wellington barbosa nogueira júnior. do pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

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F ACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO P AULO DEPARTAMENTO DE DIREITO DO ESTADO WELLINGTON BARBOSA NOGUEIRA JUNIOR DO PLURALISMO JURÍDICO AO DIÁLOGO TRANSCONSTITUCIONAL: UMA PROPOSTA PARA A RELAÇÃO ENTRE ORDENS JURÍDICAS INDÍGENAS E ESTATAIS NOS ESTADOS DA AMÉRICA LATINA SÃO P AULO 2009

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Monografia apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Bacharel em Direito

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Page 1: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

DEPARTAMENTO DE DIREITO DO ESTADO

WELLINGTON BARBOSA NOGUEIRA JUNIOR

DO PLURALISMO JURÍDICO AO DIÁLOGO

TRANSCONSTITUCIONAL:

UMA PROPOSTA PARA A RELAÇÃO ENTRE ORDENS JURÍDICAS INDÍGENAS E ESTATAIS

NOS ESTADOS DA AMÉRICA LATINA

SÃO PAULO

2009

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WELLINGTON BARBOSA NOGUEIRA JUNIOR

DO PLURALISMO JURÍDICO AO DIÁLOGO TRANSCONSTITUCIONAL:

UMA PROPOSTA PARA A RELAÇÃO ENTRE ORDENS JURÍDICAS INDÍGENAS E ESTATAIS NOS ESTADOS

DA AMÉRICA LATINA

Monografia apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Bacharel em Direito Departamento de Direito do Estado Orientador: Professor Associado Marcelo da Costa Pinto Neves

SÃO PAULO

2009

Page 3: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

FOLHA DE APROVAÇÃO

Nome: Wellington Barbosa Nogueira Junior Título: Do Pluralismo Jurídico ao Diálogo Transconstitucional: Uma proposta para relação entre ordens jurídicas indígenas e estatais nos Estados da América Latina.

Monografia apresentada perante a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Bacharel em Direito Departamento de Direito do Estado

APROVADO EM: ___/___/_____

BANCA EXAMINADORA:

PROF. DR.:____________________________________________________

INSTITUIÇÃO:____________________________ASSINATURA:_____________

PROF. DR.:____________________________________________________

INSTITUIÇÃO:____________________________ASSINATURA:_____________

Page 4: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

Nenhum ser humano é uma ilha... por isso não perguntem

por quem os sinos dobram. Eles dobram por cada um, por

cada uma, por toda a humanidade. Se grandes são as

trevas que se abatem sobre nossos espíritos, maiores

ainda são as nossas ânsias por luz. (...) As tragédias dão-

nos a dimensão da inumanidade de que somos capazes.

Mas também deixam vir à tona o verdadeiramente

humano que habita em nós, para além das diferenças de

raça, de ideologia e de religião. E esse humano em nós faz

com que juntos choremos, juntos nos enxuguemos as

lágrimas, juntos oremos, juntos busquemos a justiça,

juntos construamos a paz e juntos renunciemos à

vingança.

(LEONARDO BOFF)

Page 5: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

Dedico este trabalho ao meu pai Wellington Barbosa

Nogueira, à minha mãe Maria Josefina Balthazar Nogueira

e à minha irmã Mariana Balthazar Nogueira, pelo

empenho, dedicação e apoio na realização deste meu

sonho de graduar-me na Academia de Direito do Largo de

São Francisco.

Page 6: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

AGRADECIMENTOS

À Deus por ter-me dado a oportunidade de compartilhar a vida e os sentimentos

essencialmente humanos com as pessoas que estão à minha volta. Pessoas estas por quem

nutro respeito, carinho e enorme apreço.

Aos meus pais por seu amor incondicional e por serem o meu testemunho de ser

humano. Por serem o meu exemplo. A voz que ecoa na minha consciência nos momentos em

que é preciso tomar decisões. À minha irmã pela cumplicidade e ternura nos momentos em

que não é necessário nada mais que um simples abraço para encontrar a felicidade.

Ao grande Osvaldo, eterno parceiro de longas conversas e com quem aprendi

muito nesta faculdade. Obrigado pelas dicas, orientações e por ter aberto inúmeras portas

nesse início de vida acadêmica.

Ao meu Orientador Marcelo da Costa Pinto Neves que se colocou à disposição

para me ajudar na construção deste trabalho, ouvindo minhas dúvidas, cedendo-me

gentilmente o material de seu acervo pessoal para consultas que se mostraram fundamentais.

Confesso que quando solicitei a orientação do Sr. não imaginava que eu desenvolveria uma

afinidade intelectual tão grande por sua produção acadêmica. Foi uma grata surpresa quando

me dei conta de que em seu brilhantismo o Sr. conseguiu traduzir em palavras a maneira

como eu mesmo enxergo o Direito, mas que nem de longe eu seria capaz de descrever ou

explicar para alguém com tanta lucidez. Obrigado professor por ter esclarecido muitas

angústias e por te me ajudado a construir uma nova forma de enxergar o Direito.

Ao Fábio por todo o apoio, pelas conversas, pelos conselhos e por representar

muito bem o exemplo de amigo verdadeiro que você é.

À Vanessa que foi peça fundamental no desenvolvimento não só deste trabalho,

mas no meu desenvolvimento como pessoa. Sou eternamente grato pelo apoio, carinho,

compreensão e por tudo o que você me ensinou nesse momento tão especial da minha vida.

Por fim, aos meus companheiros de Arcadas, Claudio, Danilo, Daniel, Luís,

Gabriel, Victor, e William, por serem o motivo de eu acordar cedo e feliz todos os dias par ir

até a faculdade.e por terem feito eu reconstruir o significado da palavra amizade na minha

vida.

Page 7: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 8

1. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS ............................................................................................ 10

1.1. O surgimento de uma epistemologia fundada na pluralidade ......................... 10

1.2. A sociedade como sistema complexo de comunicações e identificação do Direito como sistema autopoiético. .......................................................................................... 21

1.3. O desenvolvimento de uma modernidade periférica na América Latina: falta de autonomia funcional do Direito enquanto sistema social parcial, relações de sub-integração e identificação do pluralismo jurídico. ..................................................................................... 28

1.4. Por uma definição de Pluralismo Jurídico ...................................................... 34

2. UMA ANÁLISE DO CASO BOLIVIANO: A JURISDIÇÃO ESPECIAL INDÍGENA NO

NOVO DOCUMENTO POLÍTICO CONSTITUCIONAL ..................................................... 46

2.1. Estado de Direito “Plurinacional”: multiculturalismo e plurinacionalidade como base fundamental do Estado Boliviano .......................................................................... 49

2.2. Pluralismo Jurídico e a Jurisdição especial indígena ...................................... 54

2.2.1 As características do Direito Consuetudinário das comunidades indígenas

bolivianas. ................................................................................................................................. 59

2.2.2 O Tribunal Constitucional Plurinacional ...................................................... 65

3. PROPOSTA PARA A RELAÇÃO CONSTITUCIONAL ENTRE AS ORDENS

JURÍDICAS INDÍGENAS E O DIREITO ESTATAL NA AMÉRICA LATINA .................. 70

3.1. Por uma superação da epistemologia monista-sectária: Os conceitos de transculturalidade, razão transversal e transconstitucionalismo. .............................................. 72

3.1.1 Identificação da epistemologia monista e sectária. ...................................... 72

3.1.2 Transculturalidade, razão transversal e transconstitucionalismo.................. 80

3.2. O transconstitucionalismo entre ordens jurídicas presentes em um mesmo Estado. ...................................................................................................................................... 86

3.3. Uma proposta de método para a relação transconstitucional entre ordens jurídicas: O Tribunal Constitucional Plurinacional boliviano como protagonista do diálogo constitucional entre a ordem jurídica indígena e a ordem jurídica ordinária do Estado. ......... 88

CONCLUSÃO .......................................................................................................................... 96

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 100

Page 8: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

8

INTRODUÇÃO

O pluralismo jurídico tem despertado certo fascínio nos juristas pós-modernos, os

quais chegam inclusive a identificar no direito que se manifesta independentemente do Estado

um novo paradigma para a compreensão do fenômeno jurídico. O embate

monismo/pluralismo ganha cada vez mais adeptos no meio acadêmico, e com o

desenvolvimento de uma sociedade moderna que é a cada vez mais mundial e multicêntrica,

acompanhada do surgimento de ordens jurídicas complexas que transcendem os limites

territoriais dos Estados Nacionais, percebe-se a relevância de entender como funciona a

dinâmica de interação desse novo sistema jurídico que se estrutura colocando em xeque a

pretensão exclusivista do Estado em determinar os limites de aplicação do direito na

sociedade.

No presente trabalho pretende-se compreender a ocorrência do pluralismo

jurídico, no âmbito específico da América Latina, analisando-se as possibilidades e limites

deste fenômeno ante as condições peculiares que se operam as relações políticas, econômicas

e jurídicas na realidade deste continente. Alguns Estados latino-americanos, como a Bolívia e

a Colômbia, reconheceram recentemente em seus textos constitucionais o pluralismo jurídico

como base fundamental do Estado, e forneceram instrumentos para favorecer a criação de

jurisdições especiais referentes às populações indígenas, quebrando o monopólio Estatal de

exercício da jurisdição e fragmentando o sistema jurídico do país em duas ordens jurídicas

distintas que passaram a conviver sob um mesmo aparato burocrático.

O objetivo deste trabalho, portanto, é estudar essa relação entre as ordens jurídicas

inseridas no contexto do mesmo Estado Nacional. Deve-se partir da elaboração de um

conceito de pluralismo jurídico, ao analisar-se a possibilidade de desenvolvimento deste

fenômeno na América Latina. Utilizarei o novo texto constitucional aprovado na Bolívia

como pano de fundo para orientar a compreensão de como esta Estado pretende

instrumentalizar internamente a relação constitucional entre a ordem jurídica indígena e a

ordem jurídica estatal para evitar os potenciais conflitos que venham a surgir na dinâmica

social.

No primeiro capítulo fixarei os pressupostos teóricos da tese. O objetivo é realizar

uma delimitação semântica do que se entende por pluralismo jurídico. Em primeiro lugar,

buscarei situar o fenômeno do pluralismo jurídico no contexto que permitiu o seu

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9

desenvolvimento, apontando o momento histórico em que acredito ter surgido uma

epistemologia jurídica preocupada com a pluralidade. Após, recorrerei à teoria dos sistemas

para tentar compreender como ocorre a fragmentação do sistema jurídico do Estado em duas

ordens jurídicas e se isso acarreta algum prejuízo ou benefício no exercício da função própria

do direito enquanto sistema diferenciado de comunicação que apreende a complexidade do

ambiente social por meio da aplicação do código binário lícito/ilícito.

No segundo capítulo me dedicarei a estudar os instrumentos apresentados pela

nova proposta de Estado presente na constituição boliviana aprovada por referendo popular

em fevereiro de 2009. Buscarei compreender como a nova constituição estruturou o

reconhecimento da ordem jurídica indígena e de como pretende operacionalizá-la juntamente

com a jurisdição ordinária do Estado.

No terceiro capítulo defendo uma superação da noção de pluralismo jurídico

como forma de relação entre as ordens jurídicas presentes nos Estados da América Latina, à

luz do conceito de transconstitucionalismo apresentado por Marcelo NEVES, que a meu ver,

mostra-se mais adequado para a compreensão da complexidade jurídica existente na

sociedade moderna hipercomplexa, principalmente no caso dos Estados latino-americanos que

possuem parcelas da população que comungam de valores absolutamente distintos, como é o

caso das comunidades indígenas compesinas e das comunidades que habitam os centros

urbanos de metrópoles como La Paz. Os referenciais axiológicos dessas comunidades são

completamente distintos em razão de serem antropologicamente diferentes. Por esse motivo a

mera constatação do pluralismo jurídico pelo texto constitucional pode não ser suficiente para

solucionar a tensão entre os inevitáveis conflitos que eventualmente sejam levados à

apreciação do Poder Judiciário.

Page 10: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

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1. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

O estudo da relação entre ordens jurídicas distintas inseridas em um mesmo

espaço-tempo correspondente a um Estado Nacional pressupõe a fixação de certos pontos de

partida que servirão de referencial teórico ao longo de todo o trabalho.

Inicialmente, deve-se identificar o surgimento das perspectivas pluralistas para

propor uma delimitação semântica a respeito do que se entende por pluralismo jurídico, tendo

em vista a extensa bibliografia dedicada ao tema nas últimas décadas, principalmente no que

diz respeito aos desdobramentos deste fenômeno no âmbito da América Latina, avaliando-se

suas condições peculiares de existência e as possibilidades de sua concretização.

Para tanto, é necessário entender como surge na filosofia do direito mais recente

esta epistemologia fundada na pluralidade, a qual teve por conseqüência despertar no

pensamento dos juristas pós-modernos certo fascínio com relação ao direito que se manifesta

de maneira independente do direito “oficial” do Estado.

1.1. O surgimento de uma epistemologia fundada na pluralidade

A tradição filosófica que contribuiu para a formação do Estado Moderno, e que

continuou permeando o desenvolvimento do Estado Democrático de Direito, preceituou a

idéia de que o Estado deve deter o monopólio do uso da força, pois apenas assim a força

poderia ser usada de maneira racional.

Era preciso condicionar esse uso racional da força a critérios objetivos

previamente estabelecidos, evitando assim a imposição discricionária de uma vontade sobre a

outra e apartando o embate político das meras elucubrações metafísicas e das subjetivas

manifestações de fé e moral religiosa.

Assim, foi estabelecida a divisão entre o poder de uso propriamente dito da força

Estatal e o poder de estabelecer os critérios objetivos que o condicionavam para que a

utilização da força por meio do Estado fosse possível. Esses critérios deveriam ser postos em

prescrições normativas escritas, nas quais iria se fundar o próprio poder Estatal, e nas quais

estariam descritos os padrões de conduta desejados pela coletividade a serem observados

indistintamente por todos os indivíduos a ela pertencentes.

Page 11: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

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Esses padrões de conduta deveriam ser um conjunto institucionalizado de

prescrições de comportamento, capaz de garantir por meio da generalização congruente das

opiniões dos indivíduos um consenso suposto na sociedade de que a conduta correta é aquela

que busca adequar-se ao padrão estabelecido, diminuindo assim a inevitável contingência

originada pelas inúmeras possibilidades de ação e reação das pessoas no cotidiano da vida em

sociedade.

A sociedade é estruturada pela inter-relação entre as pessoas e essa relação admite

inúmeras possibilidades de desenrolar-se. Cada um dos indivíduos quando age em sociedade

nutre uma expectativa de como será o comportamento do outro, e o outro por sua vez nutre

uma expectativa de como será reação do primeiro à sua resposta. Todos, a todo o momento,

nutrem expectativas recíprocas de comportamento acerca de como se desenrolará o

comportamento de seu próximo. Estas expectativas podem ser confirmadas, mas não é raro

acontecer de serem frustradas na rotina da vida social.

Com a frustração recíproca de expectativas de comportamento é que surgem os

conflitos sociais. Nesse impasse entre qual das expectativas frustradas prevalecerá, é

necessário haver uma decisão. Para diminuir as situações de conflito, estabilizar as

expectativas sociais e garantir assim maior segurança e previsibilidade no relacionamento das

pessoas, é que se institucionalizam os padrões de conduta que servirão como base para a

decisão de qual expectativa social deve prevalecer em uma situação de conflito.

Deste modo, tem de haver uma garantia de que a decisão será mantida e

respeitada na sociedade, sob esse prisma surge o uso racional da força. O Estado desenvolve

um aparato coercitivo próprio e utiliza a sanção prevista nos padrões de conduta para

selecionar e coibir as condutas desviantes mediante a aplicação da sanção correlata,

promovendo assim a estabilização das relações sociais e impondo os padrões eleitos pela

sociedade.

Destarte, por meio de uma lógica de imputação-causalidade, duas são as

possibilidades de impor um padrão de conduta por meio da previsão de uma sanção: (i)

preventiva - pois a mera previsão de uma sanção coercitiva para o eventual desvio do padrão

de comportamento desejado pela coletividade faz com que certos indivíduos, ao observarem a

norma, tendam a comportar-se da maneira que evita a sanção, e (ii) repressiva – pois caso

alguém transgrida o padrão de conduta fixado, há a expectativa de que este indivíduo esteja

sujeito à aplicação da sanção pré-estabelecida por meio do uso da força concentrada no

aparato coercitivo do Estado.

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É imprescindível, portanto, a criação de uma burocracia altamente especializada e

diferente dos outros campos de atuação Estatal para que, diante dos fatos trazidos ao seu

conhecimento, fosse iniciada uma ponderação independente capaz de avaliar se a conduta

suspeita transgredira de fato ou não o padrão de conduta pré-estabelecido pela coletividade,

avaliando necessidade de se atribuir ou não a sanção correlata para aquele caso concreto, o

que, em última análise, constitui em si o aval para que o Estado possa se valer da força a ele

delegada. Esta burocracia especializada convencionou-se chamar de Poder Judiciário.

Ao Poder Judiciário então é atribuído o poder único e exclusivo de dizer se

determinado fato transgrediu ou não os padrões de comportamento previamente estabelecidos

pela comunidade, e em caso positivo, atribuir a sanção correlata àquele fato transgressor,

abrindo a possibilidade de uso racional da força pelo Estado, contra determinado indivíduo da

sociedade. Este é o poder exclusivo de dizer o qual o Direito para o caso concreto (Jurisdição,

ou para os mais românticos: iurisdictio).

Todavia, este poder de dizer o Direito apresenta limites claros e bem definidos:

por ser um poder em tese atribuído pelo povo ao Estado, é um poder circunscrito ao âmbito

espacial em que aquele povo está inserido1. Se determinada comunidade decide alienar o uso

da força para um ente estruturado burocraticamente, tal poder só pode ser revertido e utilizado

para esta mesma comunidade, e não para outras comunidades, as quais eventualmente

alienaram seu respectivo poder a outro ente equivalente. Este ente burocratizado que tem a

pretensão de, em tese, representar o povo a que é correlato convencionou-se chamar de

Estado Nacional, e o âmbito espacial que o Estado Nacional reveste de território.

Assim, de maneira ainda rudimentar, pode-se concluir que cada povo,

objetivamente determinado por uma coletividade abstrata de indivíduos reunidos, aliena o uso

da força para seus respectivos Estados Nacionais, que por sua vez condicionaram o uso

racional da força ao julgamento prévio de adequação a padrões de conduta previamente

institucionalizados, criando o poder de dizer se o padrão de conduta foi ou não respeitado no

caso concreto. Este poder, assim como os demais poderes advindos do uso da força alienada

ao Estado Nacional, compõe uma verdadeira gama de poderes concentrados nas mãos do

Estado Nacional, que só dizem respeito àquela comunidade que os alienou, apenas podendo

ser utilizados no âmbito espacial que a comunidade está inserida. Todo esse conjunto de

1 Claro que existem hipóteses em que a Jurisdição extrapola os limites das fronteiras dos Estados nacionais como nos casos de Extraterritorialidade. Mas o objetivo desta passagem é meramente introdutório e não cabe neste momento pormenorizar o tema da extensão espacial da jurisdição Estatal.

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poderes concentrados no Estado Nacional, cujo âmbito espacial é delimitado pelo território,

convencionou-se chamar de soberania.

Esses conceitos clássicos que foram trazidos de maneira elementar e sucinta

apenas a título de referência, pois não cabe nesta oportunidade estudá-los

pormenorizadamente, tais como: Estado Nacional, povo, território, soberania, e etc. são

considerados os elementos característicos que compõem o Estado Moderno, e foram

exaustivamente estudados pela Teoria Geral do Estado2.

Em que pese a importância do estudo dos conceitos clássicos, não há como negar

que a epistemologia acerca do Estado, e dos "elementos que o compõem", ganhou contornos

muito mais complexos à medida que sociedade foi se tornando também mais complexa, o que

fez com que o próprio Estado Moderno em si bem como todos os seus elementos passassem a

ser paulatinamente questionados.

Uma grande contribuição trazida pelo pensamento crítico em relação à

modernidade foi a identificação de uma forte pretensão universalizante das teorias e conceitos

utilizados para explicar os fenômenos que giram em torno do Estado Nacional. A

identificação de que existe uma grande pluralidade diferenciada que não se harmoniza com o

universalismo dos conceitos de "povo", "nação", "soberania", "território", "jurisdição",

contribuiu para o surgimento de uma epistemologia fundada nos “pluralismos”.

De fato, diante da enorme complexidade em que está inserida a sociedade

mundial, ou para nos valermos de um exemplo mais próximo, diante da grande complexidade

existente dentro de uma mesma comunidade correspondente, por exemplo, a uma grande

cidade como São Paulo ou La Paz, compostas pelos mais diferentes tipos de pessoas, as quais

por meio de interações cotidianas comunicam-se, e manifestam entre si as mais diferentes

formas de expectativas sociais, que por sua vez se confirmam ou se desiludem em um

conjunto absolutamente instável de relacionamentos de relações de expectativa3, como fazer

para abarcá-las sob a mesma alcunha de "povo", "nação" ou "Estado Democrático"?

Como incluir em uma mesma categoria hipotética pretensamente universalizante,

e que serve como pressuposto para existência e funcionamento dos mais diversos sistemas

sociais, toda essa infinidade de indivíduos diferentes, com idéias e expectativas absolutamente

distintas em relação ao restante da sociedade, relacionando-se entre si de maneira complexa

2 DALLARI, 2005, p.74 e ss. 3 FERRAZ JUNIOR, 2003, p.103.

Page 14: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

14

pois as possibilidades de confirmação ou frustração que envolvem as expectativas sociais são

sempre maiores do que as possibilidades atualizáveis4 na seleção elaborada por cada um em

meio das mais diferentes situações da vida cotidiana, sem desconsiderar ou reduzir essa

complexidade, sem excluir certos segmentos da sociedade que não se harmonizam com as

generalizações ou que se encontram sub-integrados5 em relação ao sistema social, sem tornar

as categorias hipotéticas “povo”, “nação”, “Estado” e etc. vazias de sentido6?

O grande desafio do pensamento dos juristas na atualidade é fornecer uma

resposta a essas perguntas. Tal desafio deve ser encarado à altura, por meio de uma reflexão

séria acerca das conseqüências geradas pela pós-modernidade ao fenômeno jurídico,

principalmente no que diz respeito aos efeitos da globalização, do fortalecimento do sistema

econômico e do aumento da complexidade nas relações de comunicação ao redor do mundo.

No entanto, há sempre o enorme risco de se adotar uma posição intolerante diante

do desafio que a complexidade pós-moderna nos propõe com relação ao aumento das

possibilidades de confirmação e frustração das expectativas sociais. Há quem pretenda

simplesmente rejeitar a idéia de pluralidade, escolhendo apenas um conjunto específico de

expectativas dentre a enorme gama existente na sociedade – na maioria das vezes o conjunto

que se refere ao padrão de conduta eleito pela classe dominante - para vigorar como ultima

ratio de decisão, impondo-se este padrão de conduta aos desvios que frustrarem suas

expectativas padronizadas por meio de instrumentos de dominação social sobre os demais,

desrespeitando o diferente e excluindo os demais tipos de expectativas da possibilidade de

integração.

Este tipo de posição intolerante é antes de tudo uma forma de violência, que

oprime aqueles que não comungam dos mesmos valores existentes nos padrões de conduta

eleitos pela classe dominante. A adoção de tal posição representa um enorme retrocesso na

solução dos conflitos existentes na sociedade, pois desconsidera a diversidade e o dissenso

essenciais ao ambiente democrático. Não há como simplesmente ignorar a pluralidade

existente na sociedade moderna.

Antigamente, quando a sociedade era hierarquicamente estratificada e os papéis

sociais desenvolvidos pelos indivíduos eram rigidamente definidos, havia uma maior

facilidade em travar generalizações de comportamento e expectativas. A tarefa de reunir os

4 FERRAZ JUNIOR., 2003, p.103. 5 NEVES, 2003, p. 277 e ss. 6 No mesmo sentido: NEVES, 2008, p. 16

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15

diferentes indivíduos e suas expectativas sociais em categorias hipotéticas universalizantes era

mais simples. Isso porque as próprias relações sociais não poderiam diferenciar-se das

expectativas que os indivíduos nutriam entre si. Daí a existência de um grande número de

rituais rigidamente estabelecidos para a consecução de determinados fins. Como exemplo,

tem-se a transmissão da propriedade de um bem no direito romano arcaico, que constituía um

ato absolutamente formal, no qual os indivíduos envolvidos deveriam repetir palavras

determinadas na presença de um grande número testemunhas, sob pena de na ausência desses

requisitos o ato não se convalescer.

Nas sociedades menos complexas quase não há diferença entre a relação que se dá

entre os indivíduos e as expectativas de cada um. De acordo com o que afirma o professor

Marcelo NEVES ao tratar do modelo de evolução social traçado pela teoria dos sistemas, nas

sociedades arcaicas as comunicações não se diferenciam das expectativas7.

Assim, os padrões de conduta rigidamente estabelecidos são seguidos de maneira

plena e repetitiva pelos indivíduos que compõem a sociedade. Os desvios aos padrões de

conduta eleitos nas comunidades arcaicas são considerados com estranheza e constituem

verdadeira afronta à comunidade como um todo. Nesse caso, é muito difícil que o

comportamento "diferente" dê início a um processo de mudança ou de evolução, no qual o

sistema social irá absorvê-lo e tratá-lo de maneira seletiva, pois o diferente simplesmente não

é admitido, sendo completamente rechaçado e utilizado doutrinariamente como contra-

exemplo para os demais indivíduos. Há pouco espaço para que o “diferente” interfira no

caminho linear das relações sociais, contribuindo para alguma mudança em sua estrutura, ou

para dar início a uma nova forma de comunicação social, o que faz com que a sociedade

apresente um baixo grau de complexidade.

Mesmo com o início do desenvolvimento do Estado Moderno, foi mantida uma

rígida estrutura hierárquica, delineada por uma forte moral religiosa que impedia a aceitação

dos comportamentos desviantes. Havia uma forte tendência moralizante que guiava as

relações sociais a certos padrões, e, com o intuito de fornecer maior segurança e

previsibilidade às relações entre os indivíduos, esses padrões passaram a ser previamente

estabelecidos e fixados normativamente de acordo com a vontade predominante, formando

uma rede de estruturas pouco dinâmicas para estabilizar os comportamentos dos indivíduos.

7 NEVES, 2008, p.7

Page 16: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

16

Os padrões sociais passaram a ser fixados em normas escritas visando a garantir

uma maior institucionalização do consenso suposto em relação ao comportamento desejado

pela maioria da sociedade. Nesse momento a estrutura normativa passa a atuar de maneira

diferente em relação às expectativas sociais. A positivação dos valores da sociedade foi um

mecanismo encontrado para reduzir as contingências do comportamento ao garantir um maior

grau de confiança em relação às expectativas em jogo, garantindo maior estabilidade8.

Porém, as normas escritas não podem cristalizar um grupo determinado de

possibilidades de confirmação ou frustração de expectativas infinitamente, pois há um aspecto

dinâmico nas possibilidades selecionáveis pelos indivíduos com o passar do tempo. Daí se

conclui que há uma duração nas expectativas sociais. A estrutura normativa do positivismo

garantiu uma maior durabilidade das expectativas, que puderam ser diferenciadas em (i)

expectativas cognitivas, as quais podem ser classificadas como um grupo determinado de

expectativas sociais advindas da generalização do comportamento, mas que se adaptam mais

facilmente à dinâmica dos fatos, ou seja, se tem início uma paulatina frustração das

expectativas cognitivas generalizadas, estas se transformam, dando lugar a uma nova

generalização que se forma da observação empírica dos fatos repetitivos; e (ii) expectativas

normativas, que podem ser classificadas como um grupo de expectativas generalizadas do

comportamento que não se adapta facilmente aos fatos porque a possibilidade de frustração é

admitida como algo natural. A frustração da generalização das expectativas aqui não ocasiona

sua transformação, porque ela não advém de uma descrição do comportamento, mas sim da

inobservância de uma prescrição de como deveria ser o comportamento para que as relações

entre os indivíduos se estabilizem.

Muito embora com o surgimento das normas escritas se possa observar uma

diferença clara entre as relações de comunicação travadas pelos indivíduos e as expectativas

sociais, tanto cognitivas quanto normativas advindas dos padrões de conduta fixados, cumpre

ressaltar que ambas estavam permeadas por uma mesma moral religiosa rígida, o que fazia

com que os comportamentos em desacordo com os padrões positivados pelas normas fossem

encarados não apenas como dignos de um julgamento por seu caráter contra fático em relação

à norma, sendo portanto ilícitos, mas também dignos de um julgamento "exemplar" e

doutrinador, pois eram considerados comportamentos contrários à moral.

8 FERRAZ JUNIOR., 2003, p.103

Page 17: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

17

A baixa diferenciação entre a conduta ilícita e a conduta imoral gerava um caráter

absolutizador das normas postas, uma vez que estas representavam a consolidação da defesa

dos valores essenciais daquela comunidade. Dessa forma, também havia pouco espaço para

que a assimilação do "diferente" fosse capaz de causar uma significativa modificação nas

relações sociais, muito menos na estrutura normativa. Os desvios aos padrões de conduta não

apresentavam grande relevância para impulsionar uma evolução no sistema jurídico, uma vez

que esses desvios não eram percebidos de maneira seletiva, pois as possibilidades de

frustração eram encaradas como uma negação à própria sociedade. O comportamento ilícito

era considerado também antijurídico, contrário ao direito e à moral.

Muitas foram as tentativas de tentar desvincular o direito da moral. A velha

polêmica direito positivo vs. direito natural que existe desde a antiguidade ganhou força com

as revoluções ocorridas no sec. XIX e a tentativa de laicizar o Estado. O positivismo jurídico

buscou demonstrar que não há necessidade de uma fundamentação moral para a ordem

jurídica, uma vez que as normas jurídicas fundam-se em si mesmas.

Afirmava KELSEN, que "o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser

a validade de uma outra norma"9 não havendo portanto, algo superior e imanente que

legitimasse o sistema por uma justificativa metafísica. O que legitima a norma é a sua norma

superior respectiva e assim por diante através da estrutura escalonada, até se chegar à norma

das normas, que trata da "confecção" de todas as outras normas, a Constituição. Esta última

por sua vez, serve de fundamento de validade para o todo o restante, uma vez que também se

funda em uma norma fundamental pressuposta que dá início e unidade a todo o sistema10.

Ao mesmo tempo em que as teorias a respeito do direito encontravam na norma

seu centro de gravidade, desvinculando-se paulatinamente da moral religiosa, as teorias acerca

do Estado e seus elementos seguiam a mesma orientação.

Inúmeros paradigmas sistêmicos foram surgindo para tentar explicar as relações

hierárquicas entre as normas e as estruturas burocraticamente organizadas que compunham o

Estado no Ocidente. Pode-se afirmar com convicção que o paradigma mais proeminente de

que se tem notícia é a pirâmide kelseniana.

Inobstante a contribuição da teoria pura de KELSEN para o conhecimento

científico e metodológico do Direito, não há como negar que ela foi absolutamente

9 KELSEN, 2003, p. 215. 10 KELSEN, 2003, p. 215.

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18

superestimada e utilizada para justificar as mais diferentes formas de dominação política, indo

muito além das pretensões do próprio KELSEN. Como ele mesmo afirmou no prefácio que

escreveu à primeira edição da Teoria Pura do Direito11.:

“(...) os fascistas declaram-na liberalismo democrático, os democratas liberais ou sociais-democratas consideram-na um posto avançado do fascismo. Do lado comunista é desclassificada como ideologia de um estadismo capitalista, do lado capitalista-nacionalista é desqualificada, já como bolchevismo crasso, já como anarquismo velado. (...) Em suma, não há qualquer orientação política de que a Teoria Pura do Direito não se tenha tornado suspeita”

E KELSEN tinha razão. Deturparam a sua teoria da pureza, inclinando-a para

justificar qualquer tipo de anseio político. Muitos a utilizaram, poucos de fato a

compreenderam. A “pirâmide” se transformou em objeto de fetiche para alguns juristas da

primeira metade do século XX, que enxergavam nela a alegoria perfeita para explicar

qualquer questão de ordem teórica ou prática no campo do Direito.

Dentre as conseqüências ruinosas da supervalorização e da deturpação sofrida

pela teoria pura de KELSEN, ocupa posição de destaque a construção de uma epistemologia

fundada na unidade absoluta e inquestionável da ordem jurídica, na hierarquia rígida de

normas, no centralismo do direito Estatal, que não reconhece outras formas de manifestação

do fenômeno jurídico, rechaçando de necessariamente inferior, não oficial, inválido ou não

vinculativo tudo o que não está fundado na disposição escalonada de normas pertencentes ao

sistema jurídico exclusivo do Estado.

A soberania tem um valor bastante significativo na obra de KELSEN, sendo a

principal expressão da onipotência do Estado em relação à unidade estrutural de controle e

produção do Direito. Qualquer tentativa de flexibilizar as rígidas fronteiras entre as diferentes

ordens jurídicas significa em última instância, a necessária quebra da unidade e hegemonia

estatal, tendo em vista que cada Estado possui sua própria norma fundamental pressuposta,

que diz respeito única e exclusivamente àquela comunidade determinada territorialmente12.

Todavia, como explicitado acima, inobstante a teoria de KELSEN apresente-se

como grande marco do positivismo, colaborando para afastar o “ilícito” do “imoral”, ela não

tornou menos complicada a tarefa de reduzir a grande complexidade jurídica existente na

sociedade moderna. Pelo contrário. Se de um lado o paradigma da pirâmide kelseniana

possibilitou uma melhor compreensão do sistema jurídico, houve um exagero na pureza

11 KELSEN, 2003, p.XIII. 12 KELSEN, 2003, p. 239.

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19

metodológica, condicionando o exame do fenômeno jurídico também a um rígido fechamento

cognitivo o que reduziu ainda mais a capacidade do Direito em apreender a complexidade

social.

A clausura auto-referencial do Direito, consubstanciada no conceito de pureza,

não vem acompanhada de uma abertura cognitiva que permita ao sistema jurídico questionar-

se e se modificar segundo seus próprios elementos e critérios. Além disso, a rigidez na

concepção da unidade estrutural dada pela norma fundamental se desdobra na preponderância

absoluta da jurisdição estatal, sendo esta a única reconhecida pelo Direito por uma questão de

soberania.

Tal entendimento limita a capacidade seletiva do sistema jurídico e causa

bloqueios destrutivos na relação entre Direito e sociedade. O sistema jurídico se vê incapaz de

absorver a complexidade social e passa a atuar conforme uma perspectiva limitada pela

unidade da jurisdição Estatal e a sociedade, por sua vez, não se vê contemplada pelas soluções

oferecidas pelo sistema jurídico, o qual considera insuficiente para a resolução dos conflitos e

para pacificação social.

A valorização da estrutura escalonada de normas em seu círculo fechado não

acompanha o dinamismo existente no surgimento de novas possibilidades de frustração e

confirmação das expectativas normativas, aumentando o nível de contingência e fazendo com

que aumente o grau de instabilidade entre as expectativas sociais não contempladas pela

ordem jurídica Estatal.

O radical fechamento auto-referencial do sistema jurídico tem de ser

acompanhado por uma abertura para absorção dos elementos e perturbações que se encontram

no ambiente, capaz de fazer com que os desvios aos padrões de conduta sejam considerados

não apenas como comportamentos que não observam a norma e que devem estar sujeito à

sanção, mas que também dêem ensejo a uma atuação seletiva do sistema jurídico, para que

este se aperfeiçoe, para que se multiplique e se modifique de acordo com a complexidade

presente na sociedade. Não há ainda no pensamento kelseniano possibilidade de abarcar no

mesmo sistema jurídico expectativas cognitivas e normativas diferentes daquelas eleitas como

padrão de conduta pela maioria (ou pela minoria detentora do poder de dominação) da

comunidade.

Todo esse conjunto de conceitos e valores que se formaram pós "Teoria Pura do

Direito”, cujos reflexos se observam, entre outros, na construção de uma semântica própria do

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20

Direito, baseada na relação hierárquica: norma superior/norma inferior, na unidade da ordem

jurídica e na valorização da soberania, foram determinantes para a construção de um

pensamento que defende acima de tudo unidade do Direito estatal e que se mostra intolerante

com relação à pluralidade característica da hipercomplexidade da sociedade pós-moderna.

Em detrimento de buscar o respeito mútuo entre as diferentes formas de

manifestação do fenômeno jurídico na sociedade, a fim de reorganizar o sistema jurídico ante

o surgimento de novas manifestações de expectativas normativas desvinculadas do Direito

estatal, esta forma de pensamento prega a unidade e a superioridade de uma única ordem

jurídica soberana para um mesmo território, como se o sistema jurídico tivesse sempre de

rumar para uma ultima ratio, presente dentro da própria ordem jurídica do Estado, garantidora

da unidade e da validade das normas, sem a qual o próprio Direito não pode fazer sentido.

São estas idéias que fortalecem o desenvolvimento de categorias hipotéticas

universalizantes que desconsideram a complexidade social para tentar explicar os fenômenos

que giram em torno do Estado Nacional (Soberania, povo, nação). Justamente pelo fato de a

epistemologia estar envolvida por uma forte tendência de busca e valorização da unidade.

Porém, como já explicitado acima, há o risco enorme de este pensamento

centralizador em relação ao Estado e ao Direito dar início a uma posição de intolerância em

relação às possibilidades de frustração de expectativas sociais diversas daquelas generalizadas

nos padrões de conduta positivados, iniciando um processo de exclusão ou de sub-integração

dos grupos de indivíduos que não comungam dos mesmos valores cristalizados pela parcela

dominante da sociedade que controla as esferas de poder.

Para se opor a esta forma de pensamento surge no discurso da pós-modernidade

uma epistemologia que parte da complexidade social como um pressuposto, e, portanto,

valoriza a noção de pluralidade. No dizer de Paulo FREIRE13,

“há uma pluralidade nas relações do homem com o mundo, na medida em que responde à ampla variedade dos seus desafios. Em que não se esgota num tipo padronizado de resposta. A sua pluralidade não é só em face dos diferentes desafios que partem do seu contexto, mas em face se um mesmo desafio. No jogo constante de suas respostas, altera-se no próprio ato de responder. Organiza-se. Escolhe a melhor resposta. Testa-se. Age. (...) Nas relações que o homem estabelece com o mundo há, por isso mesmo, uma pluralidade na própria singularidade.”

É esta característica que faz a sociedade moderna ser altamente complexa: as

infinitas possibilidades de comportamento ou de resposta às expectativas sociais

13FREIRE, 2006, p. 48.

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generalizadas, somadas às expectativas que o próprio indivíduo singularmente tem com

relação à sociedade. O fato de não existir um padrão de respostas cria um ambiente de

contingência, no qual o número de possibilidades de respostas às expectativas é muito maior

do as possibilidades atualizáveis ou apreensíveis pelo sistema social. Nesse contexto ganha

destaque a teoria dos sistemas, fundada na obra de Niklas LUHMANN. Partindo de uma noção

de sociedade enquanto sistema complexo de comunicações, esta teoria pode servir de base

para a identificação de diferentes funções do sistema social orientadas para tentar apreender o

máximo possível a complexidade.

1.2. A sociedade como sistema complexo de comunicações e identificação do

Direito como sistema autopoiético.

Com o surgimento de uma epistemologia fundada na pluralidade, que leva em

conta a complexidade crescente da sociedade pós-moderna, constata-se a ocorrência da

diferenciação funcional dos diversos sistemas sociais. A diferenciação funcional ocorre em

razão da grande pressão seletiva ocasionada pelo aumento da contingência em relação às

possibilidades de confirmação ou frustração de expectativas sociais. Para poder aumentar a

capacidade de atualização das possibilidades surgidas no ambiente e tentar aumentar sua

apreensão da complexidade, o sistema de comunicação social atua seletivamente dividindo-se

em diferentes sistemas parciais especializados e funcionalmente autônomos14.

A diferenciação funcional não deve se confundir com isolamento em relação ao

restante da sociedade, e pode ser melhor compreendida à luz da teoria dos sistemas

autopoiéticos. Os sistemas sociais se diferenciam ao fechar sua operacionalidade funcional e

adquirem autonomia com relação aos demais sistemas para aumentar seu poder de apreensão

da complexidade existente no ambiente. Todavia, mantêm sua unidade básica na

comunicação, que é a base elementar de todos os sistemas sociais15.

O elemento básico e fundamental de um sistema social é a comunicação, e não o

ser humano individualmente considerado. O ser humano por si só não é elemento de um

sistema social. O sistema social só existe a partir da constatação de uma rede comunicacional

entre indivíduos. Comunicação aqui deve ser entendida como a unidade de forma de

14 NEVES, 2008 p. 16 15 “A unidade básica dos sistemas sociais é a comunicação”, LUHMANN, 1988, p. 16.

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22

expressão, informação e compreensão que constitui o sistema social por reproduzir

comunicação recursivamente16.

Diante disto, pode-se concluir que o sistema social é um sistema de comunicação

à medida que este se constitui por uma auto-reprodução circular e intersubjetiva dos próprios

comunicados. Ou seja, é um sistema composto por atos de comunicação que geram novos atos

de comunicação17.

Nesse sentido, o sistema social pode ser compreendido como um sistema

autopoiético. Segundo TEUBNER, um sistema autopoiético produz e reproduz seus próprios

elementos pela interação desses mesmos elementos18. A principal característica da autopoiese

é que os sistemas são capazes de criar não apenas a ordem própria, mas de criar seus próprios

elementos, constituindo-se em um sistema auto-referencial por meio de uma seqüência de

interação circular e fechada19.

O sistema social então constitui um sistema auto-referencial fechado em que os

elementos (atos de comunicação) são produzidos e reproduzidos pelos elementos contidos no

próprio sistema (atos de comunicação).

No sistema social geral relacionam-se os mais diferentes tipos de atos de

comunicação. Como ressaltado anteriormente, alguns se desenvolvem e diferenciam-se

funcionalmente em círculos comunicacionais específicos, atingindo elevado grau de

autonomia e complexidade. Tal aquisição de autonomia pressupõe o surgimento de um

código-diferença de comunicação que possibilite ao sistema parcial iniciar um círculo próprio

de auto-referência mediante a criação de seus atos de comunicação específicos, um código

binário próprio que guie a auto-reprodução sistêmica20. A partir do momento que esses

subsistemas desenvolvem um código-diferença próprio para guiar seu círculo comunicacional,

destacam-se do sistema social geral, autonomizando-se para formar sistemas autopoiéticos de

segundo grau21. É o caso, por exemplo, da Política e da Economia, que possuem um circuito

de comunicação diferenciado e autônomo em relação ao sistema social geral, guiado pelo

código binário específico do sistema político (poder/não poder) e do sistema econômico

(ter/não ter), respectivamente.

16 LUHMANN, 1988, p. 17 17 TEBNER, 1989, p. 139. 18 TEBNER, 1989, p. 43. 19 TEBNER, 1989, p.XI 20 NEVES, 2007, p. 134 21 TEBNER, 1989, p. 139.

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23

O sistema jurídico não foge a essa regra. Segundo afirma LUHMANN, o Direito,

enquanto um sistema social diferenciado funcionalmente existe apenas como comunicação22.

O sistema jurídico se diferencia mediante sua clausura operacional, formando um sistema

autopoiético de segundo grau por meio do surgimento de um código binário próprio

(lícito/ilícito). Esse código é que proporciona a autonomia do sistema jurídico em relação aos

demais sistemas sociais, pois permite a auto-reprodução dos elementos básicos (atos de

comunicação especificamente jurídicos) de acordo com uma rede circular e fechada que se

opera mediante a aplicação do código binário próprio.

A diferenciação do Direito pode então ser entendida como o controle exclusivo da

aplicação do código “lícito/ilícito” por um sistema funcional especializado que se auto-

reproduz circularmente com base nesse mesmo código23. Ou seja, o sistema jurídico é

constituído por uma rede comunicativa fechada de elementos (atos de comunicação) que se

auto-qualificam como jurídicos ou não jurídicos mediante a incessante aplicação de seu

código-diferença (lícito/ilícito). Assim sendo, é a auto-reprodução dos atos jurídicos que

define o que é ou não jurídico, formando assim um círculo autônomo que diferencia o que é

ou não jurídico na sociedade.

Circularidade sugere fechamento. Parece então que a autopoiese é uma teoria de

auto-suficiência do Direito em relação ao resto do mundo, propondo um fechamento

comunicativo do direito (ou seja, o sistema jurídico comunica apenas acerca de si mesmo24)

indo na contramão de todo o pensamento moderno de que as ordens jurídicas devem ser

abertas ao ambiente para poder absorver sua complexidade. Porém, Teubner afirma que esse

fechamento circular é uma “meia verdade”. Para ele, paradoxalmente, o fechamento radical

do sistema, sob certas circunstâncias, implica sua radical abertura25.

Esse é o grande paradoxo da teoria da autopoiese. Segundo se afirma, os sistemas

autopoiéticos se auto-reproduzem em uma clausura radical, porém esta clausura não significa

uma auto-suficiência em relação ao restante dos outros sistemas sociais. O sistema

autopoiético não é um sistema autocrático, mas sim um sistema autônomo que absorve as

perturbações do ambiente segundo seus próprios elementos e critérios. Ao absorver estas

perturbações por meio dos elementos que produz, o sistema é capaz de realizar sua auto-

referência independente da influência externa. Nesse sentido, pode-se concluir que a clausura

22 LUHMANN, 1988, p. 17 23 NEVES, 2007, p.135 24 TEBNER, 1989, p. XXII 25 TEBNER, 1989, p 141.

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do sistema é o que possibilita a interação com o ambiente, respeitando a autonomia interior. O

fechamento então é a condição fundamental de abertura para o ambiente.

É isso que possibilita ao sistema autopoiético que não seja determinado

diretamente pelas influências externas do ambiente ou de outros sistemas sociais parciais. Sua

clausura operacional permite que ele absorva o ambiente de uma forma autônoma, segundo

seu critério próprio de diferenciação, garantindo assim sua autonomia em relação às

influências externas.

No caso do sistema jurídico a compreensão do paradoxo entre fechamento

operacional como possibilidade de abertura para o ambiente fica mais clara à medida que se

distinguem na sociedade as expectativas normativas das expectativas cognitivas26. Isso só é

possível após a institucionalização de padrões de conduta por meio de normas escritas,

fazendo com que os padrões de expectativas generalizadas na sociedade se tornassem mais

duráveis com relação às possibilidades de frustração.

Para compreender melhor a diferença entre expectativas cognitivas e normativas,

tomemos o exemplo utilizado pelo professor Tércio Sampaio FERRAZ JR.27 ao comparar as leis

científicas com as normas jurídicas. No campo da ciência, há uma lei que diz que os objetos

tendem a se dilatar com o aumento do calor. Há uma expectativa generalizada que todos os

objetos submetidos a uma alta temperatura se dilatem. Porém, se algum dia for descoberto um

metal que mesmo submetido a altas temperaturas passe a se comprimir, esta lei da dilatação

será questionada e não corresponderá mais à verdade científica, devendo ser substituída por

outra. A quebra da expectativa generalizada faz com que a permanência daquela lei científica

se torne insuportável. Isso não ocorre com as normas jurídicas. Há uma norma que proíbe o

homicídio, imputando uma pena para quem o cometer. Porém, tal norma não impede que

homicídios ocorram, e o fato de ser frustrada a expectativa generalizada de que as pessoas não

matem umas às outras não faz com que a norma jurídica que veda o homicídio tenha de ser

substituída por outra. A quebra da expectativa generalizada não faz com que a vedação ao

homicídio seja questionada, pois a expectativa de que as pessoas não matem umas às outras se

mantém, apesar de vez ou outra ocorrerem frustrações.

Esta é a diferença entre expectativas cognitivas e normativas. Ambas são geradas

por uma generalização de determinado comportamento, porém as expectativas cognitivas se

26 LUHMANN, 1988, p. 19. 27 FERRAZ JUNIOR., 2003, p.104.

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adaptam mais facilmente às mudanças surgidas no ambiente e seu objetivo é descrever

tendências de comportamento mediante observação da causalidade, enquanto que as

expectativas normativas não precisam se modificar quando ocorrem reiteradas frustrações,

admitindo-as como um fato, e seu objetivo é prescrever tendências de comportamento

mediante imputação de um dever-ser às condutas dos indivíduos, visando a evitar a ocorrência

do comportamento indesejado.

O sistema jurídico usa essa diferença entre expectativas cognitivas e normativas

para combinar o fechamento operacional com a abertura para as relações ocorridas no

ambiente. De acordo com o que afirma LUHMANN, isso faz com que o Direito seja um sistema

normativamente fechado, mas cognitivamente aberto28.

Apenas o sistema jurídico pode atribuir a qualidade de normas jurídicas a certos

atos de comunicação existentes em seu interior mediante a aplicação do código binário

próprio, criando atos de comunicação jurídicos por meio de outros atos de comunicação

jurídicos. Nesse sentido ele é normativamente fechado. Porém, o sistema jurídico precisa

coordenar-se com o ambiente, absorvê-lo de acordo com seus elementos para poder distinguir

o que é lícito do que é ilícito, razão pela qual é, de maneira simultânea, cognitivamente aberto

ao ambiente.

É desta maneira que o direito enquanto sistema autopoiético é capaz de absorver a

enorme complexidade do ambiente. Por meio de uma abertura cognitiva, se mantém atento às

modificações e às novas perturbações advindas do ambiente ao mesmo tempo em que mantém

sua autonomia produtiva e funcional com base em seu círculo comunicacional fechado por

meio da aplicação do código binário de descrição (lícito/ilícito). Isso faz com que o direito

não seja diretamente influenciado pelo ambiente, mas que tenha a capacidade de filtrar as

inevitáveis influências por meio de seus próprios critérios e elementos.

No caso do sistema jurídico, é a clausura operacional que permite a definição

autônoma do que é lícito ou ilícito independente da influência direta de critérios ou elementos

pertencentes a outros sistemas parciais como a Política ou a Economia. Mediante a clausura

operacional o Direito pode reproduzir-se exclusivamente com base em seu código binário

próprio, sem ser influenciado pelos códigos-diferença comunicacionais pertencentes a outros

sistemas, como o código econômico “ter/não ter”. Não se pretende aqui defender a idéia

utópica de que o sistema jurídico não é influenciado pelos interesses econômicos ou por

28 LUHMANN, 1988, p. 20.

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26

critérios políticos. O que se defende é a capacidade do sistema jurídico em “filtrar” esses

eventos de maneira autônoma mediante a aplicação de seu código-diferença próprio. Trata-se

de uma capacidade de aprendizagem do sistema jurídico com relação aos eventos do ambiente

mediante uma absorção seletiva e não imediata das perturbações29.

Para tanto, LUHMANN desenvolveu o conceito de acoplamento estrutural. O

acoplamento serve para lidar com as influências recíprocas entre os diferentes sistemas

parciais de comunicação, permitindo que essas influências se dêem de maneira duradoura sem

interferir no processo de filtragem, proporcionando uma liga entre as estruturas sistêmicas

sem que cada sistema parcial perca sua autonomia30. Para utilizar um exemplo da biologia, o

acoplamento estrutural atua como uma membrana celular permeável que permite a troca

seletiva de certos elementos entre uma célula e outra, sem descaracterizar o funcionamento

autônomo de cada uma das células.

Trazendo esta noção para os sistemas sociais, os acoplamentos estruturais então

constituem “mecanismos de interpenetrações concentradas e duradouras entre sistemas

sociais” 31. A título de exemplo, pode-se citar a Constituição dos Estados Modernos como

tentativa de acoplamento estrutural entre o sistema político e o sistema jurídico.

Porém, não há como negar que as interferências proporcionadas pelo ambiente

complexo e pelos demais sistemas parciais ocorrem em uma velocidade muito maior do que a

capacidade seletiva de filtragem interna do sistema jurídico.

O desequilíbrio, à primeira vista, pode ser considerado como natural, pois

consistiria na condição própria para a constante evolução do sistema jurídico em busca de

oferecer as melhores soluções para os conflitos sociais. Mas, na maioria dos casos é possível

notar que o desequilíbrio é causado pela influência de fatores externos ao sistema jurídico,

sem que seja possível a filtragem necessária à sua condição de autopoiese. Essas

interferências ocorrem em razão de problemas estruturais existentes na relação entre os mais

diversos sistemas sociais parciais, fazendo com que os elementos não sejam adequadamente

selecionados de maneira autônoma pelo sistema jurídico e acabem por limitar sua abertura

cognitiva, tendo como conseqüência o fato de que a clausura operacional permaneça repetindo

uma auto-referência normativa que não condiz com os anseios do ambiente.

29 NEVES, 2007, p. 136. 30 NEVES, 2009, p.31. 31 NEVES, 2009, p. 33

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27

Assim, ocorre uma crise de hetero-referência cognitiva do sistema jurídico, que

prejudica a manutenção de sua auto-referência normativa, trazendo conseqüências nocivas

para o modo como se coordenam sistema e ambiente, ou nesse particular, Direito e sociedade.

A crise de hetero-referência cognitiva do sistema jurídico se dá quando ocorre a

interferência indiscriminada de fatores pertencentes a outros sistemas parciais por falhas na

estrutura de relacionamento destes com o Direito. Há uma falha na construção do

acoplamento estrutural, descaracterizando o controle de sua “permeabilidade”. É o caso de

interesses econômicos e relações de dominação política influenciando diretamente na

aplicação do código binário “lícito/ilícito”.

Tal distorção estrutural faz com que certos valores políticos e econômicos, os

quais não deveriam estar presentes na reprodução autônoma do sistema jurídico, passem a ser

determinantes na aplicação do código-diferença “lícito/ilícito”, fazendo com que o controle

acerca do que é jurídico ou não na sociedade deixe de ser exercido exclusivamente pelo

Direito. A partir do momento que o controle do código “lícito/ilícito” deixa de ser uma

exclusividade do sistema jurídico, passando a sofrer influência direta dos códigos “ter/não

ter”, “rico/pobre”, “dominador/dominado”, ‘poder /não poder”, o direito deixa de ser

concebido como sistema autopoiético, e sua clausura normativa operacional deixa de

corresponder às necessidades do ambiente. Agora, o fechamento operacional já não é

condição para abertura cognitiva, pois não há mais hetero-referência cognitiva no Direito, mas

a clausura normativa passa a ser a condição para o desenvolvimento da aplicação dos valores

pertencentes a outros sistemas sociais. Para esse fenômeno, Marcelo Neves deu o nome de

“alopoiese do direito” 32

Ou seja, o fechamento normativo do sistema jurídico em torno da aplicação do

código binário “lícito/ilícito” deixa de ser uma auto-referência do próprio Direito para passar

a ser um instrumento de aplicação de interesses econômicos ou de critérios de dominação

política, mediante a cristalização de expectativas normativas em torno de valores próprios que

não correspondem ao sistema jurídico. Há uma sobreposição de outros códigos de

comunicação, em especial do econômico (ter/não ter) e do político (poder/não-poder), sobre o

código “lícito/ilícito”33.

32 Para uma compreensão mais aprofundada do o conceito de alopoiese, ver NEVES, 2007, p.140-148. 33 NEVES, 2007, p.146

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28

Este quadro de corrupção sistêmica prejudica a identificação do Direito estatal,

territorialmente determinado, como sistema funcional diferenciado e autônomo ocasionando

enorme descrédito na sociedade que não se vê contemplada pelas soluções oferecidas pelo

Direito. Destarte, se já havia uma dificuldade natural de apreensão da complexidade social por

meio de um sistema jurídico único para fornecer a pacificação dos conflitos sociais,

doravante, com a perda da condição de abertura cognitiva esta tarefa fica ainda mais difícil.

Em certos casos, como nos Estados da América Latina, o que se vê é uma

constante corrupção sistêmica no nível estrutural que impede a autonomia operacional do

Direito estatal, caracterizando-o pela influência direta de elementos externos, impedindo o

desenvolvimento do acoplamento estrutural com os demais sistemas sociais parciais. Como

será abordado no próximo tópico, isso se deve ao desenvolvimento específico da modernidade

nesse continente, em que se desenvolveu uma expectativa generalizada de que os sistemas

corrompidos não são capazes de reagir aos episódios de corrupção34.

1.3. O desenvolvimento de uma modernidade periférica na América Latina:

falta de autonomia funcional do Direito enquanto sistema social parcial, relações de sub-

integração e identificação do pluralismo jurídico.

De fato, o modelo apresentado por LUHMANN de identificação do Direito como

sistema autopoiético apresenta fortes limitações do ponto de vista empírico. É muito difícil

encontrar uma comunidade em que os interesses econômicos e a dominação política não

interfiram diretamente na aplicação do código binário “lícito/ilícito”.

Isso se justifica em razão da própria evolução histórica da formação do Estado

Moderno, pois o Direito tradicionalmente sempre serviu aos interesses de um grupo

dominante política ou economicamente. Mesmo com o surgimento da constitucionalização e a

tentativa de realizar um acoplamento estrutural entre o sistema político e o sistema

econômico, na imensa maioria das comunidades do mundo o sistema jurídico não conseguiu

diferenciar-se funcionalmente a ponto de ser capaz de controlar seu próprio código-diferença

de comunicação sem a influência direta de elementos externos.

34

NEVES, 2009, p. 38.

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29

A abertura cognitiva do sistema jurídico sempre foi limitada pela interferência de

critérios políticos, interesses econômicos, condicionamentos de moral religiosa,

relacionamentos familiares, relacionamentos de amizade e etc. Nesse aspecto, pode-se dizer

que no sistema jurídico a “alopoiese” é a regra, e autopoiese a exceção.

No âmbito da América Latina, que apresenta interesse especial a este trabalho,

identifica-se claramente o desenvolvimento alopoiético do Direito em razão das

peculiaridades do desenvolvimento de seus sistemas parciais de maneira não-diferenciada.

Neste continente em específico, a dominação política e os interesses econômicos de uma

classe tradicionalmente dominante, herdeira das relações de dominação do sistema colonial

europeu, bem como a influência dos interesses econômicos não determinados territorialmente

do período da globalização, foram determinantes para que o sistema jurídico apresentasse

grande limitação de sua hetero-referência cognitiva.

Em razão disso, há uma enorme dificuldade de apreensão da complexidade social

por meio do sistema jurídico e uma falta de identificação generalizada da grande maioria da

sociedade que não se sente contemplada pelos elementos presentes nos sistemas parciais de

comunicação. A institucionalização do sistema político e jurídico unificados territorialmente

prescindiu de um ambiente democrático em que se compatibilizassem as diferentes

perspectivas políticas, realidades econômicas e diferentes manifestações do fenômeno

jurídico. Não houve uma busca pelo consenso em um ambiente de dissenso democrático,

tendo se operado de maneira intolerante a imposição de um “consenso suposto” baseado em

padrões de conduta próprios dos valores das classes dominantes, não correspondentes às reais

expectativas cognitivas e normativas da comunidade. Os sistemas sociais de comunicação

institucionalizaram-se por argumentos de autoridade impostos mediante dominação e

opressão das demais parcelas da população que não participaram da construção das relações

de comunicação.

Na realidade da América Latina não cabe falar em generalização congruente de

expectativas normativas, mas sim em institucionalização imposta de um consenso baseado

nos valores e nos padrões de conduta eleitos por uma classe dominante por meio de relações

de opressão.

Este consenso imposto por uma parcela privilegiada da população representa mais

um desdobramento da modernidade periférica: as relações de “sub-integração” e “sobre-

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30

interação” sistêmicas35. Os sub-integrados em regra não têm acesso aos benefícios da ordem

jurídica. Existem inúmeras barreiras que os separam do exercício pleno de seus direitos como

a morosidade e os altos custos do processo e a falta de aparelhamento das defensorias

públicas36. Todavia, ainda que faltem condições para exercerem seus direitos, estes sub-

cidadãos não estão completamente excluídos, pois “não estão livres dos deveres e

responsabilidades impostas pelo aparelho coercitivo estatal, submetendo-se radicalmente a

suas estruturas punitivas37”. Para essa parcela da população, que representa a maioria, as

garantias constitucionais são absolutamente ineficazes e o aparato estatal só aparece para

cobrar-lhes coativamente, em momentos específicos, a adequação a uma cidadania da qual

eles não compartilham.

Por outro lado, os sobre-integrados constituem uma parcela minoritária mas

privilegiada da população que tem livre-acesso ao aparato burocrático do Estado e geralmente

não se submetem às estruturas coercitivas. Segundo Marcelo NEVES “a garantia da

impunidade é um dos traços característicos da sobre-cidadania”. Estes sobre-cidadãos se

valem das garantias constitucionais como instrumento para atingir seus interesses particulares

e utilizam os direitos fundamentais e os princípios como retórica em seu discurso de

dominação. O enorme número de demandas judiciais propostas por esta parcela da população

infla os cartórios e secretarias judiciais, tornando o sistema judiciário lento e diminuindo o

espaço de litigância da parcela marginalizada da população.

Em linhas gerais, esse quadro demonstra as peculiaridades da modernidade no

continente sul-americano, que permite caracterizá-la como “modernidade periférica” ou

“modernidade negativa38”: A falta de autonomia-identidade de seus sistemas sociais parciais,

a sobreposição indiscriminada de códigos-diferença que impedem uma adequada absorção da

realidade e as relações de sub-integração e sobre-integração de certas parcelas da população,

dão origem a uma complexidade absolutamente desestruturada. Isso potencializa a alopoiese

do sistema jurídico e proporciona segundo Marcelo Neves, um “inbricamento bloqueante e

destrutivo” do código jurídico com os demais códigos sociais39. Este quadro ocasiona não

apenas uma crise hetero-referencial cognitiva, mas também torna insuficiente a clausura

operacional interna do sistema jurídico, que deixa de ser normativamente fechado, fazendo

35 NEVES, 2003, p. 277 36 SOUSA SANTOS, 2007, p. 45 e ss. 37 NEVES, 2003, p. 278 38 Sobre o sentido de modernidade periférica ou negativa, ver NEVES, 2003, p. 266. 39 NEVES, 2003, p. 273.

Page 31: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

31

com que haja uma não-diferenciação adequada do Direito que permanece sem uma identidade

definida.

Os acoplamentos estruturais não conseguem cumprir seu papel, pois não há

seletividade na interferência inter-sistêmica. Muito embora os acoplamentos estruturais

estejam textualmente positivados, como no caso dos documentos políticos constitucionais, o

teor dessas normas não se efetiva na prática. O discurso presente no texto constitucional

(autonomia dos poderes, liberdade, igualdade, acesso à justiça e etc.) não se concretiza no seio

das relações sociais e passa a fazer parte de uma retórica vazia de sentido e com uma função

meramente simbólica, pois o que se observa na realidade é interferência indiscriminada de

interesses econômicos e políticos a determinar uma “aloprodução” do sistema jurídico.

A esta falta de autonomia-identidade interna do sistema jurídico, que prejudica

sua clausura operacional enquanto sistema normativamente fechado limitando sua condição

de abertura para o ambiente, adiciona-se a crise de identificação generalizada da sociedade

para com o Direito, tendo em vista que esta não acredita que a corrupção estrutural advinda da

ineficácia seletiva dos acoplamentos estruturais possa ser superada e também não se vê

contemplada pelas soluções apresentadas para a resolução dos conflitos sociais.

A parcela sub-integrada da sociedade, que não comunga dos valores presentes no

consenso imposto opressivamente pelos padrões de conduta fixados pela classe dominante,

não vê sentido nas normas jurídicas institucionalizadas pelo Estado. Em primeiro lugar

porque do ponto de vista semântico há uma nítida hipossuficiência técnica que torna o

discurso especializado dos profissionais do Direito absolutamente ininteligível para a grande

maioria da população40; e em segundo lugar, porque do ponto de vista pragmático os atos de

comunicação próprios do sistema jurídico não correspondem às expectativas normativas

generalizadas da comunidade sub-integrada, sendo portanto, em sua maioria, um aglomerado

de textos legislativos vazios de sentido cuja aplicação não cumpre a função de estabilização

das expectativas em conflito para solução dos litígios.

Segundo o professor Tércio Sampaio FERRAZ JR., há dois níveis de comunicação

humana: o cometimento e o relato41. O relato é a mensagem que emanamos e o cometimento é

a mensagem que emana de nós. O cometimento é uma mensagem simultânea que corresponde

à diferença existente entre o emissor e o receptor do comunicado. Por exemplo, se alguém diz

40 SOUSA SANTOS, 2007, p.55 e 56. 41 FERRAZ JUNIOR., 2003, p.106

Page 32: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

32

“faça silêncio” todos são capazes de compreender que o relato da mensagem é silenciar-se.

Porém, há uma diferença significativa se quem emana essa mensagem é, por exemplo, um

colega de turma ou o professor que ministra a aula. No caso da comunicação normativa, o

cometimento é a relação hierárquica existente entre a autoridade que emana a norma e o

sujeito a que ela se destina.

Ainda na esteira do pensamento do professor Tércio Sampaio de Ferraz Jr., a

relação comunicacional de cometimento (que se opera segundo a diferença autoridade/sujeito)

pode ser encarada pelos receptores da mensagem de três maneiras: (i) ela pode ser

confirmada; (ii) pode ser negada; (iii) ou pode ser desconfirmada. A relação é confirmada

quando a autoridade impõe a prescrição normativa e todos acatam sem protestos. A relação é

negada, quando muito embora reconhecida a posição da autoridade, os receptores não

identificam sentido para submeterem-se, e o fazem apenas por temor a eventuais represálias e

a relação é desconfirmada quando a autoridade é absolutamente ignorada e os receptores não

reconhecem sua legitimidade comportando-se da maneira diametralmente oposta à

normativamente estabelecida.

No caso do sistema jurídico dos países da América Latina, a crise de referência

cognitiva faz com que os indivíduos sub-integrados deixem de enxergar uma relação de

sentido nas normas porque há um abalo na construção da relação de comunicação normativa

(cometimento/relato). Os relatos das normas são passados aos receptores, que por sua vez não

se identificam com eles porque não participaram de sua construção (haja vista que os atos de

comunicação jurídicos não surgiram de expectativas normativas generalizadas, mas da

imposição repressiva de um consenso suposto baseado nos valores de uma classe dominante,

prescindido de um ambiente democrático). Além disso, apesar de reconhecerem a autoridade

existente na esfera comunicacional de cometimento, rejeitam-na, porque não vêem sentido

para submeter-se. Submetem-se, contudo, para evitar serem atingidos pelo aparato coercitivo

do Estado.

A relação não é mais autoridade/sujeito, mas autoridade/objeto. Os indivíduos da

sociedade não se sentem sujeitos da relação de comunicação normativa, mas meros objetos,

atuando como repositório em que se depositam os enunciados de permitir, proibir e obrigar.

Não são sujeitos porque não se sentem parte, porque não enxergam sua contribuição na

formação do consenso que institucionaliza as normas, porque não participam da construção

dos elementos que compõem o sistema jurídico. Por esse motivo, não vêem sentido em se

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33

sujeitar a uma ordem na qual não enxergam legitimidade, com a qual não se identificam e

nem se sentem contemplados pelas soluções por ela propostas.

A autoridade do direito estatal permanece reconhecida em razão do temor à

atuação coercitiva do Estado que se direciona de maneira especial à parcela sub-integrada da

população, mas é cotidianamente negada por esta no seio das relações sociais. Isso é algo

nocivo pois há uma enorme insegurança nos conflitos e a estabilização das expectativas

acontece apenas de maneira aparente. O Direito não cumpre sua função de maneira adequada

e muitas vezes obriga os indivíduos pertencentes à comunidade a buscar a solução de seus

conflitos por meios não-oficiais, ou seja, não pertencentes ao aparato burocrático Estatal.

Surgem então, nas lacunas não preenchidas pela ausência do Direito estatal, outras

esferas de juridicidade que pretendem assumir um controle parcial do código binário

lícito/ilícito com base em uma relação de autoridade difusa no meio social. Não há

propriamente uma diferenciação funcional, mas o surgimento de códigos jurídicos misturados

a outros códigos sociais, sem autonomia referencial clara e com uma hetero-referência

cognitiva relativa a certos grupos específicos da sociedade. A autoridade difusa, com base em

padrões de conduta pertencentes a um grupo determinado, institucionaliza estes padrões por

meio da produção de atos de comunicação jurídicos criados da generalização concentrada das

expectativas normativas correspondentes a esse grupo respectivo.

Há quem pretenda identificar neste fenômeno uma manifestação de pluralismo

jurídico. No caso da América Latina, surgem, por exemplo, as expressões “jurisdição especial

indígena” para se referir ao direito consuetudinário dos povos originários anteriores à

colonização européia do continente, que se diferencia do direito estatal formando uma ordem

jurídica própria desta parcela sub-integrada da população; “lei do asfalto” para se referir ao

quase-direito das favelas ou subúrbios brasileiros, em que uma autoridade difusa formada por

líderes comunitários ou por líderes de organizações criminosas estruturadas pela prática do

tráfico de entorpecentes, que, mediante a imposição do poder econômico gerado pelos lucros

do comércio ilegal e do poder coercitivo de seu forte aparato bélico, desenvolvem uma

autoridade repressiva que passa a ditar certos padrões de conduta no seio da comunidade.

Por outro lado, há quem defenda que não há como se referir a estes fenômenos

como pluralismo jurídico no sentido pós-moderno, tendo em vista que a falta de

autonomia/identidade do sistema jurídico e dos demais códigos de comunicação na

modernidade periférica formam uma super-complexidade desestruturada, uma mistura de

esferas de comunicação jurídicas e sociais geradoras de insegurança e que não cumprem a

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34

função do Direito por não fornecerem estabilização de expectativas. Assim sendo,ao invés de

pluralismo jurídico o mais correto seria fazer menção a uma mistura de códigos, uma

miscelânea não apenas jurídica, mas social42.

Para seguir adiante nesta discussão será preciso identificar o que se entende por

pluralismo jurídico no sentido pós-moderno, propondo uma delimitação semântica adequada

com objetivo de responder se o surgimento de esferas de juridicidade não-estatais como

regra, representa uma complexidade desestruturada, ou uma alternativa para a busca de

estabilização de expectativas em meio ao ambiente de sub-integração sistêmica existente na

modernidade periférica da América Latina.

1.4. Por uma definição de Pluralismo Jurídico

Inúmeras são as teorias acerca da origem do Pluralismo Jurídico. Alguns autores,

como GRIFFITHS, partem da distinção entre o que ele chamou de “legal centralism” e “legal

pluralism43

”. Esse autor assume uma posição radical baseada em constatações empíricas,

advindas de seus estudos antropológico-jurídicos, ao afirmar enfaticamente que “legal

pluralism is the fact. Legal centralism is a myth, an ideal, a claim, an illusion”44.

Griffiths afirma que a provável origem do fenômeno se deu com a expansão

colonizadora européia, que ao invadir os territórios não-europeus, impôs aos agrupamentos

sociais colonizados a autoridade de estruturas institucionalizadas na Metrópole. Tais

estruturas, por terem sido impostas por uma dominação estrangeira, encontraram forte

resistência, passando a conviver com as estruturas consuetudinárias dos povos colonizados.

Essa convivência conflituosa entre diferentes formas de estrutura e autoridade originaram uma

esfera jurídica plural.

Acompanhando este pensamento, Sally Engle MERRY45 afirma que o termo

"Pluralismo Jurídico" surgiu no início do séc. XX, de estudos que examinavam o direito

indígena que permeava as tribos e pequenas habitações nas sociedades colonizadas da África,

42 NEVES, 2003, p 274. 43 GRIFFITHS, 1986, p.3. 44 GRIFFITHS, 1986, p.4. Acerca desse tema, ver também os estudos de WOODMAN, 1998, p. 33: “Griffiths recognises non-state law more emphatically than the previous writers, because a central part of his programme is to combat the ideology of legal centralism and its denial of the character of law to normative orders other than that of the state.”. 45 MERRY, 1988, P. 870 e ss.

Page 35: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

35

Ásia e dos países do Pacífico. Nesse período, os cientistas sociais e antropólogos se

debruçavam em tentar entender como esses diferentes grupos étnicos mantinham uma ordem

social baseada em costumes institucionalizados, mas não positivados.

A partir dos estudos de autores como John GILISSEN, Jacques VANDERLINDEN e

Barry HOOKER em meados da década de 1970, a temática ganhou uma maior repercussão na

comunidade científica e se despertou o interesse no modo peculiar com que os habitantes das

colônias possuíam tanto o direito indígena quanto o direito positivado imposto pela metrópole

Européia. Os nativos possuíam um direito desenvolvido ao longo dos anos e dos costumes, e

com a colonização houve uma imposição do direito formal europeu. O racionalismo Europeu,

voltado para uma realidade completamente distinta da realidade das colônias, acabou por

forçar a adoção de princípios e procedimentos muito distantes do estilo de vida dos colonos.

A imposição do direito Europeu era justificada pela idéia dominante da época de

que se tratava de uma benesse à colônia apresentar-lhe um modelo jurídico mais "civilizado",

livrando-a da "anarquia" existente antes da presença da metrópole. Chegava-se a dizer que o

direito colonial era até admitido apenas quando não era "repugnante para a justiça natural” 46.

Dizia-se que tal direito era inconsistente, pois não era escrito.

Para Sally E. MERRY, independente do surgimento do termo, o pluralismo jurídico

como fato vai muito além de uma simples coexistência entre direito colonial e direito europeu

nos países da África e da Ásia no início do sec. XX. Segundo se afirma essa não foi a primeira

vez que houve uma imposição externa ao direito desenvolvido por povos nativos. O Direito

dos povos originários sofreu retaliações e imposições dos colonizadores ao longo de séculos.

Alguns autores, baseados em uma abordagem histórica do fenômeno, também

defendem que o pluralismo jurídico como fato sempre existiu nas mais diferentes sociedades,

e desde tempos remotos há a coexistência de um direito oficial que se sobrepõe

conflituosamente a um direito marginal, informal. Cita-se, para ilustrar a idéia, que durante o

Império Romano houve grande diversidade jurídica formada pelo direito central dos cidadãos

romanos e o direito dos "estrangeiros" dominados, a quem era permitida certa autonomia

jurídica47.

46 MERRY, 1988, P. 870 e ss. 47 WOLKMER, 2001, p. 184.

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36

Nessa perspectiva, MERRY busca um conceito para o Pluralismo Jurídico. Partindo

das idéias de GRIFFITHS, afirma que este pode ser genericamente definido como a “situação na

qual duas ou mais esferas legais coexistem em um mesmo campo social48”.

Outros autores que pesquisaram sobre o tema também buscaram elaborar um

conceito para o fenômeno. Entre eles há o conceito de coexistência do direito estatal com

campos sociais semi-autônomos de regulação jurídica. Ou de “mecanismos jurídicos

diferentes existentes em uma mesma sociedade49”. Sob outro enfoque, Boaventura de SOUSA

SANTOS, em seu famoso trabalho escrito após o período que residiu em meio à comunidade da

favela do jacarezinho no Estado do Rio de Janeiro (a que concedeu gentilmente o nome de

Pasárgada), identificou a existência de uma esfera jurídica própria da comunidade local,

exercida independentemente do Estado pela autoridade de líderes comunitários que

propunham a conciliação dos moradores nos casos de conflitos envolvendo relações de

propriedade dos terrenos invadidos e das benfeitorias construídas sobre eles. Boaventura

chamou atenção para o fato de a “lei de Pasárgada” ser um exemplo de sistema legal informal

e não-oficial desenvolvido por classes urbanas oprimidas que buscavam sobrevivência na

sociedade capitalista da época50.

Como se pode observar, muitos foram os estudos dedicados ao tema do

pluralismo jurídico. Muita polêmica foi levantada a respeito de qual seria o conceito ideal

para sua identificação. O assunto gerou verdadeiro fascínio nos juristas, que enxergavam na

relação entre ordens não-oficiais, subversivas e obscuras com o direito estatal a chave para

entender algumas das muitas implicações da pós-modernidade no estudo do Direito.

Outrossim, é importante ressaltar que todas as correntes que tratam do pluralismo

jurídico se desenvolveram no âmbito Europeu e Anglo-americano51. Conquanto, não foram

raros os juristas que tentaram utilizar-se desses conceitos para se referir ao fenômeno das

esferas de juridicidade difusas presentes na América Latina. Como ressaltado anteriormente, a

modernidade que se desenvolveu nos países sulamericanos apresenta algumas peculiaridades

que tornam necessária uma releitura cuidadosa dos conceitos “importados” de países cuja

modernidade se deu de maneira diferente.

48 MERRY, 1988, P. 883. 49 L’existence, au sein d’une société déterminée, de mécanismes juridiques différents s’appliquant à des situations identiques. VANDERLINDEN, 1971, p.19. 50 SOUSA SANTOS, 1977, p. 89. 51 Nesse mesmo sentido, NEVES, 2003, p. 265.

Page 37: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

37

Além disso, o próprio professor Boaventura de SOUSA SANTOS fez questão de

enfatizar recentemente em uma palestra proferida aos estudantes da Faculdade de Direito da

Universidade de São Paulo, que em nome da valorização e defesa do reconhecimento de um

pluralismo jurídico na América Latina não se deve cometer o equívoco de “romantizar” certas

relações como as que se travam no interior de algumas favelas brasileiras. Dentro da ordem

jurídica própria das comunidades contém ainda muita opressão e violência, que não permite

dizer que sejam sistemas normativos com pretensão de autonomamente assumir uma função

jurídica parcial em coexistência com o Direito estatal, mas em muitos casos, trata-se apenas

de auto-afirmação da autoridade imposta pelo crime organizado querendo fazer valer seus

interesses particulares.

Assim sendo, faz-se necessário um olhar crítico sobre as teorias que cercam o

pluralismo jurídico quando se pretende fazer referência à realidade da América Latina. O

estudo do fenômeno pode ser melhor compreendido na perspectiva da teoria dos sistemas,

sem deixar de fazer menção às implicações da alopoise do sistema jurídico, das relações de

sub-integração e das características da modernidade periférica. Então, deve-se ir um pouco

além do referencial teórico de Niklas LUHMANn. Para ele, a autopoiese é um conceito bastante

rígido - ou um sistema é autopoiético ou não é; não existe sistema parcialmente autopoiético.

A fim de flexibilizar essa compreensão, deve-se ter como pressuposto que a

autonomia do sistema jurídico apresenta uma realidade gradativa52. Isso quer dizer que há um

acúmulo de relações auto-referenciais até que se atinja a auto-reprodução circular e fechada

do sistema.

De acordo com Gunther TEUBNER, há um aumento gradativo de relações

circulares no sistema, que podem ser distinguidas em três níveis: auto-observação, auto

constituição e auto-reprodução. Desta forma, “o grau de autonomia dos subsistemas sociais é

determinado, em primeira linha, pela definição auto-referencial dos seus componentes (auto-

observação), adicionalmente pela incorporação e utilização operativa no sistema dessa auto-

observação (auto-constituição) e, finalmente, pela articulação hiper-cíclica dos componentes

sistêmicos auto-gerados, enquanto elementos que se reproduzem entre si numa circularidade

recíproca (autopoiese) 53.” Para Teubner, é o hiper-ciclo que garante a autonomia completa do

sistema parcial, pois apenas assim o sistema se reproduz sem a interferência direta do meio

envolvente. Apenas quando as relações auto-referenciais circulares interagem entre si, em um

52 TEBNER, 1989, p. 64 e ss. 53 TEBNER, 1989, p. 68.

Page 38: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

38

hiper-ciclo, é que se pode dizer que o sistema atingiu sua clausura autopoiética. Conclui-se

então que existem níveis intermediários de autonomia sistêmica, os quais podem caracterizar

certos tipos de subsistemas jurídicos que não desenvolveram de maneira adequada sua auto-

reprodução diferenciada funcionalmente em relação ao restante dos outros sistemas sociais.

A posição de Teubner acerca da autopoiese parece ser mais adequada para

compreender o desenvolvimento do sistema jurídico no âmbito da modernidade periférica da

América Latina. A sobreposição de códigos binários pertencentes a outros sistemas sociais ao

código de descrição do sistema jurídico ocasiona uma mistura entre atos de comunicação

sociais e jurídicos, além disso, a falta de efetivação dos acoplamentos estruturais e a

corrupção sistêmica generalizada, bem como o surgimento de atos de comunicação baseados

em padrões de conduta fixados por relações de autoridade difusas no meio social, obriga-nos a

buscar uma nova maneira de apreender a complexidade desestruturada dos países sul-

americanos. Identificar essa realidade como sendo tão somente a manifestação de um

pluralismo jurídico e social nos termos das teorias européias e anglo-americanas, a despeito

do esforço teórico, não se mostra uma solução satisfatória para o problema porque não

apresenta condições de superá-lo. Assim, é imprescindível observar a situação sob o prisma

de um referencial teórico que se aproxime da complexidade peculiar existente na realidade

periférica.

Ao adotar o pressuposto de autonomia do Direito como uma realidade gradativa

com base na idéia de hiper-ciclo, Teubner conclui que a autonomia do sistema jurídico se

desenvolve em três fases: “Direito socialmente difuso”, “direito parcialmente autônomo” e

“direito autopoiético54

”.

No “direito socialmente difuso” os atos de comunicação jurídicos não se

diferenciam funcionalmente de maneira adequada dos demais atos de comunicação

pertencentes a outros sistemas parciais ou ao sistema de comunicação social geral. Embora

exista uma tênue diferença entre normas jurídicas e padrões de conduta sociais

institucionalizados (regras de comportamento, preceitos morais), os códigos jurídicos e os

códigos de conduta sociais ainda remanescem misturados de maneira desestruturada no seio

da comunidade. Os conflitos sociais se resolvem na tentativa de estabilização de expectativas

com base na aplicação de um código lícito/ilícito, mas não se observa a aplicação diferenciada

de uma norma essencialmente jurídica. “(...) não se pode ainda falar de um sistema jurídico

54 TEBNER, 1989, p. 77

Page 39: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

39

em sentido estrito, dada a identidade entre as ações jurídicas e as ações sociais gerais, entre as

normas jurídicas e as normas sociais, e entre os processos jurídicos e os processos comuns de

resolução de conflitos55”.

Cumpre ressaltar que neste estádio estão presentes, ainda que de maneira

rudimentar, as características elementares de um sistema jurídico, quais sejam: a tentativa de

resolução de conflitos sociais para estabilização das diferentes expectativas e a aplicação da

distinção entre lícito e ilícito para proferir uma decisão. Diferentemente no que acontece em

regramentos cuja resolução de conflitos se baseie apenas no uso da força para fazer prevalecer

os interesses particulares de uma autoridade imposta opressivamente.

Já com relação ao “direito parcialmente autônomo”, tem-se que alguns elementos

pertencentes ao sistema jurídico passam a diferenciar-se dos atos de comunicação social,

adquirindo autonomia por meio de uma auto-referência circular. O sistema jurídico passa

então a observar seus próprios elementos, diferenciando-os do restante dos códigos sociais.

Surgem assim, normas jurídicas que se direcionam a identificar a existência de outras normas

jurídicas. Ainda não há uma completa clausura operacional, pois se trata apenas de uma auto-

descrição e não uma auto-constituição ou uma auto-produção autônoma de elementos pelo

próprio sistema. O sistema jurídico parcialmente autônomo ainda não confecciona por si

mesmo seus elementos (atos de comunicação normativos) em um circuito fechado, mas já é

capaz de se referir a certos atos de comunicação social e identificá-los como sendo, ou não,

jurídicos. Já é capaz de distinguir o que é ou não ato jurídico no seio da sociedade e de aplicar

o código lícito/ilícito para proferir decisões, mas não o faz ainda de maneira exclusiva, sem a

interferência determinante e direta de fatores externos.

Teubner ressalta que esta idéia pode ser bem exemplificada pelo conceito de

“normas secundárias56”. Citando Hart, Teubner afirma que só se pode falar de direito

parcialmente autônomo quando “normas de conduta primárias são ultrapassadas e reguladas

por normas secundárias de identificação e processualização”. Ou seja, apenas quando

elementos essencialmente jurídicos passam a versar sobre outros elementos de comunicação

jurídicos, identificando-os como pertencentes a um mesmo sistema de comunicação

diferenciado, e prevendo de que maneira este sistema deve organizar-se e se estruturar para

cumprir sua função, é que se estabelece um “direito parcialmente autônomo”.

55 TEBNER, 1989, p. 80 56 TEBNER, 1989, p. 80

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40

Por fim, Teubner caracteriza a existência de “direio autopoiético” a partir do

momento que os elementos pertencentes ao sistema jurídico não apenas se auto-descrevem e

se auto-identificam em uma relação de circularidade, mas se auto-reproduzem em uma rede

própria e autônoma, em uma relação circular hiper-cíclica auto-reprodutiva,

independentemente da interferência direta de fatores externos. “a autopoiese jurídica apenas

pode emergir caso as relações auto-referenciais circulares do sistema sejam constituídas por

forma a permitirem a sua própria articulação e interligação num hiper-ciclo auto-

reprodutivo57”.

À vista desses pressupostos fundamentais, é possível elaborar um conceito

adequado para o pluralismo jurídico existente em alguns Estados da América Latina. Todavia,

ressalte-se desde logo que a pretensão aqui não é esgotar o tema na mera identificação da

pluralidade de ordens jurídicas. Os conceitos aqui elaborados servirão como ferramenta para

doravante se buscar uma forma de superação da complexidade jurídica desestruturada

existente em países do continente sul-americano.

De qualquer maneira, à luz da modernidade peculiar da América Latina, o

pluralismo jurídico deve ser entendido como uma fragmentação sub-sistêmica, que se opera

no interior do sistema jurídico, ocasionada pela falta de autonomia-identidade e pela crise de

hetero-referência do Direito tradicionalmente controlado pelo Estado, bem como pela falta de

identificação deste Direito com as parcelas sub-integradas da população.

No seio da comunidade sub-integrada surgem conflitos em que ocorre uma

divergência de expectativas, para as quais é necessária a tomada de decisão. Entretanto, as

expectativas envolvidas, em sua maioria, não chegam a se manifestar perante o direito oficial

ante as dificuldades de acesso ao Poder Judiciário, ou então porque não se identificam

semântica e pragmaticamente com as normas jurídicas elaboradas com base no consenso

imposto pela autoridade Estatal, tendo em vista que, como explicitado no capítulo anterior,

este consenso diz respeito à imposição de padrões de conduta que se referem a valores

próprios de uma classe dominante econômica e politicamente. Assim sendo, no seio das

relações sociais da população sub-integrada, emergem constantemente lacunas de decisão as

quais o direito Estatal não consegue contemplar.

Para suprir a omissão do direito estatal, em seu lugar se desenvolvem certos

regramentos sociais cujo objetivo é proferir decisões e pacificar os conflitos. Tal fenômeno se

57 TEBNER, 1989, p. 84

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41

opera em meio a uma estrutura difusa, construída no seio da comunidade sub-integrada, a fim

de institucionalizar as expectativas normativas que surgem permanentemente nas relações de

comunicação dos indivíduos. Emergem então atos de comunicação que se assemelham aos do

sistema jurídico, operando-se e referindo-se entre si com base no código-diferença

lícito/ilícito. Essas entidades informais passam a utilizar-se de meios de processualização

semelhantes aos existentes no sistema jurídico. Em linhas gerais, o pluralismo jurídico se

forma “como uma multiplicidade de diversos processos comunicativos que observam a

atuação social mediante um código lícito/ilícito58

”.

Porém, como ressalta Teubner, “nem toda resolução de conflitos

institucionalizada pode ser confundida ou reconduzida ao direito59”. Destarte, exclui-se do

que se entende por pluralismo jurídico a resolução de conflitos por intermédio do uso da força

operada mediante a aplicação de normas de comportamento social impostas por uma

autoridade opressora, a qual tem apenas a intenção de se auto-afirmar pela dominação

exercida sobre uma determinada comunidade, tendo em vista a possibilidade de exercer meios

coercitivos para fazer valer seus interesses, seja por meio de poderio bélico ou econômico,

geralmente resultado de práticas ilegais inseridas no contexto do crime organizado, como é o

caso de certos regramentos que vigoram nas favelas brasileiras dominadas por milícias

armadas que comandam o tráfico de entorpecentes.

Não há como admitir que o Direito permeie esse tipo de regramento, estruturado

de acordo com os interesses particulares de certos líderes criminosos, porque não estão

presentes características elementares de um sistema jurídico, quais sejam: divergências de

expectativas a serem estabilizadas e resolução do conflito com base na distinção lícito/ilícito.

Deste modo, percebe-se a dificuldade em identificar como se opera a invocação

do código jurídico no ambiente informal das parcelas sub-integradas da população. Na

maioria dos casos, não há diferença significativa entre um código estritamente jurídico e um

código social (normas de comportamento, preceitos morais, regras de boa educação e etc.). Os

atos de comunicação que se diferenciam na comunidade com o objetivo de solucionar

conflitos se assemelham muito aos atos de comunicação jurídicos, mas seguem misturados

aos demais atos de comunicação social. Esta realidade se assemelha com o estádio do “direito

socialmente difuso”. Aqui há o risco de estar-se diante de uma verdadeira miscelânea jurídica

e social na qual estão presentes de maneira difusa, vários regramentos e autoridades, operando

58 TEBNER, 2005, p. 89 59 TEBNER, 1989, p. 79.

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42

sem uma definição de autonomia e identidade. Não há como diferenciar o surgimento de uma

ordem jurídica própria, que se fragmenta em um sub-sistema contido dentro do sistema

jurídico.

Para poder-se falar em pluralismo jurídico no sentido pós-moderno em meio a esta

realidade desestruturada, deve-se ir um pouco além na gradação da autonomia deste direito

difuso no meio social. Deve-se identificar na esfera de juridicidade surgida no âmbito de uma

comunidade sub-integrada uma nítida pretensão de adquirir autonomia. E não apenas isso. É

necessário que essa esfera de juridicidade consiga se auto-descrever por meio de seus próprios

atos de comunicação, ou seja, que seja capaz de diferenciar os atos de comunicação jurídicos

dos demais atos de comunicação social por meio da auto-aplicação do código-diferença

lícito/ilícito.

Mesmo que não apresente um fechamento operacional completo e uma autonomia

de auto-constituição, ou ainda que não tenha autonomia para aplicação do código binário

jurídico sem a intervenção direta de elementos advindos de outras esferas de comunicação

social e que não consiga operar-se autonomamente em relação ao próprio direito Estatal, tem

de ser apta a diferenciar com clareza os elementos sistêmicos próprios dos demais elementos

sociais, tem de ter a pretensão inequívoca de diferenciar-se dos demais atos de comunicação

social para satisfazer a estabilização de expectativas normativas e proferir decisões.

Este é o caso de certas ordens jurídicas existentes no seio de comunidades

indígenas que habitam Estados da América Latina. Estas comunidades são formadas por um

grupo de sub-cidadãos que, muito embora não tenham acesso ao sistema jurídico para

satisfazer suas expectativas, não estão livres das responsabilidades e deveres que lhe

estabelecem o direito Estatal, como a limitação e demarcação de seus territórios, a proibição

de certas condutas presentes em seus costumes, mas que contrariam normas de ordem pública

e etc.

Estes indivíduos, apesar de inseridos no mesmo espaço-tempo em que vigora a

ordem jurídica estatal única, não se identificam com esta ordem jurídica. Não estabelecem

uma relação de sentido com as normas jurídicas legais e constitucionais, tanto no nível

semântico quanto no nível pragmático. Não reconhecem a autoridade do aparato burocrático

estatal e não vêem motivos para submeter-se a ela, desconfirmando-a integralmente. Todavia,

em alguns casos são obrigados a submeter-se a autoridade, mesmo que a rejeitando, para

evitar serem vítimas dos instrumentos coercitivos do aparato burocrático do Estado.

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43

Estes agrupamentos sociais exercem o controle do código binário lícito/ilícito

mediante a aplicação deste código em processos jurídicos típicos, os quais envolvem normas

de comportamento institucionalizadas por costumes milenares. Estes atos de comunicação

diferenciam-se dos demais atos de comunicação sociais, e formam um sistema parcial com

relativa autonomia operacional.

Os elementos pertencentes a estas ordens jurídicas são capazes de descrever-se

segundo a orientação programada pelo código-diferença próprio, e são capazes de identificar

os atos de comunicação essencialmente jurídicos dos demais atos de comunicação sociais. São

verdadeiros microssistemas fragmentados, que formam ordens jurídicas periféricas que

convivem com o direito estatal. Embora não consigam diferenciar-se da ordem jurídica estatal

que se apresenta como centro do sistema jurídico, estas ordens jurídicas se desenvolvem na

periferia do sistema jurídico com pretensão inequívoca de adquirir autonomia sistêmica.

Em alguns países cuja população indígena é mais expressiva, como é o caso da

Bolívia, estas ordens jurídicas periféricas atingiram tal grau de institucionalização e

autonomia que foram reconhecidas pela ordem jurídica central, e passaram a ser previstas

constitucionalmente como possuidoras de uma jurisdição especial dentro do mesmo território,

diferenciada da jurisdição ordinária tradicionalmente controlada pelo aparato burocrático do

Estado.

Nesse caso, não se está mais diante de um direito difuso no meio social, mas há o

surgimento de um direito parcialmente autônomo, capaz de descrever-se circularmente em um

circuito auto-referencial independente de outros códigos sociais. Muito embora dependente do

reconhecimento por meio do documento político constitucional característico do direito

Estatal, esta ordem jurídica periférica destaca-se da miscelânea de códigos sociais e jurídicos

uma vez que deixa de conter em seus elementos apenas normas de conduta, e passa a operar

em seus atos de comunicação jurídicos segundo normas auto-referenciais de competência,

normas de descrição, de adjudicação, reconhecimento e mudança. Esta ordem jurídica

periférica, surgida da fragmentação do sistema jurídico por meio da institucionalização

constitucional, deixa de possuir apenas normas primárias, mas desenvolve também normas

secundárias no sentido do ensinamento de Hart, como nos demonstrou Teubner60.

Ou seja, apenas quando se atinge o estádio de “direito parcialmente autônomo” é

que se configura uma verdadeira fragmentação sub-sistêmica que dá origem a uma nova

60 TEBNER, 1989, p. 80

Page 44: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

44

ordem jurídica existente paralelamente à ordem jurídica estatal. Desta forma, passam a

conviver em um mesmo sistema jurídico normas pertencentes a ordens jurídicas diferentes:

normas de Direito institucionalizadas pelo Estado e atos de comunicação jurídicos advindos

da institucionalização de uma autoridade estruturada perifericamente no interior do sistema

normativo. A ordem jurídica oficial do Estado deixa de deter a exclusividade no controle do

código binário próprio do Direito, e passa a compartilhá-lo com uma modalidade diferente de

jurisdição extraordinária.

Sob este prisma, pode-se identificar com segurança a existência de um pluralismo

jurídico. No caso de alguns Estados como a Colômbia e a Bolívia este pluralismo jurídico que

se observa nitidamente na realidade já se efetivou também formalmente na elaboração dos

documentos políticos constitucionais destes países.

Identificada uma delimitação semântica adequada para o fenômeno do pluralismo

jurídico na América Latina, podemos avançar no estudo da relação entre as ordens jurídicas

perifericamente estruturadas no interior do sistema jurídico dos Estados Nacionais e a ordem

jurídica central institucionalizada pelo aparato burocrático do Estado.

Cumpre a este trabalho superar a mera “identificação”, “constatação” ou

conceituação do pluralismo jurídico a que se limitaram seus estudiosos, os quais

tradicionalmente se referem ao problema como um ponto de tensão insuperável entre Direito e

sociedade, no qual as ordens jurídicas múltiplas inseridas em um mesmo espaço-tempo têm de

estar envolvidas em uma espécie de conflito potencial permanente e constante.

Deve-se superar esta noção, pois o pluralismo jurídico em si já foi largamente

percebido empiricamente. O reconhecimento formal das múltiplas ordens jurídicas fundadas

na multiplicidade cultural já teve início por meio das novas constituições que têm sido

aprovadas na América do Sul. O que importa agora é superar a mera constatação e a

identificação de um "conflito potencial" entre as diferentes jurisdições para passar a estudar

como promover a inter-relação entre as ordens jurídicas no seio dos Estados Nacionais. Qual

será a chave para a convivência entre duas ordens jurídicas em um mesmo espaço-tempo? A

intenção deste trabalho é propor uma possível resposta a esta pergunta.

Para tanto, no próximo capítulo será estudado o modelo proposto pela nova

Constituição boliviana, aprovada por meio de referendo popular em 02 de fevereiro de 2009,

particularmente sob a perspectiva do desenvolvimento das idéias de “Estado Plurinacional”,

“Jurisdição Especial Indígena”, e “multiculturalismo”. A realidade constitucional boliviana

Page 45: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

45

servirá de pano de fundo para a discussão acerca da relação entre ordens jurídicas indígenas

consuetudinárias, pertencentes a uma parcela da população que na Bolívia representa a

maioria, mas que tradicionalmente se mantém sub-integrada ao sistema social, e o Direito

ordinário Estatal.

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46

2. UMA ANÁLISE DO CASO BOLIVIANO: A JURISDIÇÃO

ESPECIAL INDÍGENA NO NOVO DOCUMENTO POLÍTICO

CONSTITUCIONAL

O novo documento político constitucional do Estado boliviano foi aprovado

mediante referendo popular na data de dois de fevereiro de dois mil e nove em meio a um

período de intensa agitação política no país. Pela primeira vez na história da Bolívia um

presidente de origens indígenas exercia o cargo de chefia no Poder Executivo. Juntamente

com a chegada de Evo Morales à presidência, tem início um novo projeto de Estado

boliviano, voltado para atender a uma agenda social e política de valorização indígena e

popular.

A realidade boliviana é de clara transição61. A elite economicamente dominante,

formada por grandes proprietários de terra herdeiros das relações de caudilhismo, passou a

perder força política à medida que a população indígena, operária e campesina começou a se

organizar conjuntamente para lutar por melhores condições de vida. As principais mudanças

que se deram de maneira preliminar foram o reconhecimento de direitos trabalhistas e após, a

valorização da cultura e das línguas indígenas.

Os povos indígenas campesinos - parcela absolutamente miserável da população -

representam a grande maioria no país. Desta forma, percebeu-se que se organizando

politicamente poderiam unir-se em torno de uma liderança comum para promover mudanças

estruturais e reduzir as desigualdades sociais. É neste cenário que surge a figura de Evo

Morales. O líder político de origem indígena conseguiu reunir as parcelas mais carentes da

população, antes fragmentadas e dominadas pelas relações de dependência travadas com a

classe dominante, e assim, construiu uma grande força política que lhe garantiu um

surpreendente segundo lugar nas eleições presidenciais de 2002, e a vitória, por maioria

absoluta ainda no primeiro turno, nas eleições de dezembro 2005.

A enorme adesão popular de Evo Morales permitiu-lhe iniciar uma série de

transformações de ordem econômica e social, dentre elas o processo de estatização de

algumas empresas privadas, e, em especial, a polêmica nacionalização da exploração dos

61 Nesse sentido, STEFANONI, 2007 p. 65, e CALDERÓN, p. 33.

Page 47: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

47

hidrocarbonetos. Com isso, Morales deu início a profundas reformas estruturais que podem

ser consideradas uma verdadeira revolução na sociedade boliviana.

As mudanças trazidas pelas ações do novo governo provocaram resistência dos

setores mais conservadores da sociedade, e em algumas províncias como Pando e Tarija, cujo

governo pertencia à oposição, houve contra-ofensiva armada na intenção de aplicar um golpe

de Estado e tirar o governo das mãos de Evo Morales. Todavia, o presidente contava com

apoio de grande maioria da população do país que corroborou democraticamente por meio de

plebiscitos e referendos a aprovação das medidas adotadas pelas políticas do Executivo.

Álvaro Garcia LINERA, vice-presidente do governo de Evo Morales, chamou o

momento político vivido pela Bolívia de “ponto de bifurcación62

”:

“(...) la renuncia de Sánchez de Lozada a la presidencia y la elección de Evo Morales como primer mandatario, se consolidó un proceso de construcción de un nuevo proyecto social y político, indígena y popular, capaz de disputarle el poder al neoliberalismo de los bloques dominantes. Ninguno de estos sectores, sin embargo, se encuentra en condiciones de hegemonizar los ámbitos y el consenso para la toma de decisiones. Esto provoca una crisis que deberá definirse en algún tipo de instancia en la que se pueda resolver la institucionalización del nuevo Estado. Esta crisis puede concluirse de manera insurreccional. por exhibición de fuerzas o (...) por via democrática, a través del diálogo y la construcción plural, teniendo como eje la nueva Constitución.63”

Todo esse processo de transformação culminou com a promulgação de uma nova

Constituição, ou seja, com a fundação de um novo modelo de Estado e de Nação para a

Bolívia. A população indígena que até o momento era parcela sub-integrada ao sistema social,

foi convidada a ajudar a construir os novos elementos que serviriam de base para o

desenvolvimento dos sistemas sociais diferenciados.

Assim, conclui-se que diante da enorme complexidade social, dever-se-ia adotar

um modelo que levasse em conta a pluralidade de manifestações culturais, políticas e jurídicas

dentro do território boliviano, reconhecendo constitucionalmente a existência de um Estado

unitário, mas multicultural que se constituiria por meio do diálogo intercultural.

As bases fundamentais do novo Estado boliviano estão descritas no artigo

primeiro da nova Constituição:

“Artículo 1 - Bolivia se constituye en un Estado Unitario Social de Derecho Plurinacional Comunitario, libre, independiente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado y con autonomías. Bolivia se funda en la pluralidad

62 LINERA, 2008, p. 27. 63 LINERA, 2008, p. 24.

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48

y el pluralismo político, económico, jurídico, cultural y lingüístico, dentro del proceso integrador del país. (grifo nosso)64”

Pela definição acima, nota-se que o Estado boliviano caracteriza-se pela

valorização da pluralidade e do pluralismo que se desdobra em vários aspectos: político,

jurídico, cultural e lingüístico. Nota-se que o legislador constituinte fez questão de enfatizar

que a Bolívia não é um Estado formado por uma só nação, tendo em vista que não há a

previsão de uma categoria hipotética única com a pretensão de abarcar universalmente toda a

população, mas o define como sendo um “Estado de Direito Plurinacional”, com o objetivo de

integrar as diferentes “nações” que residem no mesmo território em um único Estado.

O respeito e a tolerância às diferentes manifestações de cultura parecem ser a

tônica deste modelo, buscando estabelecer um meio de coexistência harmônica entre as

variadas etnias sob o mesmo aparato burocrático. Para isso, foram institucionalizadas

ferramentas de auxílio e calibração, bem como foram criados conceitos fundamentais para

promover a integração das diferenças em um ambiente de dissenso democrático e de busca

pelo consenso, respeitadas as autonomias.

No aspecto que mais interessa a este trabalho, tem destaque a institucionalização

do pluralismo jurídico como base fundamental do Estado, por meio da fragmentação do

sistema jurídico em duas ordens jurídicas distintas, tendo sido criada uma jurisdição

extraordinária que rompeu com a tradicional exclusividade da ordem Estatal para controlar o

que é ou não Direito na sociedade. A aplicação do código lícito/ilícito foi dividida duas

ordens inseridas no mesmo sistema jurídico: A jurisdição ordinária e a jurisdição especial

“indígena originária campesina”.

Para entender como o novo Estado boliviano pretende lidar com o fenômeno do

pluralismo jurídico existente em seu território à luz da realidade complexa e desestruturada,

típica da modernidade periférica da América Latina, faz-se necessário o estudo do conceito de

“plurinacionalidade” como base fundamental do Estado e da construção da jurisdição especial

indígena pelo legislador constituinte. É exatamente a esses dois pontos que este capítulo de

dedica.

64 BOLIVIA. Nueva Constitución Política Del Estado, outubro de 2008. Disponível em < Http://www.presidencia.gob.bo/download/constitucion.pdf>

Page 49: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

49

2.1. Estado de Direito “Plurinacional”: multiculturalismo e

plurinacionalidade como base fundamental do Estado Boliviano

O caráter “plurinacional” do novo modelo de Estado boliviano tem a ver com o

reconhecimento da preexistência das nações indígenas no país, anteriores ao período colonial.

É o reconhecimento da origem da formação da população boliviana, que se deu

principalmente pela junção entre os povos indígenas originários e a chegada dos

colonizadores espanhóis. A importância deste conceito está na transição de um modelo de

Estado unitário e social, construído com primazia no pensamento e na tradição européia de

unidade da nação, sem levar em conta as manifestações culturais indígenas, para um Estado

que tenta promover a unidade social respeitando as diferenças e convidando os povos

indígenas a participar desta construção, contribuindo com seus valores e modos de

organização e estrutura próprios65.

O novo documento político constitucional fala de diferentes nacionalidades

compondo um único Estado, e não apenas de diferentes etnias, ou de uma sociedade

multicultural. A Constituição boliviana vai além, e procura identificar os povos indígenas

como “nações” diferenciadas do restante da população. Este aspecto do novo texto

constitucional sofreu duras críticas dos grupos políticos mais conservadores durante o período

da Assembléia Constituinte. Estes grupos defendiam que a Constituição deveria prever uma

sociedade com variedade étnica e com múltiplas manifestações culturais, mas não deveria

adotar o caráter de plurinacionalidade, tendo em vista que tal reconhecimento abalaria a

unidade do Estado boliviano66.

Todavia, parece que o legislador constituinte tomou a decisão correta. Não se

deve confundir o conceito de Estado com o conceito de Nação. É equivocado o pensamento

de que a cada nação deve possuir um Estado próprio67. Esta pretensão de caracterizar o Estado

moderno como Estado unicamente nacional remonta ao período de formação dos Estados

Nacionais europeus. O surgimento do conceito de nação está atrelado à luta pela constituição

65 Em uma perspectiva parecida, Ester Sanchez BOTERO, ao analisar a aprovação da Constituição colombiana de 1991, chamou atenção para o fato de que nascera um "novo modelo de nação na Colômbia, orientado a valorizar e fortalecer as diferenças", pois com as profundas mudanças constitucionais experimentadas, houve uma espécie de ruptura no chamado "Estado Monocultural e etnocentrista" que excluía as demais culturas que se diferenciavam do padrão eleito pela ordem jurídica, para se configurar um "Estado Multicultural". BOTERO, 2003, p. 2. 66 Nesse mesmo sentido MAYORGA (2007). 67 Nesse sentido, FAJARDO, 2000, p. 1.

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50

de unidades políticas estáveis e delimitadas territorialmente. Era preciso um artifício para unir

todo o povo em prol da construção de um mesmo centro político diferenciado dos demais, e

para isso foi criado o conceito de nação68.

O que se observa com a pós-modernidade é que a idéia de nação não coincide

mais com o Estado, passando a se desvincular deste à medida que as fronteiras territoriais

passam a ser relativizadas pelo desenvolvimento de meios de comunicação e locomoção

globais e inter-regionais. De acordo com o professor Dalmo de Abreu DALLARI, a principal

diferença entre Estado e Nação é que o Estado corresponde à idéia de sociedade, e Nação

corresponde à idéia de comunidade69.

As sociedades se formam mediante vínculos jurídicos estabelecidos pelos

indivíduos por atos de vontade com respeito a atingir um fim comum. Reúnem-se pessoas,

geralmente diferentes em relação aos aspectos culturais, mas que almejam conseguir um

objetivo que a todas interessa, sem que desapareçam as diferenças entre si70. Já as

comunidades, surgem em um primeiro momento independentemente da vontade, quase que

inconscientemente, como manifestação de afinidades psíquicas e espirituais entre um grupo

de indivíduos que simpatizam entre si, evoluindo esta relação de simpatia para uma relação de

confiança recíproca e fazendo com se unam por vínculos de sentimento. Conscientes deste

fato, as pessoas pertencentes à comunidade passam a agir de modo a fortalecer a união71, e

por pertencerem a uma mesma comunidade unida passam a desenvolver pensamentos e

práticas comuns, sentimentos comuns e costumes comuns que culminam na emersão de um

conjunto de expectativas cognitivas e normativas comuns.

À vista dessa diferença, pode-se considerar que o Estado corresponde a uma

sociedade, porque surge de um vínculo jurídico entre pessoas diferentes para atingir um

determinado fim que a todas interessa, e a Nação corresponde a uma comunidade porque se

dá pela união de vínculos de sentimento entre pessoas que comungam dos mesmos valores e

afinidades psíquicas e espirituais, não se confundindo um com o outro, portanto72.

Aplicando-se estes conceitos para descrever a realidade boliviana, percebe-se

claramente que os povos indígenas formam grupos cujos sentimentos, anseios e expectativas

comuns são distintos do restante da população. Há na Bolívia um Estado que corresponde a

68 DALLARI, 2005, p.132. 69 DALLARI, 2005, p.133. 70 DALLARI, 2005, p 134. 71 DALLARI, 2005, p.134. 72 DALLARI, 2005, p.137

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uma sociedade formada pela união de diferentes comunidades. Ou seja, há de fato um Estado

que visa a integrar diferentes nações sob o mesmo aparato burocrático. Destarte, identifica-se

nitidamente um Estado Plurinacional.

O Estado Plurinacional pretende unir em um mesmo espaço geográfico varias

comunidades nacionais as quais lutam por reconhecimento de sua identidade diferenciada e

buscam uma maior autonomia em relação a um poder centralizador. Pode-se citar como

exemplo, além da Bolívia, o Canadá que possuiu em seu território a província de Quebec que

constitui uma comunidade nacional distinta do restante do país73.

A distinção entre as comunidades no novo documento político constitucional

boliviano não se reduz somente à busca de autonomia regional ou à valorização das

diversidades culturais dentro do mesmo Estado, mas, além disso, tem a ver com a

identificação cultural de valores psíquicos, espirituais e sentimentais comuns em um mesmo

grupo de indivíduos, que evoluem para a formação de comunidades nacionais com base no

estabelecimento de relações de confiança recíprocas, as quais fazem surgir expectativas

normativas comuns que evoluem para a construção de estruturas próprias desenvolvidas de

maneira autônoma.

Na Bolívia, tais comunidades nacionais, apesar de reconhecidas pelo antigo

documento político constitucional, eram tradicionalmente parcelas da população sub-

integradas ao sistema social, o qual ainda se baseava em uma concepção de Estado e Nação

típicos das teorias liberais euro-continentais e anglo-americanas. Porém, com as mudanças

trazidas pelo governo de Evo Morales, o reconhecimento das comunidades indígenas

significou uma verdadeira revolução, uma nova fundação do Estado Boliviano pra que

deixasse de ser um Estado Unitário e Social, que apenas reconhecia a multiplicidade cultural

de seu povo, mas para se tornar um “Estado Unitário de Direito Plurinacional”.

O reconhecimento da plurinacionalidade não envolve apenas a busca por

autonomias regionais, mas implica uma redefinição da divisão geográfica e política do

território, bem como a reestruturação dos poderes, tendo em vista o reconhecimento dos

novos poderes locais e a participação das comunidades nacionais na construção conjunta do

Estado74.

73 Nesse sentido, MAYORGA (2007). 74 Nesse mesmo sentido, RAMIRO, 2005, p.206. Sob o prisma do reconhecimento das ordens jurídicas em outros países da América Latina, Raquel Z. Yrigoyen FAJARDO afirma que “Es recién a finales del siglo, en la década de los noventa, que los países andinos reconocen constitucionalmente que sus Estados están conformados por

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A importância do novo documento político constitucional foi reconhecer o

relevante papel das comunidades indígenas na formação da sociedade. Não se pretende com a

plurinacionalidade excluir certas parcelas da população na afirmação das diferenças existentes

entre elas, mas integrar todas as diferentes comunidades75 em torno de uma mesma sociedade

epistemologicamente fundada na pluralidade, valorizando as distintas manifestações culturais

que formam o Estado boliviano, fazendo com que todas contribuam com seus sentimentos e

expectativas para que se atinja um objetivo comum, para que se busque um consenso em um

ambiente de dissenso democrático.

Nesse mesmo sentido afirma o professor Raúl Prada Alcoreza: “Como puede

observarse, la nueva Constitución Política del Estado comprende a las naciones y pueblos

indígenas originarios no solo como poblaciones, culturas, saberes plenamente reconocidos,

sino también desde la perspectiva de los derechos. No solamente se trata de la declaración de

derechos colectivos, sino de un capítulo específico dedicado a los derechos de las Naciones y

Pueblos Indígenas Originarios Campesinos. Las naciones y pueblos indígenas forman parte de

la estructura de los derechos constitucionales, son parte estructurante de la estructura de la

nueva Constitución76”.

O artigo oitavo do novo texto constitucional é um dos principais exemplos em que

se consubstancia a plurinacionalidade boliviana. Ao traçar os princípios éticos fundamentais

do novo Estado, o legislador constituinte fez questão de mesclar aos valores do Estado

Democrático de Direito os valores fundamentais das comunidades indígenas andinas e

amazônicas77. A intenção foi mostrar que ambos os valores são importantes na consecução

dos objetivos do Estado. Tanto os valores do Estado Democrático de Direito, quanto os

valores indígenas, sozinhos não são suficientes, pois se mostram como perspectivas

una diversidad de culturas y por ende buscan garantizar la pluralidad cultural y el derecho a la identidad cultural. También se reconoce a los diversos pueblos indígenas y sus derechos, oficializando sus idiomas, protegiendo sus costumbres, trajes, y promoviendo su propia cultura. En tal marco, se reconoce también el derecho al propio derecho, esto es, el derecho indígena o consuetudinario y la jurisdicción especial”. FAJARDO, 2000, p. 3. 75 As diferentes comunidades que representam mais de 36 nacionalidades diferentes entre o povo boliviano (Aymaras, Quechuas, Urus, Afroboliviano, Guaraní, Chiquitano, Guarayo, Ayoreo, Tapieté, Wenhayek, Paiconeca, Araona, Baure, Canichana, Cavineño, Cayuvaba, Chácobo, Chimán, Esse Ejja, Itonama, Joaquiniano, Leco, Machineri, More, Mosetén, Movida, Mojeño, Nahua, Pacahuara, Sirionó, Tacana, Toromona, Yaminahua, Yuqui). Fonte: REPAC 2007:18. 76 PRADA ALCOREZA, 2008, p.50. 77 Artículo 8 I. El Estado asume y promueve como principios ético-morales de la sociedad plural: ama qhilla, ama llulla, ama suwa (no seas flojo, no seas mentiroso ni seas ladrón), suma qamaña (vivir bien), ñandereko (vida armoniosa), teko kavi (vida buena), ivi maraei (tierra sin mal) y qhapaj ñan (camino o vida noble). II. El Estado se sustenta en los valores de unidad, igualdad, inclusión, dignidad, libertad, solidaridad, reciprocidad, respeto, complementariedad, armonía, transparencia, equilibrio, igualdad deoportunidades, equidad social y de género en la participación, bienestar común, responsabilidad, justicia social, distribución y redistribución de los productos y bienes sociales, para vivir bien.

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inconclusas da sociedade. Apenas com a interação construtiva desses valores culturais é

possível estabelecer um fim para o Estado boliviano que seja mais contemplativo dos anseios

complexos da sociedade.

Sob esse aspecto, percebe-se a valorização de cada uma das culturas nacionais,

sem a pretensão universalizante de homogeneizá-las, respeitando as diferenças internas, mas

sem promover uma separação meramente intercultural. Promove-se, ao contrário, uma

permeação recíproca de influências culturais mediatizadas pelo diálogo. Supera-se a

compreensão da cultura como homogeneização e consolidação de agrupamentos étnicos

diferenciados, como ilhas isoladas que diferenciam o que está dentro do que está fora de uma

comunidade determinada pela imposição de barreiras.

O novo Estado boliviano vai além ao estabelecer a construção conjunta dos

princípios estruturantes da Constituição pelas diferentes comunidades nacionais, ao

estabelecer valores culturais que se entrelaçam para servir de base para operação de todos os

sistemas sociais. Por meio de um diálogo constitucional entre as comunidades indígenas e a

comunidade derivada da etnia herdeira dos colonos espanhóis, é possível a edificação

recíproca dos valores e fins que servem de orientação para toda a sociedade boliviana,

permeando todos os seus sistemas parciais de comunicação (político, econômico e jurídico, e

etc.).

Para a consolidação desses princípios constitucionais, contudo, faz-se necessário

que a relação entre as comunidades deixe de ser assimétrica, e se instaure uma relação

dialógica e horizontal de aprendizado recíproco, na qual seja possível uma ajudar a outra a

educar-se constitucionalmente com base no outro. As diferentes comunidades estabeleceram

em comunhão as finalidades do novo Estado, e devem ser capazes de conjuntamente

desenvolver o mesmo objetivo enquanto sociedade.

Vale lembrar que esses valores essenciais do novo Estado boliviano podem ser

invocados por todos os indivíduos pertencentes à sociedade a qualquer tempo, sejam estes

indivíduos originários de etnias indígenas ou de etnias herdeiras da colonização espanhola. Ou

seja, um indígena campesino deverá sempre levar em conta a legalidade, a dignidade e

liberdade, podendo invocá-las a qualquer tempo, ao mesmo tempo em que um indivíduo de

outra etnia, mais próxima aos valores europeus e anglo-americanos, deverá sempre levar em

conta o “ama qhilla, ama llulla, ama suwa” (não seja fraco, no seja mentiroso, nem seja

ladrão), ou o “suma qamaña” (viver bem).

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À vista disso, cumpre concluir que o novo documento político constitucional

representa um marco da tentativa de integração intercultural das comunidades nacionais

formadoras da sociedade boliviana por meio da construção conjunta de uma estrutura comum,

de um aparato burocrático que contemple a pluralidade e a complexidade existentes no

ambiente, a fim de abarcar democraticamente sob a égide do mesmo Estado a unidade do

consenso social cultivado em meio a um ambiente de dissenso axiológico comunitário e

plurinacional.

2.2. Pluralismo Jurídico e a Jurisdição especial indígena

Uma vez admitida a plurinacionalidade do Estado, deve-se reconhecer que as

diferentes comunidades nacionais desenvolvem perifericamente estruturas próprias com

pretensão de autonomia em relação ao poder Estatal central. Surgem nestas comunidades atos

de comunicação diferenciados funcionalmente com o intuito de controlar o código-diferença

próprio do sistema jurídico (lícito/ilícito).

Esta ordem jurídica periférica parcialmente autônoma é institucionalizada: (i) no

interior da própria comunidade nacional mediante a relação de autoridade a que se submetem

seus indivíduos perante as lideranças comunitárias, as quais emergem das relações de

confiança recíprocas e dos costumes compartilhados entre os indivíduos a ela pertencentes; e

(ii) é institucionalizada pelo Estado por meio do reconhecimento constitucional do pluralismo

jurídico78, como um dos desdobramentos da admissão da plurinacionalidade.

O legislador constituinte boliviano, com o intuito de abarcar as diferentes

manifestações do fenômeno jurídico ocorridas no interior das comunidades nacionais, criou

um interessante instrumento a que deu o nome de “Jurisdição indígena originário

campesina”. Esta jurisdição extraordinária convive dentro do sistema jurídico boliviano

juntamente com o a jurisdição ordinária do Estado, não havendo hierarquia entre elas79, ou

seja, as decisões proferidas pela jurisdição indígena são vinculantes e não podem ser revistas

pela jurisdição ordinária. Há um aparato burocrático criado para o exercício da jurisdição

78 O texto constitucional aponta em seu artigo 179 o pluralismo jurídico e a interculturalidade como princípios norteadores da função jurisdicional do Estado. “Artículo 179: La potestad de impartir justicia emana del pueblo boliviano y se sustenta en los principios de pluralismo jurídico, interculturalidad, equidad, igualdad jurídica, independencia, seguridad jurídica, servicio a La sociedad, participación ciudadana, armonía social y respeto a los derechos. 79 “Artículo 179: (...) II. La jurisdicción ordinaria y la jurisdicción indígena originario campesina gozarán de igual jerarquia.

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55

ordinária, enquanto que para a jurisdição indígena, o constituinte apenas afirma

genericamente que será exercida por suas próprias autoridades, de acordo com princípios

próprios e normas e procedimentos comuns existentes nas comunidades80.

A designação genérica se deve ao fato de existirem na Bolívia um grande número

de comunidades nacionais diferentes81. Segundo afirma o antropólogo boliviano Xavier

ALBÓ, não é necessário analisar em detalhe como se administra a justiça no interior de cada

comunidade indígena, tendo em vista que cada etnia possui seu desenvolvimento cultural

próprio, e o direito consuetudinário aplicado em cada uma das comunidades se expressa de

maneira diversa e específica82, embora possam ser identificados certos princípios semelhantes

e um caráter procedimental relativamente comum83.

O antropólogo Xavier ALBÓ realizou aprofundado estudo acerca do direito

consuetudinário das comunidades nacionais indígenas da Bolívia, tendo observado as

características desta ordem jurídica parcial em sete comunidades diferentes84. Seis das

comunidades estudadas localizam-se no interior do País, em uma zona considerada rural.

Além disso, foram observadas comunidades que se localizam na periferia de grandes centros

urbanos como La Paz e Cochabamba.

A primeira conclusão importante do trabalho de ALBÓ é que nas comunidades

indígenas mais próximas da zona rural o direito consuetudinário indígena é facilmente

identificado, diferenciando-se claramente dos outros atos de comunicação sociais. Porém, na

medida em que as comunidades aproximam-se das grandes cidades a diferenciação torna-se

mais difícil.

A título de exemplo, pode-se dizer que não é possível identificar um direito

consuetudinário diferenciado nas regiões localizadas nas periferias das grandes cidades, ainda

dentro do perímetro urbano, como é o caso da periferia de La Paz, pois, embora existam

comunidades indígenas ali residindo, há a presença de muitos indivíduos de outras localidades

e etnias, os quais não compartilham dos mesmos valores e expectativas, e, além disso, este

80 Artículo 190. I. Las naciones y pueblos indígena originario campesinos ejercerán sus funciones jurisdiccionales y de competencia a través de sus autoridades, y aplicarán sus principios, valores culturales, normas y procedimientos propios. 81 Estima-se que existam cerca de 36 etnias indígenas diferentes no território boliviano, ver op cit.. 82 ALBÓ (1999). 83 ALBÓ,(1998). 84 1. Andina aymara rural, en Jesús de Machaqa, La Paz; 2. Andina quechua rural, en Tapacarí, Cochabamba; 3. Andina quechua rural, en Chuquisaca; 4. Oriental chaqueña, guaraní izoceño; 5. Oriental, ayoréode; 6. Oriental, chiquitano de Lomerío; 7. Andina, periferia urbana en Cochabamba (villas San Miguel y Alto Sebastián Pagador, quechua y aymara) y en El Alto de La Paz (Villas Adela y Alto Lima, aymaras).

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56

direito consuetudinário está mais exposto a influência de elementos políticos econômicos e

jurídicos próprios de outras comunidades85.

Ou seja, há uma mistura de atos de comunicação jurídicos e sociais que não

permite identificar uma diferenciação funcional da ordem jurídica consuetudinária nas

proximidades das grandes cidades bolivianas. Esta ordem ainda permanece difusa no meio

social. Nesse caso, não se pode falar com segurança em pluralismo jurídico e na presença

nítida da ‘jurisdição especial indígena originária campesina”, mas sim em um miscelânea

social e jurídica típica do estádio de um direito socialmente difuso.

Por esse motivo, o legislador constituinte estabeleceu os limites territoriais,

pessoais e materiais do exercício da jurisdição indígena, que é competente para conhecer todo

tipo de relação jurídica envolvendo as pessoas que pertencem à comunidade indígena por

meio de um vínculo particular de nacionalidade, ou seja, pela identificação de um vínculo

psíquico e espiritual com o grupo étnico respectivo86. De acordo com o legislador, o principal

critério para a aplicação da jurisdição indígena ao caso concreto é a identificação do indivíduo

envolvido como membro de uma comunidade nacional indígena, bem como que os fatos

jurídicos sejam gerados dentro da comunidade ou mesmo quando produzirem efeitos em seu

interior87.

Contudo, para resolver qual a jurisdição tem de ser aplicada aos conflitos

existentes nas periferias urbanas, deverá haver, em primeiro lugar, uma manifestação do órgão

legislativo pois o constituinte delegou ao legislador comum a atribuição de determinar os

mecanismos de coordenação e cooperação entre a jurisdição ordinária e a jurisdição

indígena88. E, em segundo lugar, deverá haver uma manifestação do órgão pertencente à

85 “Se constató al mismo tiempo que ya no resulta viable recurrir de manera habitual y alternativa a este sistema consuetudinario en aquellas regiones urbanas periféricas donde coinciden inmigrantes de muchos orígenes, que no comparten por igual las mismas normas consuetudinarias y que están ya mucho más expuestos a otras influencias políticas, sociales y legales.” ALBÓ, 1998, p. 2. 86 Artículo 191. I. La jurisdicción indígena originario campesina se fundamenta em un vínculo particular de las personas que son miembros de la respectiva nación o pueblo indígena originario campesino (...). 87 Artículo 191. (...)II. La jurisdicción indígena originario campesina se ejerce en los siguientes ámbitos de vigencia personal, material y territorial: 1. Están sujetos a esta jurisdicción los miembros de la nación o pueblo indígena originario campesino, sea que actúen como actores o demandado, denunciantes o querellantes, denunciados o imputados, recurrentes o recurridos. 2. Esta jurisdicción conoce los asuntos indígena originario campesinos de conformidad a lo establecido en una Ley de Deslinde Jurisdiccional. 3. Esta jurisdicción se aplica a las relaciones y hechos jurídicos que se realizan o cuyos efectos se producen dentro de la jurisdicción de un pueblo indígena originario campesino. 88 Artículo 192. III.El Estado promoverá y fortalecerá la justicia indígena originaria campesina. La Ley de Deslinde Jurisdiccional, determinará los mecanismos de coordinación y cooperación entre la jurisdicción

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função jurisdicional do Estado incumbido de resolver os conflitos entre a jurisdição ordinária

e a jurisdição indígena. Apenas pelo exercício jurisprudencial vislumbrar-se-á uma solução a

este problema identificado por ALBÓ, tendo em vista que a delimitação territorial presente na

Constituição não aponta objetivamente quais são os territórios sujeitos à jurisdição

extraordinária.

Por outro lado, o antropólogo identificou uma forte vigência do direito

consuetudinário comunitário nas outras seis comunidades estudadas, as quais habitavam a

zona considerada rural, ou campesina, distantes dos grandes centros urbanos. Segundo afirma,

há entre essas comunidades um forte referencial cultural que as une em torno de seus

costumes89.

Neste caso, há uma diferenciação clara da ordem jurídica indígena, a qual tem

pretensão inequívoca de adquirir autonomia em relação ao Direito Estatal. Assim, pode-se

identificar com segurança uma manifestação de pluralismo jurídico pela presença de um

direito parcialmente autônomo, o qual se auto-descreve e se auto-referencia circularmente

pelas estruturas próprias de controle do código lícito/ilícito desenvolvidas pelas comunidades

e reconhecidas constitucionalmente por meio da institucionalização da jurisdição

extraordinária.

Conclui-se então que uma vez definida a limitação territorial, material e pessoal

de aplicação da Jurisdição especial indígena pelo legislador constitucional boliviano,

ressalvados os casos de iminente conflito como ressaltado acima, para os quais terão de se

dedicar tanto o legislador ordinário quanto a interpretação jurisprudencial, tem-se que não

foram estabelecidos de maneira explícita os limites materiais para o exercício da jurisdição

especial. Isto é, dentro dos limites da comunidade indígena, a Jurisdição Especial é

competente para julgar todos os tipos de relação envolvendo atos jurídicos de seus

integrantes, sem qualquer interferência do Direito estatal.

O único limite que parece ser imposto é o que se observa na leitura do artigo 191,

II, que afirma: “II. La jurisdicción indígena originaria campesina respeta el derecho a la vida y

los derechos establecidos en la presente Constitución”.

Neste aspecto em particular do texto constitucional, deve-se tomar muito cuidado

para não cometer o equívoco de afirmar que o legislador pretendeu impor o direito à vida, ou

indígena originaria campesina con la jurisdicción ordinaria y La jurisdicción agroambiental y todas las jurisdicciones constitucionalmente reconocidas. 89 ALBÓ, 1999, p.2

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58

os demais direitos fundamentais garantidos pela nova constituição, como valores universais

aos quais a Jurisdição indígena deve se submeter em qualquer situação. Este dispositivo deve

ser interpretado de maneira sistemática, à luz das premissas básicas fundamentais do novo

Estado boliviano, quais sejam, a plurinacionalidade, o pluralismo jurídico e a

interculturalidade.

As comunidades indígenas lidam com a vida, com este valor humano

fundamental, de uma maneira culturalmente diferente daquela observada na tradição da

formação do Estado Democrático de Direito que inspirou a formação dos Estados da América

Latina. Da mesma maneira que, culturalmente, as comunidades indígenas lidam de maneira

distinta com as relações familiares, com as liberdades individuais, com o direito de

propriedade e etc.

É equivocado o entendimento que o legislador procurou impor o respeito ao

direito a vida intolerantemente, desconsiderando a maneira como as comunidades indígenas

lidam com a vida, e colocando como premissa básica que a vida é valor universal no território

boliviano. Isso seria ir contra todo o esforço constitucional de respeito à plurinacionalidade e

às diferentes formas de manifestação do fenômeno jurídico no seio da população boliviana.

De maneira diversa, o legislador pretendeu apenas eleger uma matéria relevante para

inaugurar o diálogo intercultural entre as comunidades nacionais, a fim de que o conceito de

direito à vida fosse reconstruído em comunhão por meio de uma relação dialógica que

permitsse o aprendizado mútuo dos valores de cada comunidade.

É necessário então buscar compreender as principais características e tentar

identificar como se opera a ordem jurídica especial no interior das comunidades indígenas

para saber de que maneira o direito à vida há de ser respeitado pelas comunidades. Este

dispositivo de aparente limitação material da Jurisdição indígena parece ter sido colocado

pelo legislador para sinalizar a importância da matéria na elaboração pluranacional do Estado

boliviano, ou seja, o direito à vida é uma matéria para a qual o diálogo constitucional

intercultural é absolutamente primordial. Inúmeras são as matérias e os valores que serão

objeto de trocas de experiência intercultural entre as comunidades nacionais bolivianas sob a

égide da nova Constituição, porém para este valor em especial, por uma escolha legislativa,

está consagrada constitucionalmente a inauguração do diálogo.

O legislador, ciente da importância do direito à vida para ambas as comunidades,

inaugura a orientação para conversação constitucional elegendo o direito à vida como um

tema gerador em torno do qual será construído o aprendizado recíproco e a educação mútua

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59

entre as ordens jurídicas do sistema de direito. É uma opção legislativa de orientação

pedagógica para aprendizado constitucional recíproco90. Assim, para melhor compreender a

relação entre as ordens jurídicas, é importante compreender como se opera e como se

estrutura a ordem jurídica indígena.

2.2.1 As características do Direito Consuetudinário das comunidades indígenas

bolivianas.

Em seus estudos antropológicos, muito embora Xavier ALBÓ saliente que cada

uma das comunidades nacionais possua uma estrutura própria de administração da justiça

interna, ele aponta a presença de traços comuns que se manifestam na grande maioria dos

diferentes agrupamentos étnicos. Cada grupo comunga de uma referência cultural própria, a

qual é determinante para definir um princípio-matriz, um consenso axiológico fundamental

que permeia a ponderação de valores comunitários, irradiando-se na aplicação do código

lícito/ilícito para solução dos conflitos sociais.

As ordens jurídicas dessas comunidades diferenciam-se entre si justamente pela

presença desse referencial cultural próprio, garantidor do consenso suposto em cada um dos

agrupamentos indígenas. Cada comunidade possui uma identidade psíquica e espiritual

fundamental que a individualiza com relação às demais e que é determinante para a

construção de seus elementos jurídicos peculiares, mas o desenvolvimento das ordens

jurídicas apresenta certos traços estruturais comuns quanto à maneira como se

institucionalizam internamente as normas e como se manifesta o procedimento de tomada de

decisão no caso concreto.

Alguns desses traços estão presentes em praticamente todas as comunidades

indígenas bolivianas. Em seus estudos, Xavier ALBÓ fez um levantamento dos elementos

estruturais comuns que podem ser considerados como base de formação do que se

convencionou denominar Direito Consuetudinário indígena91. Vale ressaltar que, ao apontar

90 Os conceitos ora apontados de “orientação pedagógica”, “diálogo constitucional” e “tema gerador” serão melhor desenvolvidos no próximo capítulo. 91 Esta é a denominação utilizada por Xavier ALBÓ. Outro antropólogo boviano, Marcelo Fernandez OSCO, defende ser um equívoco chamar a ordem jurídica indígena de “direito consuetudinário” pois isto significaria considerá-la subordinada e essencialmente inferior ao direito Estatal. Porém, não há motivos para entender que a denominação direito consuetudinário represente uma desvalorização do direito indígena perante o direito estatal,

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as características comuns, não se pretende deixar de lado as particularidades que envolvem

cada uma das comunidades, tendo em vista a riqueza de manifestações culturais das diferentes

etnias indígenas O intuito é traçar um perfil mínimo que permita caracterizar o direito

consuetudinário, diferenciando-o do direito Estatal. Para isso, são apontadas sete

características fundamentais.

Dentre as semelhanças estruturais apontadas por ALBÓ92, pode-se citar que de

uma maneira geral as comunidades baseiam sua ordem jurídica nos (i) costumes que se

desenvolvem por gerações. Daí a enorme importância que dão à tradição, ou seja, à

generalização congruente de expectativas comportamentais reiteradas que motivam o

surgimento de um conjunto de normas jurídicas visando à estabilização das relações sociais,

tentando diminuir o número de possibilidades reais de comportamento dos indivíduos e

aproximando-o do número de possibilidades atualizáveis pela ordem jurídica comunitária;

Além disso, deve-se ressaltar o fato de que nas comunidades indígenas o (ii)

fenômeno jurídico é entendido como um todo unitário, sem as fragmentações teóricas

comumente observadas na ordem jurídica ordinária entre direito público e direito privado, ou

direito constitucional, direito civil e direito penal. Para as ordens jurídicas indígenas, tudo

gravita em torno de um mesmo princípio-matriz advindo do referencial cultural comum, que

se localiza no centro da ordem jurídica irradiando seus efeitos em todas as oportunidades que

a autoridade é chamada para proferir uma decisão93;

(iii) Outro ponto comum é que a assembléia da comunidade constitui a principal

autoridade94, funcionando em um contexto jurídico totalizante das ordens locais como órgão

de manutenção dos costumes tradicionais, por meio de funções análogas às funções executiva,

legislativa e jurisdicional do Estado Democrático de Direito. Não há uma separação clara de

poderes e funções, tendo em vista o elevado grau de institucionalização interna da assembléia

mas representa uma classificação que permite aproximá-lo de sua característica marcante que é a formação estrutural com base nos costumes e na tradição comunitária. OSCO (2000). 92 En medio de las variantes propias de cada contexto cultural, el Derecho Consuetudinário presenta una serie de rasgos comunes como los siguientes: “1. Acumula una larga tradición de prácticas probadas en un determinado contexto cultural; 2. Se basa en una visión global, no sectorializada; 3. Es administrado por autoridades nombradas y controladas por la comunidad y su asamblea; 4. Suele funcionar a niveles más locales y directos; 5. Es fundamentalmente oral y muy flexible en el tiempo y el espacio; 6. No es automáticamente equitativo; 7. Está permanentemente abierto a influencias ajenas; 8. Su acceso y resoluciones son rápidos y de bajo costo; 9. Cuando el conflicto es interno, los arreglos acordados dan alta prioridad a la recuperación social del culpable y al mantenimiento de la paz comunal, más que al castigo, como tal; 10. Pero si ya no se percibe ninguna posibilidad de una reconciliación o se trata de delincuentes externos y desconocidos, se prioriza la intimidación y hasta su pleno rechazo por expulsión o incluso muerte. Xavier Albó, 1998, p. 4. 93 Em outra perspectiva, Marcalo Fernandez OSCO defende que o direito indígena é formado por uma trilogia de fundamentos imperativamente imbricados: sanção moral, sanção social e sanção jurídica. Osco, 2000, p. 15 94 Nesse mesmo sentido ver Osco, 2000, p. 15.

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da comunidade como autoridade última e também em razão do caráter eminentemente

localizado, que faz com que seja desnecessária a existência de mais de uma autoridade para

cumprir as funções estruturais do agrupamento étnico. É a assembléia comunal que profere a

decisão final nos casos de conflito, sendo por excelência o órgão de controle do código

diferença do sistema jurídico dentro da comunidade;

(iv) O Direito Consuetudinário é barato e bastante acessível para os membros da

comunidade que pretendem levar seus conflitos à instância de decisão da Assembléia; além

disso, (v) É marcado profundamente pela oralidade95, o que não impede existirem certas

normas escritas em algumas comunidades. Essa oralidade contribui para outro fator comum e

importante que é (vi) a grande flexibilidade e adaptabilidade da ordem jurídica à solução do

caso concreto. Nas palavras do próprio ALBÓ,

“a diferencia del derecho positivo, el DC (direito consuetudinário) no es una norma fija dada de una vez por todas y que exige un pesado procedimiento para ser modificado. De ahí también su gran flexibilidad, según los actores y las situaciones, incluso dentro de un mismo lugar y época. No hay un único DC sino tantos como grupos culturales. Además, dentro de cada grupo cultural y sin apartarse de los principios generales que rigen su DC, hay una amplia gama de variantes locales.96” (grifo nosso).

A proximidade da autoridade manifestada pela Assembléia com o restante da

população comunitária torna a decisão proferida mais contemplativa à realidade dos

indivíduos em conflito, que tendem a respeitar a decisão não apenas por temerem as

conseqüências coercitivas da desobediência, mas porque se identificam com a Autoridade que

profere a sentença final. À medida que se submetem às decisões da assembléia, enxergam

uma relação de sentido na comunicação normativa e, mesmo sofrendo as conseqüências de ter

praticado um ato ilícito perante a comunidade, não chegam a negar ou a desconfirmar a

autoridade, não sendo raras as vezes que aceitam a sanção imposta, reconhecendo sua culpa e

o dever de recompensar a má conduta praticada.

Sentem-se sujeitos da relação de cometimento e não meros objetos-depositários de

imposições de dever-ser. Sentem-se sujeitos construtores da própria ordem jurídica que lhes é

95 Acerca deste tema OSCO (2000) defende que: “En nuestra perspectiva, el derecho indígena se rige por principios radicalmente distintos al derecho estatal, tanto en la tipificación de delitos como en los aspectos procedimentales y el objeto último de sancion, con un aparato coactivo esratuido por códigos orales como las iwrus (adagios juridicos), sawis (determinaciones, acuerdos), sara (ley), thakhi (camino, orden relacionado), taripaiia (tribunal), qamachi (administración de justicia). Estos términos apuntan directamente a un particular concepto de orden prático-legal normativo, de caracter indicativo y prescriptivo, cuya meta es la reconciliaci6n y no asi la sanción misma, corno concibe el derecho estatal que se rige por la dialectica y culpabilidad, inocencia y castigo”. 96 ALBÓ (1998).

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imputada, tendo em vista que os costumes e tradições norteadoras das decisões são objeto de

uma experiência comunitária acumulada em meio as deliberações e diálogos entre a

comunidade e a Assembléia.

Por último, cumpre ressaltar como fato comum e relevante no direito das

comunidades indígenas, (vii) as penas imputadas aos transgressores das tradições mais

importantes do Direito Consuetudinário. Via de regra, a recuperação e a exclusão do

indivíduo que manifesta a conduta desviante são as conseqüências mais observadas nos

estudos de ALBÓ97.

Segundo afirma o autor, o resultado mais comum é a recuperação do indivíduo

que comete o desvio de comportamento, solução esta menos traumática e que ocorre em

benefício dele e de toda a comunidade. O direito consuetudinário tem como regra geral a

busca pela reconciliação da comunidade com o infrator. Porém, em certos casos, a

recuperação não se torna possível, e a solução encontrada pela Assembléia é o impedimento

do convívio do indivíduo delinqüente com o restante da comunidade. Essa solução, que ocorre

apenas ocasionalmente, pode se manifestar de duas maneiras. Ou o delinqüente considerado

culpado é expulso, “sacarlo en burro98”, como se diz no seio da comunidade, ou, em casos

ainda mais excepcionais é decretada sua pena de morte, que é executada pela própria

assembléia ou por quem ela decline a tarefa, não sendo raros os casos em que o próprio

sentenciado e sua família reconheçam a culpa, identificando a pena de morte como única via

para a solução do conflito.

Neste ponto reside o grande fator de resistência dos setores tradicionais da

sociedade no reconhecimento das ordens jurídicas indígenas pelo Estado, pois há um conflito

essencial entre as práticas comunitárias e o respeito ao direito à vida e aos valores

fundamentais dos Direitos Humanos. Todavia, deve-se atentar para certas características do

Direito Consuetudinário antes de pretender criminalizá-lo encarando-o aprioristicamente

como violação aos Direitos Humanos.

É preciso encarar este potencial conflito de valores sob uma epistemologia

fundada na pluralidade de manifestações culturais, e não sob uma visão universalista e

intolerante. Não se defende aqui um relativismo total com relação ao direito à vida, mas sim o

fato de que não se deve considerar as manifestações culturais dos povos indígenas sul-

97 ALBÓ, 1998, p. 8. 98 ALBÓ, 1998, p. 8

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americanos de maneira intolerante, impondo barreiras ao reconhecimento de suas ordens

jurídicas, e excluindo desde o princípio a possibilidade de que por meio de um aprendizado

recíproco, os valores e práticas desses povos não possam humanizar-se no sentido de preferir

outros tipos de punição às condutas desviantes do que, por exemplo, a pena de morte99.

Reconhecer a ordem jurídica dos povos indígenas não pode prescindir de uma

relação dialógica na qual se construam maneiras de lidar com as diferenças culturais. Não se

pode afirmar a priori que as comunidades indígenas não são capazes de compartilhar valores

dos direitos humanos, uma vez que por meio do diálogo constitucional, as comunidades

indígenas podem entender que não devam mais realizar a prática da pena de morte, e por meio

da autoridade exercida pela assembléia comunitária, possam reeducar a população a não mais

nutrir a expectativa de aplicação da pena capital.

Por outro lado, também é possível que por meio do diálogo constitucional fique

evidenciado que a pena de morte é um desdobramento cultural fundamental de vital

importância para as comunidades indígenas, fazendo parte de sua identidade e determinação

enquanto etnia. Nesse caso, nada impede que o sistema jurídico reconheça algumas

mitigações à proibição da pena de morte, desde que inseridas no contexto da jurisdição

especial indígena, reeducando o restante da sociedade a aceitar esta prática excepcional como

uma manifestação de um valor essencial de certos povos inseridos no âmbito do Estado.

Antes de se iniciar qualquer polêmica sobe o assunto, devem ser evitados os

juízos que negam de plano a possibilidade de aprendizado mútuo entre as comunidades

nacionais e a possibilidade de construção conjunta de novos valores fundamentais para a

sociedade.

Ainda no que tange ao aspecto das penas aplicadas pelas comunidades indígenas,

vale lembrar que o mecanismo de expulsão do delinqüente parece ser em alguma medida

análogo ao mecanismo preponderantemente adotado pela jurisdição ordinária dos Estados

quando condena os sentenciados a cumprirem pena reclusos ao cárcere, distantes, portanto, do

convívio social.

Ademais, enfatizando-se o caráter de absoluta excepcionalidade na aplicação da

pena de morte pelas comunidades indígenas bolivianas, tem-se que os casos em que ela se

opera geralmente representam afronta à própria existência ou dignidade cultural da

99 Esta discussão será retomada com maior profundidade no capítulo seguinte. Por ora, cabe apenas apontar a existência do conflito potencial.

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comunidade, como em casos de roubo ou violação de objetos e lugares considerados sagrados.

A ocorrência de fatos como esse gera uma verdadeira “psicose social coletiva100” no interior

do agrupamento social, que pode acarretar em linchamentos públicos de suspeitos. Então, para

evitar o completo descontrole emocional e o linchamento de inocentes, a Assembléia

comunitária centraliza o julgamento para identificar o verdadeiro culpado, que, como dito

acima, não raro confessa o crime e aceita juntamente com sua família o fato de que a sua

morte é a única maneira de haver reconciliação com a comunidade101.

Nos locais em que a autoridade indígena é difusa no meio social, como nas

periferias dos grandes centros urbanos bolivianos, quando ocorre a prática de condutas

consideradas graves e violadoras da cultura e dos valores étnicos fundamentais indígenas,

instaura-se o clima de psicose coletiva e, na maioria dos casos, ocorrem linchamentos

públicos102. Tais práticas provocam repúdio dos setores conservadores da sociedade, que

rechaçam as comunidades indígenas como instauradoras da barbárie social, e com as quais

não é possível uma convivência harmônica, fortalecendo o discurso de exclusão da elite

etnocentrista que não pretende ver as ordens jurídicas indignas reconhecidas pelo Estado.

Todavia, o que precisa ser entendido é que a prática dos linchamentos públicos se

deve justamente à falta de autonomia-identidade da ordem jurídica indígena e da ausência de

uma manifestação nítida de pluralismo jurídico, fazendo com que não seja possível existir

uma estrutura organizada para presidir o procedimento jurisdicional de identificação do

culpado mediante a aplicação do código lícito/ilícito e impossibilitando o fornecimento de

uma decisão ao caso que de fato pacifique as relações sociais para a estabilização das

expectativas envolvidas.

Por esse motivo, é importante o reconhecimento da jurisdição especial indígena

pelo documento político constitucional boliviano, e será ainda mais importante o

desenvolvimento da jurisprudência do órgão jurisdicional criado para a solução dos conflitos

100 ALBÓ, 1998, p. 8. 101 Sob esta mesma perspectiva, Marcelo Fernandez Osco afirma que para as comunidades indígenas, os casos de roubo ou violação de objetos considerados sagrados supõem uma interrupção do fluxo de energia das relações sociais que obriga necessariamente a reparação do dano na consciência individual do infrator e da comunidade. OSCO, 2000, p.22. Pode-se concluir que em casos mais graves esta reparação de consciência se daria apenas com a morte do delinqüente. 102 Albó apresenta um exemplo ilustrativo: “(...) En un barrio periférico de La Paz, había una racha incontrolable de robos y las autoridades vecinales decidieron finalmente intervenir. En una ronda nocturna pescaron a los delincuentes y los ahorcaron de inmediato en postes de luz, para escarmiento general. Al día siguiente, cuando la principal autoridad comunal descubrió que uno de los condenados no era ladrón sino un simple borracho del barrio, murió de infarto. Su pánico no era por haber administrado el castigo sin pasar a los delincuentes a la justicia ordinária (de la que todos desconfiaban) sino por haber castigado a un inocente.” ALBÓ, 1998, p. 9.

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de competência entre a jurisdição ordinária e a jurisdição indígena. Apenas dessa maneira

evitar-se-á a instauração da “psicose social”, pois haverá uma maior identificação da

autoridade competente para protagonizar a apuração dos fatos e a aplicação do código jurídico

para o julgamento dos acusados.

Após a consideração das principais características do direito consuetudinário,

cumpre ressaltar os mecanismos e as estruturas que o legislador constituinte cria para

promover a relação entre as duas ordens jurídicas. Cabe analisar de que maneira o novo

documento constitucional boliviano pretende lidar com o pluralismo jurídico reconhecido em

seu sistema de Direito.

2.2.2 O Tribunal Constitucional Plurinacional

Contrariamente ao pensamento europeu tradicional o centro do sistema jurídico

não é mais o poder legislativo. Segundo afirma Teubner, o centro do sistema jurídico reside

atualmente na hierarquia dos tribunais103. Os juízes e tribunais produzem o direito em sua

forma mais autônoma uma vez que ao aplicarem a distinção lícito/ilícito para a solução dos

conflitos sociais são capazes de estabilizar as expectativas sociais, pacificando entendimentos

acerca de matérias controvertidas e assim, criam novas formas de expectativas congruentes e

especializadas104.

Destarte, o estudo dos tribunais, principalmente o estudo dos tribunais superiores,

é de vital importância para entender como se estrutura o sistema jurídico de um Estado. No

caso do novo documento constitucional da Bolívia, o principal órgão de exercício da função

jurisdicional do Estado é o Tribunal Constitucional Plurinacional.

Este órgão é o responsável pelo zelo aos princípios e regras constitucionais, bem

como pelo controle de constitucionalidade. É, portanto, o principal intérprete das normas

constitucionais, e se afigura como o órgão supremo do sistema jurídico105.

Em sua própria denominação, o tribunal demonstra sua principal característica que

é a plurinacionalidade, ou seja, é um órgão jurisdicional construído em comunhão pelas

103 TEUBNER, 2005, p. 98. 104 TEUBNER, 2005, p. 98 105 Artículo 196. I. El Tribunal Constitucional Plurinacional vela por la supremacia de la Constitución, ejerce el control de constitucionalidad, y precautela el respeto y la vigencia de los derechos y las garantías constitucionales.

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diferentes comunidades nacionais para figurar como centro de gravidade visando a promover

a integração do sistema jurídico.

O tribunal constitucional plurinacional é a última instância de decisão e se dispõe

hierarquicamente acima das ordens jurídicas existentes no sistema, com uma jurisdição

superior que se sobrepõe permeando tanto à jurisdição ordinária quanto à jurisdição especial

indígena. É o tribunal constitucional plurinacional que tem a incumbência de julgar os

conflitos de competência envolvendo a jurisdição ordinária e a jurisdição indígena. Ou seja, é

o órgão jurisdicional incumbido de estabelecer para cada caso concreto em que houver

divergência qual a jurisdição que deve ser aplicada106.

Para respeitar a diversidade cultural e o pluralismo jurídico e assim conferir maior

legitimidade para suas decisões, o tribunal constitucional é formado por Magistrados eleitos

segundo critérios de plurinacionalidade, ou seja, há uma distribuição paritária de

representantes da ordem jurídica ordinária, que exercem a jurisdição estatal, e da ordem

jurídica indígena originária campesina, que exercem a jurisdição especial em seus territórios.

Os magistrados serão eleitos por meio de sufrágio universal e para formalizarem a

candidatura devem preencher requisitos específicos. Os candidatos advindos da ordem

jurídica ordinária devem ter pelo menos trinta e cinco anos além de ter pelo menos oito anos

de experiência no estudo ou magistério das disciplinas de Direito Constitucional, Direito

Administrativo ou Direitos Humanos. Para os candidatos advindos da ordem jurídica especial

indígena, exige-se que tenham exercido a qualidade de autoridade em meio a uma

comunidade nacional indígena, ou seja, que tenham sido membros da assembléia

comunitária107.

Esta disposição estrutural do Tribunal Constitucional é fundamental para garantir

que o sistema jurídico reste permeado pela plurinacionalidade, consagrando o pluralismo

jurídico no interior do Estado. Como afirma Raul Prada ALCOREZA:

“El órgano judicial se constituye a partir de la complementariedad de dos formas de justicia, la formal, “occidental”, ordinaria, y la justicia comunitaria que, a pesar de manifestar un carácter práctico, tiene otra formalidad, ceremonialidad y valores. La

106 “Artículo 202. Son atribuciones del Tribunal Constitucional Plurinacional, además de las establecidas en la Constitución y la ley, conocer y resolver: (...)11. Los conflictos de competencia entre la jurisdicción indígena originaria campesina y la jurisdicción ordinaria (...).” 107 Artículo 199. I. Para optar a la magistratura del Tribunal Constitucional Plurinacional se requerirá, además de los requisitos generales para el acceso al servicio público, haber cumplido treinta y cinco años y tener especialización o experiência acreditada de por lo menos ocho años en las disciplinas de Derecho Constitucional, Administrativo o Derechos Humanos. Para la calificación de méritos se tomará en cuenta el haber ejercido la calidad de autoridad originaria bajo su sistema de justicia.

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67

complementariedad de ambos sistemas propone una articulación dual, enriquece y expande las formas de administración de justicia, estableciendo una comisura en la ligazón de ambos en términos de tribunales que comparten una conformación plurinacional e intercultural. El tribunal constitucional es plurinacional intercultural, garantizando de esta forma la interpretación de ambos sistemas, la conjugación y la conjunción de los mismos

108.

A participação obrigatória e paritária de Magistrados advindos das comunidades

indígenas apresenta uma forte tentativa de superar as relações tradicionais de subintegração

dessa parcela da população ao sistema jurídico, e ademais, proporciona uma igualdade de

poder de decisão que permite a inauguração de uma relação horizontal no tratamento de

questões constitucionais, como o controle de constitucionalidade e a defesa dos princípios

consagrados pelo documento constitucional.

A intenção do legislador é não permitir um desenrolar assimétrico na relação entre

a ordem jurídica ordinária e a ordem jurídica indígena, garantindo absoluta igualdade de

condições e consagrando a total ausência de hierarquia. O objetivo é não permitir a

interferência desmedida de uma ordem jurídica na outra, garantindo maior autonomia

operacional e evitando o estabelecimento de sobreposições de códigos de comunicação de

uma sobre a outra, gerando bloqueios reciprocamente destrutivos e desestruturantes que, por

fim, resultariam em uma miscelânea de códigos jurídicos e sociais.

O legislador então coloca o Tribunal Constitucional, enquanto instância suprema

do sistema jurídico, como protagonista da relação horizontal entre as ordens jurídicas e as

jurisdições existentes no território boliviano, atuando como centro de gravidade que permite a

existência do pluralismo jurídico.

Deste modo é possível visualizar o sistema jurídico proposto no novo documento

político boliviano como sendo formado pela fragmentação em duas ordens jurídicas

periféricas referentes às comunidades nacionais (tanto indígena quanto ordinária),

funcionando operacionalmente de maneira não totalmente diferenciada, como sistemas

parcialmente autônomos de comunicação com base na aplicação do código-diferença

lícito/ilícito segundo critérios e valores próprios de auto-referência, processualização e

normatividade, acopladas estruturalmente pela meta-união em um sistema jurídico único, cujo

centro consiste na sobreposição do órgão de controle e calibração do Tribunal Constitucional

Plurinacional, o qual, por sua vez, é composto por Magistrados advindos do exercício da

jurisdição das duas ordens jurídicas diferentes em condições iguais de representatividade.

108 ALCOREZA, 2008, p.42

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Em resumo, o sistema jurídico é constituído por dois círculos de auto-referência

comunicacional jurídica que operam de maneira parcialmente autônoma tendo em vista que

estão acoplados entre si e a um meta-círculo comunicacional baseado no poder de decisão do

Tribunal Constitucional que a eles se sobrepõe.

A disposição paritária do Tribunal é antes de tudo um estímulo para o

desenvolvimento de uma relação dialógica entre as duas ordens jurídicas pertencentes às

comunidades nacionais acerca das questões constitucionais que envolvem o meta-cículo

comunicacional de coordenação e calibração sistêmicas, permitindo que a Constituição não

seja um fenômeno absolutamente estático e preso ao texto do documento político, mas que

seja um movimento dinâmico e interpretativo, por meio do qual a sociedade não é constituída,

mas está sendo constituída.

A Constituição da Bolívia passa a ser um movimento de construção recíproca e

permanente das estruturas do Estado com base no diálogo constitucional de valores sob o

prisma da plurinacionalidade. A plurinacionalidade e o diálogo intercultural formam o que se

pode considerar princípio-matriz constitucional que permeia todo o sistema jurídico boliviano.

Os grandes conflitos entre os valores existentes nas diferentes comunidades que formam a

sociedade boliviana serão objeto, em última instância, do debate protagonizado pelo Tribunal

Constitucional formado pelas ordens jurídicas em pé de igualdade. Para que este debate seja

proveitoso, não é possível que os magistrados e intérpretes adotem uma posição intolerante de

valorização de suas próprias manifestações culturais em caráter universal. Devem partir de

uma epistemologia fundada na pluralidade de manifestações do fenômeno jurídico e na

vontade de aprender com o outro.

É necessário então a adoção de uma relação pedagógica peculiar, que permita

tomar os valores em conflito intercultural potencial, como no caso do respeito ao direito à

vida, como temas geradores que impulsionem o diálogo. Apenas com a humildade de cada um

dos magistrados do tribunal constitucional será possível que a Bolívia constitucionalize-se por

meio de um aprendizado recíproco e da construção conjunta de valores com base no consenso

que se obtém pelo dissenso axiológico presente nas comunidades nacionais.

Os direitos e garantias presentes no texto constitucional funcionam como uma

codificação da realidade. O que importa aos intérpretes constitucionais é descodificar os

direitos fundamentais garantidos pelo Estado por meio de uma relação dialógica que permita a

ambas as ordens jurídicas expor a sua experiência acumulada acerca daquele valor

consagrado.

Page 69: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

69

Assim, será possível que cada ordem jurídica eduque-se com base na apreensão

valorativa da outra, à luz da maneira culturalmente diferente que o outro lida com o mesmo

valor, ou com um valor análogo, e assim, buscar constituir um novo valor que contemple as

visões de mundo diferentes, consagradas pelas expectativas congruentemente generalizadas

de cada uma das ordens jurídicas, a fim de que, em última análise, tornem-se expectativas

generalizadas de toda a sociedade na construção de um consenso contemplativo que respeite a

autonomia e o dissenso valorativo essencial de cada comunidade.

Esse movimento de construção constitucional permanente e dialógica que permite

o aprendizado mútuo entre as comunidades é que pode garantir uma Constituição

verdadeiramente democrática, e um aparato burocrático com maior capacidade de apreensão

dos fenômenos jurídicos e políticos, mais capaz de absorver a ultra-complexidade do

ambiente social.

É claro que a mera previsão no texto constitucional da existência de um tribunal

paritário para atuar como protagonista na relação entre as duas ordens jurídicas distintas não é

suficiente para garantir que essa relação se dê de fato simetricamente de maneira a evitar a

sobreposição de uma ordem jurídica em relação à outra. A concretização desta previsão

dependerá de se na prática o Tribunal Constitucional Plurinacional poderá transcender as

relações de subintegração sistêmica percebidas pelas comunidades indígenas ao longo dos

séculos no continente latino-americano.

Se mesmo com a nova ordem constitucional em vigor na Bolívia as relações de

inclusão/exclusão ou as relações de ter/não-ter continuarem a ser determinantes para a

apreciação do sistema jurídico, não será possível verificar satisfatoriamente o desempenho do

tribunal plurinacional109.

Além disso, será preciso elaborar um método para a realização da

constitucionalização recíproca das ordens jurídicas no seio dos diálogos interculturais

protagonizados pelos magistrados do Tribunal. Este método de relação e conversação

constitucional é a proposta contida no capítulo seguinte.

109 NEVES, 2009, p. 69.

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70

3. PROPOSTA PARA A RELAÇÃO CONSTITUCIONAL

ENTRE AS ORDENS JURÍDICAS INDÍGENAS E O DIREITO ESTATAL

NA AMÉRICA LATINA

Até o momento tomou-se como ponto de partida o conceito de pluralismo jurídico

para buscar compreender a relação entre duas ordens jurídicas sob a égide de um mesmo

Estado. Procurou-se identificar no modelo adotado pelo recente movimento constitucional

boliviano uma forma de relacionamento entre uma ordem jurídica local, referente às

comunidades indígenas, e a ordem jurídica estatal.

Porém, o que se observa do exemplo boliviano é que a mera constatação do

pluralismo jurídico e o embate ideológico entre monismo/pluralismo no âmbito dos sistemas

sociais de comunicação não apresenta uma solução satisfatória para os problemas que

emergem nas relações sociais interculturais.

É preciso ir além das meras constatações de diferença nas manifestações culturais

da sociedade, da mera constatação da existência de uma ordem jurídica própria das

comunidades indígenas. Deve-se buscar compreender a contribuição de cada comunidade

diferenciada na construção das estruturas sociais comuns. É preciso transcender as

concepções hirtas de pluralismo jurídico e de sociedade multicultural para entender qual o

papel da Constituição do Estado na relação entre as diferentes comunidades que a compõem.

A pluralidade de manifestações jurídicas e culturais que se opera na modernidade

não pode mais ser contemplada de maneira estática pelo jurista. Quem estuda o fenômeno

jurídico na pós-modernidade tem de encará-lo sob o prisma de uma dinâmica inerente, de um

movimento constante de construção de novas expectativas normativas por meio de

interpenetrações recíprocas dos outros sistemas parciais de comunicação.

Nesse aspecto, a teoria dos sistemas pode contribuir somente como um referencial

teórico inaugural, pois como já foi abordado no primeiro capítulo, no âmbito da América

Latina a autopoiese dos sistemas sociais ocorre apenas excepcionalmente enquanto que

alopoiese é a regra. Dessa forma, para o estudo da relação entre ordens jurídicas presentes

nesse contexto deve-se aprimorar a noção de acoplamento estrutural que pode não ser

suficiente para compreender as influências e interpenetrações realizadas pelos sub-sistemas

jurídicos fragmentados.

Page 71: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

71

Assim, há que se levar em consideração a proposta de Marcelo Neves, acerca do

“transconstitucionalismo” como uma nova maneira de pensar a relação entre ordens jurídicas

estatais e ordens jurídicas locais extra-estatais110, principalmente no que tange ao

aprimoramento do conceito de acoplamento estrutural de Niklas Luhmann à luz do conceito

de “razão transversal111” proposto por Wolfgang Welsh. Da interação entre esses dois

referenciais teóricos, Marcelo Neves apresenta a noção de “pontes de transição112” entre como

elemento-chave para o surgimento de uma relação contínua de influência recíproca

estruturada e aprendizado mútuo entre sistemas comunicacionais diferenciados. É ao estudo

dessa nova proposta de convivência sistêmica entre ordens jurídicas distintas que este último

capítulo se dedica.

O primeiro passo para a compreensão do “transconstitucionalismo” e da

construção de pontes de transição na relação entre ordens jurídicas tem de ser um

compromisso do jurista com a superação da posição sectária no que diz respeito às diferentes

manifestações culturais e jurídicas. O sectarismo não mais se justifica na epistemologia

jurídica da sociedade moderna hipercomplexa. A tolerância e a alteridade devem ser a tônica

do pensamento e da tomada de decisões para a estabilização das expectativas sociais.

Após, será proposto um método para o transconstitucionalismo sob o prisma da

teoria da ação dialógica, e da pedagogia libertadora de Paulo Freire113, a fim de que o conceito

se instrumentalize em uma nova maneira de lidar com a existência da pluralidade de

manifestações do fenômeno jurídico, permitindo o entrelaçamento horizontal e o aprendizado

recíproco entre as ordens jurídicas, para que se constitucionalizem em comunhão por meio da

“conversação constitucional114”. É preciso adotar uma pedagogia própria para o diálogo

constitucional entre ordens jurídicas, principalmente no que diz respeito às ordens de

comunidades tradicionalmente subintegradas ao sistema social que são reconhecidas e

institucionalizadas paralelamente à ordem jurídica ordinária do Estado, bem como no que diz

respeito às ordens jurídicas de Estados não constitucionais e antidemocráticos, os quais a

priori não estariam dispostos ao diálogo.

Como referencial de estrutura que permita a aplicação deste método e conceito

apresentados anteriormente, será levada em consideração a proposta do legislador constituinte

110 NEVES, 2009. p. 190. 111 WELSCH, 1998. p.25. 112 NEVES, 2009. p.37 113 FREIRE, 2005. p.191 114 NEVES, 2009, p.XVIII.

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72

boliviano ao criar o Tribunal Constitucional Plurinacional para figurar como protagonista

fundamental da manutenção das pontes de transição entre a ordem jurídica indígena e a ordem

jurídica estatal, ressaltando-se o grande potencial deste órgão jurisdicional para criar uma

jurisprudência fundada na racionalidade transversal, nos diálogos constitucionais de

construção estrutural conjunta e no aprendizado e intercâmbio recíproco de experiências

jurídicas acumuladas pelas diferentes comunidades nacionais para a solução de problemas

sociais e jurídicos comuns.

3.1. Por uma superação da epistemologia monista-sectária: Os conceitos de

transculturalidade, razão transversal e transconstitucionalismo.

3.1.1 Identificação da epistemologia monista e sectária.

Não há como desvincular monismo de sectarismo, pois todo monismo leva

invariavelmente ao antidiálogo, à incapacidade de observar o outro senão sob um olhar de

superioridade, impossibilitando o aprendizado mútuo, para o qual é necessário sempre o olhar

horizontal, pressuposto da capacidade de aprender com o diferente.

No nosso modo de entender, a epistemologia monista-sectária é o grande entrave

na compreensão da complexidade jurídica da sociedade atual. Ela limita a capacidade de

apreensão dessa complexidade, fazendo com que se adote uma posição intolerante com

relação à pluralidade e à alteridade. Por ser uma perspectiva de valorização da unidade

totalizante e universalizante de uma racionalidade parcial115, tem como principal objetivo a

afirmação do essencialmente relativo como invariavelmente absoluto, pois acredita que

permitir a influência do que vem de fora, ou seja, permitir a influência da racionalidade

parcial do outro, corresponde a uma necessária desvalorização do que está dentro.

Adverte-se desde logo que é impossível compreender o Direito e a sociedade pós-

moderna em toda a sua complexidade de relações partindo de um pressuposto uno e sectário

de valores. A sociedade pós-moderna é mundial e multicêntrica116. Os sistemas parciais de

comunicação ao se auto-referenciarem por meio de seu código-diferença próprio, pretendem

115 Racionalidade parcial deve ser entendida como a possibilidade de apreensão de um elemento cognoscível do ambiente por meio de sistemas (ou subsistemas) de comunicação diferenciados, cuja perspectiva é limitada pela aplicação do código-diferença auto-referencial próprio do sistema. 116 Nesse sentido, NEVES, 2009. p.21.

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73

cada qual figurar como ultima ratio, obstinando-se a querer fazer prevalecer a aplicação de

seu código binário sobre os demais. Os sistemas especializam-se e, diferenciando-se, buscam

totalizar-se em relação aos demais sistemas pretendendo ocupar a posição de maior destaque

para explicar os fenômenos do ambiente. Assim, a sociedade torna-se policontextural, pois há

uma pluralidade de discursos especializados com pretensão de universalização e auto-

suficiência operacional e explicativa117.

Dessa forma, por exemplo, a economia pretende protagonizar a explicação dos

fenômenos sociais, sobrepondo-se aos discursos políticos, jurídicos e educacionais, buscando

uma auto-afirmação com relação aos discursos próprios do direito e da educação, exercendo

forte pressão, oriunda da força do sistema econômico no período da globalização, para que o

código diferença ter/não-ter e as racionalidades parciais de custo benefício sobressaiam às

conclusões advindas de outros sistemas de comunicação. Da mesma maneira, modernamente

a ciência busca ser a ultima ratio no fornecimento de respostas às angustias e dúvidas

humanas, pretendendo sobrepor-se a qualquer custo sobre o discurso religioso ou metafísico.

Todavia, não é possível mais crer nesta auto-suficiência discursiva, tendo em vista

que cada sistema diferenciado de comunicação possui apenas uma racionalidade parcial. Cada

sistema parcial absorve a complexidade do ambiente de acordo com uma perspectiva limitada

de observação. Esta perspectiva limitada diz respeito ao código binário próprio de

comunicação. Destarte, o sistema jurídico sempre apreende a realidade por meio de uma

perspectiva que leva em conta o caráter lícito/ilícito. A economia, por sua vez tem a

perspectiva limitada pelas relações ter/não ter, e a política pelas relações entre quem detém o

poder e quem exerce oposição ao poder.

Por exemplo: o economista tem uma visão acerca do contrato a qual, por sua vez,

diferencia-se da visão do jurista. O economista tem em mente a relação de custo benefício, o

quanto se pode ganhar ou perder com o negócio. Já o jurista está atento para todas as

possibilidades de adimplemento ou inadimplemento contratual, de como se pode fazer para

garantir o adimplemento da outra parte, mesmo que seja forçado, de como se faz para evitar a

ocorrência de vícios de consentimento das partes na consecução do negócio e etc. Por esse

motivo o fenômeno contratual para a racionalidade parcial jurídica é diferente do que

representa para a econômica.

117 NEVES, 2009. p.22.

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74

Cada uma apreende o fenômeno de acordo com sua perspectiva limitada. O

economista geralmente acha o jurista “impertinente” no momento do fechamento de um

negócio, pois este fica a todo o momento alertando os agentes econômicos das inúmeras

possibilidades de frustração da execução do contrato, o que causa desestímulo no momento

em que as partes mais desejam contratar e pode proporcionar um aumento do preço ou da

valorização dos riscos inerentes ao negócio, antes desconsiderados. O jurista por sua vez,

acredita que o economista seja um inconseqüente ao exaltar apenas as vantagens/desvantagens

econômicas sem levar em conta os efeitos de um possível conflito entre os contratantes no

futuro.

Ou seja, cada sistema diferenciado de comunicação tem uma visão limitada e

parcial do ambiente, não podendo considerar-se auto-suficiente sob pena de jamais conseguir

compreender satisfatoriamente a complexidade social em sua inteireza. Para que isso aconteça

é preciso o entrelaçamento de todas as perspectivas limitadas, uma união estruturante e

holística de todas as racionalidades parciais118. Se uma racionalidade parcial pretender

colocar-se em um patamar superior, deixando de levar em conta as perspectivas dos demais

sistemas diferenciados, torna-se intolerante e autista. Em sua pretensão de universalização,

passa a reproduzir-se em um isolamento que a distancia da compreensão do ambiente.

As racionalidades parciais, sejam elas jurídicas, políticas ou econômicas, não

podem ter a cobiça de a todo o momento querer unificar exclusivamente a múltiplas

expectativas sociais119 - cognitivas ou normativas - em totalidades, confeccionando categorias

hipotéticas universais, e desconsiderando sua limitação essencial de perspectiva120.

A pretensão de auto-suficiência de uma racionalidade parcial é um grande

problema de ordem epistemológica, pois inevitavelmente evolui para o surgimento de

posições monistas e sectárias. Isso provoca um bloqueio essencial no desenvolvimento de um

ambiente de dissenso democrático. O dissenso fica prejudicado pois o monista-sectário não

está disposto a contemplar a experiência acumulada por outra racionalidade parcial acerca do

118 CAPRA, 2006, p 259. Holístico refere-se ao equilíbrio dinâmico entre tendências auto-afirmativas e integrativas no processo biológico subjacente de auto-organização de estruturas em múltiplos níveis nos organismos biológicos. Em cada nível estrutural os holons atuam como interfaces, ou seja, como pontes de revezamento entre os vários subsistemas orgânicos. Importando este conceito das ciências biológicas, conclui-se que para uma melhor apreensão do ambiente social é necessário que se estabeleçam pontes de revezamento holísticas entre as diferentes racionalidades parciais. 119 WELSCH, 1998, pp. 25. Fala exatamente da pretensão de exclusividade de certas perspectivas limitas de racionalidade, que não obstante tenham apreensão racional limitada, frequentemente possuem uma ilimitada auto-confiança. 120 Nesse sentido, NEVES, 2009, p.22.

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75

mesmo fenômeno por ele observado, e por esse motivo, não colabora na busca de um

consenso, mas pretende fazer valer sua perspectiva particular em relação a todas as demais,

atribuindo a ela o caráter de compreensão universal do fenômeno, para a qual não admite

mitigações.

A pretensão universalizante deste tipo de pensamento, que em seu fanatismo não

é capaz de admitir a limitação de perspectiva na compreensão da realidade, que se obstina a

delimitar rigidamente onde termina o ego de uma racionalidade parcial, e se inicia o alter, só

chega a conclusões restringidas, provincianas, e, atualmente, contenta-se a profetizar seus

próprios fracassos de abrangência explicativa. Por não conseguir compreender e lidar com as

diferenças de perspectiva, tendo em vista sua inexperiência dialógica e democrática, a

epistemologia monista cria toda uma esfera fatalista em torno de um mundo com problemas

de difícil ou impossível solução, ostentando crises insuperáveis nos mais variados campos do

conhecimento humano (direito, economia, educação e etc.), o que, a bem da verdade, consiste

numa retroalimentação de seus pressupostos filosóficos ineficientes.

Esse universo fatalista e desesperançoso com relação aos problemas da pós-

modernidade nada mais é do que reflexo do erro de perspectiva na apreensão da

complexidade social, porque as racionalidades parciais desenvolvem-se sobre o mito

presunçoso da auto-suficiência. Abdicam da troca de experiências acumuladas por outras

racionalidades parciais, as quais consideram inferiores ou ineficientes para explicar os

fenômenos do ambiente.

Assim, isolam-se na crença equivocada de que suas respostas contemplam

qualquer dúvida ou conflito que possa surgir na sociedade. Já se tornam defensoras da

unidade universal de seus próprios atos de comunicação diferenciados, enfatizando a clausura

operacional do sistema parcial, esquecendo-se de sua necessária abertura cognitiva para o

ambiente, como condição intrínseca para o próprio fechamento. Tornam-se então perspectivas

monistas e sectárias de valorização exclusiva de ego em detrimento de alter.

Por monista deve-se entender esta concepção que defende a unidade pura e

simples da racionalidade parcial de um sistema comunicacional diferenciado como auto-

suficiente, desconsiderando a super-complexidade da sociedade pós-moderna. O termo

sectária é empregado no sentido que lhe dá Paulo Freire: “(...) a sectarização tem uma matriz

preponderantemente emocional e acrítica. É arrogante, antidialógica e por isso

anticomunicativa. (...) O sectário nada cria porque não ama. Não respeita a opção dos outros.

Pretende a todos impor a sua, que não é opção, mas fanatismo. Daí a inclinação do sectário ao

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ativismo, que é ação sem vigilância da reflexão. Daí seu gosto pela sloganização, que

dificilmente ultrapassa a esfera dos mitos e, por isso mesmo, morrendo nas meias verdades,

nutre-se do puramente ‘relativo que atribui valor de absoluto121”

O pensar e o agir do jurista na pós-modernidade não pode mais comungar dessa

perspectiva falaciosa. Enquanto a epistemologia unitarista, monista, sectária e antidialógica

for a base para a compreensão de fenômenos sociais em conflito, de fato o desenvolvimento

complexo da sociedade estará sempre muito distante da possibilidade de compreensão e

reflexão dos indivíduos, os problemas restarão sem uma resposta contemplativa e as

expectativas estarão longe de ser estabilizadas de maneira efetiva.

O entendimento da complexidade social por meio dos sistemas parciais de

comunicação deve iniciar-se por uma relação linear e horizontal para com o outro, que me é

diferente. Ego e Alter não devem jamais se sobrepor. Sua relação é fundada basicamente na

comunicação, e o pressuposto dessa relação de comunicação não pode ser hierárquico. Deve

ser horizontal. Isto implica uma observação mútua, que se permeia pelo diálogo e pelo

aprendizado recíproco entre as racionalidades parciais que leva à construção conjunta de

conclusões para problemas comuns.

Se ego tenta simplesmente sobrepor seus valores e sua razão parcial a alter, ou

ainda, se se recusa a meramente observar os valores de que alter comunga, recusa-se ao

diálogo porque se considera superior, como se os valores e a racionalidade de alter fossem

inferiores e não merecessem maiores considerações.

Nesse caso ocorrerá sempre um distanciamento, um bloqueio recíproco de

comunicação que destrói as possibilidades de aprendizado mútuo, abrindo caminho para uma

relação de dominação, que cedo ou tarde implicará o uso da violência. A imposição de valores

e de expectativas sobre o outro, negando-lhe o direito de construir por si mesmo seus próprios

valores e expectativas é uma enorme violência.

Assim sendo, de nada adianta afirmar, por exemplo, a unidade e superioridade de

uma ordem jurídica em relação à outra, ou em relação a todo o direito internacional. Isso

apenas denota a inexperiência dialógica e democrática daquela comunidade, a qual, de

maneira intolerante, pretende fazer prevalecer seu modo particular de enxergar a realidade e

os problemas que cercam as relações humanas, impondo uma mera racionalidade parcial, de

perspectiva essencialmente limitada, como valor universal inquestionável.

121FREIRE, 2006. p.59.

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77

Infelizmente, a retórica dos direitos humanos muito tem servido ultimamente para

a cristalização de valores unitários e universalizantes. O apelo à democracia e ao respeito aos

direitos humanos tem sido utilizado como critério de distinção de qualidade entre uma e outra

ordem jurídica existente, justificando a imposição desses valores por meio da força, como se

fosse possível "impor", de cima pra baixo, os valores da democracia e dos direitos humanos.

As racionalidades parciais de certas ordens jurídicas, como as ordens indígenas da

América Latina, acerca de valores fundamentais como o direito à vida, à liberdade e à

propriedade, construída ao longo dos anos pelo acúmulo de experiência consuetudinária, pela

generalização congruente de expectativas normativas das diferentes comunidades originárias,

têm sido desconsideradas por setores mais conservadores da sociedade que se utilizam da

retórica dos direitos humanos para argumentar pelo não reconhecimento do pluralismo

jurídico e pelo não reconhecimento da jurisdição especial indígena nesses Estados da América

Latina.

Este discurso intolerante das elites latino-americanas é reforçado pelo papel

desempenhado por certas lideranças políticas e econômicas que surgem no cenário

internacional como defensoras da democracia e dos direitos humanos, as quais se atribuem o

papel de impor militarmente esses valores às ordens jurídicas que não os respeitam, como se a

própria concepção de democracia e direitos humanos dessas lideranças não fosse ela mesma

uma mera racionalidade parcial, uma perspectiva limitada, que ao invés de ser imposta

deveria ser dialogada e construída horizontalmente com o restante das demais ordens jurídicas

do mundo.

Ao contrário do que pode imaginar o leitor mais cauteloso, a alternativa que aqui

se propõe não é ingênua. Não se nega que há ordens jurídicas que não se constituíram com

base em um referencial democrático. Não se nega que existam ordens jurídicas que não

respeitam e não comungam os valores dos direitos humanos. Pelo contrário. Há de fato ordens

jurídicas que negam veementemente qualquer desses valores de liberdade, igualdade e

solidariedade, e não estão sequer dispostas ao diálogo constitucional. Mas é para essas

comunidades, a despeito do que se pode conceber preliminarmente, que a relação horizontal e

o aprendizado mútuo por meio do entrelaçamento de experiências constitucionais torna-se

mais imprescindível.

O que se nega veementemente nesta oportunidade é a imposição unilateral dos

valores democráticos às sociedades antidemocráticas, como se se tratassem de comunidades

essencialmente inferiores jurídica e politicamente, como se devessem ser desconsideradas a

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autonomia, os valores e o modo com a racionalidade parcial dessas comunidades

antidemocráticas percebem os fenômenos culturais e sociais.

É preciso que a comunidade antidemocrática perceba, por sua própria autonomia,

a importância da democracia e dos direitos humanos, e julgue com base em seu próprio

referencial axiológico se comungar destes novos valores é relevante para a construção de

novas bases para o desenvolvimento das estruturas comunitárias. O que não pode acontecer é

que a democracia e os direitos humanos sejam unilateralmente depositados sobre ordens

jurídicas tradicionalmente totalitárias e de inclinação ao Estado de polícia, à violência e à

opressão. Deve haver um diálogo constitucional ainda mais cuidadoso com essas

comunidades, há que se consolidar o estabelecimento de uma relação horizontal ainda mais

cautelosa por parte das demais ordens jurídicas democráticas mundiais, para que ajudem as

ordens antidemocráticas ou anti-constitucionais a democratizarem-se e a

constitucionalizarem-se autonomamente.

A ausência de diálogo constitucional denota a incapacidade de certas lideranças

políticas e econômicas em ajudar as ordens jurídicas antidemocráticas existentes atualmente a

democratizarem-se. As comunidades que não possuem referencial democrático, que não

respeitam a vida, a liberdade e a dignidade humana devem ser ajudadas a educar-se

constitucionalmente com base na construção de valores democráticos que surjam de seu

interior, que representem o consenso emergente de um dissenso essencial da sociedade.

Esta educação constitucional de democratização não pode jamais ser uma

educação depositária de valores pré-determinados pela ordem jurídica educadora, em que,

assimetricamente, a ordem jurídica democrática desconsidere a experiência social e

comunitária acumulada pela ordem jurídica interlocutora que está em processo de

transformação. Deve ser uma educação dialógica, desveladora do ambiente comunitário e das

respectivas expectativas sociais, que respeita a autonomia das comunidades antidemocráticas

em realizarem sua auto-composição estrutural e normativa com base em seus próprios

referenciais axiológicos, em uma relação na qual ordens jurídicas sejam educadoras e

educandas entre si, inobstante o fato de serem ordens jurídicas culturalmente diferentes. Há

que se elaborar uma pedagogia própria para as relações de aprendizado mútuo entre ordens

jurídicas.

As comunidades antidemocráticas têm uma visão limitada acerca da democracia e

dos direitos humanos, justamente porque tradicionalmente estão expostas a relações de

opressão. Não estão acostumadas a buscar consensos. Não se sentem capazes de fazê-lo por si

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mesmas, e têm dificuldades em lidar com o dissenso, pois o referencial que possuem não é de

respeito mútuo às divergências de opinião, mas de imposição intolerante de uma ultima ratio

mediante o uso da força. Estas comunidades estão imersas no ativismo de reprodução das

relações de opressão, tendo nos regimes políticos repressivos o seu testemunho de

organização da vida social122.

O que comprova esta realidade é o fato de não serem raras as vezes em que

ocorrendo uma revolução contra um regime ditatorial que dominava uma comunidade

antidemocrática, instaurar-se uma nova ditadura ainda mais dura que a anterior, a qual irá se

destinar contrariamente ao grupo que exercera anteriormente a dominação política. Isso

ocorre porque no inconsciente coletivo desta comunidade estão imersas as relações de

opressão. A parcela oprimida da população internaliza o opressor, hospedando-o, e passa a

adotá-lo como uma referência, a qual irá reproduzir na primeira oportunidade que tiver de

tomar o poder123. O que ocorre nesses casos não é uma verdadeira revolução, pois a

comunidade de fato não se libertou das relações de opressão. Houve apenas uma inversão de

pólos da relação assimétrica de dominação. O sectarismo e a perspectiva limitada de

apreensão da complexidade social permanecem nos regimes que vão se sucedendo sem que a

comunidade antidemocrática tenha a oportunidade de refletir acerca de seu próprio destino124.

Por esse motivo, de nada adiantará a imposição unilateral e depositária da

democracia e do respeito aos direitos humanos sobre estas comunidades sem que lhes seja

dada a oportunidade de construir autonomamente um referencial democrático próprio, pois,

caso contrário, esta experiência não passará de mais uma imposição opressora e violenta a que

se submeterão os indivíduos que a ela pertencem. E o que é ainda mais delicado, é que se a

democratização vier a tornar-se uma experiência frustrante para estas comunidades, há o

122 FREIRE, 2008, p.35. 123 FREIRE, 2008, p. 36. Paulo FREIRE ao tratar da situação de opressão diz que o oprimido é um ser dual, que tem em si tanto sua consciência própria quanto a do opressor “hospedado”, que faz com que reproduza as relações de opressão por enxergar no opressor seu testemunho de homem. 124 Há exemplos como estes que se repetem na quase totalidade de relações de opressão do mundo. No Brasil, por exemplo, durante o período de escravidão os escravos libertos, ou que atuavam como capatazes dos donos das fazendas, tornavam-se, freqüentemente senhores ainda mais severos com seus semelhantes, agindo com ainda mais dureza e violência contra os indivíduos que ainda se encontravam na condição de escravos. Isso reflete o quanto a relação de opressão é capaz de violentar a condição humana por representar uma afronta vital à dignidade. O Oprimido imerso na relação de opressão tem o opressor como uma referência e paradoxalmente admira o opressor por este ser seu testemunho de humanidade. Quando supera a condição de oprimido sem a consciência desta mudança, passa a reproduzir as relações de opressão com ainda mais afinco, para se tornar cada vez mais parecido com o referencial valorativo que lhe foi imposto violentamente. Há exemplos disso até mesmo na literatura nacional, como a passagem do escravo Prudêncio em “As memórias póstumas de Brás Cubas”, obra de Machado de Assis. Brás Cubas, ao encontrar-se com Prudêncio que havia sido seu escravo na infância, surpreende-se com o fato de Prudêncio, agora liberto, tratar pior e ainda mais violentamente os próprios escravos, mesmo tendo sofrido a mesma violência no passado.

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grande risco de permanecerem ainda mais avessas e reticentes à possibilidade de

transformação, aos referenciais democráticos. O Estado constitucional e a democracia não

devem ser concebidos para estas comunidades, mas devem ser construídos com elas. Elas têm

de ser sujeito do processo de transformação e democratização e não meros objetos, como

pretendem as intervenções militares de certas potências mundiais.

Assim, cumpre concluir que em hipótese alguma é possível que se imponha

unilateralmente a democracia, muito menos se obrigue a respeitar os direitos humanos. É

necessário uma conversação constitucional que respeite a autonomia da comunidade

antidemocrática na construção de seus próprios valores constitucionais. Esta conversação

constitucional deve ser mediatizada pelo aprendizado recíproco em comunhão com o restante

das outras ordens jurídicas existentes no mundo, as quais por sua vez, devem estimular a auto-

composição dos valores democráticos e constitucionais no seio das comunidades que não

comungam destes valores por meio do diálogo. Para isso há que se estabelecer um método.

Uma pedagogia própria que oriente as relações de aprendizado e entrelaçamento de valores,

expectativas, normas jurídicas, estruturas, manifestações culturais e etc.

3.1.2 Transculturalidade, razão transversal e transconstitucionalismo.

Para melhor representar a conversação constitucional e a construção conjunta e

dinâmica das estruturas sociais comuns, deve ser superada também a concepção de cultura

que identifica em cada comunidade nacional diferente uma esfera própria e homogênea de

manifestação cultural. As diferentes comunidades nacionais ao buscarem superar o sectarismo

para iniciar diálogo já não podem querer isolar-se como se fossem ilhas de cultura. Ao

permitirem-se aprender com a experiência do outro, as comunidades e as diferentes ordens

jurídicas devem ser capazes de reconhecer o quanto do outro já é fundamental para a

reprodução interna de seus atos próprios de comunicação.

O caráter plurinacional do Estado boliviano procura exatamente ir além da

formação de um Estado multicultural, que por sua vez seria uma soma de esferas culturais

isoladas as quais têm o interesse de coexistir em um mesmo território e sob o mesmo aparato

burocrático. Essa idéia sugere que o isolamento das comunidades é a regra e o compromisso

multicultural do Estado é garantir que as relações esporádicas entre as diferentes esferas de

cultura não seja traumático, evitando conflito entre mundos diferentes que não se misturam.

Page 81: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

81

Essa concepção de culturas meramente conviventes e separadas por uma linha

tênue entre coexistência harmoniosa e potencial conflito étnico não representa mais as

necessidades do Estado Plurinacional. As comunidades nacionais não estão isoladas em

esferas autômatas de cultura e comunicação, mas interligadas, entrelaçadas e misturadas em

uma relação dinâmica de mútua interferência e de influência recíproca.

Nesse aspecto, tem de se reconhecer que as manifestações culturais do “outro” já

são determinantes para o desenvolvimento da “minha” cultura própria. Destarte, já não há

uma diferença tão clara onde termina o que é do “outro” e se inicia o que é “próprio”. Não há

mais fronteiras capazes de separar claramente as esferas cultuais homogêneas de um Estado

multicultural. Então, tem de se evoluir a idéia de relação intercultural, ou multicultural, que

parte do pressuposto da diferença intrínseca, do conflito essencial entre as diferentes

comunidades nacionais, para o que Wolfgang Welsh chamou de “transculturalidade125.”

Na transculturalidade há uma mistura complexa de visões de mundo diferentes,

um entrelaçamento de experiências acumuladas por múltiplas comunidades nacionais e que

vão determinando uma complementaridade entre racionalidades parciais próprias e as

racionalidades parciais do outro. Isso faz com que se ampliem as possibilidades de surgimento

de afinidades psíquicas e espirituais entre um grupo de indivíduos que transcende os limites

de uma única comunidade determinada. As racionalidades parciais dos sistemas de

comunicação das comunidades nacionais passam a tomar consciência de serem racionalidades

inconclusas, de que não são auto-suficientes para se referirem aos estímulos do ambiente.

Assim, passam a compor uma gama de “racionalidades transversais126”, que

buscam a compreensão do ambiente por uma junção de perspectivas diferentes, diminuindo

assim a possibilidade de contingência e o risco inerente de cognição superficial das interações

sistêmicas. A transculturalidade é uma primeira manifestação da leitura do mundo em

comunhão com o referencial do outro. É um reajuste de foco. Significa um primeiro passo

para a construção conjunta de uma lente comum para a observação da realidade, ampliando as

possibilidades dimensionais de compreensão em uma somatória de perspectivas limitadas,

mas complementares.

125 “(...)The concept of transculturality sketches a different picture of the relation between cultures. Not one of isolation and of conflict, but one of entanglement, intermixing and commonness. It promotes not separation, but exchange and interaction. If the diagnosis given applies to some extent, then tasks of the future - in political and social, scientific and educational, artistic and design-related respects - ought only to be solvable through a decisive turn towards this transculturality.” WELSH, 1999. p.198. 126 NEVES, 2009, p. 37.

Page 82: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

82

Segundo Welsch, a razão sempre possui a faculdade de fazer transições127. Ocorre

que com o aumento da complexidade social esta característica da razão passa a orientar uma

nova concepção de racionalidade, uma racionalidade que não parte de um referente individual

superior, de um ponto de vista anterior e sobreposto, mas é uma razão que transita

horizontalmente entre as formas de racionalidade diferentes128. O esforço racional da pós-

modernidade está em fazer transições entre as diferentes racionalidades que contemplam os

fenômenos do mundo da vida.

Destarte, conclui ser esta forma de razão o que ele designou de “razão

transversal”. A razão transversal é o elemento da razão que lhe permite a faculdade de fazer

transições entre diferentes formas de racionalidade, entre diferentes leituras do mundo

realizadas por outras perspectivas de um mesmo objeto cognoscível129. Somente assim seria

possível a compreensão do estado de desordem proporcionado pela grande complexidade da

sociedade moderna. Em meio ao aparente estado de desordem estabelecido pelas múltiplas

formas de racionalidade existentes, a razão transversal surge para estabelecer transições entre

as racionalidades parciais. Para buscar uma “orientação em meio ao estado de desordem130”.

Não propriamente para a busca de um consenso, ou de uma supra-racionalidade que se

sobreponha hierarquicamente às racionalidades parciais, mas para que conscientes de sua

inerente inconclusão, as racionalidades parciais busquem complementar sua contemplação da

realidade por meio de um entrelaçamento construtivo com a perspectiva do outro.

É esta concepção de razão transversal que Marcelo Neves utiliza para aprimorar o

conceito de acoplamento estrutural da teoria dos sistemas. Como salientado anteriormente, o

acoplamento estrutural serve para lidar com as influências recíprocas entre os diferentes

sistemas parciais de comunicação, permitindo que essas influências se dêem de maneira

duradoura sem interferir no processo de filtragem, proporcionando uma liga entre as

estruturas sistêmicas sem que cada sistema parcial perca sua autonomia131. Nesse caso, o

acoplamento estrutural atuaria como um filtro de influências intersistêmicas para garantir a

127 WELSCH, 1998, p. 25. 128 WELSCH, 1998, p. 25. 129 “(...) the axis of reason rotates from verticality to horizontality. Reason becomes a faculty of transitions. It does not contemplate from a lofty viewpoint, but passes between the forms of rationality. This is a consequence of its status of purity, since it is just as pure reason that it cannot begin with the possession of contents, but must operate processually. All reason's activities take place in transitions. These form the proprium and the central activity of reason. Reason is thus transformed from a static and principle-oriented faculty into a dynamic and intermediary faculty. In view of this transitional character, I designate the form of reason thus outlined "transversal reason". (WELSCH, 1998, p. 26). 130 WELSCH, 1998, p. 26. 131 NEVES, 2009, p.31.

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83

autonomia dos sistemas. Porém, os acoplamentos estruturais ao permitirem a observação

mútua entre os sistemas diferenciados, colocam à disposição do sistema receptor uma

complexidade desestruturada a qual ele não é capaz de compreender integralmente por conta

própria.

O conceito de razão transversal adiciona um aspecto importante ao acoplamento

estrutural, que é a idéia de que as racionalidades transversais parciais dos respectivos sistemas

em observação desenvolvem pontes de transição que servem para o intercâmbio e o

aprendizado recíproco132. Dessa forma os sistemas de comunicação diferenciados ao

entrelaçarem-se em pontes de transição partilham de suas racionalidades parciais e

compartilham por meio de uma racionalidade transversal experiências sistêmicas acumuladas,

colocando à disposição do sistema receptor de informações uma complexidade preordenada,

que facilita a compreensão133. Destarte, os sistemas interlocutores são capazes de não apenas

observar-se mutuamente, mas de compartilhar dimensões cognitivas.

Nesse aspecto, por exemplo, a Constituição do Estado deixa de ser apenas um

acoplamento estrutural entre política e direito, para passar a ser também o estabelecimento de

pontes de transição entre a racionalidade parcial do sistema político e a racionalidade parcial

do sistema jurídico, proporcionando o aprendizado recíproco entre as dimensões de

perspectiva dos sistemas diferenciados, contribuindo para que possam construir

conjuntamente uma resposta aos estímulos do ambiente complexo. Este é o papel da

“constituição transversal134”. Estabelecer não apenas os limites entre os dois sistemas, mas

atuar como palco de uma relação dinâmica e duradoura de aprendizado mútuo e de troca de

experiências entre política e direito.

Fixadas estas premissas e tomando o aprimoramento do conceito de acoplamento

estrutural à luz da racionalidade transversal, é importante ressaltar como se observa o

fenômeno do estabelecimento de pontes de transição no sistema jurídico, principalmente no

que diz respeito ao relacionamento entre ordens jurídicas diversas. Pois como já foi salientado

anteriormente, o direito já não está mais vinculado estritamente aos limites territoriais do

Estado nacional, podendo ser identificadas ordens jurídicas no plano internacional,

transnacional, bem como no caso de manifestações de pluralismo jurídico, em que o sistema

jurídico de um mesmo Estado fragmenta-se internamente, apresentando duas ordens jurídicas

132 NEVES, 2009, p.43. 133 NEVES, 2009, p.43. 134 NEVES, 2009, p.55

Page 84: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

84

semi-autônomas, conviventes sob o mesmo aparato burocrático estatal. Nesse caso, é possível

dizer que há mais de uma ordem jurídica com pretensão de aplicar o código binário próprio do

direito.

Para tratar desde aspecto do relacionamento entre diferentes ordens jurídicas que

transcendem o âmbito do Estado nacional, Marcelo Neves desenvolveu a noção de

“transconstitucionalismo135”. Há uma pluralidade de ordens jurídicas que se apresentam na

sociedade mundial, e cada qual se manifesta com a pretensão de controlar a aplicação do

código diferença lícito/ilícito. Cada uma dessas ordens possui uma racionalidade parcial

acerca do fenômeno jurídico que corresponde aos valores culturais respectivos das

comunidades a que se referem. Na medida em que surgem conflitos complexos e de grandes

proporções, os quais geram efeitos em mais de uma dessas ordens jurídicas surge o impasse

de como este conflito deve ser resolvido. Se as ordens jurídicas adotarem posições

intolerantes, acreditando serem auto-suficientes para lidar com o problema, e desconsiderando

a racionalidade parcial das demais ordens jurídicas envolvidas, há o risco de que o conflito

não seja satisfatoriamente resolvido, deixando o sistema jurídico de cumprir seu papel de

estabilizar as expectativas sociais.

O transconstitucionalismo é uma proposta de superação da epistemologia

monista-sectária no relacionamento entre ordens jurídicas. De nada adianta a identificação de

conflitos que envolvem mais de uma ordem jurídica constitucional em torno de problemas

referentes aos direitos humanos ou aos limites do exercício do poder, se as ordens jurídicas

atingidas pelos efeitos dos conflitos acreditarem ser auto-suficientes para apresentar uma

solução. Deve ser estabelecida uma conversação constitucional por meio do entrelaçamento

em pontes de transição para que as ordens jurídicas envolvidas possam compartilhar das

experiências jurídicas cognitivas e normativas entre si na solução conjunta do conflito. Para

isso não podem furtar-se ao diálogo, à humildade e ao respeito à alteridade, à vontade de

aprender com as soluções encontradas pelo outro. Nesse caso, o entrelaçamento constitucional

vai além de uma mera abertura cognitiva entre as ordens jurídicas, mas perfaz também uma

abertura normativa entre elas, permitindo que ambas compartilhem dos elementos jurídicos

utilizados pela experiência acumulada da outra.

Por esse motivo não podem ser mais aceitas no contexto da pós-modernidade

concepções de valorização cega do direito estatal como ultima ratio de decisão jurídica sob

135 NEVES, 2009, p.101.

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85

pena de ferir a soberania do estado, bem como não se pode também afirmar a primazia do

direito internacional, ou do direito das ordens jurídicas locais, na defesa de um pluralismo

jurídico que permanece na superficialidade da identificação do conflito e do eterno impasse

em apresentar uma solução. Enquanto os juristas se debruçam na tarefa épica de afirmar qual

das ordens jurídicas deve deter a primazia para aplicação do código lícito/ilícito para um

determinado caso concreto, se é a ordem jurídica do Estado, ou a ordem jurídica internacional,

ou por outro lado a ordem jurídica indígena, melhor seria que direcionassem seus esforços no

estudo de como complementar as racionalidades parciais de cada uma das ordens jurídicas

envolvidas, entrelaçando-as para que ao comungarem das experiências jurídicas acumuladas

entre si, possam produzir conjuntamente uma decisão mais satisfatória para o problema,

instaurando pontes de transição que permitam o aprendizado recíproco, que por sua vez pode

servir para evitar que novos conflitos semelhantes surjam no futuro.

O transconstitucionalismo entre ordens jurídicas apresenta-se então como uma

superação da velha dicotomia monismo/pluralismo. Como afirma Marcelo NEVES:

“O transconstitucionalismo não toma uma única ordem jurídica ou um tipo determinado de ordem como ponto de partida ou ultima ratio. Rejeita tanto o estatalismo quanto o internacionalismo, o supranacionalismo, o transnacionalismo e o localismo como espaço de solução privilegiado dos problemas constitucionais. Aponta, antes, para a necessidade de construção de ‘pontes de transição’, da promoção de ‘conversações constitucionais’, do fortalecimento de entrelaçamentos constitucionais entre as diversas ordens jurídicas: estatais, internacionais, transnacionais, supranacionais e locais. O modelo transconstitucional rompe com o dilema ‘monismo/pluralismo’. A pluralidade de ordens jurídicas implica a perspectiva do transconstitucionalismo, a relação complementar entre identidade e alteridade.(...) 136”.

No contexto da modernidade periférica da América Latina e sua inerente

complexidade desestruturada de códigos jurídicos sociais, o transconstitucionalismo pode ser

concebido como um tipo ideal de relação entre as ordens jurídicas indígenas e as ordens

jurídicas dos Estados nacionais. Um modelo-guia para servir de perspectiva a ser alcançada

com o desenvolvimento da relação constitucional entre ordens jurídicas. Deve-se superar a

noção de pluralismo jurídico pela carga valorativa de separatismo, isolamento e conflito

étnico potencial que ela traz. A busca pelo reconhecimento das ordens jurídicas extra-estatais

no interior do território nacional não tem de ser encarada como afirmação e valorização do

dissenso essencial da sociedade, mas da procura incessante pelo consenso na solução dos

conflitos sociais comuns.

136 NEVES, 2009, p. XVIII.

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86

3.2. O transconstitucionalismo entre ordens jurídicas presentes em um

mesmo Estado.

No que mais interessa a este trabalho, tem-se que transcontitucionalismo presente

na relação entre ordens jurídicas locais (extra-estatais), e ordens jurídicas ordinárias (estatais),

só é possível a partir do momento em que se identifica de fato o surgimento de um subsistema

jurídico parcialmente autônomo com pretensão de autonomia referencial e explicativa.

Enquanto os atos de comunicação jurídicos encontram-se difusos no meio social, pouco

diferenciando dos códigos sociais de comunicação, fica difícil afirmar a possibilidade de

entrelaçamento, ou de estabelecimento de pontes de transição.

No caso de alguns países da América Latina, como a Bolívia e a Colômbia, é

possível observar como as ordens jurídicas indígenas constituem-se em sistemas parcialmente

autônomos cuja racionalidade parcial acerca do fenômeno jurídico é compartilhada por uma

grande parcela da população. O reconhecimento das ordens jurídicas indígenas pelo texto

constitucional não é o único fator determinante, mas contribui para que se proceda à uma

relação constitucional de aprendizado recíproco entre a ordem jurídica local e a ordem

jurídica do Estado.

Todavia, geralmente as ordens jurídicas indígenas dizem respeito a comunidades

nacionais que em razão de seu referencial axiológico não comungam dos valores do

constitucionalismo, ou seja, da democracia, da limitação do poder e do respeito aos direitos

individuais. Esse fator pode causar um empecilho preliminar, pois a ordem jurídica indígena

pode não estar disposta ao diálogo transconstitucional. Porém, a ordem jurídica estatal não

pode pretender impor unilateralmente os valores constitucionais à ordem jurídica indígena,

sem respeitar sua autonomia e a racionalidade parcial desta comunidade acerca dos principais

temas dos direitos humanos.

A ordem jurídica estatal não pode adotar uma postura intolerante, mas tem de

buscar aprender o significado dos valores presentes na ordem jurídica indígena, para então

encontrar os meios necessários para ajudar a ordem jurídica indígena a constitucionalizar-se.

Não há como desconsiderar a experiência acumulada pelo direito consuetudinário indígena

acerca do direito à vida, à liberdade, à propriedade, ao meio ambiente e etc. O direito estatal,

se se permitir conhecer a racionalidade parcial da ordem jurídica indígena, pode encontrar

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87

soluções e alternativas para problemas jurídicos às quais não poderia nunca ter chegado por

conta própria. Apenas pela perspectiva diferenciada e vivenciada pelo outro é que se podem

ampliar as possibilidades de apreensão do objeto cognoscível.

Da mesma maneira, as ordens jurídicas indígenas ao entrelaçarem-se

constitucionalmente com a ordem jurídica estatal podem descobrir novas leituras do ambiente

que produzem conclusões diferentes acerca dos conflitos sociais existentes no interior da

comunidade. Podem perceber que talvez a manutenção de penas duras como a pena de morte

não são uma solução satisfatória para diminuição da delinqüência. Mas as comunidades

indígenas devem perceber essa realidade de acordo com sua autonomia. Não pode haver um

imperialismo do direito estatal influenciando diretamente na formação constitucional da

ordem jurídica indígena.

Se a relação entre as ordens jurídicas for horizontal e de aprendizado recíproco

não há dúvida que ambas ampliarão sua capacidade de compreensão da complexidade jurídica

da sociedade. Como já salientado no item anterior, as ordens jurídicas devem ser educadoras e

educandas umas das outras. Apenas assim poderá estabelecer-se um transconstitucionalismo

verdadeiro, que respeite as racionalidades parciais em transição. Se a ordem jurídica indígena

mostrar-se intolerante, sectária e avessa aos valores constitucionais democráticos, o esforço

do diálogo transconstitucional da ordem jurídica estatal deve ser ainda maior para estimular a

ordem jurídica indígena a despertar a reflexão acerca do constitucionalismo. Porém a ordem

jurídica estatal deve cuidar para que os valores constitucionais e democráticos surjam do

interior da comunidade indígena, e não por imposição dos valores e da racionalidade parcial

do direito estatal, depositando conteúdos a que a ordem jurídica indígena estaria obrigada a

obedecer, pois dessa forma a ordem jurídica indígena ver-se-ia diante de uma complexidade

desordenada a qual ela ainda não possuiria meios de compreender satisfatoriamente.

Por isso deve haver uma construção conjunta de conhecimento constitucional,

possibilitando o aprendizado recíproco entre as ordens jurídicas em relação.

Para ilustrar o que foi dito anteriormente, vale mencionar um fato narrado por

Esther Sánchez BOTERO137, em que se evidencia a presença do transconstitucionalismo que se

137 “También hay para administrar justicia como medio y símbolo el uso de bastones de mando y oratoria amplia (Wayu), equipos humanos especializados de trabajo y bien pagos (emberas), utilización de equipos modernos computadores conectados a internet con el mundo, conocimiento de los tratados internacionales, de la jurisprudencia de las Cortes (paeces). Muchos realizan y formalizan sus tareas por escrito, como por ejemplo los guambianos. Hay pueblos también que ejercen justicia internamente y contratan abogados de fuera –no

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88

manifesta por iniciativa da ordem jurídica indígena local. Determinada comunidade indígena

colombiana utiliza-se para motivar suas decisões, além de seus costumes tradicionais, as

experiências e o aprendizado obtido com a ordem jurídica estatal, e até com a ordem jurídica

internacional. Por meio do acesso à internet, alguns povos pesquisam as normas e princípios

presentes em tratados internacionais, decisões das cortes e tribunais estatais, para formar uma

razão de decidir a um determinado caso concreto. Estes povos realizam verdadeiras pontes de

transição entre seus usos e costumes milenares e as normas do direito positivo estatal, além do

disposto em tratados internacionais, buscando assim a melhor solução possível, a que mais

contemple a justiça no caso concreto. É um exemplo de olhar horizontal perante a

manifestação do fenômeno jurídico em outras culturas. Sem imposições e vetos

preconceituosos à ordem jurídica do outro.

Deve ser ressaltada aqui a capacidade desta ordem jurídica indígena colombiana

em estabelecer um diálogo com a racionalidade parcial de outras ordens jurídicas para

encontrar, por meio da análise da experiência própria e da experiência vivida pelo outro, a

melhor forma de superar o conflito social.

Há quem critique esta interação, dizendo que o que ocorre é que os povos

indígenas estão sendo "contaminados pela civilização". Esta é uma posição muito

isolacionista dos povos indígenas. Para contribuir com o transculturalidade, há de existir esta

contaminação cultural, e é necessário que ela exista. Tanto a ordem jurídica estatal quanto a

ordem jurídica indígena devem ser constantemente "contaminadas uma pela outra", desde que

o contágio respeite a autonomia de ambas, operando-se de maneira horizontal e espontânea,

sem a imposição ou pretensão de qualquer uma das partes em defender que os valores

respectivos são superiores aos do outro.

3.3. Uma proposta de método para a relação transconstitucional entre ordens

jurídicas: O Tribunal Constitucional Plurinacional boliviano como protagonista do

diálogo constitucional entre a ordem jurídica indígena e a ordem jurídica ordinária do

Estado.

indígenas-, para com ellos recrear y ejercer mejor la competencia, dado que el Estado monocultural elimino muchas de sus formas propias." BOTERO, 2003, p.3.

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89

Não basta apenas afirmar os pressupostos do transconstitucionalismo sem que seja

possível instrumentalizá-los de maneira a permitir que se realizem na prática das cortes

constitucionais. Ressaltou-se ao longo deste trabalho a importância da adoção de um método,

de uma pedagogia própria para viabilizar a conversação constitucional entre as ordens

jurídicas de diferentes comunidades, para que por meio de uma racionalidade transversal

recíproca pudessem ampliar a limitação de perspectiva de cada racionalidade parcial para

enfrentar um mesmo problema jurídico, construindo conjuntamente uma solução comum, que

além de satisfazer a estabilização de expectativas de ambas as comunidades envolvidas,

servisse de aprendizado mútuo, enriquecendo o acúmulo de experiências e a dimensão de

apreensão cognoscível dos elementos do ambiente por cada um dos sub-sistemas de

comunicação que se operam mediante aplicação do código lícito/ilícito.

No caso dos Estados da América Latina que reconheceram a ordem jurídica

indígena como sub-sistema integrante do sistema jurídico do Estado, admitindo

constitucionalmente a existência do pluralismo jurídico e fornecendo estruturas de

operacionalização, calibração e controle dessas ordens em relação com a ordem jurídica

ordinária do Estado, o transconstitucionalismo se opera na modalidade de conversação

constitucional entre ordens estatais e ordens locais extra-estatais. Como visto anteriormente,

no caso específico da Bolívia, tomado como pano de fundo para este trabalho, o novo texto

constitucional consagrou a ausência de hierarquia entre a jurisdição “indígena originário

campesina” e a jurisdição ordinária.

Além disso, criou o Tribunal Constitucional Plurinacional como instância

suprema do Poder Judiciário, responsável pela guarda da Constituição e pela resolução do

eventual conflito entre as jurisdições presentes dentro do Estado. Este Tribunal possui

composição paritária entre magistrados advindos do sub-sistema jurídico estatal e magistrados

advindos do sub-sistema jurídico indígena. Nota-se então que esta Corte Constitucional tem a

oportunidade de exercer a conversação constitucional entre as ordens jurídicas, atuando como

protagonista no estabelecimento de pontes de transição entre as perspectivas existentes na

experiência acumulada pelo direito consuetudinário indígena e pelo direito positivo estatal. É

o órgão jurisdicional que será responsável por conduzir a orientação no “estado de

desordem138” causado pela convivência complexa de duas diferentes racionalidades parciais

jurídicas oriundas de duas diferentes comunidades nacionais que compõem a sociedade

boliviana. Comunidades que comungam de referenciais axiológicos diferentes, de valores

138 WELSCH, 1998, p. 25.

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90

culturais próprios, e que possuem um discurso jurídico específico a ser aplicado ao caso

concreto com a pretensão de ser a resposta definitiva, a ultima ratio do processo de decisão.

Como lidar então com esta pretensão de cada uma das ordens jurídicas envolvidas

no Tribunal Constitucional para fornecerem a decisão de acordo com seus valores próprios,

tendentes a desconsiderar a racionalidade parcial do outro? Ora, se os magistrados de origem

indígena de um lado entenderem de uma forma, e os de origem estatal entenderem de outra,

não haverá decisão, pois haverá um empate. Engenhosamente o legislador constitucional ao

estabelecer a composição paritária do Tribunal impôs que em algum momento haverá de ter

um consenso.

Surge então o impasse: os magistrados poderão digladiar-se em plenário para

tentar convencer apenas um dos magistrados pertencentes ao primeiro grupo, que decida

favoravelmente às razões do segundo, o que não parece ser a postura ideal para a solução do

caso concreto, pois assim estar-se-ia diante de uma decisão simbólica que não é suficiente

para satisfação das expectativas envolvidas.

Se os magistrados agirem dessa forma contribuirão para o isolamento das ordens

jurídicas, aumentando as barreiras e o distanciamento entre elas. Os magistrados devem estar

conscientes de seu papel enquanto ensejadores do diálogo entre as diferentes comunidades. Se

adotarem posturas monistas e sectárias diante do conflito trazido para solução,

desconsiderando a racionalidade parcial da outra ordem jurídica envolvida, não serão capazes

de fornecer decisões satisfatórias para a pacificação social, estimulando que os indivíduos em

sua concepção individual de relacionamentos comportem-se no sentido de desconsiderar os

valores do outro. Criarão bloqueios desestruturantes e destrutivos na relação constitucional

entre as ordens jurídicas envolvidas.

Os magistrados têm de permitir que ocorram os entrelaçamentos de experiências

jurídicas. A relação entre eles deve ser horizontal para que construam conjuntamente a

decisão, a fim de que a decisão seja contemplativa da realidade das comunidades envolvidas,

fazendo com que os indivíduos se sintam sujeitos da autoridade do Tribunal Constitucional, e

não meros objetos. Os magistrados não podem acreditar que a racionalidade parcial do sub-

sistema jurídico a que pertencem seja suficiente para resolver integralmente o conflito. Devem

sempre buscar a ligação transversal com a racionalidade do outro para que aumentem a

capacidade dimensional de apreensão do conflito, e ao observarem o conflito de todos os

ângulos possíveis, sejam capazes de fornecer uma decisão mais contemplativa do problema,

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91

que satisfaça um maior número de expectativas sociais, diminuindo assim a dupla

contingência e a desconfiança recíproca existente entre as ordens jurídicas em relação139.

Essa busca horizontal pelos entrelaçamentos jurídicos com a racionalidade parcial

da outra ordem jurídica só pode dar-se pelo diálogo. Exatamente por isso que o método ideal

para o transconstitucionalismo que permite o aprendizado mútuo entre as ordens jurídicas

deve levar em conta uma pedagogia permeada pelo diálogo. A teoria da ação dialógica de

Paulo Freire140 é importante neste aspecto porque visa a fornecer técnicas que permitam o

aprendizado entre as ordens jurídicas, evitando que uma tente sobrepor seus conteúdos

assimetricamente à outra.

Paulo Freire denomina de “educação bancária” aquela em que o educador, ao

adotar uma posição hierarquicamente superior a do educando, desconsidera o saber que o

educando traz consigo, e transforma o ato de aprender em um mero depósito de informações,

conduzindo-os à memorização mecânica dos conteúdos narrados141. Nesse caso os educandos

são como recipientes dóceis a serem preenchidos pelo saber do educador. Destarte, esse não

pode ser o método do transconstitucionalismo entre ordens jurídicas. Aqui uma das

racionalidades parciais é desconsiderada por ser tida como inferior, cedendo lugar para que a

outra racionalidade parcial sobreponha-se. Não há, portanto o estabelecimento verdadeiro de

pontes de transição para a construção de uma decisão comum. O Tribunal Constitucional

boliviano não pode atuar desta maneira pois o pressuposto aqui é que uma das ordens

jurídicas envolvidas não seja capaz de fornecer uma resposta ao conflito, havendo imposição

de uma racionalidade parcial sobre a outra e não um entrelaçamento contínuo e duradouro

entre ordens jurídicas.

Xavier ALBÓ ressaltou bem esta questão ao abordar que:

“Cuando se empiezan a analizar en detalle todas estas prácticas tradicionales, constatamos que con frecuencia, si el derecho ordinário llega a las comunidades indígenas y campesinas originarias, no es para llenar un vacío jurídico. Demasiadas veces, su presencia complica más bien la situación previa. Las comunidades no están allí con su vaso vacío, esperando que jueces y abogados se lo llenen con algo nuevo y mejor, traído de afuera. El vaso ya lo tienen lleno con su propia historia y práctica. Lo más en que podemos pensar, unos y otros, es en enriquecer la bebida con algún nuevo ingrediente, que nos brinde um "cocktelito jurídico" bien pensado y dosificado, si vale la comparación142.”

139 NEVES, 2009, p.242. 140 FREIRE, 2008, p. 191. 141 FREIRE, 2008, p.66 e ss.: “Na visão bancária da educação, o saber é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão (...)”. 142 ALBÓ, 1998, p.18.

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92

O fundamental a ter em mente é que o aprendizado é recíproco, ou seja, ambas as

ordens jurídicas tem de estar dispostas a aprender com a outra. Uma racionalidade parcial tem

de estar disposta a ser, ao mesmo tempo, educadora e educanda no processo de aprendizado e

construção constitucional. Esta é concepção de “educação problematizadora”, formulada por

Paulo Freire, em que não existem pólos estáticos na relação de construção do conhecimento

que deve ser levada em conta no desenvolvimento do transconstitucionalismo: “Desta

maneira, o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em

diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos assim se tornam sujeitos

do processo em que crescem juntos e em que os “argumentos de autoridade” já não valem (...)

Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens

se educam em comunhão (...) mediatizados pelos objetos cognoscíveis143”.

Para utilizar uma paráfrase, poder-se-ia concluir então que no

transconstitucionalismo as ordens jurídicas não constitucionalizam outras ordens: não

impõem sua racionalidade parcial unilateralmente a uma outra maneira de enxergar o

fenômeno jurídico. Tampouco as ordens jurídicas são capazes de constitucionalizarem-se

sozinhas, pois não são auto-suficientes: As ordens jurídicas constitucionalizam-se em

comunhão, mediatizadas pelos conflitos que apreendem conjuntamente da complexidade

jurídica da sociedade.

A constitucionalização ganha uma dinâmica inerente que foge a uma concepção

estática do texto constitucional. Toda vez que é chamada a proferir uma decisão a um caso

concreto, a corte constitucional constrói um novo entendimento acerca da constitucionalidade

daquela matéria, entendimento este que é resultado de um método problematizador no qual os

magistrados expõem suas perspectivas e leituras do conflito, que por sua vez são limitadas

pela visão que cada um nutre do fenômeno jurídico. Estas visões são compartilhadas por meio

do diálogo em que se permite uma compreensão do fenômeno em diferentes níveis de

racionalidade. A decisão deve surgir da construção de pontes de transição entre essas

racionalidades, permitindo que as racionalidades transversais apreendam a complexidade do

problema holisticamente, ou seja, por meio da complementaridade entre a racionalidade

parcial individual a as racionalidades parciais dos outros. Nenhuma das formas de aplicação

do código diferença do sistema jurídico proposto pelos magistrados é tida como ponto de

partida ou razão de decidir. Pelo contrário, a razão de decidir é construída para o caso

concreto pela comunhão transconstitucional e pelo entrelaçamento entre as ordens jurídicas.

143 FREIRE, 2008, p. 79.

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93

Isso significa que a ordem jurídica Estatal por ter uma estrutura burocrática e

formalizada não pode crer que deve prescrever a maneira de solução de conflitos à ordem

jurídica indígena, desconsiderando a experiência consuetudinária desta na composição das

controvérsias que surgem no seio da comunidade. Tampouco a ordem jurídica indígena pode

fechar-se a priori para as eventuais influências da ordem jurídica estatal. Não existe uma

concepção de justiça ou de processo jurisdicional mais evoluída do que a outra. Existem

concepções diferentes acerca do fenômeno jurídico que advêm de um distinto referencial

axiológico, porém as duas ordens, em sua respectiva racionalidade parcial, operam igualmente

mediante a aplicação do código-diferença lícito/ilícito.

O Tribunal Constitucional Plurinacional, ao deparar-se com um conflito que

envolve as duas ordens jurídicas presentes no país, deve propor inicialmente um debate acerca

dos pressupostos objetivos e subjetivos do conflito. Quem são as partes envolvidas? Qual a

suposta violação ao texto constitucional? Qual a relevância e os efeitos e os impactos da

decisão a ser proferida? Do debate que se opera dialogicamente, surgirão os temas

fundamentais que permeiam o caso para cada um dos magistrados. Estes por sua vez revelam

na enunciação do que acreditam ser mais fundamental no caso concreto qual o limite de suas

perspectivas. Cada um dos magistrados enunciará um ponto de vista que corresponde a uma

visão impregnada pela racionalidade parcial própria de seu referencial axiológico. As

racionalidades parciais dos magistrados acerca do conflito constituem o universo temático144

em torno do qual se dará a construção conjunta da decisão.

Esse universo temático reflete para cada um dos magistrados um tema gerador.

Por exemplo, imagine que o conflito colocado diante dos magistrados seja para decidir acerca

da constitucionalidade ou não da aplicação da pena de morte por algumas comunidades

indígenas bolivianas nos casos de furto ou violação de objetos sagrados. O conflito é levado

para que o Tribunal Consitucional Plurinacional se manifeste.

Cada um dos magistrados durante o debate inicial enuncia sua perspectiva acerca

do caso concreto e de qual deve ser a decisão. Em meio ao debate percebe-se que o universo

temático corresponde a um impasse entre o direito à vida do indivíduo, e o direito da

comunidade indígena em tutelar o bem jurídico que acredita ser relevante. Valores

constitucionais são contrapostos.

144 FREIRE, 2008, p.101.

Page 94: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

94

Identificado o universo temático da controvérsia deve-se iniciar a conjugação das

ações cognoscentes de cada um dos magistrados em torno um dos temas geradores surgidos

anteriormente. Todos os magistrados devem buscar dialogar acerca da representação e da

significação do direito à vida e do direito de proteção aos objetos sagrados, de acordo com o

que esses valores representam para as respectivas racionalidades parciais envolvidas. Cada

um dos juízes deve buscar compreender o significado desses valores perante a racionalidade

parcial do outro, permitindo, ao mesmo tempo, que os outros percebam o significado que os

valores têm para consigo. Os valores consignados como temas geradores do diálogo nada

mais são do que codificações de um conteúdo valorativo importante para a sociedade de

maneira genérica. A tarefa dos magistrados é descodificar esse conteúdo valorativo abstrato

de acordo com uma perspectiva que revele a experiência acumulada de cada uma das ordens

jurídicas envolvidas em torno daquele valor. A descodificação se opera mediante o

desvelamento do tema gerador por cada racionalidade parcial.

Após os magistrados terem tomado conhecimento da significação destes valores

constitucionais para cada uma das ordens jurídicas envolvidas, devem voltar-se novamente

para o conflito, construindo conjuntamente uma decisão que vise a contemplar uma solução

complexamente adequada do caso. O que importa não é propriamente o conteúdo da decisão,

ou seja, se a pena de morte será considerada constitucional ou não, ou se a constitucionalidade

será reconhecida apenas em certos casos específicos, bem como se será plenamente aceita

como prática lícita no Estado boliviano.

O importante é que as ordens jurídicas envolvidas tiveram a oportunidade de

dialogar acerca do direito à vida e do direito das comunidades indígenas em proteger seus

elementos de cultura. Cada ordem jurídica pôde compartilhar da racionalidade parcial nutrida

pela outra, ampliando sua respectiva capacidade de apreensão da complexidade social. A

decisão, não importando qual seu conteúdo, não tomada unilateralmente de acordo com a

perspectiva limitada de apenas uma parcela da população, mas foi construída em comunhão.

Cada ordem jurídica foi sujeito do processo de decisão e não mero objeto a que se destinou a

imposição de um imperativo de dever-ser.

A decisão que se opera em observância ao transconstitucionalismo entre ordens

jurídicas é mais contemplativa da pluralidade de manifestações do fenômeno jurídico,

contribui de maneira mais eficiente para a estabilização de expectativas, pois os indivíduos

identificam-se com a autoridade que profere a decisão. As racionalidades parciais presentes

no sistema jurídico estão, em tese, representadas pelo tribunal constitucional plurinacional que

Page 95: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

95

ao construir uma razão de decidir compartilha da enorme complexidade existente no ambiente

social.

Isso torna o sistema jurídico mais capaz de diminuir a contingência e a tensão

causadas pelo conflito social. A sociedade boliviana tem a oportunidade de por meio do novo

Tribunal Constitucional construir dinâmica e democraticamente padrões de conduta pela

generalização congruente de expectativas em diálogo. A ponte de transição estabelecida na

corte constitucional pode significar não apenas a abertura cognitiva dos sub-sistemas jurídicos

existentes no país, como também uma abertura normativa. As ordens jurídicas conviventes

podem colocar reciprocamente à disposição seus atos de comunicação jurídicos próprios, bem

como os fundamentos de suas razões de decidir na aplicação do código binário lícito/ilícito,

dando a oportunidade para que a ordem jurídica observadora possa reprogramar-se na

aplicação de seus elementos com base na experiência vivida pela outra ordem jurídica.

Portanto, a utilização do método acima proposto permite uma melhor avaliação do

problema jurídico, uma vez que possui dois pontos extremamente positivos à construção do

Direito: em primeiro lugar, a decisão será mais legítima a toda a sociedade por ser fruto de um

diálogo entre representantes de ambas as ordens jurídicas; em segundo, a solução proposta

poderá ser mais interessante e melhor estruturada porque foi resultado (síntese) da construção

dialética entre teses provenientes de culturas distintas, as quais se propuseram a dialogar

mediante respeito mútuo.

Os magistrados devem ter em mente que atuar transconstitucionalmente no

estabelecimento da relação de aprendizado mútuo e construção conjunta de soluções exige

alguns pressupostos fundamentais. O diálogo constitucional entre as ordens jurídicas exige

dos magistrados que respeitem o saber do outro, ou seja, que respeitem a racionalidade parcial

e autonomia da ordem jurídica interlocutora. Isso exige uma postura radical e corajosa do

magistrado que assume os riscos de protagonizar o debate transcultural, em uma completa

aceitação do novo, do diferente, rejeitando qualquer forma de discriminação étnica que

implique polêmicas e sectarismos. Além disso, o magistrado tem de afirmar a identidade

cultural da ordem jurídica que representa ao mesmo tempo em que se permite envolver pela

experiência de vivenciar a alteridade.

Por fim, cumpre ressaltar que os magistrados devem inflar-se de uma boa dose de

“humildade jurídica”, conscientes de que sua racionalidade parcial é inacabada e insuficiente

para contemplar os anseios da complexidade social. O transconstitucionalismo exige essa

consciência do inacabamento e a permanente disponibilidade para o diálogo.

Page 96: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

96

CONCLUSÃO

Como ficou evidenciado ao longo do trabalho, há problemas jurídicos complexos

da sociedade pós-moderna para os quais a solução apresentada pela ordem jurídica estatal não

é suficiente para oferecer uma resposta contemplativa que estabilize as expectativas socais

envolvidas de maneira eficiente. As relações econômicas, culturais, pessoais e políticas

transcendem atualmente os limites do território do Estado nacional. Nesse contexto, surgem

ordens jurídicas com pretensão de tutelar e proteger as relações que o direito estritamente

vinculado ao Estado não é capaz de abarcar.

No caso específico do sistema jurídico de alguns países da América Latina, como

o da Bolívia, que foi utilizado como pano de fundo para a elaboração dos conceitos da

presente tese, houve o reconhecimento do surgimento de uma ordem jurídica especial,

correspondente ao direito praticado no seio de comunidades indígenas originárias campesinas.

O novo texto constitucional boliviano consagrou a existência do pluralismo jurídico no Estado

e forneceu instrumentos de controle e calibração para que possam operar conjuntamente as

duas ordens jurídicas (indígena e estatal) sob o mesmo aparato burocrático, cada uma

ostentando uma jurisdição própria. Cada uma das jurisdições aplica-se aos casos previstos no

texto constitucional, não havendo hierarquia entre elas, e ambas sujeitam-se a jurisdição do

Tribunal Constitucional Pluranacional, que é a instância máxima do Poder Judiciário no país e

a quem incumbe o julgamento dos eventuais conflitos entre a jurisdição indígena e a

jurisdição estatal.

À vista disso, cumpre ressaltar que o mero reconhecimento do pluralismo jurídico

pelo legislador constituinte, bem como a presença de estruturas e instrumentos constitucionais

para promover a interação entre as ordens jurídicas do Estado não são suficientes para que os

problemas jurídicos advindos da relação entre as comunidades indígenas e as comunidades

ordinárias sejam bem solucionados do ponto de vista da pacificação social e da decidibilidade

dos conflitos.

De nada adianta o reconhecimento da pluralidade de ordens jurídicas em um

mesmo Estado se ambas manifestarem uma postura intolerante com relação à racionalidade

parcial própria da outra. De nada serve o pluralismo jurídico como constatação de um duelo

de forças entre racionalidades parciais das comunidades nacionais, buscando

Page 97: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

97

autodeterminação mediante a pretensão de buscar sobrepor sua maneira particular de encarar

o fenômeno jurídico à outra.

A idéia de pluralismo jurídico subentende a existência de um conflito potencial no

sentido de auto-afirmação das comunidades por meio da identidade com a ordem jurídica

correspondente. Ao valorizarem as diferenças entre si como consignação dessa identidade

cultural, as ordens jurídicas apenas contribuem para um maior isolamento entre as

comunidades, gerando bloqueios destrutivos em uma relação que se opera assimetricamente.

É como se as comunidades fossem grupos isolados de cultura que não podem relacionar-se de

maneira horizontal sem que isso importe uma desvalorização da identidade da própria

comunidade. Todavia, este tipo de pensamento é falacioso, como restou comprovado ao longo

do trabalho.

Por esse motivo a noção de pluralismo jurídico deve ser superada para que surja

uma nova maneira de encarar a relação constitucional entre as ordens jurídicas de um mesmo

Estado. As ordens jurídicas referentes às diferentes comunidades nacionais não podem adotar

uma posição monista e sectária com relação aos problemas jurídicos comuns. Não podem

acreditar ser auto-suficientes para apresentar uma solução aos conflitos sociais, bem como não

podem pretender buscar figurar como ultima ratio na aplicação do código binário próprio do

sistema jurídico, sob pena de não oferecer uma resposta satisfatória ao problema do ambiente.

As ordens jurídicas devem reconhecer que possuem uma perspectiva limitada

acerca do conflito, que não permite enxergá-lo em todas as suas dimensões e efeitos. Faz-se

necessário que atuem em diálogo transconstitucional com a outra ordem jurídica,

entrelaçando-se, abrindo-se cognitiva e normativamente para observar maneira como a outra

ordem enxerga o mesmo conflito. Assim, as ordens jurídicas serão mais capazes de instaurar

uma relação duradoura, fundada no respeito mútuo, na valorização da alteridade e no

aprendizado recíproco proporcionado pela troca de experiências com o interlocutor. Suas

decisões já não serão reflexo de uma perspectiva limitada por uma única racionalidade

parcial, mas pela construção conjunta e transversal de razões de decidir oriundas do

aprendizado e da troca de experiências acumuladas em torno da solução de conflitos.

Amplia-se a probabilidade de que forneçam uma decisão mais consistente, mas

digna de estabilizar as expectativas sociais imersas na complexidade pós-moderna. Como

pondera Marcelo NEVES:

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“(...) em um mundo de problemas constitucionais comuns para uma pluralidade de ordens jurídicas, o método do transconstitucional parece mais adequado à passagem de uma simples situação de fragmentação desestruturada para uma diferenciação construtiva entre ordens jurídicas, no plano de suas respectivas autofundamentações (...).145

Este é o papel do diálogo transconstitucional entre ordens jurídicas: superar a

“fragmentação desestruturada”do pluralismo jurídico para promover o estabelecimento de

uma construção conjunta de soluções para problemas jurídicos comuns.

Na observação final de sua proposta do tranconstitucionalismo, com muita

felicidade Marcelo NEVES afirma que todo observador de um problema jurídico tem um limite

no “ponto cego”. Conclui então que a consagração do diálogo transconstitucional é o

reconhecimento pelo observador de que o “meu ponto cego o outro pode ver146”, ou seja, o

outro pode complementar construtivamente minha apreensão do objeto cognoscível a partir do

momento que coloca à minha disposição a maneira como enxerga o mesmo objeto. Da mesma

forma que eu poderei complementar a apreensão dele colocando dialogicamente à sua

disposição a minha perspectiva individual. Assim, ambos ampliamos as possibilidades de

intelecção dos estímulos do ambiente.

Esta passagem me fez recordar uma parábola, cuja autoria é por mim

desconhecida, mas que ouvi há muito tempo. Resumidamente, a parábola contava que certa

vez um príncipe indiano mandou chamar seis cegos de nascença que eram considerados

sábios na região, e, para testá-los em sua sabedoria, colocou diante deles um elefante. Em

seguida, conduzindo-os pela mão, até o elefante para que o apalpassem. Um apalpou a

barriga, outro a cauda, outro a orelha, outro a tromba, outro uma das pernas e outro a presa de

marfim. Quando todos os cegos tinham apalpado o paquiderme, o príncipe ordenou que cada

um explicasse aos outros o que era o elefante. O primeiro que apalpara a barriga afirmou com

convicção de que se tratava de um objeto de grandes dimensões, uma espécie de muro

maciço. O segundo que apalpou a cauda afirmou que o elefante era como uma corda, um cipó.

Já o terceiro discordando dos demais podia jurar que o elefante era similar a um abano. O

quarto inconformado com o que ouvia dos companheiros não hesitava em argumentar que o

elefante era uma mangueira, e assim sucessivamente os cegos foram descrevendo aquilo que

sua limitação de percepção permitiu.

145 NEVES, 2009, p. 246. 146 NEVES, 2009, p. 265.

Page 99: Wellington Barbosa Nogueira Júnior. Do Pluralismo jurídico ao diálogo transconstitucional

99

Os cegos se envolveram numa discussão sem fim, cada um querendo provar que

os outros estavam errados, e que o certo era o que ele dizia. Evidentemente cada um se

apoiava na sua própria experiência e não conseguia entender como os demais podiam afirmar

tais ponderações acerca do mesmo objeto. O príncipe deixou-os falar para ver se chegavam a

um acordo, mas quando percebeu que eram incapazes de aceitar que os outros podiam ter tido

outras experiências, ordenou que se calassem, concluindo que na verdade os cegos não eram

dotados de tanta sabedoria assim. "O elefante é tudo isso que vocês falaram.", explicou.

"Tudo isso que cada um de vocês percebeu é só uma parte do elefante. Não devem negar o

que os outros perceberam. Deveriam juntar as experiências de todos e tentar imaginar como a

parte que cada um apalpou se une com as outras para formar esse todo que é o elefante."

Na complexidade jurídica da pós modernidade há conflitos e problemas jurídicos

cujas dimensões são análogas às do elefante narrado acima. As ordens jurídicas em sua

limitação de perspectiva só podem apreender parte do problema. Por esse motivo de nada

adianta que ofereçam soluções parciais com base apenas em sua racionalidade limitada,

insistindo que apenas o seu ponto de vista é certo enquanto os demais estão errados, pois

atuarão como os cegos, que pretendiam fazer valer o seu entendimento como ultima ratio

sobre os demais, incorrendo em um erro fundamental como conseqüência de sua posição

sectária.

As ordens jurídicas devem humildemente conscientizar-se de sua incompletude e

passar a promover entrelaçamentos com as demais ordens para juntar experiências e, unindo

as demais leituras do problema coma sua própria seja capazes de identificar a real dimensão

do conflito que se apresenta para a tomada de decisão.

Destarte, conclui-se que o diálogo transconstitucional é a consagração da máxima

de que "Todo ponto de vista é a vista de um ponto147

" correspondendo ao métido mais

adequado para tratar da relação entre ordens jurídicas indígenas e ordens jurídicas estatais no

âmbito dos Estados da América Latina, permitindo o aprendizado mútuo entre as diferentes

comunidades e a aproximação transcultural entre elas.

147 “Ler significa reler e compreender, interpretar. Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam. Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é sua visão de mundo. Isso faz da leitura sempre uma releitura. A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para compreender, é essencial conhecer o lugar social de quem olha. Vale dizer: como alguém vive, com quem convive, que experiências tem, em que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e da morte e que esperanças o animam. Isso faz da compreensão sempre uma interpretação. Sendo assim, fica evidente que cada leitor é co-autor. Porque cada um lê e relê com os olhos que tem. Porque compreende e interpreta a partir do mundo que habita.”(BOFF, 1997, p.2).

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