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273Introdução a uma Filosofia do Conhecimento

pp. 273-294Revista Filosófica de Coimbra — n.o 34 (2008)

INTRODUÇÃO A UMA FILOSOFIA DO CONHECIMENTO

JOSÉ REIS

(Instituto de Estudos Filosóficos – Faculdade de Letras – Universidade de Coimbra)

1. O acto comum como a essência do conhecimento, em Aristóteles ena Filosofia Moderna

Ao iniciar a introdução a uma Filosofia do Conhecimento, a primeiracoisa necessária, a meu ver, é evocar o «acto comum» de Aristóteles.Conhecer é: juntar a consciência às coisas por conscienciar, dando comoresultado as coisas conscienciadas; ou, para citarmos as suas própriaspalavras, «o acto do sensível e o acto do sentido são um só e mesmo acto,mas a sua quididade não é a mesma». São um só e mesmo acto, porquese juntam, constituindo um apenas; mas juntam-se preservando cada uma sua essência, de modo que geram justamente uma con-junção ou com-posto. Se houvesse dúvidas quanto ao sentido do que o Estagirita querdizer, logo o seu próprio exemplo as tiraria. «Tomo o exemplo», escrevena verdade, «do som em acto e do ouvido em acto. Pode acontecer queaquele que possui o ouvido não ouça e que o que tem o som não ressoesempre. Mas quando passa a acto aquele que tem o poder de ouvir, e queressoa aquilo que tem o poder de ressoar, então produzem-se simulta-neamente o ouvido em acto e o som em acto, aos quais podemos chamarrespectivamente a audição e a ressonância»1. Poderá decerto haver o somsozinho – bem como as cores sem a vista ou os sabores sem o gosto –como logo adiante referirá contra «os primeiros fisiólogos»2. Mas, nessaaltura, não haverá conhecimento. Para que este exista, é necessário juntarao acto do objecto, isto é, àquilo que ele é, o acto do sujeito ou acto deconsciência, gerando-se em conjunto o objecto conscienciado.

1 ARISTÓTELES, De an. III, 2, 425 b 25-426 a 2. Cf. 15-17.2 Ibid. 19-22.

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Revista Filosófica de Coimbra — n.o 34 (2008)pp. 273-294

José Reis

E não se diga que, depois de Descartes, Kant e Hegel, para só referirestes, voltar a Aristóteles é um anacronismo. Porque, sem dúvida, comDescartes as coisas para o acto comum deixaram de se ver, com Kant elaspassaram a alterar-se completamente ao serem recebidas pelo sujeito, ecom Hegel chegou-se mesmo à conclusão de que, se o conhecimento éuma tal alteração, então o absoluto (o que há para conhecer), como eledirá no início da Introdução à Fenomenologia do Espírito, não é pássaroque caia na armadilha. Mas em nenhum dos casos o conhecimentopropriamente dito deixou de ser a tomada de consciência das coisas e, porconseguinte, o acto comum. Em Descartes, com efeito, tudo o queacontece é que as coisas se deixaram de ver para além das ideias, masvêem-se ainda estas: por falta de raio de acção do sujeito, não é possívelo acto comum com as coisas, mas é-o com as ideias. Aliás, é por estarazão que, não se vendo as coisas, estas são postas em dúvida, mas,vendo-se as ideias, elas não o são. Tal como continua o acto comum nosfenómenos kantianos. De resto Kant julga que os próprios númenos,enquanto são o fundamento dos fenómenos, ainda de algum modo se vêemnestes; pelo que só ficam mesmo as efectivas determinações numénicaspor ver. E em Hegel é certo que nada propriamente se vê, antes toda asolução do problema do conhecimento parece ser a de que o objecto éproduzido pelo sujeito; mas, e justamente, é produzido para poder servisto, portanto para poder haver o acto comum, tal como o anterior jáhavia sido recusado por não se ver, por não se poder realizar com ele oacto comum; pois era porque, sendo exterior ao sujeito, ele tinha de serrecebido por este – e nessa recepção se alterava radicalmente – que talobjecto não se podia conhecer: dizia-se que o conhecíamos, mas ao fime ao cabo o que conhecíamos eram os nossos modos activo e passivo enada dele; ao ser agora produzido pelo sujeito, o novo objecto não só nãose tem de receber, e nessa recepção alterar-se, como é mesmo à partidada própria natureza do sujeito; pode por isso, ao menos supostamente,conhecer-se.

É assim de facto um dado que, com Descartes, Kant e Hegel, asanteriores coisas propriamente ditas se deixaram de ver. Mas passaram aver-se outras, mudando o acto comum apenas de objecto, para além deque até o não-conhecimento das primeiras continua a testemunhar, pordeficiência, esse mesmo acto comum. O que na verdade aconteceu foi queeste acto comum se pôs desde sempre sobre a representação. E, como estaúltima acabou por levar a problemas que pela sua própria naturezapareciam mais graves e anteriores, foi para aí que voltámos o olhar e oacto comum praticamente desapareceu de vista. Ele, como acabamos dever, lá continua como o conhecimento propriamente dito; mas osproblemas que se impuseram passaram a ser os outros (a transcendência

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