vygotsky - aplicações de vygotsky a educação matemática

Upload: miraldo-ohse

Post on 02-Mar-2018

252 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/26/2019 Vygotsky - Aplicaes de Vygotsky a Educao Matemtica

    1/86

    Aplicaes de Vygotsky educao matemticaLcia Moyss

    Dados Internacionais do Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira doLivro, SP, Brasil)Moyss, LuciaAplicaes de Vygotsky educao matemtica / Lucia Moyss. - Campinas, SP:

    Papirus, 1997.- (Coleo Magistrio: Formao e Trabalho Pedaggico)Bibliografia.ISBN 85-308-0464-31. Matemtica - Estudo e ensino 2. Pedagogia 3. Prtica de ensino 4.Psicologia educacional 5. Vygotsky, Lev Semenovich, 1896-1 934 1. Ttulo II.Srie.DIREITOS RESERVADOS PARA A LNGUA PORTUGUESA:O M.R. Comacchia livraria e Editora Ltda.- Papirus EditoraFone/fax: (19) 3272-4500 - Campinas - So Paulo - Brasil.E-mail: editora O papirus.com.br - www.papirus.combr

    SUMARIO

    APRESENTAO 7INTRODUO 9Educao e as exigncias da atualidade 9

    1. O ENFOQUE SCIO-HISTRICO DA PSICOLOGIA 19Vygotsky: O homem e a tarefa 20Principais marcos tericos 23Aspectos tericos complementares 412. O CONHECIMENTO MATEMTICO E A TEORIA SCIO-HISTRICA:

    PONTOS DE APROXIMAO 59Tendncias atuais no ensino da matemtica 61Contextualizar a matemtica: O grande desafio para o professor 65Contextualizao com nfase na cognio 73O componente imaginativo-visual do pensamento: Aspectos a considerar

    793. A CONFIGURAO DO TRABALHO: ASPECTOS METODOLGICOS 83

    Circunstncias que originaram a pesquisa 83Referencial metodolgico: Pesquisa-ao e trabalho em parceria 84Construindo a parceria professor/pesquisador 86O cenrio da pesquisa 89A dinmica da pesquisa 93Organizao dos dados para sua anlise e discusso 97

    4. APROXIMAES TEORIA/PRTICA: ANLISE E DISCUSSODOS RESULTADOS 99Viso geral do processo pedaggico: Uma descrio 99Relao entre a teoria scio-histrica e a aquisio de conhecimento:

    Analisando o processo 105Relao entre a orientao terica e o desenvolvimento mental dos alunos130Pontos crticos 159REFLEXES FINAIS 161Principais evidncias 161Consideraes a propsito da aplicao da teoria realidade brasileira162Perspectivas para a prtica pedaggica futura 163Extrapolando os resultados 164REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 167

    APRESENTAO

    Como todo produto da atividade humana, tambm esta obra traz as marcas do seutempo. Paradigmas contestados, certezas abaladas, verdades desacreditadas. Somomentos dificeis estes por que passam as cincias neste final de sculo.

  • 7/26/2019 Vygotsky - Aplicaes de Vygotsky a Educao Matemtica

    2/86

    Area do conhecimento construda com a ntima participao de saberescientficos, a educao v refletidos no seu interior cada tremor e cada abalonos campos que lhe so afins. No entanto, mais do que uma crise na educao -incontestvel - vivemos uma crise de valores. Aguda e dolorosa.Mas como em toda crise, acredito - e assim espero - que tambm esta traga em sios germes da superao. E aqui j estou desvelando outra marca deste trabalho,que nada mais do que uma marca pessoal. Minha. Fruto da minha histria. a

    marca da crena no poder de transformao do trabalho solidrio. A marca do meucompromisso com a educao. A marca do meu entusiasmo, tantas vezes posto prova. um trabalho que tem por objeto de estudo a prpria relaoteoria/prtica. No caso, a teoria scio-histrica da psicologia.

    7 Pg

    Tendo sido elaborada na antiga Unio Sovitica, entre as dcadas de 1920 e 1930,a partir dos estudos de Lev Semenovich Vygotsky, esta teoria vem recentementepenetrando os meios educacionais dos mais diferentes pases. Inmeros estudosanalticos vm sendo feitos com o objetivo de identificar seus pontos fortes,suas potencialidades e suas lacunas. Data de 1984 a primeira edio brasileira

    do seu livro A formao social da mente, e de 1987 o Pensamento e linguagem.Ao considerar que a mente humana social e culturalmente construda, estateoria abriu novas perspectivas de anlise do prprio processo de construo deconhecimento. E esse processo, visto por tal enfoque, o aspecto central destaobra. Contraponho teoria, uma prtica levada a efeito em uma escola pblica deensino fundamental na forma de uma pesquisa qualitativa.Sendo prtica, foi tarefa que se fez com inmeras colaboraes. A primeira efundamental foi a dos professores Antnio Espsito e Beatrix Pinagel Lucas eseus alunos do Colgio Estadual "Paulo de Assis Ribeiro" (Cepar). Parceirosinestimveis, tornaram-se cmplices nessa travessia. No menos importante foi acolaborao de Zulma Amaral Hoffmann e Mansa Calheiros Alvarenga, ambas dadiretoria do Cepar, companheiras de luta e de ideal, que prontamente meacolheram. O meu reconhecimento, tambm, s professoras da Faculdade de Educao

    da Universidade Federal Fluminense: Tarcila Oliveira Aguiar, La Maria GusmoThomaz de Aquino, Maria das Graas Gonalves e Maria Antonieta Pirrone pelacolaborao na fase inicial da pesquisa aqui relatada, e Dominique Colinvaux deDominguez, interlocutora atenta e generosa. Externo a todos os meus sincerosagradecimentos.

    8 Pg

    INTRODUOEducao e as exigncias da atualidadeA trajetria da educao brasileira vem sendo marcada, nas ltimas dcadas, porposies que se contrapem umas s outras. A que vemos emergindo, no momento, voltada para a questo do ensino. Melhorar a qualidade a bandeira defendida,hoje, por governantes, educadores, tcnicos e especialistas em educao. movimento que no conhece fronteiras, porque, longe de ter surgido para darrespostas a questes locais, nasce das novas necessidades do capitalinternacional.Dos muitos olhares que a questo permite, um deles passa necessariamente pelocampo da questo especfica do ensino e da aprendizagem. Ou seja, uma dasexigncias para se alcanar um elevado nvel de qualidade na educao aprimorar o conhecimento sobre esse processo de forma a torn-lo mais capaz deresponder s exigncias deste novo tempo. Muitas so as reas do conhecimentochamadas a dar sua contribuio nesse sentido. A da psicologia da educao umadelas. O conhecimento terico que nela vem se acumulando ao longo dos anos sobreos processos de aprender e ensinar encerra inmeras sugestes para

    9 Pg

  • 7/26/2019 Vygotsky - Aplicaes de Vygotsky a Educao Matemtica

    3/86

    se alcanar essa melhoria. E mais: em um processo dinmico, aponta sugestes,tambm, pana o campo da pesquisa pedaggica, encaminhando, assim, novas buscas.Este livro nasceu sob esta dupla inspirao: a do conhecimento terico e a daprtica da pesquisa. Foi conhecendo o enfoque scio-histrico da psicologia eestudando as idias dos seus principais tericos que comecei a perceber o seupotencial pana a prtica pedaggica. Mas foi no exerccio da pesquisa, nointerior das escolas de ensino fundamental, observando a realidade concreta das

    nossas salas de aula, que me veio a convico de que era preciso submeter aqueleconhecimento terico ao crivo da pesquisa cientfica (Moyss 1994a, 1994b).Assim, tecendo teoria e prtica, fui lentamente me aproximando do seu objeto deestudo, at chegar ao seu recorte final.Por um lado, tinha um acmulo de sugestes tericas que acenavam com ricaspossibilidades de aplicao no campo da prtica pedaggica. Isso me inclinavapara a realizao de uma pesquisa em que pudesse colocar em prtica taisfundamentos tericos. Por outro, conhecendo de perto as nossas escolas pblicasde ensino fundamental, convivendo no seu dia-a-dia, no ignorava as suasprincipais necessidades. Por isso, sabia da sua urgncia em encontrar soluespana seus problemas mais emergenciais. Ou seja, tinha clareza de que essa escola

    espera que o pesquisa-dor seja um aliado na busca de solues pana algumas desuas questes imediatas. Isso era, sem dvida, algo verdadeiramente instigante:trabalhar na construo do conhecimento e, ao mesmo tempo, colaborar com aescola no enfrentamento de suas dificuldades.Assumindo esse desafio, procurei investigar possveis aplicaes da correntescio-histrica da psicologia no ensino da matemtica pana alunos da 5 srie doensino fundamental, numa escola da rede pblica.'

    10 Pg

    Nas ltimas dcadas, o estudo desse enfoque terico vem paulatinamentedespertando o interesse de pesquisadores de diferente reas. Muitos dos seusprincpios vm sendo objeto de estudos com relao questo pedaggica, uma vez

    que h certa unanimidade quanto ao reconhecimento do seu valor para a educao(Petrovski 1980; Wertsch 1985; 1988; Mellin-Olsen 1986; Forman e Cazden 1988;Bogayavlensky e Menchinskaya 1991; Kostiuk 1991; Freitas 1992; Valsiner 1993;Braslavsky 1993). No Brasil, a sua penetrao se d com uma crescenteintensidade e de uma forma cada vez mais disseminada. Tanto nas Faculdades deEducao e de Psicologia, quanto em Secretarias de Educao (SEF/SP; SME/SP;SME/RJ) ou em Centros de Estudos (como o da Escola da Vila, em So Paulo), hgrupos empenhados nessa rea de estudos e pesquisas.Hoje, a julgar pela literatura atualizada em psicologia que nos chega doexterior, no seria exagerado afirmar que h mesmo um entusiasmo geral acercadas idias contidas nesse enfoque terico. Alm das pesquisas nele inspiradas jse avolumam as que se constituiram em seus desdobramentos. Nesse sentido,destacam-se nos Estados Unidos os trabalhos de B. Rogoff, J. Wertsch, M. Colees. Scribner, J. Valsiner entre outros.Ampliando e aprofundando os estudos brasileiros acerca dessa perspectivaterica, vou at o interior da escola de ensino fundamental e, de l, procurotirar lies visando melhoria da qualidade do ensino. Tendo em vista que nestaperspectiva terica atribuda singular importncia s questes relativas aprendizagem, tive minha ateno voltada para as particularidades desseprocesso, sem ignorar, claro, que existem inmeros outros fatores que diretaou indiretamente o afetam. Sem ignorar, tampouco, que tratar da melhoria daqualidade do ensino por

    11 Pg

    meio do estudo desse processo, em especial, no ir determinar, de fato, essamelhoria.O que em geral ocorre que, ao se trabalhar as questes do processo de ensino e

  • 7/26/2019 Vygotsky - Aplicaes de Vygotsky a Educao Matemtica

    4/86

    aprendizagem, acaba-se fechando o foco da ateno sobre o que se passa nointerior da escola. Ou seja, corre-se o risco de se realizar um trabalho com umaviso microssocial da educao. No entanto, no se pode ignorar que a nfasesobre a necessidade de se chegar a esse nvel de detalhamento surgiu exatamentedo extremo oposto. Da viso macrossocial da educao. ela, com efeito, quemorienta e d sentido s prticas que se realizam no interior da escola.

    Especialmente hoje, quando a tendncia para a interdisciplinaridade se impe nosmeios educacionais (S-Chaves 1989; Forquin 1993), pretender fazer um trabalhono interior de uma escola, ignorando o que lhe vai ao redor, seria, no mnimo,ter uma viso estreita do fenmeno educativo. Assim considerando, quero comearequacionando as possveis explicaes para a atual emergncia dessa preocupaocom a qualidade na educao. Desvelando-as, ser mais fcil compreender osdesafios que a emergncia dessa preocupao enceira bem como - e principalmente- os interesses que a impulsionam, seus riscos e armadilhas.Proceder leitura macrossocial significa percorrer de alguma forma os caminhosda sociologia da educao, entender como vm sendo interpretadas as relaesentre escola e sociedade. Viso micro e macrossocial do fenmeno educativo:Plos complementares. Coerente com uma perspectiva interdisciplinar, julgo

    fundamental, para anlise e compreenso mais global do fenmeno educativo,abordar alguns temas da sociologia da educao, antes mesmo de passar squestes especficas da psicologia educacional. O funcionalismo tem sidoconsiderado um ponto de partida por muitos estudiosos que se dedicam anlisedas relaes entre escola e

    12 Pg

    sociedade (Giroux 1983; Isambert-Jamati 1986; Dandurand e Olivier 1991; Forquin1993).No Brasil, acredito que a maioria dos estudantes de pedagogia que, como eu, feza sua formao na dcada de 1960, sofreu a sua influncia. Estudando as idiasde Talcott Parsons, aprendeu que a escola uma instituio neutra, capaz de pr

    fim s desigualdades sociais que se verificam no seio das sociedades. educao, nessa perspectiva, cabia a socializao das jovens geraes por meioda transmisso de normas, valores e saberes que asseguravam a integrao social.Recusando-se a analisar criticamente as relaes entre a escola e a sociedade,questes como a do desenvolvimento econmico e da complexidade cada vez maior dadiviso social do trabalho foram, a princpio, deixadas de lado. Nessaperspectiva, conflito e luta so sempre, no dizer de Giroux (1983, p. 31), uma"ausencia presente". Foram as prprias exigncias vindas da sociedade quecomearam a impor uma certa mudana nessa viso funcionalista da educao. Osavanos tecnolgicos e a expanso econmica dos anos 60 propiciaram o surgimentode presses para que a escola tivesse um carter mais voltado para asnecessidades do capital. Houve, ento, um deslocamento da nfase no papel daeducao. Privilegiando as exigncias de uma sociedade tecnocrtica, o sistemaeducacional passou a adotar preocupaes com a qualificao tcnica eprofissional visando formao de quadros, bem como com a mobilidade da mo-de-obra. O que estava em Jogo, pois, nessa viso funcional-tecnocrtica da educaoera a adaptao s exigncias do mercado.Para melhor analisar o panorama que hoje se apresenta para a educao - no quala busca da qualidade uma tnica -, importante voltar ao momento em quecomearam os primeiros movimentos a favor de uma leitura crtica dofuncionamento da sociedade e de uma definio da questo escolar em termos deuma economia poltica da educao. Esse momento de inflexo, marcado pela teoriado capital humano, ocorreu paralelamente viso funcionalista-tecnocrtica daeducao (Dandurand e Olivier 1991).

    13 Pg

    educao, vista sob essas duas ticas, atribuda uma dupla legitimidade:

  • 7/26/2019 Vygotsky - Aplicaes de Vygotsky a Educao Matemtica

    5/86

    alavanca a impulsionar o progresso econmico e instrumento de equalizao deoportunidades, bens e servios. Os intensos movimentos sociais que eclodiram emdiferentes pases no final da dcada de 1960, revelando conflitos de classe,raciais, culturais e entre naes, bem como o agravamento, em nvel mundial, deuma forte crise econmica, exarbando disparidades, foram a emergncia de umanova teoria sobre as relaes entre escola e sociedade: a teoria da reproduo.Esta perspectiva terica nasce baseada em estudos de Bourdieu e Passeron,

    Althusser, Baudelot e Establet, e de Bowles e Gintis. Os primeiros, com umatendncia mais culturalista" e os ltimos, mais voltados para os aspectos da"economia poltica" (Dandurand e Olivier 1991).Ainda que mantivessem diferenas entre si, esses estudos tinham em comum o fatode negar a neutralidade da educao e de se dedicarem a analisar a forma como opoder usado para servir de mediao entre a escola e os interesses do capital.Focalizavam suas anlises sobre a maneira com que a escola reproduz no s asrelaes sociais, como tambm as atitudes necessrias para manter as divisessociais do trabalho, mantendo assim as relaes de produo existentes.Tais estudos buscaram desvelar os mecanismos de dominao e as formas pelasquais eles se fazem presentes no interior da escola: manipulando e moldandoconscincias. Assim, segundo eles, plasmando subjetividades diferenciadas em

    virtude das classes sociais, a escola participa na formao e na consolidao danova ordem social.Hoje, decorridos mais de 20 anos desde o aparecimento do primeiro dessestrabalhos, h uma certa unanimidade quanto ao reconhecimento do seu valor. Einegvel que eles ofereceram uma viso mais crtica das

    14 Pg

    relaes entre a educao e a sociedade. Isso, no entanto, no impede quesejam percebidas suas limitaes e apontadas suas restries. (Giroux1983; Young 1986; Silva 1990). Tais restries so ainda mais acentuadasquando se trata de fazer uma transposio para o caso brasileiro (Whitaker1991).

    No bojo do enfoque reprodutivista da educao, a teoria de Bourdieu e Passeron,ao contrrio das demais, no percebe a escola como instncia de inculcao devalores e modos de pensamento dominantes. O que enfatiza , principalmente, ofato de essa instituio ser palco de conflitos culturais ligados transmissode conhecimentos. Segundo afirmam aqueles autores, ao usar conhecimentos elinguagens prprios das classes dominantes, a escola propicia que apenas osestudantes j familiarizados com esse tipo de cultura nela tenham xito. Osdemais vo sendo excludos em virtude das suas diferenas culturais (Bourdieu ePasseron 1975). Ou seja, uma teoria que, priorizando o aspecto cultural,tambm comea a se interessar pelo sujeito.Na tentativa de recompor o complexo quadro que se iniciou com as crticas feitass teorias reprodutivistas e que chega at os dias atuais, Dandurand e Olivier(1991) comeam por destacar essa nfase na cultura e no sujeito, presentes emBourdieu e Passeron. Acrescentam a esse aspecto, a crise econmica mundial ealgumas de suas conseqncias, tais como a queda de emprego, a desqualificaorpida de um nmero significativo de trabalhadores, a diminuio de recursosfinanceiros pblicos para a educao etc. Tampouco foram ignoradas as novasexigncias de conhecimentos cientficos, tecnolgicos e de mo-de-obra altamentequalificada.Dos primeiros aspectos - nfase na cultura e no sujeito - chega-se preocupaocom os processos de transmisso do conhecimento. Dos ltimos crise econmicamundial -, chega-se s questes da qualidade do ensino e da educao em geral.

    15 Pg

    "Redescobrindo" a importncia da educaoA cada dia fica mais clara a percepo de que a educao um dos componentesessenciais das estratgias de desenvolvimento das naes. A economia moderna tal

  • 7/26/2019 Vygotsky - Aplicaes de Vygotsky a Educao Matemtica

    6/86

    como praticada nos pases mais adiantados j no pode prescindir de indivduoscapazes de selecionar e processar informaes, isto , de indivduos crticos,criativos e dotados de um saber gil. Mais do que nunca, as competnciascognitivas e sociais so fatores fundamentais do progresso social. Os novosequipamentos, as novas tecnologias, a rpida superao dos conhecimentos e osvertiginosos avanos do mundo moderno j no esto mais compatveis com osmoldes educacionais vigentes (S-Chaves 1989; Demo 1993). Revistas

    especializadas internacionais nos do conta das reformas que diferentes pasesesto fazendo nos seus sistemas educacionais com o objetivo de torn-los maiscapazes e eqitativos na preparao de uma nova cidadania (Rust 1992a, 1992b).Ao lado das crescentes preocupaes com essas novas exigncias, alinham-seaquelas que s voltam para a anlise dos riscos que elas encerram para os pasesdo Terceiro Mundo (Mello 1991; Buarque 1991; Demo 1993; Freitas 1993)Dentre as inmeras iniciativas levadas a efeito nesse sentido, destaco a doInstituto de Estudos Avanados da USP, que durante todo o ano de 1991 promoveuencontros e debates por intermdio do "Programa Educao para a Cidadania". Foium amplo programa que congregou estudiosos da educao e deu ensejo formaodo Grupo de Estudo de Polticas Pblicas de Educao. As principais idiasdebatidas e os resultados a que chegaram os participantes do grupo foram

    sintetizados em um documento elaborado por Guiomar N. de Mello (1991).Nele, ao destacar o importante papel que a educao desempenha na conquista dacidadania, a autora no deixa de chamar a ateno para a

    16 Pg

    necessidade de que, nos pases do Terceiro Mundo - notadamente nos da AmricaLatina-, as estratgias de desenvolvimento levem em conta suas singularidades.Panticulanmente a questo da necessidade de se promover a eqidade merece, dessegrupo, nfase especial (Mello 1991).Sintetizando os pontos sobre os quais parece haver um consenso em nvel mundial,o documento afirma que a educao, assim como a poltica de cincia etecnologia, passa a ocupar "definitivamente II...) um lugar central e articulado

    na pauta das macropolticas do Estado" (ibid., p. 12), uma vez que desempenhaimportante papel na qualificao dos recursos humanos requeridos pelos novospadres de desenvolvimento. E mais: que indispensvel que todas as pessoasadquiram conhecimentos bsicos e desenvolvam suas capacidades cognitivas, a fimde saber lidar, de modo produtivo, com as inmeras informaes provenientes doambiente sua volta.Esse texto apenas um exemplo, dentre outros, de um movimento que estocorrendo nos mais diferentes pases em torno da revalorizao do prprio homem.Pases que, durante as ltimas dcadas, supervalorizaram a dimenso tecnolgicaagora esto voltando atrs e recolocando o homem no centro das suas atenes.Cito ainda, como exemplo, uma conferncia nacional realizada na antiga URSS, em1988, reunindo representantes dos mais diferentes institutos cientficossoviticos. O desejo de trazer de novo o homem para dentro da cincia j serevela no prprio ttulo da conferncia: "Problems in the comprehensive study ofman" e se estende pelos ttulos das suas sees, tais como: O homem nos sistemasdas cincias; Homem, natureza e histria; Homem, cultura e tecnologia; Homem,produo e a economia; Sade humana: Moral, mental e fsica. Neste evento, oenfoque interdisciplinar e a questo da responsabilidade social do homem dianteda cincia estiveram presentes de forma acentuada.O que se percebe, pois, que esse revalorizar do homem envolve necessariamentea qualidade da educao que lhe oferecida e os conhecimentos que lhe sotransmitidos. Inclui tambm o desenvolvimento das suas capacidades cognitivas.

    17 Pg

    Retomo aqui ao meu ponto de partida. Considero extremamente importante que opesquisador, cujo foco de ateno se volta para o interior da escola,

  • 7/26/2019 Vygotsky - Aplicaes de Vygotsky a Educao Matemtica

    7/86

    objetivando contribuir para a melhoria da qualidade do ensino, tenha muito claroa que interesses ele est servindo. Especialmente em paises como o nosso, quandoos alunos pertencentes s camadas mais desprivilegiadas da populao sosistematicamente excludos da escola. essa questo se toma absolutamentecrtica. Oferecemos grande maioria dos alunos que freqentam nossas escolas,uma educao de m qualidade. So inmeros e complexos os fatores que concorrem

    para isso. Encontram-se tanto no seu interior, quanto fora dela. Configura-se umelenco de questes que variam das mais restritas e localizadas, como as quefazem parte do cotidiano da escola e da sala de aula, s mais amplas, como asmacroestruturais. Ensaiam-se solues nas mais diferentes frentes de atuao.Grande parte delas gerada no interior da prpria escola. Outras chegam at elavindas de providncias do Estado: reciclagem de professores, legislao quedetermina a promoo automtica do aluno, aumento da carga horria etc. Algumash, mais radicais, que apontam para a necessidade de se rever o prprio sistema,sua estruturao, a organizao curricular (Arroyo 1992).O problema grave, comportando diversos ngulos de anlise e focos dediferentes dimenses.

    No campo especfico da psicologia da educao h regies ainda inexploradas; h,sobretudo, questes exigindo pesquisas, questes que anseiam por solues,mormente as ligadas qualidade do nosso ensino.Mas afirmar que possvel recorrer a conhecimentos psicolgicos para descrever,explicar e/ou transformar educao no algo consensual nos dias atuais. Aocontrrio, palco de controvrsias. Pede cautela.Foi, pois, com alguma cautela, sabendo que no h teoria que d conta de toda acomplexidade humana, e que, por melhor que sejam, as teorias trazem sempre asmarcas do seu tempo, que me propus a refletir sobre as possveis contribuiesda psicologia scio-histrica para a educao, particularizada no processo deensino/aprendizagem da matemtica.

    18 Pg

    1O ENFOQUE SCIO-HISTRICO DA PSICOLOGIANeste captulo, comeo abordando os principais marcos tericos desse enfoque.Baseiam-se principalmente no pensamento de Vygotsky, Luria e Leontiev. So eles:mediao, processo de internalizao, zona de desenvolvimento proximal eformao de conceitos. Em seguida abordo outros temas fundamentais para aconfigurao do quadro terico da pesquisa aqui apresentada. Dois deles - o daafetividade e o da criatividade - foram tratados por Vygotsky, ainda queconcisamente. Um terceiro - o da atividade em grupo - inscreve-se na produorecente de autores que tomam a teoria scio-histrica como ponto de partida paraseus estudos (Forman e Cazden 1988, Forman 1989, Schoenfeld 1989, Rubtsov 1989,Rubtsov e Latushkin 1990, Rivina 1991, Saxe 1992).Se hoje tarefa fcil identificar os estudos ligados ao enfoque scio-histricodas dcadas de 1920 e 1930, tentar reconhec-los nas dcadas seguintes j no to fcil assim. Conforme visto anteriormente, com o passar dos anos, os estudosligados a essa corrente se mantiveram apenas em alguns institutos soviticos depesquisa, desenvolvidos por psiclogos ligados diretamente a Vygotsky e pelanova gerao, formada por alunos daqueles.

    19 Pg

    Pesquisadores como V.V. Davidov, P.Ya. Galperin, D.B. Elkonin e V.P. Zinchenko -discpulos de Vygotsky - deram continuidade aos estudos feitos no perodo de

    1924 a 1934, enquanto ele ainda vivia. Posteriormente, trilharam caminhosprprios, elaborando novas teorias.Mesmo Luria e Leontiev no pararam de produzir. O primeiro, mais voltado para a

  • 7/26/2019 Vygotsky - Aplicaes de Vygotsky a Educao Matemtica

    8/86

    neuropsicologia; o segundo, para a questo da atividade e da conscincia.Algumas idias sobre o pensamento psicolgico predominante no incio da dcadade 1920, poca em que Vygotsky comeou a se projetar, j foram aqui abordadas.Retornando o olhar para as origens do seu enfoque terico, importante que seconsidere, ainda que resumidamente, alguns traos da sua histria de vida.Vygotsky: O homem e a tarefaA formao intelectual de Vygotsky bastante variada. Graduou-se em direito

    pela Universidade de Moscou, em 1917. Enquanto fazia seu curso superior,freqentou cursos de psicologia, literatura e filosofia na Universidade Popularde Shanyavskii. Poucos anos depois, estudou medicina em Moscou e em Karkov.Conseguiu, em pouco tempo, acumular um vasto conhecimento sobre as mais variadasreas do saber. Esse conhecimento no se limitava aos autores soviticos. Napoca em que fez a sua formao, a ex-Unio Sovitica mantinha intercmbiointelectual com pases da Europa Ocidental e com os Estados Unidos.Por outro lado, no se pode esquecer da forte e decisiva influncia que asidias filosficas de Marx e Engels exerceram sobre toda aquela gerao dejovens soviticos (Wertsch 1988, Valsiner 1988, Leontiev 1989, Luria 1992). importante registrar que Vygotsky j tinha uma formao filosfica que inclua o

    pensamento marxista ao realizar seus estudos universitrios. Nos seus primeirosescritos j esto presentes as categorias intelectuais da dialtica. Essas foramutilizadas no sentido de

    20 Pg

    buscar respostas concretas aos problemas colocados pela psicologia, de forma aconstituir uma nica teoria em torno dela e no um amlgama de idiasjustapostas.Foi principalmente em torno do mtodo dialtico que passou a estudar osfenmenos psquicos. Sustentava a necessidade de eles serem captados comoprocessos em movimento. Essa, a principal razo do seu entendimento de que atarefa bsica da psicologia deveria ser a de reconstruir a origem e a forma como

    se deu o desenvolvimento do comportamento humano e da conscincia.No perodo transcorrido entre a sua graduao e a sua ida para Moscou, Vygotskyexerceu uma intensa atividade: dava aulas do literatura, histria da arte eesttica, fundou um laboratrio de psicologia na Escola Normal de Gomel (cidadeonde viveu antes de se transferir definitivamente para Moscou), faziaconferncias, escrevia e publicava. E, como sempre, lia muito (Wertsch 1988, pp.21-25). Assim, com uma slida bagagem terica, Vygotsky chegou ao Instituto depsicologia, em Moscou, para se juntar aos jovens psiclogos que ali pesquisavam,entre eles, conforme j dito, Luria e Leontiev.Foi, portanto, com esse perfil, aliado a uma inteligncia impar -segundodepoimento acalorado de Luria e de outros tantos O conheceram - que Vygotsky seapresentou, em 1924, no 22 Congresso Russo de Psiconeurologia, em Leningrado(Luria 1992, Wertsch 1988, Oliveira 1993). Exps um trabalho cujas idias iam deencontro ao pensamento psicolgico tradicional. Criticava profundamente areflexologia e sustentava a necessidade de se procurar analisar o comportamentodo homem como um todo. Vale lembrar que, apesar de os psiclogos daquela pocano negarem a existncia da conscincia, no a consideravam objeto de estudo dapsicologia. No entanto, para Vygotsky, essa deveria ser estudada com a mesmaatitude objetiva e exatido cientfica com que se estudavam os reflexos. Poroutro lado, recusava-se a se pautar pela matriz behaviorista,

    21 Pg

    na medida em que essa reduzia os fenmenos s suas partes mais simples, deixandode lado toda a riqueza dos fenmenos de ordem superior. Para ele, mais

    importante do que descrever os fenmenos era tentar explicar sua origem. Issoimplicava admitir a necessidade de se estudar as formas mais complexas deconscincia. Essas, no seu entender (influenciado pelo materialismo dialtico),

  • 7/26/2019 Vygotsky - Aplicaes de Vygotsky a Educao Matemtica

    9/86

    eram social, cultural e historicamente determinadas. Nessa idia estava contidoo cerne da proposta para explicar a construo da mente humana (Luria 1979a,1992; Wertsch 1985, 1988; Valsiner 1987, 1988, 1993; Yaroshevsky 1990).Mas, para entender o impacto das suas idias sobre o pensamento psicolgico deento, necessrio retroceder um pouco mais. Lembrar, por exemplo, que oInstituto de Psicologia sofreu ampla reestruturao com o afastamento daquelesque defendiam uma postura mais tradicional. Foram substitudos por outros novos

    e desconhecidos, que traziam os ideais marxistas e se alinhavam com oscompromissos da Revoluo. Eram, na sua maioria, jovens que ansiavam por novosmodelos, novas formas de trabalhar o conhecimento psicolgico. Segundo afirmaYaroshevsky (1990, p. 360), eles desejavam construir uma teoria psicolgica daconscincia, que unisse a personalidade e o meio social.Foi nesse terreno frtil e propcio a novas idias que Vygotsky foi convidado ase juntar equipe liderada por Luria, e que tinha em Leontiev o seu principalcolaborador. A primeira tarefa a que se dedicou foi a de tentar explicar asformas mais complexas da vida consciente do homem, no no interior do crebro ouda alma, mas sim nas suas condies externas de vida, na sua vida social, no seutrabalho, nas formas histrico-sociais de existncia.Ao registrar as suas memrias, Leontiev (1989, p. 24) afirma que a questo da

    mediao do comportamento por meio de um instrumento foi uma das primeiraspremissas levantadas por Vygotsky, com base na qual se deu o desenvolvimento dassuas investigaes posteriores. Compreender a sua concepo de comportamentomediado de capital importncia na apreciao de sua obra.

    22 Pg

    Principais marcos tericosConvm registrar que todos os temas aqui tratados - centrais na obra de Vygotsky- so, tambm, fundamentais para o embasamento terico da pesquisa aquiapresentada.Mediao

    Ao contrrio do esprito da poca, que levava os cientistas sociais a citar ospensamentos dos tericos do marxismo, a prpria formao anterior de Vygotsky olevava a utilizar de uma forma original algumas idias desses tericos. Assim,por exemplo, partindo da idia de que o trabalho e a sua diviso social acabampor gerar novas formas de comportamentos, novas necessidades, novos motivosetc., e que esses levam o homem busca de meios para a sua realizao,introduziu na psicologia o fator histrico-cultural. Tinha clara compreenso deque esse movimento provoca no ser humano uma crescente modificao das suasatividades psquicas.Outra idia de inspirao marxista, e que acabou sendo um dos pontos chaves dateoria, foi aquela segundo a qual o homem, por meio do uso de instrumentos,modifica a natureza, e ao faz-lo, acaba por modificar a si mesmo. Ou seja, damesma forma que Marx concebeu o instrumento mediatizando a atividade laboral dohomem, ele concebeu a noo de que o signo - instrumento psicolgico porexcelncia - estaria mediatizando no s o seu pensamento, como o prprioprocesso social humano. Inclui dentre os signos, a linguagem, os vrios sistemasde contagem, as tcnicas anemnicas, os sistemas simblicos algbricos, osesquemas, diagramas, mapas, desenhos, e todo tipo de signos convencionais. Suaidia bsica a de que, ao us-los, o homem modifica as suas prprias funespsquicas superiores (Vygotsky 1981a, p. 137).A anlise do seu esquema inicial - esquema que deu origem sua teoria - parecehoje absolutamente bvia. Contudo, para a poca, era algo inusitado. Introduziuum novo elemento na noo de estmulo-resposta,

    23 Pg

    formando uma relao que passou a ser triangular, em vez de dual. Esse novoelemento era o "instrumento psicolgico". Poderia ser, por exemplo, uma marca

  • 7/26/2019 Vygotsky - Aplicaes de Vygotsky a Educao Matemtica

    10/86

    num papel para recordar uma palavra, um barbante amarrado no dedo para selembrar de algo, uma figura associada a algo que precise ser lembrado etc.Configurou esse esquema da seguinte forma:Nele, A o estmulo e B, um estmulo associado a A (reflexo condicionado) e X o instrumento psicolgico. Por exemplo, no caso da memria, o esquematradicional A - B existe em virtude da fora associativa nascida de um reflexocondicionado. Esses dois estmulos, uma vez associados, estariam ligados a uma

    resposta. Depois de estabelecida a ligao, bastaria a presena do segundo sinalpara o seu aparecimento. Nos estudos de Pavlov, esse segundo sinal era semprealgo externo, estava sempre fora do alcance do sujeito. Mas, de qualquer forma,j era um estmulo artificial.E o que fez, ento, Vygotsky? Ele aproveitou essa idia de um segundo sinalmediatizando a ao e a articulou com a idia de instrumento. Isto , alargou oconceito de instrumento. Realizando experimentos,

    24 Pg

    concluiu que o prprio sujeito, ao longo da histria e do seu prpriodesenvolvimento, introduziu sistematicamente novos sinais, novos elementos

    (estmulos, na linguagem psicolgica) e novos smbolos na mediao das suasaes. Por exemplo, o hbito de fazer marcas nos troncos de rvores ou naspedras para registrar uma contagem foi encontrado em diferentes culturasprimitivas. Para se ter clareza dessa concepo, suponhamos que, no exemplodado, essas marcas se refiram ao nmero de caas abatidas. Segundo esseesquema,A seriam as caas, B, a quantidade, e X, o signo utilizado como mediadorque ajudaria o caador a se lembrar da associao entre A e B. Voltando agora aoseu esquema, a explicao que ele fornece a seguinte. Em vez da conexo A - B,duas novas conexes so estabelecidas com a ajuda do instrumento psicolgico X:A - X e X - B. Embora o resultado continue sendo o mesmo, o caminho completamente diferente. preciso salientar que esse elemento X tanto pode seralgo introduzido pelo prprio sujeito quanto por algum de fora. A sua principalcaracterstica, no entanto, reside no fato de ter um significado. O exemplo dado

    tpico do primeiro caso. Exemplifica o segundo, um dos muitos experimentoslevados a efeito por Vygotsky sobre memria. Participam um experimentador e umsujeito. A este so mostrados 25-30 cartes com figuras, propondo-se em seguidauma lista de palavras as quais ele deve memorizar. Para isso ele pode escolherum dos cartes que se relacione com a palavra. Depois da apresentao de 12 a 15palavras, o experimentador lhe apresenta aleatoriamente os cartes com asfiguras, pedindo-lhe que se lembre das palavras. Esse experimento tem duasvariantes. Na primeira, h sempre uma figura que est obviamente relacionada coma palavra a ser lembrada. Exemplo: inverno/lareira. Na segunda, a relaoprecisa ser procurada pelo sujeito. Exemplo: fogo/machado. Com o machado corta-se a lenha para acender o fogo. Em ambos os casos os cartes funcionam comomediadores entre o estmulo e a resposta, levando a pessoa a se lembrar daresposta solicitada (Vygotsky, apud Luria 1979c, pp. 89-90). Esse experimento,ao ser feito com crianas em idade escolar, demonstrou que

    25 Pg

    elas, ao contrrio das que ainda se encontram em estgios anteriores, socapazes de usar meios auxiliares externos nos processos de memorizao.O que se percebe aqui que, embora o elemento auxiliar - a mediao - sejaexterno, o sujeito lhe atribui um significado, o que lhe permite se lembrar dapalavra dada. Ao contrrio de ser um simples automatismo, algo muito maiscomplexo. um processo que envolve o estabelecimento de relaes entre idias,ou seja, nele interferem as funes psquicas superiores.Com o passar do tempo, a criana deixa de necessitar desse elemento auxiliar

    externo, e passa a utilizar signos internos. Esses nada mais so do querepresentaes mentais que substituem os objetos do mundo real.Esse um princpio ao qual Wertsch (1988, p. 50) denominou de

  • 7/26/2019 Vygotsky - Aplicaes de Vygotsky a Educao Matemtica

    11/86

    "descontextualizao dos instrumentos de mediao". Ou seja, medida que otempo passa, o significado dos signos vai se tornando cada vez mais independentedo contexto espao-temporal em que esses signos so utilizados.A obra de Vygotsky est repleta de exemplos de como se d essa mediao emdiferentes processos psquicos. Foram muitos os experimentos que ele e seuscolaboradores realizaram entre as dcadas de 1920 e 1930. Mas foi sobretudo em

    relao mediao pela linguagem oral que seus estudos ganharam destaque. Tantonas dcadas que se seguiram, como nos dias atuais, a relao entre pensamento elinguagem continua engendrando estudos, no s no campo da psicologia, como noda lingstica e no da educao. Essa temtica levou-o a abordar outro pontocentral na sua teoria: o do processo de internalizao (ou interiorizao, comopreferem alguns).Processo de intemalizaoAo apresentar a sua concepo sobre a gnese das funes mentais superiores,Vygotsky (1981b, p. 157ss.) deixa claro que a idia de intemalizao decomportamentos externos j havia sido levantada por

    26 Pg

    diferentes autores (Pierre Janet, James Mark Baldwin, Ernst Kretschmer,Charlotte Bhler e Jean Piaget). Diz, por exemplo, ser de Janet a idia de que,no processo de desenvolvimento, as crianas comeam a usar em relao a siprprias as mesmas formas de comportamento que os outros usaram inicialmente emrelao a elas. Reconhece, tambm, que traz o germe daquela concepo, a idiade Piaget segundo a qual a argumentao lgica primeiro aparece entre ascrianas e s em uma etapa posterior internalizada pelo indivduo.Vygotsky aprofunda e sistematiza essas e outras concepes j existentes, pormeio de inmeros experimentos que realiza em colaborao com seus pares. Emtodos, a mesma idia central: a de que na interao social e por intermdio douso de signos que se d o desenvolvimento das funes psquicas superiores.Foi principalmente no campo da linguagem que o conceito de internalizao pde

    ser comprovado empiricamente. Mais especifica-mente, no da "linguagemegocntrica", tema desenvolvido por Piaget poucos anos antes - 1923 - em uma dassuas primeiras obras: A linguagem e o pensamento da criana (Piaget 1961). Nela,Piaget atribua essa expresso ao fato de a criana "falar para si mesma", aindaque estivesse acompanhada. O termo egocentrismo, como ele prprio iria explicarmais tarde, significava a incapacidade da criana em se deslocar da sua prpriaperspectiva mental. Ou seja, no conseguir descentrar seu pensamento, colocar-sena posio do outro. Esse egocentrismo tenderia a desaparecer medida que acriana fosse se socializando (id., ibid.)Ao contrrio do que afirmava Piaget, Vygotsky defendia a idia de que overdadeiro curso do processo de desenvolvimento do pensamento infantil assumeuma direo que vai do social para o individual. Discordava basicamente dele comrespeito ao fato de sustentar ser o pensamento infantil original e naturalmenteautstico, "s se transformando em pensamento realista sob uma longa epersistente presso social" (Vygotsky 1984, p. 12).Seus experimentos evidenciaram que a criana um ser social desde o seunascimento. A linguagem, tal como expressa por meio da fala, trazendo suamarca histrico-cultural, algo que ela j encontra ao nascer. So aquelaspessoas que a cercam que interpretam seus balbucios, suas expresses espontnease seus movimentos. So elas que vo lhes atribuindo um significado.Assim, por exemplo, o esforo que a criana faz para tentar agarrar algum objetofora do seu alcance interpretado como um desejo de t-lo. Ou seja, aquela moagitada no ar, estendida na direo do objeto interpretada pelo outro comosendo um gesto de apontar. E o outro que, interpretando o seu desejo, lheatribui um significado, significado que ainda no seu. S mais tarde, quando

    ela puder perceber a relao entre a situao objetiva como um todo e o seumovimento, que de fato comea a compreend-lo como um gesto de apontar. Apartir da, ir incorpor-lo ao seu repertrio de aes.

  • 7/26/2019 Vygotsky - Aplicaes de Vygotsky a Educao Matemtica

    12/86

    Nesse exemplo - clssico na teoria scio-histrica - percebe-se com clareza apassagem de uma situao inicialmente externa, em que um movimento que aprincpio fora dirigido para um objeto transforma-se em um movimento dirigidopara outro ser humano. Graas a isso, o movimento reduzido e abreviado,elaborando-se assim a forma do gesto usando o indicador. A sua internalizaonasceu da interao social.Em virtude de experimentos e de observaes como essa, Vygotsky (1981b, p.l63)

    formulou o que considerava a "lei gentica geral do desenvolvimento cultural":Qualquer funo presente no desenvolvimento cultural da criana aparece duasvezes, ou em dois planos distintos. Primeiro, aparece no plano social, e depois,ento, no plano psicolgico. Em princpio, aparece entre as pessoas e como umacategoria interpsicolgica, para depois aparecer na criana, como uma categoriaintrapsicolgica. Isso vlido para ateno voluntria, a memria lgica, aformao de conceitos e o desenvolvimento da vontade. [...] a internalizaotransforma o prprio processo e muda sua estrutura e funes. As relaessociais ou relaes entre as pessoas esto na origem de todas as funespsquicas superiores. Com essa lei, Vygotsky deixa claro que toda funopsicolgica interna, algo inerente estrutura psquica do sujeito, foi antes

    uma funo28 Pg

    social, que surgiu em um processo de interao. Alm disso, esclarece tambm,que a passagem do plano externo para o plano interno no se d como uma simplescpia. Ao contrrio, como verificado na citao acima, ela "transforma o prprioprocesso e muda sua estrutura e funes".Uma anlise mais detalhada dessa afirmativa leva constatao de que cadafuno psquica que vai sendo internalizada implica uma nova reestruturaomental. Implica alargamento e enriquecimento psico-intelectual. A razo muitosimples: ao comear a ser internalizada, a nova funo ir interagir com outrasj existentes na mente da criana. No se trata, pois, de camadas superpostas ou

    algo parecido, e sim de uma coordenao entre a nova funo e outras jexistentes.Essa lei gentica do desenvolvimento cultural da criana orientou grande partedos trabalhos da linha scio-histrica. O fato de ter descoberto que essapassagem do plano externo para o plano interno e mediatizada por um sistema derepresentaes levou Vygotsky a se preocupar com o papel do discurso nesseprocesso (Wertsch 1988, p.79).Prosseguindo com os seus experimentos concluiu que a internalizao tambmocorre em relao ao processo de transformao da linguagem egocntrica em falainterior. Esse fenmeno pde ser observado de perto em muitas das situaes quecriou. Por exemplo: ao solicitar criana que fizesse determinada tarefa e, emseguida, introduzir obstculos sua realizao, percebeu que quanto maisdificuldade ela sentia para realiz-la, maior era a ocorrncia da linguagemegocntrica. Diante do obstculo, como se pensasse em voz alta.Da mesma forma como Piaget j observara (id., ibid., p. 43), tambm Vygotskyconstatou que a criana usa a linguagem egocntrica para acompanhar suas aes eliberar suas tenses. No entanto, descobriu que medida que ela vai procurandosolues, a fala sofre um deslocamento, passando a ser usada para ajudar noprprio planejamento dessas solues. Se antes a fala seguia a ao, agora ela aantecede. E a fala quem origina a funo intelectual, reguladora da condutainfantil. Com o passar dos anos, a criana vai deixando de usar a falaegocntrica, em favor da "fala interior silenciosa

    29 Pg

    Abordando essa questo, Luria (1987, p. 111) afirma que essa conserva as funesanalticas, planificadoras, reguladoras que no incio eram inerentes linguagemdo adulto". O que antes era interpsicolgico transforma-se em intrapsicolgico.

  • 7/26/2019 Vygotsky - Aplicaes de Vygotsky a Educao Matemtica

    13/86

    Em virtude do recorte deste estudo, interessa-me particularmente enfatizarcertos aspectos decorrentes desse processo de intemalizao, aspectosinvestigados tanto por Vygotsky quanto por seus seguidores. Um deles dizrespeito ao componente afetivo que permeia esse processo.Embora s tangencialmente se observe nos escritos de Vygotsky uma abordagemdesse aspecto, Leontiev (1989, p. 32) assegura que os seus ltimos esforosforam dedicados elaborao de um livro que ele no conseguiu terminar: A

    psicologia do afeto. E o prprio Leontiev quem afirma que por trs do processode internalizao h um motivo que emana do campo afetivo. Ou seja, oaparecimento das relaes cognitivas necessrias realizao daquele processo forado pelos estados emocionais e pelas necessidades afetivas do sujeito.H, no cotidiano, inmeras situaes que ilustram esse processo deinternalizao. Fiquemos como dois exemplos: um, extrado da vida domstica;outro, da escola (um orfanato).A criana, ao comear a falar, emite os mais diferentes sons. Quando os adultosque convivem com elas reconhecem alguns deles como uma "palavra" do idiomafalado por eles, cercam-na de agrados. Apalavra , ento, repetida por eles, quefazem de tudo para que a criana volte a repeti-la. A cada nova coincidncia dosom emitido pela criana com aquilo que se espera que ela diga, novos agrados

    so feitos. Creio ser desnecessrio me alongar na descrio desse processo. Oresultado bastante conhecido: em pouco tempo ela estar utilizando a palavrano sentido atribudo por esses adultos.

    30 Pg

    Como na situao do gesto de pegar, aquilo que foi feito com uma inteno (nocaso da criana talvez seja apenas uma explorao da sua capacidade de emitirsons) foi interpretado pelos adultos como sendo uma inteno de fala. Foram elesque reconheceram a palavra; eles que lhe atriburam um significado. , portanto,sociocultural a sua origem. Isso vlido tanto para o processo como se deu essaaprendizagem - na interao social - quanto para o significado atribudo palavra culturalmente determinado.

    Alm do aspecto cognitivo, percebe-se nesse processo um forte apelo afetivo.Deve causar prazer criana, a reao dos adultos. Pode-se, portanto, inferirque o desejo de ser novamente agradada que a leva no s a repetir aquelapalavra, mas, sobretudo, a comear a estabelecer a relao entre o significantee o seu significado. Esse um processo mental, iniciado na relaointerpessoal. Podemos dizer que a passagem do plano externo para ointrapsicolgico se deu mediante uma motivao de cunho afetivo.Isso significa dizer que no processo de internalizao os aspectos cognitivo eafetivo mostram-se intimamente entrelaados.Em pesquisa anterior (Moyss 1982), pude constatar a veracidade dessaafirmativa. Estava interessada em investigar a mudana de auto-estima emcrianas que viviam em orfanatos. Utilizava um referencial terico baseado napsicologia humanstica e a pesquisa era experimental. Esse modelo previa, almdo grupo de controle, dois grupos experimentais. Os resultados apontaram que emum deles, a auto-estima dos participantes foi bastante aumentada, enquanto nooutro se manteve inalterada.Todas as crianas da pesquisa tinham em comum o fato de ter vivido experinciasde abandono ou de afastamento forado dos seus pais (ou substitutos). Criadas emum ambiente marcado por opresso, humilhao e despersonalizao, novasexperincias de infortnio iam se somando s suas histrias de vida medida queo tempo passava.Alm disso, no se pode ignorar que a prpria vida institucional concorre para"naturalizar" o fato de se tratar a criana interna como algum destitudo devalor.

    31 Pg

    Desta forma, aquelas crianas somavam s suas prprias experincias negativas,

  • 7/26/2019 Vygotsky - Aplicaes de Vygotsky a Educao Matemtica

    14/86

    as que percebiam no coletivo. As reaes que seus comportamentos geravam nosadultos que as cercavam eram, via de regra, de desaprovao, quando no deridicularizao. Desconhecendo outro tipo de relaes interpessoais, foi esse otipo que elas acabaram internalizando. Aprenderam a se ver como pessoasdestitudas de valor e de importncia. Caracterizavam-se por ter um baixo nvelde auto-estima. E essa se mostrava menor, quanto maior o tempo em que a crianaestava submetida a esse tipo de experincia. Em sntese, um processo que teve

    seu incio nas relaes interpessoais - interpsicolgico, portanto - transforma-se em um outro intrapsicolgico. ainda aquela mesma lei gentica dodesenvolvimento cultural da criana que explica um outro conceito da teoriascio-histrica, bsico para a educao: a zona de desenvolvimento proximal.Zona de desenvolvimento proximalAo contrrio do conceito de mediao, esse teve um aparecimento tardio na obrade Vygotsky (1933). Ele surgiu em decorrncia do seu interesse pelas leis dodesenvolvimento e do processo de ensino-aprendizagem (Valsiner e Veer 1991).Criticando o pensamento psicolgico de ento, entendia que no era suficientedescrever os processos de desenvolvimento das funes psquicas superiores combase nas conquistas j efetuadas. Sustentava - e obstinadamente perseguia - aidia de que o importante era procurar compreender a construo fritura da

    estrutura de tais funes.Segundo Valsiner e Veer (1991, p. 11), o conceito de zona de desenvolvimentoproximal foi se plasmando em pelo menos trs contextos diferentes. O primeiro,ligado aos estudos de Vygotsky sobre diagnsticos do desenvolvimento infantilbaseado no uso de testes. Nesse contexto, relaciona a zona de desenvolvimentoproximal diferena do escore obtido quando a criana desempenha uma tarefasozinha e quando a desempenha assistida por algum adulto ou mesmo por outracriana mais adiantada, que

    32 Pg

    a orienta. O segundo surge em decorrncia das suas preocupaes com a questo doensino/aprendizagem. Embora muito ligado ao primeiro, j no enfatiza a questo

    quantitativa. Fala apenas de uma "diferena geral" na capacidade da crianarelacionada s situaes nas quais ela socialmente assistida e naquelas em queela atua sozinha. E o terceiro contexto no qual ele passa a trabalhar esseconceito o do jogo.No jogo a criana est sempre mais alm do que a sua mdia de idade, mais almdo que seu comportamento cotidiano; [...] O jogo contm, de uma formacondensada, como se estivesse sob o foco de uma lente poderosa, todas astendncias do desenvolvimento; a criana, no jogo, como se se esforasse pararealizar um salto acima do nvel do seu comportamento habitual. (Vygotsky,apud/Valsinere Veer, 1991, p. 12)Dado que o meu interesse particularmente para a questo do ensinoaprendizagem, para esse enfoque que me volto ao analisar o conceito de zona dedesenvolvimento proximal. E o fao enfatizando suas possveis aplicaes(Vygotsky 1984; Vygotsky et ai. 1988).Qualquer pessoa que tenha experincia com educao de crianas pequenas jdever ter constatado que existe uma relao entre um determinado nvel dedesenvolvimento e a capacidade potencial para aprender certas coisas. Isso inegvel. H, no entanto, certas peculiaridades nessa questo que mereceram deVygotsky e seus colaboradores uma ateno especial.Um dos seus pontos de partida foi a observao de que as escolas de ensinofundamental esperavam que a criana estivesse "pronta", para ento comear a lheensinar determinados contedos escolares (como leitura e escrita, por exemplo).Segundo observou, testes realizados com duas crianas para medir seudesenvolvimento cognitivo, que num determinado momento apresentavam resultadosidnticos, pouco tempo depois j evidenciavam resultados

    33 Pg

  • 7/26/2019 Vygotsky - Aplicaes de Vygotsky a Educao Matemtica

    15/86

    diferentes. Ou seja, o desenvolvimento cognitivo de cada uma evoluadiferentemente. Parecia haver a uma clara indicao de que, para aquela queapresentou resultados mais elevados pouco tempo depois, havia processos queestavam em desenvolvimento na ocasio da testagem. Porque os testes s captavamprocessos j amadurecidos; aqueles que existiam potencialmente ficavam de fora.Embora semelhantes quanto aos resultados, o desenvolvimento mental de umacriana e o da outra eram diferentes, na realidade.

    As investigaes de Vygotsky e as de seus colaboradores tambm os levaram aperceber que aquilo que uma criana no capaz de fazer sozinha poderdesempenh-lo com a ajuda de um adulto (ou de algum mais adiantado do que ela).Perguntas-guia, exemplos e demonstraes constituem o cerne dessa ajuda. Aaprendizagem mediante demonstraes pressupe imitao. Trata-se, porm, de umconceito amplo, que implica imitao de um modelo dado socialmente no nosentido de copi-lo exatamente, mas algo que envolve uma experimentaoconstrutiva. Ou seja, a criana realiza aes semelhantes do modelo de umaforma construtiva, imprimindo-lhe modificaes. Disso resulta uma nova forma,embora no exatamente igual, mas inspirada no modelo. Desse processo resulta ainternalizao da compreenso do modelo.Mais uma vez fica patente a importncia que a idia da internalizao ocupa no

    pensamento de Vygotsky. Ele a concebia como o esquema de regulao geral nodesenvolvimento das funes psicolgicas superiores (Vygotsky 1987, p. 116).Baseado em seus estudos sobre a zona de desenvolvimento proximal, Vygotsky fazuma proposta para a situao de ensino/aprendizagem que reverte cabalmente aconcepo ento vigente. Diz ele: "O bom ensino aquele que se adianta aodesenvolvimento" (Vygotsky et a. 1988, p. 114; Vygotsky 1984, p. 101). Criandozonas de desenvolvimento proximal, o professor estaria forando o aparecimentode funes ainda no completamente desenvolvidas.a aprendizagem no , em si mesma, desenvolvimento, mas uma correta organizaoda aprendizagem da criana conduz ao desenvolvimento

    34 Pg

    mental, ativa todo um grupo de processos de desenvolvimento, e esta ativao nopoderia produzir-se sem a aprendizagem. Por isso a aprendizagem um momentointrinsecamente necessrio e universal para que se desenvolvam na criana essascaractersticas humanas no-naturais, mas formadas historicamente. (Vygotsky etai. 1988, p. 115)Essa afirmativa complementada com a idia de que as matrias escolares socapazes de orientar e estimular o desenvolvimento das funes psquicassuperiores, uma vez que se ligam ao sistema nervoso central.Dentre as aplicaes do conceito de zona de desenvolvimento proximal feitas peloprprio Vygotsky, destaca-se a da formao de conceitos.Formao de conceitosA questo da formao de conceitos insere-se nos trabalhos de Vygotsky e seuscolaboradores (notadamente Luria) como uma extenso das suas prprias pesquisassobre o processo de internalizao.As principais concluses a que chegou emanaram do confronto que estabeleceuentre o desenvolvimento dos conceitos espontneos e cientficos. Considerou osprimeiros como sendo aqueles que a criana aprende no seu dia-a-dia, nascidos docontato que ela possa ter tido com determinados objetos, fatos, fenmenos etc.,dos quais ela no tem sequer conscincia. E os ltimos, como sendo aquelessistematizados e transmitidos intencionalmente, em geral, segundo umametodologia especfica. So, por excelncia, os conceitos que se aprendem nasituao escolar.Por trs de qualquer conceito cientfico existe sempre um sistema hierarquizadodo qual ele faz parte. A principal tarefa do professor ao transmitir ou ajudar o

    aluno a construir esse tipo de conceito a de lev-lo a estabelecer um enlaceindireto com o objeto por meio das abstraes em torno das suas propriedades eda compreenso das relaes que ele mantm com um conhecimento mais amplo. Ao

  • 7/26/2019 Vygotsky - Aplicaes de Vygotsky a Educao Matemtica

    16/86

    contrrio do espontneo, o conceito cientfico s se elabora intencionalmente,isto , pressupe uma

    35 Pg

    relao consciente e consentida entre o sujeito e o objeto do conhecimento.Dirigida pelo uso da palavra, a formao de conceito cientfico uma operao

    mental que exige que se centre ativamente a ateno sobre o assunto, deleabstraindo os aspectos que so fundamentais e inibindo os secundrios, e que sechegue a generalizaes mais amplas mediante uma sntese (Vygotsky 1987, p. 70).Ao mesmo tempo em que faz esse processo de anlise e sntese, de abstrao einibio de certos traos e caractersticas, a pessoa tambm deve caminhar doparticular para o geral e desse para o particular.Nossa investigao mostrou que um conceito se forma no pela interao deassociaes, mas mediante uma operao intelectual em que todas as funesmentais elementares participam de uma combinao especfica. [...] Quando seexamina o processo de formao em toda a sua complexidade, este surge como ummovimento do pensamento, dentro da pirmide de conceitos, constantementeoscilando entre duas direes, do particular para o geral e do geral para o

    particular. (Vygotsky 1987, p. 70)A situao escolar , por excelncia, propcia aquisio desse tipo deconceito. Segundo Vygotsky (op. cit.),o fato de uma criana conseguir darexplicaes convincentes sobre questes relacionadas s cincias sociais, porexemplo, mesmo usando palavras cujos significados lhe eram, at ento,desconhecidos, deve-se principalmente ao do professor. Ao contrrio doconhecimento espontneo, o que se aprende na escola ou deveria ser -hierarquicamente sistematizado. Sua apreenso exige que seja intencionalmentetrabalhado num processo de interao professor/aluno. Ou seja, implicareconstruo do saber mediante estratgias adequadas, nas quais o professor atuecomo mediador entre o aluno e o objeto de conhecimento: "[...] o professor,trabalhando com o aluno, explicou, deu informaes, questionou, corrigiu o alunoe o fez explicar" (id., ibid., p. 98).

    36 Pg

    Com essas palavras Vygotsky resumiu o que seria a essncia de um ensino voltadopara a compreenso. Destacando uma a uma as expresses, tem-se:a) "trabalhando com o aluno". A preposio com j revela uma atitude deinterao. Trabalham professor e aluno. E o que esse trabalho? O autorprossegue discriminando inicialmente o trabalho do professor.b) "explicou" e "deu informaes". Explicar muito mais do que fazer umamera exposio. buscar na estrutura cognitiva dos alunos as idias relevantesque serviro como ponto de partida para o que se quer ensinar. E caminhar combase nessas idias, ampliando os esquemas mentais j existentes, modificando-osou substituindo-os por outros mais slidos e abrangentes. Nesta tarefadesempenham papel fundamental a exemplificao e o enriquecimento do que estsendo explicado com um nmero suficiente de informaes.c) "questionou e corrigiu o aluno", isto , procurou verificar se a sua falahavia sido compreendida e, diante de possveis erros, vai corrigindo-os. como se v, um processo dinmico, construdo passo a passo pelos alunos emestreita interao com o professor. Vale salientar que em termos cognitivos oquestionamento e a correo, por parte de quem ensina, desempenham um relevantepapel na aprendizagem. Conhecendo a zona de desenvolvimento proximal do aluno, oprofessor bem preparado saber fazer as perguntas que iro provocar odesequilbrio na sua estrutura cognitiva fazendo-a avanar no sentido de umanova e mais elaborada reestruturao.

    Completando a ao de questionar est a de corrigir, que no se resume, emabsoluto, na simples indicao do erro e na sua conseqente substituio pelaresposta correta. Como apontam o prprio Vygotsky (1984) e Luria (1987), no

  • 7/26/2019 Vygotsky - Aplicaes de Vygotsky a Educao Matemtica

    17/86

    processo de aprendizagens conceituais a capacidade de isolar e abstrair defundamental importncia. Para se chegar

    37 Pg

    a esses processos mentais faz-se necessrio inibir as idias secundrias eparticulares, enfatizando apenas o que essencial.

    d) "... e o fez explicar". Talvez resida aqui o ponto alto de todo oprocesso. Ele , em essncia, o prprio mecanismo de internalizao se fazendopresente. Ao pedir que o aluno explique, o professor pode detectar se esthavendo, no plano intrapsicolgico, uma reestruturao das relaes queocorreram no mbito interpsicolgico. Para isso necessrio que esse alunoconsiga expor com suas prprias palavras o assunto tratado, deixando perceberpossveis relaes com outros temas; que exemplifique com dados tirados do seucotidiano; que faa generalizaes etc.Por meio de experimentos cientficos, Vygotsky chegou concluso de que odomnio de um nvel mais elevado na esfera dos conceitos cientficos eleva, porsua vez, o nvel dos conceitos espontneos. H como um movimento no qual oscientficos descem na direo da realidade concreta e os espontneos sobem

    buscando a sistematizao, a abstrao e a generalizao mais ampla. Encontrouevidncias de que o atingimento e o controle de conceitos cientficos implicam areconstruo, seguindo os mesmos moldes, dos conceitos espontneos.A forma metdica e intencional como os conceitos cientficos so- ou deveriam ser - trabalhados na escola abre caminho para a reviso e a melhorcompreenso dos conceitos espontneos que cada aluno traz dentro de si. Assim,refletindo o cotidiano de sua classe social, o aluno leva para a escola, sob aforma de conceitos espontneos, certos conhecimentos e valores, dos quais vaiadquirindo progressiva conscincia atravs desse movimento.Esse processo de relacionar o conceito espontneo que o aluno traz com oconceito cientfico que se quer que ele aprenda exige de quem ensina umacompreenso dos diferentes significados que os conceitos -tanto os espontneosquanto os cientficos - tm para o aluno. Exige, tambm, que o docente perceba

    quais so os seus contextos, quais so os sentidos nos quais eles esto sendoempregados.

    38 Pg

    Significado e sentidoSignificado e sentido foram conceitos introduzidos por Vygotsky (1987) ao tratardas relaes entre linguagem e pensamento. Posteriormente, Luria (1979d, 1987)trouxe maiores esclarecimentos, apoiado em estudos lingsticos mais recentes. ele quem chama a ateno para o fato de ser o significado um sistema de relaesformado objetivamente durante o processo histrico, e que se encontra contido napalavra (id., 1987, p. 45).Ao assimilar o significado de uma palavra o homem est dominando a experinciasocial. No entanto, essa depende da individualidade de cada um. essaindividualidade que faz com que uma mesma palavra conserve, ao mesmo tempo, umsignificado - desenvolvido historicamente - compartilhado por diferentes pessoase um sentido todo prprio e pessoal para cada um.O sentido de uma palavra depende da forma com que est sendo empregada, isto ,do contexto em que ela surge. O seu significado, no entanto, permanecerelativamente estvel. formado por enlaces que foram sendo associados palavra ao longo do tempo, o que faz com que se considere o significado umsistema estvel de generalizaes, compartilhado por diferentes pessoas, emboracom nveis de profundidade e amplitude diferentes.

    Na vida cotidiana, tanto quanto na escolar, percebe-se com clareza os diferentesnveis de profundidade e de amplitude que os significados passam a ter para a

  • 7/26/2019 Vygotsky - Aplicaes de Vygotsky a Educao Matemtica

    18/86

    criana. Vejamos alguns exemplos.Em casa a criana habitua-se desde pequena a vestir roupa. Se no incio "roupa"se refere a umas poucas peas de vesturio, com o passar do tempo passa aabarcar peas antes nunca vistas. Assim, graas possibilidade de generalizaoque oferece a palavra, a criana ao se defrontar, por exemplo, com um espartilhoou uma angua de babados, ainda que seja pela primeira vez, provavelmente lhesatribuir o significado de "roupa".

    39 Pg

    Essa mesma palavra, no entanto, poder ser utilizada em diferentes sentidos. Ajovem de classe mdia-alta quando reclama que "no tem roupa para ir festa"quer dizer algo muito diferente do pobre que diz que "no tem roupa paravestir"; a lavadeira que diz que "ainda no entregou a roupa da semana" estpensando em algo muito diferente da madame que afirma: "vi logo que era gentefina pela roupa". Entretanto, o significado da palavra "roupa" continuainalterado.Ao enfatizar que "dependendo do contexto uma palavra pode significar mais, oumenos, do que significaria se considerada isoladamente: mais, porque adquire um

    novo contedo; menos, porque o contexto limita e restringe o seu significado",Vygotsky (op. cit., p. 125) traz uma significativa contribuio para acompreenso de certos problemas pedaggicos.Assim, por exemplo, o fato de o aluno no compartilhar do mesmo nvel deprofundidade e amplitude de um conceito com um interlocutor- seja ele o professor ou o autor de um texto que ele esteja lendo -pode gerardesentendimentos. Se o significado que ele atribui a uma palavra muito maisestreito e superficial do que o que lhe atribui aquele com quem fala, a suacomunicao ser, provavelmente, prejudicada. Se alm de haver diferentes nveispara o significado, tambm o sentido que ambos atribuem a essa palavra fordiferente, estaro, provavelmente, estabelecendo um "dilogo de surdos".A falta de entendimento ocorrida por questes ligadas ao conhecimento dossignificados e dos sentidos das palavras , provavelmente, mais freqente nas

    escolas do que se possa pensar. Ilustra tal afirmao o seguinte episdio: umpesquisador, entrevistando uma dada populao, faz a seguinte pergunta: "Vocacha que so usados adjetivos demais nos programas de rdio?" O resultado:"sim", 5%; "no", 5%; "o que quer dizer adjetivos?", 90% (Figueiredo 1993, p.13). fonte de dificuldade permanente para qualquer professor conhecer o alcance dossignificados e sentidos atribudos pelos alunos s suas palavras. Alm disso, osprprios livros didticos incumbem-se de promover confuso conceitual. Umexemplo dos mais comuns se encontra

    40 Pg

    nos livros de cincias para o ensino fundamental. Muitas vezes, ao abordar asmudanas de estado da matria, referem-se, via de regra, gua. O significadode "matria" passa a ser o da "gua".s vezes nem mesmo o prprio professor escapa desse tipo de problema. Branco(1991) relata o caso de professores de cincias que, apesar de ensinar aosalunos a lei da gravidade - sabendo, portanto, defini-la - ao ser solicitados afazer um desenho da Terra com uma figura humana andando no Plo Norte e outra noPlo Sul, fazem ambas com a cabea para cima.Pode, tambm, em determinadas situaes, acontecer de o aluno ser capaz depensar sobre um determinado assunto, mas no conseguir express-lo corretamentepor meio de palavras. Lembra Vygotsky (op. cit., p. 129) que "exatamente porqueum pensamento no tem um equivalente imediato em palavras, a transio dopensamento para a palavra passa pelo significado. [...] A comunicao s pode

    ocorrer de forma indireta".Em resumo, o compartilhar dos significados fundamental para que hajacompreenso nas relaes interpessoais. A possibilidade de haver equvocos,

  • 7/26/2019 Vygotsky - Aplicaes de Vygotsky a Educao Matemtica

    19/86

    distores e inmeros outros problemas ligados a essa questo algo para o qualo professor deveria estar permanentemente atento.Aspectos tericos complementaresAlm dos temas centrais at aqui apresentados, h ainda, no enfoque scio-histrico da psicologia, outros bastante interessantes para uma melhorcompreenso do processo de ensino/aprendizagem. A criatividade e o papel dasdisciplinas escolares para o desenvolvimento cognitivo so alguns deles. Tambm

    a abordagem de Leontiev sobre a questo da atividade e da conscinciacomplementa algumas contribuies de Vygotsky sobre aquele processo. Soma-se aesses o tema da atividade compartilhada ou grupal, uma das tendncias maisatuais no campo de estudos sobre zona de desenvolvimento proximal.

    41 Pg

    CriatividadeNa escola, muitas vezes a criatividade logo associada expresso artstica.Vygotsky (1990), no entanto, em um trabalho escrito em 1930, intitulado"Imaginao e criatividade na infncia", a enfoca sob um outro ponto de vista.Nele, o autor destri dois mitos: o de que a imaginao criativa seja privilgio

    de uns poucos (os grandes inventores, os gnios), e o de que ela seja maisdesenvolvida na criana do que no adulto.Partindo do confronto entre atividade reprodutiva e atividade criativa (a quetambm denomina "combinatria"), chama a ateno para o fato de ser a primeirafundamental para a vida cotidiana do homem. O crebro armazena e reproduz suasexperincias anteriores. Utilizando-as, ele capaz de se adaptar ao mundo suavolta, sem que seja necessrio despender grande esforo. No entanto, essa nolhe til quando se trata de lidar com algo novo, com o inusitado. Nessa hora, preciso lanar mo da combinao criativa de elementos j existentes nocrebro, de forma a se adaptar nova situao. Surge, assim, a atividadecriativa.Sustenta, ento, que se essa fruto da atividade do sujeito, todos a tm. Elase manifesta onde quer que a imaginao humana combine, mude e crie algo novo.

    Mais do que nunca Vygotsky imprime a marca do materialismo ao negar que aimaginao e a fantasia nasam do nada. Ao contrrio, tudo emana da realidade.Analisando o processo de formao da imaginao criativa, Vygotsky ressalta suacomplexidade. Ela no , ao contrrio do que muitos acreditam, algo que surgecomo num lampejo, como uma luz que se acende no crebro. O seu mecanismo deformao bastante complexo. Pressupondo que toda atividade criativa surge deexperincias prvias j existentes no crebro, fruto de percepes internas eexternas, assinala os seguintes passos para sua efetivao:l) reorganizao do material j existente no crebro, com conseqentedissociao e associao das impresses sensonais. (Lembra que toda impresso experienciada como um todo complexo, composto por numerosas partes);

    42 Pg

    2) diviso das impresses em diferentes partes, das quais umas sero retidasna mente e outras deixadas de lado;3) alterao ou distoro das partes retidas. (Este processo baseia-se nasdinmicas das nossas excitaes nervosas internas e coordenao de imagens);4) unio ou associao dos elementos que foram dissociados e alterados. (Istopode se dar sob diferentes formas, como, por exemplo, a unio de imagenssubjetivas com objetivas, proveniente do conhecimento cientfico);5) combinao de diferentes formas em um sistema, constituindo um quadrocomplexo.Lembra ainda que a atividade de imaginao criativa se completa pelacristalizao da imagem em uma forma externa.

    Analisada nos seus detalhes, ganha consistncia a sua afirmao segundo a qualtodos ns temos capacidade para elaborar atividades criativas.H, a esse respeito, um ponto que ele ressalta e que eu considero da maior

  • 7/26/2019 Vygotsky - Aplicaes de Vygotsky a Educao Matemtica

    20/86

    importncia para a compreenso da necessidade que hoje temos de levar os nossosalunos a desenvolver a capacidade de enfrentar o novo, o desconhecido. Pode serassim resumido: a atividade criativa da imaginao depende primariamente de quorica e variada a experincia prvia que a pessoa armazenou no seu crebro. Emais: que ela uma funo vitalmente necessria.Vale lembrar que este um aspecto para o qual muitos educadores ligados questo do currculo j apontaram: a importncia de se enriquec-lo, ao invs de

    se limit-lo.Sobre o mito segundo o qual a imaginao criativa da criana mais rica e maisvariada do que a do adulto, Vygotsky tambm traz uma abordagem original. Seuponto de partida era justamente o que acabou de ser afirmado, ou seja, o fato deque a riqueza da imaginao est estreitamente relacionada com a quantidade e avariedade de conhecimentos adquiridos, bem como as impresses vivenciadas pelapessoa. A partir da concluiu que essas so maiores nos adultos que nascrianas. De fato, os

    43 Pg

    interesses das crianas costumam ser mais simples, mais elementares equalitativamente mais pobres do que os dos adultos. Alm disso, sua relao como mundo carece da complexidade e da diversidade que a distinguem do adulto e queso to importantes no trabalho de imaginao.Ainda nesse mesmo artigo, e afirmando ter se baseado em um estudo de Ribot sobrea imaginao criativa (no-referenciado), Vygotsky enfatiza que no processo dedesenvolvimento humano a imaginao tambm se desenvolve, encontrando o seuponto mximo no adulto. Justifica, assim, o fato de s se encontrar uma realimaginao em todas as reas da atividade criativa na fantasia j amadurecida doadulto. E para aqueles que sustentam o contrrio, afirma que a criana apenasparece ser mais criativa. De fato, ela confia muito mais nos produtos das suas

    fantasias e tem muito menos controle sobre elas. Alm disso, apela muito maispara o componente emocional do que para o cognitivo, ao contrrio da imaginaodo adulto.H aqui, portanto, duas idias que deveriam ser levadas em conta peloseducadores, mormente os responsveis pela elaborao das propostas curriculares:a de que imaginao criativa passvel de desenvolvimento e a de que guardaestreita relao com a riqueza de experincias e conhecimentos previamenteadquiridos pela pessoa.Contedos escolares e desenvolvimento cognitivoVygotsky abordou brevemente esta questo ao tratar das relaes entreaprendizagem e desenvolvimento. Posteriormente, alguns de seus seguidoresrealizaram investigaes procurando analisar especificamente essas relaes.Foram feitos estudos sobre as mais diferentes disciplinas escolares. Uma dasconcluses a que se chegou a de que "o processo de aprendizagem muda no s oque se pensa conscientemente, mas tambm os modos como se produz essa reflexo"(Bogayavlensky e Menchinskaya 1991, p. 46).8 Dito de outra forma, o que se estafirmando que o

    44 Pg

    conhecimento que o aluno adquire no s amplia sua conscincia, como tambmmodifica seu prprio modo de pensar.Embora no haja nisso nenhuma novidade, aqueles e outros estudos (Petrovski1980) pontuaram alguns aspectos bastante relevantes. Alguns deles dizem respeito

    diretamente ao ensino da matemtica. Outros so mais gerais. O primeiro trata daquesto da especificidade do conhecimento. E inegvel que h conhecimentos quepermitem desenvolver mais do que outros certas funes cognitivas superiores.

  • 7/26/2019 Vygotsky - Aplicaes de Vygotsky a Educao Matemtica

    21/86

    o caso, por exemplo, daqueles que so logicamente mais concatenados, quepermitem passagens claras do concreto para o abstrato, do particular para ogeral. Tambm a possibilidade de revelar significados facilmente apreensveispelos alunos faz com que certos conhecimentos sejam mais capazes de levar queledesenvolvimento do que outros. Como contedo e mtodo esto intrinsecamenterelacionados, O mesmo se pode dizer dos mtodos. As pesquisas evidenciaram queaqueles mtodos que mais favorecem o desenvolvimento mental so os que levam o

    aluno a pensar, que o desafiam a ir sempre mais alm. So, sobretudo, aquelesque o levam a comear um processo por meio de aes externas, socialmentecompartilhadas, aes que iro, mediante o processo de internalizaO,transformando-se em aes mentais. Isso vem confirmar os estudos de Vygotskysobre a zona de desenvolvimento proximal.Um aspecto importante a destacar o papel que nesse processo desempenha oelemento sensorial. Ele importante como ponto de partida. Contudo, para que sechegue ao pleno desenvolvimento das funes psquicas preciso que ele sejasempre ultrapassado, levando o aluno para patamares mais elevados, maisabstratos e gerais.Vale dizer que preciso que o professor esteja alerta ao uso do materialfigurativo-concreto. Auxiliar importante sua utilizao deve ser seguida de

    processos que levem a abstraes e a amplas generalizaes. Isso implica sepassar das formas figurativo-concretas do pensamento para o pensamento lgicoconceitual. Nesse caminhar de capital importncia o trabalho com a questo dosentido e dos significados dos contedos

    45 Pg

    a ser aprendidos. Ou seja, o material figurativo deve remeter a conceituaesabstratas e no se esgotar em si mesmo. No raro encontramos equvocos a esserespeito: supe-se que o bom ensino aquele que trabalha com a imagem, comelementos concretos, independente da forma como estes so trabalhados.A questo da interao entre imagem e palavra na atividade mental das crianas,em especial na assimilao das noes escolares, tema recorrente entre os

    pesquisadores alinhados com essa corrente. Foram o ponto de partida os trabalhosde Vygotsky (1984) e de Luria (1979d; 1990) sobre a relao entre linguagem epercepo. A esses seguiram-se muitos outros, dentre os quais destaco, por suapertinncia para a situao escolar, uma pesquisa realizada por Zankov (1991).Desenvolvida com alunos das classes elementares, teve por objetivo investigar ainterao de estmulos verbais e visuais na aprendizagem. Consistiu em submetercada um, dentre quatro grupos experimentais, a um tipo de estratgia quecombinava essas duas variedades de estmulos. Chegou concluso de que o quepropiciou melhores resultados de aprendizagem foi aquele na qual o objeto ouelemento figurativo estimulou o aluno a pensar. Isso se deu da seguinte forma:as palavras do professor orientavam a observao do aluno para os aspectosperceptuais de um dado objeto. Posteriormente, o prprio aluno, baseado em suasobservaes, deveria deduzir as propriedades e as relaes nele existentes. Aoutra forma que contrastava com essa consistia no seguinte: o professor, pormeio de exposio verbal, dava informaes aos alunos sobre aspectos perceptuaisdo objeto, suas propriedades e suas relaes diretamente observveis. Aocontrrio do anterior, s ento que apresentava os meios visuais. Estesserviam apenas para consolidar ou concretizar sua exposio verbal.O ensinamento a ser aprendido que o momento de apresentar o material visual-figurativo influi no prprio processo de aprendizagem.

    46 Pg

    Mais do que isso, o prprio papel que o professor atribui a esse recurso

    determina seu grau de utilidade.No exemplo dado, os resultados da aprendizagem no primeiro caso se mostrarambastante superiores porque o objeto foi fundamental para as inferncias feitas a

  • 7/26/2019 Vygotsky - Aplicaes de Vygotsky a Educao Matemtica

    22/86

    seu respeito. A fala do professor ajudou a encaminhar a ateno para os pontosfundamentais, para os aspectos bsicos, sem os quais no se chegaria sinferncias corretas.Preocupado que estava com a situao escolar, tambm Leontiev (1978) trazabordagens que suscitam reflexes interessantes sobre o papel do material visualna aquisio de conhecimento.A esse respeito, ele faz uma distino entre o recurso que permite ao aluno ter

    uma experincia sensria que lhe alarga os horizontes, fazendo-o captar osignificado de um contedo escolar desconhecido, e aquele que lhe permitecompreender a essncia desse contedo. Ilustram o primeiro caso tudo aquilo dereal e de concreto que se mostra aos alunos, todas aquelas situaes eexperincias que lhes permitido vivenciar, tais como: visitas, filmes,desenhos, objetos, modelos etc. inquestionvel o valor de tais recursos comofonte de conhecimento. (No fosse por isso, e no teramos hoje a clareza quetemos sobre os dinossauros, por exemplo).O que realmente merece ser discutido o segundo caso. preciso se ter em menteque para ir alm de uma simples informao, o recurso visual precisa desempenharuma funo psicolgica no processo de aprendizagem. E qual essa funo?Segundo Leontiev (op. cit.), a de ajudar o aluno a captar a essncia do

    fenmeno estudado, uma vez que ele permite inferir as suas leis e as suaspeculiaridades. Assim, ser-lhe- mais fcil conseguir chegar s generalizaes.Os exemplos com que aquele autor ilustra esse ltimo tipo so bastantefamiliares aos professores. Vejamos dois deles.No primeiro, passado durante a Segunda Guerra Mundial, um professor pretendialevar os alunos construo do conceito de nmero. Para isso trouxe um cartazricamente elaborado, no qual cada nmero correspondia a uma figura de umartefato blico (imaginava que assim os

    47 Pg

    estaria motivando para a aprendizagem). Diante de canhes, metralhadoras eavies to bem ilustrados, bvio que a ateno das crianas sequer tangenciou

    a relao pretendida: objetos/nmero. O recurso, ao invs de ajudar, atrapalhoua aprendizagem, desviado que foi do objetivo da aula.Contrape a esse, um outro exemplo. Ele ilustra o que seria uma ajuda real econsistente do material figurativo-concreto para a aprendizagem. Neste caso, oprofessor lanou mo de objetos simples e familiares aos alunos (lpis, canetas,borrachas etc.), utilizando-os, quer concretamente, quer de forma figurada, comoem um cartaz. No exemplo acima sobre o conceito de nmeros ele sugere o uso delpis para se fazer a correspondncia objetos/nmero.Suas concluses levaram-no a afirmar que o lugar e o papel do material visual noprocesso de ensino so determinados pelo tipo de reao que esse materialdesencadeia na estrutura mental do aluno. Para que ele seja, de fato, umpoderoso auxiliar, necessrio que leve o aluno a centrar sua ateno em algumacoisa que esteja alm do prprio material, isto , nas relaes mentais que elesuscita (id., ibid., 1978, p. 158ss).Outro aspecto interessante abordado por aqueles estudos anteriormente referidos(Bogayavlensky e Menchinskaya 1991, p. 50) o que trata do problema daregresso. "Comprovou-se - em alunos que alcanaram determinado nvel deaquisio de noes -, em relao complexidade da matria, uma defasagemtemporal a um nvel inferior, um regresso utilizao de mtodos anteriores depensamento."Significa dizer que o aluno, aps demonstrar a aquisio de uma determinadahabilidade mental, pode regredir a etapas j vencidas, diante de dadassituaes. Vygotsky (1981c, p. 233) e Luria (1992, p. 175) j haviam registradoa presena desse fenmeno quando o indivduo se encontra em uma situao

    difcil, quando tem obstculos a superar. Voltar a contar nos dedos ou a fazeruso de estmulos figurativos-concretos ilustram esse fato. Mas assinalam que aregresso depende basicamente de dois fatores: o desenvolvimento intelectual

  • 7/26/2019 Vygotsky - Aplicaes de Vygotsky a Educao Matemtica

    23/86

    geral e o nvel de domnio dos meios tcnicos. Nos momentos em que as funesmentais em jogo

    48 Pg

    esto em processo de consolidao, comum a presena desse fenmeno. Quandoesto j consolidadas mais difcil sua ocorrncia.

    Lembra Luria que at mesmo a simples mudana de objetivo de uma tarefa leva"inevitavelmente a uma mudana significativa na estrutura dos processospsicolgicos que a levam a termo" (id., ibid., pp. 175-176). Isso quer dizer queimplica uma mudana na organizao cerebral. Ora, quantas vezes na situao deensino/aprendizagem no h ocorrncias desse tipo? Portanto, a constatao deque est havendo uma regresso no desenvolvimento mental deve ser encarada comoinerente ao prprio processo.Atividade e conscinciaNos anos que se seguiram ao florescimento da teoria scio-histrica, Leontievdedicou-se ao estudo da atividade mental e de sua relao com o prpriodesenvolvimento da personalidade. Esses estudos levaram-no a afastar-se daconcepo scio-histrica propriamente dita, e a elaborar uma nova teoria: a

    chamada teoria da atividade (Leontiev 1978, 1989; Wertsch 1981). Dentre os seustemas destaca-se o da relao entre atividade e conscincia, extremamenteesclarecedor de certos problemas que ocorrem no processo de aprendizagem.Ao abordar o referido tema, Leontiev (1978) comea por relatar um clssicoexperimento realizado por V.P. Zinchenko sobre a relao existente entre memriae conscincia. Consistiu esse em comparar o resultado de dois grupos de sujeitossubmetidos a duas tarefas, aparentemente idnticas do ponto de vista externo,mas diferentes do ponto de vista psicolgico.A cada sujeito de ambos os grupos foi dado um cartaz com 15 figuras e o mesmonmero de cartes contendo figuras diferentes, que deveriam ser emparelhadas comas do cartaz. A nica diferena entre os grupos era o critrio deemparelhamento. Enquanto um deveria emparelh-las pela letra inicial dasfiguras, o outro deveria faz-lo

    49 Pg

    procurando algum tipo de relao entre elas, por exemplo, serrote/martelo;livro/culos. primeira vista, o tipo de ateno requerido por ambos os gruposera o mesmo. Seria impossvel realizar a tarefa sem estar atento. Zinchenko,porm, provou que havia uma profunda diferena quanto ao objeto da conscinciaem cada um dos grupo. Para tanto, solicitou aos sujeitos que tentassem selembrar das figuras existentes nos cartes, aps todo o material ter sidorecolhido. Os resultados apontaram que o nmero de figuras lembradas pelossujeitos que emparelharam pela letra inicial foi relativamente insignificantequando comparado com o outro grupo. Essa diferena foi ainda maior quando sepediu para que eles se lembrassem dos pares. Houve mesmo quem no conseguisse selembrar de um nico par. No entanto, os sujeitos do outro grupo, que tiveram deprocurar algum tipo de relao entre as figuras, obtiveram ndices muito altosem ambos os casos (lembrar a figura do carto ou lembrar os pares). O queexplica tal diferena? Leontiev (op. cit.) quem explica que, no primeiro grupo, o Sujeito, aoselecionar o carto de acordo com a letra inicial, v, distingue e seleciona umdado objeto que est no seu campo de ateno, mas, de fato, o objeto da suaconscincia a letra inicial do nome da figura, e no ela prpria. No outrogrupo, o objeto da conscincia do sujeito so as prprias figuras. nelas queele tem de prestar ateno, enquanto procura mentalmente relacion-las. Por issoconsegue record-las com mais facilidade.Quer me parecer incontestvel a importncia dessas concluses para a situao de

    ensino/aprendizagem. Quantas vezes no presenciamos a dissociao entreatividade e conscincia nas nossas salas de aula? Quantas vezes no terresidido nesse processo equivocado de ensinar uma das causas do fracasso

  • 7/26/2019 Vygotsky - Aplicaes de Vygotsky a Educao Matemtica

    24/86

    escolar? Creio que h lies interessantes a se tirar a esse respeito, sendo aprincipal delas a de que atividade e conscincia devem andarjuntas. Isto , quea aprendizagem no pode girar somente em torno de atividades mecnicas, como siacontecer nas nossas escolas.

    50 Pg

    Atividade compartilhadaVygotsky, ao apontar o papel da interao social no desenvolvimento das funesmentais mais elevadas, abriu uma nova perspectiva no estudo da atividade grupal.Se fato que tal temtica tem sido objeto de estudo da psicologia, verdadetambm que ela se volta, na maioria das vezes, para as questes dos processos desocializao e emocionais presentes nos grupos. Mesmo no campo especificamentepedaggico, estudos desse tipo preocupam-se muito mais com problemas deajustamento do que com aqueles de natureza cognitiva.Nos seus escritos, essa interao traduzia-se numa relao entre a criana e oadulto. No entanto, pesquisadores interessados em explorar as suas idiaspassaram a ampli-la de forma a envolver tambm o estudo da atividade

    compartilhada ou atividade grupal. Hoje uma rea em franca expanso (Rubtsov eGuzman 1984/1985; Forman e Cazden 1988; Forman 1989; Rivina 1991; Rubtsov 1989,1991a, 1991b; Schoenfeld 1989; Saxe 1992). preciso ressaltar, no entanto, que entre os pesquisadores soviticos houve umatendncia a prosseguir na linha de pesquisas iniciada por Leontiev com nfasesobre a atividade. Transposta para o mbito pedaggico por Davidov e Elkonin,essa tendncia passou a exercer grande influncia sobre o pensamento pedaggicosovitico. Sob a liderana de Vitaly Rubtsov, vrios pesquisadores que sededicam ao estudo da atividade compartilhada na situao de ensino/aprendizagemse inscrevem nessa tradio.De uma forma geral, os estudos sobre esse tema comportam, principalmente, duaslinhas: a dos que procuram saber de que maneira as formas coletivas deorganizao das atividades de aprendizagem contribuem para o desenvolvimento das

    funes mentais superiores, e a dos que, ao analis-las, se preocupam mais emsaber de que forma elas favorecem aquisio de conhecimento.

    51 Pg

    Em relao primeira delas, Forman e Cazden (1988), pesquisadoras norte-americanas, analisaram tanto atividades nas quais um estudante tutorava o ensinode outro, quanto aquelas nas quais os alunos colaboravam entre si no processo deaprendizagem. Particularmente interessante so as que tratam do tutoramento.Em uma dessas pesquisas, o professor atuava diretamente com um aluno a quem eraproposta a realizao de uma tarefa. Esse, posteriormente, teria de repetir como colega o que o professor fizera com ele. O papel do professor consistia,sobretudo, em fazer perguntas. medida que o aluno ia encontrando as respostas,compreendia a lgica da tarefa. Como conseqncia, ia se libertando da direodo professor. O processo de tutoramento do colega evoluiu desde a simplesdeterminao dos passos a ser seguidos, at a uma atitude mais semelhante queo professor tivera com ele. Nessa e em outras investigaes semelhantes, aquelaspesquisadoras constataram que o fato de ter de expressar o seu prpriopensamento para outras pessoas ajuda o aluno a organiz-lo. Isto , verifica-seum aumento no grau de articulao e de preciso na verbalizao da tarefa quandoele tem de transmiti-la para os colegas (id., ibid., p. 326).Quanto s experincias de atividade compartilhada, h algumas cujos resultadosconfirmam os estudos anteriores da teoria scio-histrica. Tambm nelas foi

    encontrado que a tendncia geral do desenvolvimento infantil caminha do socialpara o individual: uma funo compartilhada por duas pessoas torna-se um modo deorganizao de cada indivduo, no qual a ao interpsquica vai se transformando

  • 7/26/2019 Vygotsky - Aplicaes de Vygotsky a Educao Matemtica

    25/86

    em ao intrapsquica. H ainda, em tais pesquisas, uma concordncia de que aatividade em comum seja uma etapa necessria e um mecanismo interior daatividade individual (Rubtsov 1989, 1991a, 1991b; Rivina 1991).Em outra pesquisa en