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BOLETIM IBCCRIM - ANO 14 - Nº 170 - JANEIRO - 2007 15 VIOLÊNCIA DE GÊNERO, PRODUÇÃO LEGISLATIVA E DISCURSO PUNITIVO – UMA ANÁLISE DA LEI Nº 11.340/2006 Elisa Girotti Celmer e Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo Recente estudo da Organização Mun- dial da Saúde (OMS), no qual foram en- trevistadas 25.000 mulheres em 10 países, entre os quais o Brasil, constatou que en- tre 25% e 50% das mulheres entrevistadas foram vítimas de violência doméstica moderada ou severa no último ano. Com variações de país para país, entre 20% e 60% das mulheres disseram nunca haver denunciado esses fatos. Os danos produ- zidos pela violência no ambiente domés- tico vão do medo e da depressão à dor crônica e à perda da auto-estima. Os estudos mais recentes demonstram ainda uma forte correlação entre pauperi- zação e violência doméstica, o que colo- ca a América Latina em situação ainda mais grave para o enfrentamento das ten- sões que brotam no contexto familiar e são equacionadas pelo recurso à violên- cia. Mais do que a pobreza, é o impacto de processos de mobilidade social nega- tiva, alcoolismo e drogadição, que leva muitas vezes o cônjuge masculino a uma dinâmica destrutiva para si próprio e seu entorno familiar. Essa situação, para a qual contribuem aspectos relacionados à cultura, à situa- ção econômica e à falta de mecanismos institucionais de proteção à mulher, co- meçou a ser denunciada no Brasil nas úl- timas décadas pelos movimentos de mu- lheres. Como efeito dessa mobilização, o reconhecimento da violência contra a mulher como sendo um problema públi- co vem ocorrendo na sociedade brasilei- ra. As situações de violência contra a mulher, muitas vezes naturalizadas e minimizadas, foram visibilizadas e, através dos Juizados Especiais Criminais (JE- Crim), se procurou garantir o acesso ao Poder Judiciário e o fim da impunidade para delitos como ameaças e lesões corporais, que antes dependiam do inquérito policial e muitas vezes não passavam do registro da ocorrência nas delegacias de polícia. No entanto, as dificuldades de implan- tação de um novo modelo para lidar com conflitos sociais levaram diversos setores do campo jurídico e do movimento de mulheres a adotar um discurso de confron- tação e crítica aos Juizados, especialmente direcionado contra a chamada banaliza- ção da violência que por via deles estaria ocorrendo. A crítica foi sempre centrada na prática de alguns promotores e juízes de adotar, em sede de transação penal, a chamada “lei do menor esforço”, ou seja, a aplicação de uma medida alternativa cor- respondente ao pagamento de uma cesta básica pelo acusado, ao invés de investir na mediação e na aplicação de medida mais adequada para o equacionamento do problema sem o recurso à punição. Como já apontado em outro lugar (Azevedo, 2000, 2002, 2005), grande parte dos problemas enfrentados nos JECrim devem-se à falta de preparo e engajamen- to de muitos operadores do Direito para as novas funções que deles são exi- gidas. É o caso, por exemplo, da atuação do juiz como conciliador, nem sempre assu- mida de fato, ou da necessidade do promotor, antes do oferecimento da proposta de transação, avaliar da possibilidade de arquivamento pela falta dos re- quisitos mínimos necessários ao prosse- guimento da ação penal. O processamento dos casos de violên- cia contra a mulher pelos Juizados Espe- ciais Criminais gerou opiniões contradi- tórias não apenas no interior do movi- mento feminista, mas também entre os (as) pesquisadores (as). Alguns percebe- ram os JECrim como benéficos à luta das mulheres por dar visibilidade ao proble- ma da violência de gênero, que antes não chegava ao âmbito judicial. Outros en- tenderam que os Juizados ampliaram a rede punitiva estatal, judicializando con- dutas que antes não chegavam até o Judi- ciário, mas em muito pouco contribuí- ram para a diminuição do problema da violência conjugal, pela impunidade de- corrente da banalização da alternativa da cesta básica. Contrariando os estudos que concluí- ram que a Lei nº 9.099/95 estaria desfavo- recendo as mulheres no acesso à Justiça, a pesquisa realizada por Wânia Izumino (2004) nas Delegacias de Defesa da Mu- lher do Estado de São Paulo, no período de 1996 a 1999, revelou um aumento ex- pressivo no número de registros policiais de lesões corporais e ameaças, permitindo concluir que Delegacias da Mulher e Jui- zados Especiais Criminais representaram importantes espaços de referência para as mulheres em situação de violência. Para Izumino (2004), a decisão de recorrer à polícia e a capacidade legal de interven- ção no processo judicial, conquistada pe- las vítimas sob a nova legislação, revela- ram um modo de exercício de poder pelas mulheres, em um modelo alternativo à jus- tiça tradicional que poderia responder às expectativas das mulheres vítimas de vio- lência e explicitar outro tipo de vínculo entre gênero, conflito e Justiça. Para Izumino, a busca pela denúncia nas delegacias e pelo apoio do Poder Ju- diciário é recurso encontrado pelas mulheres para fa- zer cessar perío- dos de agressão contínua. A con- denação criminal dos companhei- ros, na grande maioria dos ca- sos, não é a inten- ção da vítima da agressão. Izumi- no trata a possi- bilidade de ma- nutenção ou reti- rada da representação pela vítima, viabi- lizada pela Lei nº 9.099/95, como um me- canismo de empoderamento das mulheres, pois estas deixariam de ser vítimas passi- vas para atuarem de forma ativa, reagindo à situação de violência que enfrentam. A capacidade de dispor da representação revela formas através das quais as mulhe- res podem exercer poder na relação com os companheiros. Entretanto, a autora chama a atenção para o fato de que o pro- blema não está na possibilidade da víti- ma se manifestar, retirando a representa- ção, mas na ausência de mecanismos que permitam que ela seja informada de seus direitos e das conseqüências de sua re- núncia à representação. Em outra pesquisa, realizada por Car- men Campos no início da década (2003), identificou-se que 70% dos casos julga- dos nos JECrim, em Porto Alegre, envol- viam violência doméstica cometida pelo homem contra a mulher, demonstrando que os JECrim, apesar de não possuírem com- petência exclusiva para tanto, estariam ma- joritariamente processando casos de vio- lência doméstica. Em sentido contrário à conclusão de Wânia, Carmen destaca que a conseqüência dessa fórmula que pro- cessa a violência doméstica sem incorpo- rar um “paradigma de gênero” foi a bana- lização da violência doméstica, com a não participação da vítima, as renúncias mas- sivas, não havendo solução satisfatória para o conflito. Para Campos, com o advento dos JE- Crim, a lógica de decidir priorizando a VIOLÊNCIA DE GÊNERO, PRODUÇÃO LEGISLATIVA E DISCURSO PUNITIVO – UMA ANÁLISE DA LEI Nº 11.340/2006 Elisa Girotti Celmer e Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo A utilização do Direito Penal reforça a idéia do pólo repressivo em detrimento de outras formas mais positivas de atuação do Direito, que emergem a partir do Direito Constitucional. A falência de todo o sistema repressivo está a demandar novas soluções para a consolidação dos direitos humanos e dos laços de solidariedade social.

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BOLETIM IBCCRIM - ANO 14 - Nº 170 - JANEIRO - 2007 15

VIOLÊNCIA DE GÊNERO, PRODUÇÃO LEGISLATIVA EDISCURSO PUNITIVO – UMA ANÁLISE DA LEI Nº 11.340/2006

Elisa Girotti Celmer e Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Recente estudo da Organização Mun-dial da Saúde (OMS), no qual foram en-trevistadas 25.000 mulheres em 10 países,entre os quais o Brasil, constatou que en-tre 25% e 50% das mulheres entrevistadasforam vítimas de violência domésticamoderada ou severa no último ano. Comvariações de país para país, entre 20% e60% das mulheres disseram nunca haverdenunciado esses fatos. Os danos produ-zidos pela violência no ambiente domés-tico vão do medo e da depressão à dorcrônica e à perda da auto-estima.

Os estudos mais recentes demonstramainda uma forte correlação entre pauperi-zação e violência doméstica, o que colo-ca a América Latina em situação aindamais grave para o enfrentamento das ten-sões que brotam no contexto familiar esão equacionadas pelo recurso à violên-cia. Mais do que a pobreza, é o impactode processos de mobilidade social nega-tiva, alcoolismo e drogadição, que levamuitas vezes o cônjuge masculino a umadinâmica destrutiva para si próprio e seuentorno familiar.

Essa situação, para a qual contribuemaspectos relacionados à cultura, à situa-ção econômica e à falta de mecanismosinstitucionais de proteção à mulher, co-meçou a ser denunciada no Brasil nas úl-timas décadas pelos movimentos de mu-lheres. Como efeito dessa mobilização, oreconhecimento da violência contra amulher como sendo um problema públi-co vem ocorrendo na sociedade brasilei-ra. As situações de violência contra amulher, muitas vezes naturalizadas eminimizadas, foram visibilizadas e, atravésdos Juizados Especiais Criminais (JE-Crim), se procurou garantir o acesso aoPoder Judiciário e o fim da impunidade paradelitos como ameaças e lesões corporais,que antes dependiam do inquérito policiale muitas vezes não passavam do registro daocorrência nas delegacias de polícia.

No entanto, as dificuldades de implan-tação de um novo modelo para lidar comconflitos sociais levaram diversos setoresdo campo jurídico e do movimento demulheres a adotar um discurso de confron-tação e crítica aos Juizados, especialmentedirecionado contra a chamada banaliza-ção da violência que por via deles estariaocorrendo. A crítica foi sempre centradana prática de alguns promotores e juízesde adotar, em sede de transação penal, achamada “lei do menor esforço”, ou seja, aaplicação de uma medida alternativa cor-respondente ao pagamento de uma cestabásica pelo acusado, ao invés de investir

na mediação e na aplicação de medidamais adequada para o equacionamento doproblema sem o recurso à punição.

Como já apontado em outro lugar(Azevedo, 2000, 2002, 2005), grande partedos problemas enfrentados nos JECrimdevem-se à falta de preparo e engajamen-to de muitos operadores do Direito paraas novas funçõesque deles são exi-gidas. É o caso,por exemplo, daatuação do juizcomo conciliador,nem sempre assu-mida de fato, ouda necessidade dopromotor, antesdo oferecimentoda proposta detransação, avaliarda possibilidadede arquivamentopela falta dos re-quisitos mínimos necessários ao prosse-guimento da ação penal.

O processamento dos casos de violên-cia contra a mulher pelos Juizados Espe-ciais Criminais gerou opiniões contradi-tórias não apenas no interior do movi-mento feminista, mas também entre os(as) pesquisadores (as). Alguns percebe-ram os JECrim como benéficos à luta dasmulheres por dar visibilidade ao proble-ma da violência de gênero, que antes nãochegava ao âmbito judicial. Outros en-tenderam que os Juizados ampliaram arede punitiva estatal, judicializando con-dutas que antes não chegavam até o Judi-ciário, mas em muito pouco contribuí-ram para a diminuição do problema daviolência conjugal, pela impunidade de-corrente da banalização da alternativa dacesta básica.

Contrariando os estudos que concluí-ram que a Lei nº 9.099/95 estaria desfavo-recendo as mulheres no acesso à Justiça, apesquisa realizada por Wânia Izumino(2004) nas Delegacias de Defesa da Mu-lher do Estado de São Paulo, no períodode 1996 a 1999, revelou um aumento ex-pressivo no número de registros policiaisde lesões corporais e ameaças, permitindoconcluir que Delegacias da Mulher e Jui-zados Especiais Criminais representaramimportantes espaços de referência para asmulheres em situação de violência. ParaIzumino (2004), a decisão de recorrer àpolícia e a capacidade legal de interven-ção no processo judicial, conquistada pe-las vítimas sob a nova legislação, revela-

ram um modo de exercício de poder pelasmulheres, em um modelo alternativo à jus-tiça tradicional que poderia responder àsexpectativas das mulheres vítimas de vio-lência e explicitar outro tipo de vínculoentre gênero, conflito e Justiça.

Para Izumino, a busca pela denúncianas delegacias e pelo apoio do Poder Ju-

diciário é recursoencontrado pelasmulheres para fa-zer cessar perío-dos de agressãocontínua. A con-denação criminaldos companhei-ros, na grandemaioria dos ca-sos, não é a inten-ção da vítima daagressão. Izumi-no trata a possi-bilidade de ma-nutenção ou reti-

rada da representação pela vítima, viabi-lizada pela Lei nº 9.099/95, como um me-canismo de empoderamento das mulheres,pois estas deixariam de ser vítimas passi-vas para atuarem de forma ativa, reagindoà situação de violência que enfrentam. Acapacidade de dispor da representaçãorevela formas através das quais as mulhe-res podem exercer poder na relação comos companheiros. Entretanto, a autorachama a atenção para o fato de que o pro-blema não está na possibilidade da víti-ma se manifestar, retirando a representa-ção, mas na ausência de mecanismos quepermitam que ela seja informada de seusdireitos e das conseqüências de sua re-núncia à representação.

Em outra pesquisa, realizada por Car-men Campos no início da década (2003),identificou-se que 70% dos casos julga-dos nos JECrim, em Porto Alegre, envol-viam violência doméstica cometida pelohomem contra a mulher, demonstrando queos JECrim, apesar de não possuírem com-petência exclusiva para tanto, estariam ma-joritariamente processando casos de vio-lência doméstica. Em sentido contrário àconclusão de Wânia, Carmen destaca quea conseqüência dessa fórmula que pro-cessa a violência doméstica sem incorpo-rar um “paradigma de gênero” foi a bana-lização da violência doméstica, com a nãoparticipação da vítima, as renúncias mas-sivas, não havendo solução satisfatóriapara o conflito.

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A utilização do Direito Penalreforça a idéia do pólo repressivoem detrimento de outras formas

mais positivas de atuação doDireito, que emergem a partir do

Direito Constitucional. A falência detodo o sistema repressivo está ademandar novas soluções para a

consolidação dos direitos humanose dos laços de solidariedade social.

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preservação do casamento e das expecta-tivas sociais permaneceu inalterada. Con-tudo, passou a ser operada não pela ab-solvição, mas pelo arquivamento massi-vo dos processos, através da renúncia dasvítimas. O incentivo à renúncia ao direi-to de representação auxiliaria a banalizara violência conjugal e a reprivatizar o con-flito, devolvendo o poder ao agressor.

Mesmo adotando uma perspectiva crí-tica aos mecanismos introduzidos pela Leinº 9.099/95, ao apontar o que seria umalegislação adequada sobre a violência con-jugal, a autora reconhece que deveria serpautada segundo a perspectiva da adoçãode medidas que garantam a abstenção docomportamento violento, e não necessa-riamente a punição do agressor. ParaCampos, ao que tudo indica, essa novalegislação há de ser pensada longe do Di-reito Penal, na perspectiva do DireitoCivil. Impossível pensar-se em retroces-so no campo penal, buscando agravamen-to das penas. Ao contrário, cada vez maisse deve pensar na mínima utilização doDireito Penal, não só nos delitos em queas mulheres são consideradas vítimas. Autilização do Direito Penal reforça a idéiado pólo repressivo em detrimento de ou-tras formas mais positivas de atuação doDireito, que emergem a partir do DireitoConstitucional. A falência de todo o sis-tema repressivo está a demandar novassoluções para a consolidação dos direitoshumanos e dos laços de solidariedade so-cial (Campos, 2003).

Em sentido contrário às conclusõesacima apontadas, o legislador brasileiro,dessa vez incentivado por uma amplamobilização, capitaneada pela SecretariaNacional dos Direitos da Mulher, maisuma vez produziu uma verdadeira “revo-lução” no tratamento da matéria, abando-nando o que há uma década era visto comoum novo paradigma, pautado pela media-ção e pelo consenso, e aderindo à sempreenganosa, dolorosa e danosa intervençãodo sistema penal (Karam, 2006).

Em relação às lesões corporais leves, areferida lei instituiu um aumento da penamáxima em abstrato para o crime de le-são corporal leve, se a lesão for praticadacontra ascendente, descendente, irmão,cônjuge ou companheiro, ou com quemconviva ou tenha convivido, ou, ainda,prevalecendo-se o agente das relaçõesdomésticas, de coabitação ou de hospita-lidade, que passou a ser punido com trêsmeses a três anos de detenção. Com essamedida, retirou dos JECrim a competên-cia para o processamento deste delito, epreviu a criação de Juizados de ViolênciaDoméstica e Familiar Contra a Mulher.

Como esses Juizados ainda não foramcriados, e nem o serão na grande maioriadas comarcas, a competência para conhe-cer e julgar as causas decorrentes da prá-tica de violência doméstica e familiar con-tra a mulher é dada às Varas Criminais,tanto no âmbito criminal como no âmbi-to cível. Ou seja, retira-se o caso do JE-Crim, onde era muitas vezes realizada amediação e homo-logado pelo juiz ocompromisso derespeito mútuo, eencaminha-se parauma Vara freqüen-temente sobrecar-regada com homicí-dios, roubos, este-lionatos e delitos se-xuais graves, e exige-se ainda que sejamtambém resolvidasas questões envol-vendo o Direito deFamília.

Não satisfeitoscom o aumentoda pena, optou-seainda por prever expressamente, no art.41, que aos crimes praticados com vio-lência doméstica e familiar contra a mu-lher, independentemente da pena previs-ta, não se aplica a Lei nº 9.099/95. Agora,caso o juiz entenda necessário o compa-recimento do agressor em programa derecuperação e reeducação (sic), a medi-da é tomada de forma impositiva, e nãomais como parte de uma dinâmica demediação, ou mesmo de transação pe-nal. Pode-se imaginar a eficácia de me-dida como essa, sem contar com a con-cordância voluntária do agressor...

Absolutamente distante de qualquerperspectiva minimalista do Direito Pe-nal, agravando penas e autorizando a uti-lização de uma medida excepcional comoa prisão preventiva, o que se percebe é quea Lei nº 11.340/2006 também não recep-cionou o paradigma de gênero, pois ex-cluiu a participação da mulher na discus-são do problema, o que inviabiliza umasolução satisfatória para o conflito. Isso ficaclaro com a regra do art. 16, que estabeleceque a renúncia à representação só poderáocorrer perante o juiz, em audiência es-pecialmente designada para este fim.

Para além destas questões, por si só rele-vantes, a referida lei, da qual se espera queproduza a redução da violência de gênerono país, também não incorporou o debatemais recente sobre os mecanismos neces-sários para o aumento da eficiência da ad-ministração da justiça penal. A exclusão do

rito da Lei nº 9.099/95, expressa no art. 41 daLei Maria da Penha, para o processamentode casos de violência doméstica, acaba coma possibilidade de conciliação, que se cons-tituía em uma oportunidade das partes dis-cutirem o conflito e serem informadas so-bre seus direitos e as conseqüências de seusatos. Além disso, reenvia estes delitos para aPolícia Civil, pois agora dependem nova-

mente da produ-ção do inquéritopolicial. Emboraa lei tenha sidobastante minuci-osa ao orientar aatividade policial,são conhecidas detodos as dificul-dades existentes,tanto estruturaisquanto culturais,para que estes de-litos venham a re-ceber por parte daPolícia o trata-mento adequado,o que certamentevai implicar uma

redução do acesso ao Poder Judiciário.As medidas não-penais de proteção à

mulher em situação de violência, previs-tas nos arts. 9º, 22 e 23 da Lei Maria daPenha, mostram-se providências muitomais sensatas para fazer cessar as agres-sões e, ao mesmo tempo, menos estigma-tizantes para o agressor. Entretanto, inse-ridas em um contexto criminalizante,pode-se imaginar que logo estaremos as-sistindo à colonização das medidas pro-tetivas pelas iniciativas tendentes à puni-ção (mesmo antes da condenação) dossupostos agressores, nos casos que conse-guirem ultrapassar a barreira do inquéri-to e alcançarem uma audiência judicial,quem sabe quanto tempo depois do mo-mento da agressão.

O conflito social que está por trás daviolência doméstica não pode ser trata-do pura e simplesmente como matériacriminal. O retorno do rito ordinário doprocesso criminal para apuração dos ca-sos de violência doméstica não leva emconsideração a relação íntima existenteentre vítima e acusado, não sopesa a pre-tensão da vítima nem mesmo seus senti-mentos e necessidades. Conforme a ob-servação de Maria Filomena Gregori(1993), as mulheres atendidas não bus-cam, necessariamente, a separação deseus parceiros. A autora entende que nãohá uma simples dominação das mulhe-res pelos homens, estas não são merasvítimas de seus companheiros, não exis-V

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O conflito social que está por trásda violência doméstica não podeser tratado pura e simplesmentecomo matéria criminal. O retorno

do rito ordinário do processocriminal para apuração dos casosde violência doméstica não leva

em consideração a relação íntimaexistente entre vítima e acusado,não sopesa a pretensão da vítima

nem mesmo seus sentimentose necessidades.

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te, numa relação, um estabelecimentodualista e fixo dos papéis de gênero.Embora a dualidade vítima-agressor fa-cilite a denúncia da violência, Gregoridestaca que deve haver limites para essavisão jurídica dualista: “a construção dedualidades – como ‘macho’ culpado e mu-lher ‘vítima’ – para facilitar a denúncia eindignação, deixando de lado o fato de que osrelacionamentos conjugais são de parceria eque a violência pode ser também uma formade comunicação, ainda que perversa, entreparceiro” (1993, p. 134).

Certamente o mais adequado seria li-dar com esse tipo de conflito fora do sis-tema penal, radicalizando a aplicação dosmecanismos de mediação, realizada porpessoas devidamente treinadas e acom-panhadas de profissionais do Direito, Psi-cologia e Assistência Social. Os JuizadosEspeciais Criminais abriram espaço paraexperiências bem sucedidas nesse âmbi-to, como as várias alternativas de enca-minhamento do caso (compromisso derespeito mútuo, encaminhamento paragrupo de conscientização de homens

agressores etc.) dão conta. No entanto, oequívoco da banalização da cesta básicadeflagrou a reação que agora assistimos.Ao invés de avançar e desenvolver meca-nismos alternativos para a administraçãode conflitos, vamos mais uma vez recor-rer ao mito da tutela penal, neste caso elaprópria uma manifestação da mesma cul-tura que se pretende combater.

Bibliografia

AZEVEDO, Rodrigo G. “Informalização daJustiça e Controle Social”, São Paulo,IBCCRIM, 2000.

. “Conciliar ou Punir? – Dilemas doControle Penal na Época Contemporânea”,in WUNDERLICH, Alexandre (org.), Diá-logos Sobre a Justiça Dialogal, Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2002.

. “O Paradigma Emergente em seu La-birinto – Notas para o aperfeiçoamento dosJuizados Especiais Criminais”, in WUNDER-LICH, Alexandre (org), Novos Diálogos sobreos Juizados Especiais Criminais, Rio de Janeiro:Ed. Lumen Juris, 2005.

CAMPOS, Carmen Hein de. “Juizados Espe-ciais Criminais e seu déficit teórico”, Rev. Es-V

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tudos Feministas, vol. 11, nº 1, Florianópolis,jan./jun. 2003.

GREGORI, Maria Filomena. Cenas e Queixas: UmEstudo Sobre Mulheres, Relações Violentas e aPrática Feminista, São Paulo: Paz e Terra, 1992.

IZUMINO, Wania. “Delegacias de Defesa daMulher e Juizados Especiais Criminais: mu-lheres, violência e acesso à justiça”, XXVIIIEncontro da Associação Nacional de Pós Gra-duação em Ciências Sociais – ANPOCS,Caxambu, Minas Gerais, 26 a 28 de outubrode 2004. CD-ROM.

KARAM, Maria Lúcia. “Violência de Gênero: OParadoxal Entusiasmo pelo Rigor Penal”,Boletim do IBCCRIM, ano 14, nº 168, no-vembro de 2006, pp. 6-7.

SOUZA, João Paulo de Aguiar Sampaio e FON-SECA, Tiago Abud da. “A Aplicação da Lei nº9.099/95 nos casos de violência doméstica con-tra a mulher, Boletim do IBCCRIM, ano 14,nº 168, novembro de 2006, pp. 4-5.

Elisa Girotti CelmerAdvogada, mestranda em Ciências

Criminais na PUCRS e bolsista da Capes

Rodrigo Ghiringhelli de AzevedoAdvogado, doutor em Sociologia e professor

do PPG em Ciências Criminais da PUCRS

LABORATÓRIO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

Já estão abertas as inscrições para o Laboratório de Ciências Criminais, um programa deiniciação científica destinado a estudantes do 3º ao 5º ano das faculdades de Direito.Ao longo do curso serão abordadas questões atuais de Direito Penal, Processo Penal,

Criminologia e Política Criminal.O Laboratório é gratuito para os alunos associados; os não-associados pagam mensalidade

equivalente àquela associativa do IBCCRIM para estudantes.O regulamento para participar do Laboratório de Ciências Criminais

já se encontra no site do IBCCRIM.Mais informações podem ser obtidas no site do IBCCRIM (www.ibccrim.org.br),

pelo e-mail ([email protected]) ou pelo telefone (11) 3105-4607, ramal 124.