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A PRODUÇÃO CAPITALISTA DO ESPAÇO URBANO NA PERIFERIA DO CAPITALISMO: FINANCEIRIZAÇÃO NO PROVIMENTO HABITACIONAL NO BRASIL – O CASO DA IZIDORA, BELO HORIZONTE – MINAS GERAIS
Resumo: O presente artigo apresenta uma análise do conflito fundiário da região Granja Werneck – Belo Horizonte, entre a ocupação realizada pela população de baixa renda e o empreendimento habitacional pelo Programa Minha Casa Minha Vida. A chave interpretativa para essa análise passa pelo entendimento da financeirização da produção do espaço como uma estratégia de acumulação do capital. O padrão do regime de acumulação periférico e dependente brasileiro passa por um processo de atualização até chegar ao momento contemporâneo que, sem eliminar as fases anteriores, se articula o crédito (capital portador de juros) e o capital fictício a partir do setor imobiliário e da construção civil, em particular com o Minha Casa Minha Vida assentado na inclusão de consumidores de média e baixa rendas nos circuitos financeiros de valorização do valor a partir do setor habitacional dominado pelas finanças como forma de manter os sempre crescentes circuitos de valorização do capital.Palavras-Chave: financerização; conflito sócio-político; ocupações; minha casa, minha vida
Abstract: This article presents an analysis of land conflict in the region Granja Werneck – Belo Horizonte between occupation held by low-income housing and the Minha Casa Minha Vida. The interpretative key to this analysis requires an understanding of financialization of production of space as a capital accumulation strategy. The standard of the Brazilian peripheral and dependent accumulation system goes through an upgrade process until reach the contemporary moment, without erasing the previous phases, articulates the credit and the fictitious capital from the real estate and construction, in particular with MCMV seated on the inclusion of average consumers and low income in the financial circuits value appreciation from the housing sector dominated by finance as a way to keep the ever-growing capital appreciation circuits.Key-words: financialization; sociopolitical conflict; occupation; minha casa, minha vida
Introdução
As condições de vida a que foram submetidos os trabalhadores urbanos brasileiros
apresentam muitas semelhanças com aquelas a que foi submetida a classe trabalhadora
europeia nos primórdios da revolução industrial. No entanto, ao contrário dos países
centrais, as cidades latino-americanas entraram na fase de cidades-mercadoria sem antes
incorporar as grandes massas trabalhadoras ao regime clássico do bem-estar social,
processo derivado da forma em que o Brasil, como um país dependente, se insere no
sistema mundial do capitalismo. Os países dependentes ocupam um papel muito bem
delimitado na atual organização do espaço mundial que a vincula com os processos
produtivos, desempenhando sua função na divisão internacional do trabalho.
Nesse contexto, é que se desenvolve a noção de superexploração da força de trabalho
como expediente de extração de mais-valor de maneira mais acentuada para garantir a
contínua transferência de valor para os capitais internacionais (MARINI, 2005). Esse
processo é muito bem representado no período entre 1970 e 1990 que configura o que
Chico de Oliveira (2006) chamou de ‘industrialização dos baixos salários’ – em que ocorria o
mecanismo da superexploração da força de trabalho que sustentou a industrialização neste
momento e, também, a urbanização – que Maricato (2003) chama, por analogia, de
‘urbanização dos baixos salários’. Isso implica em uma produção do espaço altamente
autoconstruída e, na maioria das vezes, precária o que implica, conforme argumento
desenvolvido por Oliveira (2006) em um rebaixamento do salário a médio e longo prazo e,
portanto, uma elevação da mais-valia relativa que serve para se voltar ao processo de
valorização dos valores nos países centrais a partir de vários canais de transferência de
riqueza.
Todavia o desenvolvimento do capital começa a apontar recentemente novos mecanismos
de sua reprodução ampliada. A relação com a industrialização passa a ser estabelecida em
novas bases, o que Harvey (2009) chamou de regime de acumulação flexível. Essa
mudança não indica uma substituição da centralidade da produção industrial, mas aponta os
novos mecanismos pelo qual ela passa a operar. Talvez a principal característica tenha sido
aquela apontada por Marx (1984) no livro III d’O Capital sobre a forma do capital portador de
juros e do capital fictício. Esses dois elementos passam a organizar a produção a partir da
financeirização da produção e, em especial, da produção do espaço.
Essa perspectiva indica a hipótese de Lefebvre (1981) para a sobrevivência do capitalismo,
que se dá, principalmente, por duas vias: 1) reproduzir as relações sociais capitalistas e; 2)
produzir o espaço. Neste sentido, a classe dominante tem especial empenho em controlar a
forma em que ocorre a produção do espaço na sociedade para que faça incidir sobre o
restante da sociedade seus interesses de classe. Esta relação entre capitalismo e produção
do espaço, simbiôntica, revela o exercício de uma hegemonia de classe sendo exercida e
instrumentalizada através da produção do espaço. Neste processo, a metrópole se destaca,
nas últimas décadas, como a forma preferencial para que essa dominação ocorra.
Com isso, o espaço passou a integrar, cada vez mais intimamente, os circuitos de
valorização do capital. Seja pela mercantilização da terra, pelo seu parcelamento
(loteamento ou verticalização) ou, até mesmo, pela sua inclusão na circulação do capital
financeiro (BOTELHO, 2005). Esta situação pode ser percebida quando observamos as
grandes metrópoles do mundo contemporâneo. Espaços contraditórios e conflitantes são
resultantes da produção capitalista do espaço que tem como fim primeiro a manutenção
deste modo de produção.
Compreender o urbano contemporâneo, portanto, só é possível se alocarmos sua produção
na base do processo capitalista. Isso significa pensar as intrínsecas relações existentes
entre a acumulação de capital e a urbanização. Este argumento é muito bem explorado, em
diversas oportunidades, pelo geógrafo David Harvey (2008; 2011; 2012). Segundo o autor,
os capitalistas encontraram na produção do ambiente construído a excelente oportunidade
para absorver capital sobreacumulado (que, se não investido, é destruído) de outros setores
e outras escalas. Dessa forma é que podemos entender o gigantesco crescimento nos
ritmos de urbanização, assentados, é claro, na exploração e expropriação das classes
trabalhadoras.
É, portanto, nesses termos que o presente artigo pretende apontar as ligações entre
financeirização e a produção do espaço urbano no Brasil a partir da análise de um exemplo
representativo em Belo Horizonte, MG: o caso do maior conflito fundiário brasileiro da região
da Granja Werneck e Isidoro, em que as ocupações da Izidora se instalaram. Nesses
termos, objetivamos discutir como os novos regimes de acumulação e produção do espaço
se entrelaçam na lógica contemporânea de reprodução ampliada do capital. Partindo do
projeto urbanístico de habitação social pelo programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) em
Belo Horizonte, no momento em que ocorre, no local destinado – a Granja Werneck, um
conflito sócio-político junto com uma ocupação urbana. Para tanto a análise é efetuada a
partir de informações publicada nos contratos e pelo tribunal de contas, sendo cotejados
com notícias veiculadas sobre o tema.
Figura 01- Mapa de localização da região do Isidoro em Belo Horizonte, MG (Fonte: autos do processo 36798/2013/001/2013)
O artigo está estruturado da seguinte forma: primeiramente abordamos uma discussão
conceitual sobe os desdobramentos dos processos da inserção do capital financeiro na
produção do espaço, em seguida uma breve contextualização do conflito existente entre
empreendimento imobiliário e as ocupações no local. Dando continuidade, apresentamos,
em linhas gerais a lógica do programa Minha Casa, Minha Vida para poder aprofundar em
uma análise mais detalhada do empreendimento em questão. Por fim, segue-se as
considerações finais deste estudo.
A financeirização da produção do espaço
O final do século XX e o início do século XXI inauguram uma nova dinâmica na forma da
produção do espaço baseado na rede transnacional de fluxo de capital altamente voláteis
(SOJA, 2008). A dinâmica do capital portador de juros passa a ser o principal orientador da
produção em termos gerais. Uma profunda transformação contemporânea marcada pela
expansão da financeirização à vários aspectos da vida. Nas palavras de Chesnais (2005, p.
35), “O mundo contemporâneo apresenta uma configuração especifica do capitalismo, na
qual o capital portador de juros está localizado no centro das relações econômicas e
sociais”. Esse processo representa, sobretudo o momento em que o capital fictício passa a
comandar as forças produtivas reais. O tempo e a forma do capital portador de juros passam
a se impor sobre os demais e servem como nova medida. De um lado, o tempo se projeta
para a frente, com os juros comandando, de forma ditatorial, a expectativa de lucros futuros
e as decisões do presente (PAULANI, 2009).
Como aponta Soja (2008) um dos principais setores do capital que passam a ter destacada
importância no processo de acumulação é o FIRE (finance, insurance, real estate –
finanças, seguros e mercado imobiliário), o que reforçar o papel do capital portador de juros
como fundamental para o atual regime de acumulação. Vale destacar, como faz Paulani
(2009), que o capital financeiro é o “capital de comércio de dinheiro”.
Na discussão sobre crédito e capital fictício, Marx (1984, p.303) observa que, a esse
comércio de dinheiro, para além da execução dos movimentos puramente técnicos que o
dinheiro realiza no processo de circulação, liga-se também um dos aspectos do sistema de
crédito, qual seja, “[...] a administração do capital portador de juros ou do capital monetário,
como função particular dos comerciantes de dinheiro. [...] [Os banqueiros] tornam-se os
administradores gerais do capital monetário”. O outro aspecto do sistema de crédito antes
tratado por Marx (1984) refere-se ao crédito que os capitalistas se concedem entre si, em
determinada cadeia produtiva, e cujos papéis constituem a base do dinheiro de crédito.
Sobre isso, ele explica:
Emprestar e tomar emprestado, em vez de vender e comprar, é aqui a
diferença que decorre da natureza específica da mercadoria capital. Do
mesmo modo que o que se paga aqui é juro, em vez de preço da
mercadoria. Se se quiser chamar o juro de preço do capital monetário, então
essa é uma forma de expressão totalmente irracional de preço,
completamente em contradição com o conceito do preço a mercadoria. O
preço se reduz aqui a sua forma puramente abstrata e sem conteúdo, ou
seja, ele é determinada soma de dinheiro paga por qualquer coisa que, de
uma maneira ou de outra, figura como valor de uso; enquanto, segundo seu
conceito, o preço é igual ao valor expresso em dinheiro desse valor de uso.
(MARX, 1984, p. 265-266).
Essa lógica representada pela financerização chega, finalmente chega a produção do
espaço. Para potencializar os ritmos de acumulação os capitais que investem diretamente
na produção do ambiente construído, ao se entrelaçarem com os capitais financeiros,
passam a receber um fluxo de capital mais intenso permitindo uma gestão da riqueza que
garante mais lucros devido aos grandes volumes de investimentos, mas altamente
especulativa e predatória.
Ao discutir sobre a produção do ambiente construído como forma de absorver capital
sobreacumulado Harvey (2012) esclarece que essa lógica requer, para sua realização
efetiva, a organização de um sistema de crédito sofisticado que permite transferir esses
capitais excedente de outros setores e escalas para o financiamento da produção do
ambiente construído sob a forma de ativos. Assim, para que ocorra esse processo, é
necessário que os ‘imovéis’ se tornem ‘movéis’. A saída é a transformação em ativos
imobiliários que garante a circulação via título de propriedade. Como afirma Rolnik (2015,
p.14), “a propriedade imobiliária em geral e a habitação em particular configuram uma das
mais novas e poderosas fronteiras da expansão do capital financeiro”. Processo esse que
implica em uma série de impactos sob a forma de organização das cidades cada vez mais
segregadas, a despossessão massiva de áreas da cidade para integrar esse circuito, a
criação de milhares de pobres urbanos “sem lugar” e em novos processos de subjetivação
estruturados pela lógica do endividamento.
A função desse processo de financeirização é, como aponta Sanfelici (2013), uma forma de
criação de liquidez. Ao tornar o ambiente construído urbano um ativo financeiro líquido, se
cria a condição fundamental para abrir novas fronteiras de investimento para o capital-
dinheiro centralizado pelos grandes fundos de aplicação e gestores de ativos. Assim, a ação
dos empreendedores imobiliários e empreiteiras vem, a cada dia mais, se tornando mais
complexa e atrelada ao sistema financeiro de crédito, o que implica na lógica de produção
do espaço atrelada a interesses de capitais externos à cidades, que cobram os rendimentos
e a liquidez necessária para realizar-se. Por isso faz sentido em considerar que o poder de
grandes investidores, fundos de investimentos, bancos e outros agentes financeiros é que
estão por trás da produção do espaço urbano contemporâneo, já que despejam montantes
exorbitantes de capital para financiar a expansão do setor e, claro, receber os juros dos
ganhos derivados dessa produção. Muitas vezes, vale destacar, essa conexão de
ramificações extrapolam as fronteiras dos países e estão ligadas ao fluxo volátil do capital
internacional, o que indica com clareza as consequências da tendência à financeirização da
economia política da produção do espaço, seja do Cazaquistão, Chile, Estados Unidos,
Espanha ou Camboja (ROLNIK, 2015).
Esse processo tem importantes implicações. Como afirma Marx (1984, p.293), essa
expressão da forma mais exteriorizada [äuberlichste] e fetichista [fetischartigste] do capital
assume a forma “D – D’, dinheiro que gera mais dinheiro, valor que se valoriza a si mesmo,
sem o processo que medeia os dois extremos”, talvez uma forma mais avançada da
reprodução do capital, mas que, ainda possui uma interpretação voltada para o
entendimento da produção do espaço muito incipiente.
O conflito sócio-político envolvendo o projeto Granja Werneck do Minha Casa Minha Vida
O conflito sócio-político do projeto do MCMV da Granja Werneck, em Belo Horizonte, Minas
Gerais trata-se, na verdade, de um conflito fundiário posto entre famílias de baixa renda e
sem-teto que ocuparam três grandes áreas dentro da região da Isidoro, instalando três
novos assentamentos urbanos, chamados pelos movimentos sociais de ocupações urbanas
(as ocupações urbanas Rosa Leão, Esperança e Vitória) e os poderes constituídos da
cidade (Prefeitura de Belo Horizonte, capitais imobiliários e etc.) que almejam a realização
de sua reintegração de posse para a realização do empreendimento do programa Minha
Casa Minha Vida e o processo de consolidação da área colocado por via do planejamento
urbano formal do município, expresso pela Operação Urbana posta pela lei 10.705 de 2014.
De forma rápida, a região da Isidoro é considerada a última grande região desocupada da
cidade de Belo Horizonte (CHEREM, 2010). Está localizada na porção norte do município de
Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, em sua fronteira com a cidade de Santa Luzia. Com
o desenvolvimento da capital do Estado durante o séc. XX permaneceu completamente
ociosa, apenas com inexpressivas atividades rurais, ora figurando como importante ativo
ambiental da cidade, ora como almejada zona de expansão do mercado imobiliário.
Contudo, na porção oeste, depois de 2013, explodiram as três ocupações urbanas citadas –
Rosa Leão, Esperança e Vitória - iniciando um processo inédito de ocupação dos terrenos
do Isidoro pela população de baixa-renda com o intuito de garantir o direito à moradia e um
lugar concreto para habitar à cidade, para sujeitos despossuídos, isto é, trabalhadores
(BIZZOTTO, 2015). É difícil separar o surgimento das ocupações do processo político
vivenciado em todo o pais em junho de 2013 que ficou conhecido como as Jornadas de
Junho. Milhares de pessoas foram as ruas do país em protestos de escala nunca vista
antes, mas cujos os propósitos e pautas não puderam ser capturados por um único discurso
homegeinizante. Inicialmente o fogo mobilizador foi a repressão policial aos protestos do
aumento da passagem do transporte público em SP, mas as jornadas reuniram um espectro
ideológico muito amplo, abarcando muitas outras pautas e reinvindicações. Autores
apontam que sua origem latente é a permanente crise das cidades que afeta diretamente a
vida de um país cada vez mais urbano (MARICATO, 2013).
Fato é que, de forma concomitante, enquanto às passeatas das Jornadas de Junho
ocorriam no centro da cidade, milhares de pessoas na periferia de Belo Horizonte iniciaram
essas três ocupações do Isidoro e outras de menor envergadura espalhadas pela região
metropolitana de Belo Horizonte. Posteriormente essas ocupações de terras ociosos pela
população de baixa renda, sem-teto e em busca de seu direito à moradia receberam o apoio
de diferentes atores sociopolíticos de Belo Horizonte, com movimentos sociais, instituições
estatais como o ministério público e defensoria pública e núcleos de pesquisa e extensão
das universidades.
Com esse aporte técnico, político e social as ocupações foram adquirindo visibilidade
pública e se consolidando, frustrando o planejamento formal do estado que previa para a
grande gleba ociosa do Isidoro um processo planejado de ocupação e perpetrados por
outros sujeitos sociais, basicamente, os agentes do mercado imobiliário, empresas,
construtoras, incorporadoras e os bancos, articulados pelo Estado.
O primeiro instrumento de planejamento urbano recente para a região do Isidoro foi a lei Nº
8137 do ano 2000 que estabelecia uma área de diretrizes especiais para a grande gleba em
função de seu caráter ambiental preservado, garantindo formas restritivas de uso e
ocupação do solo. Contudo, com a mudança dos ventos do mercado imobiliário e sua
pressão sobre o poder público, o zoneamento e suas características de uso e apropriação
mudaram, para adensamento prioritário para população de renda média e alta, mantendo
alguns padrões de sustentabilidade. E em 2014 a lei nº 10.705 estabelece que a operação
urbana caso seja realizada para os fins de produção de habitação de interesse social não
deveria pressupor contrapartidas públicas por parte do empreendedor privado, por se tratar
da habitação social uma contrapartida em si (INDISCIPLINAR, 2015).
É nesse momento que a Direcional Engenharia S.A transforma os objetivos do
licenciamento já iniciados nas estruturas municipais de autorização para um parcelamento
do solo que contemple a produção habitacional nos formatos do programa Minha Casa
Minha Vida. E para a matricula da propriedade da Granja Werneck S.A., dentro da região do
Isidoro, desenvolve o empreendimento abaixo descrito, com 8.897 apartamentos voltados
para os beneficiários compreendidos dentro da faixa 1 do programa federal (0 a 1600 reais
de renda familiar), para os quais o subsidio do estado é integral.
Assim o conflito fundiário da região do Isidoro adquire esses contornos sócio-políticos: por
um lado ocupações de família de sem-teto, majoritariamente de baixa renda, organizados e
em articulação com outros atores sócio-políticos da cidade (movimentos sociais e agentes
da universidade) defendendo a permanência e consolidação das três ocupações, com base
no discurso da atribuição de função social aos imóveis até então ociosos e pela defesa do
direito fundamental à moradia, contra as violações que uma ação de reintegração sem
alternativa representaria (BIZZOTO, 2015).
E por outro um empreendimento planejado pela Direcional Engenharia S.A, em parceria com
a administração política de Belo Horizonte, através do programa federal Minha Casa Minha
Vida, envolvendo também a proprietária da área, outra empresa de capital aberto, a Granja
Werneck S.A., em busca de uma ocupação formal da área, pelo mercado imobiliário e pelos
projetos organizados pelo Estado, garantindo a reprodução ampliado do capital e lucros
extraordinários, mas articulando o discurso da necessidade de garantia de um direito, o da
moradia e de combate a um grave problema social, o altíssimo déficit habitacional da
cidade.
O conflito se delineou publicamente desta forma deste 2014, à medida que as ocupações de
terras se desenvolviam e suas primeiras estruturas iam sendo autoproduzidas por seus
moradores - vias internas, parcelamento do solo, barracos de lona, casas de alvenaria e etc.
Ao longo dos dois últimos anos, se perfez um longa trajetória político institucional de
tratamento e mediação deste conflito, envolvendo tentativas de reintegração de posse pelas
forças de segurança pública, um percurso jurídico envolvendo um número relevante de
decisões judiciais em diferentes instancias, pros e contra a desocupação da área e outra
número significativo de atos e manifestações políticas por parte dos movimentos sociais
(BIZZOTO, 2015) .
Figura 02: Mapa com as ocupações urbanas e o empreendimento MCMV (Fonte: Indisciplinar, 2015)
Aqui, na verdade, fica posta a necessidade de se discutir outro aspecto deste conflito, sua
relação com a necessidade de remuneração do capital financeiro internacional, na medida
em que os grandes agentes da produção habitacional e imobiliária no país ingressaram no
circuito financeiro, apoiados no crescimento fomentado nos últimos governos e sustentados
pelo programa Minha Casa Minha Vida.
É necessário desvelar essa engrenagem de articulação entre produção sócioespacial do
tecido urbano e o mercado financeiro e o formato sócioespacial que por este é produzido, a
partir deste caso concreto, o megaempreendimento habitacional Granja Werneck, do
programa Minha Casa Minha Vida, na região do Isidoro em Belo Horizonte. Antes, contudo,
passemos por uma rápida revisão do que a bibliografia especializada sobre a política pública
federal Minha Casa Minha já observa sobre o tema.
A lógica do Programa Minha Casa Minha Vida.
Nesse sentido que se torna necessário compreender a verdadeira lógica de produção do
programa nacional Minha Casa Minha Vida e quais interesses ele serve na órbita dos atores
político e econômicos que disputam o processo sócioespacial de produção das cidades na
periferia do capitalismo. Para além da ideologia confessada e autoproclamada pelos atores
sociais no processo produção de uma política pública, é preciso desvelar sua produção para
além de sua realidade aparente, procurando apresentar os fatores sociais, políticos e
econômicos estruturais que as produzem e condicionam, assim como os interesses dos
agentes involucrados em sua produção.
O PMCMV nasce em 2009, um ano depois de instaurada a crise econômica mundial nos
Estados Unidos que afetou o mundo todo1. Com raiz no sistema de subprime – créditos de
alto risco originados por adquirentes sem comprovação de renda, a crise atingiu o mercado
financeiro nos EUA e em todo o mundo, derrubando mercados e economias nacionais
inteiras (CARDOSO; ARAGÃO, 2011).
Antes de atingir o Brasil, o Governo Federal articula um conjunto de medidas contra a crise
e entre elas o programa de habitação. Dois grandes objetivos são anunciados
categoricamente como forma estancar a crise e combater a desigualdade social brasileira:
superar o passivo habitacional do país, histórico e de grande escala e induzir crescimento
econômico.
Destaca-se por um lado essa faceta fordista desta medida anticíclica, procura-se induzir o
crescimento econômico a partir do aumento da produtividade, mas com distribuição de
renda, ao fomentar um dos setores econômicos que mais emprega mão de obra no país, o
da construção civil e ao garantir o direito - o direito à habitação - àqueles que não o
possuem.
Nota-se que confluência entre políticas desenvolvimentistas e habitacionais não é novidade
no país. Morado Nascimento e Braga (2009) argumentam que o encontro da agenda
desenvolvimentista e habitacional se deu no período Vargas (1930-45), passando pelo
período do pós-guerra, durante toda ascensão e queda do BNH (1975 – 1988) e agora
também no MCMV.
O programa Minha Casa Minha Vida, lançado em 2009, seis anos depois, até o ano de
2015, pode ser considerado bem-sucedido, se compreendido em seus próprios parâmetros.
Investiu ao longo desde 6 anos mais de R$ 270 bilhões de reais* e entregou (ou está em
vias de entregar) cerca de 2,8 milhões de unidades em todo o país e se não resolveu, ao
menos tardou, as consequências mais graves da crise econômica no país.
É, de longe, o maior investimento em termos financeiros da história do Estado brasileiro em
uma política habitacional. E quiçá uma das maiorias da América latina. Contudo, como
vários autores já apresentaram, se está muito longe de superar o problema habitacional no
país, se entendido de uma perspectiva mais ampla do que a do reduzido ponto de vista que
poderíamos chamar de estatístico-economicista e se o criticamos a partir das noções mais
ampla do direito à moradia e à cidade.
Várias contradições, disparidades e desigualdades são apontadas em seu desenvolvimento
e aplicação, sobretudo o que toca ao tipo, forma e padrão de habitação e espaço urbano 1 Por questões objetivas, não se realiza neste artigo uma profunda genealogia do ideário representado pelo Programa Minha Casa, Minha Vida. Para mais, verificar Rolnik (2015).
que produz no tecido das metrópoles periféricas brasileiras e que abrigam as camadas
populares brasileiras, beneficiárias do programa. Já em 2011, três após seu lançamento e
diante de seus primeiros resultados práticos, Cardoso e Aragão (2011) apontavam “o
programa Minha Casa Minha Vida têm reforçado a lógica de segregação sócioespacial das
cidades brasileiras e, por conseguinte, o lugar subalterno do trabalhador”.
Em que em pese sua lógica desenvolvimentista e, nesse sentido, fordista, de promover
aumento da produtividade, com crescimento econômico e distribuição relativa de riqueza, o
que se argumenta é que a finalidade último do programa é de garantir condições para a
efetivação do projeto de integração do circuito econômico de produção do mercado
imobiliário no país com o mercado financeiro internacional, favorecendo os projetos de
acumulação dos grandes grupos econômicos do setor a partir da vinculação da produção do
espaço com sua financeirização. Como argumenta Rolnik (2015, p.29), o MCMV representa
“[...] não apenas uma nova política habitacional, mas um complexo urbanístico, imobiliário e
financeiro com impactos profundos no redesenho das cidades e na vida dos cidadãos”.
O cerne deste argumento encontra-se no entendimento posto por diversos atores que
compreendem que o período conhecido como anos do Governo Lula (2002 – 2010), isto é,
os setes anos anteriores ao lançamento do programa, foi caracterizado pela criação das
condições institucionais, econômicas, políticas e jurídicas necessárias para o aquecimento e
alavancagem do mercado imobiliário nacional que, por sua vez, proporcionou a abertura de
capitais na bolsa de valores internacional por parte dos maiores grupos de construtoras e
incorporados do ramo. Fazendo com que, não à toa, em 2009, o Programa Minha Casa
Minha Vida viesse ao resgate e auxilio desses grandes grupos econômicos recém
ingressados no mercado de ações, evitando sua bancarrota, face a crise econômica mundial
um ano antes.
De forma rápida, os primeiros anos do primeiro mandato do Governo Lula em âmbito federal
são caracterizados pela manutenção da política econômica anterior, isto é, do Fernando
Henrique Cardoso. Atingidas as estabilidades econômicas e políticas, uma mudança de
rumo da política econômica é realizada, diminuindo paulatinamente a taxa de juros e
instituindo uma perspectiva mais bem desenvolvimentista com a retomada da intervenção
estatal no campo do desenvolvimento urbano (CARDOSO; ARAGÃO, 2011).
É o momento de ampla disponibilização de crédito, para o consumo e produção, retomada
do protagonismo dos bancos públicos no financiamento e fomento ao crescimento
econômico do país, com o favorecimento de um superávit primário, com o aumento das
exportações de comodities, entre outros fatores (CARDOSO; ARAGÃO, 2011).
O importante aqui é o que toca ao mercado imobiliário. No tocante ao ambiente regulatório,
Royer (2009) destaca a lei 10.931 de agosto de 2004, que dispõe do patrimônio de afetação
de incorporações imobiliárias. Em síntese, a lei permitiu maior segurança financeira ao não
permitir o efeito pedala ou bicicleta, quando dividas ou recursos de um empreendimento são
transferidos a outro de mesmo grupo. Cardoso e Aragão (2011) acrescentam as
desonerações, como por exemplo, a “ MP do Bem” (Medida Provisória 252 de 2004) que
realiza diversas desonerações que beneficiam sobremaneira o setor imobiliário; e a isenção
do Imposto de Renda quando da venda de bens imobiliários e o emprego de seus recursos
em outra nova compra.
Os mesmos autores destacam também as grandes mudanças ocorridas nos quadros de
financiamento do país com as modificações normativas do SBPE – sistema brasileiro de
poupança e empréstimo – que permitiu um aumento significativo da disponibilidade de
crédito e do número de unidades financiadas; e no gerenciamento do fundo FGTS que
passou a abranger de forma onerosa ou não o financiamento para as camadas populares –
0 a 10 salários mínimos. Ademais da pressão sobre os bancos privados para que
mantivessem suas cartas de crédito para o financiamento da produção e consumo
imobiliários em patamares favoráveis (CARDOSO; ARAGÃO, 2011).
Todas estas medidas competiram para o boom imobiliário da segunda metade da década de
2000, durante o primeiro governo lula. O resultado desta expansão vertiginosa do mercado
imobiliário, a partir do ingresso da demanda reprimida de décadas e condicionados por
todos os fatores institucionais, políticos, jurídicos e econômicos acima elencados não foi
outra se não a expansão e concentração de capital no setor.
Concentração de capitais que se realizou em dois sentidos fundamentais: as grandes
empresas do ramo cresceram em tamanho e abrangência, tanto do ponto de vista
geográfico, expandindo suas atividades para todo o país, quanto do ponto de vista dos
ramos de atuação. Uma grande concentração de capital foi verificada, com uma mudança
do quadro de atuação dos capitais, não se resumindo mais a uma atuação em
empreendimentos isolados, mas aglutinando todas as etapas do processo produtivo
imobiliário: a incorporação, produção, comercialização e até mesmo o financiamento
(ROYER, 2009).
Essa nova dinâmica visa auferir ganhos extraordinários concentrando todos os lucros do
processo produtivo imobiliário em uma só corporação que passa a controlar e aglutinar
todos os atores e agentes do processo: proprietários fundiários, agentes financiadores,
empresas de planejamento com seus arquitetos e projetistas, orçamentistas e construtores,
advogados, de vendas com seus publicitários, contadores e corretores (SHIMBO 2010).
Foram todas essas condições de alavancagem do mercado imobiliário no país que
proporcionaram uma concentração de capitais que é a base que garantiu a substancia
financeira para a abertura de capitais destas empresas na Bolsa de Valores. Se até 2004
somente 4 empresas do ramo imobiliários haviam aberto seu capital, depois desta data até
2010, foram mais 28 empresas (CARDOSO; ARAGÃO, 2011).
Todas elas, ou a grande maioria, ingressou no segmento novo mercado da Bolsa de Valores
de São Paulo (Bovespa), disponibilizando seus ativos para todo o mercado mundial de
ações. O objetivo era adquirir uma fonte de recursos ainda inédito, potencializando ainda
mais a concentração de capital no processo produtivo do mercado imobiliário e expandindo
geograficamente as empresas e corporações. Com a venda das ações, as empresas
passaram a lastrear seus papéis em duas fontes fundamentais: com a formação dos
chamados banco de terras e na promessa de produção e comercialização de
empreendimentos futuros.
Os bancos de terras foram peças fundamentais dessa engrenagem da financeirização da
produção imobiliária. Com eles as corporações lograram dar confiabilidade e garantia de
retorno de seus papeis uma vez que superavam o problema da escassez de terras
adequadas nos centros urbanos, garantindo a realização de seus empreendimentos e, caso
estes falhassem, as valorizações do preço da terra lhe garantiam o retorno.
A combinação de regulamentação e incentivo estatal, com incremento de capitais
internacionais, promoveu a maior incremento ao mercado imobiliários e habitacional da
história recente do país, expandindo e concentrando as corporações nacionais do setor.
É nesse sentido que se afirma que o programa Minha Casa Minha Vida é produto dessa
conjuntura política e econômica particular de fusão do mercado imobiliário nacional, com a o
mercado financeiro internacional. Mas bem, nasce em função da necessidade de resgate,
salvaguarda e sustentabilidades financeiras desta ponte e integração realizadas neste
período e conjuntura particulares que, doutro modo, provocaria a falência inelutável das
maiores empresas brasileiras do ramo.
O Empreendimento da Granja Werneck e o conflito urbano
O empreendimento denominado Granja Werneck do programa Minha Casa Minha Vida do
Governo Federal em parceria com o município de Belo Horizonte é um dos maiores
empreendimentos registrados até o momento e cuja análise corrobora para exemplificar a
articulação entre a integração da produção imobiliária e o mercado financeiro internacional,
iniciados na última década e sustentados pelo programa Minha Casa Minha Vida.
Essa tese é vislumbrada se temos em conta a escala do empreendimento que, como dito
acima, é praticamente inédita para o país e excepcional para a cidade de Belo Horizonte.
Sobretudo se levamos em consideração a história da escala e dos arranjos institucionais e
sociopolíticos que produziram as políticas habitacionais anteriores para a capital do estado.
Nem um empreendimento da política municipal de Belo Horizonte construída desde o início
da década de 90, momento de municipalização da produção pública habitacional, havia
passado do número de mais de algumas centenas de unidades habitacionais para o mesmo
empreendimento. É preciso relembrar que Belo Horizonte sempre foi uma das capitais
referência em termos de política habitacional para todo o país.
E mesmo durante o programa Minha Casa Minha Vida que, como dito anteriormente,
sustenta essa lógica de finaceirização e produção em larga escala, essa dimensão havia
sido viabilizada em Belo Horizonte. O número máximo que se chegou foi a 1.470 unidades
do empreendimento Jardim Vitória II (construído também pela Direcional Engenharia S.A.
em bairro de mesmo nome, na extrema região leste da cidade) que, por sinal, foi o primeiro
empreendimento entregue para as famílias da faixa 1 de renda familiar, somente em 2013,
desde de 2009, ano de lançamento do programa2.
Pode-se afirmar que esta é uma tendência esboçada neste arranjo criado pela política
nacional, que privilegia esses grandes atores do mercado imobiliário nacional, articulados
com o mercado financeiro e que encontram terreno fértil para atuação em municípios
coordenados por projetos locais claramente neoliberais, como o de Belo Horizonte,
governado pelo seu reconhecido prefeito-empresário, Márcio Lacerda do PSB3.
Inclusive, esta parece ter se tornado a tendência da política urbana e habitacional no âmbito
de Belo Horizonte, se temos em tela que, a partir de 2013, após amplo debate público
proporcionado entorno do tema da moradia popular na capital, logo após as jornadas de
junho, a prefeitura anuncia o Plano BH MORAR, formulado desde os gabinetes de seus
planejadores, sem a participação social que, além de apresentar publicamente o
empreendimento discutido neste artigo, apresentava outro com configurações muito
semelhantes: em grande escala, com o protagonismo de atores do mercado imobiliário
nacional, vinculados ao mercado financeiro e através de lei específica de operação urbana e
2 Informações contidas no site da Urbel sobre os números da produção municipal de Belo Horizonte para as faixas 1 e 2 do programa federal: http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade-do?evento-portlet&pIdPlc=ecpTaxonomiaMenuPortal&app=urbel&tax=40596&lang=pt_BR&pg=5580&taxp=0&
3 Entre centenas de medidas impopulares e de caráter privatizante da gestão de Márcio Lacerda, pode-se citar: a operação urbana denominada Nova BH, a concessão de parceria público privadas nos serviços urbanos municipais básicos como a educação, saúde e coleta de resíduos, a criação da empresa PBH Ativos S. A. que cria debêntures.
etc. Trata-se do projeto de empreendimento e operação urbana Capitão Eduardo, com 5 mil
unidades habitacionais para a faixa de renda 1 (0 a 1600 reais), elaborado para ser
executado pela Emmcamp, umas das 10 construtoras que mais constroem unidades pelo
programa federal e com o capital aberto na bolsa de valores. Empreendimento elaborado
ainda em parceria com a Prefeitura de Belo Horizonte, com terreno público municipal doado
para o fundo FAR em chamada pública realizada pela Caixa Econômica Federal conforme
procedimento previsto pelo programa federal e cujos parâmetros urbanísticos de uso e
ocupação do solo foram também delineados através de lei municipal específica, em outra
operação urbana, a do Capitão Eduardo (lei Nº 10.705 de 2014).
Diante dos números do empreendimento que pode se perceber que se trata mais
claramente de uma configuração particular de acumulação de riquezas através da produção
do espaço urbano e ainda mais especificamente da produção de uma política
hipoteticamente pública de habitação, visceralmente ligada e dependente dos mecanismos
de acumulação do capital financeiro internacional, em arranjos de poder complexos que
articulam o privado e o público, prioritariamente, em diferentes níveis, esferas e escalas.
Vejamos o quadro de atores políticos e sociais que compõe o cenário de produção
sócioespacial do empreendimento e as proporções e valores financeiros em jogo. As
informações aqui descritas provêm do contrato judicial de produção do serviço realizado
entre a Caixa Econômica Federal com as empresas participantes do empreendimento que
foi divulgado publicamente no ano passado (2014) e no documento de licenciamento
ambiental disponível no site do conselho estadual de política ambiental, órgão em que a
autorização para a instalação do empreendimento tramita4.
Figuram no contrato jurídico acima descrito como compradores a Caixa Econômica Federal,
representando o FAR e o Governo Federal, como vendedores, a Granja Werneck S.A.
(empresa responsável pela venda do terreno onde se dará o empreendimento), a Prefeitura
de Belo Horizonte, como cedente de parte de recursos complementares à obra; e a
Direcional Engenharia S.A. como empresa construtora responsável pela prestação dos
serviços de construção das unidades habitacionais de interesse social.
O empreendimento da Granja Werneck, no município de Belo Horizonte, dentro da região do
Isidoro, regulamentado urbanisticamente pela Operação Urbana Específica (lei 10.705/2014)
foi planejado para a construção de 8.887 unidades habitacionais, pela Empresa Direcional
4Site onde pode ser acessado o projeto de licenciamento ambiental na íntegra: http://www.meioambiente.mg.gov.br/copam.
Engenharia S.A. em parceria com os gabinetes de planejamento urbano da Prefeitura de
Belo Horizonte.
Cada unidade habitacional recebe o financiamento de R$ 65 mil reais do fundo público FAR
– Fundo de Arrendamento Residencial cujos recursos majoritários provêm do Orçamento
Geral da União. O valor das unidades é fixo e estipulado em âmbito federal. Na última
portaria Nº 435 de 29 de agosto de 2012, o Ministério das Cidades ajustou os valores para
as capitais e regiões metropolitanas do Brasil. De 46 mil iniciais posto pelo programa para
as unidades de Belo Horizonte, foram para 65 mil, um aumento de quase um terço.
O valor geral da obra, portanto, com o financiamento do programa federal, é de R$
756.160.000,00 e contemplará, segundo informações do contrato5, desde os valores de
compra do imóvel, produção do empreendimento, tributos, seguros, despesas de
legalização, IPTU, Projeto, Trabalho Social e a guarda e conservação do empreendimento.
Isto é, são 65 mil reais multiplicado pelo número de 8.887.
Conforme informação do contrato, a prefeitura de Belo Horizonte, contribui para o valor
global do empreendimento com mais de R$177.920.000,00, o que equivale a quase 20 mil
reais por unidade habitacional. Não consta no contrato qual é a fonte dos recursos, mas
tudo indica que é da própria arrecadação tributária municipal. Em pesquisa paralela estes
autores não encontraram decreto, lei ou outro ato normativo que determinasse a doação ao
Fundo FAR como complemento para a realização do empreendimento por parte do poder
público municipal.
Somando os dois aportes, do Governo Federal, em grande advindo do Orçamento Geral da
União, através do fundo FAR, operado pelo banco público Caixa Econômica Federal, mais o
aporte da prefeitura de Belo Horizonte, o valor geral do empreendimento chega em
934.080.000,00 milhões de reais, quase um bi.
É difícil calcular as taxas de lucro de um empreendimento como este que seria posto a
serviço aos acionistas da empresa. O produto é complexo e não está completamente
explicitado quais serão as competências do empreendedor no processo de produção do
parcelamento do solo, na produção das vias internas de circulação, da estrutura urbana e
outros equipamentos públicos previstos em lei para a área.
Há, inclusive, a grande polêmica denunciada pelos movimentos sociais e grupos de
pesquisa e extensão da universidade, quanto a possibilidade da concentração da população
pobre em um megaempreendimento urbano sem que o Estado realize a provisão de
estruturas urbanas e institucionais básicas capazes de atender esta população em seus
5 Contrato disponível em: http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/noticia.do?evento=portlet&pAc=not&idConteudo=141588&pIdPlc=&app=salanoticias
direitos, como saúde, transporte, educação e outros, criando, por assim dizer, mais um
gueto social e agudizando a segregação sócioespacial característica do processo de
urbanização das cidades na periferia do capitalismo.
No contrato com a Caixa Econômica, como dito acima, consta somente que são atribuições
da Construtora a produção dos lotes condominiais e das unidades habitacionais destes, com
sua respectiva infraestrutura urbana e de acesso (vias públicas e água, luz e esgotamento
sanitário). Resta a polêmica quanto quem proverá e construíra os equipamentos de saúde,
educação, as praças, parques e outros para a garantia de uma urbanização plena em
direitos para os futuros cidadãos moradores.
A Direcional Engenharia foi uma das empresas que, durante a primeira década de 2000,
incentivados pela expansão do mercado imobiliário no Brasil, a partir de um conjunto de
intervenções jurídicas, políticas e administrativas, no âmbito do Governo Federal, durante o
período Lula, abriu seus capitais na bolsa de valores recebendo um investimento de capitais
internacionais inédito e possibilitando sua concentração de capital e expansão de suas
atividades, do ponto de vista do ramo produtivo e do ponto de vista geográfico.
Hoje é uma das 10 maiores empresas de construção civil do Brasil com predomino de suas
atividades no setor de habitação popular e uma das 10 que mais realizam empreendimentos
para o programa Minha Casa Minha Vida, com atuação em 12 estados do Brasil6.
Segundo dados públicos fornecidos pelo site da Bovespa. A totalidade dos ativos da
empresa gravitam entorno de 3.802.377.000 reais, mantendo em 2014 um lucro líquido de
suas operações de 171.688 milhões de reais, maior que igual período para 2015 que ficou
em 117.837 milhões de reais distribuídos entre seus acionistas.
Se compararmos os dados postos acima com o do empreendimento Granja Werneck do
programa Minha Casa Minha Vida para Belo Horizonte, podemos perceber a relevância
deste para o balanço financeiro da empresa. Como dito acima, o valor global da obra gira
entorno de quase 1 bilhão de reais, isto é, quase ¼ do valor total de todos os ativos da
empresa. E se considerarmos que o lucro líquido da empresa neste empreendimento gravita
entorno de 1/4 (cerca de 250 milhões de reais), perceberemos que ele corresponde a um
valor ainda maior que o lucro financeiro líquido da empresa para o ano de 2015, ou no ano
de 2014.
No site da companhia ainda está contido a informação que o número total de unidades
habitacionais em lançamento para o ano de 2015, não importando o padrão, gira entorno de
6 Revista Exame: http://exame.abril.com.br/mercados/noticias/fundo-pode-pagar-r-700-mi-para-fechar-capital-da-direcional
100 mil. É dizer, o número de unidades do projeto Granja Werneck está próximo da
proporção de um 1/10 da produção geral da empresa em todo o país.
Por isso que se argumenta a relevância da política em tese pública engendrada pelo
Governo Federal desde 2009 na sustentação do processo de financeirização do mercado e
produção imobiliário no país. Se considerarmos os números e afirmações postas na análise
acima, atestamos que o maior empreendimento habitacional da história de Belo Horizonte, o
da Granja Werneck, na região do Isidoro, com cerca de 9 mil unidades, sustenta ou, como
se esboça um início de cenário de crise econômica e arrefecimento da produção imobiliária
no país, realiza um forte movimento de resgate dos patamares de lucratividade necessários
para fechamento do circuito de capital imobiliário financeirizado do país.
Considerações Finais
É comum na literatura o consenso que o lucro imobiliário reside na faixa de um terço do
valor global do empreendimento, sendo hipoteticamente entorno de outro terço para a
aquisição do terreno e o outro para a produção material das unidades habitacionais em si.
Mesmo que esta regra genérica sofra alterações nesse caso concreto, é de se considerar,
segundo leis gerais da economia política, que ela não escape muito a margem da taxa de
lucro média da produção imobiliária, ao menos no que toca a este padrão de habitação
popular.
Assim, faz sentido afirmar que este projeto, em uma escala nunca vista antes para a
produção da política habitacional, inédita no Brasil e sobretudo em Belo Horizonte, esteja
colocado em função da necessidade de remuneração dos patamares da produção
imobiliária vinculados à lógica do mercado financeiro, sustentadas pela política de habitação
nacional, o programa Minha Casa Minha Vida.
O processo descrito ao longo deste artigo referente ao conflito sociopolítico relacionado a
implementação do Programa Minha Casa, Minha Vida na Granja Werneck representa o
retrato da conversão da economia política da habitação (ROLNIK, 2016) em elemento
fundamental do processo de hegemonia do capital fictício e do crédito como articulador da
reprodução do sistema capitalista. Assim, o padrão do regime de acumulação periférico e
dependente brasileiro passa por um processo de atualização, dos grandes exércitos de
reservas da década de 1980, por um processo intenso de espoliação o patrimônio público
produtivo com as privatizações da década de 1990 até chegar ao momento contemporâneo
que, sem eliminar as fases anteriores, se articula o crédito (capital portador de juros) e o
capital fictício a partir do setor imobiliário e da construção civil, em particular com o Minha
Casa Minha Vida que se assenta na inclusão de consumidores de média e baixa rendas nos
circuitos financeiros de valorização do valor a partir do setor habitacional dominado pelas
finanças como forma de manter os sempre crescentes circuitos de valorização do capital.
Sobretudo, o conflito sociopolítico entre empreendimento imobiliário e ocupação urbana de
sem-tetos representa a lógica de despossessão de terras ocupadas por indivíduos de baixa
renda que o capital tenta se apropriar para manter o ritmo da acumulação, que se tornou
uma poderosa reserva de valor para um lado e que gera insegurança de posse para
milhares de pessoas. Sob a hegemonia do capital rentista-financeiro a expulsão da classe
trabalhadora aparece como desdobramento da lógica de expansão de uma nova economia
política do espaço na metrópole contemporânea que é organizada a partir do controle de
ativos7.
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HARVEY, David. Urban Experience. Baltimore: John Hopkins Press, 2008.7 Raquel Rolnik (2015) apresenta esse processo ao fazer um jogo de palavras na língua inglesa: Enclosures (referência ao cercamentos dos campos descritos no processo de acumulação primitiva) e Foreclosures (É o despejo de um comprador inadimplente de imóvel).
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