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VIVER AS TRINCHEIRAS: APLICAÇÕES E CONSIDERAÇÕES SOBRE O RPG EM SALA DE AULA NO ENSINO DE HISTÓRIA Daniel Aidar da Rosa, Paulo Henrique Scaglia Gallina e Thiago Azevedo Rodrigues de Oliveira Modalidade: Relato de Experiência Resumo: Explorando uma forma alternativa de se estabelecer relacionamentos entre alunos e os conhecimentos escolares, este texto visa demonstrar como os jogos de interpretação de papéis (RPG) podem ser utilizados com o intuito de trabalhar o conteúdo escolar a partir de uma forma interativa e lúdica. A partir das experiências dos autores com estudantes de uma escola privada em São Paulo, expõe-se alguns dos processos engendrados coletivamente por professores- narradores e alunos-jogadores ao lidarem com o tema histórico das Guerras Mundiais. Palavras-chave: Educação, RPG, cooperação, socialização e jogo. Problema A escola contemporânea é, por excelência, o lugar privilegiado dos processos educacionais, considerando a organização do conhecimento em nossa sociedade. Os métodos tradicionais de ensino, fundamentados essencialmente na explanação expositiva de uma autoridade e no silêncio atento dos aprendizes, parecem não dar conta das exigências e responsabilidades que recaem sobre a escola. A dificuldade na relação entre professores e alunos também se dá por um descompasso entre o exterior e o interior da escola. Os alunos são bombardeados por informações e imagens de consumo instantâneo, enquanto o método de ensino exige uma atenção contínua que excede em duração e profundidade os estímulos com os quais eles estão habituados a se relacionar. Ademais, os processos de avaliação acabam por protagonizar a vida escolar, ofuscando as demais atividades que integram a educação, os verdadeiros processos de aprendizagem. Apesar de ser cada vez maior a distância entre os interesses dos alunos e os conteúdos a se aprender no universo escolar, podemos reconhecer que o professor tem liberdade de aplicação do lúdico para trabalhar conteúdos. O RPG surge como uma alternativa viável dentro do panorama pedagógico a partir do momento em que possibilita que se trabalhe ludicamente, inclusive escolares de forma interdisciplinar. O RPG foi escolhido por se tratar de uma ferramenta que se mostra extremamente fértil nas pesquisas até agora desenvolvidas. Oliveira e Dantas resumem muito bem, a partir das pesquisas feitas desde a década de 90, as contribuições que o RPG traz ao aprendizado. Os autores concordam, em maior ou menor grau, que o RPG otimiza a “expressão oral, as técnicas de pesquisa, a

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VIVER AS TRINCHEIRAS: APLICAÇÕES E CONSIDERAÇÕES SOBRE O RPG EM SALA DE AULA NO ENSINO DE HISTÓRIA Daniel Aidar da Rosa, Paulo Henrique Scaglia Gallina e Thiago Azevedo Rodrigues de Oliveira Modalidade: Relato de Experiência Resumo: Explorando uma forma alternativa de se estabelecer relacionamentos entre alunos e os conhecimentos escolares, este texto visa demonstrar como os jogos de interpretação de papéis (RPG) podem ser utilizados com o intuito de trabalhar o conteúdo escolar a partir de uma forma interativa e lúdica. A partir das experiências dos autores com estudantes de uma escola privada em São Paulo, expõe-se alguns dos processos engendrados coletivamente por professores-narradores e alunos-jogadores ao lidarem com o tema histórico das Guerras Mundiais. Palavras-chave: Educação, RPG, cooperação, socialização e jogo.

Problema

A escola contemporânea é, por excelência, o lugar privilegiado dos processos educacionais, considerando a organização do conhecimento em nossa sociedade. Os métodos tradicionais de ensino, fundamentados essencialmente na explanação expositiva de uma autoridade e no silêncio atento dos aprendizes, parecem não dar conta das exigências e responsabilidades que recaem sobre a escola.

A dificuldade na relação entre professores e alunos também se dá por um descompasso entre o exterior e o interior da escola. Os alunos são bombardeados por informações e imagens de consumo instantâneo, enquanto o método de ensino exige uma atenção contínua que excede em duração e profundidade os estímulos com os quais eles estão habituados a se relacionar. Ademais, os processos de avaliação acabam por protagonizar a vida escolar, ofuscando as demais atividades que integram a educação, os verdadeiros processos de aprendizagem.

Apesar de ser cada vez maior a distância entre os interesses dos alunos e os conteúdos a se aprender no universo escolar, podemos reconhecer que o professor tem liberdade de aplicação do lúdico para trabalhar conteúdos. O RPG surge como uma alternativa viável dentro do panorama pedagógico a partir do momento em que possibilita que se trabalhe ludicamente, inclusive escolares de forma interdisciplinar.

O RPG foi escolhido por se tratar de uma ferramenta que se mostra extremamente fértil nas pesquisas até agora desenvolvidas. Oliveira e Dantas resumem muito bem, a partir das pesquisas feitas desde a década de 90, as contribuições que o RPG traz ao aprendizado. Os autores concordam, em maior ou menor grau, que o RPG otimiza a “expressão oral, as técnicas de pesquisa, a

produção textual, autocontrole, imaginação, paciência, tolerância e criatividade”, assim como a capacidade de “ouvir, considerar e interagir”1.

Objetivos

Tendo em vista os problemas acima identificados, o principal objetivo de nosso grupo é demonstrar seu potencial educativo. Os jogos permitem uma aproximação afetiva de estudantes aos saberes escolares e o RPG, além de se beneficiar por ser também um jogo, possui aspectos teatrais e socializantes que o tornam um meio privilegiado para o aprendizado.

As experiências que tivemos desde a formação do grupo e as primeiras sessões de jogo, permitiram que testemunhássemos em primeira mão as qualidades e restrições do RPG dentro dos processos educativos. A liberdade que ele fornece aos seus jogadores e aos educadores permite que tanto eles o utilizem como palco de suas fantasias pessoais quanto enquanto momento de aprendizado. Entretanto, saber equilibrar diversão e caráter educacional e manter a concentração dos jogadores é um desafio. Cabe aos mestres-educadores conseguir elaborar métodos que permitam que as aventuras transmitam conhecimentos, entretenham e aprimorem as capacidades sociais dos estudantes-alunos.

Por exemplo, após algumas aventuras, pudemos perceber em muitos alunos uma predisposição à resolução dos conflitos narrativos através da violência. Entendemos que os adolescentes estão rodeados por narrativas no cinema, televisão e eventual literatura focadas na ação física em oposição a outras soluções. Para que pudéssemos criar uma alternativa a este comportamento de predileção à violência em jogos e brincadeiras, produzimos uma aventura em que as saídas violentas fossem menos relevantes do que a interpretação dos personagens e ao relacionamento dos mesmos com uma política construída sobre diálogo e não sobre espadas e armaduras. Trazer narrativamente os jovens para um pensamento humanista, entretanto, pareceu ser um dilema maior do que simplesmente impedir a resolução violenta de conflitos. Era necessário desconstruir o fetiche da violência criado pelas mídias, as mais diversas. Assim optamos por um cenário na primeira batalha da Primeira Guerra Mundial ou, como os europeus a chamam: A Grande Guerra.

Precisávamos, então, mostrar os horrores da guerra e da violência. A Grande Guerra é reconhecida historicamente por ter sido extremamente brutal. Entretanto, imagens, filmes, documentários, livros e jogos sobre ela não são tão comuns se compararmos com a quantidade de material midiático produzido sobre a Segunda Guerra. Era necessário compor o cenário imaginativo do grupo.

Desta forma, além de termos um objetivo geral, supracitado, também estabelecemos objetivos específicos, de acordo com a necessidade que identificamos. Se este objetivo geral visa responder o problema do distanciamento entre alunos e o conteúdo escolar, os objetivos específicos visam atender as demandas identificadas durante as sessões de jogo. Assim, o objetivo particular

1 OLIVEIRA, F. A. de, & DANTAS, R. C. (n.d.). A ( RE ) SIGNIFICAÇÃO DO JOGO : o rpg como

recurso pedagógico. 2008 p.20

deste relatório é demonstrar como buscamos tratar a questão da violência, de suas consequências e problemas enquanto solução de conflitos durante aventuras nas Grande Guerras Mundiais.

Metodologia

O grupo “Interpretar e Aprender” surgiu nos corredores da Universidade de São Paulo por três estudantes de História interessados em integrar diversão e aprendizagem. Nossa primeira experiência ocorreu durante uma Feira do Livro. As classes tinham em média vinte alunos e como éramos três narradores, dividimos os grupos e jogamos uma aventura na sociedade mineradora do século XVIII. Outras aventuras foram realizadas em outros colégios, em eventos similares, ou mesmo em dias letivos comuns. Em todos esses casos fomos três narradores com grupos de 6-8 alunos.

O grupo de alunos que jogou a aventura aqui descrita constituiu-se de maneira diferente: teve seu embrião na vontade de uma mãe de proporcionar uma educação mais abrangente a seus filhos. Estudantes de um colégio privado em São Paulo, os adolescentes tinham aulas particulares de História e, em abril de 2013, os meninos começaram a jogar RPG durante essas aulas. A conexão foi instantânea: os pais perceberam o potencial criativo que o RPG proporciona e os garotos ficaram ávidos por novas aventuras.

O primeiro estímulo veio de uma adaptação da primeira aventura desenvolvida: Um mistério em torno da morte de um escravo e as implicações desse assassinato. Os meninos envolveram-se com seus personagens, entenderam e personificaram os dilemas daquele tempo, e que ainda se fazem presentes hoje. Naquele momento, entretanto, o método pedagógico que depois nosso grupo de pesquisa viria assumir ainda estava sendo experimentado. Foram esses encontros que forjaram e testaram essa metodologia.

Para que os métodos de mediação utilizados em nossas aventuras pudessem ser capazes de expandir os métodos educativos, nós deveríamos estabelecer um critério para desenvolver e planejar nossas sessões de jogo. Esta formulação metodológica culminou em nosso processo criativo, que consiste nos seguintes passos: identificar demanda, pesquisa inicial, análise e produção.

De tal modo, o nosso primeiro passo é sempre descobrir qual o conteúdo escolar que devemos trabalhar. Muitas vezes, estes conteúdos nos são sugeridos tendo em vista o que as crianças aprendem nas escolas; em outras, como é o caso que analisaremos ao longo deste relato, nós é que proporíamos e justificaríamos a utilização de um dado conteúdo.

Posteriormente, passamos à pesquisa incial, buscando identificar elementos para formarmos nossa aventura e entender que mensagens queremos transmitir ao longo da exploração desse conteúdo. As outras etapas também envolvem pesquisas de aprofundamento, mas é neste momento inicial que nós procuramos estabelecer quais são os pontos mais proveitosos de trabalhar.

Depois, inicia-se uma análise do material que coletado, momento em que nos dedicamos a discutir e escolher as melhores formas e conteúdos a se

trabalhar. É aqui que o trabalho individual de cada mestre-educador dá lugar a um trabalho coletivo, onde apontamos e selecionamos as melhores ideias que cada um de nós identificou durante a pesquisa. Finalmente damos início à produção da aventura, que consiste em elaborar um arco narrativo fundamentado nos conteúdos escolares que estamos estudando. Usualmente utilizamos uma narrativa de três atos clássica, com uma introdução, o drama em si e uma conclusão, e, aproveitando os elementos escolhidos na etapa anterior, criamos uma trama para envolver os jogadores-estudantes.

Só então colocamos uma aventura em prática. Quando chegamos aos alunos, entregamos as fichas de personagens, explicamos o contexto da aventura e sobre o que ela trata e então eles preenchem suas fichas. Depois de preenchidas, dividimos os grupos entre os mestres-educadores e, a partir daí, cada um vai narrar uma aventura com seus diferentes jogadores e diferentes personagens. Por conta das diferenças entre participantes e da imensa liberdade que o RPG dá enquanto jogo, não importa o quanto planejamos ou o quanto nós tentamos nos ater a esse planejamento, nenhuma das aventuras experimentadas por cada grupo é igual à outra.

Na maioria das aventuras realizadas por nosso grupo, utilizamos um sistema de regras próprio que se pretende genérico, isto é, que busca ser capaz de emular qualquer cenário, época ou situação. Ao contrário de muitos professores-narradores, que simplificam sistemas já consagrados, optamos por um elaborar um sistema próprio com o intuito de fornecer experiências mais próximas àquelas de jogadores experimentados. O processo de criação de personagens nesse sistema é relativamente rápido e, por conta disso, muitas vezes os próprios jogadores não entendem a profundidade das escolhas que fazem durante este processo de criação2.

No caso da experiência a relatar, nós identificamos a demanda por uma problematização da violência e demos início à busca por materiais para que pudéssemos pesquisar os eventos da Primeira Guerra Mundial. Encontramos uma mini-série produzida pela BBC composta de 3 episódios com duração de uma hora cada chamada Our World War3. Como estávamos em um processo de pesquisa, o intuito era utilizar apenas um dos episódios como inspiração, mas acabamos por assistir todos sem descanso. Estava claro que aquele seria nosso pano de fundo.

Para melhor ambientar os jogadores, dez ao todo, tratamos logo de assistir ao primeiro episódio da série supracitada. Construímos um clima militar em cada detalhe, desde o preparo das fichas, até o estilo narrativo. Durante o processo de explicação do contexto e de elaboração das fichas, os narradores interpretavam sargentos e os jogadores estavam se alistando.

Os personagens criados eram inicialmente cidadãos britânicos comuns. Curiosamente, um dos jogadores criou um negro, e conversamos sobre a pouca diversidade de etnias na Europa do início do século XX e, para não bloquear o processo criativo do jogador, decidimos que o personagem seria de uma ex-

2 Anexo 1: Ficha de jogadores em nosso sistema.

3 GOODISON, Bruce (dir.), Our World War. [mini-série]. Londres, BBC. 2014.

colônia. A campanha de alistamento ultrapassava as barreiras do arquipélago europeu, atingindo todo o império britânico e, portanto, seria mais plausível um negro vindo de fora da Europa.

Com as fichas prontas, sorteamos, aleatoriamente, classes para os personagens: nada mais que patentes de guerra. E preenchemos as fichas com habilidades e equipamentos especiais de cada um. As classes eram: Praça, sapador e mensageiro. O praça é o soldado de mais baixa patente. O mensageiro precisava ser leve, rápido e possuir um ótimo condicionamento físico. O uso do rádio demorou para ser introduzido em pelotões fora dos grandes centros estratégicos e as ordens dos superiores (e mesmo notícias entre companhias) precisavam ser realizadas no boca-a-boca. Por último, o sapador era responsável pela atividade de engenharia militar. Montava e desmontava metralhadoras, armava e desarmava explosivos, tinha contato direto com o engenheiro do batalhão.

Esboço de fundamentação teórica

O conceito de “jogo” utilizado será o explanado por Huizinga em sua obra Homo Ludens. O mais importante autor de filosofia da história da contemporaneidade defende que o jogo é um estado anterior à cultura, “pois esta, mesmo em suas definições menos rigorosas, pressupõe sempre a sociedade humana; mas, os animais não esperaram que os homens os iniciassem na atividade lúdica”4. Além disso, ele afirma:

“o jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da "vida quotidiana"”.5

Já a historiografia brasileira sobre a Primeira Guerra é praticamente inexistente, sendo necessária a conferência de historiadores estrangeiros para tal pesquisa. Como indica Correia, em seu artigo6, podemos considerar três fases da historiografia sobre o tema: a primeira é uma tentativa de desconstruir a centralidade da responsabilidade das principais potências envolvidas, pautada quase exclusivamente em documentos oficiais liberados pelas nações envolvidas. A segunda fase é uma análise basicamente diplomática na qual ensaia-se incluir as dimensões sociais na pesquisa sobre o período. Nos anos 60, a análise social da guerra, pautada no marxismo histórico entra em cena e paralelamente a história das mentalidades ganha força. A partir da década de 70, a terceira geração de historiadores assume uma posição contrária à guerra, vista agora como trágica para vencedores e vencidos. Finalmente, a cultura assume o cerne das questões e os autores olham para a ressignificação simbólica do soldado e do civil.

Resultados Obtidos

Cada um dos dois grupos de jogadores, juntamente com um narrador, formava uma companhia, denominadas Companhia A e Companhia B. A primeira precisava defender uma ponte, assim como os soldados retratados no documentário supracitado, durante a invasão de Mons - a cidade era cercada por diversas pontes sobre o rio que serpenteava ao seu redor. A outra companhia precisava adentrar em território inimigo como batedores e avisar a iminência de um ataque. A cidade de Mons foi escolhida menos pela proximidade do documentário do que pelo fato de ser Belga. Já de início mostramos para os alunos que a chamada “Grande Guerra” não ocorreu apenas em território dos

4 HUIZINGA, J., Homo Ludens.4ºed, São Paulo: Perspectiva, 2000. P. 5

5 Idem, p.24

6 CORREIA, Sílvia Adriana. Cem anos de historiografia da Primeira Guerra Mundial: entre história

transnacional e política nacional. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 15, n. 29, p. 650-673, jul./dez. 2014.

envolvidos, assim como a maioria das guerras que fazem parte do conteúdo escolar.

A aventura era programada em três cenas: a chegada e recebimento da missão, os preparativos, e o ataque alemão. A Batalha de Mons real foi vencida pelos alemães. É considerada uma das primeiras vitórias importantes para a invasão do território francês. No RPG, como sabemos, as histórias não possuem um final pré-programado, por mais que o narrador tenha forte controle sobre e desfecho.

No ensino de história, esse é um tema polêmico entre os educadores. Podemos, afinal, mudar a História? O presente artigo não pretende esgotar essa discussão, mas podemos pensar em alguns tópicos que ajudam a elucidar nossa posição. Os professores mais conservadores defendem que é muito mais trabalhoso redefinir anacronismos ou erros conceituais originários de diversas mídias (jogos eletrônicos, filmes, desenhos, quadrinhos, etc) reproduzidos pelos alunos. De fato, se considerarmos a História um encadeamento de fatos históricos tal qual aconteceram, mudá-los torna-se uma heresia. Porém, se pensarmos a História como uma rede sempre ressignificada de interpretações, podemos considerar que a factualidade torna-se menos importante do que o estabelecimento de uma relação entre o sujeito-aluno e o objeto histórico em questão. Mesmo pretendendo ater-nos aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) – logo, ao conteúdo histórico já consolidado como relevante para nossas crianças – ainda é possível a ressignificação dos eventos históricos, inclusive por parte dos estudantes.

“Escrever história é [...] mediar temporalidades,

exercer a atividade de tradução entre naturezas, sociedades e culturas de tempos distintos. Colocados neste terceira margem da temporalidade, que é o presente, o historiador tem a tarefa de construir com sua narrativa uma canoa que possa mediar, fazer se tocar as margens do passado e do futuro.” 7

A canoa viaja por um rio que nunca se repete, logo as impressões sobre o

tempo histórico mudam. O jovem relaciona-se de diversas maneiras com o passado. Muitas vezes esse tempo é sentido de forma distante e nostálgica, e vivenciá-lo por meio do jogo aproxima o jovem de uma ressignificação desse passado, que lhe pertence de diversas formas. Trata-se muito mais de entender como o jovem e a mídia utilizam a narrativa histórica, do que narrar a história como acreditamos que ela de fato ocorreu. O próprio PCN assume que a História é uma disciplina que ultrapassa os muros da escola:

“Não se aprende História apenas no espaço

escolar. As crianças e jovens têm acesso a inúmeras

7 ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. História: a arte de inventar o passado, p.33, APUD ARRUDA, Eucídio

Pimenta. Aprendizagem e Jogos Digitais. Campinas: Alínea, 2011

informações, imagens e explicações no convívio social e familiar, nos festejos de caráter local, regional, nacional e mundial. São atentos às transformações e aos [...] ritmos acelerados da vida urbana, da televisão e dos videoclipes, são seduzidos pelos apelos de consumo da sociedade contemporânea e preenchem a imaginação com ícones recriados a partir de fontes e épocas diversas. Nas convivências entre as gerações, [...] crianças e jovens socializam-se, aprendem regras sociais e costumes, agregam valores, projetam o futuro e questionam o tempo.” 8

Resumindo: ao modificar a História em um jogo, o estudante relaciona-se

com o passado de maneira pessoal, sem o controle total da escola ou do professor, e esse contato, em suma, é interessante para entender os mecanismos que de fato aconteceram, mesmo que a informação obtida não tenha sido exatamente a legitimada pela historiografia. Como narradores-educadores, partilhamos da ideia de que a experiência de mudar os rumos da História pode ser interessante se os mecanismos que movem a roda dos processos históricos forem aprendidos e ressignificados.

A defesa da ponte era basicamente uma batalha perdida. O exército alemão estava em grande maioria e podia dispor de muitas mortes, enquanto as companhias britânicas lutavam longe de casa e com número escasso de homens. Na primeira cena, a convocação para a guerra e a despedida de seus familiares. O foco foi a emoção ao deixar para trás toda uma vida rumo ao desconhecido. No segundo turno, já em território belga, recebem a missão: proteger a ponte a qualquer custo.

Nessa etapa, a partir de um mapa fictício pedimos que organizassem as defesas. A ideia de cavar trincheiras veio de um dos jogadores, um gancho para passar informações importantes sobre a guerra de trincheiras, diferente da guerra contemporânea, em que alguns metros de território são primordiais para a vitória ou a derrota em diversas batalhas; assim como informações sobre a tecnologia bélica e a produção armamentista, que levou definitivamente as mulheres ao mundo do trabalho: devido à escassez de mão-de-obra masculina, alocada nos frontes de batalha. O sapador tinha uma missão ainda mais importante: explodir a ponte caso a defesa se mostrasse ineficaz. O jogador precisou entender como funcionava o pavio e os explosivos, e precisou pensar muito para explodir todas as cargas ao mesmo tempo.

Fizemos questão de narrar o marasmo dos momentos de paz, ao mesmo tempo da eterna vigília que os sobressaltava ao menor sinal de movimentação inimiga. Enquanto isso, o narrador pedia que jogassem um dado de sorte, dependendo do valor, intempéries pré-programadas atingia os jogadores: quebras de equipamento, saúde debilitada, e desmandos de superiores poderiam os

8 Parâmetros Curriculares Nacionais, História, p.37,38.

atrapalhar. Os jogadores perceberam o stress provocado apenas pelos aspectos psicológicos da guerra.

Na terceira cena o exército apareceu. No início, desorganizados, caíam à frente da mira dos rifles britânicos. Após algumas horas de batalha, a artilharia pesada inimiga começou a destroçar as defesas dos jogadores. Um cenário impactante era necessário para atingir o nosso objetivo. Narramos a náusea que sentiam do cheiro de sangue, até que os próprios personagens começaram a ser atingidos.

Já a Companhia B recebeu ordens para montar um posto de defesa avançado em campo aberto. Retardando as tropas inimigas e enviando informações sobre o exército agressor. No primeiro turno os soldados foram destacados, prepararam-se para a batalha escrevendo em suas fichas os únicos itens que teriam em mãos.

Na sequência iniciaram sua marcha noturna. Os batedores seguiam à frente de sua companhia e logo avistaram um cavaleiro correndo em direção à tropa. Poderia ser uma armadilha? Um soldado suicida carregando um barril de pólvora e fósforos? A equipe derrubou o cavaleiro, o cavalo fugiu e atropelou um deles. Quando o restante da companhia alcançou a equipe avançada o cavaleiro estava em vantagem combatendo o soldado que estava em pé, mesmo assim, acabou sendo morto e seguiram seu caminho.

O segundo turno chegou com a alvorada, a companhia finalmente havia atravessado a mata a norte de Mons e se colocou à margem da mata entre duas colinas. O capitão mandou todos começarem a cavar trincheiras. Os jogadores tinham como opção montar outras linhas de defesa; tudo delimitado de acordo com os resultados dos dados.

Assim, durante a escavação das trincheiras, o grupo recebeu suprimentos e alguns jogadores tiveram que lidar com dores de barriga e outras intempéries. Passadas trinta e seis horas de sua chegada o exército inimigo chegou. Uma das trincheiras ainda era muito rasa e os seis homens da companhia tentaram segurar o campo o máximo de tempo possível. Sete homens contra todo um exército, afinal o corredor precisou abandoná-los para avisar as tropas alocadas na cidade sobre a chegada do inimigo.

Quando a batalha da cidade de Mons começou a Cia Bravo estava acabada. Sete homens derrubaram cinquenta inimigos, um número que sequer foi notado pelo alto comando. A bravura e sacrifício destes homens pode ter significado pouco a seus aliados ou a seus inimigos, sem dúvida, no entanto, trouxe aos jogadores a real consequência do que é a guerra para os indivíduos nela envolvidos: uma tragédia.

Conclusão

Podemos considerar que houve uma derrota, se considerarmos a missão de defesa da ponte um fracasso. Sabemos que em jogos de RPG, esse é um desfecho bastante incomum. Os jogadores, mesmo sem muita experiência,

também sentiram um certo estranhamento, pois estavam acostumados a completar as missões. Esse talvez tenha sido um aspecto infrutífero para nossos objetivos de retratar a guerra como uma perda humana independente da vitória política. De maneira geral, a sensação de derrota política misturou-se à sensação dos horrores da guerra. Pouco mais da metade dos jogadores comentaram sobre o sofrimento que a guerra proporcionava. A estilização da violência é tão presente e intensa na vida de nossos jovens que apenas três horas imersos em uma aventura de RPG não seria capaz de reverter o imaginário da guerra. Sentimos, então, que precisávamos de mais uma aventura sobre o tema, e naturalmente as coisas evoluíram rumo à segunda guerra mundial, após essa experiência, pudemos sentir que o objetivo estava bastante próximo, todavia essa é outra história.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

_____________, Parâmetros Curriculares Nacionais, História.

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CORREIA, Sílvia Adriana. Cem anos de historiografia da Primeira Guerra

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ANEXOS

Anexo 1: Ficha de personagem