06 - mecanismo de concentração e diluição urinária

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Capítulo 6 Mecanismo de Concentração e de Diluição Urinária Antonio José Barros Magaldi INTRODUÇÃO FORMAÇÃO DA MEDULA HIPERTÔNICA AÇÃO DO HORMÔNIO ANTIDIURÉTICO BALANÇO HÍDRICO INTRODUÇÃO O estudo do mecanismo de concentração e de diluição urinária constitui um dos capítulos mais fascinantes da fi- siologia renal. Os recentes avanços na metodologia de pes- quisa e as admiráveis descobertas acerca da secreção e do mecanismo de ação do hormônio antidiurético mostram como o rim, com um mínimo gasto de energia, consegue variar a osmolaridade da urina e a excreção de água de acordo com as necessidades do organismo. A eliminação de urina concentrada resulta da reabsor- ção de água no ducto coletor. Para que esta reabsorção aconteça, dois fatos devem ocorrer: 1.º) formação de me- dula hipertônica em relação ao fluido do ducto coletor e 2.º) permeabilidade do ducto coletor à água aumentada pelo hormônio antidiurético (HAD). Portanto, a análise do mecanismo de concentração e diluição urinária resume-se no estudo do processo pelo qual o rim acumula solutos no interstício medular durante os estados hidropênicos e o modo de ação do hormônio antidiurético. Pontos-chave: Condições para a reabsorção de água no ducto coletor medular Formação de uma medula hipertônica Ação do hormônio antidiurético SECREÇÃO DE HAD REGULAÇÃO DA INGESTA — MECANISMO DA SEDE BIBLIOGRAFIA SELECIONADA ENDEREÇO RELEVANTE NA INTERNET FORMAÇÃO DA MEDULA HIPERTÔNICA O estudo da medula renal de animais em estado de res- trição aquosa mostra que a hipertonicidade aí existente decorre, fundamentalmente, da acumulação de uréia e solutos, principalmente NaCl. O mecanismo pelo qual es- tes solutos se depositam no interstício medular foi genial- mente idealizado em 1942 por Werner e Kuhn, com a hi- pótese da existência de um sistema de contracorrente multiplicador nos ramos em “U” da alça de Henle. Este sistema produziria um aumento progressivo da osmolari- dade da medula renal do córtex em direção à papila, com pouco gasto de energia. Esse modelo foi baseado no siste- ma multiplicador de calor, utilizado na indústria, onde uma fonte constante de calor aquece o fluido em um pon- to na alça de um tubo em forma de “U”, promovendo um aumento progressivo da temperatura desse fluido, sem grande consumo de energia. Este tubo dobrado e justaposto um ao lado do outro faz com que exista um fluxo do mes- mo fluido em sentidos opostos proporcionando troca de calor contínua a partir do ponto que recebe o calor, forman- do um gradiente de temperatura (Fig. 6.1). Um sistema semelhante existe nos membros inferiores das aves pernal- tas que ficam com os pés mergulhados em águas de baixa temperatura, onde a artéria descendente fica justaposta às veias ascendentes, ajudando a aumentar gradualmente a temperatura do sangue que se dirige dos pés ao coração.

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Page 1: 06 - Mecanismo de concentração e diluição urinária

Capítulo

6Mecanismo de Concentração e de Diluição Urinária

Antonio José Barros Magaldi

INTRODUÇÃO

FORMAÇÃO DA MEDULA HIPERTÔNICA

AÇÃO DO HORMÔNIO ANTIDIURÉTICO

BALANÇO HÍDRICO

INTRODUÇÃO

O estudo do mecanismo de concentração e de diluiçãourinária constitui um dos capítulos mais fascinantes da fi-siologia renal. Os recentes avanços na metodologia de pes-quisa e as admiráveis descobertas acerca da secreção e domecanismo de ação do hormônio antidiurético mostramcomo o rim, com um mínimo gasto de energia, conseguevariar a osmolaridade da urina e a excreção de água deacordo com as necessidades do organismo.

A eliminação de urina concentrada resulta da reabsor-ção de água no ducto coletor. Para que esta reabsorçãoaconteça, dois fatos devem ocorrer: 1.º) formação de me-dula hipertônica em relação ao fluido do ducto coletor e2.º) permeabilidade do ducto coletor à água aumentadapelo hormônio antidiurético (HAD). Portanto, a análise domecanismo de concentração e diluição urinária resume-seno estudo do processo pelo qual o rim acumula solutos nointerstício medular durante os estados hidropênicos e omodo de ação do hormônio antidiurético.

Pontos-chave:

Condições para a reabsorção de água noducto coletor medular• Formação de uma medula hipertônica• Ação do hormônio antidiurético

SECREÇÃO DE HAD

REGULAÇÃO DA INGESTA — MECANISMO DA SEDE

BIBLIOGRAFIA SELECIONADA

ENDEREÇO RELEVANTE NA INTERNET

FORMAÇÃO DA MEDULAHIPERTÔNICA

O estudo da medula renal de animais em estado de res-trição aquosa mostra que a hipertonicidade aí existentedecorre, fundamentalmente, da acumulação de uréia esolutos, principalmente NaCl. O mecanismo pelo qual es-tes solutos se depositam no interstício medular foi genial-mente idealizado em 1942 por Werner e Kuhn, com a hi-pótese da existência de um sistema de contracorrentemultiplicador nos ramos em “U” da alça de Henle. Estesistema produziria um aumento progressivo da osmolari-dade da medula renal do córtex em direção à papila, compouco gasto de energia. Esse modelo foi baseado no siste-ma multiplicador de calor, utilizado na indústria, ondeuma fonte constante de calor aquece o fluido em um pon-to na alça de um tubo em forma de “U”, promovendo umaumento progressivo da temperatura desse fluido, semgrande consumo de energia. Este tubo dobrado e justapostoum ao lado do outro faz com que exista um fluxo do mes-mo fluido em sentidos opostos proporcionando troca decalor contínua a partir do ponto que recebe o calor, forman-do um gradiente de temperatura (Fig. 6.1). Um sistemasemelhante existe nos membros inferiores das aves pernal-tas que ficam com os pés mergulhados em águas de baixatemperatura, onde a artéria descendente fica justaposta àsveias ascendentes, ajudando a aumentar gradualmente atemperatura do sangue que se dirige dos pés ao coração.

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capítulo 6 59

No rim, este tubo dobrado corresponde às alças descenden-tes e ascendentes de Henle.

O sistema de contracorrente multiplicador inicialmen-te idealizado e aplicado à medula renal é apresentado naFig. 6.2. A energia inicial que movimentaria este sistemaseria dada pelo transporte ativo de NaCl da luz tubularpara o interstício medular na porção ascendente da alça deHenle. Este transporte de NaCl é que, aumentando a os-molaridade do interstício, promoveria a reabsorção deágua no ramo descendente da alça, com conseqüente au-mento progressivo da osmolaridade do seu fluido tubularem direção à papila. Este efeito inicial seria multiplicado eo gradiente osmótico então criado determinaria maior re-absorção de água no ducto coletor.

Alguns estudos experimentais que se seguiram à pro-posta do sistema de contracorrente multiplicador na me-dula renal foram compatíveis com a sua existência. Assim,observou-se que o fluido no início do túbulo distal é hipo-tônico (100 mOsm/kg H2O) em relação ao filtrado glome-rular (289 mOsm/kg H2O) e que está de acordo com a exis-tência de uma reabsorção ativa de NaCl, na ausência detransporte de água no ramo ascendente da alça de Henle.Observou-se, também, que o aumento da osmolaridade damedula externa em direção à papila é diretamente propor-cional ao comprimento da alça de Henle do animal emestudo. São semelhantes as osmolaridades dos fluidos co-lhidos dos vasa recta e da porção fina descendente da alçade Henle.

A maioria das proposições para explicar o mecanismode contracorrente foram elucidadas através de estudos efe-

tuados com a técnica de microperfusão em porções isola-das do néfron de coelhos, que permitiram a análise diretadas características de permeabilidade e de transporte nossegmentos medulares do néfron. Os estudos funcionais daporção espessa da alça de Henle, tanto da região medularcomo da região cortical (segmento diluidor), mostraram sereles impermeáveis à água, mesmo na presença de hormô-nio antidiurético.

Neste segmento, na membrana luminal ocorre uma re-absorção de Na acoplado a Cl e K em um co-transporteNa:K:2Cl, secundariamente ativo ao transporte de Na ati-vo pela Na-K-ATPase na membrana basolateral. Este trans-porte ativo propicia um gradiente eletroquímico favorávelà entrada de Na na célula. A passagem de Na da luz tubu-lar para o interstício, retirando Na do fluido filtrado e adi-cionando-o ao interstício, constitui o chamado efeito uni-Fig. 6.1 Princípio da contracorrente. Tanto no sistema reto A quan-

to no sistema dobrado B a fonte de calor produz a mesma quan-tidade de calorias; no entanto, no sistema B ocorre a formação deum gradiente de temperatura, em decorrência da conformaçãode dois tubos justapostos com fluxos inversos. Este modelo ex-plica a formação de gradiente de osmolaridade que ocorre namedula renal com a conformação idêntica à existente na alça deHenle. Adaptado de Berliner, R.W., Lewinsky, N.G., Davidson,D.G., Eden, M. Am. J. Med., 24:730-744, 1958.

Fontede

Calor

Fluido30°

40°

40°

A40° Fonte de Calor

30°

Fluido30°

30°

60°

90°

40°

70°

100°

B

Fig. 6.2 Mecanismo de concentração urinária. 1) Transporte ativode cloreto de sódio no ramo ascendente espesso da alça de Henle— efeito inicial — aumentando a quantidade de sódio no interstício.2) Reabsorção de água no ducto coletor cortical, medular externoe interno, na presença de HAD ocasionado pelo gradiente osmóti-co resultante do transporte ativo de NaCl na porção espessa ascen-dente. 3) Reabsorção de água na alça descendente de Henle frenteao gradiente osmótico entre a luz tubular e a medula. 4) Adição deuréia à medula interna na presença de HAD. 5) Efluxo de NaCl daporção fina ascendente, na ausência de transporte de água, aumen-tando a osmolaridade medular e multiplicando o efeito inicial. 6)Aumento da reabsorção de água no ducto coletor medular inter-no, decorrente do aumento da tonicidade intersticial dado pelo sis-tema multiplicador. 7) Reabsorção de solutos e de água pelos vasarecta, fazendo a recirculação de uréia e mantendo a medula hiper-tônica.

7

MEDULAEXTERNA

VASARECTA

7

3

CÓRTEX

MEDULAINTERNA

NaCl

H2O

Uréia

NaCl

7

Uréia

UréiaH2ONaCl

H2O

H2O

H2O

H2O

NaCl

NaCl

NaCl

Uréia

NaCl

H2O

3

Uréia

NaCl

H2O

Uréia

NaCl

NaCl

NaCl

NaCl

NaCl

Uréia

NaCl

H2O

Uréia

6

4

5Uréia

NaCl

UréiaHAD

H2O

4

H2O

2H2O

6

5 2

UréiaH2O

6NaCl

HAD

HAD Uréia

HAD

H2O

H2O

HAD

2

1

NaCl

NaCl

HADUréia

H2O

H2O

HAD

1 2

NaCl

Uréia

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60 Mecanismo de Concentração e de Diluição Urinária

tário do mecanismo de contracorrente multiplicador. Esteco-transportador Na:K:2Cl já foi clonado e seqüenciadopela técnica de biologia molecular. A porção espessa ascen-dente da alça de Henle é uma região importante para omecanismo de concentração urinária e é o local de ação doschamados diuréticos de alça, como a furosemida e a bu-metanida, que se ligando ao sítio do íon Cl� promovem ainibição do co-transportador Na:K:2Cl.

Os ramos finos da alça de Henle, tanto ascendentescomo descendentes, são formados por um epitélio simplesescamoso, que repousa sobre uma membrana basal, e ocitoplasma de suas células é escasso em mitocôndrias. Estepadrão morfológico é de um epitélio favorável ao equilí-brio osmótico entre o lúmen e o interstício, e não a umtransporte ativo com gasto de energia.

O estudo funcional da porção fina descendente da alçade Henle mostra que este ramo é altamente permeável àágua e pouco permeável ao sódio e a outros solutos, suge-rindo que o equilíbrio osmótico com o interstício medularocorra à custa da reabsorção de água, com conseqüenteaumento da concentração de cloreto de sódio, uréia e ou-tros solutos no fluido tubular, em direção à papila renal,como está apresentado na Fig. 6.2.

A porção fina ascendente da alça de Henle apresentacaracterísticas opostas às descritas acima para o ramo des-cendente. Observa-se que a porção ascendente é imperme-ável à água e é altamente permeável a Na� e Cl�, sendo queo movimento transtubular de cloretos deve ocorrer por ummecanismo passivo facilitado.

Nestas condições, a mudança de características de per-meabilidade à água e solutos nos ramos finos descenden-tes e ascendentes permite que o acúmulo de NaCl queocorre na porção descendente da alça de Henle por reab-sorção de água se desfaça, pelo menos em parte, na por-ção fina ascendente, como ilustra a Fig. 6.2. No entanto,neste segmento ascendente o equilíbrio osmótico com ointerstício medular dá-se à custa do efluxo de NaCl rápi-do e influxo de uréia mais lento, o que resulta na forma-ção de um fluido tubular com menor concentração deNaCl que o interstício. Este fluido, agora atingindo a por-ção espessa ascendente onde ocorre grande reabsorção deNaCl ativamente, ficará cada vez mais hipotônico, sendoque a sua osmolaridade pode atingir valores inferiores a100 mOsm/kg H2O no início do túbulo distal. Assim, poreste fato, este segmento é chamado de segmento diluidor.Vê-se, portanto, que apenas as características opostas depermeabilidade dos ramos finos, descendentes e ascen-dentes, proporcionam um meio genial de adicionar solu-to (NaCl) ao nível da região medular interna e de formarum fluido hipotônico à custa, unicamente, da reabsorçãoativa de NaCl da região medular externa, como estáesquematizado na Fig. 6.2.

Esses dados sobre as características de transporte deNa�, Cl�, H2O e uréia nas várias porções da alça de Henlesão capazes de explicar, pelo menos qualitativamente, o

acúmulo de NaCl e uréia no interstício papilar. Entretan-to, como descrevemos no início, a hipertonicidade medu-lar se faz à custa de NaCl e uréia e, por conseguinte, preci-samos explicar como se forma o gradiente túbulo-intersti-cial desse soluto (uréia). Como veremos a seguir, ele é tam-bém o resultado de diferenças nas características de per-meabilidade dos vários segmentos medulares e principal-mente das várias porções do túbulo coletor.

O papel importante da uréia no mecanismo de concen-tração urinária já era conhecido de longa data pelas obser-vações de que animais submetidos a dieta pobre em pro-teínas tinham menor capacidade de formar urina hipertô-nica. Contudo, foi só recentemente que as investigaçõesacerca do transporte de solutos nos vários segmentos donéfron trouxeram a explicação para esse fato.

O mecanismo de conservação de uréia no rim é dado porvias de recirculação indicadas na Fig. 6.3. A uréia filtradapelo glomérulo e não reabsorvida pelo túbulo contornadoproximal junta-se à secretada pela pars recta antes de atin-gir a porção fina descendente da alça de Henle. Nesse seg-mento, o equilíbrio osmótico com o interstício se faz prin-cipalmente à custa da saída de água e aumento da concen-tração de solutos do fluido tubular. No rato a permeabili-dade à uréia aí existente permite que, em parte, ocorra in-fluxo desse soluto, elevando ainda mais a concentraçãoluminal. A seguir, no ramo fino ascendente, relativamen-te permeável à uréia, impermeável à água e altamente per-meável a Na� e Cl�, o equilíbrio osmótico com o interstí-cio se faz à custa de saída rápida de NaCl e entrada lentade uréia. Vemos, portanto, que na porção fina ascendenteda alça de Henle ocorre adição de uréia ao fluido tubular.Por outro lado, no ramo espesso ascendente, túbulo distale túbulo coletor cortical não temos nenhum movimento

Fig. 6.3 Recirculação da uréia. Mecanismo pelo qual alta concen-tração de uréia é mantida na medula (1) à custa da sua difusãoda luz do ducto coletor medular interno para a papila e reabsor-ção ao nível da porção fina ascendente da alça de Henle (etapas 1a 7) e (2) à custa da sua retirada do interstício pelos vasa recta,sendo novamente filtrada e lançada na luz tubular. Adaptado deValtin, H. e Schafer, J.A. Renal Function, Little, Brown and Com-pany, 1995.

zonaexterna

Rotas de Recirculaçãoda Uréia

Néfrons Corticais eJustamedulares

MedulaExterna

zonainterna

MedulaInterna

� �

��

Córtex

Page 4: 06 - Mecanismo de concentração e diluição urinária

capítulo 6 61

transtubular de uréia. No túbulo coletor distal, a reabsor-ção de água em presença de hormônio antidiurético deter-mina elevação na concentração luminal de uréia até atin-gir o coletor papilar. Nesta porção final do coletor existepermeabilidade transtubular à uréia que permite que estesoluto mais concentrado na luz tubular eflua para o inters-tício papilar. Esta uréia adicionada ao interstício medularpromoverá maior reabsorção de água no ramo fino descen-dente da alça de Henle, acionando, ainda mais, o mecanis-mo de contracorrente multiplicador passivo. O equilíbrioosmótico medular é conseguido pela circulação sanguínealenta e pela entrada de uréia, novamente, para a alça finaascendente, conservando-a dentro do néfron.

Segundo alguns autores, o epitélio que separa a papilarenal da pelve é constituído por células relativamente per-meáveis à uréia, que permitiriam que uma parte desse so-luto eliminado pela urina se retrodifunda para a papilarenal, constituindo outro mecanismo para conservação desoluto dentro da medula renal.

No processo de formação da medula hipertônica os vasarecta possuem um papel importante, pois deve existir umatroca intensa entre o interstício medular e a luz dos vasosque penetram neste interstício para que se mantenha o gra-diente de concentração medular (Fig. 6.4). Cerca de 5% dofluxo renal plasmático são dirigidos para os vasos da me-dula externa e interna, e como o fluxo plasmático renal é alto,o fluxo plasmático nos vasa recta descendente e ascendenteé cerca de 10 vezes mais intenso que o fluxo do fluido tubu-

lar no começo do ducto coletor medular externo, isto é, en-tra 10 vezes mais plasma que fluido tubular numa mesmaregião da medula. A alta permeabilidade à água e a solutosde suas paredes, associada à sua disposição em forma dehairpin, como a alça de Henle, permite que seja possível aremoção de água e solutos do interstício medular tambématravés de um mecanismo de troca em contracorrente semalterar a formação do gradiente de concentração medular eauxiliando diretamente o mecanismo de contracorrentemultiplicador que ocorre na luz tubular. Trabalhos publi-cados recentemente evidenciaram nestes vasos a existênciade receptores do tipo V1 e V2 da vasopressina, mostrandoque este hormônio também pode regular o fluxo medular— a estimulação do receptor V1 diminui o fluxo medular,enquanto a estimulação do receptor V2 aumentaria este flu-xo — e evidenciaram também canais de água do tipoaquaporin 1 nos vasa recta descendentes.

Vemos, portanto, que esquematicamente a formação deuma medula hipertônica consta de duas partes: A) umarelacionada com as diferenças de permeabilidade a NaCle água nos ramos finos da alça de Henle, que leva à adiçãode NaCl ao interstício papilar a partir da reabsorção deNaCl na porção espessa ascendente, e B) outra que deter-mina a adição de uréia ao interstício papilar, resultante dasdiferenças de permeabilidade à uréia entre o túbulo cole-tor cortical e o ducto coletor papilar. Esta uréia adiciona-da à papila constitui uma segunda força que promove areabsorção de água no ramo fino descendente da alça deHenle, acelerando o mecanismo de contracorrentemultiplicador passivo aí localizado. Estas idéias aqui apre-sentadas com base nos estudos experimentais constituemo modelo de contracorrente multiplicador atualmente acei-to e que é esquematizado na Fig. 6.2.

Pontos-chave:

• Heterogeneidade tubular• Efeito unitário na porção espessa da alça de

Henle• Sistema de contracorrente multiplicador• Recirculação da uréia

AÇÃO DO HORMÔNIOANTIDIURÉTICO

O conhecimento dos eventos celulares envolvidos na açãodo hormônio antidiurético (HAD) expandiu-se considera-velmente nos últimos anos. O HAD é um hormônio capazde induzir alterações estruturais na parede luminal das cé-lulas principais, determinando um aumento da permeabi-lidade à água e à uréia. O HAD, que evoca a resposta celu-lar, é o “primeiro mensageiro”, e o seu efeito intracelular é

Fig. 6.4 Contracorrente nos vasa recta. Os números referem-se àsosmolaridades (mOsm/kg) no sangue e no fluido intersticial.Note-se que estes vasos propiciam a retirada da medula de partedos solutos (principalmente NaCl e uréia) e da água, ajudandona formação e na manutenção da medula hipertônica. Adaptadode Berliner, R.W., Lewinsky, N.G., Davidson, D.G. and Eden,M.A. Am. J. Med., 24:730-744, 1958.

Troca em contracorrente nos vasa recta

400

600

450

750

1.200

1.050

900

1.025

875

725

575

425

350

291

1.200

1.200

1.050

900

750

600

450

400

325

1.200

1.075

925

775

625

475Medula Externa

Córtex

Medula Interna

Papila

Difusão passiva de solutosDifusão passiva de água

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62 Mecanismo de Concentração e de Diluição Urinária

mediado por um “segundo mensageiro”, que é produzidocomo resultado da interação do hormônio com o seu recep-tor específico. Os dois mais importantes sistemas de “segun-dos mensageiros” conhecidos são os sistemas da adenosinamonofosfato cíclico (AMPc) e o do Ca��. O HAD exerce seuefeito hormonal estimulando dois tipos de receptores, cha-mados de V1 e V2, sendo que respectivamente utilizam oCa�� e o AMPc como “segundos mensageiros”. Estes recep-tores estão localizados na membrana basolateral da célulaprincipal e quando estimulados determinam alterações bio-químicas intracelulares que, por sua vez, acarretam modifi-cações na membrana luminal modulando ou regulando apermeabilidade à água, como mostra a Fig. 6.5.

O receptor V2 do HAD é uma estrutura inserida namembrana e que contém sete domínios intramembranosos,quatro extracelulares e quatro intracelulares formandoquatro alças intracelulares. O receptor, uma vez estimula-do pela inserção do HAD no seu locus específico, promo-ve o estímulo do complexo proteína G, que contém trêsunidades: unidades �, � e �, formando um complexoheterotrimérico. Existe uma família de proteínas G, e aproteína G acoplada ao receptor V2 é do grupo s. Este com-plexo de proteína-Gs, através da unidade �, é capaz de seligar na guanidina trifosfato (GTP) formando a Gs�-GTP,que, por sua vez, auxiliada pelas unidades ��, vão estimu-lar uma enzima chamada de adenilciclase (AC). A AC é

uma estrutura complexa que também está inserida namembrana celular e contém doze domínios intramembra-nosos divididos em dois grupos de seis domínios, mais oitodomínios extracelulares e oito domínios intracelulares. AAC que atua na cascata do HAD é a de número IV e per-tence a uma família de nove componentes. A ação da AC écatalisar a passagem da adenosina trifosfato (ATP) paraadenosina monofosfato cíclico (AMPc, 3',5',AMPc), já re-ferida acima como sendo o segundo mensageiro do HAD.A quantidade de AMPc intracelular é regulada pela fosfo-diesterase, que é uma enzima que o transforma em umaforma inativa, o 3' AMPc. Prosseguindo na ativação dacascata do HAD, o AMPc vai estimular a proteinoquinaseA (PKA), que é uma proteína multimérica que contém nasua forma inativa duas subunidades catalíticas e duas su-bunidades reguladoras. A unidade reguladora é compos-ta por quatro tipos de proteína (� I e II e � I e II), enquantoa unidade catalítica é composta por três tipos (�, � e �).Quando o AMPc se liga nas unidades reguladoras, estasse dissociam das unidades catalíticas, resultando na ativi-dade quinásica das subunidades catalíticas. A PKA vaientão fosforilar canais de água que se encontram inseridosna superfície de microvesículas livres do citoplasma. Pro-teínas dos microtúbulos (dineínas e dinactinas) e dos mi-crofilamentos, que são sistemas motores citosólicos, e re-ceptores localizados na superfície destas vesículas (VAMP-

Fig. 6.5 Esquema mostrando uma célula principal do ducto coletor e a translocação das vesículas contendo AQP. A cascata do HADpromove a formação de PKA que vai fosforilar a AQP contida nas vesículas. Proteínas motoras dos microtúbulos (dineínas e dinactinas)e receptores localizados nas vesículas (Vamp-2, sintaxina-4 e NSF) participam da fixação das vesículas na membrana luminal. APKA, acredita-se, também agiria no núcleo celular fosforilando fatores nucleares (CREB-P e AP-1) e aumentando a transcrição gê-nica de AQP, resultando na sua síntese e na sua liberação para o citosol, e entrando no processo de traficking e docking. Adaptado deNielsen, S., Kwon, T.-H., Christensen, B.M., Promeneur D., Frøkiær, J., Marples, D. JASN, 10:647-663,1999.

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capítulo 6 63

2, sintaxina-4, NSF) participam do processo de trafficking edocking, isto é, de translocação destas vesículas em direçãoà membrana celular e que termina com a sua inserção namembrana apical da célula, expondo finalmente os canaisde água na superfície luminal e aumentando a permeabi-lidade à água (Fig. 6.5).

No modelo da Fig. 6.6 a AC estaria ligada a dois recep-tores de naturezas opostas: um deles a estimularia (Rs),enquanto o outro a inibiria (Ri), através das unidades re-guladoras da proteína G, respectivamente Gs e Gi. Estesreceptores ativariam (Gs) ou inibiriam (Gi) a adenilcicla-se, quando o receptor estimulador ou inibidor fossem ocu-pados, respectivamente. O receptor do HAD é o receptorestimulador (Rs), enquanto o receptor ocupado pelos agen-tes �-2 adrenérgicos seria inibidor (Ri), uma vez que estesagentes inibem o transporte de água. Este processo, noentanto, pode ser modulado intracelularmente, como já foidito acima, pela atividade da AMPc fosfodiesterase (quetransformaria o AMPc na sua forma inativa, a 5’adenosi-na monofosfato, 5’AMPc), bem como por autacóides comoas prostaglandinas e por outras substâncias como o Ca��

e a proteinoquinase C (PKC). No Quadro 6.1 podemos vervárias substâncias que estão envolvidas na geração doAMPc e na sua modulação.

Recentemente foi descrita a presença de receptores dotipo V1 nas células principais dos túbulos distais (Fig. 6.5).Este receptor, quando ocupado pelo HAD, desencadeariauma reação em cascata da seguinte forma: ativação de umafosfolipase C (PLC) de membrana que clivaria o fosfatidil-inositol-bifosfato (PIP2) em dois segundos mensageiros —o diacilglicerol (DAG) e o inositol-trifosfato (ITP). O DAG,junto com os Ca��, ativaria uma proteinoquinase C (PKC),e o ITP estimularia a liberação de cálcio das organelas parao citosol. O aumento do cálcio intracelular mais a PKC re-gulariam a atividade da adenilciclase, exercendo sobre eleum efeito inibitório.

O HAD também estimula uma fosfolipase A de mem-brana que, agindo sobre o ácido araquidônico (AA), trans-forma-o em prostaglandina (PGE2), que por sua vez temum efeito inibitório sobre a adenilciclase, constituindodesta forma um sistema de feedback negativo modulandoa ação do próprio HAD.

Com a técnica recente da biologia molecular, foi de-monstrado que existem vários tipos de canais de água noreino animal. Muitos são proteínas de baixo peso molecu-lar (25.000 a 30.000 daltons) que pertencem a famílias decanais de água chamadas MIP 26 (Membrane Integral Pro-tein com PM 26.000 daltons). São encontrados em grandevariedade em tecidos transportadores de fluidos, como o

Fig. 6.6 Representação esquemática dos efeitos da vasopressinanas células do DCMI. Abreviações: V1 e V2 — subtipo de recep-tores; Rs e Ri — receptores para agentes estimuladores e inibido-res, agindo sobre a adenilciclase; Gs e Gi — unidades guanina re-guladoras, estimuladora e inibidora; AC — unidade catalítica ade-nilciclase; AMPc — adenosina monofosfato cíclica; ATP — ade-nosina trifosfato; PGE2; PL — pool de fosfolípides; AA — ácidoaraquidônico; PLA — fosfolipase A; PLC — fosfolipase C; PIP2

— fosfatidilinositol-4-5-bifosfato; ITP — inositol-trifosfato; Ca��

cálcio citosólico livre. Adaptado de Kinter, L.B., Huffman, W.F.,Stassen, F.L. Am. J. Physiol., 254:F165-177, 1988.

�2-agonista

O2

Ri

Gi

PLCPLA

vasopressina

PGE2

EXTRA-CELULAR

MEMBRANACELULAR

CITOSOL

MEMBRANABASOLATERAL

Gs

RsV2 PGE2

V1

AC PGE2

PGE2 AA PL

PIP2ITP

EFEITO V1

EFEITO V2(SUPERFÍCIE APICAL)

PROTEINOQUINASE

ATP AMPc

Ca++

Quadro 6.1 Eventos que envolvem a geraçãode AMPc

A nível de receptorOcupação do receptor V2

Agonistas — DDAVP (desmopressina)Antagonistas — d (CH2) 5 Tyr (Et) VAVP etc.*[Ca��] sérico

Ocupação do receptor V1 — ativação da via dofosfoinositolAVPAgentes �1-adrenérgicosSomatostatinaAcetilcolinaCarbacol

Modulação do complexo adenilciclaseA nível da proteína reguladora

GTPToxina da cólera (Ns)Toxina pertussis (Ni)Prostaglandina (Ns)Bradicinina (Ni)Agentes �2-adrenérgicos

Ao nível da unidade catalítica (adenilciclase)Forskolin (Ni)Calmodulina (?)

Ao nível ainda não determinadoFator atrial natriurético

*Atualmente são conhecidos inúmeros agonistas e antagonistas do hor-mônio antidiurético. Adaptado de Abramov. M. et al. Kidney Int., 32 Su-ppl 21:S56-S66, 1987.

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64 Mecanismo de Concentração e de Diluição Urinária

plexo coróide, o cristalino, os alvéolos pulmonares, o rim,bem como em leveduras e vegetais. O primeiro canal deágua identificado foi no eritrócito e foi chamado de CHIP28 (Channel-forming Integral Protein, com PM de 28.000daltons). Este canal é capaz de transportar uma grandequantidade de água e tem a denominação genérica deaquaporinas (AQP). Até o momento já foram identificadosnove tipos de AQP, sendo que as de número 1, 2, 3, 4, 6, 7e 8 são expressas no rim. A AQP2 é o canal de água depen-dente da ação do HAD.

A AQP é uma estrutura de alta complexidade. Ela pos-sui seis domínios intramembranosos, três alças extracelu-lares (A, C e E) e duas intracelulares (B e D). As alças B e Econtêm uma seqüência de aminoácidos NPA — asparagi-na-prolina-alanina — que quando combinadas de modoentrelaçado formam o poro de água. Esta disposição damolécula é conhecida pelo nome de ampulheta (hourglassmodel, Fig. 6.7). Uma unidade de AQP2 (monômero) se as-socia a mais três formando um tetrâmero com quatro ca-nais conjuntos. Estudos recentes mostraram que a prosta-glandina E2 também tem uma ação, através de um recep-tor na membrana celular, sobre a síntese de AQP no nú-cleo celular (Fig. 6.5).

Como já foi dito, as células principais do ducto coletormedular interno possuem a AQP2 na membrana basolate-ral e possuem nas membranas basolaterais as AQP 3 e 4, quesão os canais responsáveis pela saída de água da célula parao interstício. Em outros segmentos do néfron a presença dasAQP 1, 3, 4, 6, 7 e 8 garante a passagem de água sem a ne-cessidade da ação do HAD e participam ativamente nomecanismo de concentração do fluido tubular.

O HAD também tem efeito sobre a permeabilidade àuréia no ducto coletor medular interno, função de extre-ma importância exercida pelo receptor V2. A uréia é umelemento essencial na formação da hipertonicidade medu-lar, que é um dos dois fatores fundamentais para a reab-sorção de água no ducto coletor. No mecanismo de con-centração urinária a uréia é reabsorvida no ducto coletor elocalizando-se no interstício. Do interstício, parte destauréia é retirada pelos vasa recta e eritrócitos e vai ser nova-mente filtrada, voltando para os túbulos, e parte passadiretamente para o lúmen das alças de Henle descendentee ascendente, aumentando a sua concentração na luz tu-bular (ver recirculação da uréia, acima, e Fig. 6.3). A per-meabilidade do ducto coletor à uréia é regulada pelo HADatravés do receptor V2, que gerando PKA estimula trans-portadores de uréia (UT) localizados na membrana apicalda célula tubular determinando um transporte facilitado.Dois tipos de transportadores de uréia já foram clonadose seqüenciados. O UT-A é expresso nos segmentos tubu-lares e apresenta quatro isoformas: UT-A1, UT-A2, UT-A3e UT-A4. O UT-B é expresso nos eritrócitos e nas célulasendoteliais dos vasa recta. O UT-A1 se expressa no ductocoletor e é regulado pelo HAD. O UT-A2 está presente naalça fina descendente de Henle e os UT-A3 e UT-A4 não

Fig. 6.7 Aquaporina-modelo hourglass (ampulheta). Acima: CHIP-AQP mostrando os domínios intramembranosos, intra- e extra-celulares e as seqüências NPA nas duas alças B e E. As setas ho-rizontais indicam a direção do dobramento da molécula coma justaposição dos terminais NH

2 e COOH, resultando na estru-

tura em forma de ampulheta e na formação do poro para a pas-sagem da água entre as duas seqüências NPA entrelaçadas. Abai-xo: Oligomerização de quatro subunidades assimétricas forman-do um tetrâmero contendo quatro poros aquosos. Adaptado dePreston, G. M. and Agre, P. Proc. Natl. Acad. Sci. U.S.A., 88:11110-11114, 1991.

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capítulo 6 65

têm ainda bem definidos os papéis que efetuam, apesar deserem expressos no ducto coletor.

A uréia é o produto final do metabolismo das proteínase o seu excesso deve ser eliminado pelo rim. Este processode secreção se dá principalmente no terço final do DCMI enão é dependente da ação do HAD, envolvendo um me-canismo de transporte secundariamente ativo acoplado aosódio, um contratransporte na membrana apical das célu-las destes segmentos.

Pontos-chave:

• Receptor V2-membrana basolateral• Geração de AMPc-segundo mensageiro• Inserção da aquaporina 2 na membrana

luminal

BALANÇO HÍDRICO

O balanço de água do organismo é dado pela quantida-de de água que é ingerida, comparada com a quantidadede água que é excretada. Sob condições basais, as perdashídricas e a ingesta aquosa variam em torno de 2 a 2,5 li-tros. Assim, o balanço aquoso pode ser mantido por lon-gos períodos sem a intervenção de mecanismos regulado-res específicos. No entanto, esta condição ideal pode serrompida pela atividade física, por alterações climáticas, porvariação de dieta ou outras alterações ambientais. Sempreque tais desvios ocorrem, um poderoso mecanismo home-ostático entra em ação, aumentando ou diminuindo a in-gesta ou a excreção de água e solutos. Esta homeostase sefaz pela regulação da secreção de HAD (eliminação) e pelaregulação da sede (ingestão).

Pontos-chave:

• Água ingerida• Perdas hídricas

SECREÇÃO DE HAD

O principal meio pelo qual o organismo elimina a águasem movimento resultante de solutos ocorre no rim, pelaação do hormônio antidiurético nos túbulos renais, comojá foi mencionado anteriormente.

Quimicamente o hormônio antidiurético, na maioria dosmamíferos, é a arginina vasopressina. Nos suínos é cons-tituído pela lisina vasopressina. Ambos são octapeptídiosde aproximadamente 1.100 daltons. Nos animais vertebra-dos mais inferiores, o hormônio antidiurético é a argininavasotocina. Até o momento já foram identificados sete octa-

peptídios na neuro-hipófise de vertebrados e mais de 200análogos já foram sintetizados. O grande progresso obti-do na química desse hormônio trouxe a descoberta de com-postos sintéticos de variável potência, tempo de ação pro-longada, fácil absorção etc., o que é de extrema importân-cia no tratamento substitutivo nos casos de portadores dediabetes insipidus.

O hormônio antidiurético, ou arginina vasopressina nosmamíferos, é secretado pelos corpos celulares dos neurô-nios existentes nos núcleos supra-ópticos e paraventricu-lares do hipotálamo em forma de grânulos. Há uma estreitacorrelação entre o número desses grânulos nas células ner-vosas secretoras e o estado de hidratação do animal. O hor-mônio antidiurético está como que “empacotado” nessesgrânulos que percorrem o axoplasma dos nervos em dire-ção à glândula pituitária posterior (Fig. 6.9). Dentro des-ses grânulos o hormônio antidiurético está ligado a umaproteína específica chamada neurofisina A ou neurofisinaII, formando um complexo. Ambos, tanto o hormôniocomo a neurofisina, podem originar-se de um mesmo pre-cursor biológico. As células secretoras da oxitocina naneuro-hipófise também têm grânulos nos quais a oxitoci-na está ligada a uma outra proteína carregadora, a neuro-fisina B ou neurofisina I. As neurofisinas são cadeias depolipeptídios contendo 90 a 100 aminoácidos de aproxima-damente 10.000 daltons. Estudos com a técnica de freeze-fracture e estudos eletromicroscópicos mostram que a se-creção na neuro-hipófise ocorre por exocitose. Tem sidosugerido que na neuro-hipófise existem dois pools de hor-mônio antidiurético: um pronto para ser liberado e outro

Fig. 6.8 Modelo esquemático representando o CHIP-aquaporininserido na membrana de bicamada lipídica compreendendo umcomplexo homotetramérico com uma subunidade de polilacto-saminoglicano e possíveis canais de água individuais dentro decada subunidade. Adaptado de Agre, P. et al. Am. J. Physiol.,265:F463-476, 1993.

H2O

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de estoque. Os grânulos prontos para serem liberados es-tariam próximos à membrana plasmática das células.

O estímulo para exocitose de grânulos depende emparte de alterações da membrana plasmática pelo cálcio.Parece provável que a estimulação das áreas quimiossen-sitivas para produção de hormônio antidiurético no hi-potálamo por fibras colinérgicas resulta numa excitaçãocelular, despolarização parcial e subseqüente potencial deação. Esta despolarização da membrana aumentaria a per-meabilidade ao cálcio, o qual, por mecanismo não iden-tificado, ativaria a exocitose dos grânulos neurossecreto-res e a liberação de hormônio antidiurético e neurofisinana circulação.

A secreção de hormônio antidiurético pelo hipotálamoé determinada por dois fatores: tonicidade plasmática evolemia. Em estado de hipovolemia ou hipertonicidade háestímulo para secreção do hormônio. A grande sensibili-dade na dosagem de arginina vasopressina pelo métodode radioimunoensaio permitiu correlacionar os níveis plas-máticos deste hormônio com a osmolaridade do sangue.Vemos na Fig. 6.10 que após 280 � 65 mOsm/kg H2O (li-miar osmótico) ocorre um aumento linear de vasopressi-na plasmática em relação à osmolaridade e é tão constante

essa relação individualmente, que num mesmo animal po-de-se calcular a osmolaridade plasmática a partir dos ní-veis de vasopressina com um erro menor que 1%.

Tanto a arginina como a lisina vasopressina existem noplasma de forma livre não ligada a proteínas, e devido aoseu baixo peso molecular elas são filtradas facilmente atra-vés dos capilares glomerulares. A extração plasmática des-ses hormônios é feita principalmente pelo fígado e pelo rim,mas outros tecidos como o cérebro podem também que-brar sua molécula. A excreção urinária é o segundo méto-do de eliminação e a sua concentração urinária correlacio-na-se perfeitamente com a sua concentração plasmática.Em indivíduos com diabetes insipidus nefrogênico familial(nos quais o túbulo coletor é incapaz de responder ao hor-mônio antidiurético) ocorre alta concentração de vasopres-sina na urina. A destruição tecidual e a eliminação renaldão um clearance de hormônio antidiurético de 2 a 4 ml/min, o que determina uma meia-vida curta para esse hor-mônio (10 a 40 minutos). Esta observação indica que emindivíduos normais a supressão da secreção de hormônioantidiurético resulta em alterações detectáveis na diureseem aproximadamente 20 a 30 minutos.

Como dissemos, a secreção de hormônio antidiuréticoe conseqüentemente seus níveis plasmáticos são determi-nados por dois fatores:

1. Fator osmótico — tonicidade plasmática. O aumentoda osmolaridade plasmática por solutos impermeáveis àcélula determinam aumento na secreção de vasopressina.Os osmorreceptores são: a) as próprias células do núcleosupra-óptico e paraventricular; b) os osmorreceptores in-tracardíacos (localizados na artéria carótida e aurículas)que por via vagal estimulam os centros hipotalâmicos.

É interessante notar que o aumento da osmolaridade porsolutos permeáveis através das membranas celulares eportanto que penetram no interior das células dos núcleos

Fig. 6.9 Esquema da neuro-hipófise e das suas relações anatômi-cas. Abreviações: nh — neuro-hipófise; ah — adeno-hipófise; ds— diafragma da sela; co — quiasma óptico; nso — núcleo supra-óptico; npv — núcleo paraventricular; or — osmorreceptores; br— barorreceptores; nts — núcleo do trato solitário; ap — áreapostrema. Adaptado de Robertson, G.L. and Berl, T. In: Brener,B.M. and Rector Jr., F.C. The Kidney W.B. Saunders Company.

npv

or

nso

co

ah

br

ds

nh

nts

ap

Fig. 6.10 Relação entre níveis plasmáticos de vasopressina e os-molaridade do plasma em indivíduos normais e em diferentes ti-pos de poliúria.

0

2

4

6

8

10

12

Vas

opre

ssin

a pl

asm

átic

a (p

g/m

l)

270 280 290 300 310 320

Osmolalidade plasmática (mOsm/kg H2O)

polidipsia primárianormal

diabetes insipidusnefrogênico

diabetes insipiduspituitário

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capítulo 6 67

hipotalâmicos não determinam aumento da secreção dehormônio antidiurético. Assim, por exemplo, tanto a infu-são de uréia como o aumento da glicemia no diabetes melli-tus (em ausência de hipovolemia e desidratação), apesarde aumentarem a osmolaridade do plasma, não acarretamaumento da secreção de hormônio antidiurético. Ao con-trário, a hiperglicemia (na ausência de hipovolemia) deter-mina uma diminuição na liberação de vasopressina, o queindica ser a poliúria do diabetes mellitus o resultado de, pelomenos, dois fatores: diurese osmótica � inibição do hor-mônio antidiurético, causando uma menor reabsorção deágua no túbulo e ducto coletor.

2. Fatores não-osmóticos — volemia. Em condições dedepleção de volume, o fator volemia é mais importantecomo estímulo que a osmolaridade plasmática. Assim, emcondições de hipovolemia, mesmo com hipotonicidade doplasma, observa-se um aumento na secreção de hormônioantidiurético. Ao contrário, em condições de hipertonici-dade (osmolaridade plasmática acima de 280 mOsm/kgH2O) o fator tonicidade predomina, observando-se au-mento da secreção do hormônio mesmo em condições deexpansão do volume extracelular. Os receptores de volu-me para secreção de hormônio antidiurético podem ser di-vididos em: de baixa pressão (localizados no setor veno-so — aurícula direita) e de alta pressão (localizados no se-tor arterial — aurícula esquerda, carótida etc.). A via afe-rente desses receptores é o vago e glossofaríngeo. O siste-ma de baixa pressão é mais sensível que o de alta pressão,bastando ocorrer uma depleção de volume de 10%, mes-mo sem alterações da pressão arterial, para que se obser-ve um aumento de 6 vezes na secreção de hormônio anti-diurético através de estímulos recebidos no sistema debaixa pressão.

Além desses fatores volêmicos e osmóticos, outros,como a ação de drogas vasoativas, levam a alterações nasecreção desse hormônio. É comum a observação de anti-diurese durante a infusão de isoproterenol em animais emdiurese aquosa. Também a infusão de noradrenalina, empequenas doses, pode determinar aumento da diurese poraumento da pressão arterial ou menor reabsorção de águano túbulo coletor.

Inúmeros trabalhos têm chamado a atenção para a par-ticipação do sistema renina-angiotensina na regulação daexcreção urinária de urina. Estudos têm demonstrado quea administração sistêmica ou intracerebral (liquórica) deangiotensina II determina aumento na secreção de hor-mônio antidiurético. Por outro lado, a administração deHAD exógeno a ratos Brattleboro, que apresentam diabe-tes insipidus hipotalâmico hereditário, produz diminuiçãoda secreção renal e níveis plasmáticos de renina. Foi ve-rificado, também, que o sistema renina-angiotensina podedesempenhar um papel importante no centro reguladorda sede.

Recentemente foi descrito que um heptapeptídio forma-do diretamente da angiotensina I sem a participação da

enzima conversora e denominado de angiotensina 1-7 pos-sui efeitos semelhantes ao do HAD, isto é, é capaz de au-mentar a permeabilidade à água no ducto coletor medu-lar interno.

É importante salientar que em certas condições patoló-gicas observa-se quadro de oligúria (antidiurese) em pre-sença de hipotonicidade plasmática, mesmo com volemianormal ou aumentada, como nos casos de:

1. Síndrome de secreção inapropriada de hormônio anti-diurético que ocorre associada a tumores, patologiaspulmonares, lesões cranianas etc.

2. Decorrente da administração de drogas que estimulama produção de hormônio antidiurético, como morfina,barbitúricos e clofibrato, ou mesmo de drogas que au-mentam a atividade do hormônio, como clorpropami-da e carbamazepina (Tegretol).

3. Endocrinopatias, como o mixedema, no qual os fatoresresponsáveis pela incapacidade de eliminar urina dilu-ída permanecem ainda por serem esclarecidos, e nadoença de Addison, onde se observa também uma in-suficiente excreção de água conseqüente à falta de gli-cocorticóides.

A combinação da excreção de urina hipertônica associ-ada à hipotonicidade do sangue ocorre em condições dehipovolemia, depleção ou má distribuição de volume.Observamos, também, em condições de redução da pres-são na aurícula esquerda durante a comissurotomia mitral,ventilação pulmonar prolongada, insuficiência cardíacagrave e cirrose hepática avançada.

Pontos-chave:

• Fator osmótico• Fator volêmico• Outros fatores — secreção inapropriada de

HAD

REGULAÇÃO DA INGESTA –MECANISMO DA SEDE

A sede é a maior defesa do organismo contra a deple-ção dos fluidos corporais e é definida como a sensação quecompele o indivíduo a beber água. É estimulada pelasmesmas variáveis que estimulam o HAD, ou seja, o aumen-to da osmolaridade plasmática ou a diminuição da vole-mia, mas a hipertonicidade do plasma parece ser maispotente que a hipovolemia. No homem, um aumento deapenas 2% a 3% acima do nível basal produz um desejointenso de ingestão de água. O nível efetivo de osmolari-dade plasmática que provoca um desejo urgente conscientede ingestão de água é chamado de limiar da sede e é ligei-ramente diferente de indivíduo para indivíduo e varia em

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68 Mecanismo de Concentração e de Diluição Urinária

torno de 295 mOsm/kg. O limiar para o estímulo da sedeestá ligeiramente abaixo do limiar para o estímulo de libe-ração do HAD. As vias neuronais que medeiam a dipso-gênese osmótica não estão ainda bem definidas, mas pa-rece que envolvem osmorreceptores localizados na áreaventromedial do hipotálamo próximo àquelas que regulama secreção de HAD e devem ter uma representação no cór-tex cerebral, a fim de permitir que o indivíduo tenha cons-ciência da necessidade de ingerir líquidos. Além dos fato-res já descritos, o sistema renina-angiotensina e mesmo opróprio HAD exercem uma mediação parcial sobre a dip-sogênese.

Pontos-chave:

• Fator osmótico• Fator volêmico

BIBLIOGRAFIA SELECIONADA

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ENDEREÇO RELEVANTE NA INTERNET

http://www.ndif.org