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    Nas Trincheiras de uma Poltica Criminal com Derramamento de

    Sangue: Depoimento sobre os Danos Diretos e Colaterais Provocados

    pela Guerra s Drogas*

    Salo de Carvalho**

    1. H muito tempo venho observando que os profissionais e

    pesquisadores do campo da psicologia social vm assumindo publicamente

    uma postura de vanguarda em relao a temas que tradicionalmente foram

    objeto de estudo da criminologia p. ex., crtica s instituies prisionais,

    questionamento sobre o papel dos psiclogos na execuo penal

    (notadamente em relao questo dos laudos psicolgicos), denncia das

    polticas higienistas de internao compulsria, luta para implementao de

    polticas pblicas que substituam os regimes de internao manicomial

    aplicados s pessoas submetidas medida de segurana e na efetivao da

    Lei de Reforma Psiquitrica.

    possvel dizer, inclusive, que no campo da poltica (criminal)

    brasileira os profissionais e pesquisadores da psicologia social esto

    ocupando um espao que durante muito tempo foi de titularidade exclusiva

    dos atores do direito. Com raras excees, a lacuna provocada pela inrcia

    poltica que se instalou no campo jurdico nas ltimas dcadas, em grande

    parte decorrente da formao burocrtica e conservadora dos seus

    profissionais (operadores jurdicos), permitiu que novos atores sociais

    reivindicassem o protagonismo nas lutas pela efetivao dos direitoshumanos no sistema de justia criminal.

    Dentre estes novos atores polticos, os Conselhos Regionais e o

    Conselho Federal de Psicologia merecem especial destaque.

    * Palestra realizada na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ),em 04 de abril de 2013, no painel Poltica de Drogas: Mudanas de Paradigmas, evento

    promovido pela Law Enforcement Against Prohibition (LEAP Brasil).** Mestre (UFSC) e Doutor em Direito (UFPR). Autor, dentre outros, de A PolticaCriminal de Drogas no Brasil (6. ed., So Paulo: Saraiva, 2013).

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    Inserido neste contexto, no final de dezembro de 2012, fui

    convidado pelo Conselho de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRPRS) para

    participar de uma mesa de debate intitulada Legalizao das Drogas, uma

    das atividades do seminrio Entre Garantia de Direito e Prticas Libertrias,

    promovido pelas Comisses de Polticas Pblica e de Direitos Humanos.

    2. A ideia central da minha fala foi a de expor os efeitos diretos

    da poltica criminal de drogas brasileira, visualizados nos ndices

    superlativos de encarceramento. A hiptese do discurso partiu de uma

    constatao normativa (plano do direito penal) e do seu imediato efeito

    emprico (plano da criminologia): a existncia de vazios e dobras de

    legalidade legitima o aprisionamento massivo da juventude vulnervel.

    Identifiquei como vazios (ou lacunas, na linguagem da teoria geral

    do direito) e dobras de legalidade as estruturas incriminadoras da Lei

    11.343/06 que permitem um amplo poder criminalizador s agncias da

    persecuo criminal, notadamente a agncia policial. Estruturas normativas

    abertas, contraditrias ou complexas que criam zonas dbias que so

    instantaneamente ocupadas pela lgica punitivista e encarceradora.

    2.1. A dobra de legalidade estaria associada a um excesso

    normativo: a previso (ou proliferao) de condutas idnticas nos dois tipos

    penais que estruturam e edificam a poltica criminal de drogas proibio das

    condutas facilitadoras do consumo (art. 28, caput, da Lei 11.343/06) e

    incriminao do comrcio (art. 33, caput, da Lei 11.343/06). No quadro, em

    destaque e numeradas, as condutas tpicas compartilhadas por ambos os

    tipos penais.

    Quem [1] adquirir, [2] guardar, [3] tiver

    em depsito, [4] transportar ou [5] trouxer

    consigo, para consumo pessoal, drogas

    sem autorizao ou em desacordo com

    determinao legal ou regulamentar ser

    submetido s seguintes penas: I

    advertncia sobre os efeitos das drogas; II

    prestao de servios comunidade; III

    medida educativa de comparecimento aprograma ou curso educativo. (art. 28,

    Importar, exportar, remeter, preparar,

    produzir, fabricar, [1] adquirir, vender, expor

    venda, oferecer, [3] ter em depsito, [4]

    transportar, [5] trazer consigo, [2]

    guardar, prescrever, ministrar, entregar a

    consumo ou fornecer drogas, ainda que

    gratuitamente, sem autorizao ou em

    desacordo com determinao legal ou

    regulamentar: pena recluso de 5 (cinco) a15 (quinze) anos e pagamento de 500

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    caput, da Lei 11.343/06) (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.(art. 33, caput, da Lei 11.343/06)

    A observao inicial a de que cinco condutas objetivas (i.e.,

    empiricamente observveis) idnticas (adquirir, guardar, ter em depsito,transportar e trazer consigo) impem consequncias jurdicas radicalmente

    diversas: o enquadramento no art. 28 da Lei de Drogas submete o infrator s

    penas restritivas de direito (admoestao verbal, prestao de servios e

    medida educativa); a imputao do art. 33 da Lei 11.343/06 impe regime

    carcerrio com pena privativa de liberdade varivel entre 5 (cinco) e 15

    (quinze) anos.

    possvel afirmar, inclusive, que estas duas figuras normativas traduzidas pelo senso comum como porte e trfico de drogas estabelecem

    as consequncias jurdicas mais e menos severas previstas no ordenamento

    penal brasileiro. A nova Lei de Drogas vedou qualquer possibilidade de priso

    (provisria ou definitiva) ao sujeito processado porporte de drogas para

    consumo. Alis, a proibio da deteno, disciplinada no art. 48, 1o, 2o e

    3o, uma regra indita no ordenamento nacional, aplicvel exclusivamente

    ao consumidor de drogas. A vedao de qualquer forma de regime carcerrio

    e a previso autnoma de pena restritiva de direito no preceito secundrio do

    tipo penal permitem concluir que a incriminao do porte para consumo

    pessoal configura o tratamento jurdico mais brando previsto em toda a

    legislao penal brasileira.

    Por outro lado, aos casos de comrcio de drogas, o legislador

    estabeleceu o regime penal mais rigoroso possvel, no apenas pela

    quantidade de pena aplicvel note-se, p. ex., que a pena prevista para o

    trfico varia entre 5 e 15 anos de recluso enquanto a pena cominada ao

    estupro modulada entre 6 e 10 anos de recluso (art. 213, caput, do Cdigo

    Penal) e a do homicdio simples entre 6 e 20 anos de recluso (art. 121,

    caput, do Cdigo Penal) , mas, sobretudo, pela sua equiparao

    constitucional aos crimes hediondos. Como se sabe, o status hediondo

    impe um regime jurdico diferenciado no processo de instruo (priso

    preventiva, fiana) e no de execuo penal (regime inicial de cumprimento de

    pena, progresso de regime, livramento condicional, indulto).

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    2.2. O primeiro vazio de legalidade que procurei demonstrar foi o

    estabelecido pelo dispositivo que pretende criar parmetros para identificar

    quais as condutas (adquirir, guardar, ter em depsito, transportar ou trazer

    consigo) que se destinam ao consumo pessoal. Segundo o art. 28, 2 da

    Lei de Drogas, para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal,

    o juiz atender natureza e quantidade da substncia apreendida, ao local

    e s condies em que se desenvolveu a ao, s circunstncias sociais e

    pessoais, bem como conduta e aos antecedentes do agente.

    Embora o dispositivo seja destinado ao juiz, sabe-se que a

    primeira agncia de controle que habilitada ao exerccio criminalizador a

    policial. As guias normativas definem, pois, os critrios de interpretao dos

    agentes policiais e, posteriormente, judiciais. Logicamente, conforme a

    estrutura da persecuo criminal brasileira, o primeiro filtro sempre ser o

    policial, que ir identificar se o sujeito, p. ex., que traz consigo droga, realiza

    a conduta incriminada com intuito (elemento subjetivo especial do tipo) de

    consumo pessoal (art. 28) ou se porta com qualquer outro objetivo, que no

    implica necessariamente uma finalidade mercantil, tpica do que se conhece

    como trfico de entorpecentes (art. 33).

    No necessria uma consistente base criminolgica em

    perspectiva crtica para perceber que o dispositivo legal, ao invs de definir

    precisamente critrios de imputao, prolifera metarregras que se fundam em

    determinadas imagens e representaes sociais de quem so, onde vivem e

    onde circulam os traficantes e os consumidores. Os esteretipos do

    elemento suspeito ou da atitude suspeita, p. ex., traduzem importantes

    mecanismos de interpretao que, no cotidiano do exerccio do poder depolcia, criminalizam um grupo social vulnervel muito bem representado no

    sistema carcerrio: jovens pobres, em sua maioria negros, que vivem nas

    periferias dos grandes centros urbanos (neste sentido, Batista, 2003;

    Carvalho, 2013; Weigert, 2009; Mayora, 2011; Mayora, Garcia, Weigert &

    Carvalho, 2012).

    2.3. O segundo vazio de legalidade que identifiquei naquelemomento foi o relativo conduta de entregar a consumo ou fornecer drogas

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    ainda que gratuitamente, prevista no art. 33, caput, da Lei 11.343/06. Apesar

    de o 3 do art. 33 prever pena de 6 meses a 1 ano s situaes de

    consumo compartilhado oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de

    lucro, a pessoa do seu relacionamento, para juntos a consumirem , a

    hiptese narrada no caput introduz, como figura paritria ao trfico

    (internacional e domstico), uma conduta sem qualquer intuito de comrcio.

    Assim, se a entrega a consumo ou se o fornecimento da droga for destinado

    a uma pessoa que no seja do relacionamento do autor do fato ou, mesmo

    sendo do seu crculo, no tiver como objetivo o consumo conjunto, haver

    incidncia do crime equiparado aos hediondos.

    2.4. As aberturas (lacunas ou vazios de legalidade) e os excessos

    apresentados inegavelmente ativam a mquina persecutria, habilitando as

    agncias punitivas aos processos de criminalizao que, na atualidade,

    refletem o cenrio de hiperencarceramento. Os nmeros que so derivados

    desta poltica criminal blica (war on drugs), aqui compreendidos como

    custos diretos da criminalizao, no permitem outra concluso.

    Em uma anlise relativamente simples dos dados oficiais

    apresentados pelo Ministrio da Justia, possvel perceber que o aumento

    dos ndices de encarceramento por trfico de drogas, sobretudo do

    encarceramento feminino, em muito pode ser explicado por estes vazios e

    dobras de legalidade. Atualmente a populao carcerria nacional de

    549.577 (288,14 presos por 100.000 habitantes), 513.538 homens e 26.411

    mulheres; 133.946 pessoas esto aprisionadas em decorrncia da imputao

    do art. 33 da Lei de Drogas (116.768 homens e 17.178 mulheres), segundo

    as estatsticas do Departamento Penitencirio Nacional.Os efeitos imediatos (diretos) da poltica proibicionista

    (encarceramento massivo) podem ser resumidos nos seguintes dados

    (consolidao relativa ao primeiro semestre de 2012):

    (a) 24,37% da populao carcerria nacional foi condenada pelo

    art. 33 da Lei 11.343/06 em 2009 correspondia a 18,05%.

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    (b) 22,73% da populao carcerria masculina foi condenada

    pelo art. 33 da Lei 11.343/06 em 2009 correspondia a

    15,73%.

    (c) 65,04% da populao carcerria feminina foi condenada pelo

    art. 33 da Lei 11.343/06 em 2009 correspondia a 48,31%.

    (d) em comparao com o roubo qualificado, a prevalncia do

    encarceramento foi invertida em 2010: em 2007, o nmero de

    encarcerados pelo art. 33 da Lei de Drogas correspondia a

    17% e de presos pelo art. 157, 2o do Cdigo Penal, era de

    23%, ndices transpostos na mesma proporo, ou seja, em

    2010, 23% da populao carcerria derivava da imputao

    de trfico e 17% dos crimes patrimoniais violentos.

    (e) dos presos em flagrante no Rio de Janeiro e em Braslia, nos

    anos de 2008 e 2009, aos quais foram imputadas condutas

    previstas no art. 33 da Lei de Drogas, 55% eram primrios,

    60% estavam sozinhos e 94% estavam desarmados (Boiteux

    et al, 2009).

    Todavia estes efeitos diretos do proibicionismo ganham efetiva

    relevncia quando a assepsia dos nmeros transformada em biografia de

    pessoas de carne e osso que sofrem as consequncias da poltica de drogas.

    Somente quando concretizamos os problemas que percebemos os danos

    colaterais, para alm daqueles descritos burocraticamente nas estatsticas

    criminais (ndice numrico da criminalizao oficial).

    3. Aps a apresentao do material que havia preparado para oSemirio, foram abertos os debates. Dentre as inmeras questes

    pertinentes que foram colocadas, uma em particular chamou minha ateno.

    E confesso que, em um primeiro momento, pela sua aparente impropriedade.

    Um jovem universitrio que acompanhava os debates pediu a

    palavra e descreveu ao pblico que havia sido abordado em uma blitz policial

    na praia e que fora flagrado com uma quantidade pequena de maconha. Ele

    perguntou sem qualquer constrangimento, como enfrentar o problema, poishavia sido intimado para comparecer a uma audincia no Juizado Especial

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    Criminal. Mais: como seria possvel sustentar a inconstitucionalidade da

    proibio, tendo em vista os inmeros argumentos que eu havia apresentado

    na palestra.

    Os risos da plateia foram inevitveis. Sobretudo porque ficou claro

    para todos que o ouvinte estava fazendo uma consultajurdica.

    Aps alguns segundos de descontrao, porm, todos

    percebemos a pertinncia do questionamento e a angstia do jovem. Se

    fosse um pblico jurdico, fatalmente a resposta seria: procure um

    advogado.

    Logicamente a resposta tambm passava pela indicao de, antes

    de qualquer atitude, um profissional do direito. Todavia, e para alm de uma

    eventual tentativa de consulta particular, entendi necessrio readequar a

    questo e indagar ao jovem o que ele pretendia fazer diante daquela

    situao.

    Isto porque, no caso, desde o meu ponto de vista, a postura e a

    forma de enfrentamento do problema mudariam a abordagem jurdica a ser

    utilizada. A primeira alternativa seria a de procurar uma estratgia que

    reduzisse os danos pessoais causados por aquele processo de

    criminalizao. Neste sentido, uma das possibilidades seria a de comparecer

    audincia, aceitar a transao penal com o Ministrio Pblico, negociar

    algumas condies viveis de cumprimento do acordo para evitar o processo

    criminal e os seus efeitos p. ex., comparecimento em algumas sesses de

    grupos de auto-ajuda como narcticos annimos, proposta padro realizada

    pelo Ministrio Pblico gacho no caso de imputao de porte de drogas para

    consumo pessoal (sobre o tema, conferir Mayora, Garcia, Weigert &

    Carvalho, 2012).A segunda alternativa, porm, implicaria em uma posio de

    enfrentamento do proibicionismo. Expliquei ao jovem que o processo poderia

    ser utilizado como um manifesto e que, se levado s ltimas consequncias,

    seria um instrumento de guerrilha contra a poltica de guerra s drogas.

    Neste caso, a inconstitucionalidade da proibio de que um jovem adulto,

    consciente, se relacione voluntariamente com uma substncia que lhe d

    prazer, para alm dos possveis riscos do consumo, poderia ser utilizadacomo um argumento que imprimisse tenso ao proibicionismo. Assim, na

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    audincia, poderia negar a transao penal, afirmando que o Estado no

    possui legitimidade para ditar o que ele pode ou no consumir. Como referi, o

    processo seria transformado em um manifesto.

    No restam dvidas que inexigvel que todas as pessoas

    criminalizadas tenham esta postura. A propsito, tentar reduzir ao mximo os

    danos individuais causados pela criminalizao uma atitude totalmente

    legtima. Mas ingressar nesta trincheira e transformar um caso em um

    manifesto (um case jurdico) uma alternativa que inmeros militantes do

    movimento antiproibicionista esto adotando, mesmo cientes dos eventuais

    custos derivados da criminalizao.

    4. Com base nestas duas perspectivas gostaria de narrar algumas

    experincias da trincheira, algumas histrias que acompanhei de perto,

    atuando como advogado pro bono em Porto Alegre, tanto na defesa de

    pessoas sem qualquer envolvimento com os movimentos antiproibicionistas e

    que procuravam apenas minimizar os problemas derivados da criminalizao,

    quanto na atuao poltica junto aos coletivos militantes contrrios

    criminalizao. Em ambos os casos, porm, a diretriz que orientou o trabalho

    foi a de produzir defesas de ruptura expresso utilizada pelo advogado

    francs Jacques Vergs para descrever o seu estilo de atuao, nas dcadas

    de 50 e 60, na defesa dos militantes da Frente de Libertao Nacional pela

    independncia da Arglia, ou seja, atuar de forma a expor incisivamente os

    danos do proibicionismo e o papel de legitimao e de manuteno que as

    agncias penais exercem em relao poltica de guerra s drogas, sem

    postular qualquer piedade ou clemncia do Poder Judicirio.

    4.1. O primeiro caso em que me senti profundamente envolvido e

    que possibilitou uma percepo clara da perversidade da poltica

    proibicionista foi o de Marco Antnio.

    Marco Antnio, um jovem de classe mdia de Porto Alegre, foi

    preso em flagrante em 14 de janeiro de 2003, ainda sob o regime da Lei

    6.368/76, pela posse de 6,30 gramas de cannabis sativa e R$ 8,05.

    Conforme narrou o Ministrio Pblico na denncia, Marco Antnio foi detidono parque da Redeno, em um domingo, por volta das 21 horas, ocasio em

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    que teria oferecido droga a um casal que se encontrava no local. Segundo os

    depoimentos do casal e do denunciado, Marco Antnio estava sozinho,

    fumando maconha, quando foi abordado pela garota que teria pedido para

    consumir conjuntamente a droga. Sem hesitao, alcanou para a jovem,

    momento em que foi preso, pois o casal era formado por agentes da Polcia

    Civil.

    A denncia foi oferecida e recebida pela infrao ao art. 12 da Lei

    6.368/76 fornecer, ainda que gratuitamente, droga. O flagrante foi

    convertido em priso preventiva que perdurou durante toda a instruo

    processual e a fase de recurso. Marco Antnio foi condenado a pena de 4

    anos de recluso, em regime integralmente fechado. Na sentena, o julgador

    registrou a impossibilidade de o ru apelar em liberdade em razo da

    equiparao do delito de trfico aos de natureza hedionda.

    Alm da conduta de fornecer droga a terceiro, confirmada no

    interrogatrio do acusado, outros elementos circunstanciais fundamentaram a

    condenao, notadamente para afastar a alegao de que o porte de droga

    destinava-se ao consumo pessoal, dos quais destacam-se: (a) o local

    frequentado pelo ru o parque da Redeno, notadamente aos domingos,

    um conhecido local de consumo e de comrcio de droga em Porto Alegre; e

    (b) as circunstncias do fato, pois os valores que Marco Antnio possua (R$

    8,05) estavam dispostos em vrias cdulas, o que indiciaria atividade

    mercantil.

    No julgamento da apelao, a 1a Cmara Criminal do Tribunal de

    Justia do Rio Grande do Sul votou, por maioria, pelo improvimento do

    recurso interposto pela Defensoria Pblica em nome de Marco Antnio. Com

    base no voto divergente do Desembargador vogal que entendeu (a) serduvidosa a prova e (b) ser desproporcional a imputao de crime anlogo ao

    do trfico para o fornecimento gratuito de droga, e, consequentemente,

    desclassificou a conduta para o delito para o art. 16 da Lei 6.368/76, fixando

    pena em 8 meses de deteno , os defensores pblicos ingressaram com

    embargos infringentes. As preliminares, notadamente a do flagrante

    preparado, foram afastadas unanimidade.

    No intervalo entre a interposio e o julgamento dos Embargos, afamlia de Marco Antnio, em decorrncia de vnculos antigos de amizade,

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    entrou em contato para que eu apresentasse memoriais e sustentasse o

    recurso no Grupo. No dia da sesso, em 1o de outubro de 2004, os embargos

    foram acolhidos pela diferena de um voto, sendo desclassificada a conduta

    para o art. 16 da antiga Lei de Drogas (TJRS, Embargos Infringentes

    70008836132, 1o Grupo Criminal, Rel. Des. Marcel Hoppe, j. 01/10/04). A

    questo que sensibilizou parte dos julgadores foi o histrico de dependncia

    que Marco Antnio apresentava, destacados amplamente pela defesa desde

    a instruo.

    Importante ressaltar, neste caso, o mrito integral da Defensoria

    Pblica, na instruo probatria e na fase recursal. Minha participao foi

    acidental e, apesar de singela, foi suficiente para experimentar a grave e

    direta consequncia da poltica proibicionista: a ampliao dos horizontes de

    punitividade. Marco Antnio ficou preso provisoriamente 1 ano, 9 meses e 13

    dias por fora dos critrios dbios de criminalizao que, em um ambiente

    punitivista, acabam sempre otimizando o encarceramento.

    4.2. O segundo caso que gostaria de destacar relativo a um dano

    secundrio provocado pela poltica de guerra s drogas e que pode ser

    caracterizado como uma varivel reflexa do processo de criminalizao que

    atinge o movimento antiproibicionista.

    Desde h muito tempo apoio os coletivos antiproibicionistas,

    sobretudo os sediados em Porto Alegre. Juntos obtivemos algumas vitrias

    bastante significativas como, p. ex., ter conseguido autorizao judicial para a

    realizao das Marchas da Maconha. Em maio de 2008, em nome do

    coletivo Princpio Ativo, junto com Mariana Weigert, ingressei com um

    Habeas Corpus (coletivo) preventivo com o objetivo de assegurar arealizao da manifestao em Porto Alegre. Na ao constitucional,

    interposta contra o Comandante da Brigada Militar do Rio Grande do Sul,

    demonstramos o risco de constrangimento, apresentando inmeras

    entrevistas do policial militar no sentido de que no permitiria a manifestao

    e que, se houvesse, os participantes seriam presos por apologia ao crime. A

    juza de planto concedeu a liminar (salvo conduto) e a Marcha da Maconha

    ocorreu pacificamente, sem qualquer conflito, diferente do que houve emoutros Estados em que o Poder Judicirio negou o direito livre exposio do

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    pensamento. Como de conhecimento geral, a matria foi julgada pelo

    Supremo Tribunal Federal, que garantiu o direito de livre manifestao,

    afirmando no haver crime de apologia em manifestaes contra leis injustas

    e pela descriminalizao de determinadas condutas neste sentido, STF,

    Tribunal Pleno, ADPF 187/DF, Rel. Min. Celso de Mello, j. 15.06.11.

    Aps esta deciso em 2008, nos anos seguintes, com o objetivo

    de assegurar a Marcha, foram impetrados novos Habeas Corpus, sempre

    com o deferimento do salvo conduto e a realizao das manifestaes.

    Importante dizer que em nenhuma ocasio houve qualquer conflito ou

    desrespeito s decises judiciais, as quais, de forma expressa, asseguravam

    a Marcha mas vedavam o consumo de droga ou a distribuio de sementes.

    No entanto, em maio de 2010, o magistrado de planto indeferiu o

    salvo-conduto ajuizado em nome do Princpio Ativo. A deciso foi publicada

    nos sites do coletivo (www.principioativo.org) e do Centro Acadmico Andr

    da Rocha, entidade representativa dos estudantes de direito da UFRGS

    (www.caar.ufrgs.br).

    Como era de se esperar, em face da frustrao na expectativa -

    notadamente pelos precedentes dos anos anteriores inmeras foram as

    manifestaes contrrias deciso do juiz plantonista. Algumas opinies

    bastante fortes, dentre as quais destaco dois comentrios do acadmico

    Pedro:

    Vejam s as ideias do Juiz conservador de 1 Grau

    que nos negou o livre direito de manifestao. Ser mal-

    informado? (sic) Acionista em alguma empresa de armamentos,

    de segurana privada ou de leitos psiquitricos? Ou seria maisum mero leitor de Zero-Hora (sic), com um adesivo crack-nem

    pensar no carro? Decidam a o naipe.

    A esto os fatos: este juiz de posse de sua caneta,

    decide que a) Se um policial achar que um cartaz verde

    apologia, isto justificaria descer porrada n@s man ifestantes;

    que b) o nome Marcha da Maconha faz apologia s drogas; e

    c) As drogas sumiriam automaticamente do planeta caso no

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    fossem toleradas. Perguntamos: ser que o juiz sentiu vontade

    de consumir psicoativos ao ler o nome Marcha da Maconha?

    Temos certeza que no, mas ns at toleramos sua pretenso

    aparente, de acabar com o problema contemporneo das

    drogas alimentando-se o trfico de armas.

    Ocorre que, ao tomar conhecimento das manifestaes, o

    magistrado representou criminalmente contra Pedro, imputando-lhe a prtica

    de delitos contra honra. De posse da representao, o Ministrio Pblico

    gacho determinou algumas diligncias investigatrias e denunciou Pedro e

    Leonardo pelas condutas previstas no art. 139 e art. 140, c/c art. 29 e art.

    141, incisos II e III, na forma do art. 69, todos do Cdigo Penal.

    Segundo a denncia, nos dias 15 e 22 de maio de 2010, os

    acusados, em conjuno de esforos e convergncia de vontades, teriam

    injuriado e difamado o julgador que havia indeferido o salvo-conduto para

    realizao da Marcha da Maconha. Interessante notar, para alm da

    importante discusso sobre a (a)tipicidade da crtica deciso judicial, o fato

    de que Leonardo foi denunciado exclusivamente por ser o responsvel pela

    manuteno do stio web do coletivo o acusado Leonardo, a seu turno,

    concorreu decisivamente para a prtica dos delitos, ao publicar no stio,

    www.principioativo.org, sob sua responsabilidade tcnica, informao de fl.

    30, os artigos Habeas Corpus da Marcha da Maconha e Refletindo os

    Bastidores da Jurisprudncia. (TJRS, Processo Criminal 001/2.10.0092147-

    0, 7a Vara Criminal, Denncia, fls. 02-06). Quem conhece minimamente a

    web e navega em sites e blogs opinativos, sabe que, em muitos espaos

    virtuais como ficou demonstrado ser o caso da pgina do Princpio Ativo

    , quem publica o comentrio o prprio autor, no havendo necessidade de

    intermediao do responsvel formal.

    De qualquer forma, juntamente com o colega Marcelo Mayora,

    interpus Habeas Corpus para trancamento da ao penal, alegando, em

    sntese, (a) a atipicidade da conduta de Pedro em razo do seu legtimo

    direito de crtica deciso judicial argumento reforado posteriormente no

    julgamento do mrito da ADPF da Marcha da Maconha pelo Supremo e(b) a insuficincia da denncia ao narrar a participao de Leonardo (art. 41

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    do Cdigo de Processo Penal), em face de no haver qualquer nexo de

    causalidade (art. 13, caput, cdigo Penal) entre a eventual ofensa honra e o

    fato de ser o responsvel pelo site. O Tribunal denegou, unanimidade, a

    ordem por entender que as teses demandavam instruo probatria (TJRS,

    Habeas Corpus 70047084280, 3 Cmara Criminal, Rel. Des. Francesco

    Conti, j. 09/02/12).

    Proposto o debate ao Superior Tribunal de Justia inclusive com

    a juntada de parecer elaborado pela representante da Law Enforcement

    Against Prohibition (LEAP) no Brasil, Maria Lucia Karam, em uma precisa

    anlise do direito de livre manifestao e de crtica , o caso encontra-se

    pendente de julgamento (STJ, Habeas Corpus 241948, 5a Turma, Rel. Min.

    Campos Marques).

    4.3. O terceiro caso de referncia ganhou notoriedade nacional em

    razo de o seu protagonista ter exposto publicamente o problema no

    documentrio Cortina de Fumaa (www.cortinadefumaca.com). Trata-se,

    em realidade, de mais um produto direto da equivocada poltica de guerra s

    drogas, sobretudo pelo fato de o proibicionismo, posto em forma de lei,

    reduzir as tragdias humanas aos folhetins fictcios (denncias criminais) que

    simplificam toda a complexidade da vida no irreal e abstrato cdigo crime-

    pena.

    Alexandre Thomaz, formado em Comunicao Social, atuava

    como publicitrio no Jornal Dirio de Canoas, quando, aos 35 anos de idade,

    apresentou problema de sade posteriormente diagnosticado como

    neoplasma maligno (linfoma) na regio do pescoo. Submeteu-se s

    intervenes cirrgicas pertinentes e iniciou tratamento, realizando inmerassesses de qumio e de radioterapia. Em razo da doena e dos efeitos

    colaterais do procedimento medicamentoso, Alexandre procurou tratamento

    psiquitrico, pois sentia que no tinha mais foras para suportar a luta contra

    a doena. O psiquiatra, na tentativa de minimizar os efeitos das drogas

    terpicas e de recuperar emocionalmente o paciente, receitou um

    psicofrmaco muito potente, denominado Tranquinol, cujos efeitos so

    profundas alteraes de conscincia, mais fortes, p. ex., que as geradas pelouso da maconha. Tranquinol um ansioltico, um tranquilizante de alta

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    potncia com profundo efeito de sedao e de induo do sono. Os efeitos

    podem durar at 12 horas e as consequncias colaterais so bastante

    relevantes: tontura e vertigem. Alm disso, a droga (Tranquinol) gera

    dependncia fsica e o usurio, em estado de abstinncia, pode sentir muita

    irritabilidade, insnia, tonturas, enjoo, cansao e fortes dores de cabea e

    musculares.

    Segundo os relatos de Alexandre Thomaz no documentrio

    Cortina de Fumaa e no Inqurito Policial no qual foi indiciado e,

    posteriormente, denunciado pelo delito previsto no art. 33, 1o, II, da Lei

    11.343/06 (TJRS, Apelao Criminal 70050818152, 2 Cmara Criminal, Rel.

    Des. Lizete Andreis Sebben), a droga receitada pelo psiquiatra produziu um

    efeito ainda mais desgastante, pois agregou nova dosagem qumica s

    outras substncias que estavam sendo ingeridas em decorrncia da rdio e

    da quimioterapia.

    No desgastante cenrio em que vivia, orientado por um

    oncologista, tomou conhecimento do uso medicinal da cannabis,

    notadamente dos resultados satisfatrios na diminuio dos efeitos colaterais

    do tratamento qumico. Paralelamente, tomou a deciso de mudar

    radicalmente o seu estilo de vida urbano e o foco profissional altamente

    competitivo determinado pelo mercado publicitrio em consultas na

    internet, livros etc, soube o declarante que precisava se alimentar melhor

    com alimentos naturais. Diante desta nova descoberta, adquiriu um pequeno

    stio de dois mil metros quadrados, onde pretendia fazer uma horta 100%

    orgnica. Que realmente fez a horta com plantao de temperos, ervas

    medicinais, rvores frutferas (...) e mais de outras trinta rvores diversas.

    (Polcia Civil do Rio Grande do Sul, Procedimento Policial 586/2009-100514,fl. 28)

    No mesmo perodo, soube que em diversos pases (Estados

    Unidos, Canad, Holanda, p. ex.) a cannabis sativa estava sendo prescrita

    para minimizao dos efeitos da rdio e da quimioterapia, principalmente os

    sintomas de enjoo, nusea, falta de apetite e dores crnicas, os quais no

    eram tratados satisfatoriamente pelos medicamentos tradicionais. Em Israel,

    p. ex., existem programas estatais de distribuio de maconha para casossemelhantes.

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    Neste cenrio, descobriu uma espcie de cannabis sativa com

    baixo teor de THC, indicada exatamente para o tratamento do cncer. Assim,

    toma a deciso de plantar para consumo pessoal. Importa as sementes da

    Holanda, cultiva em seu stio e (...) passou a consumir a planta em chs,

    colocava em receitas de bolos e, eventualmente, fumava. Notou melhoria em

    seu estado clnico com o alvio das dores. (Polcia Civil do Rio Grande do

    Sul, Procedimento Policial 586/2009-100514, fl. 29)

    A deciso de plantar para consumo pessoal, ou seja, de produzir o

    seu remdio que reside sozinho no stio. Mantinha sigilo em relao s

    plantas que cultivava. Nunca vendeu e nem doou a erva para ningum

    (Polcia Civil do Rio Grande do Sul, Procedimento Policial 586/2009-100514,

    fl. 29) decorreu, fundamentalmente, da opo consciente de no se

    envolver com o comrcio ilegal e de no se submeter ao consumo de drogas

    adulteradas vendidas no mercado varejista.

    Como seria possvel prever, aps uma denncia annima, no dia

    13 de dezembro de 2009, a Polcia Militar do Rio Grande do Sul, sem

    autorizao judicial, ingressou no stio de Alexandre e confiscou a plantao

    interessante destacar que em decorrncia de os responsveis pela invaso

    terem destrudo a residncia do ru, o Delegado que presidiu o Inqurito

    indiciou os Policiais Militares pelos delitos de abuso de autoridade (art. 3o, b,

    Lei 4.898/65) e de usurpao de funo pblica (art. 328, Cdigo Penal):

    poderiam os PMs terem trazido os fatos ao conhecimento da Autoridade

    Policial que, certamente, faria um trabalho legtimo e sem a truculncia de

    uma invaso a fora e ilegal casa do indiciado. Diante dos exageros,

    entendemos que os PMS tenham cometido excesso (...). (Polcia Civil do Rio

    Grande do Sul, Procedimento Policial 586/2009-100514, Relatrio Policial, fl.17).

    O Ministrio Pblico, ao receber o Inqurito, (a) denunciou

    Alexandre Thomaz como incurso no art. 33, 1, II, Lei 11.343/06, e (b)

    requereu, apesar das provas e do indiciamento, o arquivamento do caso em

    relao aos delitos de abuso de autoridade e usurpao de funo pblica.

    No entanto, em uma deciso relativamente surpreendente

    sobretudo porque a lgica proibicionista amplia os espaos de punitividade e,mesmo nos casos de baixa complexidade, potencializa a criminalizao

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    secundria, o magistrado de primeiro grau desclassificou a conduta para a

    hiptese do art. 28, 1, Lei 11.343/06, remetendo os autos aos Juizados

    Especiais Criminais, argumentando serem robustas as provas no sentido de

    o produto do plantio ter finalidade teraputica (consumo pessoal) e inexistir

    dados concretos acerca de eventual comrcio (TJRS, Processo Criminal

    008/2.11.0008041-7, Deciso Judicial, fls. 248-251v).

    O Ministrio Pblico ingressou com recurso de apelao, alegando

    que a finalidade (consumo pessoal ou comrcio) deveria ser comprovada na

    instruo probatria. Os autos foram remetidos ao Tribunal de Justia e o

    recurso aguarda pauta de julgamento na 2a Cmara Criminal.

    5. interessante notar, em todos os casos expostos, que a

    postura dos atores do sistema punitivo seguiu uma lgica similar e que pode

    ser afirmada como juridicamente adequada, se os atos de interpretao dos

    seus protagonistas forem reduzidos estrita legalidade (vigncia da lei

    penal). Os indiciamentos realizados pelos agentes da Polcia, as denncias

    produzidas pelos membros do Ministrio Pblico e as decises exaradas

    pelos juzes seguem um padro de ampliao dos nveis de punitividade

    sustentado por uma racionalidade paleopositivista (Ferrajoli, 1998; Carvalho,

    2008) que ignora as diretrizes constitucionais de validao dos dispositivos

    incriminadores e a complexidade do mundo da vida. Neste aspecto, a

    sucesso e o encadeamento de atos formais de incriminao atestam

    profundos dficits dogmticos e criminolgicos, se ambas as cincias

    (dogmtica jurdica e criminologia) forem pensadas desde uma perspectiva

    crtica.

    Pensar (primeiro) em imputaes pelo art. 33 da Lei 343/06,apesar de demonstrao da ausncia de finalidade mercantil das condutas,

    o trao mais evidente de como a lgica proibicionista expande os horizontes

    de encarceramento. Os casos de Marco Antnio e Alexandre Thomaz so

    experincias vivas da inverso do sentido da realidade gerada pelo

    proibicionismo. Dificilmente um leigo atribuiria quelas condutas o rtulo de

    trfico de entorpecentes. No entanto a normatividade produzida pela poltica

    de war on drugs torna esta espcie de atribuio de responsabilidadeabsolutamente natural.

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    No mesmo sentido, igualmente desproporcional, situao que,

    inclusive, beira insanidade, constatar (segundo) que um agente do Estado,

    membro do Ministrio Pblico, criminalize como trfico a conduta de uma

    pessoa que faz comprovado uso teraputico de cannabis e, no mesmo ato,

    considere normal o evidente abuso de autoridade empregado na ao

    policial que apreendeu a droga. A distoro de valores perceptvel na

    denncia contra Alexandre Thomaz um retrato bastante evidente dos

    efeitos do proibicionismo no campo da administrao da justia criminal:

    legitimao da violncia (policial), criminalizao do usurio, encarceramento

    massivo.

    Ademais, como foi possvel ver no processo movido contra Pedro

    e Leonardo e nos inmeros casos de represso Marcha da Maconha

    mesmo aps a deciso do Supremo Tribunal Federal , (terceiro) a poltica

    criminal de drogas na atualidade irradia efeitos, operando na criminalizao

    dos movimentos sociais antiproibicionistas.

    neste cenrio de plena vigncia de uma poltica criminal com

    derramamento de sangue, na precisa expresso de Nilo Batista (1998), que

    emergem aes antiproibicionistas, individuais e coletivas, de resistncia,

    com o objetivo exclusivo de conquistar a paz, o que significa, em ltima

    instncia, o fim da guerra s drogas e a implementao de polticas pblicas

    inteligentes para a preveno dos danos provocados pelo abuso e pela

    dependncia. Experincias, alis, que vm acontecendo de forma bastante

    satisfatria em inmeros pases ocidentais.

    Do contrrio, a manuteno deste paradigma blico de poltica

    criminal seguir produzindo histrias similares s de Marco Antnio, Pedro,

    Leonardo e Alexandre. Ocorre que, infelizmente, os casos relatados no sonarrativas picas e romnticas, mas histrias de vidas atravessadas por uma

    poltica criminal genocida e que legitimada, dia a dia, pelos atores do

    sistema penal.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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    Boiteux, Luciana et al. Trfico de Drogas e Constituio. Braslia: Secretaria

    de Assuntos Legislativos (Ministrio da Justia), 2009.Carvalho, Salo.A Poltica Criminal de Drogas no Brasil (Estudo Criminolgico

    e Dogmtico). 6. ed., So Paulo: Saraiva, 2013.Carvalho, Salo. Pena e Garantias. 3. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.Ferrajoli, Luigi. Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale. 5. ed.,

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    Weigert, Mariana de Assis Brasil. Uso de Drogas e Sistema Penal: Entre oProibicionismo e a Reduo de Danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.