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Interdisciplinaridade: riscos, desafios e encontros
As linguagens trabalhadas pela escola são, por natureza,
interdisciplinares com as demais áreas do currículo: é pela linguagem
verbal, visual, sonora, matemática, corporal ou outra que os conteúdos
curriculares se constituem em conhecimentos, isto é, significados a
serem formalizados por alguma linguagem, tornam-se conscientes de si
mesmo e deliberados. (BRASIL, 1999, p. 90).
As primeiras discussões sobre interdisciplinaridade chegaram ao Brasil ainda na
década de 1960. Ainda hoje, esse tema continua atual e vem sendo objeto de muitos
questionamentos, de muitas reflexões, de posicionamentos diversos. Para alguns,
interdisciplinaridade é apenas mais um modismo. Para outros, uma opção didático-
pedagógica, um caminho novo para se aprimorar o processo de ensino-aprendizagem,
para se conseguir uma efetiva construção do conhecimento por parte dos educandos,
de maneira mais global e abrangente.
Mas o que é mesmo interdisciplinaridade? Quais são as suas principais
características? É mais fácil ou mais difícil ser um educador interdisciplinar? Esse
educador corre mais riscos do que um professor tradicional, que não adota a
abordagem interdisciplinar? Outras questões: até que ponto nós educadores nos
posicionamos como parceiros ou como concorrentes uns dos outros? Em que medida
nós percebemos nossa necessidade de um aporte do conhecimento do outro e
buscamos romper com a solidão e com o isolacionismo tão comuns nos ambientes de
aprendizagem? Como se caracteriza uma sala de aula interdisciplinar? Essas e outras
questões precisam ser objeto de nossas reflexões na busca de encontrar algumas
respostas que nos auxiliem a elaborar formas de redimensionar essas mesmas
perguntas. Dentre outros, esse é um dos objetivos desse texto.
Para abrir essas reflexões, podemos constatar que, se por um lado a escola tem
tratado o conhecimento de modo fragmentado e descontextualizado, por outro, é
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importante observar que o processo de fragmentação do conhecimento não se origina
no interior da escola, mas é fruto do próprio desenvolvimento das ciências, com seus
sucessivos desmembramentos e especializações, sobretudo a partir da segunda metade
do século XIX.
Outro aspecto importante a ser destacado é a relação existente entre a crescente
fragmentação dos saberes, tanto na ciência quanto na escola, e o modo capitalista de
divisão social do trabalho. Essa relação adquiriu novos formatos a partir das teorias
taylorista e fordista, que, por sua vez, orientaram a organização do sistema produtivo
do último século e influenciaram de modo significativo a criação dos sistemas
educacionais baseados nos princípios da sequencialidade e da hierarquização,
conforme aponta Tedesco (1998).
Assim, em uma sociedade rigidamente estratificada e em meio a uma cultura
dividida em nichos de domínios científicos específicos, a escola foi solidificando um
modo de tratar o conhecimento como se ele fosse sempre estático, absoluto e acabado.
Mais que uma ferramenta didática, a organização disciplinar do ensino foi se tornando
um forte instrumento de manutenção da estrutura social vigente, através do reforço do
individualismo e da competitividade desmedida no interior da sala de aula.
Nessa escola, os professores não interagem, os estudantes competem entre si, os
diretores se distanciam da comunidade escolar e as famílias ficam permanentemente
fora dos muros escolares. Cada professor é dono de uma parte da cultura científica, e
os alunos recebem algumas fatias da realidade, que, mais tarde, eles tentarão, muitas
vezes inutilmente, reunir num todo orgânico e coerente, que oriente suas vidas e suas
relações com o mundo natural e social. O afastamento contínuo de todo e qualquer
sentido social da educação e as recentes mudanças no sistema produtivo são algumas
das causas da atual crise dos sistemas educacionais. Como Piaget já nos advertia há
sessenta anos, “o que se deseja é que o professor deixe de ser apenas um conferencista
e que estimule a pesquisa e o esforço, ao invés de se contentar com a transmissão de
soluções já prontas” (PIAGET, 2000, p. 15).
Na tentativa de buscar soluções para essa crise da educação, alguns autores têm
defendido sistematicamente a adoção de um modelo interdisciplinar na prática
pedagógica. E o que significa interdisciplinaridade? Para Heloísa Luck:
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[…] interdisciplinaridade é o processo que envolve a integração e engajamento de educadores, num trabalho conjunto, de interação de disciplinas do currículo escolar entre si e com a realidade, de modo a superar a fragmentação do ensino, objetivando a formação integral dos alunos, a fim de que possam exercer criticamente a cidadania, mediante uma visão global do mundo e serem capazes de enfrentar os problemas complexos, amplos e globais da realidade atual. (LUCK, 1994, p. 64).
Como se pode ver, a interdisciplinaridade é mais que um recurso metodológico,
portanto, deve ser entendida em suas dimensões epistemológica e pedagógica. Do
ponto de vista da epistemologia, a interdisciplinaridade visa desenvolver um novo
conceito de conhecimento, a partir do entendimento de que este é resultado de um
processo dinâmico de interações sociais e em constante transformação. Nesse sentido,
visa romper com a fragmentação dos saberes e desenvolver uma concepção unitária,
global e sistêmica das diferentes explicações e descrições da realidade.
Sob o ponto de vista pedagógico, a interdisciplinaridade facilita a construção de
relações intersubjetivas nos diferentes níveis da educação e permite que os sujeitos
enfrentem situações complexas, que exigem e possibilitem diferentes olhares e
interpretações. Além disso, a interdisciplinaridade é um conceito complementar ao da
contextualização, pois só se pode demonstrar as inter-relações entre diferentes saberes
se forem considerados no interior de seus contextos de origem e de aplicabilidade,
criando um novo significado para o trabalho educativo.
Pode-se afirmar que a interdisciplinaridade favorece a contextualização, ao
mesmo tempo em que nela se nutre. Oportuniza a articulação de diferentes contextos
disciplinares a contextos advindos de várias realidades: a realidade dos vários
educadores, a realidade dos diversos alunos, a realidade da própria escola e da
comunidade onde se localiza o projeto que trata da situação-problema ou do tema a ser
objeto da investigação. Assim, multiplicam-se os olhares, articulam-se disciplinas,
pessoas, saberes e diferentes contextos.
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Essa multiplicidade de visões pode ser um campo fértil para favorecer a
construção de competências. Por isso, o
caminho interdisciplinar oferece muitas
contribuições para a mobilização de
conhecimentos, de atitudes e de valores que
servirão para o amadurecimento dos
educandos. Nesse sentido, a abordagem
didático-pedagógica interdisciplinar
favorece a construção de uma gama de
competências mais abrangentes por parte do
aluno do que os procedimentos de uma
pedagogia tradicional.
A concorrência de várias disciplinas
irá contribuir para a mobilização de
diferentes habilidades, enfoques, saberes e ajudará na ampliação do leque de
competências por parte do aprendiz. Esse aprendiz será levado a considerar dimensões
diferenciadas e terá o seu processo de construção do conhecimento enriquecido por
essa diversidade de olhares sobre uma mesma questão. O nível de observação se
amplia e a visão se alarga para além das fronteiras disciplinares, promovendo-se uma
sinergia que multiplica as possibilidades de estabelecimento de novas relações
cognitivas, uma forma global de se
perceber o objeto de estudo. Há, nesse
processo, uma completude que integra,
que aproxima e que desfaz o
isolamento e a departamentalização do
saber.
A construção de competências
num ambiente de aprendizagem
interdisciplinar é facilitada, pois se dá
num ambiente de aprendizagem
especialmente organizado. Nesse
LEMBRE-SE!
Numa sala de aula interdisciplinar:
• A obrigação passa a ser satisfação, alegria de fazer;
• A arrogância é substituída pela humildade;
• A solidão é quebrada pela cooperação, pela solidariedade;
• O grupo homogêneo é trocado pelo heterogêneo, há diversidade;
• A reprodução é substituída pela produção do conhecimento (Adaptado de FAZENDA, 1994, p. 86).
LEMBRE-SE!
Uma sala de aula interdisciplinar precisa:
• Reorganizar o espaço, permitindo o trabalho cooperativo, em grupo;
• Redimensionar o tempo, com a criação de um calendário especial de atividades;
• Repensar disciplina e ordem, pois num espaço criativo é comum a quebra de rotina e a transgressão de regras corriqueiras;
• Repensar a avaliação numa perspectiva de autoavaliação e de verificação do alcance dos objetivos a partir do próprio grupo, ou seja, co-responsabilidade no processo avaliativo. (Adaptado de FAZENDA, 1994, p. 86).
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espaço, o trabalho pedagógico adquire uma nova dimensão, pois o estudante estará
imerso num ambiente mais rico e, portanto, mais favorável à descoberta de novas
possibilidades de construir o seu conhecimento. A interdisciplinaridade sinaliza para
uma ruptura com a estreiteza da visão única, reduzida à repetição, à memorização, à
transmissão de informações, e se renova em possibilidades maiores de invenção, de
descoberta e de plenitude no processo de aprendizagem e de ressignificação desse
processo. Desse modo, o estudante se defrontará com desafios que demandarão
dimensões mais amplas de mobilização de suas habilidades, valores e atitudes diante
da construção do conhecimento e de suas competências para intervir de maneira
efetiva como agente de transformação.
Assim, ao se optar por um caminho pedagógico interdisciplinar, favorecem-se e
ampliam-se as possibilidades do educando desenvolver o saber-fazer, o saber-
conhecer, o saber-conviver. Competências que conduzem ao saber-ser e, dessa
maneira, seguir vida afora aprendendo e ampliando a capacidade criativa e
investigativa do aprender a aprender.
É importante salientar que a interdisciplinaridade não dilui as disciplinas, mas
mantém as suas especificidades, as suas individualidades. Integra as disciplinas a
partir da compreensão das múltiplas causas ou dos diversos fatores que intervêm sobre
a realidade e trabalha todas as linguagens necessárias advindas das diversas
disciplinas para uma abordagem mais ricamente ampliada. A interdisciplinaridade,
portanto, não nega o conhecimento especializado. Ao contrário, valoriza-o e o integra
num conjunto que o redimensiona, que o ressignifica, servindo para dar consistência,
amplitude e, ao mesmo tempo, profundidade aos estudos e à investigação. Cada
disciplina passa a ser como uma espécie de ramo ou galho de uma mesma árvore,
alimentada pela raiz do mesmo problema, nutrindo a solução com a seiva do seu
conhecimento. O conhecimento floresce e frutifica com mais vigor, alimentado por
diferentes saberes integrados, articulados, solidários na busca da solução ou no
encontro da intervenção mais adequada para a situação-problema.
Nesse mesmo sentido, Pedro Demo afirma que a interdisciplinaridade vinga
melhor em grupo heterogêneo. E complementa:
Não se pode pretender que interdisciplinaridade conjugue a superficialidade do conhecimento, porquanto conhecimento mais
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profundo é sempre especializado. Combatemos o excesso de disciplinarização, porque estreita demais o olhar ao aprofundá-lo mais verticalmente. Mas mantém-se a necessidade de especialização, porque é o preço da profundidade. Neste sentido, a interdisciplinaridade não quer prejudicar a verticalização do conhecimento e, sim, mais alargar até onde possível sua horizontalização. É por isso que trabalho interdisciplinar é, mais propriamente, coisa de grupo. […]. Não interessa somar saberes similares, mas díspares, capazes de ver o que outros não vêem. Trata-se, pois, de somar profundidades, que poderiam iluminar a questão tanto mais. Dentro do grupo, espera-se que cada membro cumpra seu papel, ou seja, dê conta de sua especialização. O matemático espera que o sociólogo lhe traga o que a melhor sociologia possível teria a dizer e vice-versa. Faz pouco sentido um se meter a substituir o outro. Pois serão todos superficiais e banais. (DEMO, 2001, p. 135).
Tudo isso nos leva a perceber que a proposta da interdisciplinaridade é
estabelecer múltiplas ligações e conexões entre os saberes, que podem ser de
complementaridade, convergência, suplementação, ampliação. Ao promover
interconexões, a interdisciplinaridade serve como ponte entre os conhecimentos,
gerando sinergia entre disciplinas, educadores e alunos. Muito mais que encontro de
disciplinas, a interdisciplinaridade refere-se às parcerias que se estabelecem,
caracterizando-se, portanto, como uma relação dialógica entre seres pensantes, que têm
objetivos comuns em torno de uma investigação, de uma descoberta que será mais rica
quanto mais se abrir ao conjunto das reflexões, ao somatório das dúvidas, das
indagações, das buscas, e às amplas possibilidades de cooperação, que favorecem o
encontro de inteligências que se completam.
É importante também que se perceba que, para um trabalho interdisciplinar ser
desenvolvido em plenitude, deve-se buscar o envolvimento de todos desde a sua fase
inicial de concepção até o momento de sua avaliação. Esse processo de participação
permite que haja um aprofundamento coletivo em torno dos conhecimentos
investigados, possibilitando um amadurecimento advindo das diferentes contribuições
e dos diferentes seres que estão envolvidos nesse processo de busca.
Finalmente, podemos imaginar a interdisciplinaridade como uma rede, uma
imensa teia que se vai tecendo a partir de um problema, de um eixo integrador, sob o
comando de uma determinada disciplina. Essa disciplina vai se unindo a outras,
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ampliando os elos do saber com a contribuição das outras disciplinas e até mesmo de
outras áreas do conhecimento. Tece-se, então, uma rede através do comprometimento
das pessoas com a busca, com a descoberta; com a parceria na criação de novos saberes
para a transformação do mundo.
Portanto, a partir de uma compreensão ampliada de interdisciplinaridade, que
a enxerga para além de um mero encontro de disciplinas, pode-se afirmar que o mais
importante não é definir o conceito, mas compreender e refletir sobre atitudes, sobre
modos de ser e de perceber a postura de um educador interdisciplinar.
Pode-se mencionar um elenco de atitudes que caracteriza o educador que se
propõe a um trabalho interdisciplinar: humildade diante dos limites do saber próprio e
do próprio saber; espera diante do já estabelecido para que a dúvida apareça e o novo
germine; deslumbramento diante da possibilidade de superar desafios; respeito ao
olhar o velho como novo; cooperação e parceria para conduzir as trocas e os encontros,
sinalizando para uma ruptura com a solidão pedagógica.
Essas atitudes, que possibilitam a visão de si como educador interdisciplinar,
trazem uma nova dimensão a esse campo: um ingrediente que tempera o fazer
pedagógico, a paixão pela descoberta, pela investigação, pela criação do novo. A
paixão por aprender. E, mais que isso, a atitude de compartilhar essa paixão e fazê-la
crescer, contagiar e ser apropriada por todos os que se sentem parceiros nessa jornada
da aprendizagem interdisciplinar. Um jeito de se perceber como educador que se
enxerga no outro, de forma solidária, que pratica em plenitude uma pedagogia de
trocas, de diálogos, de encontros, mais de pessoas do que de disciplinas.
Os caminhos se abrem à frente, convidativos. Que tal enfrentar os desafios e os
“riscos” de exercitar, praticar e viver a interdisciplinaridade?
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© SESI. Projeto SESI - Curso Currículo Contextualizado. Natal: SESI, 2010.
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CASTRO, José de e BIELLA, Jaime. Interdisciplinaridade: riscos, desafios e encontros. Natal: SESI, 2010. Colaboração: Artemilson Alves de Lima, Gilson Gomes de Medeiros, Ilane Ferreira Cavalcante, Zilmar Rodrigues de Souza. Projeto SESI - Curso Currículo Contextualizado. Disponível em: <http:// www.sesi.webensino.com.br>.
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