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MURILO MENDES, O IMBELE NO CAMPOCONCENTRAÇÃO Leonil Martinez “Pós-poema” 1, publicado por Murilo Mendes no livro Poesia liberdade (1947) pode ser considerado como a explicitação de um projeto estético e político de longo alcance. Sem dúvida, o próprio título já coloca por inteiro a questão central de tal projeto: o pós-poema confronta-se resolutamente com os escombros, com as ruínas de tudo aquilo que até ali tinham sido o mundo e a poesia, para a partir destes restos e sobras instaurar uma pós-poética, ou seja, uma possível lírica da pós-modernidade. Por outro lado, esta precursora consideração da pós-modernidade pode ser utilizada para a leitura de trabalhos muito posteriores do próprio Murilo, como “Grafito segundo Kafka” 2, publicado em Convergência (1970), buscando iluminar as soluções posteriores deste projeto que madrugou com o pós-modernismo. Para facilitar sua consulta, ambos poemas são reproduzidos em anexo no final deste ensaio. Para o presente trabalho, o termo pós-moderno e seus derivados são tomados no sentido de expressar uma determinada maneira de perceber a experiência e o mundo que aponta justamente para o esgotamento da estabilidade dos significados. Afinal, após o holocausto judeu e as bombas atômicas de Hiroxima e Nagasaqui efetivamente tornou- se difícil acreditar ainda na neutralidade do “progresso” e da “verdade” ou da “objetividade” científicas. Com efeito, desde a Segunda Guerra Mundial conceitos como o de progresso científico e tecnológico passaram a ser vistos por muitos como simples instrumentos de dominação e de destruição. Por fim, a argumentação a seguir em grande parte é tributária daquela desenvolvida por Giorgio Agamben em Homo sacer 3 , principalmente na consideração do campo de concentração como o fato político característico da pós-modernidade. Mesmo sabendo-se que, quando perguntado sobre qual de seus livros era o de sua preferência, Murilo costumava responder que era o último 4, é bom não esquecer 1 MENDES, Murilo. “Pós-poema”. In: MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p.432. Para simplificar as citações, as futuras referências a Poesia completa e prosa serão feitas apenas por meio da abreviatura PCP, seguida do número da página. 2 PCP, p.647. 3 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. 4 Resposta de Murilo ao questionário de João Condé publicada em Letras e artes. Suplemento literário dominical do jornal A Manhã. Rio de Janeiro, n. 114, p.8, 06 fev. 1949. 64

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  • MURILO MENDES, O IMBELE NO CAMPOCONCENTRAO

    Leonil Martinez

    Ps-poema 1, publicado por Murilo Mendes no livro Poesia liberdade (1947)

    pode ser considerado como a explicitao de um projeto esttico e poltico de longo

    alcance. Sem dvida, o prprio ttulo j coloca por inteiro a questo central de tal

    projeto: o ps-poema confronta-se resolutamente com os escombros, com as runas de

    tudo aquilo que at ali tinham sido o mundo e a poesia, para a partir destes restos e

    sobras instaurar uma ps-potica, ou seja, uma possvel lrica da ps-modernidade. Por

    outro lado, esta precursora considerao da ps-modernidade pode ser utilizada para a

    leitura de trabalhos muito posteriores do prprio Murilo, como Grafito segundo Kafka

    2, publicado em Convergncia (1970), buscando iluminar as solues posteriores deste

    projeto que madrugou com o ps-modernismo. Para facilitar sua consulta, ambos

    poemas so reproduzidos em anexo no final deste ensaio.

    Para o presente trabalho, o termo ps-moderno e seus derivados so tomados no

    sentido de expressar uma determinada maneira de perceber a experincia e o mundo que

    aponta justamente para o esgotamento da estabilidade dos significados. Afinal, aps o

    holocausto judeu e as bombas atmicas de Hiroxima e Nagasaqui efetivamente tornou-

    se difcil acreditar ainda na neutralidade do progresso e da verdade ou da

    objetividade cientficas. Com efeito, desde a Segunda Guerra Mundial conceitos

    como o de progresso cientfico e tecnolgico passaram a ser vistos por muitos como

    simples instrumentos de dominao e de destruio. Por fim, a argumentao a seguir

    em grande parte tributria daquela desenvolvida por Giorgio Agamben em Homo

    sacer 3, principalmente na considerao do campo de concentrao como o fato poltico

    caracterstico da ps-modernidade.

    Mesmo sabendo-se que, quando perguntado sobre qual de seus livros era o de

    sua preferncia, Murilo costumava responder que era o ltimo 4, bom no esquecer

    1 MENDES, Murilo. Ps-poema. In: MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p.432. Para simplificar as citaes, as futuras referncias a Poesia completa e prosa sero feitas apenas por meio da abreviatura PCP, seguida do nmero da pgina. 2 PCP, p.647. 3 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. 4 Resposta de Murilo ao questionrio de Joo Cond publicada em Letras e artes. Suplemento literrio dominical do jornal A Manh. Rio de Janeiro, n. 114, p.8, 06 fev. 1949.

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  • que, respondendo ao questionrio Proust em 1964, ele declarou ter por divisa

    justamente a expresso poesia liberdade 5. Este fato possibilita considerar, ento, que o

    contexto no qual insere-se a escritura de Ps-poema, ou seja, aquele do livro Poesia

    liberdade, efetivamente uma das passagens cruciais da mquina expressiva muriliana,

    de resto um argumento j exposto, entre outros, por Luciana Stegagno Picchio 6.

    Afinal, sabe-se que Janela para o caos, talvez a poesia de Murilo de maior

    repercusso, tambm faz parte de Poesia liberdade. Assim, pode-se dizer que o ps-

    poema resulta da radical liberdade do poeta em incluir em seu poetar materiais e

    estratgias de algum modo at ento deixados em segundo plano pela dico potica. A

    ps-modernidade a janela, lente simultaneamente telescpica e microscpica de que se

    serve para examinar a realidade o olho armado ps-potico, atento diversidade

    dissonante entre os possveis pontos de vista sobre um mesmo objeto a partir das

    diferentes perspectivas existentes nos atos de ver, rever, olhar pleno de uma

    curiosidade inextinguvel pelas formas. 7

    importante assinalar, fazendo eco a Picchio, que Poesia liberdade, talvez a

    obra mais conhecida de MM, [] a mais comprometida com a realidade contingente, a

    guerra, o fascismo, e esta vivncia ideolgica teria proporcionado ao livro um

    sucesso internacional, bem fora dos confins do Brasil. 8 Portanto, tratar da realidade

    contingente brutal da guerra e do fascismo um dos aspectos centrais desta ps-potica

    capaz de repercutir at mesmo fora dos confins do Brasil 9. Seria possvel acrescentar

    a esta afirmao que tal repercusso talvez derive antes da maneira pela qual Murilo

    articula as recorrentes e freqentes imagens de guerra, como tanques, metralhadoras,

    avies de bombardeio, obuses e exploses (at mesmo as flores explodem ou so

    cadveres) a outros aspectos de sua potica, do que propriamente o uso de imagens de

    guerra. Nesse sentido, a utilizao da guerra como temtica aparece j nos anos 1910 no

    Marinetti do Futurismo italiano, que fez o elogio da tcnica a partir do ponto de vista

    fascista; contudo, na ps-poemtica muriliana, a guerra e seus dispositivos de destruio

    em massa so materiais includos no entretecer de um poetar que erige um novo

    5 PCP, p.52. 6 PCP, p.1.673. 7 PCP, p.974. 8 PCP, p.1.673. 9 Os confins do Brasil; o confinamento, sabemos, decorre de uma srie de sucessivos confinamentos sobrepostos: confinamento de uma lngua pouco utilizada em termos globais; confinamento de uma economia historicamente condenada a produzir apenas o que interessa aos pases ricos; confinamento poltico do ltimo pas do mundo a abolir a escravido e que, at muito recentemente, foi governado apenas pelas elites conservadoras.

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  • humanismo, pautado no pela apologia mas sim pela crtica dos efeitos devastadores da

    cincia e da tecnologia militarizadas, por uma decidida defesa do pacifismo, juntamente

    com a forte condenao e denncia dos autoritarismos. 10

    O projeto esttico ps-poemtico esboado por Murilo em Ps-poema prope

    uma potica de atualizao radical na forma como o prprio poeta entende sua

    experincia, que no pode mais ficar restrita ao simples jogo de dualidades, como o

    existente no par binrio ser/no-ser: trata-se de ser e no ser (grifo meu). Assim, o

    projeto pauta-se por uma lgica de coexistncia interativa entre plos aparentemente

    opostos: o anteontem, ou o passado, agita-se vivo no presente e conecta-se ao que ainda

    vai acontecer, o futuro; a sensibilidade ingnua de anteontem do poeta-menino sente-se

    ainda pouco vontade nas calas compridas do ps-poeta, sorri sem jeito... Mas a

    substituio do paradigma do aparato perceptivo decidida, firme, no h lamrias por

    uma inocncia perdida e impossvel de resgatar, h apenas a constatao lcida e ps-

    potica de que a caveira pertence ao corpo e a adeso realidade mais imediata,

    buscando mesmo indicar como articulam-se os mais opostos estados da matria, como

    pedra e ar (corpo e esprito) os quais, embora nossos sentidos percebam to opostos em

    sua essncia, de fato no passam de estados fsicos limites da mesma matria.

    Evidentemente, os trs ltimos versos so a refutao ps-poemtica ao Hamlet

    de Shakespeare, refutao realizada por intermdio da substituio do termo ou

    (excludente, ou isto ou aquilo) pelo termo e (inclusivo, isto e aquilo). Mais do que isto,

    o ps-poema apropria-se de uma maneira peculiar desta antiga sensibilidade, vestindo-a

    com um traje de corte atual, impossibilitando-a de exercer alguns de seus movimentos

    mais caractersticos: iluso, queixa ou lamento. Esta forma de apropriao peculiar,

    diga-se, na medida em que ela ocorre no exatamente como uma incorporao e mais

    como uma deformao, ou seja, no como pardia ou pastiche e sim atravs do

    questionamento do prprio raciocnio binarista excludente, atravs da substituio da

    conjuno alternativa ou pela conjuno aditiva e. De fato, o Hamlet resultante

    desta mudana de perspectiva parece algo novo que agrega-se ao antigo personagem

    sem neg-lo, antes promovendo um aprofundamento de planos por meio da

    reorganizao dos elementos pr-existentes na velha questo. Nesta maneira pela qual o

    10 Pode-se dizer que a forma como Murilo lida com a guerra tem muito a ver com o Apollinaire de Calligrammes (1918) que, como se sabe, alm de tematizar extensamente a guerra, tambm foi em grande parte escrito durante a permanncia do autor nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Afinal, sabe-se que Murilo foi um grande leitor de Apollinaire, mesmo antes da dcada de 1920, como indicam os nove ttulos do poeta francs na biblioteca de origem do Centro de Estudos Murilo Mendes.

    66

  • ps-poema incorpora Hamlet no h a excluso da dico ou sensibilidade

    shakespeareana; ocorre, antes, uma superposio, algo assim como se ao conhecido

    personagem fosse concedida a oportunidade de diferir no daquilo que o caracteriza, e

    sim na forma pela qual o caracteriza. O Prncipe da Dinamarca de Shakespeare parece

    ento ser uma modalidade de percepo do mundo, e da experincia, de certa forma

    infantil (o menino sorrindo sem jeito), frente complexidade da realidade ps-moderna,

    as calas compridas do lcido ps-poeta adulto. Por fim, assinale-se que esta lucidez de

    raciocnio do ps-poema talvez possa ser traduzida (ou sintetizada) pela expresso

    freqentemente usada para descrever a escritura de Murilo: poesia crtica.

    Escrito quase vinte anos depois, Grafito segundo Kafka pode ser lido como

    um ps-poema elaborado a partir de uma intensificao e mesmo ampliao das

    implicaes desta esttica ps-potica. Sem dvida, o longo trajeto percorrido entre

    ambos possibilitou que os processos apenas esboados no primeiro pudessem chegar

    plenitude no segundo. Mas, assim como considerou-se importante o contexto em que se

    insere Ps-poema para uma melhor explicitao das suas implicaes, igualmente

    importante examinar o contexto no qual est inscrito Grafito segundo Kafka. Mesmo

    porque, no caso de Murilo, a importncia do contexto de publicao foi notada j em

    1931 por Mrio de Andrade, quando ele argutamente observou que a escritura muriliana

    instaura um estatuto de criao em que desaparece fortemente a possibilidade da obra-

    prima, da obra completa em si e inesquecvel como objeto. No so apenas todos os

    planos que se confundem nas obras (...), mas estas prprias obras, que se tornam

    enormemente parecidas umas com as outras, ou pelo menos indiferenciveis na

    memria da gente. Assim, desaparecendo a possibilidade de distino entre elas, as

    obras se enlaam umas nas outras, vazam umas prs outras, pairam numa indiferena

    iluminada em que no preciso mais distinguir a grande inveno da inveno menos

    forte, enfim, a gente no possue mais razo pra separar a obra-prima e a justificar.

    11 Evidentemente, para os objetivos deste trabalho, o fato de que Mrio perceba a

    respeito do livro de estria de Murilo a impossibilidade da obra-prima, nos termos de

    Barthes, indica que na escritura muriliana, em detrimento da noo de obra, desde

    sempre atuou fortemente a de texto. Pode-se dizer, ento, que nesta escritura as foras

    atuantes no buscam constituir um campo delimitado de obra acabada, restando portanto

    como um campo de foras em permanente reconfigurao, a work in progress, ou,

    11 ANDRADE, Mrio de. A poesia em 1930. In: ANDRADE, Mrio de. Aspectos da literatura brasileira. So Paulo: Martins, 1967, p.44.

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  • como diz Barthes, como algo que no se detm; atividade produtiva incessante, o texto

    no cessa de divergir da obra. 12

    Grafito segundo Kafka foi publicado em Convergncia (1970), no qual uma

    das imagens recorrentes mais importantes na perspectiva adotada por este trabalho a

    da bomba atmica, a ameaa do holocausto nuclear, infelizmente uma temtica de

    atualidade inesperada no incio do sculo XXI, pois embora a ameaa de uma guerra

    atmica no tenha preocupado mais as pessoas aps o naufrgio da Unio Sovitica, as

    bombas ainda esto todas a, cada vez em maior nmero. Em Convergncia, a

    multiplicidade de imagens explcitas da guerra intensamente usadas na segunda parte de

    Poesia liberdade (tanques, obuses, metralhadoras, balas, avies bombardeiros, etc) d

    lugar a uma utilizao diversa da imagtica da violncia da guerra, com o uso

    relativamente menos intenso de imagens explcitas, como a prpria palavra guerra (5

    ocorrncias) e a palavra bomba (12 vezes), sempre usada no sentido de bomba atmica,

    de holocausto e de extermnio total. Assim, pode-se dizer que, enquanto em Poesia

    liberdade a questo da guerra parece comparecer em um patamar de engajamento na

    luta da liberdade contra o autoritarismo no qual ainda no h lugar para o campo de

    concentrao, em Convergncia ele parece ocupar posio de destaque, juntamente com

    o temor da guerra nuclear, ou extermnio total, e estas imagens disseminam-se

    sutilmente ao longo do livro, gerando um clima de terror difuso, embora absoluto,

    reproduzindo o clima poltico da guerra-fria, e que imprevistamente parece ressuscitar

    neste incio do sculo XXI.

    De qualquer modo, parece indiscutvel que o passo decisivo dado por Murilo em

    Convergncia, no sentido de perseguir at s ltimas conseqncias polticas a esttica

    do ps-poema, o surgimento do campo de concentrao no campo ps-potico. Com

    efeito, embora o campo de concentrao aparea somente duas vezes ao longo de todo o

    livro 13 (alm disto, assinale-se que os termos cmara de gs e crcere aparecem

    uma vez cada 14), o peso destas ocorrncias por certo afeta profundamente o campo

    potico, transformando-o a tal ponto que ele efetivamente torna-se o campo ps-potico,

    ou seja, consciente de que a experincia atinge no campo de concentrao o limite de

    terror, limite extremo que no pode ser ultrapassado nem mesmo pela linguagem: qual

    12 BARTHES, Roland. O rumor da lngua. Lisboa: Edies 70, 1987, p.58-59. 13 PCP, p.649 e p.717. 14 PCP, p.717 e p.651, respectivamente.

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  • o verbo adequado para estes crceres/ qual o adjetivo para estas moles (...)? 15. Dito de

    outra maneira, o terror das cmaras de gs e dos campos de concentrao explode a

    potica conforme ela at ali tinha existido, apontando para o seu esgotamento,

    simplesmente porque ela incapaz de expressar o holocausto em toda sua catastrfica

    dimenso ps-moderna. Neste sentido, incorporar Kafka incorporar uma dico

    especfica da modernidade, o kafks uma lngua nova, talvez a nica capaz de

    expressar a autonomizao do poltico da qual derivam os superpoderes do Estado

    moderno em relao ao indivduo.

    Kafka, o novo registro de expresso (ps-moderna) que se instala no

    esgaramento entre os gneros, criando uma escritura ambivalente na qual tendem a

    desaparecer as distines entre prosa e poesia. Kafka, o judeu de um gueto de Praga,

    talvez o primeiro comentador moderno do labirinto, mas desde j ps-moderno labirinto

    da lei incompreensvel, inscrita nos corpos de suas vtimas, aprisionadas na Colnia

    penal. Kafka, a mquina literria que pe em circulao a conscincia da catstrofe

    como o nico lirismo ainda possvel na ps-modernidade: ps-lirismo que alis

    Rejeita qualquer lirismo./ Tachando a flor de feroz. 16

    E dentro desta dimenso catastrfica que Grafito segundo Kafka instala-se

    inteiramente, j de sada, no deslizamento entre vida e morte, entre viglia e sono, e por

    fim entre duas diferentes personas, nas duas primeiras estrofes. A partir da (parte 2), o

    poema incorpora inteiramente a voz de Kafka, e a primeira tarefa a que se prope esta

    voz expressar para quem (paraqum) especificamente ocorre a morte, em oposio a

    uma descrio genrica da morte existindo apenas mais alm (paralm), ou seja, da

    morte como algo que acontece para um outro, desconhecido e indeterminado, em um

    lugar longe daqui 17. Ao mesmo tempo em que ocorre esta incorporao da voz de

    Kafka, o prprio Kafka perde o passaporte e o direito de ir e vir, tudo est, sempre/

    Esteve fechado. Alfabeto partido./ A fechadura fecha, no se abre, o judeu confinado

    no campo de concentrao, onde levado ao armazm de Anubis 18, a cmara de

    gs. O alfabeto partido incapaz no s de expressar este horror, preferindo o papel de

    anncio publicitrio de sabo, como tambm de estabelecer comunicao e 15 PCP, p.651. 16 PCP, p.685. 17 Todavia, deve-se notar que os dois pontos que sucedem ambos os versos podem apontar para uma indeterminao da morte apenas enquanto uma questo essencialmente subjetiva, e no enquanto fato social. 18 Anbis, na mitologia egpcia, deus dos mortos. Considerado o inventor do embalsamamento, guardio dos tmulos e juiz dos mortos. Os egpcios acreditavam que no juzo das almas, ele avaliava o corao dos mortos com a pena da verdade. Na arte, era representado com cabea de chacal.

    69

  • solidariedade entre as pessoas: Para quem apelar?/ Telefonam em chins./ Telegrafar

    ONU?/ A resposta em kafks. A linguagem no mais capaz de comunicar, mas

    unicamente de fazer propaganda ou ento de constituir um labirinto de normas e leis

    incompreensveis (kafks, a incompreensvel lngua da ps-modernidade).

    O que so grafitos ou grafites? Antes de mais nada, so um transgnero de

    escritura que questiona radicalmente o estatuto da escrita oficial, normatizada, e que

    tradicionalmente usa como meio fsico de reproduo o papel. Os grafites transformam

    a arquitetura, os muros das cidades e os espaos pblicos nas pginas de um livro

    infinito, incessante, e impossvel de apagar ou conter. As mesmas paredes que opem

    pblico e privado opem igualmente escrita oficial e pichao: do lado interno da

    parede, no espao privado, quadros, estantes com livros, papis e canetas, teclados de

    computador, a escrita diurna socialmente tramada e decifrvel; do lado externo da

    parede, o spray e a escrita oculta, executada no anonimato solitrio do escuro da noite e

    que em uma de suas modalidades mais instigantes e atuais busca ser indecifrvel,

    apenas os iniciados sabem l-la. Os grafites so uma transgresso sistemtica aos

    procedimentos normativos da escrita oficial, so a forma adotada pela escrita barrada,

    impedida em seu acesso ao papel, ao livro, ao computador, so uma escrita que no

    busca tornar-se escritura legitimadora da propriedade nos cartrios da cidade e sim

    transformar em um grande livro indecifrvel as paredes externas dos imveis que

    compem a imvel cidade. Os grafites so uma escrita que adere ao corpo social, como

    tatuagem no corpo das esttuas e dos monumentos, dessacralizando o monumental

    corpo herico social. Por fim, e o que mais importa aqui destacar, os grafites so a

    escrita transgnero utilizada pelo povo, pela massa, pela multido. Forma de

    comunicao e de expresso de massa, a escrita do grafite no pertence mo de seu

    autor, como a escrita consagrada; a escrita grafiteira transpessoal e nominalista, ao

    contrrio da escrita normatizada, que pessoal e descritiva (sem deixar de ser tambm

    prescritiva).

    Convergncia composto por trs partes de distintos aspectos formais, e a

    primeira delas, intitulada Grafitos, agrupa poemas todos eles intitulados como

    grafitos. Neste sentido, o ttulo de Grafito segundo Kafka apresenta uma

    particularidade em relao aos ttulos dos outros poemas da seo que, tendo em vista

    os objetivos deste trabalho, vale a pena explicitar. Com efeito, enquanto todos os outros

    ttulos e respectivos poemas certamente endossam o que foi dito acima sobre a natureza

    dos grafites, Grafito segundo Kafka parece ser regido por uma concepo que no

    70

  • exclui, mas ultrapassa, efetivamente sobrepondo-se a esta natureza. Dito de outra

    maneira, enquanto os outros grafites inscrevem-se em seu contexto fsico habitual de

    muros, paredes, cadeiras, monumentos, etc, o ttulo em questo sugere considerar a

    escritura kafkiana como grafite e a imagem de um Kafka grafiteiro, na medida em que o

    ps-poema muriliano define-se como um grafite feito segundo (ou seguindo) o estilo de

    Kafka. Desta forma, a escritura kafkiana e a escritura grafiteira convergem no sentido

    de que a escritura menor possvel ao judeu habitante de gueto define-se como grafite por

    ser uma escrita do terror e da catstrofe ps-moderna, e indecifrvel como tal para a

    maioria dos alemes que dominavam, ou que eram dominados, pelo idioma oficial, ao

    menos na poca em que a maioria dos textos de Kafka foi originalmente publicada.

    A ps-potica que pode ser lida em Grafito segundo Kafka substitui o antigo

    lirismo do campo por um ps-lirismo no campo de concentrao. Por isso, o limiar do

    inferno da terceira parte do poema de Murilo com efeito o limiar do campo de

    concentrao, inferno impossvel de conhecer, assim como impossvel reconhecer ao

    outro como um ser humano. A passagem parece uma atualizao das imagens da

    entrada de Dante no inferno catlico, que ele conhece muito bem, assim como

    facilmente reconhece Virglio como um igual. Sabe-se que so destinados ao inferno

    catlico aqueles que no respeitaram os mandamentos, ou leis crists, os pecadores, e

    que l devero ser reencaminhados ao cumprimento da lei, cumprindo suas penas e

    encontrando o caminho da salvao. Ao inferno moderno, o campo de concentrao,

    pelo contrrio, est destinado o imbele, isto , o ser pacfico, o no-blico, o indefeso.

    Alm disto, enquanto o inferno de Dante era apenas o ponto inicial de uma jornada a ser

    concluda no paraso, o inferno moderno uma condenao que um fim em si mesma:

    o campo de concentrao o fim na cmara de gs.

    Campos de concentrao brasileirssimos, as favelas expe nossa tcnica atual

    de asfixia: o absurdo, nosso po cotidiano. E a brutalidade no trato com a linguagem

    que caracteriza a parte final do poema (de nmero quatro), com a brusca e violenta

    colagem de versos, desconexos apenas em aparncia, elege uma esttica da crueldade,

    porque esta mais lcida que o antnimo.

    Concluindo, certamente pode-se dizer que a ida do imbele Murilo Mendes ao

    campo de concentrao da biopoltica ps-moderna originou uma ps-potica na qual as

    imagens paradoxais, como a escada rolante que sobe para baixo, desce para cima,

    funcionam como ndices de uma condio humana igualmente paradoxal, incapaz de

    distinguir para cima de para baixo. A pergunta quem sou eu percorre todo o poema,

    71

  • e revela-se impossvel de ser respondida: fui imposto a mim prprio e assim, o

    enigma permanece at o final, restando um sujeito ps-moderno ambivalente, de

    identidade evanescente, pois se a palavra transmite fato e idia, na ps-modernidade

    o fato evaporou-se e a idia finge. Portanto, a ps-poesia no pretende nem o prazer

    esttico nem comunicar, pois se certo que ela fala, no menos certo que ela fala uma

    outra lngua.

    BIBLIOGRAFIA

    AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo

    Horizonte: Editora UFMG, 2002.

    ANDRADE, Mrio de. Aspectos da literatura brasileira. So Paulo: Martins,

    1967.

    APOLLINAIRE, Guillaume. Calligrammes. Paris: Gallimard, 2000. Prface de

    Michel Butor.

    BARTHES, Roland. O rumor da lngua. Lisboa: Edies 70, 1987.

    MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,

    1995.

    72

  • ANEXO

    Ps-poema

    O anteontem no do tempo mas de mim

    Sorri sem jeito

    E fica nos arredores do que vai acontecer

    Como menino que pela primeira vez pe cala comprida.

    No se trata de iluso, queixa ou lamento,

    Trata-se de substituir o lado pelo centro.

    O que da pedra tambm pode ser do ar.

    O que da caveira pertence ao corpo:

    No se trata de ser ou no ser,

    Trata-se de ser e no ser.

    Grafito segundo Kafka

    1

    Marcar a solido, sem conscincia,

    Sem lmpada, sem mapa ou mo tangente,

    Trocando as letras do seu prprio nome.

    Que tinhas de comum contigo mesmo?

    Bastava-te o respiro da palavra.

    Tua testa, teus pulmes tramaram contra

    Ti. Autoabandonado antes de algum te.

    2

    K:

    73

  • Todos falam da morte paralm:

    Eu falarei da morte paraqum:

    Perdi a carta o passaporte o eco.

    Magazines fechados. Tudo est, sempre

    Esteve fechado. Alfabeto partido.

    A fechadura fecha, no se abre.

    A escada rolante, em sentido contrrio:

    Sobe para baixo, desce para cima.

    O anncio luminoso ilumina o sabo.

    O nibus conduz-me ao armazm de Anubis.

    Para quem apelar? Telefonam em chins.

    Telegrafar ONU? A resposta em kafks.

    3

    Sou recolhido diante de outro homem:

    No limiar do inferno que no sei.

    Nem ele sabe.

    4

    A mensagem era de outro. Para outro.

    Deram-ma por engano. Quem sou eu.

    A verso do rob talvez genuna.

    O absurdo, nosso po cotidiano,

    Nossa tcnica atual de asfixia.

    74

  • Sou da terra e do cu enquanto textos.

    Crer num deus: ser oculto a si

    Ou ento se manifestar ao prprio ser?

    Campoconcentrao: s para o imbele.

    Os tremores da terra sem sismgrafo,

    Sem sismograma. E sem tremor de terra.

    A destruio do rito: uma parte do rito.

    As ndegas na adega de quem so?

    A voz que me tocou no voz, nem me toca.

    No sou de meus irmos, de meus pais ou de mim.

    Ottla minha irm: irm de quem?

    Os dois K do meu nome: num s nome.

    O F comprimido entre dois A, dois K.

    Pobre deste nome sem esfera. S ngulo.

    O cristo que no sou, o judeu que me estranho.

    Tudo vem de Moiss, vem de Freud ou da ndia.

    Houve judeus hindus poca do Buda?

    Em Paris sofro de Praga. Em Praga, de Paris.

    A crueldade: mais lcida que o antnimo.

    Amrica, Rssia, China, de to grandes

    Tornaram-se para mim abstraes.

    Veio Rebeca, mas no era Rebeca:

    75

  • 76

    Antes de chegar, eu destrura a aliana.

    Nada se explica. Tudo se destri.

    E tudo se transforma para outrem.

    Sinto-me a desprazer na casa de um qualquer.

    Toda casa uma praa, e na praa quem sou?

    A palavra transmite fato e idia.

    O fato evaporou-se, a idia finge.

    No pedi para nascer, no escolhi meus pais.

    Fui imposto a mim prprio. O enigma permanece.

    Roma 1964