a reconhecer que, no “tempo dos eventos”, emerge

um campo de autonomia e indeterminação frente uma rede de múltiplos interesses e projetos

sociais e políticos cujo resultado não pode ser antecipado por nenhum dos atores.

Assim, realça-se a importância da investigação sobre a configuração política (as redes

políticas) que envolveu a conquista da terra urbana e a formação do Bairro Nova Rosa da

Penha-Cariacica-ES em 1982, tendo como enfoque os diferentes interesses políticos e sociais

que articulavam os atores políticos (“invasores”, militantes esquerdas, religiosos, jornalistas,

políticos, autoridades públicas, funcionários públicos, sindicalistas, instituições públicas e

privadas, dentre outros).

A configuração política é aqui pensada como um emaranhado de relações sociais e

político que articulam atores políticos e interesses num dado espaço e tempo permitindo-os,

consensual ou conflitualmente, conquistar ou ter acesso ao benefício individual ou coletivo.

Essa noção preliminar ancora-se nas interpretações de Paulo Krischke (1984) sobre os

55-71, jul.-dez., 2007; MONTEIRO, Linderval Augusto. Baixada Fluminense, identidades e transformações:

estudo de relações políticas na Baixada Fluminense, 2001; MONTEIRO, Linderval Augusto. Invisibilidade

social e reação popular em uma favela da Baixada Fluminense: o caso Nova Jerusalém. Tempo, Niterói, v. 17, n.

31, p. 231-260, 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-

77042011000200010&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 28 maio 2016. 35 O historiador Paulo Fontes ao discutir a formação do região de São Miguel Paulista a partir dos

trabalhadores migrantes, oriundos do Nordeste, mostra, como Linderval A. Monteiro, as forças do laços sociais,

familiares e políticos acionado pelos trabalhadores para resolveram o problema da moradia via construção

enfrentando a lógica segregação(racial, social e espacial) imposta pela metropole paulista, apontando como essa

bairro constitui-se numa estratégia de afirmação identidade e reconhecimento daqueles trabalhadores, o nordeste

em São Paulo. FONTES, Paulo. Um nordeste em São Paulo: trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista,

1945/1966.Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2008.

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movimentos sociais urbanos do período dos anos 80 quando aventa a formação de um “campo

popular que seria um território ou esfera de organização popular “decorrente da influência

recíproca e eventual cooperação entre múltiplas entidades e tendências que operam no âmbito

da comunidade e que resguardam a sua identidade”36(1983:87).

Os movimentos de bairros, nessa perspectiva, não se subordinariam à agentes externos

que o influenciavam, comenta o sociólogo:

A pesquisa revelou a importância da presença do PT e da igreja entre entidades de

que os representantes do MLC revelam participar. Não obstante, tal participação –

longe de significar um atrelamento eleitoral ou ideológico a uma ou outra linha de

participação – correlaciona-se positivamente com a adoção de métodos democráticos

e pluralistas de organização e de bem sucedida mobilização popular por parte do

movimento, e, portanto, com a sua crescente autonomia e capacidade de negociação

com o Estado37 (1983, p. 79).

Essa configuração política na qual se movia sujeitos em “busca de terra e moradia”

ganha relevância investigativa quando articulada ao pano de fundo o “tempo

transição”38(1974-1985), momento em que abertura política e “desmontagem” do Regime

Militar(1964-1985), em que a sociedade civil brasileira em suas diferentes expressões e

matizes políticas reorientava suas práticas politica e socialmente constituindo novas lutas e

estratégias de chegada e ocupação do poder, dais quais se destacam as lutas democráticas.

Assim, tecer a configuração política que envolveu a conquista da terra urbana e a

formação do Bairro Nova Rosa da Penha-Cariacica-ES em 1982, já sob o contexto das

primeiras eleições diretas para governador, pode-nos levar a compreender as articulações

políticas que marcavam a região da cidade de Vitória-ES e como as camadas populares se

movimentavam no interior, desvelando-nos a experiência urbana das transformações político-

partidárias imposta pela “Abertura Política” do Regime Militar.

36 KRISCHKE, Paulo J. Os loteamentos clandestinos e os dilemas e alternativas democráticas dos

movimentos de bairro. In: KRISCHKE, P. J. (Org.) Terra de habitação X terra de espoliação. São Paulo,

Cortez, 1984, p. 83. 37 VASCONCELOS, Eliane J. Godoy de.; KRISCHKE, Paulo J. Igreja, motivações e organização dos

moradores em loteamentos clandestinos. In: Terra de habitação x Terra de espoliação. KRISCHKE, Paulo J.

et al. São Paulo: Cortez, 1984. p.73. 38 ARAÚJO, Maria Paula Nascimento. A ditadura militar em tempo de transição (1974-1985). In:

MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (Org.) Democracia e ditadura no Brasil. Coleção Comenius. Rio de

Janeiro: EdUERJ, 2006 p. 153-164.