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A narrativa na literatura de crianças e jovens BOLETIM 21 OUTUBRO 2005

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a narrativa

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A narrativa na literatura de

crianças e jovens

BOLETIM 21OUTUBRO 2005

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SUMÁRIOSUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ....................................................................................................................................... 03

Rosa Helena Mendonça

PROPOSTA PEDAGÓGICA

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS ................................................................... 05 Marisa Lajolo

PGM 1 NARRATIVAS CURTAS EM PROSA E VERSONascidos para narrar, narrando para viver ................................................................................................... 09Marisa Lajolo

PGM 2 A NARRATIVA FANTÁSTICAO conto fantástico: características e trajetória histórica ............................................................................... 12Regina Ziberman

PGM 3 A NARRATIVA FABULÍSTICA A fábula na sala de aula ............................................................................................................................... 17Luís Camargo

PGM 4CONTOS DE ORIGEMHistórias da tradição oral: os contos etiológicos .................................................................................... 30 Magda FredianiRogério Andrade Barbosa

PGM 5HISTÓRIAS EM VERSONarrar em verso: o encanto do cordel do Nordeste brasileiro .............................................................. 37Socorro Acioli

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 2

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Apresentação

Uma homenagem à literatura

Rosa Helena Mendonça 1

A literatura para crianças e jovens é um tema sempre revisitado no programa Salto para o Futuro.

Nos últimos anos, produzimos diversas séries voltadas para essa temática 2, que foram ao encontro

de muitas solicitações feitas pelos professores que participam do programa ao vivo, bem como das

avaliações que nos são encaminhadas.

Consideramos que a literatura – oral e escrita – tem um papel significativo no nosso cotidiano e na

escola, pois esse universo imaginário, criado e recriado tantas vezes pelos contadores de histórias, é

um portal sempre aberto para o sonho, para a fantasia, tão essencial para todos nós, adultos, jovens

crianças. Também acreditamos, como Cecília Meireles, que “A vida só é possível reinventada.” E o

que é a narrativa, literária ou não, senão a reinvenção dos fatos da vida?

A idéia inicial que norteou essa série A narrativa na literatura para crianças e jovens foi ter como

tema central as comemorações dos 200 anos de nascimento de Hans Christian Andersen,

considerado um dos precursores da literatura infantil. A série pretendia ser uma homenagem à

própria literatura, aos escritores e ilustradores de livros para crianças e também aos professores,

cujo interesse por esta temática tem sido, para nós, um permanente estímulo.

Na elaboração dos programas, decidimos trabalhar com os diferentes tipos de contos. E fizemos um

convite à professora Marisa Lajolo, cuja produção consagrada na área da literatura para crianças e

jovens, entre outras pesquisas, tem dado sustentação a muitas de nossas reflexões sobre o tema.

E, assim como nas histórias “uma idéia puxa outra”, a professora Marisa nos trouxe novas

sugestões, entre elas a de que visitássemos a 11ª Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo,

que abrange a 3ª Jornadinha Nacional de Literatura,que teve como tema, neste ano de 2005,

Diversidade cultural: o diálogo das diferenças. Além da homenagem ao Bicentenário de Andersen,

também foram lembrados os 400 anos da edição de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, e os 100

anos de nascimento de Erico Verissimo. E, como programação paralela, foi criado o Prêmio UPF

Hans Christian Andersen, que mobilizou professores e alunos de todo o país.

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 3

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Puxando esse fio.... Chegamos a Passo Fundo, acolhidos pela idealizadora da Jornada, a professora

Tânia Rösing, e com o nosso olhar já orientado pela professora Marisa Lajolo, lá entrevistamos

escritores, ilustradores, músicos e conversamos com alunos, professores e com o público em geral.

Cada texto desta série começa com uma narrativa curta, em prosa ou em verso. É a partir dela que

os textos se desenvolvem. Essas narrativas são um convite à literatura e, mais do que isso, uma

sugestão para o trabalho em sala de aula. A professora Marisa Lajolo, além da proposta da série,

elaborou o texto do primeiro programa e nos sugeriu os nomes dos autores dos outros textos: a

professora Regina Zilberman, uma das mais destacadas especialistas em literatura para crianças e

jovens; o professor, ilustrador e editor de literatura infantil Luís Camargo; a jornalista e escritora

Socorro Acioli e o escritor Rogério Andrade Barbosa, que contou em seu texto com a parceria da

professora Magda Frediani.

E então, “era uma vez”... E quem quiser que conte outra!

Nota:

1 Supervisora pedagógica do programa Salto para o Futuro.

2 Parte desse material está disponível na página do Salto: www.tvebrasil.com.br/salto.

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 4

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PROPOSTA PEDAGÓGICAPROPOSTA PEDAGÓGICA

A narrativa na literatura para crianças e jovens

Marisa Lajolo 1

Entre os vários povos da terra, um traço comum é o gosto pelas histórias. Parece que todos gostam

de inventar, modificar, contar e ouvir histórias. Talvez seja este gosto que leva todos os povos a

terem explicações para a origem da humanidade, para a criação do céu e da terra, para as diferenças

entre homem e mulher... São todas histórias, menos ou mais verdadeiras, menos ou mais inventadas.

Histórias são narrativas, isto é, relato de eventos, sucessão de ações que se encadeiam. Histórias

podem ser classificadas de muitas maneiras, mas nenhuma classificação é definitiva, nenhuma

classificação é estanque. Certas narrativas são em verso, outras são em prosa. Há narrativas longas,

como romances, ou curtinhas, como piadas. Algumas têm muitos diálogos, outras são contadas em

fluxo contínuo, como num diário de viagem. Algumas são construídas para parecerem verdadeiras

como as notícias de jornal, outras já desde o começo manifestam seu caráter fantástico, como as que

começam com a fórmula era uma vez num reino muito distante...

Sabe-se, hoje, que o gosto humano pela narração é muito anterior à invenção da escrita. O gosto

pela narrativa está presente nos primeiros esforços da humanidade para fixar acontecimentos através

de traços sobre uma superfície sólida. Os desenhos gravados por nossos antepassados no interior de

cavernas são, às vezes, interpretados como relatando episódios de caça ou de guerra.

Das inscrições rupestres aos blogs de hoje, o caso é que – com perdão do trocadilho – histórias têm

uma longa história na cultura humana. E exatamente porque são tão importantes chegaram à escola,

e lá convivem com a poesia, com o teatro e com as várias modalidades de texto – oral e escrito- que

passam pela sala de aula.

Olhando mais de perto para a constituição de narrativas, observamos – como já foi dito acima – que

elas se caracterizam por articularem ações, encadearem eventos, relatarem acontecimentos. Ou seja,

narrativas levantam e respondem questões do tipo o que aconteceu?

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 5

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Como já comentamos, são também inúmeras as formas pelas quais podemos classificar o mar de

histórias no qual navegamos ao longo de toda nossa vida. Nos cinco programas desta série, vamos

trabalhar com alguns destes tipos de narrativas, sabendo, no entanto, que as classificações são

sempre sujeitas a pequenos ajustes, divergências, ambigüidades. O espaço e o tempo da sala de aula

– muito específicos – nos levaram a escolher narrativas curtas como recorte do projeto. E dentro

desta perspectiva, escolhemos, como foco da série, os contos fantásticos, as fábulas, os contos de

origem e as histórias em versos.

O enfoque em cada uma destas modalidades de narrativa visa capacitar o educador para que possa

se valer delas para melhorar a capacidade leitora de seus alunos. Daí a liberdade com que propomos

diferentes leituras e diferentes atividades para os textos sugeridos. Pois sabemos que cada

leitor/ouvinte, na singularidade de sua experiência com diferentes formas narrativas, segue um ou

outro caminho, na atribuição de sentidos às histórias que lê, ouve, conta e escreve, ou reconta e re-

escreve.

Temas que serão debatidos na série A narrativa na literatura para crianças e jovens, que será

apresentada no programa Salto para o Futuro/TV Escola, de 24 a 28 de outubro de 2005:

PGM 1: Narrativas curtas em prosa e verso

No primeiro programa da série, pretende-se mostrar que há diferentes modalidades de histórias e

que os componentes estruturais das narrativas – ação/ personagem/ espaço/ tempo/ narrador – se

manifestam de formas as mais variadas. Procura-se, também, destacar a importância de trabalhar

com as narrativas curtas – contos fantásticos, fábulas, contos de origem e histórias em versos – que

permitem ao professor desenvolver projetos adequados ao espaço/tempo da sala de aula. A proposta

do programa, que é também a de toda a série, é que o professor possa se valer das narrativas curtas

para melhorar a capacidade leitora de seus alunos.

PGM 2: A narrativa fantástica

Nos contos fantásticos, desde aqueles considerados clássicos, como os dos Irmãos Grimm, os de

Andersen, até os contos fantásticos da atualidade, como a saga de Harry Potter, um jovem feiticeiro

criado pela escritora J. K. Rowling, destaca-se um ingrediente fundamental: a magia, que é a forma

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 6

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assumida pela fantasia, de que somos dotados, e que nos ajuda a resolver problemas. A fantasia

manifesta-se em todos os gêneros de narrativa, sejam os populares, como mitos e lendas, sejam os

literários, como as epopéias clássicas e os romances modernos. Também está presente em filmes e

peças de teatro, em histórias em quadrinhos, novelas de televisão ou enredos de jogos eletrônicos.

Neste segundo programa da série, pretende-se mostrar como trabalhar com os contos fantásticos

considerados clássicos, que podem colaborar para despertar o interesse pela leitura em crianças e

jovens e, ainda, para incentivá-los a recriar estas histórias, com novos componentes, pois a

imaginação é um limite nunca ultrapassado.

PGM 3: A narrativa fabulística

As fábulas são narrativas – em prosa ou em verso – que geralmente apresentam animais como

personagens. Animais que pensam, sentem, agem e falam como se fossem pessoas. Mas as fábulas

não apresentam só animais como personagens. Há fábulas sobre objetos, sobre plantas, sobre

estações do ano, sobre a morte, sobre pessoas. As fábulas mostram pontos de vista sobre

comportamentos humanos. Ou seja, recomendam certos comportamentos e censuram outros, que

devem ser evitados. Esse ponto de vista – ou opinião – costuma ser explicitado(a) no início ou no

fim das fábulas e é chamado lição ou moral. Esta modalidade de narrativa curta, a fábula, é

analisada e discutida neste terceiro programa da série. No texto/ base deste programa, o professor

irá encontrar diversas sugestões para trabalhar com as fábulas, desde a Educação Infantil até os

ciclos finais do Ensino Fundamental.

PGM 4: A narrativa etiológica

Contos, fábulas, lendas, mitos, adivinhas, provérbios, histórias de assombração povoaram e povoam

o universo imaginário dos brasileiros, trazendo as múltiplas visões de mundo dos povos que

formam a identidade cultural de nosso país. Como parte deste rico manancial, procurou-se destacar,

neste quarto programa da série, os contos de origem, ou etiológicos, pelas possibilidades de trabalho

que eles oferecem no cotidiano da sala de aula. Essas histórias, que buscam explicar a origem de

fatos e fenômenos, quase sempre iniciadas com uma pergunta (Por quê....?), estão presentes no

repertório ficcional de todos os povos, que, cada um à sua maneira, procurou tecer suas explicações

para os mistérios da vida.

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 7

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PGM 5: A narrativa poética

As narrativas em versos, em especial a literatura de cordel, são o foco dos debates do quinto

programa da série. Como utilizar a literatura de cordel em sala de aula, como trabalhar as narrativas

populares em versos? As diferentes formas de apresentação, de métrica e de temáticas da literatura

de cordel serão analisadas. Usando diversos exemplos, o programa irá apresentar sugestões para que

o professor possa incentivar os alunos a conhecerem a literatura de cordel e a criarem novos textos,

a partir dos modelos comentados no texto/base deste programa, ou inventando novas métricas e

temáticas.

Nota:

1 Professora titular no Departamento de Teoria Literária da UNICAMP e consultora dessa série.

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PROGRAMA 1PROGRAMA 1

NARRATIVAS CURTAS EM PROSA E VERSO

Nascidos para narrar, narrando para viver

Marisa Lajolo 1

Poema tirado de uma notícia de jornal

João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número

Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro

Bebeu

Cantou

Dançou

Depois se jogou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado (p.117)

O Poema tirado de uma notícia de jornal, de Manuel Bandeira, é um texto que pode nos

encaminhar para uma reflexão sobre os modos de narrar.

Publicado em Libertinagem, livro que Bandeira lançou em 1930, o texto acima é um poema

narrativo. E, com a sutileza dos bons textos, pode nos sugerir algumas reflexões sobre modos de ser

da narrativa. Vê-se logo que o texto de Bandeira satisfaz ao requisito de levantar/responder à

pergunta o que aconteceu?, mencionada no texto da Proposta da série. Já numa primeira leitura,

ficamos sabendo: um homem entrou num bar, bebeu, cantou, dançou e matou-se.

O título do texto estabelece seu parentesco com o jornal: o leitor/ouvinte do poema já entra nele

meio preparado para encontrar uma notícia e, ao longo da leitura/audição, talvez vá refinando suas

expectativas: algumas seções de jornal costumam noticiar histórias de pessoas comuns. O desfecho

da história – a morte de João – também é ingrediente comum do jornalismo. E o leitor/ouvinte de

Bandeira talvez experimente uma leve perplexidade pelo choque resultante da enumeração seca e

seqüenciada de ações de celebração, acompanhadas subitamente de um gesto de morte.

Mergulhados no poema de Bandeira, vemos que uma narrativa – geralmente – não se constitui de

segmentos que exprimem exclusivamente ações. E nem poderia, pois ações ocorrem, na história,

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num determinado espaço, num determinado tempo e envolvem personagens.

Em Poema tirado de uma notícia de jornal, a personagem é João Gostoso, o espaço é o Bar Vinte de

Novembro e a Lagoa Rodrigo de Freitas e o tempo é de – digamos – uma noite. Mas poderíamos

analisar de outra forma os componentes da narrativa e chegarmos a outras conclusões: poderíamos,

por exemplo, dizer que o espaço da narrativa é o Rio de Janeiro (onde existem, efetivamente, um

morro chamado Babilônia e uma lagoa chamada Rodrigo de Freitas) e que o tempo dela é

contemporâneo nosso (quando existem carregadores de feira e moradores de barracos).

Mas, independentemente das concepções de espaço e de tempo assumidas por diferentes leitores,

talvez todos sejam unânimes na constatação de que João Gostoso é a personagem da história

narrada por este poema. E talvez todos sejam também unânimes na observação de que a história

deste poema é narrada por alguém que não participa dela, que a observa “de fora” e faz o relato em

terceira pessoa. Este alguém é o narrador, componente essencial na construção dos sentidos que as

narrativas ganham para seus diferentes leitores. No caso deste poema, a secura afetiva e a contenção

com que o narrador relata o acontecimento funcionam, para alguns leitores, como forma de

intensificar o envolvimento com o texto.

Outro texto de Bandeira, agora do livro Belo Belo (acrescentado na edição de 1948 das Poesias

completas), nos apresenta a um outro tipo de narrador: um narrador participante da cena, que narra

em primeira pessoa:

Poema só para Jaime Ovalle

Quando hoje acordei, ainda fazia escuro

(Embora a manhã já estivesse avançada).

Chovia.

Chovia uma triste chuva de resignação

Como contraste ao calor tempestuoso da noite.

Então me levantei,

Bebi o café que eu mesmo preparei,

Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando...

- Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei. (p. 183)

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 10

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Da mesma forma que Poema tirado de uma notícia de Jornal, este texto também levanta/responde à

questão o que aconteceu? Trata-se de um quase relatório de afazeres cotidianos e prosaicos:

acordar, levantar, preparar e beber café, voltar a deitar-se, acender um cigarro e pensar. Tudo se

passa no espaço doméstico, e a hora é de manhã cedo. A personagem não é um ele, porém um eu. O

leitor/ouvinte do texto, a partir do título – que parece dedicar o poema só (= apenas) para alguém

chamado Jaime Ovalle – começa a entrar no clima de confidência, conduzido por uma voz que lhe

devassa – em primeira pessoa – intimidades domésticas. Ao longo do poema, através de expressões

como “então” e “depois”, o leitor pode imaginar o ritmo de sucessão de ações, ao mesmo tempo que

as repetições de “chovia” e “pensando” podem lhe reforçar a impressão de mesmice, de isolamento.

Comparando os dois poemas, o leitor experimenta duas formas canônicas de apresentar histórias.

Em Poema tirado de uma notícia de jornal, a narrativa é rápida, suportada por verbos de ação,

apresentada de forma impessoal. Em Poema só para Jaime Ovalle, a narrativa é lenta, centrada no

“eu” que a relata, pontuada de subjetividade.

Estas reflexões sobre duas obras-primas de um dos maiores poetas brasileiros encerram esta

primeira conversa sobre narrativas em geral. Mostram que histórias se narram através de diferentes

formatos, inclusive de poemas; e que seus componentes estruturais

(ação/personagem/espaço/tempo/narrador) se manifestam de formas variadas, não havendo

portanto, forma preestabelecida de percebê-los.

Nos outros textos da série,vamos abordar quatro tipos de narrativas curtas: os contos fantásticos,as

fábulas,os contos de origem e as histórias em versos.

Nota:

1- Professora titular no Departamento de Teoria Literária da UNICAMP e consultora dessa série.

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PROGRAMA 2PROGRAMA 2

A NARRATIVA FANTÁSTICA

O conto fantástico: características e trajetória histórica

Regina Zilberman 1

Feliz com o nascimento de sua filha, um casal resolve promover uma grande festa de batizado. Convida todos seus conhecidos, mas se esquece de um deles que, com grande indignação, aparece em meio às

comemorações e amaldiçoa a menina recém-nascida: quando atingir quinze anos, ela morrerá. Um dos convidados, que chegara atrasado, consegue reverter a maldição, atenuando seus efeitos: a garota não

morrerá, mas adormecerá por longo tempo, até ser despertada por seu salvador. O tempo passa, a profecia se cumpre: a jovem, quando completa 15 anos, cai em sono profundo, permanecendo nesse estado até ser

libertada pelo rapaz que será, mais adiante, seu marido.

A história, resumida acima, é bastante conhecida desde, pelo menos, o século XVII, popularizando-

se, sobretudo, depois do século XIX, sendo identificada pelo nome adotado por sua personagem

principal, “A Bela Adormecida no Bosque”. Considerado um conto de fadas clássico, apresenta os

elementos básicos da narrativa chamada fantástica, podendo ajudar a compreender esse gênero de

ficção. Vejam-se seus traços mais constantes:

a) O começo mostra uma situação não muito diversa da vida ordinária das pessoas, como é, na

história em questão, a comemoração do nascimento da criança. Nesse contexto relativamente

comum, irrompe um fato extraordinário, fruto da ação de uma personagem dotada de poderes

mágicos.

b) A presença dessa personagem não provoca nenhum estranhamento, nem sua ação é percebida

como incomum. A magia está presente no universo das figuras ficcionais como se fosse normal e

natural, embora nem sempre desejada. O que espanta, no caso, não é a circunstância de uma figura

deter um poder sobrenatural, mas a extensão da maldade cometida por ela, pois deseja a morte da

criança inocente.

c) Portanto, os seres munidos de poderes mágicos podem ser bons ou maus, devendo-se a diferença

ao modo como se comportam perante o protagonista da história. Em “A Bela Adormecida”, a fada

má é aquela que ambiciona prejudicar a heroína, enquanto que a fada boa pode socorrê-la.

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 12

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d) Há, pois, uma nítida divisão entre bons e maus, que se complementa na denominação

seguidamente diferenciada que recebem. Em “A Bela Adormecida”, são fadas que protagonizam as

ações positivas e negativas; essas últimas, porém, podem resultar de seres também bastante

conhecidos, nomeados de maneira mais específica, como as bruxas ou feiticeiras.

e) Às vezes, porém, outras figuras podem desempenhar o papel do malvado, como um animal

selvagem (o lobo, em “Chapeuzinho Vermelho”) ou um gigante (em “O Gato de Botas”). De todo

modo, predominam seres pertencentes ao sexo feminino, mas nem todas essas figuras estão

capacitadas a “performar” ações mágicas; é o caso de algumas madrastras, como a de Cinderela,

heroína de “A Gata Borralheira”.

f) Na história da Bela Adormecida, as personagens principais pertencem aos segmentos superiores

da sociedade: a jovem é filha de um rei, e seu salvador, é um príncipe. Nem sempre é assim, porém:

a “Chapeuzinho Vermelho” leva uma existência modesta na companhia de sua mãe; “João e Maria”

são crianças bastante pobres, situação compartilhada por Cinderela, até a garota encontrar seu

príncipe encantado. De todo modo, as personagens melhoram de situação: livram-se dos perigos,

como ocorre à Branca de Neve, perseguida pela madrasta; enriquecem, como sucede aos irmãos

João e Maria; ou fazem um bom casamento, como Cinderela. O progresso experimentado pela

personagem principal deve-se a seus méritos – a beleza da Branca de Neve, a coragem de João e

Maria, a humildade de Cinderela – mas, com poucas exceções, o fator que garante a mudança para

melhor é a ajuda oferecida por aquela personagem citada desde o começo, a que detém poderes

mágicos e sobrenaturais.

No conto fantástico, a magia desempenha um papel fundamental, estando sua presença associada a

uma personagem que dificilmente ocupa o lugar principal. Eis uma característica decisiva desse tipo

de história: o herói sofre o antagonismo de seres mais fortes que ele, carecendo do auxílio de uma

figura que usufrui de algum poder, de natureza extraordinária. Para fazer jus a essa ajuda, porém, o

herói precisa mostrar alguma virtude positiva, que é, seguidamente, de ordem moral, não de ordem

física ou sobrenatural.

A presença da magia, enquanto um elemento capaz de modificar os acontecimentos, é o que

distingue o conto fantástico. Esse elemento, porém, raramente é manipulado pelo herói, e sim por

seu auxiliar ou por seu antagonista, pois a personagem principal, aquela que dá nome à narrativa

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 13

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(Branca de Neve, Bela Adormecida, Cinderela, João e sua irmã, Maria), é uma pessoa comum,

desprovida de qualquer poder. Por essa razão, o leitor pode se identificar com ela, vivenciando, a

seu lado, os perigos por que passa e almejando uma solução para os problemas que enfrenta.

É possível, pois, entender o que significa a magia nos contos fantásticos: é a forma assumida pela

fantasia, de que somos dotados, e que nos ajuda a resolver problemas. Não significa que a fantasia

está presente apenas nos contos fantásticos. Como depende dela a criação de histórias e de

personagens para protagonizá-las, a fantasia manifesta-se em todos os gêneros de narrativa, sejam

os populares, como mitos e lendas, sejam os literárias, como epopéias clássicas e romances

modernos. Pode aparecer igualmente em outras expressões artísticas, como em filmes e peças de

teatro, em histórias em quadrinhos, novelas de televisão ou enredos de jogos eletrônicos. Acontece

que, nos contos de fadas, os seres da fantasia adotaram uma aparência facilmente reconhecível: os

medos corporificaram-se em bruxas ou gigantes, e a vontade de superá-los, em benfeitores amáveis

e solidários, como as fadas, que colaboram sempre, sem fazerem perguntas, nem cobrarem um

preço.

Por essa razão, os contos fantásticos foram bem acolhidos, quando adaptados para o público

infantil. Elaborados originalmente pelos camponeses do centro da Europa, foram recolhidos pelos

irmãos Grimm e editados para a leitura das crianças, obtendo tanto sucesso que se tornaram o

modelo seguido pelos escritores que desejaram se comunicar com o mesmo público. O mais

conhecido e mais bem sucedido foi o dinamarquês Hans Christian Andersen, que soube extrair as

lições contidas naquelas histórias tradicionais, tratando, por sua vez, de aperfeiçoá-las.

Andersen sabia que o ingrediente principal das histórias era a magia, elemento indispensável, sem o

que a narrativa perderia interesse. Porém, evitou atribuí-la a uma personagem secundária, o auxiliar

mágico, responsável, no conto de fadas tradicional, pela segurança do herói e pelo sucesso de suas

ações. Por isso, colocou a magia na interioridade do protagonista, tornando-a um ser fantástico,

mas, mesmo assim, problemático. É o caso de sua criação mais conhecida, o patinho feio. Porque

possui propriedades humanas – fala, tem sentimentos, sofre com a rejeição –, ele se mostra mágico,

isto é, incomum; além disso, experimenta uma metamorfose, passando do estado de “pato” (feio e

inadequado) para o de “cisne” (belo e atraente). Contudo, sua vida é marcada pela mesma

fragilidade experimentada pelos figurantes do conto de fadas; e, como eles, vai em busca da auto-

afirmação, para poder descobrir seu lugar no mundo.

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 14

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A expressão da fragilidade do ser humano encontra sua melhor expressão nas narrativas de

Andersen, que a corporificou em seres especiais, como a pequena sereia e o soldadinho de chumbo,

apaixonados ambos por figuras inacessíveis, distância que se amplia à medida que a narrativa se

desenvolve. Andersen deu novo alcance à fantasia, indicando que, às vezes, apenas pela imaginação

e criatividade podemos encontrar uma saída para nossas dificuldades.

Graças a Hans Christian Andersen, o conto fantástico encontrou a rota da renovação permanente,

deixando de depender do aproveitamento de histórias provenientes da cultura popular. Para tanto,

foi preciso proceder a uma supressão, fazendo desaparecer, como se observou, o auxiliar dotado de

poderes sobrenaturais; o resultado foi uma espécie de cirurgia, que retirou da fantasia o componente

mágico que a acompanhava. A fantasia permaneceu, sem que precisasse recorrer às propriedades

mágicas das personagens. Resultou daí uma separação entre dois mundos: num deles, reina a

fantasia; no outro, ela está ausente.

É o que se verifica nas narrativas criadas a partir do legado de Andersen, de que são exemplos as

obras de, pelo menos, três grandes escritores, dois dos quais nem pensavam, preliminarmente, estar

redigindo para o público infantil: Lewis Carroll, em Alice no País das Maravilhas; James M. Barrie,

em Peter Pan; Monteiro Lobato, no ciclo do Picapau Amarelo. Em qualquer livro desses autores,

mostram-se dois mundos bem distintos: aquele em que a personagem, via de regra uma criança,

vive no início do relato, é rotineiro e sem graça, dominado por adultos acomodados ao cotidiano do

trabalho e da família. Tal como ocorre no conto de fadas original, uma ruptura ocorre, facultando a

irrupção do sobrenatural: Alice persegue o coelho e chega ao País das Maravilhas (Wonderland);

Wendy e seus irmãos, liderados por Peter Pan, alcançam a Terra do Nunca (Neverland); Pedrinho

vem da cidade para as terras de Dona Benta, onde encontra a boneca falante Emília e todos os seres

fantásticos que habitam o sítio do Picapau Amarelo. Só que as duas realidades – a dominada pela

fantasia, de um lado, e a rotineira, de outro – não mais se comunicam, mantendo-se separadas para

sempre.

Eis o conto fantástico moderno, de que é exemplo a saga de Harry Potter: também o jovem

feiticeiro vive o contraponto entre dois mundos, sendo o da fantasia mais atraente, embora mais

perigoso. Nesse universo sobrenatural, porém, ele pode se revelar herói, defender valores positivos,

vivenciar a amizade e o amor. A fantasia não apenas ajuda a solucionar problemas, ela é superior ao

contexto cinzento da rotina e da experiência doméstica.

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 15

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Este último é, porém, o mundo do leitor, seja ele adulto ou criança. É a leitura do conto fantástico,

seja o conto de fadas tradicional ou as narrativas criadas por Andersen, Lewis Carroll, James M.

Barrie, Monteiro Lobato, J. K. Rowling, que o conduz a outros universos, mais apetecíveis. Por

isso, é preciso nunca abandonar essas leituras, em casa ou na sala de aula. Os professores podem

ajudar as crianças não apenas a apreciá-las, mas a entender porque admiram tanto os heróis que,

valendo-se de sua fantasia e imaginação, sabem resolver seus problemas e, ainda por cima,

colaborar para a felicidade dos outros.

Aliás, há muito a fazer em sala de aula, até porque algumas histórias são muito conhecidas. Pode-se,

por exemplo, rever a história da Bela Adormecida, apresentada no começo, excluindo a

interferência de um dos auxiliares mágicos (ou introduzindo outros, extraídos de narrativas

similares). Ou, então, pensar o que teria acontecido ao patinho feio, se ele tivesse se conformado,

permanecendo com uma família que o rejeitava. Pode-se, enfim, descobrir outros países das

maravilhas encravados em nosso cotidiano.

No conto fantástico, a imaginação é o limite nunca ultrapassado. Em sala de aula, pode colaborar na

condução do gosto pela leitura, que levará certamente ao conhecimento de novos horizontes

fantásticos.

Nota:

1- Professora titular no Departamento de Pós-Graduação em Letras da PUC/RS e diretora do IEL.

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 16

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PROGRAMA 3PROGRAMA 3

A NARRATIVA FABULÍSTICA

A fábula na sala de aula

Luís Camargo 1

Um burro e um cachorro iam andando por uma estrada, quando encontraram uma carta. Curioso, o burro abriu a carta e começou a lê-la em voz alta. Ela falava sobre comida boa pra burro, isto é, milho e capim.

– Essa parte você pode pular, disse o cachorro. Veja se a carta fala sobre algo mais útil, como carne, ossos, costela, rabada, essas coisas... O burro deu uma olhada no resto da carta e respondeu que nela não havia nada sobre comida para cachorro.

– Então jogue essa carta fora, disse o cachorro, aborrecido. – Ela não presta para nada!

Dizem que essa história mostra que cada um vê as coisas segundo seus próprios interesses2.

E nós podemos dizer que cada leitor procura em um texto algo que atenda a seus interesses. Ao

contrapor personagens com interesses diferentes – um herbívoro e um carnívoro –, essa história

mostra também que diferentes leitores podem saborear um texto de maneiras diferentes.

Essa história é uma fábula. Pelo menos eu a encontrei em um site que reúne 600 fábulas de Esopo,

ou melhor, atribuídas a Esopo. No século I da nossa era, o termo fábula esópica era utilizado não

porque a fábula fosse realmente de autoria de Esopo, mas em sentido geral, como homenagem a

Esopo, por sua dedicação ao gênero e sua maestria. É importante lembrar que Esopo deve ter vivido

no século VI a.C. e que não conhecemos nenhum texto autógrafo dele, ou, como dizem os

advogados, “escrito de próprio punho”. As cópias mais antigas das fábulas esópicas são do século X

d.C.

O que realmente Esopo contou e escreveu? Não sabemos. Mas isso não tem importância. O que

importa é que “fábula de Esopo” ou “fábula esópica” é um tipo de texto de origem provavelmente

oriental, que se desenvolveu na Grécia, passou ao mundo latino e depois às línguas neolatinas.

Fedro (15 a.C.), La Fontaine (1621-1695), Monteiro Lobato (1882-1948) e Millôr Fernandes (1924)

são herdeiros e recriadores dessa tradição3.

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 17

Page 18: 133321 a Narra Tiva

O que é uma fábula? Os antigos diziam que fábula é uma história mentirosa que mostra uma

verdade4. Se essa definição tem uma pitada de razão, essa história parece ser uma fábula. Pelo

menos por duas razões. Em primeiro lugar, é uma história mentirosa, pois burro e cachorro não

falam nem sabem ler; em segundo lugar, a história mostra uma verdade, explicitada na penúltima

frase do texto: “cada um vê as coisas segundo seus próprios interesses”.

Aposto que você tem uma idéia sobre o que seja fábula. E arrisco a dizer que seu conceito de fábula

é diferente desse que acabei de apresentar. Foi de propósito, justamente para sugerir que os

conceitos variam ao longo do tempo.

Imagine que estamos sentados em círculo e que um de nós proponha um “jogo rápido”: “diga uma

característica da fábula”. Você poderia responder, por exemplo, “concisão”. De fato, fábulas são

narrativas curtas.

Por serem curtas, as fábulas podem ser facilmente memorizadas e se prestam a exercícios de

reescrita. Desenhar ajuda a criança a lembrar a história. Em alguns casos, a criança desenha o trecho

que mais chamou sua atenção, por exemplo, o clímax da história. Em outros casos, a criança pode

transformar a história em uma história em quadrinhos. Especialmente no caso de crianças menores,

desenhar depois de ler ou ouvir uma história parece favorecer a sua reescrita.

Aliás, parece que – pelo menos nas quatro primeiras séries do Ensino Fundamental – a reescrita

depois da audição de um texto funciona melhor do que a reescrita depois da leitura. Por quê?

Porque, depois da leitura, muitas vezes a criança continua tendo acesso ao texto, o que pode levá-la

a consultá-lo, a relê-lo. Assim, em lugar de reconstruir mentalmente o texto e reescrevê-lo “com

suas palavras” – como se costuma dizer –, a criança pode se sentir atraída a copiar o texto ou, pelo

menos, alguns de seus trechos.

A reescrita permite avaliar a compreensão do texto e, ao mesmo tempo, serve para a criança

exercitar e flexibilizar sua escrita, aprendendo que um mesmo conteúdo pode ser expresso de

maneiras diferentes. (É verdade que mudanças na forma provocam mudanças no sentido, mas essa é

uma sutileza de difícil compreensão para crianças em fases iniciais de leitura e escrita.)

Há procedimentos que nós podemos perceber facilmente nas reescritas infantis (e não só infantis):

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1) substituição de palavra por sinônimo ou de uma expressão por outra, equivalente;

2) adição de palavras ou de informações relevantes;

3) subtração de palavras;

4) mudança na ordem das palavras ou das frases.

Depois da reescrita, os alunos podem trocar seus textos, de maneira que cada um conheça e

aproveite o ponto de vista de pelo menos um outro colega. O colega, por sua vez, poderia fazer uma

releitura prestando atenção, por exemplo, na ortografia, na acentuação ou na pontuação. Ou tudo

junto. Cabe a você dosar a dificuldade da atividade. Dessa maneira, o colega pode funcionar como

revisor.

Vale a pena, em seguida, que o aluno releia o texto original, cotejando com sua reescrita e marcando

as alterações que fez. Em grupos, os alunos poderiam procurar sintetizar essas diferenças. Como já

vimos: substituição, adição, subtração e mudança de ordem. Antes de propor esse exercício aos

alunos, você mesmo poderia escolher um ou mais trechos e mostrar os vários tipos de recursos de

reescrita utilizados pelos seus alunos. Há vários outros recursos, que os alunos podem aprender

gradativamente, como a mudança de tempo verbal, por exemplo, do passado para o presente;

mudança do discurso direto (– Essa parte você pode pular, disse o cachorro.) para o discurso

indireto (O cachorro disse que essa parte ele podia pular.) etc.

As fábulas são narrativas – em prosa ou em verso – que geralmente apresentam animais como

personagens. Animais que pensam, sentem, agem e falam como se fossem pessoas. Esse recurso de

atribuir características humanas a outros seres – animais, plantas, objetos, conceitos como morte ou

justiça etc. – é conhecido como personificação.

O termo personificação pode parecer complicado, mas as crianças usam bastante esse recurso em

seus desenhos. Por exemplo, Eduarda, 9 anos:

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 19

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Figura 1: Desenho de Eduarda, 9 anos.

Eduarda escreveu a seguinte legenda para seu desenho: “Eu imaginei um sol sorrindo, nuvens

brancas, flores no jardim, uma árvore cheia de frutos e a grama verde verdinha”. Note a expressão

sol sorrindo, personificação que aparece tanto no desenho como na legenda.

Quando trabalhei com Educação Infantil, notei que as crianças gostavam de ouvir histórias de

animais e, ao brincar com teatro de bonecos, preferiam animais para expressar seus sentimentos. É

mais fácil para a criança expressar raiva brincando de ser um jacaré raivoso do que brincar de

criança raivosa e, mais ainda, admitir que ela mesma tem sentimentos negativos. Por falar em

jacaré, lembro de uma fórmula-de-escolha que gerou várias brincadeiras com um fantoche

representando um jacaré: “Fui andando num caminho, encontrei um jacaré, eu pisei no rabo dele,

me mandou tomar café”.

Levei bonecos representando alguns animais brasileiros como jabuti, arara e tucano. Mas, na falta

de histórias sobre esses animais, as crianças não relacionavam os animais com sentimentos ou

comportamentos específicos (por exemplo, o lobo mau...) e esses bonecos eram pouco utilizados.

Isso sugere que a criação infantil depende de modelos adultos. Ao contrário da idealização da

criança como ser espontâneo e criativo, percebemos que a criança cria segundo modelos cognitivos

herdados geneticamente (por exemplo, toda criança, antes de desenhar figuras, rabisca sem intenção

figurativa) e recria a partir de modelos herdados culturalmente, isto é, apropriados graças à

mediação do adulto ou de outras crianças.

Talvez muito professor se frustre com as produções infantis (desenho, escrita etc.) por conta dessa

idealização da criatividade infantil. É preciso fornecer modelos. Antes de ser capaz de inventar uma

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 20

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fábula, a criança precisará ter lido, ouvido e assistido (no teatro, no cinema, na TV) muitas fábulas...

Uma prática muito comum é pedir para a criança escrever um texto logo depois do primeiro contato

com um determinado tipo de texto, por exemplo, ler um poema e imediatamente ser solicitado a

escrever um poema. Por falta de modelos suficientes a criança acaba repetindo o modelo com

pouquíssimas alterações.

Algo semelhante ocorre com escritores iniciantes que repetem modelos desgastados, por falta de

contato com modelos variados. É verdade que não se aprende a escrever só lendo, mas a leitura e a

reflexão sobre a leitura são fundamentais para o desenvolvimento da escrita. A reescrita também é

outro procedimento fundamental. As crianças muitas vezes conotam a reescrita como algo negativo,

porque “ainda não sabem escrever”. Na verdade, a reescrita é procedimento comum de muito

escritor reconhecido. Raramente o escritor escreve de uma vez, sem alterações.

As fábulas não apresentam só animais como personagens. Há fábulas sobre objetos, sobre plantas,

sobre estações do ano, sobre a morte, sobre pessoas, inclusive pessoas conhecidas, como Esopo ou

poeta grego Simônides.

Ao ilustrar a fábula A cigarra e a formiga, de La Fontaine, Marcelo Pacheco desenhou uma cigarra

sentada em um banquinho, com um violão, com os olhos fechados, como se cantasse para si mesma.

Essas referências podem ser interpretadas como alusões a João Gilberto e à bossa nova. De um lado,

o texto é uma tradução do francês para o português; de outro, a ilustração parece ter traduzido a

fábula para o universo cultural brasileiro5.

Figura 2: A cigarra e a formiga

Essa ilustração me sugeriu a idéia de adaptar fábulas tradicionais para o cenário brasileiro, ou

melhor, para diferentes cenários brasileiros. Foi o que procurei fazer com a fábula abaixo.

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A onça e o cabrito

Foi um dia, apareceu uma onça no sertão. Depois de urrar pela caatinga, sem nenhuma barraquinha de água-de-coco ou cachorro-quente, a onça estava com sede e com fome. E pensou: “quem não tem cachorro-quente, come cabrito”.

Num lugar alto e pedrento, cheio de cactos – mandacarus, palmas e xiquexiques – pastava um cabrito. A onça resolveu almoçar o cabrito.

– Seu cabrito, o senhor não devia se arriscar nesse monte pedregoso! Veja como o campo aqui embaixo é mais verde!

– Dona onça, a senhora me desculpe, mas não vou cair nessa conversa mole para boi dormir: eu sei bem que a senhora está mais interessada no seu almoço do que no meu.E saiu cabriolando monte acima.

Sem água-de-coco, sem cachorro-quente nem cabrito, a onça pegou umas palmas, tirou os espinhos, fez uma salada e comeu.

As fábulas mais antigas foram inventadas na Grécia e na Índia. Por isso elas fazem referência a

animais, plantas e costumes dessas regiões. A fábula acima é uma adaptação de uma fábula grega

em que um bode (ou uma cabra) se defronta com um leão (ou um lobo, e no Brasil, adaptou-se para

uma onça). Como as fábulas são muito antigas, há muitas e muitas versões, sendo difícil determinar

qual é a versão original. Na adaptação, acima o cenário é brasileiro: a ação se passa no Nordeste

brasileiro.

No livro didático em que essa fábula foi publicada aparece a seguinte proposta: “Reescreva essa –

ou outra fábula – incluindo plantas, animais e outros elementos da sua região”6.

Por falar em ilustração, na internet você pode encontrar muitas ilustrações de fábulas. Algumas das

mais curiosas são a que ilustram o livro O labirinto de Versalhes. Esse labirinto era uma parte dos

jardins do Palácio de Versalhes, com fontes inspiradas nas fábulas de Esopo.

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Figura 3: Ilustração para o livro O labirinto de Versalhes, de Charles Perrault7.

Figura 4: Ilustração de Gustave Doré para a fábula A cigarra e a formiga, de La Fontaine8.

Note que os animais personificados da fábula aparecem aqui como figuras humanas: a cigarra,

como violonista; a formiga, como dona-de-casa.

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Figura 5: Xilogravura que ilustra a fábula O leão e a cabra em um livro em latim, publicado na Alemanha em 15019.

Figura 6: Gravura de A. Delierre para a fábula A tartaruga e os dois patos, de La Fontaine, inspirada na tradição hindu10.

As fábulas mostram pontos de vista sobre comportamentos humanos. Ou seja, recomendam certos

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comportamentos e censuram outros, que devem ser evitados. Esse ponto de vista – ou opinião –

costuma ser explicitado(a) no início ou no fim das fábulas e é chamado lição ou moral. Na fábula

que inicia este texto, a moral aparece ao final, destacada da história: “Dizem que essa história

mostra que cada um vê as coisas segundo seus próprios interesses”. Já na segunda fábula, a moral

aparece propositalmente disfarçada no interior do texto: “a senhora está mais interessada no seu

almoço do que no meu”, forma indireta de recomendar cautela face aos conselhos de um inimigo,

cuja hipocrisia é desmascarada como “conversa mole para boi dormir”. Essa adaptação não deixou

a onça a ver navios, sugerindo a importância de saber improvisar, saber adaptar-se às situações. A

moral “quem não tem cachorro-quente, come cabrito”, explicitada no início da fábula, transforma-

se em “quem não tem cabrito, come palma”, tanto uma como a outra, brincadeiras com o provérbio

popular “quem não tem cão caça com gato”.

Nem toda fábula tem uma moral explícita e, em diferentes versões, a moral pode variar, mesmo

quando os personagens e os acontecimentos são os mesmos. Isso mostra que diferentes leitores

podem tirar diferentes lições de uma mesma fábula. O que, aliás, já dizia a fábula que escolhi para

iniciar este texto... Não parece fazer muito sentido, assim, cobrar que todos os alunos dêem a

mesma resposta sobre a lição de uma fábula. A não ser que nosso objetivo seja apenas que os alunos

decorem as respostas que nos agradam mais.

Escrevi propositalmente “respostas que nos agradam mais” pois uma mesma fábula pode permitir

diferentes interpretações. Experimente, por exemplo, reunir seus colegas e dar a cada um três

fábulas para ler, tomando o cuidado de antes eliminar a moral (se houver moral explícita). Em

seguida, peça que cada um escreva “o que você acha que essa fábula mostra” ou “para você, qual a

lição dessa fábula” ou ainda “na sua opinião, qual a moral dessa fábula”. Claro que haverá

convergências e até mesmo semelhanças muito grandes, mas nunca uma uniformidade completa.

Use essa experiência com seus alunos: se você quiser discutir a moral de uma fábula, incentive a

diversidade de interpretações. Mais importante do que a resposta é a justificativa para a resposta.

Justificar uma resposta significa aprender a argumentar; ouvir argumentações, aprender a contra-

argumentar e a respeitar diferenças, pois nem sempre é possível (ou até mesmo desejável) a

uniformidade de pensamento.

Vale a pena falar um pouco sobre a tradição hindu, mencionada de passagem, pois só muito

recentemente é que essa tradição começou a circular no Brasil, em português11.

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Na tradição hindu, as fábulas são entrelaçadas dentro de uma narrativa maior; os personagens

geralmente têm nomes que se referem a alguma característica do personagem. Por exemplo, a

tartaruga Kambugriva, cujo nome em sânscrito quer dizer pescoço enrugado como uma concha. Ao

adaptar essa fábula, troquei o nome Kambugriva por Casca-Dura, que me pareceu uma

característica que poderia ser mais facilmente reconhecida pelas crianças do que pescoço enrugado.

A tartaruga Casca-Dura

Em um lago, viviam três amigos: uma tartaruga chamada Casca-Dura e dois cisnes, Miúdo e Graúdo. Casca-Dura encontrava Miúdo e Graúdo nas margens do lago. Eles ficavam contando histórias o dia inteiro e os dois cisnes só voltavam ao ninho de tardezinha, quando o sol se punha.

Houve um tempo sem chuvas e o lago foi secando. Miúdo e Graúdo começaram a se preocupar. Miúdo disse:

– Casquinha (esse era o apelido carinhoso com que os cisnes chamavam sua amiga), o lago está secando.

Graúdo completou:

– Como é que você vai sobreviver?

Casca-Dura respondeu:

– Vocês têm razão! Logo, logo não vamos ter água para viver. Por isso, devemos pensar no que fazer, pois “quem quer água limpa, busca na fonte”. Como o povo diz, “a necessidade é a mãe das invenções.”

Miúdo perguntou:

– O que você sugere?

Casca-Dura propôs:

– Primeiro, procurem uma lagoa com bastante água.

Nos dias seguintes, Miúdo e Graúdo procuraram uma lagoa.

Ao final de uma semana, Graúdo deu a notícia:

– Casquinha, nós encontramos uma lagoa, mas é muito longe. Como você vai chegar lá?

Casca-Dura então propôs:

–Tragam um galho leve. Eu vou agarrar com os dentes no meio do galho e vocês, nas pontas. Depois de agarrarmos todos juntos, vocês me levarão até a lagoa.

Miúdo disse:

– O povo costuma dizer que “na necessidade se prova a amizade”.

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 26

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Graúdo completou:

– Casquinha, vamos fazer direitinho como você propôs, mas você precisa ficar de bico calado. “Boca de siri”, como se diz por aí, senão você cairá do galho.

E assim fizeram.

Na viagem, os três sobrevoaram uma cidadezinha. Os habitantes, surpresos, disseram:

– Nossa! Os cisnes estão levando uma tartaruga!

Ouvindo o burburinho, Casca-Dura respondeu:

– O que é que há? Nunca viu, cara de pavio?

Na verdade, era o que Casca-Dura queria dizer, mas ela caiu na metade da frase. E – como você pode imaginar – a tartaruga foi feita em pedacinhos. Por isso, eu digo:

“Quem não consegue ficar de bico calado quando é preciso morre como a tartaruga que caiu do galho.”12

Como você pode perceber, uma característica da fábula hindu é a quantidade de provérbios incluída

no corpo da fábula, ao contrário da tradição esópica, em que a moral aparece no começo ou no fim

da fábula. Aqui não é possível mostrar o entrelaçamento das fábulas, que é talvez a característica

que mais distingue a tradição hindu da tradição esópica.

Para finalizar esses apontamentos, vale a pena destacar que nós não precisamos “trabalhar” com

todos os textos. Precisamos acreditar na força dos próprios textos, na força educativa da leitura.

Sugestões de atividades

Pode-se incentivar os alunos a mudar o gênero do texto, por exemplo, passar do texto narrativo para

o texto dramático. Para isso, é necessário ir do mais simples ao mais complexo, como confeccionar

bonecos com cartolina desenhada e recortada, presa em lápis ou canetas; improvisar diálogos e

depois escrevê-los; escrever diálogos a partir de ilustrações mostrando dois ou mais personagens

etc. Para a escrita de textos dramáticos é importante também ter contato com textos dramáticos

curtos, por exemplo, para teatro de bonecos, tanto pela leitura silenciosa como pela leitura em voz

alta.

As ilustrações de fábulas podem servir como matéria-prima para várias atividades em sala de aula:

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1) imaginar e escrever um diálogo entre os animais que aparecem na ilustração;

2) em dupla, fazer uma leitura em voz alta do diálogo;

3) com bonecos de papel recortado, dramatizar o diálogo;

4) imaginar o que aconteceu antes e o que vai acontecer depois da cena representada;

5) desenhar a cena anterior e a cena posterior;

6) escrever o que aconteceu nessas cenas.

Se você quiser, durante um mês, desenvolver uma unidade de leitura sobre fábula, você poderia

selecionar vinte fábulas13. Quatro dessas fábulas poderiam ser objeto de alguma das várias

atividades sugeridas neste texto. As outras dezesseis fábulas poderiam simplesmente ser lidas em

voz alta. Nos outros dias da semana, você poderia ler uma fábula por dia para os alunos. Poderia

fazer um comentário, incentivar os alunos a comentarem, mas sem “cobranças”: comenta quem

quiser comentar. Ninguém deve ser penalizado por não falar. Por outro lado, é preciso colocar um

pouco de limites em quem não permite que os outros falem, mesmo sem querer, até mesmo por

excesso de extroversão... Depois de uma semana você poderia ir alternando uma fábula lida por

você com uma fábula lida por um aluno. Conforme o desempenho de leitura dos alunos, na última

semana só os alunos leriam. Eventualmente, um grupo de alunos poderia fazer a leitura em voz alta

de uma fábula, distribuindo as falas entre o narrador e os personagens.

Livros artesanais confeccionados pelos alunos, com reescritas de fábulas, ilustradas; exposição de

desenhos; apresentações de teatro de bonecos – tudo isso podem ser formas de mostrar o trabalho

dos alunos para a escola e para a comunidade escolar.

Notas:

1- Editor assistente de literatura infantil e juvenil da Editora FTD, escritor e ilustrador de livros infantis. Formado em artes plásticas, mestre em letras pela Unicamp, está concluindo o doutorado na mesma área, na mesma universidade, sob orientação de Marisa Lajolo, consultora desta série. Vem estudando o gênero fábula desde 1998.

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Lecionou cursos sobre o tema para professores e realizou (a distância) atividades com alunos do ensino fundamental, além traduzir e adaptar algumas fábulas.Site: http://caracol.imaginario.com/autografos/luiscamargo/index.html

2- Essa é uma adaptação, de minha autoria, da fábula The Donkey, the Dog and the Letter, tirada de Aesop’s Fables, translated by Laura Gibbs. Disponível em: http://www.mythfolklore.net/aesopica/oxford/index.htm; acesso em 25 set. 2005.

3- Ver, por exemplo: DEZOTTI, Maria Celeste Consolin (Org.). A tradição da fábula: de Esopo a La Fontaine. Brasília: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial, 2003.LOBATO, Monteiro. Fábulas. 50. ed. São Paulo: Brasiliense, 2001. FERNANDES, Millôr. Fábulas fabulosas. 15. ed. Rio de Janeiro: Nórdica, 1999.

4- Essa é a definição de Aelius Theon, retórico do primeiro século da nossa era. Ver: PROGYMNASMATA: Greek textbooks of prose composition and rhetoric. Translated with introductions and notes by George A. Kennedy. Atlanta, GA: Society of Biblical Literature, 2003. (Writings from the Greco-Roman World, 10).

5- Ilustração publicada no livro (hoje fora de catálogo): GOLDSTEIN, Norma; DIAS, Marinez. Linguagem e vida: 5a. série. 2. ed. São Paulo: Ática, 1993.

6- VIVA VIDA: livro integrado. Nova ed. São Paulo: FTD, 2004. v. 4, p. 191-192.

7- Livro online, no site Gallica, disponível em: http://gallica.bnf.fr/; para acessar o livro, clique em “Recherche” e digite, em “Mots du titre”, “labyrinthe de versailles”. Vá folheando o livro até aparecerem as ilustrações.

8- Ilustração disponível em: http://gallica.bnf.fr/; para acessá-la, clique em “Recherche” e digite, em “Mots du titre”, “fables” e, em “Auteur”, “doré”. Clique em “Illustrations des Fables”. Esta é a imagem 7. Clique na imagem para ampliá-la.

9- Livro online, no site da Universidade de Mannheim, disponível em: http://www.uni-mannheim.de/mateo/desbillons/esop.html; para acessar as imagens, clique nos links em azul. Se você não sabe alemão nem latim (como eu), navegue por tentativas, erros e acertos. Esta imagem é a S. 208.

10- Ilustração disponível em: http://gallica.bnf.fr/; para acessá-la, clique em “Recherche” e digite, em “Auteur”, “delierre”. Clique em “Illustrations de Les Fables”. Esta é a imagem 59.

11- Graças, por exemplo, a: PAÑCATANTRA: fábulas indianas – livro 1. Traduzido do sânscrito para o português por Maria da Graça Tesheiner, Marianne Erps Fleming, Maria Valíria Aderson de Mello Vargas. São Paulo: Humanitas FFLCH/USP, 2003.

12- Adaptação minha a partir de: PAÑCATANTRA: fábulas indianas – livro 1. p. 171-174. Extraí alguns provérbios de: PINTO, Ciça Alves. Livro dos provérbios, ditados, ditos populares e anexins. 3. ed. São Paulo: Senac São Paulo, 2002.

13- Unidade de leitura é um termo proposto por Ezequiel Theodoro da Silva para se referir a um tema gerador abordado por meio de textos variados. Ver: SILVA, Ezequiel Theodoro da. Unidades de leitura: trilogia pedagógica. Campinas: Autores Associados, 2003. (Coleção Linguagem e Sociedade).

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PROGRAMA 4PROGRAMA 4

CONTOS DE ORIGEMCONTOS DE ORIGEMHistórias da tradição oral: os contos etiológicos

Magda Frediani 1Rogério Andrade Barbosa 2

Por que os cães se cheiram uns aos outros?

Quando os cães governavam-se a si mesmos, havia dois grandes reinos chefiados por poderosos cães. Cada um deles gabava-se de ter mais súditos e riquezas do que o outro. Embora fossem adversários, viviam em paz, e essa trégua só foi quebrada no dia em que um deles se apaixonou pela irmã do outro chefe. Perdido de amores, ele se dirigiu pessoalmente aos domínios do rival:

– Meu nobre amigo – disse o cão apaixonado -, fiz essa longa e cansativa viagem até o teu reino para pedir a mão da tua irmã em casamento.

– Com a minha irmã! – respondeu aos gritos o outro cão –, não quero que você case com ela de jeito nenhum.

Humilhado com a resposta, o cão desdenhado voltou furioso para sua corte. Assim que chegou, reuniu o Conselho de Guerra e mandou chamar um fiel servidor para que levasse a seguinte mensagem ao seu inimigo:

– Diga-lhe que como me recusou a mão da irmã, que se prepare para lutar, pois dentro de poucos dias irei marchar com meu exército para destruí-lo.

O mensageiro ouviu tudo bem direitinho e já ia partindo quando um dos conselheiros reais o chamou:

– Você não pode sair assim todo sujo – disse o conselheiro real. – A sua cara e a cauda estão imundas.

Os criados deram um longo banho no mensageiro e perfumaram a cauda dele com os melhores perfumes do reino, pois de acordo com os costumes daquele tempo, um mensageiro tinha que se preparar adequadamente para executar uma tarefa.

No caminho, o mensageiro achou-se tão cheiroso e galante que começou a procurar esposas para ele mesmo, deixando de lado a missão que o chefe havia lhe confiado.

É por isso que os cães andam sempre atrás uns dos outros, cheirando as suas caudas, para verem se acham o mensageiro perdido3.

Um país pluriétnico e multicultural como o Brasil possui, como não poderia deixar de ser, uma

riquíssima literatura oral, transmitida de geração a geração, formando um repertório lúdico e

mágico. São contos, fábulas, lendas, mitos, adivinhas, provérbios, histórias de assombração que

povoaram e povoam o universo imaginário dos brasileiros, trazendo as múltiplas visões de mundo

dos povos que formam a identidade cultural de nosso país.

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 30

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Estas histórias, oriundas da tradição indígena, africana e européia, conquistaram novos espaços,

sendo recontadas por diversos escritores e ilustradores nos livros de literatura para crianças e

jovens. São “contos de fadas”, que têm como personagens reis e rainhas, príncipes e princesas,

vivendo em épocas remotas e em reinos longínquos e desconhecidos... São lendas de criaturas

encantadas, que habitam as matas, ou se escondem nas profundezas das águas dos rios e dos mares.

São fábulas, que mostram animais que falam como nós e se deparam com situações semelhantes às

que vivemos em nosso dia-a-dia. São mitos de heróis que enfrentam desafios e se envolvem em

aventuras fantásticas, buscando um objeto que pode trazer a salvação para uma comunidade em

perigo... São contos que tentam explicar a origem de fatos e fenômenos, para satisfazer a eterna

curiosidade humana sobre os mistérios da vida...

Entre esse textos, vamos destacar, nesta série A narrativa na literatura para crianças e jovens, estes

últimos, os chamados contos de origem, ou etiológicos, pelas possibilidades de trabalho que eles

oferecem no cotidiano da sala de aula.

Segundo Câmara Cascudo, em seu Dicionário do Folclore Brasileiro4, “os contos etiológicos

explicam a origem de aspecto, forma, hábito, disposição de um animal, vegetal, ou mineral”.

Os contos de animais, como o desta história africana, geralmente, explicam a origem do

comportamento da fauna que habita as florestas, rios e savanas do imenso continente. Os contos

etiológicos mostram, também, como determinados bichos têm a sua aparência atual5.

“Por que os cães se cheiram uns aos outros” é um conto curto, o que favorece a sua abordagem no

tempo/espaço da sala de aula. Apesar do tamanho, ele apresenta as características essenciais dos

textos narrativos: uma abertura – estado inicial de harmonia ou equilíbrio –, seguida de um fato

narrativo propriamente dito – a desarmonia, quando este equilíbrio inicial é rompido –, e encerrada

por um fechamento – estado final, que tanto pode ser a volta ao equilíbrio inicial como o

aparecimento de uma nova situação de equilíbrio6. Entre a abertura e o fechamento, acontecem os

conflitos, as ações dos personagens, as transformações...

Na abertura, vemos que o autor nos mostra um fato distanciado no tempo, numa época em que os

cães eram seus próprios governantes. Já se instaura, neste início, uma oposição a tudo que

conhecemos sobre esses animais, em geral tão dependentes dos seres humanos, seus “donos”, que

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 31

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lhes oferecem comida e moradia, em troca da tão famosa “amizade”, proteção, etc.

Quem diria que esses bichos poderiam ter sido reis, soldados, mensageiros? Que se envolveriam em

aventuras galantes de amor e sedução? Que se deixariam levar pelas paixões, como os seres

humanos? Que saberiam valorizar a aparência física, se enfeitando para cumprir uma missão? Por

meio das histórias, narradas ao redor de uma fogueira, como nas aldeias africanas, ou escritas nos

livros, é possível recriar, com muita fantasia, tudo o que existe neste nosso mundo, tornando-o mais

suportável, mais belo.

Os contos etiológicos também estão presentes na tradição oral dos diferentes grupos indígenas que

existem atualmente no Brasil – cerca de 206 etnias, espalhadas em aldeias em todo o território

nacional. Histórias cheias de encantamento e poesia, que falam sobre esta integração entre tudo o

que existe: as plantas, os animais, os seres humanos, os rios e mares, o vento, as estrelas, os seres

encantados que habitam as florestas. Nestes contos e lendas, tudo está entrelaçado. E esta invisível

corrente que une o Céu e a Terra nunca pode ser rompida. Entre os contos de origem dos povos

indígenas, podemos citar este, recontado por Leonardo Boff7:“Por que no céu há tantas estrelas?”,

em seu livro O casamento entre o céu e a terra – contos dos povos indígenas do Brasil:

Para os Karajá, do Tocantins-Xingu, o firmamento estava vazio, sem nenhum brilho, porque o urubu-rei havia roubado as estrelas para enfeitar o penacho em sua cabeça. Indignado com isto, o índio Karajá enfrentou o urubu-rei e conseguiu imobilizá-lo. Tentou então, convencer o rei das alturas a devolver os astros luminosos, mas, mesmo vencido, o urubu-rei não cedeu. Foi preciso que o Karajá arrancasse, uma a uma, as penas da cabeça da criatura. Cada pena arrancada era lançada no ar a se transformava numa estrela do firmamento. Apressado, o índio arrancou um monte de penas de atirou-as de uma só vez... E assim se formou o “caminho das estrelas”: a Via-Láctea. (adaptação)

O antropólogo e indianista Nunes Pereira, que viveu parte de sua vida na Amazônia, recolheu

centenas de contos, lendas e mitos dos índios desta região. Uma de suas obras antológicas é

Moronguétá8. Dos índios Cauaiua-Parintintim, do Vale do Rio Madeira, no estado do Amazonas,

Nunes Pereira ouviu várias histórias de um “herói de cultura”, o sábio Baíra, que teria conseguido

roubar o fogo do Urubu, trazendo-o para sua aldeia. Com este “presente” de Baíra, seu povo pôde

preparar o moquém e assar a carne dos peixes e das caças. Este conto de “origem do fogo” lembra o

mito de Prometeu, um herói dos antigos gregos, que teria roubado o fogo dos deuses, trazendo-o

para os homens, e que foi severamente castigado por Zeus.

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 32

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O antropólogo Nunes Pereira destaca o fato de que os narradores das histórias de Baíra –

Inhambutê, Iguá, Paquiri, Paririmã, e outros – sentiam grande admiração pelo herói, e falavam de

seus feitos e proezas como se eles mesmos também tivessem compartilhado de suas aventuras.

Em outro conto recolhido pelo autor, vamos encontrar a explicação da origem do Sol e da Lua. É

uma pequena narrativa, que mostra, numa visão poética e mágica, o poder divino deste herói, cujas

façanhas são motivo de orgulho para os remanescentes dos povos indígenas daquela região, que já

foram grandes guerreiros, antes de serem quase extintos pelos chamados “colonizadores”.

Origem do Sol e da Lua

Baíra foi quem criou o Sol e a Lua.

O Sol é homem. A Lua é mulher.

Baíra fez o Sol da raiz da paxiúba (...).

E fez da raiz do apuízeiro uma veia que pôs na Lua (...). Dessa veia sai sangue.

O Sol, porque é homem, sai de dia.

A Lua, porque é mulher, sai de noite.

Os homens, na Terra, são como o Sol.

As mulheres são como a Lua.

São inúmeras as possibilidades de trabalho com os contos de origem na sala de aula. Professor, você

pode propor que os alunos comparem estas explicações tão poéticas sobre os mistérios da vida com

as explicações ditas “científicas”, que quase sempre procuram apresentar os fatos como verdades

inquestionáveis. Haveria uma explicação “científica” para estes hábitos tão pouco convencionais

dos cães? Como a ciência explica o “surgimento” das estrelas, do Sol, da Lua? Será que as

explicações para estes fenômenos, que hoje nos parecem tão definitivas, também poderão mudar, no

futuro, com as novas descobertas possibilitadas pela tecnologia?

Ao trabalhar com os contos etiológicos dos indígenas e dos povos africanos, estaremos trazendo

para a sala de aula diferentes visões de mundo, que vão enriquecer o universo cultural de nossos

alunos, instigando-lhes a curiosidade e ampliando seu espaço de ação/reflexão sobre a vida, sobre a

natureza, sobre nosso ser/estar no mundo.

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 33

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Para concluir, apresentaremos uma história-mito do repertório afro-brasileiro, analisada pela

professora e pesquisadora Azoilda Loretto9, “cuja estrutura, dinâmica, perspectiva e forma

insinuam, anunciam uma diferença, ou diferenças de visão de mundo, de modo de expressão do

mundo, de coerência. E o mais interessante é que coexistem com a visão dominante, com a lógica

dominante. Assim como essa, outras histórias, outros mundos possíveis existem.”

Exu ajuda Olofim na criação do mundo:

Bem no princípio, durante a criação do universo, Olofim-Olodumare reuniu os sábios do Orum para que ajudassem no surgimento da vida e no nascimento dos povos sobre a face da Terra.

Entretanto, cada um tinha uma idéia diferente para a criação e todos encontravam algum inconveniente nas idéias dos outros, nunca entrando em acordo.

Assim, surgiram muitos obstáculos e problemas para executar a boa obra a que Olofim se propunha.

Então, quando os sábios e o próprio Olofim já acreditavam que era impossível realizar tal tarefa, Exu veio em auxílio de Olofim-Olodumare.

Exu disse a Olofim que, para obter sucesso em tão grandiosa obra, era necessário sacrificar cento e um pombos como ebó. Com o sangue dos pombos, se purificariam as diversas anormalidades que perturbam a vontade dos bons espíritos.

Ao ouvi-lo, Olofim estremeceu, porque a vida dos pombos está muito ligada à própria vida. Mesmo assim, pouco depois sentenciou: “Assim seja, pelo bem de meus filhos”. E pela primeira vez se sacrificaram pombos.

Exu foi guiando Olofim por todos os lugares onde deveria verter o sangue dos pombos, para que tudo fosse purificado e para que seu desejo de criar o mundo fosse cumprido. Quando Olofim realizou tudo o que pretendia, convocou Exu e lhe disse: ”Muito me ajudaste e eu bendigo teus atos por toda a eternidade. Sempre serás reconhecido, Exu, serás louvado sempre antes do começo de qualquer empreitada”10.

Como assinala a pesquisadora, nessa história encontramos “uma apresentação de outras

possibilidades de viver o mundo, para além da ideologia, para além da racionalidade, para além da

ciência”. Essa e outras histórias “são histórias vivas, que habitam o cotidiano e o imaginário de

muitos brasileiros. São histórias, narrativas, fragmentos culturais que sinalizam outras

possibilidades de apresentação, de modos de sentir, agir, pensar, saber...”

Professor, os contos de origem podem ser um ponto de partida para o trabalho em todas as áreas do

conhecimento. Você pode solicitar que os alunos pesquisem as histórias da comunidade onde fica a

escola: Qual a origem dos nomes do bairro, da escola, das ruas? Quais são as “histórias de vida” dos

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moradores? Como as crianças “explicam” os fatos de seu cotidiano?

Ao ouvir, recolher e recontar essas histórias, trazendo-os para o universo da sala de aula, você e

seus alunos também farão parte de uma grande “rede”, que alimenta o nosso imaginário e que

entrelaça nossas vidas, dando um sentido à tão difícil e complexa aventura do dia-a-dia.

Referências bibliográficas:

Barbosa, Rogério Andrade. Histórias africanas para contar e recontar. São Paulo, Editora do Brasil, 2001.

Barbosa, Rogério Andrade. Contos Africanos para Crianças Brasileiras. São Paulo, Editora Paulinas, 2004.

Boff, Leonardo. O casamento entre o céu e a terra – contos dos povos indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Salamandra, 2001.

Câmara Cascudo, Luís de. Dicionário do Folclore Brasileiro. 9a edição. Rio de Janeiro, Ediouro, 1998.

Lajolo. M. & Zilberman. R. Um Brasil para crianças. São Paulo, Global, 1989.

Lajolo M. & Zilberman R Literatura infantil brasileira: histórias e histórias. São Paulo, Editora Ática, 1984.

Nunes Pereira. Moronguétá – um Decameron indígena. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1967. (Coleção Retratos do Brasil, vol. 50-a)

Notas:

1- Professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira. Autora de livros didáticos e literatura infantil. Membro da equipe do programa Salto para o Futuro/TV Escola.

2- Escritor, professor e arte-educador. Autor de diversos livros de literatura para crianças e jovens. Diretor Executivo da Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil – AEI-LIJ. Membro do Conselho Consultivo da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.

3- O conto “Por que os cães se cheiram uns aos outros?” – faz parte do livro Bichos da África (Lendas e Fábulas), de Rogério Andrade Barbosa. O escritor, que é co-autor deste texto, viveu na África, trabalhando como voluntário das Nações Unidas na Guiné-Bissau. Nas diversas aldeias e cidades que percorreu, no imenso continente africano, conheceu os “contadores de histórias” – griots – que transmitem oralmente, para uma platéia atenta e fascinada, contos, lendas, mitos, fábulas... Suas narrações são acompanhadas de mímicas, danças, cantigas e outros efeitos cênicos, como a imitação das “vozes” dos animais, do barulho da chuva e do zumbido do vento.

4- Câmara Cascudo, Luís de. Dicionário do Folclore Brasileiro. 9a edição. Rio de Janeiro, Ediouro, 1998.

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5- Em Histórias africanas para contar e recontar (São Paulo, Editora do Brasil, 2001) e, em Contos Africanos para Crianças Brasileiras” (São Paulo, Editora Paulinas, 2004), podem ser encontrados outros contos semelhantes, pesquisados e recontados pelo autor, pertencentes ao universo da literatura tradicional africana.

6- Agostinho Dias Carneiro. Redação em construção - a escritura do texto. São Paulo, Ed. Moderna, 1997.

7- Leonardo Boff. O casamento entre o céu e a terra – contos dos povos indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Salamandra, 2001.

8- Nunes Pereira. Moronguétá – um Decameron indígena. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1967. (Coleção Retratos do Brasil, vol. 50-a)

9- Azoilda Loretto. A imagem da mulher negra na mídia. Tese de doutorado. Escola de Comunicação da UFRJ. Rio de Janeiro, 2005.

10- Prandi, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.

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PROGRAMA 5PROGRAMA 5

HISTÓRIAS EM VERSOHISTÓRIAS EM VERSONarrar em verso: o encanto do cordel do Nordeste brasileiro

Socorro Acioli 1

Pra gente aqui sê poeta,E fazê rima compreta,Não precisa professô.

Basta vê, no mês de maio,Um poema em cada gaio,E um verso em cada fulô.

Patativa do Assaré Cante lá que eu canto cá

Uma análise cuidadosa da forma e conteúdo do verso acima, de autoria de Patativa do Assaré, já é

um bom mote para compreender muito do que pode ser dito sobre a narrativa em versos que

compõe a literatura de cordel. O poema Cante lá que eu canto cá é uma conversa entre Patativa e

um poeta cantô de rua/que na cidade nasceu. Nesta conversa rimada, Patativa explica que só pode

cantar o sertão quem nele mora e padece. Seu interlocutor no poema, um personagem que o leitor

não tem o prazer de conhecer, é um sujeito de muita educação e conhecimento da ciência, mas não

sabe nada de fome, vida no campo, apragata, unha-de-gato. Portanto, está desautorizado a falar de

tais assuntos. Que fique cantando as belezas de sua terra. Cante lá que eu canto cá, mais que uma

rima, é um pedido de um artista para outro.

A partir disso, ele desenvolve uma série de argumentos sobre a necessidade de conhecer bem a

realidade sobre a qual o poeta está escrevendo. Este talvez seja o motivo principal do surgimento e

da existência da literatura de Cordel: o desejo de expressar as alegrias e tristezas do homem

nordestino, mesmo quando esse homem, em geral, é pouco letrado e, sendo agricultor e poeta,

contraria todas as perspectivas imagináveis para sua vida.

O cordel não nasceu no Brasil. Foi trazido para cá pelos colonizadores portugueses, tem raízes

francesas, espanholas, recebendo ainda influências da poesia árabe, mediterrânea, hindu e persa. Ao

chegar ao Brasil, recebeu uma acolhida especial no Nordeste Brasileiro, que até hoje é o berço

principal dessa manifestação artística.

Para o pesquisador Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes, o cordelista pode trabalhar por três

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caminhos: a oralidade, a cantoria e a bancada.

O caminho da oralidade é o dos poetas que deixam seus versos voando pelo vento, que não guardam

registros, nem se preocupam com isso. Vêem na poesia o prazer da composição naquele momento,

sem interesse de comercialização ou de registro para a posteridade.

A cantoria, também conhecida como repente, é o verso cantado. Se você estiver andando em alguma

praça de uma pequena cidade do Nordeste brasileiro e avistar um grupo de pessoas prestando muita

atenção em dois homens que conversam, pode ter certeza: é briga. Ali, a arma é a palavra rimada e

cantada no tempo certo, com o argumento pronto para derrubar a provocação do adversário. O

objetivo da guerra é a diversão, é arte louvando a vida. O repentista precisa ser rápido, pensar de

repente – daí o nome – para não demorar ao devolver os insultos com a resposta adequada.

No princípio era a voz, a disputa cantada. Depois, bendito seja Gutenberg, os repentistas puderam

passar a registrar seus versos nos folhetos que conhecemos e associamos imediatamente. O próprio

nome, Cordel, vem da palavra corda, onde se penduram os folhetos abertos, uma livraria de cordéis

que pode ser armada, com toda facilidade, à frente de uma bancada. É ali mesmo, no seu ponto de

venda, que o poeta cria os seus novos versos, apoiado na bancada. Daí o nome, Poeta de Bancada,

associado àquele que publica e comercializa os seus folhetos.

Das formas de apresentação do Cordel, passemos às temáticas. Ariano Suassuna, escritor e

pesquisador apaixonado pela literatura de cordel, nos dá uma aula de classificação de temas no

trecho do seu Romance da Pedra do Reino:

“O velho João Melchíades ensinou-nos, ainda, que, entre os romances versados, havia sete tipos principais: os romances de amor; os de safadeza; os cangaceiros e cavalarianos; os de exemplo; os de espertezas, estradeirices e quengadas; os jornaleiros; e os da profecia e assombração.” (...)

Sobre a forma, é riquíssima a gama de possibilidades métricas na literatura de cordel. Como os

poemas são cantados ou lidos em voz alta, a exigência da perfeição métrica é muito grande. A

Academia de Cordelistas do Brasil apresenta a descrição de onze métricas principais: O início,

Parcela ou verso de quatro sílabas, Verso de cinco sílabas, Estrofes de quatro versos de sete sílabas,

Sextilhas, Setinhas, Oito pés de quadrão ou oitavas, Décimas, Martelo Agalopado, Galope à beira-

mar, Meia-quadra.

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Chegando ao que interessa, professor, como é possível utilizar a literatura de cordel em sala de aula,

como trabalhar as narrativas populares? Vimos que existem três formas de apresentação, onze

formas de métrica e sete temáticas principais. A partir desse universo de exemplos, o professor pode

provocar seus alunos a exercitarem a criatividade dentro desses modelos, ou criando novas métricas

e temas.

Claro, antes de praticar, é preciso conhecer. Assistir repentes, cantorias, conhecer de perto poetas de

cordel, são experiências interessantes. Recomendar a leitura de cordéis em voz alta, em sala de aula,

é outra forma divertida de trabalhar esse tema, saboreando a sua rima. Para quem não tem facilidade

de comprar os folhetos na sua cidade, o site da Academia Brasileira de Literatura de Cordel vende

conjuntos de folhetos de diversos autores pela Internet.

A obra de Patativa do Assaré é uma fonte indispensável para trabalhar o Cordel com os alunos de

todo Brasil. A Antologia Poética, publicada pelas Edições Demócrito Rocha, traz poemas

cuidadosamente selecionados por Gilmar de Carvalho, um dos maiores pesquisadores da vida e obra

de Patativa do Assaré no Brasil.

Neste livro, Gilmar de Carvalho selecionou poemas que falam sobre Luís Gonzaga, Beato José

Lourenço e Antônio Conselheiro, entre outros temas. Estes textos podem ser usados pelo professor

de História, como um complemento de aula, apresentando outro olhar sobre o assunto estudado.

Já que falamos sobre Patativa, é com ele que termino o presente texto. Aqui, pretendi apresentar

pinceladas para que o professor desperte o interesse pela literatura de Cordel na sua sala de aula.

Mais detalhes estão nos livros e sites relacionados logo abaixo.

Se nós vivemos por fora

Das coisas que o mundo adora

Da grande ambição que explora,

Ouro, prata e posição,

Temos, em nosso caminho,

Da mansa brisa, o carinho,

E de cada passarinho,

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A mais sonora canção.

Minha Viola, Patativa do Assaré

Referências Bibliográficas:

Academia Brasileira de Cordel. http://www.ablc.com.br/

Jornal da Poesia. http://www.secrel.com.br/jpoesia/cordel.html

CARVALHO, GIlmar (org.). Patativa do Assaré: Antologia Poética. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002.

CARVALHO, Gilmar. Madeira Matriz: cultura e memória. São Paulo: Anna Blume, 1998.

SUASSUNA, Ariano. O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta - romance armorial-popular brasileiro. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971, pp. 58 e 68, e 183-184, para cada uma das tipologias mencionadas

Nota:

1- Jornalista,escritora e mestre em literatura Brasileira pela Universidade Federal do Ceará.É autora dos livros infantis Bia que tanto lia, É pra ler ou comer? e Como é que existe, se não tem nome?.

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