e ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

432

Upload: trinhkien

Post on 07-Jan-2017

242 views

Category:

Documents


3 download

TRANSCRIPT

Page 1: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 2: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 3: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

Marinheiro só

Page 4: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 5: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

Claudio Guerra

Marinheiro só

1ª edição

Natal[RN]

Editor: Carlos Gregório B. Guerra-MEI

[O baú de Macau - Editora e Artes]

2011

Page 6: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

Copyrigth @ Claudio Antonio Guerra

CapaO baú de Macau - Editora e Artes

Revisão, Projeto Gráfico e Editoração EletrônicaO baú de Macau - Editora e Artes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação[CIP]

____________________________________________Guerra, ClaudioMarinheiro só/ Claudio Guerra.Natal[RN]/O baú de Macau -Editora e Artes - 2011218 p.ISBN 978-85-64496-01-9

CDD B869 ___________________________________________

Índice para catálogo sistemático:1. Ficção: 2. Literatura brasileira

Natal[RN] - setembro/2011

Editor: Carlos Gregorio B. Guerra-MEI [O baú de Macau - Editora e Artes]

CNPJ: 12.994.099/0001-73Rua Presidente Cunha Barreto, 1417 -[Anexo]

Barro Vermelho59030-540 - Natal [RN]Telefone: [84] 2010-2188

[email protected]

Page 7: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

Para o marinheiro José Manoel,mártir do povo brasileiro

epara todos os que lutam contra o esquecimento,

em especial paraGeni

que não deixou a ditadura brasileiratripudiar sobre o cadáver

do seu companheiro.

Page 8: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 9: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

“Quem é essa mulher,Que canta sempre o mesmo arranjo?Só queria agasalhar meu anjoE deixar seu corpo descansar”.

Angélica, Chico Buarque

Page 10: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 11: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

Índice

1. Um cemitério no Recife 13

2. Os marinheiros do Potengi 23

3. Festa de padroeira 29

4. Um casamento no Alecrim 33

5. Os marinheiros da Guanabara 39

6. O golpe 45

7. O marinheiro João Cândido 51

8. Um dia de fuga no Rio de Janeiro 59

9. Abril de 1964 em Natal 65

10. Itapissuma 71

11. Marinheiro só 81

12. Companheiro Moisés 85

13. Jonatas, que não era mais 89

14. Paratibe, adeus! 97

15. O Comando Gelson Reicher 103

16. O marinheiro Custódio 109

17. Um cachorro chamado Kimble 117

18. Primavera em Santiago 125

19. Um sequestro em Toritama 135

20. Sequestros no Recife 141

Page 12: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

21. É como se mata cachorro 149

22. Um dia de muita chuva no Recife 157

23. Todas as mortes de José Manoel 161

24. Uma sessão de tortura 163

25. Um pé de fruta-pão 173

26. Barro Vermelho 179

27. Terroristas em Natal 183

28. Recordações de Pernambuco 187

29. Incidente em Brasília 191

30. Tecendo a manhã 195

31. Hoje, morreu um cristão 203

Page 13: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

13

1. Um cemitério no Recife

O homem olhou-a com a cara fechada. Comódio. Cara de mau. Tirou os óculos escuros e dissenuma grosseria de meter medo:

–– É o quê, hôme!Aos gritos, chamando a atenção de todo mundo

e avançando sobre ela como se fosse passar por cima.Era mesmo para intimidá-la, humilhá-la.

Ela fitou o homem com espanto. Uma lágrimaescorreu mansinha, imperceptível.

Eu é que não vou dar gosto para esse animal,pensou.

Foi falar e a voz ficou enroscada na garganta.Aí, não conseguiu segurar. Outra lágrima rolou,agora cheia, estourando na face. Baixou a cabeçaenvergonhada. Estava quase vencida. Virou-se equando ia saindo, sentiu a mão grosseira do homemda cara de mau segurando com força o seu braço. Ohomem falou baixinho junto do seu ouvido:

–– Cemitério da Várzea...Em seguida, num grito histérico para que todos

ouvissem:–– Suma daqui e não volte nunca mais!Ela olhou assustada, em pânico, atarantada. O

rosto do homem parecia de cera, sem vincos.Várzea?! Várzea... conhecia tão pouco o Recife. Seriamentira? Teria dito só para se livrar dela que vinhaali quatro, cinco vezes ao dia com a mesma pergunta.

Não teve tempo para dúvidas. O homem da

Page 14: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

14

cara de mau, apertou ainda mais forte o seu braço esussurrou:

–– Se disser uma palavra eu juro que lhe mato...Saiu da sala confusa, meio sem saber o que

fazer. Caminhou com as pernas bambas pelo corredorcomprido, escuro e com um sem fim de portas dosdois lados, vermelhas descoradas, sentindo o cheiroforte de urina e merda. Ouviu gritos de pavor e umavoz mais forte ordenando:

–– Fala, filho da puta!Pela porta entre-aberta ela pode ver um homem

dobrado e pendurado a poucos centímetros do chão,suspenso em duas mesas. Mais tarde ela assistiriaaquele tipo de tortura, o pau-de-arara. Amarravamos punhos da vítima e atravessavam um pau entreos joelhos dobrados e os punhos amarrados ependuravam entre duas mesas. Naquela posição otorturado recebia choques elétricos e era espancadocom um objeto de madeira, a palmatória. Como podehaver tanta maldade? Sentiu um frio intenso em todoo corpo. O policial que a acompanhava sorriu e bateuna porta entreaberta. A porta foi fechadaviolentamente com um grito de protesto:

–– Porra! Eu já não lhe disse prá não deixaressa merda aberta!

Na calçada, um carro com a sirene ligadaestacionou de sopetão e dele desceram dois homensà paisana e esbarraram nela, quase derrubando-a.Entraram arrastando um rapaz de cabelos pretos elongos e olhar de pavor. Aquela fachada suja e

Page 15: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

15

decadente do prédio e aqueles homens lhe causavamasco.

Passavam os ônibus. Passavam muitos carrospara um lado e para outro. A rua estavamovimentada, cheia de gente, bicicletas eautomóveis. Estava espantada. Recife se tornara umacidade grande, assim, de repente. Ficou ali na ruasem saber direito para onde ir e viu quando um corcelverde dobrou numa rua próxima e passou bem pertodela. De longe o carro chamara sua atenção e tevecerteza que era o carro de Zezinho. O homem novolante usava um chapéu de couro, de vaqueiro. Elestambém haviam levado o carro de Zezinho. Só agoraela dava conta disso, envolvida que estava emdescobrir o corpo do marido. E afinal porque aquelehomem de chapéu de vaqueiro estava com o carrode Zezinho?

Surgiu um caminhão grande onde ela achavaque seria o começo da rua. Era o começo e era ofim, porque era de lá que os automóveis surgiam eos que iam, sumiam. Ficou olhando aquilo, os carrossumirem na rua, parecia um buraco engolindo carrose gentes. Não conseguia pensar em outra coisa quenão fosse chegar no cemitério. Ela tinha que ir aocemitério naquela hora imprópria de sol quente domeio dia. Não sentia fome nem nada.

Finalmente apontou um ônibus. Conferiu, nãopassa. Depois de um tempo veio outro. Esse deve ir,pensou. Foi alertada por um rapaz:

–– Moça, este passa!

Page 16: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

16

Deu com a mão e quando o ônibus parou,conferiu. Passa. Este passa na Várzea. Subiu ela emais três passageiros e uma criança chorando. Subiuno ônibus chorando e assim ficou, chorando. Umchoro contínuo, monótono, sentido, de grandemágoa.

Pediu ao motorista que a deixasse no Cemitérioda Várzea. Quem escutou, olhou logo para ela. Umamulher no banco de trás benzeu-se e depois, beijoua mão.

Ficou olhando para nada dentro do ônibus.Parecia em estado de choque. Depois de algumtempo, recobrou o ânimo e ficou preocupada.Perguntou ao motorista se faltava muito. Faltava.Ficou lendo as placas. Encruzilhada, Casa Amarela,Apipucos, Caxangá, Curado, Cidade Universitária,Iputinga e não chegava a Várzea. Finalmente chegou.Não sabia que chegara. Não viu o cemitério. Omotorista foi quem falou:

–– Moça, o cemitério da Várzea é aqui!Um rapazinho de cabelos compridos comentou:–– Aqui não quero vir tão cedo!Quando descia do ônibus, atribulada e insegura,

ainda ouviu o diálogo entre duas mulheres:–– Seu Totonho do Marco Zero foi enterrado

aqui! Você conhecia?–– Não conhecia e agora nem quero conhecer!

Respondeu a outra, benzendo-se.Desceu, ela e mais uma mulher de vestido azul

que sumiu logo em seguida. Ficou procurando o

Page 17: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

17

cemitério. Um homem de chapéu marrom vinhaatravessando a rua. Perguntou.

–– É por ali! Disse o homem solícito, feliz porprestar a informação.

E ela foi por uma ruazinha mais estreita. Foicaminhando e ouvindo uma música de RobertoCarlos que vinha de alguma casa por perto. Era umamúsica nova de Roberto Carlos. Ela ouvia a todahora no rádio.

E Geni acompanhou os versos: “Não tinhamedo de nada/Não tinha medo de escuro/ Não temiatrovoada/ Meus irmãos à minha volta/ E meu paisempre de volta/ Trazia o suor no rosto/ Nenhumdinheiro no bolso/ Mas trazia esperança”. E chorou.Caminhava quase que empurrada por uma força quenão sabia de onde vinha.

“Essas recordações me matam/Essasrecordações me matam”. Era a música quecontinuava ao longe. E recordou os seus irmãos emNatal, todos solidários com o seu sofrimento e coma sua dor, todos sofrendo com ela desde muitotempo, desde que haviam começado as perseguiçõesa José Manoel. E lembrou-se do seu pai, seu queridopai, que assim como ela e os irmãos estava sem saberdireito o que significava tudo aquilo.

As barracas dominavam a rua toda. De umaponta, o colorido das lonas. Ali se vendia de tudo.Muita gente fazendo refeição naquelas barracas, umapor cima das outras. Parecia uma feira. Parou numadelas para confirmar se era ali mesmo. Era.

Page 18: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

18

–– É aqui mesmo! Respondeu um senhor decamisa amarela que bebia alguma coisa, sem dartempo da dona da barraca virar-se para responder.O homem olhou-a de alto a baixo, assim comosurpreso, assim como se perguntasse como é que umacriatura não sabia onde ficava o cemitério da Várzea.Todo o Recife sabia.

Achava aquilo tudo uma loucura. Como vierasem ter certeza: e se aquele brutamontes mentira edissera aquilo só para se livrar dela? E se fosse umaarmadilha? Mas agora ela já estava lá. Agora erasaber a verdade, se o corpo de José Manoel estavaou não naquele cemitério.

Havia pouca gente no cemitério. Perguntoupelo coveiro e alguém lhe indicou. O coveiro era umhomem curvado sobre a sua magreza e com umchapéu enterrado na cabeça. Estava fazendo algumtrabalho e demorou-se muito para virar-se eresponder. Tinha a cara de bom, mas olhavadesconfiado.

–– É sobre um homem que morreu há unsquinze dias! Perguntou vexada.

–– Acidente? O coveiro virou-se indagando comsua voz forte, sonora.

–– Não! Respondeu e completou quase comoum apelo:

–– Ele era meu marido!O coveiro olhou desconfiado e desconversou:–– Aqui nós enterramos essa gente desgarrada

de todo esse Pernambuco! Como é que eu vou saber?

Page 19: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

19

Sei não! Virou-se e voltou ao que estava fazendo.Ela insistiu:–– Ele foi assassinado!Aí, o coveiro demonstrou não só no rosto como

nos gestos que estava preocupado. Olhou meiointerrogativo para ela, parou o trabalho, foi seafastando desconfiado e disse taxativo:

–– Aqui na Várzea não foi não!Ela insistiu mais uma vez:–– Foi ele e mais quatro ou cinco e tinha uma

moça também!Agora os olhos do coveiro piscaram de medo.

Dava para ver que era de medo. Olhou mais umavez para todos os lados. Estava acuado:

–– Olha moça, eu não quero complicação paramim não! Falou finalmente com a voz limpa, sonora.

Ela estava angustiada. Não esperava que tudofosse fácil mesmo. Tinha certeza que sua “via crucis”seria grande, mas estava disposta a enfrentar. Nãosabia de onde tirava as forças. Precisava agora buscara informação. O primeiro impacto já fora quebrado.O coveiro já tivera coragem suficiente para ficar nadefensiva. Era um bom começo.

Abriu o jogo. Foi honesta:–– Veja bem, como cristã eu preciso saber do

corpo do meu marido! Ele precisa ter um túmuloonde eu possa vir rezar pela sua alma! Onde meusfilhos também venham rezar por ele! Eu não sei quaisos erros que ele cometeu para ter sido torturado eassassinado da forma como foi! A minha vida com

Page 20: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

20

ele era o seu trabalho de fabricante e vendedor decalçados, os nossos filhos e a nossa casa! Nada maiseu sei, mas preciso cumprir minha obrigação decristã! Foi tudo dito assim de sopetão, aos trancos.Precisava dizer logo tudo. Tomou folego ecompletou:

–– E mais a mais ele não é um indigente, ummendigo! Ele tem família e não pode ficar assimnuma vala qualquer! Fez um enorme esforço paranão chorar. Conseguiu, mas a palavra indigente quasenão saíra.

O coveiro percebeu o desespero dela:–– Olha, moça, nós vivemos aqui no terror! E

antes fosse o terror das almas penadas! Mas é deoutro terror que eu falo! Desse mesmo que matouseu marido! E eu nunca imaginei que minha profissãopudesse ser tão cheia de perigos! Por favor moça, eunão quero problemas para mim nem para minhafamília! Já sei de companheiros de profissão que estãopassando dificuldades e eu não quero estas confusõespara minha vida não!

Ele vai falar. Ela percebeu que toda aquelajustificativa, que todo aquele medo sincero expostoassim daria forças para ele falar.

–– Eu só preciso saber sim ou não! Você me dizsomente sim ou não! Não precisa dizer mais nada!

Encarou o homem que baixou os olhosmedrosos. Quando levantou a cabeça percebeu oolhar de súplica de Geni:

–– Senhora, disse tirando o chapéu pela

Page 21: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

21

primeira vez, eu tenho família, crianças pequenas eeu não quero me comprometer não! A senhora mesmosabe como é nos dias de hoje! E mais a mais essepovo vive rondando todo dia e toda hora aqui pelocemitério, fazendo perguntas, querendo saber quemesteve aqui, a que horas e que dia! Aí, colocou ochapéu e olhou para ela nos olhos. Era um olhar desofrimento. E disse, quase chorando:

–– Querem relatório detalhado e sempre nosameaçam! Olha, eu estou apavorado com tudo isso!

Geni suspirou aliviada. Sabia que obrutamontes não mentira.

Restava agora o coveiro falar. E ele falou:–– Senhora, o carro da Caridade veio aqui faz

alguns dias e trouxe cinco corpos para serementerrados na área dos indigentes!

Tomou fôlego, olhou para os lados e continuou,agora, mais assustado ainda:

–– Eu nunca procuro saber do que se trata poisaqui na Várzea é sempre bom a gente não saber denada, mas o motorista disse que se tratava deterroristas...

Baixou ainda mais a voz e quase balbuciando,completou:

–– Disse que eram três rapazes e duas moças eque estavam todos estropiados...

1973. Ditadura, ditadura militar, regime militar,regime autoritário, regime autoritário-burocrático.Estado de Segurança Nacional, Estado totalitário.

Page 22: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

22

A república brasileira sangrava em 1973. Quase umadécada de mando dos militares. Em 1964 a burguesiapressentiu perigo e deu o golpe. O presidente eleitodemocraticamente, João Goulart, foi deposto.

No Brasil não existe mais eleição para presidente,nem para governador nem para prefeito de capital.Muitos não se curvaram. José Manoel foi um deles.

Page 23: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

23

2. Os marinheiros do Potengi

Um homem parou junto ao portão da pequenavila de quartinhos encravada no Alecrim e ficououvindo. Devia ser um homem sensível à poesia,porque parou para ouvir. Ele ia apressado, quemsabe para onde àquela hora da madrugada, masparou para ouvir José Manoel de voz bem postada,declamando os versos:

“sei que não vou ter rosas nem flores ninguém cantará hinos de amores, ninguém abraçará o meu caixão!... Afinal... Quem sou eu?! Um peregrino... No além não soará as badaladas de um sino, e ninguém dirá... Hoje, morreu um cristão!”

O homem continuou seu caminho quandoouviu lá de dentro, do corredor estreito e comprido,uma voz mais forte de um homem, que mesmo napenumbra viu tratar-se de um marinheiro:

–– Avie, Zezinho! A Marinha precisa demarinheiros e não de poetas! Não é o que semprediz o capitão?

José Manoel interrompeu a declamação eguardou com cuidado o seu caderno de poesias numaestante improvisada junto à cama e disse sorridentesaindo do quartinho:

–– Hoje eu estou feliz! Ontem recebi uma carta

Page 24: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

24

da minha mãe! E ontem mesmo fiz esta poesia paraela! Gostou da poesia, Zé Raimundo?

–– Hôme! Vamos embora senão chegaremosatrasados! Aperreou-se José Raimundo:

–– Vamos deixar a arte para depois! Agora é aobrigação! Nos apresentar, embarcar e levar a santaaté a Pedra do Rosário! Completou.

E daquelas casinhas baixas, grudadas comosiamesas, ainda no escuro, saíram seis ou setemarinheiros caminhando silenciosamente pelacalçada alta, irregular até saltarem um a um para arua larga de pedras irregulares e escorregadias. Ruaíngreme que ia de ponta a ponta da colina queseparava o Alecrim da Ribeira. Desceriam até o rioe nos trilhos, seguiriam pela estrada de ferro até aBase dos Fuzileiros Navais, nas Quintas.

E dali, do alto da rua onde estavam aquelesmarinheiros naquele momento, descortinava-se o rio,o manguezal, o mar e mais ao longe as dunas querefletiam agora, à primeira claridade, uma tênue linhaluminosa no horizonte.

Um pouco mais tarde o rio iria dourar e depoisficaria azul escuro até à tardinha quando voltava adourar de novo. Era assim que o Potengi semprefora: um rio dourado e azul escuro. Era assim queao menos ele, José Manoel, poeta, prenhe de sonhose vindo do sertão de Pernambuco para sermarinheiro em Natal, via o rio Potengi, o rio grandedo norte.

E como José Manoel, eram todos jovens

Page 25: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

25

irrequietos e cheios de esperanças que fugiam dosconfins do sertão árido e pobre, da caatinga tiranae começavam a descobrir o mundo: Estocolmo,Amsterdã, Nova Iorque. O mundo para eles já eramuito mais que Natal, João Pessoa e Recife.

Vieram atraídos pela propaganda que lhesprometia muito e cumpria pouco. Um dia, seriamoficiais: não seriam. Naquela época, o almirantadobuscava jovens que não contestassem a quaseescravidão dos navios.

A revolta da Chibata e João Cândido aindaestava muito presente. E eles, jovens sertanejos,estavam lá naquele grande depósito de mão de obra,que se tornara o sertão nordestino, mantidos comas sobras das verbas das campanhas contra a seca,esperando uma oportunidade para sair daquelemundo opressivo do mando dos coronéis, dosempregos de favor, do voto comprado e exigido, dosfavores cobrados nas eleições, da falta de perspectiva,da miséria e da humilhação.

Mas estávamos nos sessenta e, no Brasil,falavam-se em mudanças. Havia esperança.

Conversavam pouco, mas tinham muito parafalar. Mas àquela hora, naquele dia estavam todoscom o pensamento voltado para a festa da padroeira.Não a sagrada, pois deles, poucos tinham fésuficiente para fazer aquilo tudo sem reclamar:acordar mais cedo que o costume e escoltar a santario acima desde o cais da Ribeira até o cais da Pedrado Rosário. Assistir a interminável pregação de Dom

Page 26: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

26

Marcolino e sair dali com o rosto queimado pelo sole com a certeza de que Nossa Senhora daApresentação era a maioral da santas e com ela seconseguia tudo, ou quase tudo.

Na verdade, o que esses jovens marinheirosaguardavam mesmo e com ansiedade era a festaprofana a noite na Praça André de Albuquerque emfrente da catedral. A festa das quermesses, dasbarraquinhas de comidas, das barraquinhas dasargolas, dos tiros e das prendas. Das mocinhas bemvestidas e bem perfumadas, moças de família, moçaspara casar e que vinham do Alecrim, do Baldo, dacidade Alta, das Rocas e até do distante bairro dasQuintas e que também aguardavam ansiosas a festada padroeira.

Caminhavam calados quando viram surgir umautomóvel em grande velocidade lá no começo darua. Logo em seguida ouviram uma freada brusca eo barulho dos pneus arrastando no calçamento poralguns segundos e depois, o baque surdo do choquecom alguma coisa. Ouviram gritos de imprecações eem seguida risadas altas, debochadas.

Viram quando um rapaz e uma moça desceramdo automóvel e foram olhar a frente do carro.Avaliavam o estrago. O rapaz gritou um palavrão ea moça deu uma risada escandalosa. Dentro doautomóvel riram e gritaram:

–– Vamos embora! E logo!O rapaz e a moça voltaram para o carro que

arrancou em grande velocidade. Desceram a rua na

Page 27: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

27

direção dos marinheiros que ainda estavam no meioda rua, embasbacados com todo aquele barulhoàquela hora da madrugada.

Edson puxou José Manoel pelo braço emdireção à calçada. O veículo vinha em disparada ediminuiu a velocidade passando muito próximo deles.Era um Chevrolet Impala vermelho, novinho,novinho. O cheiro de borracha queimada e gasolinaacompanhavam o veículo que levava moças e rapazesexcitados e sorridentes.

Passaram gritando insultos contra osmarinheiros. Gritavam e sorriam. Vinham de algumafesta e pareciam embriagados.

–– Serão as mulheres da Maria Boa? Perguntouum dos marinheiros.

–– Não! De maneira nenhuma. Elas são maishonestas! Respondeu outro.

Um marinheiro fez menção de apanhar umapedra para atirar contra o veículo. Os outrosrecriminaram e José Raimundo disse:

–– Não! Não vale a pena! Amanhã vão dizerque a Marinha do Brasil cometeu um atentadocontra jovens indefesos do Tirol...

–– Deixa prá lá! Completou.

3 de outubro de 1960. Varre varre vassourinha...Jânio Quadros venceu a eleição para presidenteafirmando que é um homem acima dos Partidos eque vai acabar com a corrupção. Uma parte daburguesia e dos militares não gostavam do Jânio. Eles

Page 28: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

28

pensavam em resolver a sucessão de Juscelino de outromodo. Há muitos anos que queriam resolver de outromodo. Diziam que Jânio bebia muito e que tambémera excêntrico. Afirmavam que ele ia criar problemas.

Os americanos também não gostavam, diziamque Jânio não era confiável. Nos Estados Unidos daAmérica, Lincoln Gordon estava sendo preparado paraser embaixador no Brasil.

Page 29: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

29

3. Festa de padroeira

O menino ergueu o rosto assustado,envergonhado, com ar de choro. Estava estendidona calçada, junto ao meio fio e todos olhavam paraele. Era um menino franzino e devia ter uns noveanos. Vestia roupas surradas, grandes para ele ecalçava uns Sete Vidas azul, de solado muito gasto,bem lisinho. As pipocas estavam espalhadas ao seuredor, por toda a calçada. A mulher com a qualesbarrara provocando-lhe a queda, não tinhacomiseração e gritava histérica, olhando se mancharao seu vestido.

Não fosse este fato, quase normal nas festasdas padroeiras, o grupo de marinheiros, talvez dezao todo não teriam visto as duas mocinhas quepassavam naquela hora e que pararam para ver omenino no chão e a mulher histérica que gritava.

E naquele momento em que as duas mocinhaspararam no meio da rua para ver o incidente, doismarinheiros vieram em socorro do menino,levantaram-no e compraram outro saquinho depipocas. O menino mal agradeceu, saiuenvergonhado, olhando para os lados e desapareceuna multidão.

E a conversa dos marinheiros, recostados nabarraca da quermesse, passou imediatamente daqueda do menino para a mocinha de vestido debolinhas amarelas, que agora, já não estava mais

Page 30: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

30

ali. Já ia, com sua amiga, dobrando a rua na esquinada catedral, em direção à Avenida Rio Branco embusca do ônibus que as levariam para casa.

Jovens do interior, tímidos, mas descobrindoum mundo que nunca imaginaram existir e cheiosde sonhos e esperanças, experimentavam a sensaçãode algum reconhecimento social naquela festasagrada e profana, afinal, eram da Marinha do Brasil.Na Marinha, uma contradição tremenda e que pareciaestimulada pelos altos escalões. O marinheiro deveriaficar no seu lugar. E seu lugar era embaixo. Sesubisse, deveria subir com ele também, toda a pompae toda glória do almirantado. Afinal, não se buscavaoficiais nos confins do sertão brasileiro. Os oficiaistinham origem. Um almirante sempre gostava defrisar isso.

–– Dois... três... quatro...–– Ah! Geni! Para com isso que é feio! Reclamou

a prima.Elas estavam agora na praça Padre João Maria

e Geni dava as passadas contando alto de acordocom as badaladas do relógio da catedral, sorrindofeliz, numa brincadeira inocente e ainda com aquelegostinho da lembrança de ter sido o centro daatenção dos marinheiros. Não só ela, mas a primatambém percebera os olhares compridos dosmarinheiros.

O relógio parou na décima badalada e Geniolhou preocupada para a prima:

–– Nossa! Dez horas e a gente ainda aqui e

Page 31: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

31

mamãe nem sabe que eu vim nessa festa! Vamosembora depressa!

Desceram até o Cine Rex e ficaram olhando oscartazes dos filmes, mas nem esperaram muito.Apontou na avenida buzinando e com um roncochoroso, vindo lá da Ribeira, o Bossa Nova daRocas/Quintas, que parecia trazer o povo todinhodas Rocas.

No Alecrim, desceu quase todo mundo noQuitandinha. Elas também desceram e caminharamna direção da Avenida Dez. Àquela hora o Alecrimera sempre bem movimentado do povo que voltavapara casa. Não andaram muito e foram abordadaspor um marinheiro de olhos grandes. Ele foi maisque direto:

–– Eu vim porque gostei de você! Disse paraGeni com um tom de voz quase autoritário.

A prima não esperou:–– Eu vou indo! Disse, já saindo.–– Não! E mamãe vai dizer o quê se ver você

chegar sozinha?A prima contemporizou:–– Está bem! Eu espero um pouco, mas só um

pouco, viu?–– A gente viu quando você subiu no ônibus,

mas pensei que você também morava aqui noAlecrim! Disse Geni, agora mais calma.

José Manoel sorriu e cravou os grandes olhosem Geni:

–– É, eu moro! Quase todo mundo da Marinha

Page 32: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

32

mora no Alecrim! Os comandantes não, é claro! Eentão?

–– Não sei... mamãe não gosta muito demarinheiros não! Aliás , ela não gosta de homem defarda porque vocês vivem brigando aqui peloAlecrim! Ela vai reclamar! Eu sei que ela vaireclamar!

José Manoel nem esperou que ela terminasse:–– Amanhã eu venho aqui e falo com sua mãe,

com o seu pai e com todo mundo! E depois,apertando sua mão, disse sorrindo:

–– Palavra de marinheiro!Foi um sorriso sincero. Geni sentiu que era

sincero.

1 de janeiro de 1961. Jânio Quadros assumiu apresidencia. Condecorou Chê Guevara e os militaresficaram possessos, não todos; a burguesia ficou decabelo em pé. Os americanos também não gostarame aprovaram mais verbas para a Escola das Américas.Jânio vai renunciar. Está sendo pressionado pararenunciar. 25 de agosto é o dia do Soldado, foi o diaque Jânio renunciou em 1961. Agora, a burguesia, osmilitares e os americanos não querem que o viceassuma. O vice é João Goulart e foi eleitodemocraticamente pelo voto livre do povo brasileiro.Preferem outra solução. Há muitos anos que aburguesia brasileira, uma parcela dos militares e osamericanos querem outra solução.

Page 33: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

33

4. Um casamento no Alecrim

–– E agora que eu não acho a alva!?–– Vai sem alva mesmo! Respondeu o sacristão.–– Bote este sobrepeliz! Completou grosseiro.–– É grande... veja se tem um menor! Pediu

quase chorando.–– Tem não! Se vire com este mesmo! Foi a

resposta seca e mal educada que ouviu.–– E avie que padre João já vai entrar! O

sacristão falou com a maior autoridade do mundo.E o coroinha, menino magrinho e pequenino, vestidocom um sobrepeliz sobrando por todo lado,arrastando pelo chão, aperreou-se quando viu quepadre João vinha do fundo da sacristia e se dirigia apassos rápidos para a celebração.

–– Venha até aqui! Disse rispidamente osacristão.

–– Mas o padre João já vai entrando!–– Preste atenção! “Et introibo ad altare Dei!”

disse autoritário o sacristão, esperando a resposta.–– “Ad Deum qui laetificat juventutem meam!”

respondeu quase sem fôlego o coroinha correndopara entrar no altar junto com o padre.

Era a tarde de 11 de novembro de 1962 e tinhapouca gente na igreja. Todos ficaram de pé à entradado sacerdote e do coroinha.

Os noivos já aguardavam no altar. A igreja ficavaespremida entre duas ruas que ligavam os bairros

Page 34: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

34

com a estação rodoviária, o porto e a ferrovia. Dequando em quando o barulho de um veículo invadiaa igreja.

–– É Fenemê! Disse o menino de camisa amarela.–– É não! É um Studebeique! Respondeu o

outro.–– Quer apostar? Completou, se levantando e

encarando o menino de camisa amarela.–– Aposto!Sentados na escadaria da igreja, haviam fugido

da cerimônia de casamento e vadiavam ali foraquando ouviram o ronco surdo de um caminhãoque vinha lá da Ribeira e passava pelo Baldo emdireção ao Alecrim.

Padre João também ouviu aquele somarrastado ao longe e preocupou-se. Quando chegarna pracinha ninguém ouve mais nada aqui dentro,pensou. E apressou a cerimônia.

Nem esperou a noiva terminar o, “assim comomanda a Santa Madre Igreja Católica ApostólicaRomana”, e acrescentou:

–– “Ego conjúgo vos in matrimónio. In nomineePatris, et Fiii, et Spiritus Sancti!”

–– Amem! Todos responderam.No altar, ela e José Manoel pareciam duas

crianças. José Manoel num terno escuro e um olharde esperança, de uma longa vida pela frente naMarinha do Brasil. Geni num vestido branco simplese belo, véu e grinalda, olhava a expressão calma dopai que contrastava com o ar preocupado de sua

Page 35: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

35

mãe. O terno branco de linho, os óculos largos e acalvície bem acentuada dava um ar de segurança aoseu pai. Aquilo lhe confortava.

E se lembrava das conversas com sua mãe. Dasdemoradas conversas enquanto lavavam a louça earrumavam a cozinha. A mãe ansiosa lhe enchendode perguntas, os porquês marinheiros não podiamcasar, nem votar e nem andar à paisana. E se aquilotinha futuro para ela, casar assim e ir para longe.

E ela insistindo que tudo iria dar certo, que secasariam na igreja e depois, no Rio de Janeiro, secasariam no civil e que Zezinho na última carta lhecontara sobre a associação dos marinheiros queestava ficando cada vez mais forte e que logo logoiriam conseguir que os marinheiros pudessem casarcomo todo mundo, pudessem votar e até eleger ummarinheiro deputado e que o soldo iria quase dobrare eles marinheiros passariam a ser respeitados.

A angústia da mãe era grande.E dava conselhos: Olha, mantenha o chão da

sua casa sempre encerado, e as panelas bem areadas,viu! Seja uma boa dona de casa e não dê motivospara ele reclamar de você!

E todos estes pensamentos vinham agora paraGeni, ali no altar, prestes a mudar radicalmente suavida.

Em seguida padre João aspergiu a água bentanas mãos dos esposos dizendo:

–– “Per áquae benedictae aspersiónem det vobisomnipotens Deus suam grátiam et benedictiónem!”

Page 36: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

36

E passou logo para a benção das alianças.–– “Adjuntórium nostrum in nominee Dómini!”O barulho do caminhão já começava a

atrapalhar a cerimônia.–– “Qui facit caelum et terram!” Respondeu o

coroinha com sua voz sumida, presa na garganta.–– “Domine, exáudi oratiónem meam!”

Novamente o sacerdote elevou a voz para ser ouvido.–– “Et clamor meus ad te véniat!”–– “Dóminus Vobiscum!” Padre João agora

gritava.–– “Et cum spiritu tuo!” Desta vez a voz do

coroinha saiu límpida e seus olhos brilharam pelaprimeira vez em toda a cerimônia.

Tudo foi simples e breve. Demorada apenas paraos noivos sempre ansiosos. Interminável mesmo parao pequeno coroinha, que pela primeira vezparticipava de uma cerimônia como auxiliar do padreJoão.

Só Geni, que mesmo preocupada com ocasamento e a mudança para o Rio de Janeiro nodia seguinte, percebera o desconforto doatrapalhado coroinha, com um cíngulo grosso, acimada barriga, prendendo as vestimentas que nãohaviam sido feitas para ele.

Quando padre João pronunciou:–– “Confirma hoc, Deus, quod operátus es in

nobis!”O coroinha mais que depressa respondeu:–– “A templo sancto tuo, quod est in

Page 37: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

37

Jerusalem!” e sentiu uma alegria como nunca sentiraem toda a sua vida. Estava radiante agora. Passariaa vida toda ajudando o padre João em batizados,casamentos e missas.

Por fim, José Manoel cumprira o que prometerahá um ano, no dia que conheceu Geni. No segundoencontro eles conversavam numa esquina do Alecrim,quando, um dos irmãos de Geni passou e viu os doisnamorando:

–– Vou contar para a mamãe que você está comum marinheiro e ela não vai gostar nada disso! Faloue saiu correndo.

Geni aperreou-se:–– É melhor você ir embora e gente se fala

depois! Disse assustada para um seguro José Manoelna sua inseparável farda de marinheiro.

José Manoel não teve dúvidas. Pegou Geni pelamão e foi lá na Avenida Dez, na Vila dos Paianazesonde ela morava e falou com o pai, a mãe, os irmãose até com os vizinhos.

Os dois meses de namoro e a transferência deJosé Manoel para o Rio de Janeiro foi visto comum certo alívio por sua mãe. Agora eles seesquecem! Disse sem muita esperança para umavizinha.

3 de outubro de 1960. João Goulart foi eleito vice-presidente. Jânio, o presidente renunciou, o vice deveassumir. Na democracia é assim. No Brasil dossessenta, não! A burguesia não quer que João Goulart

Page 38: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

38

assuma. Ele fala muito em reformas de base,reclamam. Ameaçam com uma parte dos militares.Parece aquela atitude de atiçar o cachorro. Ogoverno agora é parlamentarista, deu tempo doCongresso Nacional mudar as regras. Jango aceitouo jogo, mas, em 1963 num plebiscito, o povo quisJango como presidente, com todos os poderes. Osmilitares, uma parte, não gostaram, nem a burguesia.Os americanos dão uma no cravo e outra na ferradura.O cravo é a Aliança para o Progresso, a ferradura é aEscola das Américas.

Page 39: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

39

5. Os marinheiros da Guanabara

–– Zeppelim! Era Olavo que falava. Isso mes-mo, Zeppelin! Agora me lembrei! Nasci em trinta ecinco e meu pai dizia que neste ano só duas coisasforam importantes para ele, além do meu nascimen-to, é claro! Ter visto o Zeppelin e os comunistastomarem o poder na cidade do Natal. Quando elecontava sobre o Zeppelin, parecia que passava umfilme. Eu gostava de vê-lo contar sobre o Zeppelin.

Reunidos na embarcação quase todas as noi-tes, olhavam o mar e o cais vazio até a hora em queexaustos, desciam para os beliches do alojamentoapertado que fedia a óleo. Dias felizes, esperanço-sos, ou então, dias tristes, cabisbaixos, enfezados.

Olavo, o mais velho do grupo, continuava nar-rando:

–– Estava meu pai e seus companheiros de tra-balho da estrada de ferro quando um deles correu eapontou para o céu. Era um charutão enorme quevinha na direção deles. Parecia uma coisa do outromundo. Correram todos para se esconder na mata,mas o capataz falou que era um balão dirigível quevinha da Alemanha e que ninguém precisava termedo não. Não se convenceram muito, mas ficaramtodos olhando. Meu pai disse que ficou abobalhado,olhando aquela coisa enorme, prateada, reluzente,linda, linda e que não fazia nenhum barulho. Pas-sou bem baixinho e seguiu rumo ao sul. O capataz

Page 40: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

40

anunciou: Vai para o Rio e São Paulo. E eles fica-ram olhando até o balão sumir no horizonte. Nin-guém mais trabalhou nesse dia. A imagem do balãoera muito forte e à noite, quando se reuniram noacampamento depois do jantar, só falaram noZeppelin, uns dizendo que as pessoas do balão ti-nham acenado para eles, outros que chegaram a veruma moça bonita de cabelos compridos e houve atéquem viu quando jogaram um lenço branco quefoi cair na direção do mar. Meu pai disse que so-nhou a noite toda com o Zeppelin e que passaramvárias semanas falando no Zeppelin.

Olavo interrompeu a narrativa e ficou pensati-vo, talvez com a imagem do Zeppelin, tão plásticacomo seu pai contava. Depois falou:

–– Meu pai disse que a vontade dele e dos com-panheiros depois daquele dia era abandonar tudo eir para o Rio ou São Paulo!

Eram lembranças, belas lembranças. Cesário,potiguar das caatingas, do Cabugi pedregoso, com-pletou:

–– Eu até tenho saudades do tempo que nosreuníamos na pracinha da igreja que ficava na fren-te da estação do trem. Diziam que o chefe da esta-ção era comunista. Eu nunca fiquei sabendo se eleera ou não comunista, mas tinha medo dele porqueo meu avô dizia que os comunistas comiamcriancinhas. Aliás, eu tinha um medo danado doscomunistas, dos índios e dos ciganos. A história erabonita e todos prestavam atenção:

Page 41: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

41

–– Éramos um grupo grande de rapazes. Decinco até dez, conforme a noite . Ficávamos con-versando na pracinha até o trem passar. O trem eraum misto com vagões de carga e de passageiros.Passava entre uma e duas horas da manhã. E nóssó íamos para casa depois do terceiro apito, quan-do ele ia saindo da cidade.

Cesário sabia narrar e isso encantava a todos:–– Naquele tempo a gente já achava que as

coisas tinham que mudar no Brasil. E todos fazía-mos planos para sair daquela cidadezinha e ir paraRecife, Rio ou São Paulo. Eu me lembro que todasas noites, adormecia sonhando com o Rio de Janei-ro: apartamentos, belas praias e eu num rabo depeixe desfilando com mulheres bonitas, daquelas dacapa do Cruzeiro.

–– E sobre os comunistas que tomaram Natal,o que seu pai dizia, Olavo? Perguntou um dos ma-rinheiros, assim que Cesário terminou.

Olavo retomou:–– Meu pai dizia que comemoraram muito no

dia que souberam, porque os comunistas eram ami-gos dos cassacos e estavam sempre punindo por eles.Estavam muito afastados da cidade num trecho daferrovia que estava afundando. Só depois, muito de-pois que ficou sabendo que no dia que estavamcomemorando a vitória dos comunistas em Natal,eles já tinham sido expulsos do poder e estavamsendo presos e torturados.

Todos se calaram pensativos por um bom tem-

Page 42: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

42

po, até que um deles falou:–– Meu tio disse que os comunistas lutam pela

reforma agrária, para que todo mundo tenha o seupedacinho de terra!

–– É verdade!Isso é verdade! Confirmou outrose levantando para dar mais ênfase à sua fala. Econtinuou:

–– Lá em Pernambuco faz bastante tempo queo povo luta para ter um pedaço de terra. Agora asLigas Camponesas do Julião está conseguindo mui-ta coisa!

Outro marinheiro interviu. Era paraibano e ad-mirador de Miguel Arraes:

–– Não é só o Julião não! A sorte de todo mun-do lá é o Arraes, se não fosse ele os usineiros játinham mandado matar muita gente!

Inácio, um cearence caladão, cismado, final-mente interviu, feliz por dizer uma coisa que só elesabia:

–– Lá no Cariri todo mundo diz que Julião vaisempre em Cuba e é grande amigo de Fidel Castro!E completou um tanto eufórico:

–– Em Cuba é o povo que está mandando.Novamente Olavo falou, agora com autorida-

de:–– É a organização. Sem organização não se

consegue nada. Por isso a nossa associação tem queser forte e vai ser! Temos que pensar no Brasil! Senão fosse a luta pela Petrobrás, o petróleo não seriamais nosso e sim dos americanos que pensam que

Page 43: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

43

são os donos do mundo!Pedro era gaúcho, saído das serras e criado

naquele espírito da nova pátria que alemães e itali-anos abraçaram quando migraram para o Brasil:

–– Eles só pensam isso porque aqui no Brasiltem muita gente que acha que eles são tudo. E sebaixa até o chão quando vê um estrangeiro! Porisso que admiro o Brizola. Com ele não tem essenegócio não! Ele sim faz a gente ter orgulho de serbrasileiro!

Olavo lembrou da Tribuna do Mar:–– Amanhã sai o jornal da Associação! Eu sei

que a almirantada não vai gostar!–– Precisamos estudar! Agora quem falava era

João Neto, sempre tímido, a voz contida, o maisnovo da turma. E continuou:

–– Aqui, eu vejo que a maioria gosta de ler!Calou-se e parece ter viajado no tempo. Depois re-tomou:

–– A época que mais lí era quando ajudavaminha mãe encerar a casa. A gente encerava e de-pois eu ia espalhando o jornal pela sala e o corre-dor até chegar na cozinha. Eu colocava uma folhade jornal no assoalho e aí via uma notícia que meinteressava e me abaixava e ficava lendo. Minha mãenão se importava, pois se eu estava lendo estavaaprendendo alguma coisa. Eu demorava muitas ho-ras nessa leitura. Aprendi muito no Diário dePernambuco e no Jornal do Commércio.

Olavo empolgou-se e completou, agora já era

Page 44: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

44

um pequeno discurso:–– A Marinha precisa de pessoas com boa for-

mação, só assim seremos respeitados pela socieda-de. Pois bem, e agora estamos aqui e queremos ca-sar, votar, eleger-se, estudar, andar à paisana. E nos-sos pais querem terra para trabalhar e nossos ir-mãos, escolas e empregos! E tudo está encaminhan-do para isso. As reformas que o presidente Jangoquer fazer é para isso mesmo. Emprego e salário,terras para os camponeses. Haveria mundo melhorque esse, olhando este mar e esta cidade?

Nessa noite todos desceram para os belichesfelizes, esperançosos.

13 de março de 1964. No Rio, no Comício dasReformas que reuniu cerca de 150 mil pessoas, JoãoGoulart anunciou reformas: agrária, eleitoral, uni-versitária, tributária, a revisão da Constituição, o di-reito de voto do analfabeto, a nacionalização das re-finarias, legislação contra aluguéis extorsivos, desa-propriação das terras às margens de rodovias, ferro-vias e açudes públicos. A população do Brasil era de80 milhões de pessoas e cerca de 60 milhões apoia-vam o presidente. Mais uma vez a burguesia, partedos militares e os americanos não gostaram. Diziamque as reformas eram comunistas demais. Os go-vernadores do Rio, São Paulo e Minas também nãogostaram. Prometeram dar o troco.

Page 45: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

45

6. O golpe

–– E você ainda não ouviu não? Ligue o rádioque está dando a notícia toda hora. É no ReporterEsso! Estão dizendo que vão prender todos osmarinheiros! Era a vizinha da casa da frente, aindamuito cedo, que trazia a notícia. Na quinta feira,esta mesma vizinha já lhe falara sobre o noticiário.

Os marinheiros seriam presos. Foi isso que Geniouviu no plantão da rádio Mayrink Veiga naquelasexta feira santa, 27 de março de 1964.

Estava no quarto e dava a mamadeira paraseu filhinho quando ouviu a chamada da ediçãoextraordinária. O rádio ficava na cozinha. Demorou-se um pouco, mas ainda pode ouvir alguma coisasobre os marinheiros. Estava preocupada, poisZezinho não chegava e nem dava notícia. Ficou alijunto do rádio esperando novas notícias.

Zezinho saíra na quarta feira à tarde e elapassara a quinta-feira sem notícia nenhuma, aflita,cuidando do bebê que apresentava sintomas de gripe.

Na quinta feira, pela manhã, a vizinha dafrente veio lhe dizer que o Reporter Esso anunciavaalgum problema com os marinheiros. Geni não deramuita importância, pois sabia que era apenas umafesta da Associação dos Marinheiros no Sindicatodos Metalúrgicos.

Aumentou o volume do rádio para se sobreporao choro do bebê que reclamava a mamadeira. Se

Page 46: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

46

era edição extraordinária devia ser alguma coisaimportante. Ficou sabendo que iam prender osmarinheiros que estavam reunidos no Sindicato dosMetalúrgicos. O prédio estava cercado pelo exércitoe o presidente da República João Goulart haviasubstituído o ministro da Marinha que pedirademissão. O problema parecia grave.

Não conhecia muito bem o Rio de Janeiro. Eagora essa notícia da prisão dos marinheiros a deixoumuito preocupada. Iria até o Sindicato dosMetalúrgicos, nem que fosse a última coisa que fariana sua vida. Morava longe, na Baixada, em Mesquita.A cidade quase deserta em razão do feriado. Tomouum ônibus e foi se informando pelo caminho. Ocobrador sabia dos acontecimentos no Sindicato dosMetalúrgicos. Um primo dele, marinheiro, tambémestava lá. Ele falou muito preocupado para Geni:

–– Moça é coisa muita séria!Ela queria ter ido àquela festa, afinal fazia

muito tempo que não ia numa festa. E ainda maisque Zezinho e o Bicho passaram mais de um mêsconversando sobre a festa de aniversário daassociação no dia 25 de março. O Bicho, era comoZezinho chamava o sargento José Raimundo, seuamigo conterrâneo que conhecera na Marinha emNatal.E em Natal também já haviam tentadoorganizar uma associação.

Mas enfim, não podia ir mesmo. Seu primeirofilho só tinha cinco meses e não poderia ficar comoutra pessoa. Conformou-se, apesar de sentir uma

Page 47: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

47

vontade enorme quando viu Zezinho sair de casadizendo que não o esperasse pois a festa terminariatarde da noite e ele só voltaria no outro dia.

Agora, alí estava naquele ônibus sem saberainda como chegaria até o Sindicato dosMetalúrgicos. Quando se levantou para descer doônibus, um senhor de cabelos grisalhos e barba porfazer, alertou-a:

–– Moça, se eu fosse você não iria lá noSindicato não! Nós estamos num pé de guerra. Voltepara sua casa!

Ela não disse nada. Baixou a cabeçapreocupada, mas iria, mesmo com todo o risco.

Desceu perto de um posto de gasolina e foicaminhando conforme lhe indicaram. Quando entrouna rua Ana Neri, ao longe viu a rua cheia de gente,tomada por caminhões, tanques do exército esoldados armados, que cercavam o prédio doSindicato dos Metalúrgicos. Ninguém entrava ou saíado prédio. Era a determinação do comandante daoperação.

Medo era uma coisa que ela quase nunca sentia,mas vendo aquele aparato militar, estremeceu. Oque seria tudo aquilo logo numa simples festa deaniversário da Associação dos Marinheiros?

Passou pelos soldados como se nada existisse.Eles formavam um cordão, isolando o prédio epreparados para invadí-lo. Ouviu um grito:

–– Alto!Nem percebeu que era com ela. Continuou

Page 48: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

48

andando, avançando para o prédio do sindicato. Oprédio era grande, muito grande e cheio de janelas ebandeiras hasteadas. As janelas estavam todasocupadas pelos marinheiros que começaram a acenarpara ela, dando vivas e atirando os bonés para a ruae gritando palavras de ordem. Ela olhou para cima,mas não entendeu nada daquilo. Queria apenas falarcom o seu marido, saber o que estava acontecendo equando ele voltaria para casa.

O clima era de muita excitação.O sargento José Raimundo, postado numa das

janelas e também saudando a moça corajosa queignorara a ordem dos soldados, rompera a barreirae avançava destemida para o sindicato, gritou paraum amigo ao seu lado:

–– Nossa! É Geni, a mulher de José Manoel!Saiu dali e foi à procura do amigo no interior

do prédio. Caminhou por entre as centenas demarinheiros que descansavam estirados no chão. Emmeio a um grupo que vinha para as janelas,encontrou José Manoel curioso para saber o porquêdaquelas manifestações ruidosas.

Quando Geni se aproximou da grade de ferroque dava acesso ao sindicato, foi abordada poralguém que segurou bem firme o seu braço:

–– Onde vai criança?Virou-se e viu que era um militar do exército.

Um militar graduado. Devia ser o comandante.Das janelas, os marinheiros protestaram,

iniciando um coro:

Page 49: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

49

–– Solta! solta! solta! ...Geni falou com expontaneidade, explicando-

se ao oficial:–– Vim porque ouvi no rádio que vão prender

os marinheiros! Vim para falar com meu marido queé cabo da marinha e também está aí nessa festa!

O coronel não duvidou da sua justificativa eapesar de todo aquele clima de nervosismo ebeligerancia, foi educado e paciente. Nemconsiderou o ato de Geni como uma provocação aobatalhão que estava ali com a missão de prender osmarinheiros e levá-los para o Quartel de Guardas.

–– Vá para casa que seu marido mais tardeestará lá!

–– Mas eu quero falar com ele! Eu quero vê-lo!

José Manoel já vinha descendo do prédio e oscaminhões do exército já começavam estacionar nafrente do sindicato.

Enfim, o governo Goulart havia tomado umadecisão. Os marinheiros seriam levados ao Quartelde Guardas e depois liberados. Seriam anistiadoscontra o desejo da burguesia e dos militares golpistasque apostavam num banho de sangue alí mesmo noprédio do Sindicato dos Metalúrgicos. O golpe,preparado há muitos anos, agora estava próximo.As lideranças democráticas sentiam o cheiro do golpeno ar.

O encontro de Geni e José Manoel foi rápidoe tenso. Abraçaram-se e seguraram o choro. Ela viu

Page 50: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

50

que Zezinho estava apreensivo. Ele quis logo saberdo seu filhinho e procurou tranquilizar Geni:

–– Aqui, apesar de tudo , está tranquilo. Nãofaltou nada, pois o povo foi solidário e mandou águae comida. Só estamos cansados. Já tenho notíciaque vão nos liberar mais tarde. Vá para casa e meespere, se não for hoje, amanhã no almoço estareilá.

O comandante da operação deu ordem paraos marinheiros embarcarem e José Manoel seguiucom seus companheiros para o caminhão. Geni ficoualí plantada, um nó na garganta e sem entender comouma festa poderia terminar daquela forma.

Ela voltou para Mesquita mais preocupadado que viera. Pensava agora no seu filhinho quedeixara com uma vizinha que tinha poucas relações,mas que fora solidária, aceitando ficar com a criançae as duas mamadeiras que preparara.

19 de março de 1964. Em São Paulo foirealizada a Marcha da Família com Deus pelaLiberdade. Organizada pelo IPES [entidade mantidapelos empresários], União Cívica Feminina, parte doclero e das forças armadas, reuniu cerca de 500 milpessoas. O discurso do deputado Auro de MouraAndrade, presidente do Congresso Nacional, foi a senhapara o comando militar deflagrar o golpe. A Repúblicavai sangrar.

Page 51: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

51

7. O marinheiro João Cândido

Os acontecimentos dos dias 25, 26 e 27 demarço de 1964 no Sindicato dos Metalúrgicos foramtalvez os mais intensos nas vidas daquelas pessoasque participavam da assembléia dos marinheiros.

Durante muito tempo o cabo marinheiro JoséManoel iria contar o episódio dos discursos, do hinonacional e dos fuzileiros navais abandonando asarmas e se unindo a eles entre choros convulsivos dealegria, medo e incerteza. Tudo foi muito intenso.

Não se tratava apenas de uma reunião festivapara comemorar o segundo aniversário da Associaçãodos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil. Osmarinheiros lutavam por direitos bem definidos: odireito de votar e ser votado; o direito de casar, odireito de vestir à paisana, o direito de estudar, ofim da humilhação a que eram submetidos com oLivro de Castigo, que substituiu a chibata nos navios,dentre outros direitos que não podiam exercer emrazão da proibição formal ou das dificuldades que aprópria Marinha impunha. Enfim, lutavam pormelhores condições de vida, lutavam por dignidade.

A festa de aniversário da Associação era umato político bem organizado e aguardado comansiedade pelos marinheiros.

Os marinheiros estavam embalados pelaconjuntura favorável da grande mobilização popularque no dia 13 de março demonstrara força

Page 52: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

52

excepcional na concentração da Central do Brasil,onde as lideranças políticas, sindicais e estudantisafinaram o discurso a favor das reformas de base:agrária, bancária, universitária, administrativa eeleitoral, cujo ato culminou com um emblemáticodiscurso do presidente João Goulart.

A Associação era tudo para os marinheiros.A doutora Érica Roth fora contratada parareorganizar a Associação, definindo suas funções eatividades.Buscavam elevar a auto-estima dosmarinheiros. Criaram brigadas para tirar dos cabarése bares da zona portuária os marinheiros queandavam por ali, levando-os para a sede daassociação, onde teriam uma convivência melhor,com mais dignidade.

Organizaram uma visita à Petrobrás.Buscaram o congraçamento com marinheiros deoutros países, de passagem pelo Rio. Organizarampasseios para as cidades do interior; organizarambibliotecas, criaram um setor de saúde e de apoiosocial, enfim queriam elevar o conceito dosmarinheiros junto à sociedade.

Não queriam mais que a população tivesseaquela idéia de marinheiro brigão, causador deconfusões e mal educados. Todos estes fatoreslevaram os marinheiros a despertar a consciênciasobre o seu papel na sociedade e qual a sociedadeque queriam.

Mas, parece que a oficialidade, ao menos umaparte dela, não via tudo isso com bons olhos. A

Page 53: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

53

impressão é que para eles os marinheiros e osfuzileiros deveriam ser estúpidos, como devem sertodos os subalternos. Que não deviam discutir umadeterminação superior, apenas acatar. E à medidaque a Associação crescia e tomava corpo ereconhecimento social, as punições aos diretores eassociados se multiplicavam, sem nenhum motivoreal. Ou então, alegavam qualquer motivo deindisciplina e puniam.

Com a intenção de reunir um númeroexpressivo de marinheiros e convidados de outrossindicatos, partidos políticos e associaçõesestudantis, e dar mais um passo para a consolidaçãoda Associação, escolheram como local da festa deaniversário a sede do Sindicato dos Metalúrgicos queera grande e bem localizada.

Estavam lá os representantes do Governobrasileiro, Max da Costa, representando o Presidenteda República e o Ministro do Trabalho, AmaurySilva; Osvaldo Pacheco e Dante Pelacani daConfederação Geral dos Trabalhadores; o deputadoHércules Correa, um comunista eleito pelo PartidoTrabalhista Brasileiro; dirigentes da União Nacionaldo Estudantes; representantes de AssociaçõesFemininas e muitos outros convidados ilustres quedavam apoio aos marinheiros e lutavam por umBrasil livre das amarras do capital estrangeiro e commais justiça social.

O clima político nesse momento era deincitação. Perigosa incitação. A burguesia e os

Page 54: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

54

militares entreguistas, histéricos com a políticaexterna de total independência do presidente JânioQuadros, pressionaram-o, levando-o à renuncia.Depois, tentaram dar o golpe, impedindo que JoãoGoulart, o vice-presidente eleito democraticamente,assumisse a presidência. No plano externo dominavaa guerra fria e os golpistas internos e externos, nãoperdoavam o fato de Jânio Quadros ter condecoradoErnesto Chê Guevara.

Agora, viam o cargo de presidente ocupadopor um nacionalista das hostes getulistas. Era muitopara eles que há vários anos tramavam, com o apoionorte-americano, um golpe contra a democracia noBrasil.

As reformas anunciadas pelo presidente JoãoGoulart era o assunto que dominava as conversasdo povo. Só se falava no discurso do presidente Jangono comício na Central do Brasil, ondecomprometera-se com as esperadas reformas de base,contemplando a reforma agrária, a reforma naeducação e o controle na remessa de lucros dasempresas estrangeiras, dentre outras mudançassociais e econômicas propostas.

Nessa conjuntura amplamente favorável dasreformas anunciadas, a perseguição implacável e aintransigência do almirantado contra os marinheiroslevava ao acirramento das posições. Os marinheirosperceberam que o momento era propício paraavançar e viam que seus anseios eram os mesmosdos demais trabalhadores brasileiros.

Page 55: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

55

O Ministério da Marinha fez de tudo paraimpedir a festa. Os fatos, todos os fatos ocorridosnos dias anteriores ao 25 de março de 1964,conspiravam contra os marinheiros. A decretaçãodas prisões dos membros da diretoria da associação,as perseguições nos navios e até o episódio covarde,quando metralharam marinheiros desarmados queiam para a reunião na manhã do dia 26, eram atosde provocações do almirantado daquela época.

Do dia 25 para a madrugada do dia 26 omovimento foi tomando outra proporção. A cadamomento novas notícias chegavam até à assembléiaprovocando mais revolta nos marinheiros. Havia umclima de excitação muito grande.

A reunião prevista para terminar cedo,transformou-se num ato de protesto e numaassembléia permanente, com discursos calorosos dosmarinheiros e de lideranças políticas, estudantis ede outros trabalhadores que estavam ali emsolidariedade aos marinheiros.

E o Conselho do Almirantado constatavaagora que a Marinha errara no recrutamento. Foramatrás dos jovens broncos dos campos do sul e dosestúpidos nordestinos da caatinga para burros decarga. Queriam homens que baixassem a cabeça enão reclamassem de nada. Trouxeram homenshonestos e inteligentes e com o gérmem da revoltacontra a situação de miséria que viviam nos sertõesdo país. Trouxeram valorosos patriotas etrabalhadores, mas não trouxeram covardes.

Page 56: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

56

O jornal a Tribuna do Mar, elaborado pelosmarinheiros não deixava dúvidas: eles eram muitomais do que o almirantado queria.

Os marinheiros falavam com o coração e todaa revolta contra o massacre moral e a humilhação aque estavam submetidos, explodiu naquele atopolítico. E ali, junto com eles naquela assembléia,um emblema: João Candido.

O velho marinheiro levantou os olhos cansadose emocionou-se. Há muitos anos não sentia umaemoção tão forte como aquela. Centenas decompanheiros, de pé, aplaudindo e gritando vivaspara ele. Alguns, mais exaltados, gritavam palavrasde ordem. Outros atiravam seus bonés para cima.

E lembrou da sua luta e de seus companheiros,há mais de meio século, contra aquela mesmaopressão, contra o castigo medieval aplicado aosmarinheiros: a chibata. O castigo físico que nãoexistia mais, custara a vida de vários marinheiros,só João Cândido conseguiu escapar da masmorracruel a que foram submetidos. Depois, montaramuma farsa para expulsá-lo da Marinha. Sobreviveuvendendo peixe na praça da República. Nuncaesmoreceu e agora estava ali recebendo aquela justahomenagem dos seus companheiros. Ele aindaacenou várias vezes para os marinheiros e depoissentou-se. Sua expressão era de felicidade. Talvezpoucas vezes em toda sua vida sentira-se tão felizcomo naquele momento. João Cândido tinhaconsciência daquela mobilização . Não era só a

Page 57: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

57

Marinha, mas o Brasil também precisava dasreformas.

10 de abril de 1964. A edição extra da revistaO Cruzeiro, resumiu assim o golpe militar:

Em Minas, no dia 30 de março de 1964, ocomandante da Base Aérea de BH foi chamado aoPalácio da Liberdade pelo governador Magalhães Pintoque expõe ao oficial seus planos e em 1º de abril,usando uma cadeia de rádio e televisão, fez suaproclamação como chefe vitorioso da revolução.

Em São Paulo no dia 31 de março de 1964, ogovernador Adhemar de Barros se reuniu com odeputado Ranieri Mazzilli, presidente da CâmaraFederal e disse que não existia mais o regimefederativo no país. Em 1º de abril, à tarde ele disseque “com o Exército, a Marinha, a Aeronáutica e aForça Pública e com o apoio de todas as suas classessociais, ressurge o São Paulo eterno para a eternidadedo Brasil”.

O General Aldévio disse que o movimento jáestava previsto nos planos Alvorada, Eclipse e Borealque foram elaborados por uma equipe de estrategistasem 1963.

No Estado da Guanabara em 31 de março de1964, o governador Carlos Lacerda mandou prendertodos os líderes sindicais.

Para a revista, a figura central do golpe, queeles chamaram de revolução foi o general CastelloBranco, chefe do Estado Maior do exército. A ditadura

Page 58: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

58

estava implantada. Sangraram a República.Nem foi preciso acionar a Operação Brother Sam. Oembaixador norte-americano no Brasil, LinconGordon, comemorou.

Page 59: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

59

8. Um dia de fuga no Rio de Janeiro

As bonequinhas caíram no chão. Geni ficouentre alegre e surpresa quando viu as trêsbonequinhas de pano caírem no chão. Fazia muitotempo que as procurava. Agora, quando menosesperava, elas apareceram alí enfiadas no guarda-roupa. Fora buscar uma toalha de mesa, presenteda sua mãe e que nunca usara, e quando puxou atoalha vieram junto as três bonequinhas de pano.

Ela fechou a porta do guarda-roupa, apanhouas bonequinhas e ficou brincando, recordando otempo que brincava com elas lá no bairro de AreiaBranca, em Nova Iguaçu, na primeira casa quemoraram no Rio de Janeiro. A estação do trem,igualzinha a da Ribeira em Natal. A casa com umquintal enorme, onde criava coelhos e brincava comsuas bonecas, bruxinhas de pano que trouxera deNatal. Estendia sua infância no Rio de Janeiro,enganando o tempo que passava sozinha, poisZezinho tomava o trem das quatro da manhã para ocentro do Rio e só voltava à noite para o jantar. Eramarinheiro na Ilha do Governador.

Agora, morando em Mesquita e com o filhopequeno para cuidar, nunca mais pode brincar e atéesquecera as bonequinhas. Zezinho, agorapromovido a cabo paioleiro, continuava voltandosó para o jantar.

Apanhou a toalha e foi arrumar a mesa do

Page 60: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

60

almoço. Era sábado 28 de março de 1964. Eleprometera que viria para o almoço. No dia anterior,todos aqueles acontecimentos no Sindicato dosMetalúrgicos, a deixaram preocupada com a situaçãode Zezinho e dos seus amigos marinheiros.

Lembrava-se dos acontecimentos sem entendero porquê deles. Precisava conversar mais comZezinho, prestar mais atenção no que ele falava esaber mais sobre a Associação dos Marinheiros.

Recordava-se do quanto ele gostava daMarinha, da Associação e do jornal dos marinheiros,a Tribuna do Mar. Estava bem vivo para ela alembrança daquele dia de março de 1963, quandoele chegou orgulhoso em casa declamando:

“[...] Lugar de destaque nos banquetes,Habitar em suntuosos palacetes,Espoliando o povo que agoniza?Não quero! Prefiro o convés frio do navio,Onde nas noites serenas de estio,Eu me confundo com o silvar da brisa”.

Uma enorme felicidade e na mão, o jornalque publicara sua poesia. E com que emoçãodeclamava:

“É porque, mar, vento, céu, terra,Um marujo, não foge a guerra!Sempre que a pátria reclama,Deixa tudo, vai embora, se ufana,

Page 61: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

61

De ser matuto-brejeiro.E nos palcos da batalha.Tem por honra e mortalhaA farda de marinheiro!”

E como, quase sem voz a abraçara, beijara-ae lhe dizia que seus filhos viveriam num país melhor,sem miséria e teriam orgulho de sua terra.

Suas conversas com José Raimundo eramintermináveis. O sargento da Marinha JoséRaimundo, um pernambucano valente e solidário eum dos grandes amigos de Zezinho, que sempre ia àsua casa para estudar ou conversar. E sempre queJosé Raimundo chegava com um sorriso bondosono rosto e carregado de livros, Zezinho pedia:

–– Geni, faça um café para o Bicho!José Raimundo ia direto para um quartinho,

uma espécie de edícula no fundo do quintal e alípassava horas e horas estudando.

Geni pensava no quanto sua vida mudara empouco tempo. Saíra de Natal, uma cidade pequenase comparada ao Rio, casara e agora já tinha umfilho que sua mãe e seu pai ainda nem conheciam.E agora preocupada ouvindo as notícias no rádio.Prisões, invasões, bombas, tiros, movimentação detropas. E a culpa de tudo aquilo, de acordo com osnoticiários, eram os marinheiros.

José Manoel só chegou na segunda-feira, dia30 pela manhã. Chegou num taxi e com umapassagem de avião na mão.

Page 62: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

62

–– Dei baixa na marinha e vamos voltar paraNatal. Arrume as malas que o taxi está aí foraesperando. Foi só o que disse.

Geni apressou-se na arrumação das malas. Elanão entendia nada daquilo. Não dava tempo deentender.

–– Pegue só nossas roupas! As outras coisasdeixe que eu levo!

–– E eu vou só com nosso filho? Perguntouassustada.

–– Vai sim! Eu vou depois! José Manoelrespondeu com segurança.

Quando foi saindo da casa, Geni olhou pelaúltima vez para a castiçal da sala. Planejara levá-lode presente para sua mãe quando fosse para Natal.Era uma peça bonita, com 18 lâmpadas pequenas.José Manoel comprara há pouco tempo.

–– E o resto das coisas Zezinho, os móveis, acozinha...esse castiçal que eu queria levar paramamãe? Foi só o que perguntou.

–– José Manoel foi um tanto ríspido: Eu vouficar mais um dia para resolver tudo e entregar acasa!

Estava com o bebê no colo, pegou a bolsacom a mamadeira e as fraldas e seguiu Zezinho quejá colocava as malas no táxi que a levaria para oaeroporto. Emocionada com aquela atribulação,não compreendia ou não havia parado para pensarnaquilo tudo.

No caminho para o Aeroporto ouviu a

Page 63: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

63

conversa entre Zezinho e José Raimundo. Elesestavam tensos. Haviam tentado voltar para osnavios e foram recebidos à bala.

Ouviu muito bem quando José Raimundodisse que Ozéas havia levado um tiro na pernaquando tentara voltar para o navio.

Ela conhecia Ozéas desde Natal. Ozéas eramagro, muito magro e branquelo dos cabelosavermelhados. Ele era do interior do Paraná emorava no navio. Tinha apenas um armário alugadonuma casa em frente ao porto onde guardava umaroupa de paisano para trocar quando andava pelacidade.

Ela ouviu José Raimundo narrar o episódio:–– Então o Ozéas disse: “Vim para dormir!”

O oficial atirou nele e o tiro pegou na perna e elecaiu. Aí o oficial disse: “Vai dormir no inferno,comunista filho da puta!” Depois, vieram e levaramele para o hospital. Ficou preso!

10 de abril de 1964. Todos falaram comexclusividade para a revista O Cruzeiro. Todos, apóso golpe, são: Magalhães Pinto, governador de MinasGerais; Adhemar de Barros, governador de São Pauloe Carlos Lacerda, governador da Guanabara.Magalhães Pinto, disse que “o movimento restauradorda legalidade, que Minas tomou a iniciativa e aresponsabilidade de desencadear, com o apoio de todosos brasileiros, em breve estará concluído com aformação de um Govêrno em condições de promover

Page 64: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

64

a paz, o desenvolvimento nacional e a justiça social”.Adhemar de Barros disse que “agora caçaremos oscomunistas por todos os lados do País. Não deporemosarmas enquanto não expulsarmos toda a canalhavermelha”. Carlos Lacerda disse que “o senhor JoãoGoulart jurou fidelidade ao Parlamentarismo, paralogo em seguida impor o plebiscito, e todo o povovotou”. Ele, Lacerda, não votou!

Page 65: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

65

9. Abril de 1964 em Natal

Um jipe do exército vindo do centro entrou naAvenida Duque de Caxias em alta velocidade e naesquina do prédio da alfândega fez o retorno quasena mesma velocidade e depois veio bem devagar, aossolavancos, o motor quase estancando.

Os dois oficiais que estavam no jipe passaramolhando as pessoas nas calçadas. José Manoelafastou-se da pequena mala, empurrando-a com opé para junto da parede. Prendeu a respiração e sepreparou para o pior.

O jipe parou um pouco à frente, bem no meioda rua, atrapalhando o trânsito e um dos oficiaisdesceu, entrou num bar e depois de algum tempo,voltou e foi embora. Bem próximo, haviambarricadas na rua que dava acesso ao porto de Natal.

Depois passou um caminhão do exército comsoldados armados na carroceria e José Manoel queestava cada vez mais tenso, olhava a todo instantepara o começo da rua esperando a volta de JoséRaimundo.

Sentou-se na calçada alta do Banco do Brasil,as roupas fedendo a suor, amedrontado com o vai evem dos veículos do exército que cruzavam a todomomento a Ribeira. Nem acreditou quando viu, aolonge, atravessando a avenida em sua direção, umdos seus cunhados.

Ele vinha da praia do Forte com a intenção de

Page 66: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

66

resolver alguns problemas no escritório datransportadora da família, que ficava numprediozinho espremido entre outros da Rua DoutorBarata, uma rua estreita que ligava o cais da Ribeiraao largo da estação rodoviária.

Era domingo de manhã e havia pouca gente narua. Até os bares da região, que não fechavam nunca,estavam quase todos fechados. O povo brasileirocomeçava a respirar o ar pesado da ditadura.

Assustou-se quando percebeu que era mesmoJosé Manoel. Como era improvável encontrá-loàquela hora, naquele dia e naquele lugar, quando seaproximou e teve certeza, levou um grande susto.

–– Não me restou outro caminho senão fugir!Se voltássemos aos navios seríamos mortos! Abriramos processos contra todos nós e a acusação é decrime hediondo! Foi uma debandada geral dosmarinheiros, uma dispersão! Ninguém sabia o quefazer e nem para onde fugir! Disse José Manoelaperreado, antes mesmo de cumprimentar ocunhado.

E narrou o seu drama, da reunião dosmarinheiros no Sindicato dos Metalúrgicos no dia25 de março até sua fuga para Natal e o medo de serpreso. A presença em massa dos marinheiros nareunião da Associação. A reação do almirantadoque via tudo aquilo como insubordinação edecretara a prontidão rigorosa no dia 26 pararecolher todos aos navios e prejudicar o movimento.E depois, a ordem de prisão, a reação dos

Page 67: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

67

marinheiros e a solidariedade dos fuzileiros navaisque haviam sido enviados para reprimir a assembléia,mas se juntaram a eles. E tudo o que se seguiu depoiscom o golpe militar, a prisão dos que participaramdo movimento e a fuga dos companheiros emdesespero, sem nem mesmo saber para onde fugiriam.

Agora, aguardava José Raimundo, seucompanheiro de luta, que fora no Alecrim em buscade ajuda. Ficaram ali pouco tempo, pois logo surgiuJosé Raimundo em pânico, contando que o Alecrimestava tomado pelos fuzileiros navais.

A ditadura irrompera no dia primeiro de abril.Em Natal, a movimentação maior que se via era doexército, cujos veículos se deslocavam de um ladopara outro da cidade com as sirenes ligadas ecaminhões de soldados armados com fuzís. Dequando em quando um avião militar surgia no céuem voo rasante.

A cidade estava toda tomada pelos militares.Já havia muita gente presa: as lideranças políticas,sindicais e estudantis, jornalistas, professores,funcionários dos Correios, outros da RedeFerroviária e todos os que participavam da“Campanha de Pé no Chão também se aprende aler”, do educador Paulo Freire.

O exército invadira a prefeitura e depusera oprefeito. Buscavam montar uma farsa paraincriminar por corrupção o prefeito DjalmaMaranhão, um dos poucos homens íntegros nahistória política do Rio Grande do Norte.

Page 68: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

68

O governador Aluisio Alves aderiu logo nasprimeiras horas aos golpistas. Para o governador,importante não era a defesa da legalidadedemocrática, mas o respeito às forças armadas, querepresentava o grupo que levara Getulio Vargas aosuicídio e pusera obstáculos à posse de Juscelino ede João Goulart, tudo sob a supervisão doimperialismo norte-americano.

Nervosos e impacientes viram quando doiscaminhões do exército, apinhados de soldadosarmados, cruzaram a avenida em direção ao cais.

–– Parece que o exército vai ocupar toda aRibeira! É melhor a gente sair daqui! Falou JoséManoel um tanto preocupado.

Seu cunhado sugeriu que fossem para oescritório da transportadora:

–– Deixo vocês lá e vou conversar com papaipara ver o que podemos fazer!

Não havia quase ninguém na rua. O prédioficava perto dali e era bem simples. Na fachada umapequena placa identificava a transportadora. Elesforam até o prédio e subiram para o primeiro andar.Das poucas coisas que traziam nas bolsas, Zezinhotirou o panfleto do 13 de março na Central do Brasile comentou com José Raimundo:

–– Veja só , Bicho, eu nunca me emocioneitanto na minha vida como nesse dia treze de março.E tudo o que foi dito alí, por todos os quediscursaram, dava-me a esperança de que teríamosum Brasil melhor! E agora, o que vamos fazer?

Page 69: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

69

Depois, tirou outro panfleto e mostrou paraJosé Raimundo:

–– Você já tinha lido esta patifaria aqui?José Raimundo pegou o panfleto da mão de

Zezinho, leu e disse:–– Não se podia esperar outra coisa desse

deputado Amaral Peixoto, ele sempre serviu detapete para o almirantado!

Depois, José Manoel tirou da mala o rádioPhilco, novinho, novinho. Foi a última coisa quecomprou no Rio de Janeiro antes da fuga.José Raimundo examinou o rádio:

–– É de quantas pilhas?–– Seis pilhas, oito faixas e dez transistores.

Parece que é bom! respondeu José Manoel, ligandoo rádio.

Ficaram ouvindo as notícias do golpe militar.As rádios de Natal ainda comentavam a “Marchada Família, com Deus pela Liberdade” realizada nodia 7 de abril, elogiando a participação dos militares,dos próceres da igreja e do empresariado potiguar.

José Raimundo comentou:–– Veja como são as coisas. Centenas de

militares legalistas que não aprovaram o golpe, opresidente Goulart prestes a mudar o rumo do nossopaís e com uma grande aprovação popular,reconhecido até pelas pesquisas, recua e foge e nosdeixa assim sem suporte! E o Brizola? Segundodizem, foi o próprio presidente que pediu que elenão reagisse! Eles não queriam sangue! Bem diferente

Page 70: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

70

dessa linha dura que há muitos anos quer tomar opoder pela força!

José Manoel baixou o volume do rádio e falou:–– Esse povo tá doido pra ver sangue! Eles

nunca aceitaram o plebiscito! Eles queriam umpresidente João Goulart sem poder! Abreu Sodré,Ademar, Magalhães Pinto , Lacerda, são mesmocomo disse o presidente, são os democratas anti-povo, anti-reformas! São os democratas dosmonopólios e dos privilégios, são os sabujos dosEstados Unidos!

José Raimundo completou:–– Como é possível eles falarem na

Constituição quando dão um golpe contra umgoverno eleito democraticamente pelo voto? Caiu amáscara! Agora, caiu mesmo a máscara! Não temoutro nome não! É ditadura mesmo! E continuou:

–– E agora nós fazemos parte daquilo que ocapitão vivia dizendo: inimigos internos! Somosmesmos os inimigos internos?

José Manoel olhou para José Raimundo e disse:–– Escolhemos o nosso campo que é do lado

do povo! Forças armadas é para defender o povo enão para defender os interesses dos mais ricos!

9 de abril de 1964. A junta militar edita o AtoInstitucional nº 1 para dizer que “o movimento é civilmilitar e é uma autêntica revolução no interesse evontade da nação”, por isso, “é o poder constituinte ese legitima por si mesmo”.

Page 71: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

71

10. Itapissuma

A camioneta entrou na curva em grande velo-cidade. Mal deu tempo do motorista desviar da car-roça parada na estradinha. Apertados na cabine fo-ram jogados uns contra os outros. A carroça estavametade no mato e metade na estrada. O motoristaaprumou o carro e soltou um palavrão:

–– Cacête! Aqui é assim, esse povo não temnenhuma responsabilidade, depois a gente atropelae tem de responder inquérito! Falou com raiva, en-direitando o corpo, trocando a marcha, reduzindoa velocidade, quase parando e se recompondo dosusto.

Outra curva e a porteira. Nem era mais estra-da, era um caminho de pouco movimento. Se viamesmo. A mata era alta e fechada e as imbaúbasdominavam a paisagem.

Zé de Antão, o motorista, freiou junto da por-teira e disse:

–– Pronto! É aqui! Era um vale suave e à di-reita começava um canavial que sumia de vista. Pas-saram a porteira e já avistaram uma casa grandecom varandas, o curral, as pocilgas, os galinheiros,tudo junto. Mais ao fundo a casa do morador emais à frente um grande coqueiral, mangueiras, goi-abeiras, cajueiros e mais ao longe um bananal quedescia para as margens de um pequeno rio no fundodo vale.

Page 72: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

72

Desceram e olharam espantados. Não tantopela geografia, bem familiar para os dois amigos,afinal estavam na sua terra. O que os espantava erainusitado de tudo aquilo. Há poucos dias no ruge-ruge do Rio de Janeiro e vendo o mar a toda hora eagora alí, sem uma viva alma por perto, sem gente,sem carros, sem buzinas, sem navios e mar. Nadade montanhas. Retornar assim de sopetão, semplanejar nada e ainda mais fugitivos procuradospela Marinha.

–– Vizinhos? Perguntou José Manoel.–– Por trás desta matinha mora seu Antonio.

Vizinho bom e prestativo. Tem mulher e oito filhostudo trabalhando na terra. Quem respondeu foi Se-bastião, o único trabalhador do sítio e que moravana casinha ao fundo, com a mulher e um meninopequeno. Tão logo ouvira o barulho do carro cor-reu para abrir a porteira e receber os visitantes, aten-cioso, explicando tudo, informando, alertando.

Uns sanhaços cantaram nas imbaúbas. Cantolongo, floreado. Pararam para ouvir pois há muitonão ouviam canto de passarinho, assim, selvagem.Os amigos se entreolharam e sentiram: começou oexílio. Começava alí naquela cantoria dos sanhaços.

E assim, os dois marinheiros completaram suafuga, retomada em Natal quando o sogro de JoseManoel chegou na segunda de manhã com a boanova:

–– Vocês vão amanhã para Pernambuco!ParaItapissuma!

Page 73: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

73

Eles já estavam desesperados sem saber direitoo que fariam e para onde iriam. Deixar Natal era aúnica certeza que eles tinham, pois seria um dosprimeiros lugares que iriam procurá-los. Eles, comomembros da diretoria da Associação já estavam sen-do perseguidos pela ditadura.

–– Já está tudo combinado! Disse o sogro deJosé Manoel e continuou:

–– Vocês descem em Igarassu e vai estar láuma camioneta Ford azul e branca! O nome do mo-torista é Zé de Antão e vocês estão indo para lápara arrendar a propriedade do Medeiros! É um sí-tio em Itapissuma! Até acalmarem as coisas vocêsficam lá, depois a gente vê o que vai fazer!

Por fim, surgia uma saída. José Manoel e JoséRaimundo sentiram um pouco mais de alento umavez que quase não dormiam, angustiados com o quepudesse acontecer com eles, com os seus compa-nheiros e com seus familiares, pois a repressão pro-metia ser feroz, principalmente contra os marinhei-ros.

Geni viajou para Itapissuma alguns dias de-pois. Da vida no Rio de Janeiro não restara nada.Agora era candieiros, lamparinas e água de poço.Os hábitos mudando para se acostumar com aquelavida de exilado na própria terra. Para quem estavaacostumado com energia elétrica e água encanada,não era nada fácil. Foram se adaptando, apesar dasdificuldades.

–– O carro do leite passa às seis. São dois tam-

Page 74: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

74

bores de vinte e cinco. Eles querem que a gente dei-xe na porteira! Era Sebastião que orientava. Eramtrabalhos que eles conheciam, mas não faziam hámuitos anos. Ficaram trabalhando, cuidando dogado, dos porcos, das galinhas. Plantavam inhame,muito inhame. Os caminhões vinham buscar e saí-am abarrotados. Foram se acostumando com os sonsdo lugar. Conheciam os barulhos dos veículos quepassavam por ali. Qualquer som diferente, vinha aangústia e o medo. Vida de fugitivo. E Sebastiãonão podia saber. Inventaram uma história de brigade família. Eram muitas no sertão e ficava mais fá-cil justificar. Uma vida difícil de sobressaltos e in-certezas.

Agora eram noites mais longas. Lamparinas ecandeeiros e a conversa curta na varanda. Nada desábados, domingos e feriados. Dias todos iguais. Se-bastião vinha com a mulher e o menino que dormialogo no chão da varanda junto da cadeira do pai.As conversas variadas, chuvas, secas, rios que trans-bordavam, safras boas e ruíns, gado, bezerras e va-cas leiteiras. De tudo um pouco. A boa safra doinhame: um milagre de Nossa Senhora do Amparo.“Santa boa sem igual”! Falava Sebastião, fazendo osinal da cruz e tirando o chapéu.

As notícias chegavam pelo rádio. Pelo meio doano de 64 começaram a falar nas punições aos mari-nheiros. Falavam em cinco, dez, vinte anos de pri-são pelos inquéritos instalados pelo Cenimar.

Um dia Geni ouviu bem que falavam em mais

Page 75: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

75

de 1.500 marinheiros condenados. Ficou preocupa-da. Zezinho e Zé Raimundo na roça de inhame. Pas-sou o dia todo com aquele nó na garganta. À noite,na varanda e depois que Sebastião e a mulher fo-ram embora, falou:

–– A notícia é que a Marinha vai aguardar aapresentação voluntária dos marinheiros para ocumprimento da pena!

E falou mais:–– Vai expedir os mandados de prisão para to-

das as Delegacias de Polícia!E mais ainda:–– Estão enviando notas para todas as empre-

sas não empregar marinheiros! Vão cortar os em-préstimos das que desobedecerem!

–– Estamos emparedados! Disse JoséRaimundo.

–– Estamos! Concordou Zezinho.A chuva começara pela noitinha, entrou pela

madrugada e àquela hora, quase seis, continuava,ora forte, ora fraquinha. Fizera até frio de madru-gada. Deixaram os tambores de leite na porteira eretornaram para o curral. Um jipe parou junto daporteira quase sem fazer barulho parecendo mes-mo vir com o motor desligado. Não era o carro doleite, viram logo que não era. Foram buscar refúgioali pelo curral e mandaram Sebastião ver o que era.Ele voltou assustado.

–– É a polícia! Disse finalmente. Procuram des-de ontem um sujeito que esfaqueou um vereador lá

Page 76: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

76

por Igarassu! A informação é que o sujeito fugiupara este lado. O homem está de camisa amarela,calça preta e usa chapéu!

Era madrugada e o bebezinho chorou. Ela le-vantou e trocou a fralda. Sequinho e o choro acal-mado, adormeceu logo. Ela apagou a lamparina eacomodou-se na cama. Na porta uma claridade quenão era de candeeiro e nem luz elétrica. Na clarida-de, surgiu assim do nada um rapaz bonito, cabeçacomprida, cabelos curtos, um terço na mão, um sor-riso terno e um olhar tranquilo e lhe disse:

–– Aqui voce está guardada! Bem guardada!Não tenha receio!

Não deu nem tempo de ficar com medo. O ho-mem desapareceu junto com a claridade. Ela ficouali abobalhada e acordou José Manoel. Ele levan-tou, acendeu a lamparina e foi até a porta, olhou oquarto todo e voltou para a cama.

–– Foi um bom aviso, durma tranquila! Foi sóo que disse e adormeceu em seguida.

Depois, ela ficou sabendo que um jovem da-quele lugar havia morrido queimado num acidentede carro. Era ele. Quando soube da história tevecerteza que era ele. Era preciso que alguem confir-masse que estavam seguros naquele lugar.

Em outubro José Raimundo foi ao Recife evoltou desanimado:

–– É pior do que imaginamos! Disse quaseprostado. Passara três dias telefonando para o Riode Janeiro, buscando contato e recebendo negati-

Page 77: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

77

vas. Telefone desligado na cara assim que se identi-ficava. Medo, muito medo. Ligações que não com-pletavam, Não é mais aqui não! Não conheço essapessoa! Viajou! Mudou-se e não deixou endereço!Mas por fim, alguém que se propôs a dar notícias emanter contato.

José Raimundo continuava falando:–– Sabe como a ditadura está justificando o

golpe? Dizem que havia um complô, um golpe co-munista com a invasão dos russos que iriam dividiras propriedades e as mulheres, que agora seriam detodos! As crianças seriam mandadas para estudarlonge, bem longe das familias. Brizola era o coman-dante do golpe e Julião e Arrais os sub-comandan-tes. João Goulart era pau-mandado do Brizola queera quem mandava de fato. E dizem mais: Fizemosa revolução antes dos comunistas dar o golpe, poiso Prestes já se preparava para invadir o país com osrussos! É toda essa patifaria! completou JoséRaimundo, baixando a cabeça e demonstrando umagrande revolta.

–– Debandada geral dos marinheiros! Disse JoséRaimundo e continuou:

–– Muitos foram presos. Estão falando nummovimento a partir do Uruguai, comandado peloBrizola, aquela história do MRN. Me falaram tam-bém que o Julião está organizando uma resistência.A palavra de ordem é organizar a luta armada. Fo-mos pegos de surpresa e é preciso organizar a lutacom urgência. Empresários e militares não se en-

Page 78: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

78

tendem, eles estão divididos. O momento é propí-cio, o povo já não está apoiando a ditadura comoantes!

E agora o pior! Falou impaciente, revoltadocom tudo aquilo:

–– Saiu a nossa condenação no dia 30 de se-tembro, o ato é de número 365. E olha que o cincosempre foi o meu número de sorte! Sorriu JoséRaimundo. Um sorriso de asco.

Mudaram de assunto quando Sebastião apro-ximou-se. Estavam sob as mangueiras que prometi-am uma safra e tanto.

Seguia a vida de muito trabalho e Geni nãosuportava mais aquele exílio forçado. Mais de umano afundada ali naquele sítio longe de tudo e detodos. Um dia, tomou uma decisão:

–– Vim porque não aguento mais e eu sei queZezinho nunca viria aqui pedir nada para vocês, nãoé orgulho não, mas ele acha que poderá trazer pro-blemas! A Marinha continua perseguindo ele! EraGeni na casa dos sogros em Toritama.

Nunca tinha ido a Toritama, mas foi. Cami-nhou a pé pela estradinha até atingir a estrada prin-cipal. Tomou o onibus e desceu ao lado da delega-cia de polícia e perguntou para um soldado ondemorava Manoel da Santa.

Manoel da Santa nem discutiu. No outro diapegou o caminhão e foram lá buscar a mudança.Ficaram em Toritama. José Manoel ficou trabalhan-do no caminhão, transportando cana em Palmeiras

Page 79: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

79

dos Indios. Depois da safra, ficou dirigindo a RuralWillis do pai, levando passageiros para Caruaru.

–– Se a Marinha vai prendê-lo, que venha pren-der aqui na minha casa e que diga qual foi o seucrime e se é crime querer o bem do nosso país! Foio que disse o pai.

10 de abril de 1964. O Ato Institucional da dita-dura cassou os direitos políticos de vários cidadãos,dentre eles o deputado Leonel Brizola, um dos pro-váveis candidatos à sucessão de João Goulart. Os ou-tros prováveis candidatos eram Carlos Lacerda, go-vernador da Guanabara e que participara ativamentedo golpe e Juscelino Kubstichek, senador por Goiás,que mesmo não participando, deu apoio aos golpistas.Foi cassado em junho de 1964. Para a ditadura, elenão era confiável. A linha dura limpava o caminho efincava os marcos. Profundos. Leonel Brizola foi parao exílio no Uruguai onde buscou organizar o movi-mento de resistência armada contra a ditadura, oMovimento Nacionalista Revolucionário, extinto em1967. Vários outros grupos foram organizados a par-tir de então.

Page 80: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 81: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

81

11. Marinheiro só

José Manoel chegou de madrugada em Caruaru.Quando estacionou o carro perto da lanchonete paratomar um café, viu o rapaz saindo de um bar aolado. Não era seguro chamá-lo pelo nome. Para ne-nhum dos dois era seguro. Esperou que ele se afas-tasse e seguiu-o até uma praça onde alcançou-o.Quando ficou ao lado, olhou e disse:

–– Como vai, Mário?O rapaz olhou para ele espantado, parecendo

ver alma, pois reconheceu logo seu companheiro daMarinha, o cabo José Manoel, companheiro desdeNatal. Achava que ele estivesse morto.

Entraram num bar e pediram café.–– E então? Perguntou José Manoel.–– Estou fugindo de novo! Consegui uma car-

teira de identidade nova e uma carteira de traba-lho! Uma parte do pessoal é solidária , outra partequer dinheiro e assim não foi difícil conseguir osdocumentos!

–– Essa história eu sei, já passei por isso! In-terrompeu José Manoel.

Mário sorriu e retomou a fala:–– O difícil mesmo é a gente se manter no em-

prego! A almirantada quer que morramos de fome,continua nos perseguindo!

–– Quantos anos? Perguntou José Manoel.–– Eu não sei não, deve ser cinco anos, por-

Page 82: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

82

que eu não era da Associação! Só estava na reu-nião!

José Manoel interrompeu o amigo:–– Eu devo pegar 15 anos porque era da dire-

toria da Associação, estava na organização da as-sembléia e ainda escrevia para o jornal! Segundo oalmirantado uma ruma de crimes, gravíssimos!

–– Consegui um emprego e fiquei quase cincomeses! Agora era Mário que falava. A situação nãoé boa!Você arruma o emprego e passa a trabalharcom vontade, animado, fazendo tudo muito direiti-nho e eles até fazem elogio pelo seu trabalho! Só épreciso ter cuidado com as sextas-feiras! Aí é queestá o problema! Numa sexta-feira qualquer você échamado no departamento pessoal! Para nós mari-nheiros, nunca é notícia boa! Se lá já não estiver apatrulha da Polícia Militar para lhe prender e man-dar para o Rio, você é chamado para ser demitido!Acredite, é bem melhor que seja só a demissão!

–– E então? Perguntou novamente JoséManoel.

–– Não sei, estou meio desesperado! O pessoallá de casa acha que eu devo ir para São Paulo. Lá écidade grande e mais fácil para trabalhar! Tenhoum primo camelô que está ganhando dinheiro lá!Eu tenho medo, muito medo! Encontrei outro diaum companheiro nosso que estava fugindo, me dis-se que ia para Manaus e depois para um fundo defloresta onde um tio dele estava morando! Ele foido grupo do Brizola, aquela história do Uruguai e

Page 83: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

83

ficou preso um tempo e depois chamaram ele parair para Cuba! Ele teve medo e não foi! Ele acha quemais dois ou três anos as coisas mudam e nós pode-remos ser anistiados!

Foi uma despedida emocionada.–– Nos veremos, certamente em condições me-

lhores! Disse José Manoel abraçando o amigo.Duas semanas depois desse encontro José

Manoel estava no Recife e passaria a temer as sex-tas-feiras.

–– Os documentos! Disse o funcionário que ti-nha um ar sério, cansado. Fazia tudo quasemecânicamente. A fila imensa de homens e mulhe-res calados, um turbilhão de pensamentos, de espe-ranças e desesperanças.

José Manoel apresentou a identidade e a car-teira de trabalho e a ficha que preenchera ainda hápouco, candidatando-se para a vaga de auxiliar dealmoxarife.

O funcionário apanhou tudo, conferiu tudo epassou para uma pilha enorme de outros docu-mentos.

–– Aguarde lá fora até a gente chamar! Foi sóo que disse, entediado e acendendo um cigarro.

–– José Manoel da Silva! Era uma funcionáriaque chamava. Ela era fanha e o pessoal que aguar-dava ficava imitando e sorrindo de lado, às escondi-das.

Ele, José Manoel depois de esperar quase duashoras alí, sentado numa mureta, agora era auxiliar

Page 84: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

84

de almoxarife na Odebrecht em Recife. Uma boanotícia neste final de 1966. Só temeria, a partir deagora as sextas-feiras.

27 de outubro de 1965. A ditadura baixou o AI-2 e interviu no Poder Judiciário. O poder agora é dajustiça militar. Suspendeu a Constituição de 46, ex-tinguiu os partidos, instituiu eleições indiretas eemasculou o Congresso. Decretou o fim das garanti-as constitucionais para funcionários públicos civis emilitares. Cassou e baniu mais patriotas brasileirosque não concordavam com a ditadura. De passagem,condenaram os marinheiros severamente. porindisciplina e quebra da hierarquia.

O marechal Castelo Branco foi substituído pelomarechal Costa e Silva. No Ceará, sua terra natal, foiconvidado para uma voltinha de avião. Ele tinha medode avião, mas foi. Um caça Lockheed TF-33 da FABque coincidentemente ia passando naquela hora, atin-giu o pequeno Piper Aztec PP-ETT que caiu. Só oPiper caiu. Dizem que o Piper voava a muitos pés e ocaça a poucos pés. Há controvérsias com os pés! Era18 de julho de 1967. Morreu o marechal Castelo Bran-co e um grande arquivo de pelo menos meio século.Para o chamado núcleo duro da ditadura, àquela al-tura o marechal era melhor morto.

Page 85: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

85

12. Companheiro Moisés

–– Agora é a luta José Manoel! Entregou paraJosé Manoel a cópia de um texto escrito à máqui-na. Era uma cópia mimeografada. Eram quatro oucinco folhas de ofício. E continuou falando:

–– Vou deixar com você, leia e depois queime!Era José Raimundo que falava, o fraterno amigoJosé Raimundo, o Moisés, que mudara para SãoPaulo e com quem agora, José Manoel tinha pon-tos e codinomes.

–– Não é preciso falar em discrição, nossa se-gurança vem em primeiro lugar! Nossa amizade con-tinua mais forte ainda, mas agora temos que nosresguardar! Teremos pontos, encontros para o avan-ço da luta! Era quase um desabafo e José Manoelouvia com atenção.

–– Minha conclusão, depois de tudo o queestamos vendo é que não há outro caminho senão oda luta armada! A ditadura avança sobre nós, nospersegue, nos tortura e mata. O PCB não quer aluta armada, avaliam que é um erro! Mas nós nãopodemos ficar parados assistindo o massacre e so-frendo o massacre! O Brizola também está desistin-do da luta armada. O MNR está praticamente aca-bado! Os companheiros do PC do B estão indo parao norte. Falam na guerrilha rural. A luta é de van-guardas. Foi possível em Cuba, aqui também será!Deixo o livro de Debray para você ler!

Page 86: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

86

Amigos inseparáveis desde marinheiros emNatal, o sargento José Raimundo da Costa e o caboJosé Manoel da Silva, estreitaram a amizade com omesmo pensamento de fraternidade e solidariedadedo sertão pernambucano de onde, oriundos. Bus-caram refúgio juntos quando perseguidos pela dita-dura. Lutavam por um Brasil com mais justiça. Con-tinuaram a acreditar na luta. Nunca desistiram eseguiram o caminho quase natural daqueles mari-nheiros que não se curvaram ao golpe de 64.

José Raimundo continuava falando, agora pau-sadamente sobre a Vanguarda Popular Revolucio-nária:

–– Também somos nós militares cassados doMNR!

Era uma história que José Manoel conhecia. OMovimento Nacionalista Revolucionário, surgiraapós o golpe de 1964 e juntava militares e pessoasligadas ao Partido Trabalhista Brasileiro e ao Par-tido Socialista Brasileiro, além de militantes de es-querda que apoiavam Brizola, que organizara a re-sistência ao golpe a partir do Uruguai. Na esteirado internacionalismo proletário, receberam o apoiocubano para treinamento dos militantes, mas apósduas tentativas frustradas, abandonaram a luta ar-mada e discutiam outras formas de luta. Váriosdos seus militantes foram para os grupos armadosque estavam se formando.

José Manoel já estava convencido há muitotempo que o caminho era aquele. Não havia outro.

Page 87: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

87

Eles, que sempre prezaram e defenderam a Marinhado Brasil foram severamente perseguidos e conde-nados pela ditadura por reivindicar melhorias paraos marinheiros e para o povo.

Para ele era inconcebível que aqueles que ras-garam a Constituição Brasileira, depuseram um pre-sidente eleito democraticamente pelo voto livre esoberano do povo, agora os perseguiam como seeles fossem facínoras perigosos.

–– E ainda falam em hierarquia e disciplina!Dizia José Manoel, balançando a cabeça.

13 de dezembro de 1968. O marechal Costa eSilva, o ditador referendado por um colegio eleitoralem 3 de outubro de 1966, baixou o Ato Institucionalnº5. O AI-5 determinou o fechamento do CongressoNacional, a intervenção nos Estados e Municípios,cassou o mandato de parlamentares, suspendeu o“habeas corpus” e suspendeu por 10 anos os direitospolíticos de vários cidadãos que não concordavam comos atos da ditadura. Entre uma parcela da juventude,notadamente os universitários, 1968 era assim: Marx,Mao e Marcuse como leitura e ação. As palavras deordem iam desde “Só o povo armado derruba a dita-dura” até “Só o povo organizado derruba a ditadu-ra”.

Page 88: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 89: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

89

13. Jonatas, que não era mais

Como estaria José Raimundo? Era isso queJosé Manoel vinha pensando pelo caminho naquelaquinta-feira, 20 de maio de 1971. Aquela vida peri-gosa, prisões de companheiros, o cerco apertando,a repressão tomando fôlego, comemorando cadacaptura como um troféu. Torturas e notícias de trai-ções. E eles alí na trincheira, a luta difícil que pou-co avançava. Depois de quase um ano, os ditadoresainda usavam a vitória da copa do México para fa-zer propaganda do Prá frente Brasil, do Ninguémsegura este país e do Brasil, ame-o ou deixe-o!. Di-fícil. Ele sempre teve certeza disso, mas sempre acre-ditou que um dia tudo daria certo. Desistir nunca,ele queria ver seus filhos vivendo num país melhor,mais justo, mais digno, mais solidário.

Chorava vendo o sofrimento do seu povo. Amiséria crescendo. E agora ele e José Raimundo seencontrando num ponto. Aquela amizade fraternade vários anos e horas e horas de conversas e deba-tes sobre os rumos da Associação dos Marinheiros,os rumos do governo do Jango, os rumos da dita-dura de 64, no Rio, em Natal e no Recife. Tudopassara, agora encontro furtivo num ponto, trocan-do poucas palavras, só as necessárias para a luta irà frente. A segurança de um e do outro em risco.Encontros rápidos, instruções. Só instruções. Mais,seria perigoso.

Page 90: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

90

Entrou na Cruz Cabugá. Primeiro deu umachecada passando pela Rádio Clube e avançandoduas quadras, procurando um lugar para estacio-nar o carro. Era um Gordini verde claro, bem con-servado. Achou a vaga e estacionou. Tudo limpoaté agora. Voltou caminhando até o ponto de ôni-bus que ficava na frente da rádio que tinha um lu-minoso bem grande na frente com o PRA-8. Nocaminho ele vinha se perguntando quem teria sidoCruz Cabugá, agora nome de avenida no Recife. Es-tava tenso, as mãos frias e suadas e mancando daperna esquerda, cheia de pinos e mais curta peloacidente na Odebrecht em 1968. Haviam poucas pes-soas no ponto de ônibus. Naquela hora, 8 da noite,alguns funcionários retardatários, algumas empre-gadas domésticas e um homem visivelmente embri-agado. Era preciso ter cuidado que esse povo se fin-ge de tudo. Mas o homem estava mesmo bêbado enão falava coisa com coisa.

Passou olhando o povo no ponto de ônibus eviu um homem com a caneta esferográfica azul porfora do bolso da camisa. Não era José Raimundo.Ele se juntou ao grupo que esperava o ônibus e seaproximou um pouco mais do homem com a cane-ta esferográfica azul por fora do bolso.

–– Você tem duas de 50? Perguntou JoséManoel

–– Não, só tenho uma. Respondeu o homemcom um olhar perscrutador.

Eles esperaram o pessoal embarcar no ônibus.

Page 91: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

91

José Manoel ficou emocionado, já reconhece-ra o homem pela voz. Uma voz inconfundível queele nunca esquecera. Uma voz que incendiou o mar-ço de 1964. Uma voz que orgulhava todos os mari-nheiros. E então não obedeceu as convenções de se-gurança. Os cumprimentos, não foram os de praxe.Havia mais que a relação formal de revolucionári-os. Aquela camaradagem, o espírito de solidarieda-de, o companheirismo comum nos marinheiros,aflorou todo ali para José Manoel.

Anselmo não o reconheceu de imediato. De-pois olhou bem e descobriu que Cirilo era JoséManoel, poeta e seu companheiro da Marinha, ocabo paioleiro da Ilha do Governador e muito atu-ante no conselho fiscal da diretoria da Associaçãodos Marinheiros e pessoa da estrita confiança dosargento José Raimundo. O amigo que JoséRaimundo não cansava de elogiar pela seriedade ecompromisso, primeiro com a Associação e depoisdo golpe, o compromisso com um país melhor emais justo. Para Jonatas tudo isso estava bem me-lhor do que ele esperava.

–– Você engordou muito! Lembrando-se que omais expressivo em José Manoel naquela época damarinha eram os grandes olhos que se destacavamno rosto magro e corpo esguio. Bem mais gordo,José Manoel perdera esta característica.

–– Pois é, a vida!–– Eu observei que você está puxando uma

perna!

Page 92: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

92

–– Acidente! Estou usando um sapato ortopé-dico para compensar a perna acidentada mais cur-ta! Ela está cheia de platina e dói quando o tempoesfria! Dos males, o menor, pois pensei que fosseperdê-la!

–– E então? O que traz? Perguntou Cirilo.–– Estou buscando contato!. Disse Jonatas.–– O próximo é dia 25! Moisés!Depois só no

dia 30, mas aí é ele que deve localizar você!–– É seguro onde você está?–– Estou no Hotel Rex!–– Não! Não dá certo não! Você tem que sair

dali! A polícia mantém o controle de todos os hoteis,pensões e pousadas! Está tudo sujo aqui no Recife!A deduragem é grande, parece que dão até recom-pensa! Depois, completou:

–– Vamos cuidar de transferir você para outrolugar!

–– Amanhã em Olinda em frente ao cinema!Cine Duarte Coelho, às 8 da noite! Ponto marcado.O encontro foi assim, rápido como deveria ser.

No outro dia José Manoel estava mais relaxa-do, mas não descuidou da segurança. Foi de ônibus,desceu no ponto em frente ao cinema e fez achecagem. Tudo limpo. Anselmo já estava lá.

–– Só problemas! Falou Jonatas e continuou:–– Dificuldades de contato, de trabalho, de

ação! Todo mundo lá meio queimado! Pelo que meinformaram, Moisés não pode circular muito no Rioe São Paulo. Muita dissensão! Muita desorganiza-

Page 93: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

93

ção e muito intelectualzinho querendo nos ensinaras coisas. Pouca ação! Esse pessoal não tem a visãoque nós militares temos. Eles precisam de treina-mento. Lamarca está completamente desprotegido!

Enquanto Anselmo falava, José Manoel pen-sava nos laços fortes que os prendiam há muitosanos. Lembrava-se da festa de aniversário da Asso-ciação, daqueles dias fatídicos, das perseguições, dosalve-se quem puder dos companheiros que deban-daram em fuga, porque o presidente Jango recuarapara não participar de um derramamento de san-gue. Tinha orgulho de ter Jonatas como compa-nheiro de farda. Lembrava-se da sua coragem, dosdiscursos inflamados, da defesa que fizera dos mari-nheiros e do povo brasileiro. Depois, as notícias desua fuga espetacular, as notícias de Cuba e as notí-cias de sua volta para reforçar a luta contra a dita-dura. Era um companheiro de fibra.

E fugindo às regras de segurança, José Manoelfalou com muito orgulho do seu filhinho que parti-cipava de um concurso na televisão respondendosobre a história do Brasil, da sua filhinha recém nas-cida, do seu emprego na Odebrecht até 70, do aci-dente, da perna mais curta com platina, do sapatoortopédico que usava e da pensão que recebia daPrevidência.

Anselmo anotou tudo. E percebeu que poderiasempre contar com isso: a confiança, a extrema con-fiança que seus companheiros da marinha deposita-vam nele. Ele era mesmo uma pessoa acima de qual-

Page 94: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

94

quer suspeita, pelo menos para os seus companhei-ros da marinha.

Depois, José Manoel retomou a conversa, fa-lando do seu trabalho na luta revolucionária, umtrabalho de conversa, de conhecimento, de penetra-ção tímida, mas segura, enfim um trabalho para lon-go prazo, sem ações espetaculares, sem grande ex-posição, mas seguro e avançando sempre. Por fim,disse:

–– Por tudo o que vem acontecendo, o mo-mento de recuo!

–– Não sei não, o pessoal do Chile não achaisso! Retrucou Jonatas.

O encontro estava ficando demorado. JoséManoel sabia dos riscos para ambos:

–– Sábado às 3 da tarde no Hospital São José,vamos levar você para um local seguro! Falou umtanto aperreado.

No sábado, José Manoel deixou Jonatas numachácara em Abreu e Lima. Alguns dias depois,Jonatas voltou para São Paulo com o ponto com-binado para encontrar Moisés. Era domingo, 30 demaio de 1971 e Anselmo já estava em São Paulo.

O problema era que Anselmo já não era Jonatashá algum tempo. E os poucos que desconfiavam dis-so estavam presos e tentando passar a informaçãopara os companheiros, mas os desentendimentos en-tre os grupos, a divisão entre os que achavam queera o momento de recuar para reorganizar a luta eos que acreditavam que o governo cairia com um

Page 95: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

95

pouco mais de ação e luta, provocou um fosso pro-fundo entre as organizações armadas. Tirando pro-veito deste fosso entre as esquerdas, Anselmo agiatranquilo e sem medo.

1971. O General Humberto Melo assumiu o co-mando do II Exército em São Paulo com uma só de-terminação: não se deve prender mais nenhum ter-rorista. É para matar. E assim foi feito. A economiaia bem. Televisão, geladeira, fusquinha, corcel, a se-leção canarinho campeã do mundo mais uma vez,tudo isso embalado com o fundo musical do “Eu teamo meu Brasil”.

Page 96: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 97: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

97

14. Paratibe, adeus!

–– Geniiii! Geniii! Eram as mocinhas da pada-ria que a chamavam. Ela ia passando direto, aper-reada para chegar em casa e fazer o almoço. Saírabem cedinho e fora até o Posto de Saúde de Paulistapara vacinar seu filho. Paratibe era um lugar ondequase nunca acontecia nada e as mocinhas da pada-ria estavam ansiosas para contar a novidade.

–– Hoje bem cedo, antes de oito vieram aquiuns homens perguntando pelo seu marido! Disseuma delas atropelando a outra, que completou comos olhos brilhando:

–– Uns homens altos e bonitos de roupa boanum carrão e com sotaque do sul! Eu acho que eleseram de São Paulo!

Geni nem deu muita importância para o fato.Devia ser engano. Quando se aproximou da sua casaela viu na ponta da rua um automóvel preto, gran-de, novo e sem nenhuma razão para estar alí naque-la hora e naquele lugar.

Pouco tempo depois que entrou em sua casa,viu o carro estacionar em frente e dele descer doishomens. Viu que dois permaneceram no veículo, omotorista e um que estava no banco de trás. Nemprecisaram chamar ou bater palmas pois Geni saiulogo para atendê-los.

A casa de Geni em Paratibe tinha uma cerca devaras na frente. A casa ficava mais ao fundo. Seu

Page 98: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

98

filho brincava no quintal. Os homens eram aqueles,tal qual descritos pelas mocinhas da padaria. Esta-vam bem vestidos, eram altos, usavam óculos escu-ros, camisas de manga comprida e um deles usavaaté gravata.

–– Olha! Nós viemos aqui e queríamos falarcom o seu marido, o José Manoel! Você é a esposadele, não é?

Geni ficou preocupada mas confirmou que JoséManoel morava alí e era seu marido. Depois, pen-sou que podia ser o pessoal da Marinha, pois já ou-vira falar que eles estavam procurando os ex-mari-nheiros e levando-os para o Rio de Janeiro paracumprir pena de prisão. Ela pouco sabia, mas des-confiava que José Manoel era procurado pela Mari-nha. Ele não falava e ela também não perguntava eassim iam vivendo.

Os homens escondiam os rostos nos óculos es-curos, grandes, muito grandes. Um deles se adian-tou encostou no portão e disse com muitatranquilidade para Geni:

–– É que o seu marido ganhou na loteria ecomo é muito dinheiro a gente veio buscá-lo paraque ele receba em segurança. Quando é assim mui-to dinheiro, a gente prefere buscar a pessoa paraentregar o prêmio pessoalmente.

–– Vocês vão sair da miséria! Disse o que esta-va no volante do carro. Falou com seriedade, masdepois traiu-se com um risinho de sarcasmo que nãopassou despercebido por Geni.

Page 99: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

99

Meu marido está viajando e só volta daqui doisdias! Geni estava espantada com aquela notícia, masacreditava mesmo que aqueles homens estavam alipara entregar um prêmio para seu marido. E entãodisse:

Olha! Meu marido nunca me falou que jogavana loteria!

Um dos homens respondeu:–– É assim mesmo, tem marido que gosta de

fazer surpresa para a mulher! E todos sorriram.Depois, entraram no veículo e saíram sorrindo. Nemdisseram quando voltariam.

José Manoel viajara no dia anterior. Recife,João Pessoa e Natal vendendo mercadorias e fazen-do seu trabalho de militante. A previsão era quevoltaria mesmo depois de três dias. Quase sempreera assim.

Chegou naquele dia, à tardinha quase noite eencontrou Geni entufada. Muito entufada. Apanhouseu filho pela mão e foram na bodega da esquina.Ele preocupado e tentando adivinhar porque Geniestava daquele jeito, ela que sempre o recebia commuita alegria, sempre sorridente e agora, calada,sem graça e querendo dizer alguma coisa.

Voltou da bodega com uma lata de sardinha,refrigerante e cerveja. Ela nem olhou para ele. E aí,ele não aguentou. Rendeu-se àquela situação:

–– O que houve Geni? Você está magoada co-migo?

Ela respondeu quase chorando:

Page 100: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

100

–– Mas como pode isso Zezinho, a gente casa-do há muitos anos, correndo prá lá e prá cá, juntosnesse aperreio e você nem me diz que joga na lote-ria! Ah! Zezinho eu não esperava isso de você não!

Primeiro ele ficou relaxado. Era menos do queele pensava que fosse. Depois preocupado com odespropósito da situação. Ela, sua mulher embur-rada por causa de um negócio desses.

–– Por que você me diz isso? Eu nunca jogueiem loteria não, aliás eu sempre fui contra jogar naloteria e você sabe disso!

–– É por isso mesmo Zezinho, pois quantasvezes a gente já discutiu sobre isso e você sempreme disse que não jogava e nunca jogou! E agoraisso...

–– Isso o quê?–– Isso de você ganhar na loteria!José Manoel chegou no máximo do espanto

com aquela conversa.–– O quê???–– É isso mesmo, hoje cedo vieram quatro ho-

mens num carro preto, novinho, novinho e me dis-seram que iam levar você para receber o prêmio! Eque era muito dinheiro e um deles disse até que agente ia sair da miséria!

–– E como eram estes homens? Quis saber.–– Bem vestidos, de camisas de mangas com-

pridas, óculos escuros, todos altos e com sotaquede paulista!

José Manoel empalideceu. Geni percebeu algu-

Page 101: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

101

ma coisa estranha e não falou mais nada.José Manoel foi até o quarto e tirou o sapato

ortopédico que calçava. Agora estava calado. Cis-mado. Ele já sabia que a equipe do Fleury estavaem Pernambuco. Aliás era uma disputa que se tra-vava entre o DOI-CODI e o CENIMAR para verquem capturava a presa primeiro. Quem torturavaprimeiro.

–– Arrume as malas, junte as coisas da cozi-nha que nós vamos viajar!

–– Para onde? Ela quis saber.–– Depois eu lhe digo! Agora vá arrumando as

coisas!Geni já estava acostumada àquilo e nem per-

guntou mais nada e nem discutiu. Entrou e foi ar-rumar as coisas. Do quarto ouviu o barulho do au-tomóvel de Zezinho arrancando e ganhando veloci-dade. Era noitinha. Eles nem haviam jantado.

Em menos de uma hora José Manoel voltounum caminhão simples. Ele, o dono do caminhão eum ajudante. Voltou sem o seu automóvel. Não fa-lou nada para Geni sobre isso e ela também nãoperguntou. Foi o tempo de colocar, móveis, malas eroupas e sair. Era mais de onze da noite quandoviajaram para Toritama.

Geni gostava de Paratibe. Quando se mudarapara lá, uma vizinha lhe falou:

–– Dizem que o nome daqui é dos índios e querdizer cheio de rios ou entre rios. É um lugar muitobom para se morar!

Page 102: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

102

Era um terreno grande, cercado de arame far-pado. José Manoel sempre quis ter um terreno na-quele local. Festejaram muito quando finalmente ocompraram. Depois, fizeram uma cerca de varas nafrente e construíram a casa lá no meio do terreno.

Geni tomou a frente e com o seu filho, aindacriança, e alguns vizinhos levantaram a casa de tai-pa e piso de cimento queimado. Sala, quartos, cozi-nha, banheiro. O barro tirado do próprio terreno,argila das boas. Lugar simples e vida simples. Vizi-nhança melhor não havia. Solidários, sempre soli-dários. Nos domingos, embarcavam no Gordini ver-de claro e iam fazer a feira em Abreu e Lima. Tem-pos felizes. Assim era Paratibe para Geni.

1972. O Brasil vai bem, sob censura. O PIB crescea 12%. Televisão em cores a prestação. A classe mé-dia, uma parte, vibra com tudo. O Fittipaldi é cam-peão do mundo. É estrada, é siderúrgica, é porto, éusina. É o diabo! A ditadura anuncia o milagre. É o“Milagre brasileiro”! É mais fusca e mais corcel naprestação. Um banco vai engolindo o outro e ficandomais forte e cobrando juros mais altos. É o progres-so. No Uruguai, os Tupamaros são mortos. Há umaestranha música tocando em Santiago do Chile, anun-ciando uma tragédia. Há muitos surdos no Chile. NaArgentina é muito perigoso viver. Numa casa dePetrópolis, depois de torturados, enterram-se os ca-dáveres no jardim.

Page 103: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

103

15. O Comando Gelson Reicher

–– O moço veio com uma espingardona assimdesse tamanho para o meu lado e me ajudou a le-vantar! Eu estava meio zonza porque quando caí,bati a cabeça na quina da mesa! Ele me levantou eperguntou se estava tudo bem! Não estava, eu sen-tia uma dor danada na cabeça! Mas não respondinada! Só fiz balançar a cabeça que estava tudo bem!

Geni e algumas mulheres da vizinhança, prote-gidas do sol debaixo daquela mangueira no quintalgrande da sua casa em Toritama, ouviam com inte-resse a história da vizinha que chegara há pouco deSão Paulo. Ela gesticulava muito, falava bem alto eterminava a frase com um risinho nervoso no cantoda boca.

–– Aí ele apanhou a bandeja, o bulezinho docafé, as chicaras e os cacos das chícaras e botoutudo em cima da mesa e me pediu desculpas! Eufiquei calada, nem respondi! Estava em estado dechoque! Ele era bem novinho e tinha uma barbinharalinha, meio avermelhada! Os olhos dele eram bemverdes e ele me olhou mesmo com o jeito de quempedia perdão! Ah! Isso eu não vou esquecer nunca!Aqueles olhinhos verdes de criança!

Calou. Ficou pensativa olhando os raios do solatravessando a folhagem da mangueira. Era um si-lencio grande, todos olhando para ela, admirados.

–– Meu tempo em São Paulo foi bem curto!

Page 104: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

104

Arrumei esse emprego em Osasco e fazia limpeza eservia o cafezinho! Era um emprego bom, de car-teira assinada e um pessoal bem legal, mas depoisque aconteceu esse negócio, ninguém mais na firmateve sossego! Fiquei com muito medo! A polícia tan-to ia na casa da gente como na firma! E queria sa-ber isso, aquilo, o nome do pai, da mãe, do tio e sea gente tinha irmão, primo, o que faziam e ondemoravam! Um inferno!

Um carro de propaganda passou na rua anun-ciando a inauguração de uma loja na cidade e nin-guém mais ouvia a narração da história. Ela perce-beu e parou. Quando o veículo se afastou, ela reto-mou, mas aí Geni perguntou:

–– Mas então, como foi que aconteceu do ra-paz derrubar você?

–– A porta da contabilidade era de duas ban-das igual aquelas dos filmes de bandido e mocinho!Eu até achei engraçado porque só tinha visto aque-las portas nos filmes! Eu ia distribuir o cafezinhopara o pessoal da contabilidade! Eu nem sabia da-quele movimento todo, porque estava na cozinhafazendo o cafezinho! Aí o moço ouviu barulho eveio pela porta com tudo e me derrubou, eu e abandeja de cafezinho! Foi café para todo lado, por-que eu já trazia servido nas chícaras! Foi um mo-mento terrível e eu tremia muito e não conseguiaparar de tremer! O moço me acalmou e pediu ape-nas que ficasse quieta, sentadinha na cadeira e eufiquei! Ele não tinha jeito de pessoa má! Aí eles

Page 105: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

105

pegaram o dinheiro do cofre e nos entregaram umafolhinha escrita, que o seu Claudemir da contabili-dade disse que era um panfleto. Depois eles escreve-ram bem grande na parede com tinta preta, “Co-mando Gelson Reicher” e “Abaixo a ditadura as-sassina”! Isso eu também nunca vou esquecer!

O sol baixando, um sanhaço cantou numa ár-vore bem próxima. Outro veio e também cantou,agora, na mangueira. Todos olharam para o pássa-ro e ele voou, aí voltaram a olhar para ela.

–– Depois foi um inferno! Todo mundo teveque ir na polícia! E lá era pergunta que não acabavamais! Na outra semana fui pedir a conta para o ge-rente, seu Tarcísio, mas ele me aconselhou a nãopedir porque senão a polícia ia desconfiar de mim!E perguntou se eu tinha pego a folhinha escrita dosmoços e se tivesse em casa que queimasse e jogasseas cinzas na rua sem ninguém ver! Aí eu tive maismedo ainda, porque eu levei umas cinco e distribuícom os vizinhos, porque achei o máximo tudo aquiloacontecer ali na firma! Só depois de três meses foique seu Tarcísio me deu as contas! Eu tive até quechorar e mentir que minha mãe estava doente e eutinha que voltar para Pernambuco para cuidar dela!No outro dia eu vim embora para cá e não voltonunca mais naquela terra! Faz muito frio, a maio-ria do povo não tem consideração com a gente etem muita polícia perturbando! É um povo engra-çado que chama a gente de nortista ou de baiano!Aí eu dizia! Não sou baiana, mas gosto muito dos

Page 106: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

106

baianos que são bonitos e legais, mas soupernambucana e nordestina! Um tio meu havia mefalado tudo isso e eu tinha o maior gosto de dizerque era nordestina e pernambucana! Olha bem senão é o destino! Mamãe não queria que eu fosse!Disse que o número setenta e dois não era bom parase mudar e aí deu o que deu, não foi?

Agora, estavam todos curiosos para saber a con-tinuação e Geni a interrompeu novamente:

–– Mas e então como foi que eles entraram lá?–– Foi tudo assim e eu tive muita pena do pes-

soal da contabilidade que estava esperando a moçaloira bonita que ia trabalhar com eles! Era uma ani-mação que só vendo! Agora, quem eu ví dizer queapanhou da polícia foi seu Antonio da portaria, nãosei se pelo fato dele ser preto, mas dizem que a polí-cia levou ele lá no DOPS e bateu nele para ele con-fessar que abriu o portão para os terroristas entrar!Era mentira porque a loira já tinha ido lá fazia umasemana com o recorte do jornal na mão! Eles esta-vam procurando uma funcionária para a contabili-dade que deveria ter experiencia! Eu nem sei se elatinha, mas foi contratada na hora! Era muito boni-ta! Aí, calou-se, olhou para Geni e continuou:

–– Depois fiquei sabendo que a polícia invadiuo quarto dos rapazes da contabilidade e depois cha-maram eles lá no DOPS! O Claudemir foi um delesque teve que ir lá! Acontece que eles pegaram ospanfletos e guardaram numa mala! A polícia ficoudesconfianda deles porque eles tinham os panfletos

Page 107: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

107

e porque contrataram logo a moça! Interrompeunovamente parecendo buscar na memória os acon-tecimentos e depois prosseguiu:

–– A moça foi lá para arrumar emprego e fi-cou de começar em dez dias! Fez logo amizade como seu Antonio da portaria, que até comentou co-migo que a moça era muito educada! Na outra se-mana ela foi e seu Antonio da portaria já conheciaela e abriu a porta! Ela entrou e rendeu seu Anto-nio da portaria com um revólver! Seu Antonio dis-se que nem acreditava que era verdade e só acredi-tou quando ela falou que não iam atirar em nin-guém, mas que iam levar o dinheiro da empresa por-que o dono dela estava dando dinheiro para a polí-cia torturar os estudantes! Depois vieram os ami-gos dela todos com uma espingardona bem grandee entraram e um deles foi logo escrever na parede,“ALN , Comando Gelson Reicher!”. É bem assim onome porque o Claudemir da contabilidade que foium dos rapazes que pegou o panfleto me disse queos moços não eram terroristas não, terrorista era apolícia que tinha quebrado tudo no seu quarto, in-clusive sumido o dinheiro dele pagar a escola decontabilidade e tinha batido no seu Antonio queera uma pessoa muito boa!

Um raio de sol atravessou a mangueira e bateudireto no rosto dela. Ela caretou e mudou de lugar.Foi sentar numa pilha de tijolos junto do alpendreda casa. Sorriu ao lembrar-se de alguma coisa e con-tinuou:

Page 108: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

108

–– Um dos rapazes que estava com aespingardona disse que faziam aquilo para o bemde nós trabalhadores! E que só restara aquilo paraeles porque não era mais governo, era ditadura! Euestava com muito medo, não disse nada e tambémnão entendia nada da política, mas ví que ele falavaaquilo com a razão dele, eu senti isso!

9 de julho de 1972. O Jornal do Brasil descreveuassim o comportamento do ditador GarrastazúMédice no jogo Brasil e Portugal no cinquentenárioda independência: “Como os outros, ele chegou cedo.Nervoso, mudou o radinho de pilha de um ouvido paraoutro 13 vezes, fumou cinco cigarros. Falou pouco,sorriu quatro vezes e deu dois socos no ar. Mas nahora do gol ele pulou como todo mundo, os dois bra-ços levantados.(...) O Presidente dá o 1º soco no ar.Três minutos: o Presidente fuma o seu primeiro ci-garro deslocando o radio do ouvido esquerdo. Seteminutos: balança a cabeça desaprovando um passeerrado de Gérson. Oito minutos: troca o radio de ou-vido, passando do esquerdo para o direito. (...) Qua-renta e três minutos e meio, o Presidente pula. Osdois braços levantados. Era um torcedor simples, igualaos 99 mil que foram ao Maracanã. Mas, três minu-tos depois, representando o cargo no ato e o torcedorno abraço, entregou a Gérson a Taça Independência.E, feliz, foi um dos últimos a deixar o Maracanã. Aífoi sua vez de ser aplaudido”.

Page 109: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

109

16. O marinheiro Custódio

Custódio continuava falando, uma voz mansa,pausada, parecia saborear cada palavra.

–– Você tem razão! Falou José Manoel assen-tindo com a cabeça.

–– Sabe José Manoel, ainda vamos sofrer mui-to antes de conseguir mudar alguma coisa no nossopaís! Não há mais formas de participarmosdemocráticamente. Cortaram todas as possibilida-des. E vem mais truculencia por aí.

Há muitos anos que Geni não via aquele ami-go de Zezinho. Lembrava-se dele na farda de mari-nheiro e que duas ou três vezes fora na casa dela emMesquita, sempre com jornais e livros na mão. Che-gava sempre com um ar sério e chamava Zezinhopor José Manoel, assim bem pronunciado e sem es-conder o seu sotaque cearense. Tinha um rosto decriança e quando sorria, parecia mesmo uma crian-ça.

Custódio chegara no dia anterior, pela noite efora dormir muito tarde, pois ele e Zezinho passa-ram horas e horas conversando.

Era domingo e os três almoçavam sem as cri-anças que estavam na casa dos avós ali mesmo emToritama.

Só se ouvia o silêncio dos talheres.–– Estive no Ceará. Faz vinte dias que estive

lá. Disse Custódio olhando para Zezinho, entabu-

Page 110: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

110

lando uma conversa.Zezinho e Geni olharam para ele. Zezinho ba-

lançou a cabeça aguardando a continuação da his-tória.

–– E então?–– Fui ver minha irmã, mas nem a ví...–– E porque?–– Tudo seco pelo caminho e uma tristeza gran-

de. É muita miséria. Aquilo que nós já conhecemos:sol e poeira, mata seca, açudes vazios, gado morto,o povo nas estradas sem saber para onde ir e acoronelzada gastando dinheiro , mangando da gentee dizendo que vai para o Rio comer gente.

Arrastou a cadeira, afastando-se um pouco damesa e disse:

–– Continuamos como o grande depósito demão-de-obra do capitalismo. E agora, os que fo-ram para a Transamazônica estão voltando: os vi-vos com os fantasmas dos mortos. Dois tios e trêsprimos morreram lá. Minha tia disse que todo diamorria muito índio também. “Afinal, a terra é de-les, não é?”. Ela sempre falava assim, esperando mi-nha confirmação.

–– Sim, mas e sua irmã? Perguntou Zezinho.–– Pois é, não a ví... Respondeu, baixando a

cabeça, o rosto crispado. Parecia não querer falarno assunto que ele mesmo começara.

–– Veja como é a vida. Falou finalmente. Saí-mos todos de lá em cinquenta para o interior deSão Paulo, fugindo da seca. Aquela história que todo

Page 111: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

111

mundo sabe de caminhão de pau de arara. Minhairmã que já era casada naquela época, ficou. Meupai não aguentou muito tempo lá em São Paulo,voltou e ficou morando na casa da minha avó, amãe dele. Minha mãe não quis voltar e criou a gen-te sozinha. No mês passado quando consegui falarcom minha mãe, ela me avisou que minha irmã es-tava doente. Minha mãe recebera uma carta delapedindo ajuda. Consegui me organizar e fui lá a se-mana passada. De Fortaleza fui para SenadorPompeu. Dormi lá para pegar o trem que só saía atarde para Piquet Carneiro. Fiquei hospedado numapensãozinha simples, mas agradável. Pela manhãtomei café e saí para a rua. Fui abordado logo nasaída por um engraxate. Parece que ele fazia pontoali entre as poucas pensões da cidade.

Interrompeu a narrativa e olhou pensativo paralugar nenhum. Geni e José Manoel fitaram-nointerrogativos.

–– Este sapato não é daqui! Me disse de pron-to o engraxate. Quando eu disse que comprara emSão Paulo, ele ficou muito feliz porque naquelespoucos anos de engraxate sabia distinguir de ondeeram os sapatos que engraxava em Senador Pompeu.Depois continuou conversando e me disse que nãoera dalí, mas de Piquet Carneiro, e vinha todos osdias de trem para engraxar sapatos porque rendiamais. Aproveitei para perguntar se ele conhecia Se-bastião de Totonho Dantas.

Interrompeu novamente, baixou a cabeça e

Page 112: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

112

quando levantou estava chorando. Com a voz qua-se sumida, continuou:

–– Aí o engraxate me disse: Todo mundo co-nhece Tião de Totonho Dantas! É o maior bêbadode Piquet Carneiro. E a mulher dele morreu na se-mana passada! Diz o povo que os filhos dele estãomorrendo de fome.

As lágrimas agora escorriam pelo seu rosto,abundantes. Soluçou, retirou um lenço do bolso,enxugou-as e continuou:

–– Veja a situação, eu recostado na parede dapensão com um pé apoiado na caixa do engraxate,acabara de saber, de uma só vez, da morte da minhairmã, que o meu cunhado agora era um bêbado eque meus sobrinhos estavam passando fome.

José Manoel fez sinal para ele parar. Mas elecontinuou.

–– Fui neste mesmo dia buscar meus sobrinhose rezar na cova da minha irmã. Meu cunhado pediuuma chance. “Se eu me separar dos meus filhos,morro em pouco tempo!”. Ele me disse. Trouxe eletambém e até agora não bebeu mais e já está traba-lhando.

Agora estava mais calmo, enxugou novamenteo rosto e continuou:

–– Depois fui visitar o meu pai e a minha avóque moram num sítio próximo de Piquet Carneiro,num lugar chamado Algodões, talvez o lugar maisseco que existe no Ceará.

Agora falava com a voz mais clara e até apre-

Page 113: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

113

sentava um sorriso tímido.–– O motorista da Rural Willys que me levou

até lá, duvidou que ainda tinha gente morandonaquele lugar. Não existia nem porteira e nem cer-ca. Muito mal existia a estrada. A casa tinha viradouma tapera. Desci pouco antes da casa, próximo dojuazeiro e da casa de desmancha, onde brincava etrabalhava quando criança. O juazeiro era a únicacoisa verde naquele mundo.

Parou e olhou longamente para José Manoel edepois para Geni que estavam apreensivos.

–– Foi bom eu ter ido até lá! Fiquei recordan-do minhas traquinagens recriminadas pela minhaavó que não queria que matássemos os passarinhos.No dia que fomos embora, ela nos chamou e disse:“Vocês estão indo para o sul que é terra de genteeducada. Sejam educados também e sempre peçama benção dos mais velhos!”.

José Manoel concordou:–– É assim mesmo que todo mundo pensa, que

o sul é sempre melhor!Custódio que interrompera a narrativa parecia

agora mais alegre, recordando dos momentos e daemoção que sentira naquela visita ao sítio da suainfância. Continuou:

–– Nem um sinal de vida na casa. Depois demuito tempo ouvi o latido de cachorro. Um latidobem fraquinho que vinha por detrás da casa. Cami-nhei até lá . Interrompeu a narrativa e fitou JoséManoel e Geni, os olhos lacrimejantes e continuou:

Page 114: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

114

–– Minha tia me esperava na porta da casa.Ela estava muito velha. Era surda muda e nós cri-anças fazíamos muitas brincadeiras com ela. Ela nãome reconheceu, mas estendeu uma pequena tabule-ta pintada de preto onde estava escrito: Quem évocê? Custódio sorriu tímido, parecia envergonha-do e continuou:

–– Aí ela me estendeu um giz. Eu escrevi, Cus-tódio de Dedé Grande e ví que os olhos dela brilha-ram. Ela me reconheceu. Veio e me abraçou bemforte. Fez sinal para que eu entrasse. A sala despo-jada e com os mesmos móveis de mais de vinte anos.

Custódio baixou a cabeça. Chorava de novo.Mas fazia um esforço enorme para não chorar, masnão conseguia segurar as lágrimas. Enxugou o ros-to e olhou envergonhado para Geni e Zezinho.

Eles, calados, solidários, até que Geni falou:–– Chore, chore que chorar faz bem. Só estamos

nós aqui e somos amigos. Não se aperreie.Ele retomou a história:–– Meu pai estava sentado junto de uma jane-

la. Ficara cego. Minha tia foi até ele, que estendeuo braço para ela. Era tudo bem definido. Pareciaque há muito tempo era assim. Ela, com o dedo , otoque do dedo, escreveu alguma coisa no seu braço.Sem tinta sem nada, só com o tato! “Meu filhoCustódio!” Meu pai disse, emocionado. Levantou-se e com a voz quase sumida falou: “Venha cá meufilho para eu lhe dar um cheiro!” Eu não conseguiafalar nada, só chorava. Minha avó estava deitada

Page 115: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

115

numa rede puída, as varandas aos pedaços, numquarto junto à sala. Não andava, não falava e co-mia com dificuldade. Meu pai tateou até a porta doquarto onde estava minha avó e falou bem alto paraela: “É seu neto! É meu filho Custódio que é daMarinha!” Disse orgulhoso.

–– E eu nem era mais da Marinha...

15 de setembro de 1972. Um jornal paulista re-cebeu o seguinte comunicado do Ministério de Justi-ça: “De ordem do senhor Ministro da Justiça fica ex-pressamente proibida a publicação de: notícias, co-mentários, entrevistas de qualquer natureza sobreabertura política ou democratização, anistia aos cas-sados, situação econômico-financeira, problemasucessório”, ... etc. etc.

Page 116: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

116

Page 117: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

117

17. Um cachorro chamado Kimble

Anselmo, o Jonatas, agora era Daniel e vinhapara Toritama. Toritama fica no agreste, quase ser-tão de Pernambuco e era onde José Manoel, mili-tante da VPR morava. Vivia modestamente e fabri-cava chinelos de couro crú que vendia nas feiras dePernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. Ocor-re que Anselmo nem era mais Jonatas e muito me-nos Daniel, agora era Kimble e tinha virado cachor-ro. Aproveitava os problemas internos da VPR, umcaldeirão que fervia em discordâncias profundasde táticas e estratégias que rodava o mundo entreBrasil, Cuba, Chile, Argélia e a Europa. Alheio atudo, Anselmo fazia o seu novo trabalho. O seu sujotrabalho. Agora para a ditadura. Estava sob as or-dens do delegado Fleury do DOPS, onde dinheironão era problema, nem escrúpulos, nem nada. O ri-gor da clandestinidade o favorecia. Anselmo tinhaconsciência de tudo isso e sabia usar a seu favor.Juntava segredos, terríveis segredos que não teriadepois com quem partilhá-los.

Para José Manoel, o Cirilo, Anselmo não eraKimble, ainda era Jonatas e agora Daniel. A admi-ração e o respeito por Anselmo era sincero, afinalele fora o grande condutor da assembléia naquelemarço de 1964 lutando pelos direitos dos marinhei-ros e pelas reformas de base que iriam melhorar avida do povo brasileiro e levara para a reunião nin-

Page 118: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

118

guém menos que João Cândido, o líder da Revoltada Chibata, o homem que ousou dirigir uma revol-ta contra os poderosos e que pela primeira vez tira-va a máscara da república. Uma república fardada ecomandada por coronéis sem farda.Os marinheirosprovaram que a república não era a res-pública. OEstado tinha dono e seu dono não era o povo.

Mas Anselmo se fiava também em outras coi-sas. A herança moral da Associação dos Marinhei-ros, a bela herança construída pelo companheirismo,a solidariedade, o despojamento dos marinheiros.Kimble também se aproveitou disso e então foi atéa casa de José Manoel em Toritama, um pecadomortal na luta clandestina, onde o contato é nospontos e onde não se deve saber onde mora o com-panheiro, o que faz e o seu nome verdadeiro. E elefoi a Toritama porque agora seu mundo era o po-rão fétido da repressão, onde torturadores erampagos por banqueiros, industriais e fazendeiros epela rapina dos bens dos militantes capturados eonde não havia escrúpulos. Para ele era fácil atuar,pois entre militares na luta armada a confiança eratotal.

O pessoal do INCRA também estava emToritama, vigiando. Era a equipe do delegadoFleury, que usava um carro com o emblema doINCRA e que vigiava tudo desde algum tempo. Des-de o tempo que Anselmo virara cachorro com onome de Kimble.

José Manoel tinha disciplina. Era um militan-

Page 119: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

119

te fixado numa base e que desenvolvia um bom tra-balho político. Um trabalho lento, mas sólido. Eleestava conseguindo fincar uma trave naquele chãoduro de pedras de muita miséria para o povo, masde muita riqueza para os coronéis que ganharamfôlego servindo de capachos da ditadura. JoséManoel ultrapassara a fase do foquismo. Atuava naregião e procurava organizar uma escola de alfabe-tização e era da diretoria do time de futebol, oIpiranga Futebol Clube, onde ganhara a estima econsideração e procurava mostrar outras coisas alémdo futebol bem jogado pelo seu time.

Anselmo e sua companheira Soledad aparece-ram para o almoço e agora conversavam na varan-da. Era novembro. Final de novembro.

–– Ficou quanto tempo em Natal? EraAnselmo que falava agora.

–– Dois anos, se muito. Cheguei solteiro e saícasado, quer dizer meio casado porque foi casamentona igreja. No civil casei lá em Nova Iguaçu e aindanem era cabo!

Anselmo continuou:–– Tenho boas lembranças de Natal! Estive lá

no começo de 64 e visitei o pessoal da nossa associ-ação, fui apresentado ao prefeito Djalma Maranhãoque morreu agora no exíio em Montevidéu! Fize-mos uma reunião no Sindicato dos Bancários quefoi mais um discurso sobre as reformas de base! Ti-nha gente do Partido Comunista... o pessoal lá é defibra! Depois vim para o Recife e também fizemos

Page 120: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

120

uma boa reunião num sindicato de lá! Todo mundoestava confiante nas reformas do Jango!

Depois do almoço, Anselmo saiu com JoséManoel que queria ver algumas propriedades ruraiscom a intenção de comprar:

–– Uma fazendinha para engordar gado! Dis-se José Manoel para Geni.

Soledad chegou tensa, calada e bem diferentedo que se falava dela, mulher expansiva e sorriden-te. Não saiu com Anselmo e José Manoel, ficou epassou o dia fazendo bordados, calada, cismada.Parecia sofrer muito. De vez em quando levantavaos cabelos, os tirava da nuca e numa dessas vezesGeni viu uma mancha avermelhada, uma escamação,como se fosse uma cicatriz. Soledad percebeu queGeni olhava com certo espanto e disse sorrindo qua-se se desculpando:

–– Psoríasis! aumenta cuando estoy nerviosa!Geni sorriu e concordou com a cabeça, mas

não entendera nada. Percebeu sim uma enorme an-gústia naqueles olhos que pareciam pedir socorro.Foi das poucas vezes que Soledad falou. Econômicanas palavras, pedia por favor e dizia obrigado, sem-pre com um sorriso terno, mas era só. Geni nãoestava gostando daquilo. Sentira um clima pesadoe desagradável entre Soledad e Anselmo. Eles nãopareciam um casal feliz como Zezinho lhe falara.

Geni atribuia a mudez de Soledad à barreirada língua. Estava aperreada por entender pouco doque ela falava. Achava uma língua diferente, estra-

Page 121: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

121

nha. Era muito difícil para Geni tudo aquilo, logoela muito expansiva e prestativa. E assim Soledadpassou a tarde bordando blusas, muitas blusas, numrítmo frenético, cabeça baixa concentrada no bor-dado.

José Manoel chegou tarde da noite sem a com-panhia de Anselmo. Soledad já estava dormindo.Geni a acomodara no quarto de seu filho. Não hou-ve novidades na chegada de José Manoel. Soledadcontinuou dormindo. Talvez já tivessem combina-do tudo aquilo, mas Geni achou aquilo estranho.

–– Anselmo está aperreado. Soledad estágravida e eles não podem ter este filho agora. Preci-sa de alguém que faça o aborto! Você sabe de al-guém por aqui ou lá em Natal que faça o aborto?

–– Eu sou contra fazer aborto. Não é umacoisa certa! Sou católica e contra o aborto. Foi sóo que disse Geni. José Manoel ouviu e ficou calado.Não tocaram mais no assunto.

Na verdade, aquela visita de Anselmo, quebran-do todas as regras de segurança, tivera vários pro-pósitos: levantar a atuação da VPR na região, co-nhecer a extensão do trabalho de José Manoel econvencê-lo a ir ao Chile para creditá-lo junto àVPR e a Onofre, além de trazer dinheiro para aorganização e mostrar que ele Anselmo, não era umtraidor. Isso aplacaria as desconfianças de Soledadque àquela altura estava desesperada com apossilidade de Anselmo ser um agente da ditadura.Para Anselmo, ninguém melhor que José Manoel,

Page 122: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

122

um romântico, um poeta, um ex-marinheiro que forada direção da Associação dos Marinheiros, militan-te da VPR, ligado umbilicalmente a José Raimundoda Costa, figura respeitada pelos grupos de esquer-da, para avalizá-lo à direção da VPR no Chile. Fa-lar da sua atuação no Nordeste e mostrar que asdenúncias eram insinuações maldosas, provocadaspelo personalismo que invadia as organizações eque provocava a divisão dos revolucionários e aju-dava a ditadura. Enfim era tudo fruto da invejaentre os grupos da esquerda.

Militares são homens de ação. Os marinheirosentraram no movimento para agir e não pensandoem teorizar, mas no desenrolar da luta foram apren-dendo, foram estudando e foram percebendo quehavia a necessidade de um trabalho mais profundo,de raízes, de estrutura, afinal, não bastava fazer umaação espetacular para o povo ir atrás. O povo nãoestava indo atrás. E porque não ia? O que faltava?A teoria era importante sim. Isso eles foram apren-dendo com o desenrolar da luta armada.

Quando Anselmo saiu depois do almoço comJosé Manoel, despediu-se de Geni. Geni ficou comaquela sensação estranha, aquele nó na garganta,aquele mal estar sem saber o porque daquilo. Sen-tiu muito medo de Anselmo. Seu olhar e o beijoque ele deu na sua face ficou congelado na sua me-mória. A cada vez que lembrava ficava arrepiada demedo. Sentiu que era um beijo de traição.

Mais tarde quando se preparavam para dor-

Page 123: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

123

mir, Geni confessou suas dúvidas para Zezinho.José Manoel lhe respondeu um tanto ríspido:–– Mulher tire isso da sua cabeça que ele é um

cabra muito bom! Um grande companheiro de lon-ga data!

Soledad foi embora na manhã do dia seguinte.Ao sair, deixou uma bolsa com algumas roupas pró-prias para o frio. Eram roupas que pouco se usa-vam naquele clima quente do Recife.

1972. Na região do Araguaia a luta prosseguia.No Brasil, poucas pessoas sabem que há uma guer-rilha no Araguaia. Nas redações dos jornais e revis-tas e nas universidades circula um relato datilogra-fado que é reproduzido por cópia xerografada e pas-sado de pessoa a pessoa. No dia 29 de setembro, numencontro casual, cai a jovem guerrilheira Elenira.Elenira Resende de Souza Nazaré. Juntamente comoutro companheiro, ela fazia guarda num ponto altoda mata onde havia uma estrada, a fim de assegurara passagem sem surpresa do Destacamento ... Emsetembro de 1972, as Forças Armadas da ditaduravoltam para a segunda campanha. Empregarm efe-tivos de 8 a 10 mil homens sob o comando dos gene-rais Viana Moog e Antonio Bandeira.

Page 124: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 125: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

125

18. Primavera em Santiago

“Sim, é bem possível no próximo ano vamoster o festival de cinema aqui!” Na recepção do hoteldois homens conversavam em voz alta. Não haviacomo não escutar. E José Manoel que naquele mo-mento entregava as chaves do quarto na recepção,pensou que talvez no próximo ano ele poderia virnesse festival de cinema. Ele que sempre gostou decinema.

Deixaram o hotel e foram passear pela cidade.–– Vamos até alí, parece que é um lugar bom!

Geni falava inebriada com toda aquela beleza quenunca vira antes.

–– É para lá mesmo que vamos! RespondeuJosé Manoel sorrindo, compartilhando a felicidadede Geni.

Estavam em Gramado. Caminhavam por umarua como duas crianças descobrindo o mundo. Aolonge Geni viu a placa Café Colonial num localaprazível. Era novembro, quase dezembro de 1972e tudo para Geni parecia um sonho. Para ela, aqui-lo era mesmo um sonho. Um povo todo diferentedaquele que conhecia, de uma fala diferente, simpá-ticos e uma cidade toda florida, Hortênsias azuisnas estradas, praças e ruas. A serra, as plantaçõesde uva e maçã, o verde das pastagens, as árvores.Tudo tão diferente da secura de pedras de Toritama.Era mesmo um alumbramento.

Page 126: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

126

Adorou tudo no café colonial, os doces, os bo-los, o chocolate e lembrou dos filhos e o quantoeles gostariam daquele passeio.

–– Eu não imaginava que podia ter tanta coisabonita no Brasil! Falou, naquela felicidade sem ta-manho, quase nunca vivida até aquele dia.

–– Se correr tudo bem, a gente vem no anoque vem com as crianças! José Manoel também es-tava em estado de graça naquele lugar. Poucas ve-zes, durante toda a viagem, Geni o viu menos ten-so.

Para Geni, a viagem não fora planejada. Nodia que José Manoel chegou dizendo que finalmen-te fariam a viagem de núpcias, com um atraso dedez anos, ficou muito feliz.

–– Para onde? Perguntou curiosa.–– É segredo e ninguém pode saber! É nosso

presente pelos dez anos de casamento!Ela não estranhou, pois José Manoel era cheio

de segredos. Achou tudo normal.–– E as crianças, também vão?–– Não! Desta vez não vai dar. Vamos deixá-

las com mamãe! Afinal é nossa viagem de núpcias!Falou sorrindo.

–– É bom você levar aquelas roupas queSoledad deixou porque são roupas de frio e ondevamos pode fazer frio!

Geni vestiu uma saia longa quadriculada e umablusa azul clara de manga comprida. As roupas fi-caram bem nela. José Manoel aprovou.

Page 127: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

127

A viagem daquele casal de comerciantes brasi-leiros, seguiu pelos Andes. Agora estavam em San-tiago do Chile. Geni um tanto assustada, mas ado-rando a viagem. Chegaram pela manhã e JoséManoel buscou apressadamente um telefone e dis-cou 3-5818.

–– Alô! Atendeu uma voz cansada.–– Quiero hablar con el doutor Morais!–– É ele mesmo! É o Morais!–– É da parte do Maurício e quero falar com o

Ribeiro!–– Correto! Onde?–– Bem, é na praça ....–– Certo, certo! Preste atenção...existe um bar

no lado esquerdo. Vá para lá e peça um café e espe-re uns dez minutos e depois volte para a praça!

Aguardaram uns cinco minutos na praça, de-pois do café. Um automóvel parou bem junto deles,Havia um casal no veículo. Eles não desceram. De-ram uma chave, o endereço e saíram apressadamen-te.

José Manoel e Geni tomaram um táxi e foramaté o local indicado, um pequeno apartamento nocentro de Santiago.

No Chile, a burguesia e a alta cúpula militarsob a orientação da CIA preparava o golpe contra ogoverno democrático do presidente SalvadorAllende.

Geni estava no banho quando começou ouvirum barulho de latas batendo, de início tímido, mas

Page 128: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

128

que foi aumentando e ficando cada vez mais forte emais perto. Depois começou a ouvir também o somdas buzinas dos carros. Assustou-se e procurou ajanela para ver o que ocorria lá fora. Na rua, tudoparecia normal, na pracinha que avistava pela jane-la também, mas, nas varandas dos outros aparta-mentos pôde ver dezenas de pessoas batendo pane-las. Em muitas varandas, estavam lá as pessoas ba-tendo panelas. Estranhou tudo aquilo e saiu de pertoda janela. José Manoel pedira que não ficasse juntoda janela.

–– Estou cuidando do meu retorno para a Ma-rinha! Mas é segredo e ninguém deve saber! Pelamanhã, antes de sair, José Manoel conversoudemoradamente com ela. Mostrou-lhe tudo no apar-tamento e como deveria se portar. Ele só voltaria ànoite. Um papel pregado na parede da cozinha ori-entava sobre alguns procedimentos, coisas simplescomo por exemplo chá mate com leite condensado.Era tudo minuciosamente organizado.

José Manoel, além de creditar Anselmo juntoa Onofre Pinto e à VPR, anulando as notícias quechegavam denunciando Anselmo como traidor, de-veria ainda trazer dinheiro da organização para asações no nordeste. Militar como Anselmo e Onofree de confiança da organização, José Manoel era ami-go de Anselmo desde o tempo da Associação dosMarinheiros, onde ambos foram da diretoria. Eraamigo fraternal de José Raimundo da Costa, sar-gento da marinha, também da diretoria da Associa-

Page 129: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

129

ção dos Marinheiros e um militante respeitado pe-las organizações revolucionárias. Anselmo sabia queJosé Manoel era a pessoa certa para desfazer as no-tícias que o acusavam de agente da repressão sob ocomando do delegado Fleury do DOPS de São Pau-lo.

–– E então? Perguntou Onofre. Onofre eraum militar, respeitado por todos, homem sério, or-ganizado e que tinha a convicção que a luta deveriacontinuar de alguma forma.

–– Está tudo bem! Respondeu José Manoel.Anselmo esteve lá e disse que era preciso que euviesse. Dizem que estão queimando ele entre os com-panheiros. Ele se diz injustiçado! Afirma que é opessoal das outras organizações com suas desconfi-anças. Diz que não tem nada a temer. Esteve lá efomos até um sítio que poderá ser comprado. Elefoi ver o sítio e achou que é um bom negócio! Elefoi com Soledad...mas, parece que eles estão meiobrigados!

Interrompeu a fala e olhou para Onofre queouvia com atenção.

–– Anselmo acha que o problema maior é queentre nós militares há uma identificação que não háentre o pessoal oriundo do movimento estudantil eentre os intelectuais! Ele acha que nós, pela nossaorigem não tergiversamos e agimos quando é preci-so! Ele também acha que o pessoal teoriza muito eage pouco. Eu acho que é um problema que aindanão conseguimos superar: este negócio de revoluci-

Page 130: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

130

onários da pena e revolucionários do gatilho! Preci-samos superar isto, nós temos valorosos compa-nheiros saídos do movimento estudantil, do opera-riado, do campesinato e da intelectualidade. JoséRaimundo já havia superado isso. Eu também jásuperei!

Onofre o fitava pensativo sem expressar ne-nhuma reação. Há dois meses tivera um contatocom Diógenes de Arruda Câmara, um valoroso mi-litante do PCdoB que lhe dissera que vira Anselmono DOPS, não como prisioneiro, mas como cachor-ro do Delegado Fleury.

–– Eu não tenho motivos para duvidar deAnselmo, fosse ele militar ou não -- continuou JoséManoel -- nós somos amigos desde a Marinha, des-de sessenta. Minha presença aqui é mais para isso:desfazer um mal entendido e buscar recursos!

Onofre encarou o companheiro com certa an-gustia. Ele já não tinha tanta certeza se Anselmomentia ou não. E se fosse mais uma trama deAnselmo, das que vinham sendo comentadas? En-viar para o Chile, um valoroso companheiro se va-lendo da amizade pessoal, da extrema dedicação esolidariedade? Tentar encobrir sua traição, abjeta ecovarde expondo um companheiro? Seria possívelum ser humano assim? Depois refletia: não, não, étudo mesmo fruto da dissensão entre as esquerdase Anselmo é vítima. Como desconfiar de Anselmo,um homem que voltara de Cuba para a luta revolu-cionária e que tinha tido todas as oportunidades de

Page 131: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

131

viver tranquilamente na Europa. Não, Anselmo nãoé um traidor.

Onofre, visivelmente abatido disse:–– Está tudo muito confuso! Eu já não tenho

tanta convicção quanto a Anselmo. Agora é precisoter mais cuidado! Não estão claras as circunstânci-as da prisão e assassinato de José Raimundo e demuitos outros companheiros! Vocês todos podemestar em grande risco! Por outro lado devemos pri-meiro ter evidências, pois ninguém pode acusar as-sim sem provas! Há muita contra-informação e aditadura fomenta e se aproveita disso!

José Manoel sentiu faltar o chão. Erainacreditável tudo aquilo. Não era bom expressarreações sobre dúvidas, mas ele quase desabou comaquela suspeita por parte de Onofre. Aquilo eracomo uma lâmina entrando em seu peito devagari-nho. E lembrar agora que fora ele quem dera oponto para Anselmo com José Raimundo. E aí lem-brou-se das desconfianças de Geni após a visita deAnselmo em Toritama.

Na verdade, Anselmo estava ganhando tempo.Ele esperava reunir uma grande parte dos compa-nheiros da VPR alí em Pernambuco para entregá-los ao sadismo da equipe do delegado Fleury, nummomento em que a ordem era matar.

Onofre orientou José Manoel a fazer outro ca-minho na viagem de volta. Deveria tentar um pon-to na Argentina para esclarecer algumas dúvidascom relação à atuação de Anselmo.

Page 132: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

132

Quando voltavam do Chile de avião, Geni pre-ocupada, mas feliz pela viagem olhava os picos ne-vados das montanhas. Zezinho lhe falava:

–– Veja é a cordilheira dos Andes que a gentesó tinha visto no mapa! Na verdade José Manoeldisfarçava seu nervosismo. Estava apavorado. Olhavaa todo momento para as pessoas dentro do avião.Achava que estavam sendo seguidos.

Aterrisaram em Buenos Aires e foram para umhotel bem afastado da cidade. Ele tentaria um con-tato com um companheiro da VPR. Geni achou tudoaquilo muito estranho. José Manoel saiu e ela ficouno saguão do hotel e viu quando alguns militares sedirigiram à recepção e conversaram demoradamentecom o funcionário. Quando José Manoel voltou elafalou sobre o episódio dos militares alí no hotel.Imediatamente, José Manoel foi até o quarto, apa-nhou as malas, pagou a conta e foram embora.Ocompanheiro do ponto já havia caído. Era a opera-ção Condor em andamento.

De volta a Toritama, assim que entrou em casa,Geni viu José Manoel ir até a cozinha e anotar al-guma coisa debaixo da mesa da cozinha. Viu, masnão perguntou nada e ele também não falou nada.

1964. Os Estados Unidos investiram US$20 mi-lhões na eleição do democrata-cristão Eduardo Freino Chile, para barrar Salvador Allende. Deu certo,mas o governo de Frei foi um desastre. Em 1970 os

Page 133: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

133

Estados Unidos investiram no conservador JorgeAlessandri do Partido Nacional. Não deu certo e Sal-vador Allende foi eleito presidente do Chile. O pri-meiro presidente socialista eleito pelo voto livre. AUnidade Popular iniciou a construção do socialismocom o fim dos monopólios, a nacionalização de em-presas, a reforma agrária e melhorias na saúde, edu-cação, habitação, política de empregos e melhoriados salários. Em 1971, a Unidade Popular aumentousua votação nas eleições municipais. Tudo ia bem paraos trabalhadores e os pobres no Chile, mas a classemédia estava incomodada, não que faltasse comidana sua mesa, mas como ela almejava um dia ser daburguesia, achou que Allende barrava-lhes o acesso.Ele é socialista demais, dizia. Aí, juntou-se, os gran-des capitalistas do mundo, os donos das grandesmídias, a CIA e etc, sob o comando do presidenteNixon e do secretário de Estado americado HenryKissinger e sangraram o governo de Salvador Allende.Recorreram aos militares nativos. Eles tinham largaexperiência no trato com os militares latino-ameri-canos. Deu-se o golpe e o assassinato de SalvadorAllende, eleito pelo voto livre do povo chileno. A classemédia chilena comemorou. Tinham chances nova-mente de ascender à burguesia. Parece um esquema,não é? Era. O esquema norte-americano para asAméricas.

Page 134: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 135: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

135

19. Um sequestro em Toritama

–– Mas, e o jogo? Perguntou Rodrigues umtanto preocupado. Ele e José Manoel eram os res-ponsáveis pelo Ipiranga Futebol Clube, e iam jogarem Pão de Açúcar naquela tarde de domingo.

–– Vocês cuidam aí! Respondeu José Manoel,completando:

–– Apareceu assim de repente esse pedido, ali-ás, um bom pedido! Eu tenho que ir agora paraRecife deixar a mercadoria! Se não for agora percoo freguês! E saiu acelerando o carro, apressado. Nocarro além de alguns pares de calçados, José Manoellevava o dinheiro da VPR para ser entregue aAnselmo com quem ia manter o contato, cobrir oponto. Estava desarmado, aliás, José Manoel nun-ca portava arma. Recebera o comunicado pela ma-nhã daquele domingo, foi até à mesa da cozinha echecou a senha. Era a hora. Anselmo o aguardavaem Recife. Sentiu um alívio grande com aquela no-tícia, porque não tivera sossêgo desde que viera doChile em razão das desconfianças sobre Anselmo.Aquilo tudo era demais para ele que sonhava comuma vida de dignidade para os filhos. E sempre queimaginava aquela situação entrava em desespero:

–– Meu Deus! Anselmo traidor! Não! É difícilacreditar nisso. Deve haver engano! Agora estavafeliz por confirmar que Anselmo não era traidor.

Apesar de toda aquela situação de desconfian-

Page 136: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

136

ça que agora pairava sobre Anselmo, não havia meios–– dado a clandestinidade –– e nem era correto acu-sar companheiros de luta sem evidências concretas.Elas não existiam até aquele momento.

–– Viche! Que pressa é essa? Era João Messi-as, um dos jogadores do Ipiranga que chegava na-quela hora e viu José Manoel sair a toda velocidadee dobrar a esquina perigosamente.

Passou na casa da mãe e beliscou as panelas. Amãe pediu:

–– Fique meu filho, almoce aqui!–– Não, agora eu não posso, tenho de viajar!

Deu um beijo na sua mãe e saiu.Parou na bomba de Pedrinho, que era o posto

de gasolina de Toritama e pediu para João, o em-pregado do posto e cunhado do Pedrinho que veri-ficasse o óleo de freio.

Naquele local tinha a bomba de gasolina e aofundo um pequeno prédio de duas portas onde fun-cionava um bar. José Manoel entrou no bar cumpri-mentando os homens que estavam sentados próxi-mos da entrada. Um deles era João Joaquim.

João Joaquim viu quando uma Variant pretade placas brancas do Recife com o emblema doINCRA estacionou logo depois ao lado do carro deJosé Manoel e dele desceram três homens que sedirigiram ao bar. Ele já tinha visto aquele carrocirculando por ali. Numa cidade pequena, qualquerpessoa ou carro diferente chama a atenção. E aindamais com o emblema do INCRA e placa de Recife.

Page 137: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

137

Faziam duas semanas que aquele povo era visto alíem Toritama. Aguardavam as ordens de Anselmo edo delegado Fleury.

João Joaquim viu que um dos homens estavadesenrolando uma corda fina e passaram por elescom a cara fechada e entraram no bar sem nemcumprimentá-los. Um dos homens permaneceu fora,alí por perto. João Joaquim ouviu uma alteraçãode voz dentro do bar e levantou-se para olhar, foiquando o homem que estava fora encostou umaarma em suas costas e lhe disse:

–– Entre e aguarde a segunda ordem!João Joaquim virou-se para o amigo com quem

estava conversando e disse:–– É! Vamos entrar, não é, Nivaldo? O homem

está pedindo para a gente entrar!Quando estavam entrando no bar, os dois ho-

mens já vinham saindo com José Manoel com osbraços amarrados.

João Joaquim ainda ouviu quando José Manoelpediu:

–– João, guarde aí a chave do meu carro!Ao que um dos homens, de pronto, avançou

sobre João gritando:–– Me dê aqui a chave do carro! E tomou a

chave da mão de João, que se preparava para verifi-car o óleo do carro.

Depois, colocaram José Manoel no carro doINCRA e um dos homens foi sentado junto dele nobanco de trás. Um outro homem pegou o carro de

Page 138: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

138

José Manoel e seguiu o veículo dos sequestradores.Geni voltava da bodega onde fora comprar alho,

quando foi abordada por um rapazinho que vinhanuma desabalada carreira de bicicleta e lhe disse daprisão de José Manoel pelos homens do INCRA.

De início, um grande choque. Não pensou emnada, não fazia idéia do que poderia ser o motivoda prisão de Zezinho. Só podia ser um engano. Deimediato foi até a casa dos sogros que estavam de-sesperados e sem saber o que fazer e o porquê da-quela prisão.

Por fim, uma e outra pessoa chegando e co-mentando o fato, concluíram que a prisão de JoséManoel fora em razão da sua fabriqueta de calça-dos. Falta de nota fiscal e do pagamento de impos-tos. Alguém deve ter denunciado.

Quando chegaram nessa conclusão, Geni de-sesperada pensou no pai em Natal. Ele resolveria oproblema. Ele poderia emprestar o dinheiro, elapagaria os impostos e depois registraria a firma deZezinho; mandaria fazer a nota fiscal e tudo ficavabem de novo.

Um tio de José Manoel a trouxe até Natal.Quando viu o pai, sentiu-se mais segura. O pai sem-pre terno, sempre amigo e acolhedor, disse-lhe:

–– Veja lá, minha filha, quanto é que Zezinhotem de pagar de multa ou imposto que a gente vaiprocurar pagar isso daí para ele ser solto logo! Oque tem que fazer agora é procurar saber qual é aacusação!

Page 139: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

139

Até então, Geni só pensava que o fato deZezinho vender tudo sem nota fiscal era o motivoda sua prisão. Era uma fabriqueta de fundo de quin-tal. Ele fazia tudo quase sozinho e vendia nas fei-ras. Eram sandálias e chinelas simples de couro bru-to. Baratos. Muito baratos que só os sertanejos com-pravam. Não dava mesmo para pagar impostos.

Voltou no mesmo dia para Toritama mais ali-viada, planejando falar com um advogado e ir logona Receita resolver tudo aquilo. Ao chegar em casa,tarde da noite, outro susto enorme: sua casa estavatoda revirada, móveis quebrados, os sofás e os col-chões rasgados. Saiu dalí desesperada e foi para acasa de seus sogros que estavam mais apavoradosque antes e então, quase não suportou mais e des-maiou. Acordou com todos à sua volta, ainda de-sesperados. Os sogros, os cunhados, os filhos, vizi-nhos, todos numa comoção. Ninguém conseguiudormir naquela noite.

Mais tarde, sua cunhada lhe contou os fatosque se seguiram à prisão de José Manoel. Bem àtardinha, alguns homens no mesmo carro do INCRAvieram e arrombaram a casa de José Manoel e revi-raram tudo. Saíram um tanto desapontados e comraiva, muita raiva, pois pareciam não ter encontra-do o que queriam, ou esperavam encontrar. Depois,foram até a casa do pai de José Manoel e prende-ram sua irmã. Maria Luíza estava apavorada semsaber o porquê de tudo aquilo.

O homem, que parecia ser o chefe do grupo,

Page 140: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

140

foi gritando assim que desceu do carro, lá do meioda rua:

–– Se não encontrarmos o que buscamos, va-mos levar você para Recife! Lá você vai se lembrarmelhor das coisas! E passaram a aterrorizá-la paraque dissesse onde estava o material subversivo. Bus-cavam algo que incriminasse José Manoel, armas,panfletos, qualquer coisa. Por fim, depois de revi-rar tudo por ali, encontraram na garagem da casaum mimeógrafo à álcool, enferrujado e faltandopeças e saíram desapontados carregando omimeógrafo. Na verdade, buscavam mais que obje-tos que incriminassem José Manoel, buscavam o di-nheiro da VPR, o tão falado dinheiro do cofre doAdemar de Barros.

1972. Ápice do Milagre Brasileiro. Os pobres fi-caram mais pobres e os ricos mais ricos. Nos campos:soja, trigo, cana-de-açúcar e depois cana-de-álcoolcombustível; e mais, tratores, inseticidas e pesticidas.Nas cidades, cinturões de miséria. Os agricultores ex-pulsos da terra pela cana, soja, inseticidas e tratores,viraram pipoqueiros, serventes de pedreiro e boias-frias, enfim um bom exército de reserva. Era a mo-dernização do Brasil. Nas propagandas da ditadura:“Brasil, ame-o ou deixe-o!”.

Page 141: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

141

20. Sequestros no Recife

Naquela segunda-feira 8 de janeiro de 1973,Pauline e Eudaldo saíram de casa bem cedo e forampara o apartamento de Anselmo e Soledad. Eudaldoficou lá com Anselmo, e Pauline foi com Soledadpara a praia de Boa Viagem. Soledad fornecia rou-pas bordadas para uma boutique que ficava na Ave-nida Conselheiro Aguiar,1934. Era uma segunda-fei-ra cheia de sol no Recife.

Soledad levava uma sacola com as blusas queela caprichosamente bordava e agora, pouco maisde nove horas, negociava com Sonja, a dona daboutique.

Conversavam animadamente quando dois veí-culos em grande velocidade, um fusca da polícia euma perua Variant preta de placas brancas 7831 como emblema do INCRA, frearam subitamente na fren-te da loja, arrastando os pneus, fazendo grande alar-de e fechando toda a frente da loja, impedindo acirculação de veículos e pessoas no local. Dos veícu-los saltaram cinco homens, todos com armas empunho, e um deles, forte, de camiseta e com umcolar de continhas, esferiu uma violenta coronhadana cabeça de Pauline que deu um grito forte, assimcomo um urro, e estatelou-se no chão da loja como rosto exprimindo uma dor lancinante. O grito dePauline chamou a atenção das pessoas que passa-vam próximas dalí. As pessoas acorreram assusta-

Page 142: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

142

das para a loja tentando se aproximar.Postado na calçada da loja, um dos homens,

acintosamente exibindo uma arma pesada, gritava:–– Circulando! Circulando! Somos da polícia e

estamos prendendo umas contrabandistas!Soledad, acuada na parede por dois homens

que tentavam algemá-la, gritava desesperada:–– Por quê? Por quê?A dona da boutique, em estado de completa

histeria e gritando muito, foi ouvida nos fundos dacasa por seu marido que veio em socorro. Tambémmuito assustado com tudo aquilo, foi abordado porum dos homens que colocou um revólver na suacabeça e gritou:

–– Faça sua mulher calar a boca ou vamos levá-la também!

O homem, tomado de pavor pela cena insólita,ainda perguntou:

–– Mas quem são vocês e o que querem?–– Somos da polícia e sem perguntas que é me-

lhor para você! Só queremos as duas mocinhas aqui!Nessa altura, um dos homens falava num rádio

de comunicação do fusca:–– Ok!, Ok! Tudo certo! Tudo limpo!Arrastaram Soledad amordaçada e amarrada

para dentro do fusca e jogaram Pauline no chão dooutro carro, onde dois homens entraram e pisaramno corpo dela com maldade. Pauline somente arfa-va e o olhar era de terror. Assim como Soledad,também estava amarrada com as mãos para trás e

Page 143: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

143

amordaçada. Saíram em grande velocidade, assimcomo chegaram. Agora, escandalosamente, sirenaligada, buzina impaciente contra aqueles que dirigi-am devagar e ousavam não lhes dar passagem. As-sim que os ultrapassavam, xingavam, ofendiam,ameaçavam. Um carro da polícia podia tudo. E ospoliciais estavam acima das leis.Tempos de ditadu-ra fardada e coronéis sem farda.

Quando Tércia abriu a janela do quarto e aclaridade do sol e os sons da segunda-feira no Reci-fe invadiram tudo, Jarbas, ainda sonolento pela noitemal dormida, sentou-se na cama e olhou a mulherdemoradamente e teve a certeza que Tércia, tão frágile tão terna, não poderia acompanhá-lo naquelaaventura. Não era justo. Ela, junto ao berço, acari-ciava sua filhinha que reclamava a mamadeira. Acriança ainda não completara o primeiro ano devida.

Jarbas baixou a cabeça e pensou mais uma vezque deveria fugir do Recife naquela manhã, naque-la hora. Dormira pouco e mal. Adormecera pelamadrugada, depois que o cansaço o dominou. Pas-sou o tempo todo assustado com os sons da noite,percrustando tudo, levantando seguidamente, indoaté a porta da sala, encostando o ouvido na pare-de, uma agonia sem fim. Estava verdadeiramenteangustiado. Naquela semana, na quinta-feira, maisuma desconfiança levantada sobre a atuação deAnselmo. Partia de uma pessoa acima de qualquersuspeita, porque era da VPR, do mesmo grupo do

Page 144: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

144

Recife, ligado a Onofre, vindo do Chile recentemen-te e amigo de Anselmo desde a Associação dos Ma-rinheiros. Não era uma acusação definitiva, mas umalerta que veio se juntar aos outros alertas queJarbas recebera de companheiros de outras organi-zações, muitos deles já fora da luta armada, mascom honradez suficiente para alertar um amigo so-bre os perigos que corria.

Dias antes, Jarbas, que trabalhava na LivrariaModerna, na Rua Ubaldo Gomes de Matos, 115,procurara a advogada Mércia Albuquerque, sua ami-ga, que ao vê-lo, perguntou, como sempre fazia:

–– E então, Jarbas, algum livro novo e inte-ressante na Moderna?

Jarbas sorriu, balançou a cabeça negativamen-te e falou baixinho:

–– Preciso conversar com você!A advogada Mércia Albuquerque sabia o que

significava aquele “eu preciso conversar com você”,dito daquela maneira quase gutural. Experiente, pre-sa várias vezes sem acusação formal, sequestradapela ditadura, ameaçada de morte em razão de sualuta na defesa dos presos políticos, entre elesGregório Bezerra, leu a angústia nos olhos de Jarbas.

–– E então?–– Estou apavorado, três companheiros, com

quem eu tive ponto foram presos! Eu não sou trai-dor, mas alguém está querendo me jogar uma pechade traidor. E eu só tenho dois contatos de quem eudesconfio: Anselmo e César, um dos dois é traidor!

Page 145: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

145

–– Ou os dois! Respondeu Mércia.Naquela mesma noite, Jarbas voltou ao apar-

tamento de Mércia e angustiado lhe disse:–– São muitas as evidências e agora me veio

mais uma, Anselmo deve ser a pessoa infiltrada! Avoz quase não saía. Os olhos choravam sem chorar.

A advogada Mércia Albuquerque entendia tudoaquilo também. Sabia da decepção dos militantesquando descobriam uma traição. Sabia da dor quesentiam, daquela dor que não passava nunca e queficava enroscada em algum lugar do pensamento. Esem mais, nem menos, vinha à tona e doía. Sabiada sensação de impotência que invadia o militante,tomado de chofre com as traições. Ela sabia o quan-to tudo aquilo era devastador.

–– Tome uma água e vamos conversar! Vocêtrouxe o que lhe pedi?

–– Sim! Está tudo aqui! E passou para Mérciaum envelope com os seus documentos pessoais. De-pois, tirou uma fotografia que trazia no bolso e en-tregou para ela.

–– É Anselmo... Cabo Anselmo! Ele usa os no-mes de Daniel, Jadiel e Américo Balduíno. É o com-panheiro daquela moça paraguaia, Soledad!

Depois continuou:–– A notícia é que a equipe do delegado Fleury

está aqui em Pernambuco e teve um pau danadona cúpula da polícia daqui, porque o pessoal nãoaceita que venha gente de fora atuar aqui. Dizemque o Fleury tem carta branca dos generais para

Page 146: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

146

agir onde quiser e da forma que quiser. O Centro deInformações da Marinha também está na área. OCentro de Informações do Exército também atuaaqui. É todo mundo querendo chegar primeiro, masparece que o Anselmo trabalha mesmo para o Fleury,que também está atrás dessa história do cofre doAdemar. O que o pessoal daqui reclama é que,assim como os de São Paulo e Rio, eles tambémforam treinados nos cursos da USAID americana etem a mesma competência!

–– É melhor que você dê o fora, Jarbas! Vocêestá correndo risco ficando aqui no Recife! Veja bemo resumo disso que você falou. O primeiro que pe-gar um de vocês, não vai deixar para outro não. Hámuito que não há mais auto de prisão.

–– Eu não posso! E Tércia e minha filhinha?E, depois, nós não fizemos nada! Não há nenhumaacusação contra nós!

–– Não se fie nisso, Jarbas! Eles, agora, estãona fase de matar primeiro para depois perguntar! Émais seguro que você saia de Recife! Eu cuido dasua filhinha!

–– Não, não posso! E também nada devo... enão há mesmo acusação contra mim!

Jarbas saiu, e Mércia ficou naquela angústia.Há muito percebera que a ordem da ditadura eramatar. Já tinham informações sucificientes sobretoda a luta armada e sabia que pouco restava dela.Agora era extirpar, matando.

E Jarbas, mesmo com toda a angústia e as in-

Page 147: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

147

certezas que carregava, não fugiu. Foi para o seutrabalho na Livraria Moderna naquela segunda-fei-ra, 8 de janeiro de 1973. À tarde, recebeu a visita deAnselmo e César que queriam falar com ele fora dalivraria. Aquilo não era comum, era excepcional.Nunca se chegava assim, havia códigos, havia re-gras. Mas afinal era uma emergência e ele conheciaos dois, apesar da suspeita sobre Anselmo. Não ca-minharam muito. A Variant preta do INCRA esta-va numa rua lateral. Quando dobraram a esquina ese aproximaram do carro, Jarbas levou uma panca-da na cabeça que o deixou desacordado. Foi atira-do no banco traseiro do carro que saiu acelerando.Se alguém viu a cena, fez que não viu. Era muitoperigoso ver naquele Recife dos setenta.

11 de janeiro de 1973. Diário de Pernambuco,quinta-feira. “Equipes especiais dos Órgãos de Segu-rança cercaram no dia 8 de janeiro do corrente ano,o aparelho ... numa chácara dentro do LoteamentoSão Bento ... que vinha sendo utilizada como centrode treinamento e de guerrilhas. Nesse local foi dadaa ordem de prisão aos terroristas que... reagiram abala ...”

Page 148: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 149: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

149

21. É como se mata cachorro

Quando os policiais do DOI/CODI, comanda-dos por Fleury, chegaram na Chácara São Bentocom José Manoel, ele já estava meio morto. Duran-te todo o trajeto, de Toritama até ali, foi pisado,asfixiado e esmurrado. A tortura a que o submete-ram quase não lhe deixou forças. E não havia maisnada para saber, pois Anselmo tinha o controle detudo, graças à confiança que do Chile, Onofre, ocomandante da VPR lhe depositava. Mas, era mui-to importante saber se havia alguma carta na man-ga de José Manoel, como dizia o delegado Fleury.Anselmo tinha certeza que não havia e, mesmo as-sim não interveio.

Onofre, ainda com aquele pensamento de re-volucionários da farda e revolucionários da pena,fizera chegar até José Manoel a contra senha para oencontro com Anselmo. Era tudo que José Manoelmais queria e finalmente respirou aliviado. Enfim,Anselmo é dos nossos e tudo não passava mesmo decontra-informação da ditadura ou desentendimen-tos da esquerda.

E naquele domingo, 7 de janeiro de 1973, saiude Toritama para ir ao Recife e agora, encontrava-se jogado alí, pés e mãos amarrados, arfando e sa-bendo que ia morrer. Um ferimento junto ao olhosangrava e atraía um sem número de mosquinhasverdes, importunando-o. Formigas às centenas, mi-

Page 150: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

150

lhares, de todos os tamanhos e cores. Ao redor dacasa, a mata havia sido derrubada. Mal derrubada.A vegetação, roçada a meia altura há poucos dias,encolhia-se e o cheiro de folhas, cozidas ao sol, do-minava os outros cheiros do lugar. Estranhou tudoaquilo. Os sons que chegavam eram poucos: um bem-te-ví e sanhaçús-de-coqueiro cantavam por alí. Umveículo passou um pouco longe. Uma buzina insis-tente, mais longe ainda. Olhou em volta e viu quehaviam cortado uma imbaúba alta que ficava juntoda casa. Só não haviam cortado as macaíbas e ou-tras palmeiras que ele não sabia o nome. Olhou maisuma vez e estava tudo na altura das samambaias eartemísias.E afinal quem mandara roçar e por quê?Aquilo não fora combinado.

Olhava com pavor para os homens que conver-savam com Fleury na porta da casa. César eAnselmo, outrora companheiros de sonhos, de uto-pias. Um olhar de pavor ao pensar o que poderiaacontecer com os outros companheiros, com suafamília, sua companheira sempre tão amiga e fiel ecom os filhos pequenos, indefesos.

César se aproximou de José Manoel que estavacaído há poucos metros da casinha de chão batido,jogado que fora por cima de uns arbustos pontia-gudos e espinhentos. José Manoel olhou mais umavez para aquele companheiro sempre sorridente ebrincalhão, sempre pronto para agir qual fosse oproblema e não podia acreditar que tudo aquilo eraverdade. Então, Anselmo e César eram os traido-

Page 151: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

151

res. Geni tinha razão. Só ele não acreditara. E atéOnofre ficara com uma ponta de desconfiança so-bre as atitudes de Anselmo. Só ele nunca descon-fiou de nada.

Sem falar muito alto, Fleury determinou:–– É melhor acabar logo com isso!Um policial bem jovem, com um cavanhaque

cerrado e bem negro, jogou o cigarro que havia aca-bado de acender e pisou uma, duas vezes e olhou seestava apagado. Depois, aproximou-se de JoséManoel apontando a arma. José Manoel consegui-ra deslocar o corpo, de forma a tirar o braço decima de uma ponta do arbusto roçado que lhe pro-vocara mais um ferimento. Estirado alí, com as mãose os pés amarrados não tinha mais forças nem paramexer o rosto. Foi a expressão que ficou, de pavor.O policial titubeou e voltou-se, olhando para o ou-tro lado. Isso não passou despercebido por Césarque aproximou-se mais, apontou sua arma para JoséManoel e disse:

–– Olha, é assim! É como se mata cachorro! Esorriu. Sem arrependimentos. E lembrou-se delemenino e o tio que lhe colocara a arma na mãopara atirar no cachorro que adoecera e seria sacrifi-cado. O animal, imobilizado e olhando para ele comcomiseração e o tio ordenando: “Atire! Atire! Sejahomem! Atire!” E ele criança, a arma pesando namão, o animal que lhe fora fiel durante muito tem-po agora com aquele olhar compadecido, inerme.

–– Não seja frouxo! Atire! Veio mais uma vez

Page 152: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

152

a ordem. Aí foi um, dois, três,... seis tiros, um emcada lugar para ficar bem morto. Aí, César fitou opolicial que tremia, virou-se e deu mais um tiro.Sete ao todo, foi o que os peritos do IML dePernambuco relataram no laudo do cadáver de JoséManoel.

Quando, no dia seguinte pela manhã, os polici-ais do grupo do Fleury trouxeram os outros mili-tantes da VPR, José Manoel já estava morto e mi-lhares de moscas, atraídas pelo sangue nas roupas,no chão e nos arbustos, sobrevoavam frenéticas.

–– Sem perder tempo! Disse Fleury!Os policiais, dois a dois apanharam os homens

e mulheres nos veículos, já amarrados e amordaça-dos, e entraram na chácara. Um policial se encarre-gou de afastar algumas pessoas da vizinhança, que,ante aquele movimento incomum, buscavam sabero que acontecia no pacato Loteamento São Bento.Entraram arrastando Soledad, Pauline, Eudaldo eJarbas sobre o cadáver de José Manoel e da foguei-ra que ainda fumegava e que ao ser mexida soltoufagulhas e quis reavivar. Subiu uma fumaça escurae um cheiro desagradável de borracha queimada seespalhou.

Eudaldo foi deixado na sala da pequena casi-nha de chão de barro, na janela, onde também co-locaram Jarbas. Soledad foi levada para o quarto ePauline foi atirada na cozinha, junto à porta.

Depois, saíram todos. Eram doze policiais.César, adiantou-se, olhou para o jovem policial

Page 153: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

153

do cavanhaque preto e falou:–– Como eu disse, é como se mata cachorrro!Entraram quatro policiais no casebre e foram

24 tiros, cabeça e tronco. Depois de alguns minu-tos, desamarraram os cadáveres e recolheram ascordas manchadas de sangue.

–– As armas! Gritou Fleury.Um policial apanhou as armas numa sacola.

Outro policial veio ao seu auxílio e entraram nacasa com elas. Depois saíram.

Fleury entrou, olhando a distribuição das ar-mas.

–– Porra, que merda! Foi o que ouviram Fleurygritar pouco depois. Os policiais, na pressa, ou soba emoção da cena macabra que participavam, havi-am colocado a espingarda de pé, apoiada na parededo quarto, o que irritara o delegado que a colocouentre as pernas de Soledad.

Fleury era detalhista e conferiu toda a cena,cadáver a cadáver, arma a arma. Segundo o laudodos peritos, os integrantes da VPR também dispa-raram 18 tiros, mas não atingiram nenhum policial.

Antonio era o responsável pelo arquivamentodos dossiês no Instituto de Polícia Técnica dePernambuco e por zelo ou curiosidade, sempre quearquivava os documentos, dava uma olhadarápida.Com os da Chácara São Bento, município dePaulista, não foi diferente. Mas, o fato de ter ouvi-do um comentário sobre aquela ocorrência, aguçousua curiosidade e, depois que leu, passou aquele dia

Page 154: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

154

e o seguinte com a história na cabeça e foi comen-tar com o seu colega de repartição sobre o que ha-via lido.

–– Primeiro, você não é pago para ler, é pagopara arquivar! Disse João, seu colega de repartição,experiente e já perto da aposentadoria. Segundo éque você não procure lógica em nada disso que vocêarquiva. Arquive e pronto, que você chega onde euestou chegando, a aposentadoria.

O que perturbava Antonio era o teor do laudodos peritos Mauro Pamplona Monteiro e AscendinoJosé da Silva Cavalcanti, que concluíram que houvealí um enfrentamento, uma troca de tiros. mesmoconstatando que José Manoel levara 7 tiros no tó-rax, Eudaldo, seis tiros, quatro na cabeça e dois notronco; Jarbas, 4 tiros, dois na cabeça e dois notronco; Soledad, 6 tiros, quatro na cabeça e doisno pescoço e Pauline, oito tiros, quatro na cabeçae quatro no tronco e que os policiais não foramalvejados por nenhum dos 18 tiros disparados pelosguerrilheiros e que nenhum tiro acertou a parededa casa onde estavam escondidos.

No dia 11 de janeiro, quando os jornais foramautorizados a noticiar o fato com o material quefoi distribuído, texto e fotos, Antonio caiu em sí econcordou com seu colega que, calado, ele chegariaà aposentadoria. Os jornais divulgaram as fotos dosmortos com uma breve biografia de cada um e umtexto descrevendo o embate.

Angustiado com o clima de normalidade que

Page 155: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

155

via na repartição, apesar de todo aquele absurdo,Antonio só teve um alento quando leu no final damatéria do Jornal do Commercio o seguinte regis-tro: “Estas informações foram fornecidas pelas au-toridades responsáveis pelos órgãos de Segurança”.

Aí, concluiu: Bem, eu não estou maluco!

8 de janeiro de 1973. Quatro homens armadosde metralhadoras, num veículo de placas de Afoga-dos da Ingazeira IK 3157 e que não se identificaram,invadiram a casa de João Francisco da Silva e o pren-deram. João Francisco era membro do Movimento deEvangelização da Arquidiocese de Olinda e Recife.

Page 156: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

156

Page 157: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

157

22. Um dia de muita chuva no Recife

Geni desceu do ônibus nas imediações doCemitério da Várzea, bem mais segura que da outravez. Agora já sabia o caminho. Olhou o céu compreocupação. Pelos lados do mar, começavam a seformar umas torres altas e escuras. Nuvens de chuva,de muita chuva, pensou.

Estava novamente no Cemitério da Várzea. Jásabia o itinerário dos ônibus e travara amizade coma mulher de uma barraquinha que vendia lanches,velas, coroas de flores de lata e quase de um tudo. Amulher era bem clara, forte e de cabelos amarelomanga. Tinha uma cicatriz na testa e um sorrisobondoso. Geni passou por lá, comprou velas, fósforose ouviu da galega que a chuva não demorava.

–– Formou no olho da Guaiúba, vem mesmo!Alertou a mulher com um sorriso largo.

Uma lufada de vento provocou um certorebuliço nas barraquinhas. Os barraqueiroscomeçaram a recolher as mercadorias mais expostas.

Geni ficou pouco tempo por ali e apressou opasso quando o vento soprou mais forte. Ao chegarna porta do cemitério, olhou novamente e viu queas nuvens que prometiam chuva cobriam agora umaboa parte do céu. Quase não se via mais a claridadedo sol.

O vento soprou, levantando uma areia miudinhaque veio chocar contra o seu rosto. Cobriu os olhos

Page 158: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

158

e buscou proteção junto ao muro do cemitério.Quando passou o vento forte, as folhas caídas

das árvores. a areia fininha e uns pingos grossos dachuva, ela pode avistar uma mulher junto do lugaronde José Manoel estava enterrado. Estancou, quasena entrada do cemitério, apatetada e sem saber oque fazer. Muita coisa passou pela sua cabeça.Procurou pelo coveiro sem avistá-lo. Um homemque fazia algum serviço num túmulo junto ao murolhe deu notícia:

–– Saiu faz tempo, mas disse que voltava antesdo meio-dia! Geni conferiu no seu relógio. Era quasemeio dia.

Ficou sem saber o que fazer. Uma brutalinterrogação tomou conta dela. Encostou-se numtúmulo grande e ficou cismada. O túmulo era grandee deteriorado e com trincaduras nas peças demármore. Devia ter sido um belo túmulo, pensouGeni que ficou lendo as datas e os nomes dosdefuntos e concluiu que naquele túmulo estava umafamília toda, enterrados desde 1945. Bem no anoque nasci, lembrou-se. Ficou na recordação do seutempo de criança em Natal, a rua 10 do Alecrim, asfeiras, as enormes feiras que tinham tudo e a distantee quase inalcançável praia de Ponta Negra. Depoiso dia que conhecera José Manoel na festa dapadroeira e do seu vestido de bolinhas amarelas e osmarinheiros.

As torres de nuvens negras fechavam agora océu por completo e alguns pingos grossos vieram

Page 159: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

159

lhe tirar dos pensamentos.Olhou de novo para o céu e crispou o rosto: vai

ser muita chuva, pensou. Olhou e viu que a mulhercontinuava lá, imóvel, mesmo com o vento forte e achuva que começava.

Nova lufada de vento e areia e folhas se lançaramnovamente contra ela que se protegeu. Olhou orelógio: doze e cinco. Nada do coveiro. Ficou olhandopara a mulher. Era mais baixa do que alta e vestiauma saia azul escuro e blusa preta larga. Tinha oscabelos castanhos compridos que esvoaçavam a cadalufada do vento. Quando a mulher se virou todapara evitar o vento contra o seu rosto, percebeuque ela estava com uma bolsa de cor claracomprimida contra o peito.

O coveiro passou por Geni como se não aconhecesse. Ela correu atrás dele e perguntou sobrea mulher. Ele nem parou. Respondeu apressado,buscando se abrigar da chuva. Nem olhou para ela:

–– Ela tem um filho enterrado junto da covado seu marido! E completou no mesmo tom:

–– Faz três dias que vem aqui e já chorou umCapibaribe inteiro!

Ia falar mais e desistiu. A chuva que engrossavae o vento mais forte o fez buscar refúgio. Saiu quasecorrendo, deixando-a no meio do caminho, parada,sem ação, com as últimas palavras ainda ressoandonos ouvidos.

Sentiu o baque, mas ficou mais aliviada. Elasempre temia uma cilada da polícia. Conhecia muito

Page 160: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

160

pouco os amigos do seu marido. Conhecera Anselmoe Soledad que estiveram algumas vezes na sua casa.Anselmo era um velho amigo do tempo da marinhae José Manoel tinha muito respeito por ele.

Olhou mais uma vez para a mulher, agora nummisto de curiosidade e angústia. A mulher não semexia apesar do vento e da chuva mais fortes.

O tempo se fechou de vez e se fez quase noite.As árvores vergaram com o vento forte. Geni sentiuum nó na garganta, um aperto no coração queacelerava. Avançou, contra a chuva e o vento, atéonde estava a mulher, que percebeu sua aproximação.Virou-se com os olhos vermelhos e o rosto crispado.

–– Você é a mulher de Zezinho, não é?Perguntou.

Geni assentiu com a cabeça e não foi precisomais palavras. Se abraçaram chorando e ficaram nomeio da chuva grossa e do vendaval que agoratomava corpo.

Parecia que todo o Recife chorava.

16 de junho de 1973. Policiais invadiram a CNBBno Recife e levaram cópias do discurso de DomHélder proferido na AL de Pernambuco. Após asaída destes policiais, chegaram quatro policiais daPolícia Federal e apresentaram um mandado deapreensão do Manifesto dos Bispos do Nordeste.

De acordo com estes policiais, os que os ante-cederam deviam ser policiais do DOPS dePernambuco ou então os “homens do Fleury”.

Page 161: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

161

23. Todas as mortes de José Manoel

–– Pegue esta porra e suma daqui! Foi assimque ela recebeu a Certidão de Óbito de José Manoel.Apenas olhou para o funcionário, fuzilando-o comos olhos. Se quer enfrentamento, paciência... Vocênão é melhor do que eu não... Pensou, mas não fa-lou. Qualquer palavra, entendida como desaforo,atrasaria ainda mais a entrega do documento, dariaprisão por desacato e toda uma complicação queela queria evitar. Humilharam-na o quanto quise-ram, e ela, desesperada, aguentou calada tudo aqui-lo, pois precisava requerer a pensão do INSS a quetinha direito.

No outro dia foi ao INSS. O funcionário, solí-cito, apanhou a papelada e foi conferir. Eram mui-tos documentos. Analisou mais detidamente a Cer-tidão de Óbito. Leu todinha uma, duas, várias ve-zes e depois verificou o verso do documento. De-pois, levantou-se e foi até a mesa de um outro cole-ga mostrar o documento.

Geni, acompanhava cada movimento do funci-onário, angustiada. Será que tinha problema? O quefaltava agora? Tinha sido tão difícil conseguir aqueledocumento. Fora tão humilhada naquela reparti-ção. E agora? Se tivesse que voltar lá, como seria?

Estava tensa, muito tensa e viu o funcionáriobalançar a cabeça negativamente e o outro, o que aatendia, franzir o rosto, apanhar o documento e vir

Page 162: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

162

até ela cabisbaixo, preocupado. Havia problemas.–– Infelizmente o Atestado de Óbito está in-

completo! Falou quase se desculpando. E então,pacientemente, mostrou para Geni, que àquela al-tura era toda tensão, que no preenchimento da Cer-tidão de Óbito eles haviam omitido os dados im-prescindíveis para o requerimento da pensão.

Ela deixou a repartição sem destino, desani-mada, preocupada, sem coragem para ir reclamar acorreção da certidão. Sentou-se no banco de umapracinha próxima. Estava triste, muito triste, fa-lando para si mesma: Meu Deus! Quantas vezes ain-da matarão Zezinho? E ficou recordando da mortefísica que diziam ter sido no dia 8 de janeiro e que omataram de novo com a acusação maldosa no epi-sódio da Chácara São Bento, para encobrir a trai-ção de Anselmo, e a outra morte ao noticiaremque ele morrera no confronto com os companhei-ros de luta; uma nova morte ao lhe enterrarem comoindigente e agora, mais uma morte ao fornecer umdocumento omitindo propositalmente os dados,mesmo de posse dos documentos de José Manoel, eque ele portava quando foi preso e assassinado.

22 de janeiro de 1973. Foi assassinada no DOPS-PE a militante do PCBR, Anatália Melo Alves. E maisuma farsa foi montada pela ditadura.

Page 163: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

163

24. Uma sessão de tortura

–– Porra, vá chamar o Miranda, avie!Ela ouviu o grito da sala de onde saía uma

pessoa. Ao sair, o homem bateu a porta com tantaviolência que o barulho repercutiu por todo o cor-redor. Ela ainda pôde ouvir um gemido abafado demuito sofrimento. Não era a primeira vez que ou-via gritos de pavor naquele prédio.Depois, come-çou a ouvir o som alto de uma música que se sobre-punha a todo o barulho do corredor comprido quefedia a cigarro.

Foi levada novamente para a Sala de Opera-ções. A sala ficava no final do corredor. Na porta,estava fixada uma tabuleta branca, de plástico, comletras vermelhas. Era uma sala grande, fria e feden-do a creolina. Era a terceira vez que a levavampara lá desde que começara a ser investigada.

Na Sala de Operações, observou que dois ho-mens fumavam e conversavam reservadamente numcanto. O corte de cabelo de um deles era militar,seusgestos eram de uma pessoa educada e usava óculosescuros. Portava uma pasta com papéis e, assim queela entrou, ele saiu sem falar com ninguém. Ele sem-pre conversava com a pessoa que dirigia os interro-gatórios. Não era a primeira vez que via aquele ho-mem alí, que sempre saía quando ela chegava. Nun-ca o viu assistindo as sessões de tortura.

Após o assassinato do marido pela ditadura,

Page 164: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

164

acusado de pertencer à VPR, a Vanguarda PopularRevolucionária, ela ficou sob suspeição e ameaçasde torturas físicas e prisão. Da primeira vez, sem-pre a ameaçando com torturas físicas, perguntaramsobre vários nomes e um sem número de apelidosde pessoas. Queriam que ela confirmasse se os co-nhecia.

Na segunda vez trouxeram algumas fotografi-as de lugares públicos, algumas em praças, rodoviá-rias, aeroportos, mas a maioria, em bares e lancho-netes do Recife, João Pessoa e Natal. Apontavam apessoa e pediam que ela identificasse. Ela não co-nhecia ninguém. Nem os nomes e nem as pessoasnas fotos.

–– Agora, você vai pro pau de arara! Os polici-ais se zangavam e faziam novas ameaças.

Na segunda vez, quando deixava o prédio, umpolicial já idoso, alcançou-a e disse:

–– Moça, venha assim mesmo! Sempre bem ves-tida, porque quem vier aqui com roupa de pobre ,está lascado!

Neste dia, foram buscá-la em casa e a levaramdireto para a Sala de Operações. Pouco depois, sur-giu um grupo de homens arrastando um rapaz decabelos pretos e longos e de olhos miúdos. Ele esta-va com a roupa pregada ao corpo, de suor ou água,e sangrava muito pela boca. Era um animal acuado,mas vinha com a cabeça erguida encarando todomundo.

Ao se aproximar da cadeira onde a mandaram

Page 165: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

165

sentar, viu um dos homens se postar atrás da víti-ma e bater de uma só vez com as mãos nos ouvidosdele. Ele se contorceu de dor, mas voltou a cabeça efuzilou com os olhos o agressor.

Os homens riram e um deles comentou:–– O seu telefone está mais fraco que caldo de

biloca, mais tarde eu lhe ensino como se faz! E com-pletou:

–– E olha que eu aprendi com o DoutorBarreto, viste!?

Quando ela sentou na cadeira em frente ao ra-paz, uma lâmpada foi acesa, de forma que ela ficarabem visível.

Depois do golpe nos ouvidos, deixaram-o nú eo sentaram numa cadeira grande de placas de zincoe colocaram vários fios no corpo dele. Depois, umdos homems jogou um balde d´água no seu corpo,espirrando a água por todo lado. A água misturou-se com o sangue que saía da sua boca e escorreu porum ralo próximo da cadeira.

–– Agora você vai dizer o nome dessa mulher eonde era o ponto que vocês se encontravam aqui noRecife!

Antes que ele respondesse, um dos homens comuma caixa de madeira,cujos fios estavam ligados aocorpo dele, girou uma manivela e ele se contorceuvárias vezes. Mas, como estava amarrado na cadei-ra, não conseguia levantar e ficou gemendo um bomtempo. O rosto dele era só dor.

Nisso, entraram dois homens jovens e fortes e

Page 166: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

166

foram conversar com o que dirigia as torturas:–– Doutor –– disse um deles –– é o caso da-

quela empregada doméstica... o negócio do colar depérolas!

O homem não gostou. Fez cara feia e respon-deu com brutalidade:

–– Vocês já deram um pau nela? Ela falou?–– É justamente isso doutor! O Catatau que-

brou o braço dela!–– Porra! Que merda! É só eu descuidar que

vocês fazem merda!O outro rapaz, que permanecia calado, falou:–– Doutor o pior é que a madame disse que

achou o colar! Ela tinha guardado em outro lugar esó se lembrou hoje cedo! Ela já veio até buscar aempregada.

–– Levou?–– Aí é que está o problema! Ela disse que não

mandou ninguém quebrar o braço da mulher. Erasó para dar um aperto. E está reclamando que ago-ra não tem quem faça as coisas na casa dela, porquea outra empregada ficou com medo e foi embora.

–– Olha! Eu não vou entrar nessa não! Mandea madame dar um jeito nisso.

–– Doutor! Acontece que o marido dela é capi-tão do exército!

Nisso, entraram outros homens e chamaramos dois rapazes para conversar fora da sala.

O Doutor ficou ali espumando de raiva. Virou-se para a parede e falou sozinho: Esses filhos da

Page 167: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

167

puta só botam a gente em enrascada! Ditadura debosta!

Haviam interrompido a sessão de tortura, maso rapaz continuava arquejando, respirando com di-ficuldade.

–– Vamos começar de novo que eu não tenho odia todo não! Gritou o chefe dos torturadores.

Um dos torturadores se aproximou e levantoua cabeça do rapaz:

–– Agora diga quem é essa moça! O nome, onome!

–– Eu não a conheço! Ele tinha um sotaqueestrangeiro, assim como argentino, uruguaio, chile-no, talvez.

O homem girou a manivela e ele se contorceunovamente. Deu um urro de dor.

Geni comecou a ter ânsia de vômito.–– Se vomitar aqui, vai limpar! Gritou um dos

torturadores ameaçando-a com um bofete.Ela fechou os olhos.–– O nome dela e o ponto onde se encontra-

vam!?–– Não! Eu nunca ví esta moça!Um dos homens pegou uma mangueira num

armário, fixou na torneira no canto da parede eenfiou a outra ponta na boca do rapaz e tapou seunariz.

–– Liga! Abriram a torneira e o rapaz come-çou a se afogar. Agora era choque e afogamento.

–– Fala, filho da puta! O nome e o ponto!

Page 168: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

168

–– Eu nunca ví esta moça! Não conheço! Avoz do rapaz estava bem fraca.

Um dos homens se voltou para ela e disse en-carando-a:

–– Depois é a sua vez! O olhar dele era de sa-dismo, um olhar degenerado.

Os policiais sorriram e um deles saiu pulandopela sala, saltitando, um sorriso no rosto, comemo-rando com gritinhos histéricos.

Um dos torturadores mandou que ela virassea cabeça.

–– Olhe bem agora! Conhece? Diga o nomedessa mulher, cabra safado!

Ele balançou a cabeça negativamente e disse jáquase sem forças, mas com altivez:

–– Eu não conheço essa moça! Eu nunca viessa moça! E mesmo que conhecesse não falaria não, bando de viados!

Levou um murro na boca e começou a sangrarde novo.

–– Ele só vai falar no pau de arara! Disse umdeles.

–– Aqui, nenhum filho da puta aguenta cincodias de serviço completo! Gritou um dos tortura-dores olhando para Geni com ódio.

O homem girou a manivela de novo e ele sol-tou um grito terrificante e arriou completamente ocorpo, a cabeça pendendo para frente.

–– Filho duma puta! Eu não lhe disse para to-mar cuidado com essa merda! Gritou o policial que

Page 169: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

169

dirigia a tortura para o que estava com a máquinade choque.

Um dos homens saiu e voltou acompanhadopor outra pessoa que devia ser um médico, que apósexaminá-lo, disse:

–– Por enquanto, é melhor parar!Quando iam saindo, chegou um homem de ter-

no claro, gravata borboleta e fumando uma piteiradourada. Vinha muito perfumado, espalhando umcheiro agradável naquele ambiente fétido. Paroutodo mundo na porta.

–– E então? Perguntou o chefe dos tortura-dores.

–– É aquele negócio do desfalque do gerentedo banco! Respondeu o de gravata borboleta.

–– Qual é o banco? Perguntou o chefe da tor-tura. Mas, logo em seguida disse:

–– Deixa prá lá, deixa prá lá!–– Quanto? Continuou perguntando.–– Cinco! Respondeu o da gravatinha, e conti-

nuou:–– Dois e meio agora e dois e meio depois.–– Quanto o cara levou?–– Foi muito!–– Quanto?!–– Dizem que foi mais de novecentos!–– Porra! ...você confirma?–– Bem, eu acho... Não,... é que a amante dele

disse que o cara comprou um Maverick zero e umapartamento no Rio, tudo no dinheiro!

Page 170: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

170

–– E ela?–– Não, não, ela tá colaborando! Do cara ela

só queria mesmo o dinheiro, jóias,restaurantes...Triste é a situação da família. Mulhercom um bucho por acolá... Mas eu acho...que deveser mesmo uns oitocentos, porque a turma da segu-rança do banco tá fazendo muita questão!

–– Eu não quero saber o que você acha! Con-firma ou não confirma?

–– Confirmo!–– Então vá lá e peça para que eles melhorem

a proposta! Afinal, não vai ser um servicinho não.Depois, olhou com desconfiança para o homem dagravatinha e completou taxativo:

–– Deve ter muita gente envolvida! É muitodinheiro!

Aquela conversa toda, aquele descaramento,aquela certeza de que para eles, ela não era nada,foi deixando Geni nervosa, impaciente. Ela doidapara sair, ir embora e eles não a liberavam. Depoisde algum tempo foi dado a ordem:

–– Pode mandar a moça embora! Mande queela venha amanhã, às quinze!

Voltou para a casa arrasada. Foi assim maisuma sessão de tortura.

Depois de muito tempo, quase dois anos, osdepoimentos no DOPS de Pernambuco foramsuspensos:

–– Por enquanto está suspenso, mas mante-nha seu endereço atualizado aqui! Podemos lhe cha-

Page 171: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

171

mar a qualquer hora! Disse-lhe o policial com todaa autoridade do mundo e tendo certeza da humi-lhação que fazia.

28 de outubro de 1973. Foi assassinado no Re-cife, Jose Carlos Mata Machado, dirigente a AçãoPopular. Ele havia sido preso em São Paulo no dia 18de outubro de 1973. Até hoje não se conhece os mo-tivos de sua transferência para o Recife. Testemu-nhas comprovam que o militante morreu sob torturano DOI-CODI do Recife. A ditadura mandou publi-car outra versão. E os jornais publicaram.

Page 172: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 173: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

173

25. Um pé de fruta-pão

–– Mas, porque isso agora? Geni perguntouansiosa e foi se acomodar na mureta da porta docemitério olhando aperreada para o coveiro, que,impassível e com a mesma voz sonora de sempre,comunicava-lhe uma tragédia:

–– É a lei! Sentenciava, olhando para o lado,sem encará-la.

Ela não acreditava naquilo que ouvia. Agoraque as coisas estavam mais ou menos bem, esse pro-blema. Fitava o coveiro angustiada e não se confor-mava com aquela notícia devastadora. Ela ia umavez por mês no cemitério. Levava flores, acendiauma vela e orava por José Manoel. Depois, gratifi-cava o coveiro conforme o combinado. Plantara atéalgumas flores que agora vicejavam sobre aquelascovas de indigentes. Era assim há mais de dois anosdesde que ela prometera que um dia daria um en-terro digno ao marido. Agora morando em Natal,continuava indo todo mês no cemitério da Várzea,no Recife, orar pelo marido. Mudara-se para Natal,para a casa dos pais e com muita dificuldade criavaseus filhos.

–– É isso mesmo que você ouviu! Estou aquicumprindo ordens! Disse o coveiro, também um tan-to nervoso. E completou:

–– Eu não posso fazer nada, só cumprir as de-terminações dos homens quem mandam aqui!

Page 174: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

174

–– Mas vocês não podem fazer isso! insistiuGeni.

–– Bem, é a lei ! O administrador do cemitériojá determinou e é assim mesmo, depois de dois anosos ossos dos indigentes vão para o ossário, o bura-co do inferno! Por minha conta, eu esperei até vocêvir.

–– Mas ele não é uma coisa! É José Manoel émeu marido e é um cristão!

–– Aqui é tudo cristão, mas vão prá lá do mes-mo jeito!

–– Mas eu podia falar com o administrador,você não acha?

–– Eu acho é que ia complicar mais para vocêe para mim devido à situação do seu marido! Elescontinuam vigiando por aqui! De vez em quandovem um sondar, fazer perguntas. Nós já nos acostu-mamos! Eles já ficaram donos daquela área do ce-mitério!

Agora o problema era sério. Ela conseguiraque o coveiro cuidasse por dois anos da cova deindigente de José Manoel. Só ela e o coveiro sabiamque aquela era a cova de José Manoel. Os livros deregistros estavam rasurados. A ditadura matavaJosé Manoel mais uma vez. Guardara aquele segre-do temendo a repressão contra os seus familiares eos do marido. E chorava toda vez que via donaLuiza, sua sogra, sentada no fundo do quintal dacasa com olhar fixo na estrada do Recife, horas ehoras aguardando que um dia seu filho voltasse.

Page 175: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

175

Geni via aquilo, e saía para chorar. Mas não podiarevelar que José Manoel estava enterrado no Cemi-tério da Várzea, no Recife. Era um segredo dela edo coveiro.

Agora, ante a informação do coveiro, via omundo desmoronar:

–– Ah! Essa não! Ficar sem os despojos deZezinho e não ter mais um lugar onde pudesse orarpor ele, uma cova! Todo cristão tem uma cova!

Sentia faltar forças para lutar. Matavam JoséManoel mais uma vez. Estava apavorada. Começoua passar mal e o coveiro aperreou-se. Saiu e voltoucom um copo d’água.

–– Beba, por favor! Eu também estou sentin-do muito tudo isso, pois o pessoal da polícia quevem aqui não tem nenhum sentimento!

Ela se recompôs e disse ao coveiro:–– Mas Zezinho não vai para esse buraco do

inferno não!–– Mas como? Assustado, retrucou o coveiro.–– Você tem que me ajudar! Fica novamente

entre eu e você! Me diga um lugar do cemitério quevocê acha que não vão mexer tão cedo?

–– E você está pensando em quê? E mesmo acontragosto e achando aquilo tudo um absurdo,pensou e depois olhou em volta e disse:

–– Eu acho que junto do pé de fruta-pão. Tal-vez seja difícil que um dia vão bulir naquela área!Mas lhe digo que isso é crime!

–– Pois é isso mesmo! Eu vou enterrar os os-

Page 176: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

176

sos dele lá! E quando for possível eu levo para Na-tal ou Toritama e faço um enterro para ele. Aí en-tão eu vou requerer com documento e fica tudocerto para você, sem problemas!

O coveiro acendeu um cigarro, deu uma fortetragada e falou quase num apelo, soltando fumaçapelo nariz e boca:

–– Moça, você está doida! Moça, você não podefazer isso ! Isso é um crime!

–– Posso sim! Crime maior o governo fez comele! Ele é um cristão e não pode ir para esse buracodo inferno não!

–– E como a senhora vai fazer isso, de que ma-neira?

–– Me espere que eu volto logo! Saiu e foi atéum mercadinho. Voltou com uma bacia, álcool, sa-cos plásticos e alguns panos.

O coveiro não acreditava em tudo aquilo e quisrecuar:

–– É hora do almoço, tenho que fechar o ce-mitério!

–– Feche que eu fico aqui para resolver o pro-blema! Ela disse decidida.

O coveiro foi, fechou a porta do cemitério evoltou para tentar dissuadí-la:

–– Moça! Isso é um crime!–– Você cava, ou quer que eu cave?Ele se apiedou dela e não esperou mais. Pegou

a pá e começou a cavar.O coveiro estava assustado. Mesmo com o ce-

Page 177: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

177

mitério fechado, ela cavava e olhava para os ladoscom medo, muito medo.

Geni, ao ver os primeiros ossos de José Manoel,emocionou-se e chorou tudo que estava preso na-queles anos fúnebres de muito sofrimento. A medi-da que os ossos foram aparecendo, ela foi apanhan-do um a um, limpando, lavando com álcool, enxu-gando e colocando nos sacos plásticos. Depois foiaté o pé de fruta-pão. O coveiro fez uma nova cova,pouco profunda e ela colocou os sacos com os ossosde José Manoel.

–– Um dia eu volto para dar um enterro dignopara ele! Foi só o que disse. E o segredo ficou enter-rado ali. Geni nunca mais foi ao cemitério da Vár-zea.

3 outubro de 1975, página 2, Jornal Opinião,“Uma toalha na cela. O delegado Wanderley GirãoMaia, do DOPS cearense, ainda não disse a que con-clusões chegou o inquérito instaurado para apuraras causas e circunstâncias da morte do pedreiro PedroJerônimo de Souza, que estava detido naquela dele-gacia. Pedro, veterano militante comunista, foi ––segundo informações policiais –– encontrado mortoem sua cela, enforcado com uma toalha”. Depois pro-vou-se que ele morreu sob tortura. O deputado AlfredoMarques, do MDB, denunciou o então tenente HorácioMarques Gondim, como um dos assassinos.

Page 178: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 179: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

179

26. Barro Vermelho

Era um caminhão carga seca lotado de entu-lhos de construção, que vinha do centro e, sabe-selá por qual motivo, entrou naquela rua que não davaem lugar nenhum. Uma rua irregular, como quasetodas as outras do Barro Vermelho e só usadas pe-los moradores do bairro e pelos vendedores ambu-lantes e seus pregões que ecoavam pelas colinas sua-ves do bairro. Um entrançado de ruas, um labirin-to que, depois de muitas voltas, finalmente davamacesso às avenidas e levavam a algum lugar.

Ela viu quando o caminhão entrou na rua cho-roso e o motorista desviando de um buraco paracair num outro mais à frente A roda traseira afun-dou toda, até o eixo. A rua era estreita e ficou sóum pequeno vão que mal dava para passar carrospequenos. Não era problema pois era uma rua qua-se morta.

Ela parou de esfregar a roupa e olhou aquelaarrumação na rua. Quase nada acontecia de novi-dade naquela rua de doze casas, nenhum comércioe com um nome de presidente que ninguém nuncaouvira falar. Uma rua sem calçamento que no in-verno virava um lamaçal vermelho e escorregadio.

Filhos de uma puta! Ela não falou, pois evita-va o palavrão. Pensou e se recriminou logo em se-guida: A mãe desses bandidos não tem culpa! Faloubaixinho, um susurro, para si mesma:

Page 180: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

180

–– De novo meu Deus, como é possível viverassim?

Eram eles que passavam pela quarta ou quintavez naquela semana. Vinham num automóvel gran-de, sem placas e eram quatro. Olhavam acintosa-mente. Não escondiam os rostos e olhavam daque-la maneira, para ela saber que a estavam vigiando.Sorriam com escárnio.

Naquele dia, passava das quatro da tarde e elaaproveitava a estiagem e estava lavando roupa nafrente da casa debaixo de um jambeiro. Um restode enxurrada ainda escorria rente ao meio fio, ver-melha, parecendo sangue.

Eles vinham quase parando, desviando do ca-minhão de entulhos, que tomava quase toda a rua,e das pessoas que se juntaram ao redor do veículona tentativa de tirá-lo do buraco.

–– Papai, são eles de novo! Ela gritou.Seu pai, depois de todas aquelas atribulações

da filha, adoecera, ficara cego e definhava. Estavasentado no fundo da varanda, levantou-se e foitateando na parede até a frente da casa. O carroveio, com os mesmos quatro homens e passaramolhando para ela, nem se importando com a pre-sença do pai.

–– Tenha paciência minha filha! Um dia tudoisso acaba! Pediu, impotente. Uma dor apertandoainda mais seu peito. Uma dor estranha, agoniada.

Era uma semana ruim para Geni. No dia ante-rior, seu filho voltara chorando da escola e contou-

Page 181: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

181

lhe o ocorrido: Caminhava para a sala de aula, apóso recreio, e, no corredor, um professor apontoupara ele com deboche, e disse: Olha aí! Esse aí éfilho de terrorista! Nesta escola tem até filho deterrorista!

Agora ela não suportava mais aquilo, ver opai definhando e aqueles homens alí, zombando delae do seu pai.

22 de dezembro de 1975. Jornal Movimento,pagina 7: O senador Dinarte Mariz, que é frequente-mente recebido pelo presidente da República, falounuma entrevista ao Correio Brasiliense, sobre a im-portância da imprensa: “Muito mais importante doque vocês próprios imaginam quando estão escreven-do, elogiando ou criticando, daí a necessidade de umaampla união aos militares e aos políticos no combatesistemático ao comunismo. A Revolução não pode enão deve ser contestada, principalmente pela impren-sa”. Revolução para o senador biônico da ARENAdo Rio Grande do Norte era como chamava o golpede 1964.

Page 182: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 183: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

183

27. Terroristas, em Natal

Geni caminhava na Avenida Rio Branco e vi-nha pensando o quanto era belo o entardecer emNatal. Era outubro de 1976. Aquela luz difusa,rutilante, uma sensação de brumas que parecia exa-lar do rio Potengi e envolver a cidade e depois, umresplandecer final efêmero e de repente, a escuri-dão, como uma cortina que se fecha abruptamente.Agora só amanhã, neste mesmo horário! Falou parasí, sorrindo. Estava feliz dentro daquele possível desua vida atribulada pelas perseguições que nuncacessaram desde o assassinato de José Manoel. Mu-dara-se para Natal e a perseguição mudou junto.

Naquele começo de noite, voltava para o Bar-ro Vermelho onde morava com os pais. Fora levarum remédio para o avô na Cidade Alta, quase nocentro. Passava na frente de um restaurante que,naquele horário, ainda estava com as mesas vazias,quando um homem de barba comprida e óculos es-curos, saído não sabe de onde, aproximou-se e dis-se:

–– Continue caminhando e olhe só para o chão!Obedeça que é melhor para você!

Ela sentiu um frio intenso e a boca secar ime-diatamente. As pernas fraquejaram e ela bambo-leou sob o olhar atento do homem. Na sua memó-ria, veio uma imagem de alguma coisa já acontecida.Ela parecia esperar que um dia isso acontecesse. Ti-

Page 184: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

184

nha aquela impressão. Continuou caminhando, ago-ra com o homem ao seu lado. Na esquina o homemdeterminou: Dobre a esquerda! E sem gracinhas!

Não havia quase ninguém na rua àquela hora.O comércio já fechara, a maioria dos ônibus já ha-viam passado e poucos carros circulavam naquelelocal. Um grupo de homens à frente dobraram noBeco da Lama. Vão aos bares, pensou Geni que ago-ra apressava o passo na tentativa de alcançar o gru-po.

–– Nada de gracinhas, eu disse! Devagar! Erao homem novamente dando as ordens. A voz firme,demonstrando tranquilidade.

Ao lado da igreja ela viu alguns veículos esta-cionados e quando passava junto de uma perua Ve-raneio, a porta se abriu abruptamente e ela foi jo-gada dentro do carro. Foi tudo muito rápido. Apraça estava deserta e os poucos transeuntes nemobservaram o que acontecia. Foi encapuzada e per-cebeu que rodavam com ela na cidade. Ouvia o ba-rulho dos ônibus, buzinas de carros, as paradas nasesquinas e então o veículo estacionou, sem no en-tanto desligar o motor. Estavam numa rua movi-mentada e sentiu quando outro homem subiu noveículo.

Tudo limpo? Perguntou o homem.Tudo! Respondeu um deles que estava no ban-

co dianteiro.O homem sentou ao lado dela. Agora estava

entre dois homens e um deles com uma arma en-

Page 185: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

185

costada nela. Ela sentia o frio do metal no pescoço.Quando o homem entrou no carro, Geni sentiu umcheiro forte de bebida que se misturou ao cheiro decigarro impregnado no carro. Teve náuseas.

–– Sem gracinhas! Falou o homem que porta-va a arma.

Depois de algum tempo percebeu que o veícu-lo se afastava da cidade. E aí, começou.

–– O dinheiro? O que a gente quer saber é so-bre o dinheiro! Onde seu marido deixou o resto dodinheiro? Gritavam todos de uma só vez.

Notou que a velocidade aumentara e percebeuque tomaram uma estrada de terra devido os sola-vancos do carro.

–– Quais eram as ligações dele aqui em Natal?Vamos, responda! Aos gritos eles continuavam to-dos de uma vez.

–– Os pontos aqui em Natal! Vamos!–– O dinheiro!? Você abre e a gente não faz

nada com você! Disse o homem com cheiro de bebi-da, e que agora também fumava, tocando-a.

Ela novamente sentiu náuseas.–– Eu não sei do que vocês estão falando! Dis-

se quase numa súplica.Percebeu o veículo perdendo velocidade até

parar de vez. Agora só ouvia os sons noturnos damata. Não ouvia mais barulho nenhum de veículos.

–– Desça! E não adianta gritar porque ninguémvai escutar! Um dos homens foi falando e empur-rando-a com violência para fora do carro.

Page 186: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

186

E aí foi uma sessão de tortura. Murros e ta-pas. Atirada ao chão pelos homens e a sequência deperguntas: dinheiro e os pontos em Natal. Pareceque tudo girava em torno da história do cofre doAdemar.

Ela desconhecia tudo aquilo. Eles tinham qua-se certeza disso. Mas não custa tentar! Disse umdeles e convenceu o grupo.

Depois, foi estuprada. Lutou e resistiu o quan-to pôde. Eram quatro homens e ora diziam que eramdo exército, ora da polícia, ora polícia federal.

24 de outubro de 1975, o jornalista VladimirHerzog, 38 anos, então diretor da TV Cultura, apre-sentou-se no DOI-CODI em São Paulo, para prestaresclarecimentos sobre suas ligações com o PCB. Foitorturado e assassinado. Assim que a notícia do as-sassinato do jornalista se espalhou, um silêncio pro-fundo tomou conta de tudo, redações de jornais, rá-dios, tvs, universidades, etc. Esse protesto silenciosomarcou o início da derrocada da ditadura.

Page 187: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

187

.

28. Recordações de Pernambuco

–– Mas, padre, esses homens devem ser os mes-mos que torturaram e mataram meu marido! Faloudesesperada.

–– Ah! minha filha, você vai ter este filho! Abor-to, nem pensar! Você é cristã e sabe o pecado quepode cometer! Era o padre falando, mas nem de-monstrava tanta certeza no que dizia.

Era uma cena de desespero. Ela aflita com tudoaquilo, procurara o padre que havia sido seu pro-fessor na escola católica. Ele que a viu crescer na-quela escola, adolescente, cheia de sonhos e ela bus-cando forças para abortar o filho indesejado, frutode uma violência da ditadura.

Ela custava a acreditar naquilo tudo. Gravi-dez. Depois do estupro, a gravidez. Escondera dasua família tudo o que passara naquela noite fatídi-ca. Dissera que fora assaltada e não comentou maiso assunto. Mas e agora? Ela, uma cristã que semprefora contra o aborto iria seguir com aquela gravidêsfruto do estupro praticado por seus torturadores?

–– Ah! filha... E o padre despediu-se, virou-see foi embora sem falar mais nada.

Tomou um ônibus para o Recife e quando viua placa na divisa de Pernambuco, começou arememorar o seu drama. Por fim, lembrou-se commuita força do ocorrido no dia que sequestraramZezinho. Ela havia apagado aquilo tudo, mas, ago-

Page 188: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

188

ra, vinha-lhe à memória, vivo, vivo, o dia do se-questro do seu marido. E via seu filho, ainda crian-ça, em desabalada carreira por entre ruas e becosde Toritama e ela sem forças para chamá-lo. O me-nino foi para a pedra da Torre nos arredores deToritama. No imaginário dos meninos de Toritama,a pedra da Torre era o esconderijo ideal para resis-tir. E ele resistiria.

O desespero de Geni aumentava à medida queo ônibus avançava. Recordava-se da sua viagem paraNatal buscando o socorro do pai:

–– Papai, deve ser alguma coisa com o impos-to, porque Zezinho não paga imposto dos calçadosque fabrica e vende!

E o pai com todo carinho:–– Veja lá minha filha quanto é que ele tem

que pagar ao governo que a gente arruma, paga esoltam ele!

E à noite quando voltou para Toritama, aque-le reboliço todo. Sua casa toda revirada. Sofás ecolchões rasgados, móveis quebrados, paredesdestruídas. Tudo jogado no chão.

E no outro dia, ela desesperada em Recife semconseguir notícias do marido. A polícia negando, oExército negando, a Marinha negando, todos ne-gando. E na quinta-feira, dia 11, quatro dias depoisda prisão de Zezinho, as notícias nos jornais: terro-rista! Tudo aquilo vinha agora num filme para ela.

Com quem contaria agora em Recife, depoisde todo o ocorrido? Bateu em algumas portas que

Page 189: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

189

se fecharam, agora definitivamente. Os antigos vi-zinhos tinham medo e filhos para criar, diziam.

Por fim, uma antiga vizinha a ajudou. Fez oaborto, as coisas complicaram e ela findou numhospital do Recife. Os médicos perceberam logo oproblema: Mais uma que veio do matadouro! Disseo médico para a enfermeira.

Ela ouviu aquilo e se lembrou de Soledad emToritama em busca de ajuda para fazer um aborto.Quatro anos haviam se passado.

Após o atendimento no hospital, sedada, ador-meceu logo. À noite, depois da refeição, veio-lhe àmemória tudo que lhe dissera a doutora Mércia, asempre terna doutora Mércia: “Ví seu marido nonecrotério. Ele estava muito inchado. Vi todos osseis mortos lá. Eu fui lá em busca do Jarbas! Vocêo conhecia? Jarbas já me falara há alguns dias queestava com medo e desconfiado que eles estavamsendo traídos. Na quarta-feira, eu soube que haviaseis corpos no necrotério do Santo Amaro, fui lá efiquei horrorizada com o que vi. Estavam todos se-minus e inchados. Seu marido estava muito incha-do. Todos eles tinham marcas de tiro no peito e nacabeça. A Soledad estava com os olhos e a bocaaberta. Havia muito sangue coagulado e o feto es-tava nos seus pés. Era uma cena de filme de terror.A Pauline estava com a boca arrebentada, pareceque rasgaram sua boca. O Jarbas parece que foi en-forcado pois estava com a língua de fora e uma man-cha escura no pescoço”.

Page 190: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

190

Perto da meia-noite, uma auxiliar da enferma-ria foi até ela e falou baixinho:

–– Você tem algum problema com a polícia?–– Não, penso que não tenho! falou assustada.–– Na portaria estão dois polícias perguntan-

do por você! Falou e saiu rapidamente.Geni aperreada, fugiu. Àquela hora, sem saber

para onde. Por fim, foi para a rodoviária e voltoupara Natal, abalada com tudo aquilo.

24 de agosto de 1977. Jornal O Estado de SãoPaulo, página 12: “Estudantes saem à rua e confun-de polícia. Com jatos dágua, gás lacrimogêneo e gol-pes de cassetetes, uma passeata de mais de mil estu-dantes foi dispersada por tropas de choque da PolíciaMilitar quando se reunia à tarde no Largo do Rosá-rio, a principal praça de Campinas. Os estudantes pre-tendiam fazer a leitura de um manifesto dirigido àpopulação brasileira sob o título O Brasil é feito pornós”.

Page 191: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

191

29. Incidente em Brasília

Um dos homens da segurança fez sinal para ooutro apontando para ela. Quando foi entrar o se-gurança lhe barrou o caminho:

–– A senhora está proibida de entrar! Disse comarrogância. E completou:

–– São ordens da presidência da casa!Ela não discutiu. Nem esboçou nenhuma rea-

ção. Os amigos, ex-marinheiros, que estavam comela protestaram:

–– Cadê a democracia? O Congresso Nacionalé a casa do povo! Gritaram, em vão.

Mas ela tinha outros planos e já imaginavamesmo que seria barrada. O episódio do dia anteri-or havia repercutido muito mal. A imprensa havialhes chamado de baderneiros. Aquilo só agradavaaos órfãos da ditadura que não se conformavam comos avanços democráticos conseguidos pelo povo commuita luta.

Ela serenou os ânimos dos amigos que entra-ram protestando e quando foi saindo, um homem –– depois ficou sabendo que era um deputado daextrema direita –– a encarou e disse:

–– Mulher de terrorista era para apanhar nacara!

O homem se afastou rapidamente e quando sevirou para ver a reação de Geni, recebeu umasapatada na cara. Os seguranças correram na dire-

Page 192: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

192

ção dela que não reagiu. O deputado, deixou logo orecinto acompanhado de alguns auxiliares. Geni, cal-mamente apanhou o sapato e deixou o local. Saiu eaguardou um deputado que lhes dava apoio desdequando chegaram alí. Houve negociação e ela en-trou de braços dados com o deputado. Os seguran-ças não interviram. Veio ordem para que nãointervissem. Os companheiros a receberam com pal-mas e gritaram palavras de ordem.

Era 1988 e os marinheiros e seus familiares es-tavam no Congresso Nacional acompanhando a vo-tação da nova Constituição que finalmente deverialhes garantir a anistia. Geni viajara desde Natal atéo Rio de Janeiro para se juntar à caravana organi-zada pela UMNA, a entidade que organizava a lutados marinheiros. Desde 1975, eles lutavam pela anis-tia que viera em 1979, anistiando até torturadores,mas não os marinheiros.

Mas eles nunca desistiram da luta e, só em 2002,depois de 23 anos, conseguiram finalmente a anis-tia. Para o almirantado, os marinheiros que esta-vam na assembléia de março de 1964 no Sindicatodos Metalúrgicos do Rio, haviam cometido os cri-mes de motim, de revolta, de aliciação, incitamentoe insubordinação. Para Geni, os marinheiros se reu-niram para debater o que era bom para o povo bra-sileiro e o Brasil e não havia que pedir perdão denada a ninguém. E em Brasília, quando lhe pergun-taram sobre os atos de José Manoel, ela foi taxativa:

–– Eu falaria para ele que se ele tivesse cora-

Page 193: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

193

gem, poderia fazer tudo de novo. Se é para o bemda gente, para o bem da nação, o bem do nossopróximo, eu dava apoio para ele fazer!

30 de abril de 1981, atentado do Riocentro: nopavilhão Riocentro, à noite, onde se comemorava oDia do Trabalhador, reunindo artistas da MPB, umabomba explodiu no colo do sargento Guilherme Pe-reira do Rosário, matando-o e ferindo o motorista doveículo, o capitão Wilson Dias Machado. A ação dogrupo naquela noite era pichar o Riocentro com asigla VPR, detonar bombas nos portões do pavilhão eexplodir a casa de força. O primeiro IPM - InquéritoPolicial Militar instaurado pelo Exército em 1981, ino-centou os militares reputados vítimas de grupos deesquerda. O segundo IPM, em 1999, comprovou oenvolvimento dos militares, agora anistiados. O mi-nistro aposentado do STM, Julio de Sá Bierrenbach,declarou que nunca foi tomado o depoimento do ca-pitão, hoje coronel e professor no Colégio Militar deBrasília.

Page 194: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 195: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

195

30. Tecendo a manhã

Quando Beto Galdino apanhou o grito que hámuito ecoava entre ruas e becos, pôde entender quehavia uma história encoberta e uma ferida abertaem Toritama. Foi nos livros e descobriu mais.

Até então, era assim em Toritama:––Aquele Zezinho de Manoel da Santa falava

todo dia com Fidel Castro e ia soltar uma bombapara destruir Toritama!

E as crianças de Toritama cresceram ouvindoessa história. E os filhos de Zezinho escorraçados,quando de qualquer desavença:

–– Saia daqui filho de terrorista! Seu pai que-ria era acabar com a cidade!

Beto Galdino, também cresceu ouvindo essahistória, mas cismado, viu alguma coisa falseadanaquilo tudo e quando conseguiu lançar mais longeo grito que apanhara, os ecos lhes trouxeram outrahistória. Bem diferente daquela que Toritama co-nhecia. Então, ele teceu a sua manhã mais intensa.E quando alcançou Geni em Natal, ela pôde saberque a memória de José Manoel não restaria enter-rada junto ao pé de fruta pão no Cemitério da Vár-zea no Recife.

No dia que Geni foi com seu irmão buscar oautomóvel de Zezinho na Secretaria de SegurançaPública de Pernambuco, no Recife, percebeu quealém da vida do seu marido, a ditadura também

Page 196: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

196

avançara sobre os seus bens. Tinha receio de ir, masfoi. Afinal, era seu direito reaver um bem que eraseu.

Primeiro, disseram que não constava que o ve-ículo tivesse sido apreendido.

Depois, no outro dia, um delegado lhe disse:Sim, encontramos! Ele está no páteo! Um fun-

cionário a acompanhou até o páteo, mas o veículonão estava lá.

Ela voltou no dia seguinte e o veículo final-mente estava no páteo. Depenado. O veículo chega-ra quase novo e saía muito estragado. Pneus ve-lhos, sem o toca-fitas, o suporte, ferramentas e obanco traseiro. Até uma das portas fora substituí-da por outra mais velha.

Assim que saíram e se afastaram, Geni, maisaliviada, abriu o porta luvas do carro e encontrouum livro sujo, sem a capa e com manchas que pare-ciam sangue, mas que depois viu se tratar de tintamarrom de calçados. Os sequestradores e assassi-nos de José Manoel não se interessaram pelo livro eele ficou alí naqueles anos todos.

O livro tinha o nome de José Manoel na pri-meira página que ficara como capa e uma data mui-to apagada, mas que ainda se podia ler 1968. Tinhauma marcação na página 78 com uma tirinha decouro, bem fininha, que com o tempo, manchara asduas páginas, sem no entanto atrapalhar a leitura.

Quem viu o marcador de página foi seu irmão,quando em casa e mais tranquilos, contavam a his-

Page 197: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

197

tória do resgate do automóvel de José Manoel. Eraum livro de poesias e na página marcada se lia apartir de uma anotação a tinta azul, manchada, oseguinte:

“E onde o levais a enterrar,irmãos das almas,com a semente de chumboque tem guardada?Ao cemitério de Tôrres,irmão das almas,que hoje se diz Toritama,de madrugada.E poderei ajudar,irmãos das almas?vou passar por Toritama,é minha estrada.Bem que poderá ajudar,irmão das almas,é irmão das almas quem ouvenossa chamada.E um de nós pode voltar,irmão das almas,pode voltar daqui mesmopara sua casa.”

Geni se lembrou do episódio do livro no metrô,em Recife, a caminho do encontro com Maria doAmparo, a coordenadora do “Grupo Tortura Nun-ca Mais”, em Recife. Geni não conhecia o poeta João

Page 198: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

198

Cabral de Melo Neto, nem a poesia que ela achoumeio parecida com o que vivia agora. Ia enterrarZezinho, com muitas sementes de chumbo no cemi-tério de Toritama. Ele, José Manoel, que lutara pelareforma agrária.

Naquele dia, um dia de muita tristeza, de lem-branças do marido assassinado, ela reforçara umaesperança que guardava consigo desde muito: fazero enterro do marido em Toritama e mostrar que elenão era o bandido que a ditadura propagara.

O encontro com Maria do Amparo foi de mui-to enternecimento e grande surpresa para Maria doAmparo que não imaginava aquele desfecho. E Genise encheu de esperança e percebeu que estava bempróxima de lavar a honra manchada de José Manoel.

Foram ao Cemitério da Várzea e constataramque muitas páginas do livro de registro do cemité-rio estavam rasuradas para dificultar a localizaçãodos corpos.

No cemitério além delas, a imprensa. Havia umnovo coveiro. O outro estava aposentado, mas fica-va por alí fazendo serviços de limpeza dos túmulose pequenas reformas e assim complementava suaaposentadoria.

Ele demorou para aparecer e quando veio de-monstrava medo, muito medo. Primeiro buscaramtranquilizá-lo e depois Geni perguntou:

–– Você ainda lembra onde enterramos os os-sos do meu marido?

–– Essas coisas a gente não esquece! Disse e foi

Page 199: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

199

caminhando para o pé de fruta-pão.Quando começaram a cavar no lugar indicado,

vinte, trinta centímetros talvez, surgiram os primei-ros ossos, os fêmures, parte do crâneo, algumasvertebras, depois duas partes da arcada dentária comdentes intactos. Dos sacos plásticos, poucos vestígi-os. Foi um novo momento de comoção. Geni, pro-curou ser forte. E foi. O que lhe dava forças era apossibilidade real que tinha agora, passados maisde vinte anos, de gritar para todos, anunciar queZezinho não era o terrorista que a ditadura fez opovo acreditar naqueles anos todos. Apanhou ossopor osso, limpou-os e foi colocando na urna quehaviam trazido. Era 19 de dezembro de 1994.

Geni chegou em Toritama à tardinha. Entroue falou com sua cunhada:

–– Ela continua lá?–– Continua! Fica lá sentadinha olhando to-

dos os carros que chegam!–– Mas como é possível, meu Deus? Geni aper-

reou-se.–– Ela não acredita que ele foi assassinado! Ela

ainda tem a esperança de que qualquer hora ele vol-te. E nós temos muito medo do que pode acontecera ela! Geni, sentiu um aperto no peito, era umaagonia, um mal estar. Entrou, passou pela sala, pelacozinha e viu sua sogra sentada no quintal olhandoa estrada.

–– Ele não veio ainda! Disse-lhe a sogra, vol-tando-se para ela. Mas, meu coração de mãe diz que

Page 200: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

200

ele vem num carro vermelho grande! Esta noite eusonhei que ele chegava pela tardinha. Eu estou aquiesperando! Quero estar arrumada quando ele che-gar! Eu só não sei se eu resistiria ao seu abraço!

Geni abraçou a sogra, engoliu o choro e disse:–– Está bem perto dele chegar!Em março de 1995, finalmente José Manoel

voltou para Toritama. O caminhão do corpo debombeiros, trazendo a urna mortuária apontou lána entrada da cidade. As pessoas estavam na ruapara recebê-lo. Geni nem acreditava que pudessefazer tanto. Recuperar a imagem distorcida que aditadura fez do seu companheiro.

E lá estava ela, Dona Luíza, sentada no quin-tal olhando entre as varas da cerca, as torres bran-cas de pedra ao longe, viu quando o carro do corpode bombeiros apontou e aí vieram lhe dizer:

–– É seu filho Zezinho que vem chegando. Elase levantou e foi para mais perto da cerca. Olhouaquele povo todo saudando seu filho; sirenes liga-das, palavras de ordem, virou-se para a vizinha quelhe amparava e disse:

–– É meu filho Zezinho que vem vindo. Ele éda Marinha!

17 de março de 1995. em Toritama[PE]. Com oapoio da Prefeitura de Toritama e da Secretaria deJustiça de Pernambuco, o Grupo Tortura Nunca Mais[Maria do Amparo], Paróquia N. S. da Conceição,

Page 201: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

201

Centro D. Hélder Câmara, GAJOP, Movimento de Re-tratação Política de José Manoel da Silva, vereadoresMarcelo Santa Cruz e Dilson Peixoto e o Dep. Fede-ral Fernando Ferro, e mais a participação da UMNA- Unidade de Mobilização Nacional pela Anistia[Coutinho], Centro de Direitos Humanos e MemóriaPopular [Roberto Monte] e o povo brasileiro, fize-ram o traslado dos restos mortais do militante políti-co José Manoel da Silva. O governador de Pernambucoera Miguel Arraes.

Page 202: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 203: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

203

31. Hoje, morreu um cristão

Ideraldo ouviu o barulho dos foguetões e dasbuzinas dos carros. Ele já estava de banho tomado,roupa nova e os cabelos ralos, ainda molhados, aágua escorrendo pelo pescoço. Eram as pedras quefalavam para ele. Os sons de Toritama chegavamaté ele através das pedras, por entre as torres depedras. E neste momento, falavam sobre JoséManoel. Era 17 de março de 1995.

Um locutor num carro de som vinha anunci-ando pela estrada: Aplausos para José Manoel!Estamos fazendo a retratação política daquele quetombou em defesa da democracia! A p l a u s o spara José Manoel da Silva. O povo de Toritama vemostensivamente...

Lá do alto, da sua casinha de telhadomarronzinho e já pretejando, naquela imensidão depedras que desciam até a estrada, ele viu a fileira decarros e de motos e o caminhão do corpo de bom-beiros que seguia em direção a Toritama.

Ele sabia da homenagem e também estaria lá.Até ajudara a pintar as pedras que se transforma-ram nos “outdoors” com as palavras de ordem:“Zezinho Vive!”, “Tortura nunca mais!”

Morando entre pedras no alto da colina. Meialégua da cidade, mais pedra que terra e que nin-guém nunca reclamara dono, pois nem para criarprestava, plantava rocinha de milho e feijão e alu-

Page 204: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

204

gava seu trabalho nas várzeas. Foi a terra pedraque restou para ele e os irmãos.

Num domingo, seu filho viera para o almoçocom a notícia. Quase sempre, seus filhos vinhampara o almoço no domingo. Moravam em Toritamanas casinhas nuas entre pedras e sem arruamento.O progresso. Ah! O progresso! Estavam todos notrabalho das roupas, “dins”, como diziam.

–– O painho lembra do finado José Manoel?–– Zezinho de Manoel da Santa que foi assas-

sinado pela ditadura?–– Sim, ele!–– Ora meu filho, seria muita ingratidão mi-

nha e dos meus companheiros esquecer Zezinho! Foiele que deu a esperança da reforma agrária! Elecom aquela certeza toda! Que a gente sairia daquidesta secura branca de pedras para uma várzeaverdinha onde dá tudo! Ele sim, era nosso amigo!Lutava para que a gente tivesse uma vida melhor!

E recordou daquele dia de tristeza e medo quan-do lhe trouxeram o jornal.

–– Eu nem podia acreditar que era ele de tãoinchado que estava! E o jornal dizendo que ele eraterrorista, um rapaz que quase ví nascer e que co-nhecia o pai, a mãe, os irmãos? Não, não esquece-ria nunca!

O filho sabia quanto o pai lamentara aquelamorte e o quanto também temeu ser assassinado.Lembrava-se da fuga do pai e dos companheiros as-sim que chegou a notícia em Toritama. Passaram

Page 205: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

205

um bom tempo escondidos, dormindo cada dia numlugar. Insônia, desassossego e desconfiança de tudoe de todos. Em seguida, as conversas das traiçõescontra Zezinho que foram esclarecendo tudo aqui-lo. Depois de muito tempo é que foram retornandoaos poucos para suas casas, assustados e sofrendopreconceito. Lembrava-se das acusações infundadasque fizeram espalhar pela cidade:

–– Saia daqui, terrorista safado! Cadê a bom-ba que você e Zezinho ia explodir em Toritama, ca-bra de peia?! Era uma amargura lembrar daquelestempos, mas, enfim, chegara a grande oportunida-de de esclarecer tudo e colocar a verdade no lugar.Zezinho merecia aquilo. Agora estava impaciente.Queria ir logo para Toritama.

–– Ceição! Será que Tapuia vem?–– Hôme! Deixe de aperreio, parece que você

não conhece seu filho! Se ele diz que vem, é porquevem!

Ceição descendia dos tapuias, povo quase tododizimado pelos portugueses. Os que não foram as-sassinados, foram se casando com os brancos e pre-tos. Baixinha e atarracada, cabelos lisos, já quasebranco. O filho tinha as feições dela, só que alto eforte. Um Tapuia. O apelido foi das ruas e ficoupara sempre. Ele já se acostumara e tinha orgulhodos antepassados, homens bravos que não se curva-ram ao colonizador.

Ideraldo só sossegou quando as pedras fala-ram novamente. Da porta da sua casa ouviu o ron-

Page 206: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

206

co da motocicleta e foi para a porteira. De lá, podiaver bem longe. E viu a moto que vinha naestradinha, quase trilha, estreita por entre as pe-dras, aparecendo e sumindo e o som do motoralteando e quase desaparecendo.

Chegou na cidade no exato momento que Geni,à frente do cortejo e com a urna mortuária deZezinho nos braços, coberta com a bandeira brasi-leira, gritava:

–– Estou aqui limpando a sua honra, Zezinho!Você que foi tão pisado, tão machucado e tratadocomo um terrorista perigoso, como um homem semcaráter... Receba esta gratidão da sua mulher, dosseus filhos, do pessoal de Toritama e de toda a im-prensa.

Um dia inesquecível para Toritama. A cidadeparou para receber Zezinho de Manoel da Santa.Ele estava mais vivo do que nunca. Milhares de pes-soas nas ruas, nas varandas, nas calçadas, nos mu-ros. Um desfile colorido de guarda-sóis. Criançasem júbilo correndo de um lado para o outro. À fren-te as faixas, às dezenas: “Tortura nunca mais!”“Zezinho vive!”. O povo aplaudindo à passagem deZezinho.

Primeiro vinha o caminhão do Corpo de Bom-beiros, depois, o povo: velhos, jovens e crianças,homens e mulheres. Depois as bandas marciais emais povo. Depois veículos, dezenas deles. Um car-ro com grandes alto-falantes anunciando:

–– Zezinho vive! Tortura nunca mais! O povo

Page 207: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

207

de Toritama está fazendo a retratação política deJosé Manoel!

E lá estava Geni, carregando uma grande co-roa de flores nos braços. Estava lá, brava, valente, acabeça erguida e gritando para toda a cidade:

–– Zezinho não era o bandido que a ditaduraquis fazer dele. Ele lutava por uma vida melhor paratodos. Ele sempre lutou por isso!

E assim, o comércio de portinhas estreitas duasa duas reclamando pintura e os telhados compridosdas casas antigas de duas águas, viram passar aque-la mulher valente. O povo se acotovelando no meiofio da rua de calçamento de paralelepípedos; o povodando vivas das varandas, o povo nos muros e noscarros; aplausos que vinham daquelas casinhas es-premidas umas contra as outras.

–– Quem era ele? Perguntou um forasteiro.–– É José Manoel, Zezinho de Manoel da San-

ta, um filho valente de Toritama! Respondeu umnativo.

E na sombrinha pequena do meio dia, sol apino na cabeça seguia o povo de Toritama homena-geando seu filho. As motos e bicicletas seentrançando por entre o povo no cortejo, percor-rendo becos, ruas e avenidas. Geni à frente gritan-do em cada canto:

–– Meu marido não era o terrorista que a dita-dura disse que era. Ele lutou por nós e deu sua vidapela democracia.

E mais à frente, Geni mostra a foto do marido

Page 208: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

208

assassinado. O rosto de sofrimento da tortura,irreconhecível! Torturado! Uma camponesa com umpano amarrado na cabeça se aproxima e vê e dizpara a amiga:

–– Eu conheci ele mocinho! Era pouco maisnovo que eu! Era cheio de vida!

Não se vê sorrisos. Só cenhos fechados.–– É Zezinho de Manoel da Santa, um homem

que não se curvou à ditadura! Passa outro e diz. Ospanfletos são distribuídos e o povo vai lendo, infor-mando-se. Aula de cidadania. Aula da verdade. E opovo afoito querendo saber mais. Aqui, acolá, umprédio de fachada moderna dessa modernidade queestá aportando aqui: “jeans” e violência.

A multidão se espalha agora pela avenida e logoà frente se comprime no beco. Ao fundo, as casi-nhas simples de testeira branca.

Depois homenagem e missa no Ipiranga Fute-bol Clube. Ipiranga, rio vermelho, independência.Geni pensou em tudo isso num segundo. Mural nasparedes. Murais no Ipiranga Futebol Clube. E o povolendo, buscando informação. Aula de história. His-tória dos tempos recentes do Brasil. História escon-dida do Brasil. História revelada do Brasil. E ve-lhos, crianças, homens, mulheres e jovens lendo. Avi-damente lendo os murais.

Como há jovens em Toritama! Diz o visitante.Dalí, foram para o cemitério. Um homem pas-

sou de bicicleta com os olhos marejados:–– Fomos amigos de infância! Diz e sai.

Page 209: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

209

O povo vai se concentrando na rua do cemité-rio. Parece que todo o povo está nas ruas para pres-tar a homenagem a José Manoel. E o céu sempreazul.

–– Como é azul o céu de Toritama! diz o visi-tante.

E agora trazem as bandeiras, a do Brasil, a dePernambuco e a de Toritama. É homenagem. Ho-menagem pungente e o orgulho no rosto de cadapessoa. Aplausos, mais aplausos. E falou um, fala-ram vários. Tortura nunca mais!, todos dizem. EToritama e seu povo se tornaram maior a partirdaquele dia. Muito maior.

3 de agosto de 1995. Jornal Correio da Paraíba,Brasília[AG] - O Governo admitiu ontem ampliar alista dos desaparecidos políticos durante o RegimeMilitar de 136 para 372. [...] Requerimento do depu-tado Domingos Dutra [PT-MA], aprovado ontem,Jobim também terá que explicar os motivos pelosquais a proposta formulada pelo governo não prevêa hipótese do relato das circunstâncias dos desapare-cimentos. ... O presidente da comissão, deputadoNilmário Miranda [PT-MG], enfatizou que, agora queo assunto dos desaparecidos deixou de ser “margi-nal”, várias pessoas têm contado suas histórias e queé importante ouvir todos os depoimentos. ...

Page 210: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 211: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

211

Não meu, não meu é quanto escrevo.

A quem o devo? [Fernando Pessoa, novembro de 1932]

A Geni [Genivalda Melo da Silva] que, mesmo reabrindoferidas, se propôs a contar sua história.e mais a:Abreu, João Batista de, As manobras da informação - Aná-lise da cobertura jornalística da luta armada no Brasil,EdUFF/Mauad, Rio de Janeiro,2000.Almada, Izaías, A metade arrancada de mim, Estação Li-berdade, São Paulo, 1989.Almeida, Anderson da Silva, Todo leme a bombordo, Mari-nheiros e ditadura civil-militar no Brasil: Da Rebelião de1964 à Anistia, Programa de pós-graduação em história,UFF, Niterói, 2010.Assis, Chico, A Trilha do Labirinto, Inojosa, Recife, 1995.Borba, Marco Aurélio, Cabo Anselmo - A luta armada feri-da por dentro, Global, São Paulo, 1981.Cano, Wilson, Soberania e Política Econômica na AméricaLatina, Unicamp e Unesp, São Paulo, 2000.Capitani, Avelino Bidem, A Rebelião dos Marinheiros, Ar-tes e Ofícios, Porto Alegre, 1997.Cavalcanti, Paulo, O caso eu conto, como o caso foi - memó-rias políticas - 2º volume, Guararapes, 1980.Duarte, Antonio, A Luta dos Marinheiros, Inverta, Rio deJaneiro, 2005.Conserva, Paulo, Navegando no exílio, Gráfica NE, JoãoPessoa, 1991.Fon, Antonio Carlos, Tortura - A história da repressão polí-tica no Brasil, Global, São Paulo, 1979.Gabeira, O que é isso companheiro?, Nova Fronteira, Riode Janeiro, 1982.Gaspari, Elio, A Ditadura Envergonhada, Cia das Letras,São Paulo, 2002.

Page 212: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

212

Gaspari, Elio, A Ditadura Escancarada, Cia das Letras, SãoPaulo, 2002.Gorender, Jacob, Combate nas Trevas - A esquerda brasilei-ra: das ilusões perdidas à luta armada, Ática, São Paulo,1987.Koval, Boris, História do Proletariado Brasileiro - 1857 a1967, Alfa-Omega, São Paulo, 1982.Laque, João Roberto, Pedro os os lobos - Os Anos de chum-bo na trajetória de um guerrilheiro urbano, Editorial, SãoPaulo, sem o ano de publicação.Maciel, Vilma Antunres, O capitão Lamarca e a VPR - Re-pressão judicial no Brasil, Alameda, 2006.Mariani, Bethania, O PCB e a imprensa - Os comunistas noimaginário dos jornais 1922-1989, Revan e Unicamp, Cam-pinas, 1988.Mazzeo, Antonio Carlos, Sinfonia inacabada - A política doscomunistas no Brasil, Boitempo e UNESP-Marília, SãoPaulo, 1999.Melo Neto, João Cabral de, Morte e vida Severina e outrospoemas em voz alta, Editôra do Autor, Rio de Janeiro, 1966.Miranda, Nilmário e Tibúrcio, Carlos, dos filhos deste solo -Mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura mili-tar: a responsabilidade do Estado, Fundação Perseu Abramoe Boitempo,São Paulo, 1999.Morel, Edmar, A Revolta da Chibata, Grral, Rio de Janeiro,1979.Mota, Urariano, Soledad no Recife, Boitempo, São Paulo,2009.Paiva, Marcelo Rubens, Não és tu, Brasil - Romance,Mandarim, São Paulo, 1996.Paiva, Mauricio, O sonho exilado, Achiamé, Rio de Janei-ro, 1986.Palmar, Aluízio, Onde foi que vocês enterraram nossos mor-tos?, Travessa, Curitiba, 2006.

Page 213: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

213

Parucker, Paulo Eduardo Castello, Praças em pé de guerra- o movimento político dos subalternos militares no Brasil[1961-1964] e a Revolta dos Sargentos de Brasília, Expres-são, São Paulo, 2009.Paulino, Leopoldo, Tempo de Resistência, COC, sem localde publicação, 2006.Pedroso Júnior, Antonio, Sargento Darcy - Lugar tenentede Lamarca - Uma vida dedicada ao socialismo, Edição doAutor, Bauru, 2003.Politi, Maurice, Resistência atrás das grades, Plena, SãoPaulo, 2009.Reis Filho, Daniel Aarão, E Outros, Versões e Ficções: o se-questro da história, Fundação Perseu Abramo, São Paulo,1997.Ribeiro [Pena Branca], Octávio, Por que eu traí - Confis-sões de Cabo Anselmo, Global, São Paulo, 1984.Rodrigues, Flávio Luis, Vozes do Mar - O movimento dosmarinheiros e o golpe de 64, Cortez, São Paulo, 2004.Rollemberg, Denise, Exílio - entre raízes e radares, Record,Rio de Janeiro, 1999.Silva, Alberto Galdino da, Movimento de Retratação Polí-tica de José Manoel da Silva - Zezinho Vive, Vivo entre nós,Cópia reprográfica - Torirama[PE], 1995.Silva, Antonio Ozai, História das Tendências no Brasil [Ori-gens, cisões e propostas], Proposta Editorial, São Paulo, semo ano de publicação.Silva Filho, Emiliano José e Miranda, Oldack de, Lamarcao capitão da guerrilha, Global, São Paulo, 1980.Syrkis, Alfredo, Os Carbonários - memórias da guerrilhaperdida, Global, São Paulo, 1980.Souza, Percival de, Eu, cabo Anselmo - Depoimento aPercival de Souza, Globo, São Paulo, 1999.Tapajós, Renato, Em Cãmara Lenta - Romance, Alfa-Omega,São Paulo, 1979.

Page 214: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

214

Toledo, Caio Navarro, O governo Goulart e o golpe de 64,Brasiliense, São Paulo, 1988.Ventura, Zuenir, 1968 O ano que não terminou - A aventurade uma geração, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1988.Viegas, Pedro, Trajetória Rebelde, Cortez, SP, 2004.e mais a:Arquidiocese de São Paulo, Um relato para a História -BRASIL: NUNCA MAIS, Vozes, Rio de Janeiro, 1985.Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políti-cos, Instituto de Estudo da Violência do Estado - IEVE -Grupo Tortura Nunca Mais - RJ e PE, Dossiê dos Mortos eDesaparecidos Políticos a Partir de 1964, CEPE, Recife,1995.Documento do Comitê Brasileiro pela Anistia -Secção do Rio Grande do Sul, Dossiê dos Mortos e Desapa-recidos, AL do RS, Porto Alegre, 1984.PCB: vinte anos de políticia - documentos 1958-1979, LECH,São Paulo, 1980.Relato da guerrilha do Araguaia, autor desconhecido, có-pia reprográfica de documento datilografado , datapresumível 1975.Revista Carta Capital, Editora Confiança., SP, 18/3/2009.Revista Carta Capital, Editora Confiança, SP, 17/6/2009.Revista ISTOÉ, Editora Três, São Paulo, 28/3/1984.Revista ISTOÉ, Editora Três, São Paulo, 28/12/2007.Revista Manchete - Edição histórica, Bloch Editores, Riode Janeiro, ano 11 - abril de 1964.Revista O Cruzeiro Extra - Edição histórica da revolução,O Cruzeiro S/A, Rio de Janeiro, 10/4/1964.Revista O Cruzeiro Extra - A crise militar em fotos, O Cru-zeiro S/A, Rio de Janeiro, 30/5/1964.Revista O Cruzeiro, O Cruzeiro S/A, RJ, 10/4/1964.Revista O Cruzeiro. O Cruzeiro S/A, RJ, 08/8/1964.Revista VEJA, Editora Abril, SP, 18/02/1970.Programa Linha Direta Justiça - Rede Globo de Televisão -

Page 215: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

215

Caso Cabo Anselmo - exibido em 05/7/2007.Programa Canal Livre - TV Bandeirantes - Cabo Anselmo -exibido em 30/8/2009.Vídeo. José Manoel, um herói não reconhecido, Trabalho deconclusão do curso de Jornalismo, FAVIP-Faculdade do Valedo Ipojuca [PE], Natália Maciel e Oiarllane Muniz[Direção],2006.Vídeo. Zezinho de Manoel da Santa Vive, Retratação políti-ca de José Manoel da Silva, Divanildo Foto e Vídeo Produ-ções, Toritama[PE], 1995Vídeo. Retrospectiva dos 25 anos da UMNA [Unidade deMobilização Nacional pela Anistia, ex-União dos Militaresnão Anistiados], Rio de Janeiro, 1989.e mais a:Relatório de José Anselmo dos Santos, Declarações presta-das nesta Especializada de Ordem Social, Documento nº 03- 209 - Secretaria de Estado dos Negócios da Segurança Po-lítica, Policia Civil de São Paulo, Departamento Estadualde Ordem Política e Social, Divisão de Ordem Social, Setorde Análise, Operações e Informações, São Paulo, 1971.Relatório de Paquera, referente a: Onofre Pinto, Maria doCarmo Brito e Marcio Moreira Alves, Documento nº 09 - 143,Secretaria de Estado dos Negócios da Segurança Política,Policia Civil de São Paulo, Departamento Estadual de Or-dem Política e Social, Divisão de Ordem Social, Setor deAnálise, Operações e Informações, São Paulo, 1971.Exame em Local de Ocorrência, Portaria 11/73 de 9/1/1973- Granja São Bento, município de Paulista[PE}, Secretariada Segurança Pública - Instituto de Polícia Técnica -Pernambuco, Recife, 09/01/1973.e mais a:Arquivo Edgar Leuenroth - Projeto Brasil Nunca Mais -UNICAMP - http://segall.ifch.unicamp.br/site_ael/Banco de Dados da Folha de São Paulo - Acervo de Jornais:28/3/1964 e 29/12/1964, sítio:bd.folha.iol.co.br

Page 216: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

216

Carta O Berro - [email protected], Fábio A. G. das, As Teses de Jamil e a luta armadados anos 1960-70 no Brasil, Revista Brasileira de História& Ciências Sociais, vol. 1, nº 2, dezembro de 2009.[www.rbhcs.com]Motta, Rodrigo Patto Sá, Modernizando a repressão: aUSAID e a polícia brasileira, no sítio:www.scielo.br/pdf/rbh/v30n59/v30n59a12.pdfwww.armazemmemoria.com.brwww.averdadesufocada.comwww.dhnet.org.brwww.direitoshumanos.gov.brwww.resgatehistorico.com.brwww.ternuma.com.brwww.torturanuncamais-rj.org.brwww.vermelho.org.bre mais a:Antídio Lima, Beto Galdino, Carlos Gregório, Clarissa Ma-ria, Genaldo Gomes, Gustavo Cabral, José Gomes, JoséRodrigues, Luiz Ernesto, Maria do Rosário, Mery Medeirose Ni Guerra[in memorian].

Page 217: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 218: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 219: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

Marinheiro só

Page 220: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 221: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

Claudio Guerra

Marinheiro só

1ª edição

Natal[RN]

Editor: Carlos Gregório B. Guerra-MEI

[O baú de Macau - Editora e Artes]

2011

Page 222: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

Copyrigth @ Claudio Antonio Guerra

CapaO baú de Macau - Editora e Artes

Revisão, Projeto Gráfico e Editoração EletrônicaO baú de Macau - Editora e Artes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação[CIP]

____________________________________________Guerra, ClaudioMarinheiro só/ Claudio Guerra.Natal[RN]/O baú de Macau -Editora e Artes - 2011218 p.ISBN 978-85-64496-01-9

CDD B869 ___________________________________________

Índice para catálogo sistemático:1. Ficção: 2. Literatura brasileira

Natal[RN] - setembro/2011

Editor: Carlos Gregorio B. Guerra-MEI [O baú de Macau - Editora e Artes]

CNPJ: 12.994.099/0001-73Rua Presidente Cunha Barreto, 1417 -[Anexo]

Barro Vermelho59030-540 - Natal [RN]Telefone: [84] 2010-2188

[email protected]

Page 223: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

Para o marinheiro José Manoel,mártir do povo brasileiro

epara todos os que lutam contra o esquecimento,

em especial paraGeni

que não deixou a ditadura brasileiratripudiar sobre o cadáver

do seu companheiro.

Page 224: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 225: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

“Quem é essa mulher,Que canta sempre o mesmo arranjo?Só queria agasalhar meu anjoE deixar seu corpo descansar”.

Angélica, Chico Buarque

Page 226: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 227: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

Índice

1. Um cemitério no Recife 13

2. Os marinheiros do Potengi 23

3. Festa de padroeira 29

4. Um casamento no Alecrim 33

5. Os marinheiros da Guanabara 39

6. O golpe 45

7. O marinheiro João Cândido 51

8. Um dia de fuga no Rio de Janeiro 59

9. Abril de 1964 em Natal 65

10. Itapissuma 71

11. Marinheiro só 81

12. Companheiro Moisés 85

13. Jonatas, que não era mais 89

14. Paratibe, adeus! 97

15. O Comando Gelson Reicher 103

16. O marinheiro Custódio 109

17. Um cachorro chamado Kimble 117

18. Primavera em Santiago 125

19. Um sequestro em Toritama 135

20. Sequestros no Recife 141

Page 228: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

21. É como se mata cachorro 149

22. Um dia de muita chuva no Recife 157

23. Todas as mortes de José Manoel 161

24. Uma sessão de tortura 163

25. Um pé de fruta-pão 173

26. Barro Vermelho 179

27. Terroristas em Natal 183

28. Recordações de Pernambuco 187

29. Incidente em Brasília 191

30. Tecendo a manhã 195

31. Hoje, morreu um cristão 203

Page 229: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

13

1. Um cemitério no Recife

O homem olhou-a com a cara fechada. Comódio. Cara de mau. Tirou os óculos escuros e dissenuma grosseria de meter medo:

–– É o quê, hôme!Aos gritos, chamando a atenção de todo mundo

e avançando sobre ela como se fosse passar por cima.Era mesmo para intimidá-la, humilhá-la.

Ela fitou o homem com espanto. Uma lágrimaescorreu mansinha, imperceptível.

Eu é que não vou dar gosto para esse animal,pensou.

Foi falar e a voz ficou enroscada na garganta.Aí, não conseguiu segurar. Outra lágrima rolou,agora cheia, estourando na face. Baixou a cabeçaenvergonhada. Estava quase vencida. Virou-se equando ia saindo, sentiu a mão grosseira do homemda cara de mau segurando com força o seu braço. Ohomem falou baixinho junto do seu ouvido:

–– Cemitério da Várzea...Em seguida, num grito histérico para que todos

ouvissem:–– Suma daqui e não volte nunca mais!Ela olhou assustada, em pânico, atarantada. O

rosto do homem parecia de cera, sem vincos.Várzea?! Várzea... conhecia tão pouco o Recife. Seriamentira? Teria dito só para se livrar dela que vinhaali quatro, cinco vezes ao dia com a mesma pergunta.

Não teve tempo para dúvidas. O homem da

Page 230: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

14

cara de mau, apertou ainda mais forte o seu braço esussurrou:

–– Se disser uma palavra eu juro que lhe mato...Saiu da sala confusa, meio sem saber o que

fazer. Caminhou com as pernas bambas pelo corredorcomprido, escuro e com um sem fim de portas dosdois lados, vermelhas descoradas, sentindo o cheiroforte de urina e merda. Ouviu gritos de pavor e umavoz mais forte ordenando:

–– Fala, filho da puta!Pela porta entre-aberta ela pode ver um homem

dobrado e pendurado a poucos centímetros do chão,suspenso em duas mesas. Mais tarde ela assistiriaaquele tipo de tortura, o pau-de-arara. Amarravamos punhos da vítima e atravessavam um pau entreos joelhos dobrados e os punhos amarrados ependuravam entre duas mesas. Naquela posição otorturado recebia choques elétricos e era espancadocom um objeto de madeira, a palmatória. Como podehaver tanta maldade? Sentiu um frio intenso em todoo corpo. O policial que a acompanhava sorriu e bateuna porta entreaberta. A porta foi fechadaviolentamente com um grito de protesto:

–– Porra! Eu já não lhe disse prá não deixaressa merda aberta!

Na calçada, um carro com a sirene ligadaestacionou de sopetão e dele desceram dois homensà paisana e esbarraram nela, quase derrubando-a.Entraram arrastando um rapaz de cabelos pretos elongos e olhar de pavor. Aquela fachada suja e

Page 231: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

15

decadente do prédio e aqueles homens lhe causavamasco.

Passavam os ônibus. Passavam muitos carrospara um lado e para outro. A rua estavamovimentada, cheia de gente, bicicletas eautomóveis. Estava espantada. Recife se tornara umacidade grande, assim, de repente. Ficou ali na ruasem saber direito para onde ir e viu quando um corcelverde dobrou numa rua próxima e passou bem pertodela. De longe o carro chamara sua atenção e tevecerteza que era o carro de Zezinho. O homem novolante usava um chapéu de couro, de vaqueiro. Elestambém haviam levado o carro de Zezinho. Só agoraela dava conta disso, envolvida que estava emdescobrir o corpo do marido. E afinal porque aquelehomem de chapéu de vaqueiro estava com o carrode Zezinho?

Surgiu um caminhão grande onde ela achavaque seria o começo da rua. Era o começo e era ofim, porque era de lá que os automóveis surgiam eos que iam, sumiam. Ficou olhando aquilo, os carrossumirem na rua, parecia um buraco engolindo carrose gentes. Não conseguia pensar em outra coisa quenão fosse chegar no cemitério. Ela tinha que ir aocemitério naquela hora imprópria de sol quente domeio dia. Não sentia fome nem nada.

Finalmente apontou um ônibus. Conferiu, nãopassa. Depois de um tempo veio outro. Esse deve ir,pensou. Foi alertada por um rapaz:

–– Moça, este passa!

Page 232: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

16

Deu com a mão e quando o ônibus parou,conferiu. Passa. Este passa na Várzea. Subiu ela emais três passageiros e uma criança chorando. Subiuno ônibus chorando e assim ficou, chorando. Umchoro contínuo, monótono, sentido, de grandemágoa.

Pediu ao motorista que a deixasse no Cemitérioda Várzea. Quem escutou, olhou logo para ela. Umamulher no banco de trás benzeu-se e depois, beijoua mão.

Ficou olhando para nada dentro do ônibus.Parecia em estado de choque. Depois de algumtempo, recobrou o ânimo e ficou preocupada.Perguntou ao motorista se faltava muito. Faltava.Ficou lendo as placas. Encruzilhada, Casa Amarela,Apipucos, Caxangá, Curado, Cidade Universitária,Iputinga e não chegava a Várzea. Finalmente chegou.Não sabia que chegara. Não viu o cemitério. Omotorista foi quem falou:

–– Moça, o cemitério da Várzea é aqui!Um rapazinho de cabelos compridos comentou:–– Aqui não quero vir tão cedo!Quando descia do ônibus, atribulada e insegura,

ainda ouviu o diálogo entre duas mulheres:–– Seu Totonho do Marco Zero foi enterrado

aqui! Você conhecia?–– Não conhecia e agora nem quero conhecer!

Respondeu a outra, benzendo-se.Desceu, ela e mais uma mulher de vestido azul

que sumiu logo em seguida. Ficou procurando o

Page 233: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

17

cemitério. Um homem de chapéu marrom vinhaatravessando a rua. Perguntou.

–– É por ali! Disse o homem solícito, feliz porprestar a informação.

E ela foi por uma ruazinha mais estreita. Foicaminhando e ouvindo uma música de RobertoCarlos que vinha de alguma casa por perto. Era umamúsica nova de Roberto Carlos. Ela ouvia a todahora no rádio.

E Geni acompanhou os versos: “Não tinhamedo de nada/Não tinha medo de escuro/ Não temiatrovoada/ Meus irmãos à minha volta/ E meu paisempre de volta/ Trazia o suor no rosto/ Nenhumdinheiro no bolso/ Mas trazia esperança”. E chorou.Caminhava quase que empurrada por uma força quenão sabia de onde vinha.

“Essas recordações me matam/Essasrecordações me matam”. Era a música quecontinuava ao longe. E recordou os seus irmãos emNatal, todos solidários com o seu sofrimento e coma sua dor, todos sofrendo com ela desde muitotempo, desde que haviam começado as perseguiçõesa José Manoel. E lembrou-se do seu pai, seu queridopai, que assim como ela e os irmãos estava sem saberdireito o que significava tudo aquilo.

As barracas dominavam a rua toda. De umaponta, o colorido das lonas. Ali se vendia de tudo.Muita gente fazendo refeição naquelas barracas, umapor cima das outras. Parecia uma feira. Parou numadelas para confirmar se era ali mesmo. Era.

Page 234: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

18

–– É aqui mesmo! Respondeu um senhor decamisa amarela que bebia alguma coisa, sem dartempo da dona da barraca virar-se para responder.O homem olhou-a de alto a baixo, assim comosurpreso, assim como se perguntasse como é que umacriatura não sabia onde ficava o cemitério da Várzea.Todo o Recife sabia.

Achava aquilo tudo uma loucura. Como vierasem ter certeza: e se aquele brutamontes mentira edissera aquilo só para se livrar dela? E se fosse umaarmadilha? Mas agora ela já estava lá. Agora erasaber a verdade, se o corpo de José Manoel estavaou não naquele cemitério.

Havia pouca gente no cemitério. Perguntoupelo coveiro e alguém lhe indicou. O coveiro era umhomem curvado sobre a sua magreza e com umchapéu enterrado na cabeça. Estava fazendo algumtrabalho e demorou-se muito para virar-se eresponder. Tinha a cara de bom, mas olhavadesconfiado.

–– É sobre um homem que morreu há unsquinze dias! Perguntou vexada.

–– Acidente? O coveiro virou-se indagando comsua voz forte, sonora.

–– Não! Respondeu e completou quase comoum apelo:

–– Ele era meu marido!O coveiro olhou desconfiado e desconversou:–– Aqui nós enterramos essa gente desgarrada

de todo esse Pernambuco! Como é que eu vou saber?

Page 235: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

19

Sei não! Virou-se e voltou ao que estava fazendo.Ela insistiu:–– Ele foi assassinado!Aí, o coveiro demonstrou não só no rosto como

nos gestos que estava preocupado. Olhou meiointerrogativo para ela, parou o trabalho, foi seafastando desconfiado e disse taxativo:

–– Aqui na Várzea não foi não!Ela insistiu mais uma vez:–– Foi ele e mais quatro ou cinco e tinha uma

moça também!Agora os olhos do coveiro piscaram de medo.

Dava para ver que era de medo. Olhou mais umavez para todos os lados. Estava acuado:

–– Olha moça, eu não quero complicação paramim não! Falou finalmente com a voz limpa, sonora.

Ela estava angustiada. Não esperava que tudofosse fácil mesmo. Tinha certeza que sua “via crucis”seria grande, mas estava disposta a enfrentar. Nãosabia de onde tirava as forças. Precisava agora buscara informação. O primeiro impacto já fora quebrado.O coveiro já tivera coragem suficiente para ficar nadefensiva. Era um bom começo.

Abriu o jogo. Foi honesta:–– Veja bem, como cristã eu preciso saber do

corpo do meu marido! Ele precisa ter um túmuloonde eu possa vir rezar pela sua alma! Onde meusfilhos também venham rezar por ele! Eu não sei quaisos erros que ele cometeu para ter sido torturado eassassinado da forma como foi! A minha vida com

Page 236: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

20

ele era o seu trabalho de fabricante e vendedor decalçados, os nossos filhos e a nossa casa! Nada maiseu sei, mas preciso cumprir minha obrigação decristã! Foi tudo dito assim de sopetão, aos trancos.Precisava dizer logo tudo. Tomou folego ecompletou:

–– E mais a mais ele não é um indigente, ummendigo! Ele tem família e não pode ficar assimnuma vala qualquer! Fez um enorme esforço paranão chorar. Conseguiu, mas a palavra indigente quasenão saíra.

O coveiro percebeu o desespero dela:–– Olha, moça, nós vivemos aqui no terror! E

antes fosse o terror das almas penadas! Mas é deoutro terror que eu falo! Desse mesmo que matouseu marido! E eu nunca imaginei que minha profissãopudesse ser tão cheia de perigos! Por favor moça, eunão quero problemas para mim nem para minhafamília! Já sei de companheiros de profissão que estãopassando dificuldades e eu não quero estas confusõespara minha vida não!

Ele vai falar. Ela percebeu que toda aquelajustificativa, que todo aquele medo sincero expostoassim daria forças para ele falar.

–– Eu só preciso saber sim ou não! Você me dizsomente sim ou não! Não precisa dizer mais nada!

Encarou o homem que baixou os olhosmedrosos. Quando levantou a cabeça percebeu oolhar de súplica de Geni:

–– Senhora, disse tirando o chapéu pela

Page 237: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

21

primeira vez, eu tenho família, crianças pequenas eeu não quero me comprometer não! A senhora mesmosabe como é nos dias de hoje! E mais a mais essepovo vive rondando todo dia e toda hora aqui pelocemitério, fazendo perguntas, querendo saber quemesteve aqui, a que horas e que dia! Aí, colocou ochapéu e olhou para ela nos olhos. Era um olhar desofrimento. E disse, quase chorando:

–– Querem relatório detalhado e sempre nosameaçam! Olha, eu estou apavorado com tudo isso!

Geni suspirou aliviada. Sabia que obrutamontes não mentira.

Restava agora o coveiro falar. E ele falou:–– Senhora, o carro da Caridade veio aqui faz

alguns dias e trouxe cinco corpos para serementerrados na área dos indigentes!

Tomou fôlego, olhou para os lados e continuou,agora, mais assustado ainda:

–– Eu nunca procuro saber do que se trata poisaqui na Várzea é sempre bom a gente não saber denada, mas o motorista disse que se tratava deterroristas...

Baixou ainda mais a voz e quase balbuciando,completou:

–– Disse que eram três rapazes e duas moças eque estavam todos estropiados...

1973. Ditadura, ditadura militar, regime militar,regime autoritário, regime autoritário-burocrático.Estado de Segurança Nacional, Estado totalitário.

Page 238: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

22

A república brasileira sangrava em 1973. Quase umadécada de mando dos militares. Em 1964 a burguesiapressentiu perigo e deu o golpe. O presidente eleitodemocraticamente, João Goulart, foi deposto.

No Brasil não existe mais eleição para presidente,nem para governador nem para prefeito de capital.Muitos não se curvaram. José Manoel foi um deles.

Page 239: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

23

2. Os marinheiros do Potengi

Um homem parou junto ao portão da pequenavila de quartinhos encravada no Alecrim e ficououvindo. Devia ser um homem sensível à poesia,porque parou para ouvir. Ele ia apressado, quemsabe para onde àquela hora da madrugada, masparou para ouvir José Manoel de voz bem postada,declamando os versos:

“sei que não vou ter rosas nem flores ninguém cantará hinos de amores, ninguém abraçará o meu caixão!... Afinal... Quem sou eu?! Um peregrino... No além não soará as badaladas de um sino, e ninguém dirá... Hoje, morreu um cristão!”

O homem continuou seu caminho quandoouviu lá de dentro, do corredor estreito e comprido,uma voz mais forte de um homem, que mesmo napenumbra viu tratar-se de um marinheiro:

–– Avie, Zezinho! A Marinha precisa demarinheiros e não de poetas! Não é o que semprediz o capitão?

José Manoel interrompeu a declamação eguardou com cuidado o seu caderno de poesias numaestante improvisada junto à cama e disse sorridentesaindo do quartinho:

–– Hoje eu estou feliz! Ontem recebi uma carta

Page 240: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

24

da minha mãe! E ontem mesmo fiz esta poesia paraela! Gostou da poesia, Zé Raimundo?

–– Hôme! Vamos embora senão chegaremosatrasados! Aperreou-se José Raimundo:

–– Vamos deixar a arte para depois! Agora é aobrigação! Nos apresentar, embarcar e levar a santaaté a Pedra do Rosário! Completou.

E daquelas casinhas baixas, grudadas comosiamesas, ainda no escuro, saíram seis ou setemarinheiros caminhando silenciosamente pelacalçada alta, irregular até saltarem um a um para arua larga de pedras irregulares e escorregadias. Ruaíngreme que ia de ponta a ponta da colina queseparava o Alecrim da Ribeira. Desceriam até o rioe nos trilhos, seguiriam pela estrada de ferro até aBase dos Fuzileiros Navais, nas Quintas.

E dali, do alto da rua onde estavam aquelesmarinheiros naquele momento, descortinava-se o rio,o manguezal, o mar e mais ao longe as dunas querefletiam agora, à primeira claridade, uma tênue linhaluminosa no horizonte.

Um pouco mais tarde o rio iria dourar e depoisficaria azul escuro até à tardinha quando voltava adourar de novo. Era assim que o Potengi semprefora: um rio dourado e azul escuro. Era assim queao menos ele, José Manoel, poeta, prenhe de sonhose vindo do sertão de Pernambuco para sermarinheiro em Natal, via o rio Potengi, o rio grandedo norte.

E como José Manoel, eram todos jovens

Page 241: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

25

irrequietos e cheios de esperanças que fugiam dosconfins do sertão árido e pobre, da caatinga tiranae começavam a descobrir o mundo: Estocolmo,Amsterdã, Nova Iorque. O mundo para eles já eramuito mais que Natal, João Pessoa e Recife.

Vieram atraídos pela propaganda que lhesprometia muito e cumpria pouco. Um dia, seriamoficiais: não seriam. Naquela época, o almirantadobuscava jovens que não contestassem a quaseescravidão dos navios.

A revolta da Chibata e João Cândido aindaestava muito presente. E eles, jovens sertanejos,estavam lá naquele grande depósito de mão de obra,que se tornara o sertão nordestino, mantidos comas sobras das verbas das campanhas contra a seca,esperando uma oportunidade para sair daquelemundo opressivo do mando dos coronéis, dosempregos de favor, do voto comprado e exigido, dosfavores cobrados nas eleições, da falta de perspectiva,da miséria e da humilhação.

Mas estávamos nos sessenta e, no Brasil,falavam-se em mudanças. Havia esperança.

Conversavam pouco, mas tinham muito parafalar. Mas àquela hora, naquele dia estavam todoscom o pensamento voltado para a festa da padroeira.Não a sagrada, pois deles, poucos tinham fésuficiente para fazer aquilo tudo sem reclamar:acordar mais cedo que o costume e escoltar a santario acima desde o cais da Ribeira até o cais da Pedrado Rosário. Assistir a interminável pregação de Dom

Page 242: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

26

Marcolino e sair dali com o rosto queimado pelo sole com a certeza de que Nossa Senhora daApresentação era a maioral da santas e com ela seconseguia tudo, ou quase tudo.

Na verdade, o que esses jovens marinheirosaguardavam mesmo e com ansiedade era a festaprofana a noite na Praça André de Albuquerque emfrente da catedral. A festa das quermesses, dasbarraquinhas de comidas, das barraquinhas dasargolas, dos tiros e das prendas. Das mocinhas bemvestidas e bem perfumadas, moças de família, moçaspara casar e que vinham do Alecrim, do Baldo, dacidade Alta, das Rocas e até do distante bairro dasQuintas e que também aguardavam ansiosas a festada padroeira.

Caminhavam calados quando viram surgir umautomóvel em grande velocidade lá no começo darua. Logo em seguida ouviram uma freada brusca eo barulho dos pneus arrastando no calçamento poralguns segundos e depois, o baque surdo do choquecom alguma coisa. Ouviram gritos de imprecações eem seguida risadas altas, debochadas.

Viram quando um rapaz e uma moça desceramdo automóvel e foram olhar a frente do carro.Avaliavam o estrago. O rapaz gritou um palavrão ea moça deu uma risada escandalosa. Dentro doautomóvel riram e gritaram:

–– Vamos embora! E logo!O rapaz e a moça voltaram para o carro que

arrancou em grande velocidade. Desceram a rua na

Page 243: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

27

direção dos marinheiros que ainda estavam no meioda rua, embasbacados com todo aquele barulhoàquela hora da madrugada.

Edson puxou José Manoel pelo braço emdireção à calçada. O veículo vinha em disparada ediminuiu a velocidade passando muito próximo deles.Era um Chevrolet Impala vermelho, novinho,novinho. O cheiro de borracha queimada e gasolinaacompanhavam o veículo que levava moças e rapazesexcitados e sorridentes.

Passaram gritando insultos contra osmarinheiros. Gritavam e sorriam. Vinham de algumafesta e pareciam embriagados.

–– Serão as mulheres da Maria Boa? Perguntouum dos marinheiros.

–– Não! De maneira nenhuma. Elas são maishonestas! Respondeu outro.

Um marinheiro fez menção de apanhar umapedra para atirar contra o veículo. Os outrosrecriminaram e José Raimundo disse:

–– Não! Não vale a pena! Amanhã vão dizerque a Marinha do Brasil cometeu um atentadocontra jovens indefesos do Tirol...

–– Deixa prá lá! Completou.

3 de outubro de 1960. Varre varre vassourinha...Jânio Quadros venceu a eleição para presidenteafirmando que é um homem acima dos Partidos eque vai acabar com a corrupção. Uma parte daburguesia e dos militares não gostavam do Jânio. Eles

Page 244: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

28

pensavam em resolver a sucessão de Juscelino de outromodo. Há muitos anos que queriam resolver de outromodo. Diziam que Jânio bebia muito e que tambémera excêntrico. Afirmavam que ele ia criar problemas.

Os americanos também não gostavam, diziamque Jânio não era confiável. Nos Estados Unidos daAmérica, Lincoln Gordon estava sendo preparado paraser embaixador no Brasil.

Page 245: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

29

3. Festa de padroeira

O menino ergueu o rosto assustado,envergonhado, com ar de choro. Estava estendidona calçada, junto ao meio fio e todos olhavam paraele. Era um menino franzino e devia ter uns noveanos. Vestia roupas surradas, grandes para ele ecalçava uns Sete Vidas azul, de solado muito gasto,bem lisinho. As pipocas estavam espalhadas ao seuredor, por toda a calçada. A mulher com a qualesbarrara provocando-lhe a queda, não tinhacomiseração e gritava histérica, olhando se mancharao seu vestido.

Não fosse este fato, quase normal nas festasdas padroeiras, o grupo de marinheiros, talvez dezao todo não teriam visto as duas mocinhas quepassavam naquela hora e que pararam para ver omenino no chão e a mulher histérica que gritava.

E naquele momento em que as duas mocinhaspararam no meio da rua para ver o incidente, doismarinheiros vieram em socorro do menino,levantaram-no e compraram outro saquinho depipocas. O menino mal agradeceu, saiuenvergonhado, olhando para os lados e desapareceuna multidão.

E a conversa dos marinheiros, recostados nabarraca da quermesse, passou imediatamente daqueda do menino para a mocinha de vestido debolinhas amarelas, que agora, já não estava mais

Page 246: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

30

ali. Já ia, com sua amiga, dobrando a rua na esquinada catedral, em direção à Avenida Rio Branco embusca do ônibus que as levariam para casa.

Jovens do interior, tímidos, mas descobrindoum mundo que nunca imaginaram existir e cheiosde sonhos e esperanças, experimentavam a sensaçãode algum reconhecimento social naquela festasagrada e profana, afinal, eram da Marinha do Brasil.Na Marinha, uma contradição tremenda e que pareciaestimulada pelos altos escalões. O marinheiro deveriaficar no seu lugar. E seu lugar era embaixo. Sesubisse, deveria subir com ele também, toda a pompae toda glória do almirantado. Afinal, não se buscavaoficiais nos confins do sertão brasileiro. Os oficiaistinham origem. Um almirante sempre gostava defrisar isso.

–– Dois... três... quatro...–– Ah! Geni! Para com isso que é feio! Reclamou

a prima.Elas estavam agora na praça Padre João Maria

e Geni dava as passadas contando alto de acordocom as badaladas do relógio da catedral, sorrindofeliz, numa brincadeira inocente e ainda com aquelegostinho da lembrança de ter sido o centro daatenção dos marinheiros. Não só ela, mas a primatambém percebera os olhares compridos dosmarinheiros.

O relógio parou na décima badalada e Geniolhou preocupada para a prima:

–– Nossa! Dez horas e a gente ainda aqui e

Page 247: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

31

mamãe nem sabe que eu vim nessa festa! Vamosembora depressa!

Desceram até o Cine Rex e ficaram olhando oscartazes dos filmes, mas nem esperaram muito.Apontou na avenida buzinando e com um roncochoroso, vindo lá da Ribeira, o Bossa Nova daRocas/Quintas, que parecia trazer o povo todinhodas Rocas.

No Alecrim, desceu quase todo mundo noQuitandinha. Elas também desceram e caminharamna direção da Avenida Dez. Àquela hora o Alecrimera sempre bem movimentado do povo que voltavapara casa. Não andaram muito e foram abordadaspor um marinheiro de olhos grandes. Ele foi maisque direto:

–– Eu vim porque gostei de você! Disse paraGeni com um tom de voz quase autoritário.

A prima não esperou:–– Eu vou indo! Disse, já saindo.–– Não! E mamãe vai dizer o quê se ver você

chegar sozinha?A prima contemporizou:–– Está bem! Eu espero um pouco, mas só um

pouco, viu?–– A gente viu quando você subiu no ônibus,

mas pensei que você também morava aqui noAlecrim! Disse Geni, agora mais calma.

José Manoel sorriu e cravou os grandes olhosem Geni:

–– É, eu moro! Quase todo mundo da Marinha

Page 248: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

32

mora no Alecrim! Os comandantes não, é claro! Eentão?

–– Não sei... mamãe não gosta muito demarinheiros não! Aliás , ela não gosta de homem defarda porque vocês vivem brigando aqui peloAlecrim! Ela vai reclamar! Eu sei que ela vaireclamar!

José Manoel nem esperou que ela terminasse:–– Amanhã eu venho aqui e falo com sua mãe,

com o seu pai e com todo mundo! E depois,apertando sua mão, disse sorrindo:

–– Palavra de marinheiro!Foi um sorriso sincero. Geni sentiu que era

sincero.

1 de janeiro de 1961. Jânio Quadros assumiu apresidencia. Condecorou Chê Guevara e os militaresficaram possessos, não todos; a burguesia ficou decabelo em pé. Os americanos também não gostarame aprovaram mais verbas para a Escola das Américas.Jânio vai renunciar. Está sendo pressionado pararenunciar. 25 de agosto é o dia do Soldado, foi o diaque Jânio renunciou em 1961. Agora, a burguesia, osmilitares e os americanos não querem que o viceassuma. O vice é João Goulart e foi eleitodemocraticamente pelo voto livre do povo brasileiro.Preferem outra solução. Há muitos anos que aburguesia brasileira, uma parcela dos militares e osamericanos querem outra solução.

Page 249: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

33

4. Um casamento no Alecrim

–– E agora que eu não acho a alva!?–– Vai sem alva mesmo! Respondeu o sacristão.–– Bote este sobrepeliz! Completou grosseiro.–– É grande... veja se tem um menor! Pediu

quase chorando.–– Tem não! Se vire com este mesmo! Foi a

resposta seca e mal educada que ouviu.–– E avie que padre João já vai entrar! O

sacristão falou com a maior autoridade do mundo.E o coroinha, menino magrinho e pequenino, vestidocom um sobrepeliz sobrando por todo lado,arrastando pelo chão, aperreou-se quando viu quepadre João vinha do fundo da sacristia e se dirigia apassos rápidos para a celebração.

–– Venha até aqui! Disse rispidamente osacristão.

–– Mas o padre João já vai entrando!–– Preste atenção! “Et introibo ad altare Dei!”

disse autoritário o sacristão, esperando a resposta.–– “Ad Deum qui laetificat juventutem meam!”

respondeu quase sem fôlego o coroinha correndopara entrar no altar junto com o padre.

Era a tarde de 11 de novembro de 1962 e tinhapouca gente na igreja. Todos ficaram de pé à entradado sacerdote e do coroinha.

Os noivos já aguardavam no altar. A igreja ficavaespremida entre duas ruas que ligavam os bairros

Page 250: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

34

com a estação rodoviária, o porto e a ferrovia. Dequando em quando o barulho de um veículo invadiaa igreja.

–– É Fenemê! Disse o menino de camisa amarela.–– É não! É um Studebeique! Respondeu o

outro.–– Quer apostar? Completou, se levantando e

encarando o menino de camisa amarela.–– Aposto!Sentados na escadaria da igreja, haviam fugido

da cerimônia de casamento e vadiavam ali foraquando ouviram o ronco surdo de um caminhãoque vinha lá da Ribeira e passava pelo Baldo emdireção ao Alecrim.

Padre João também ouviu aquele somarrastado ao longe e preocupou-se. Quando chegarna pracinha ninguém ouve mais nada aqui dentro,pensou. E apressou a cerimônia.

Nem esperou a noiva terminar o, “assim comomanda a Santa Madre Igreja Católica ApostólicaRomana”, e acrescentou:

–– “Ego conjúgo vos in matrimónio. In nomineePatris, et Fiii, et Spiritus Sancti!”

–– Amem! Todos responderam.No altar, ela e José Manoel pareciam duas

crianças. José Manoel num terno escuro e um olharde esperança, de uma longa vida pela frente naMarinha do Brasil. Geni num vestido branco simplese belo, véu e grinalda, olhava a expressão calma dopai que contrastava com o ar preocupado de sua

Page 251: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

35

mãe. O terno branco de linho, os óculos largos e acalvície bem acentuada dava um ar de segurança aoseu pai. Aquilo lhe confortava.

E se lembrava das conversas com sua mãe. Dasdemoradas conversas enquanto lavavam a louça earrumavam a cozinha. A mãe ansiosa lhe enchendode perguntas, os porquês marinheiros não podiamcasar, nem votar e nem andar à paisana. E se aquilotinha futuro para ela, casar assim e ir para longe.

E ela insistindo que tudo iria dar certo, que secasariam na igreja e depois, no Rio de Janeiro, secasariam no civil e que Zezinho na última carta lhecontara sobre a associação dos marinheiros queestava ficando cada vez mais forte e que logo logoiriam conseguir que os marinheiros pudessem casarcomo todo mundo, pudessem votar e até eleger ummarinheiro deputado e que o soldo iria quase dobrare eles marinheiros passariam a ser respeitados.

A angústia da mãe era grande.E dava conselhos: Olha, mantenha o chão da

sua casa sempre encerado, e as panelas bem areadas,viu! Seja uma boa dona de casa e não dê motivospara ele reclamar de você!

E todos estes pensamentos vinham agora paraGeni, ali no altar, prestes a mudar radicalmente suavida.

Em seguida padre João aspergiu a água bentanas mãos dos esposos dizendo:

–– “Per áquae benedictae aspersiónem det vobisomnipotens Deus suam grátiam et benedictiónem!”

Page 252: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

36

E passou logo para a benção das alianças.–– “Adjuntórium nostrum in nominee Dómini!”O barulho do caminhão já começava a

atrapalhar a cerimônia.–– “Qui facit caelum et terram!” Respondeu o

coroinha com sua voz sumida, presa na garganta.–– “Domine, exáudi oratiónem meam!”

Novamente o sacerdote elevou a voz para ser ouvido.–– “Et clamor meus ad te véniat!”–– “Dóminus Vobiscum!” Padre João agora

gritava.–– “Et cum spiritu tuo!” Desta vez a voz do

coroinha saiu límpida e seus olhos brilharam pelaprimeira vez em toda a cerimônia.

Tudo foi simples e breve. Demorada apenas paraos noivos sempre ansiosos. Interminável mesmo parao pequeno coroinha, que pela primeira vezparticipava de uma cerimônia como auxiliar do padreJoão.

Só Geni, que mesmo preocupada com ocasamento e a mudança para o Rio de Janeiro nodia seguinte, percebera o desconforto doatrapalhado coroinha, com um cíngulo grosso, acimada barriga, prendendo as vestimentas que nãohaviam sido feitas para ele.

Quando padre João pronunciou:–– “Confirma hoc, Deus, quod operátus es in

nobis!”O coroinha mais que depressa respondeu:–– “A templo sancto tuo, quod est in

Page 253: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

37

Jerusalem!” e sentiu uma alegria como nunca sentiraem toda a sua vida. Estava radiante agora. Passariaa vida toda ajudando o padre João em batizados,casamentos e missas.

Por fim, José Manoel cumprira o que prometerahá um ano, no dia que conheceu Geni. No segundoencontro eles conversavam numa esquina do Alecrim,quando, um dos irmãos de Geni passou e viu os doisnamorando:

–– Vou contar para a mamãe que você está comum marinheiro e ela não vai gostar nada disso! Faloue saiu correndo.

Geni aperreou-se:–– É melhor você ir embora e gente se fala

depois! Disse assustada para um seguro José Manoelna sua inseparável farda de marinheiro.

José Manoel não teve dúvidas. Pegou Geni pelamão e foi lá na Avenida Dez, na Vila dos Paianazesonde ela morava e falou com o pai, a mãe, os irmãose até com os vizinhos.

Os dois meses de namoro e a transferência deJosé Manoel para o Rio de Janeiro foi visto comum certo alívio por sua mãe. Agora eles seesquecem! Disse sem muita esperança para umavizinha.

3 de outubro de 1960. João Goulart foi eleito vice-presidente. Jânio, o presidente renunciou, o vice deveassumir. Na democracia é assim. No Brasil dossessenta, não! A burguesia não quer que João Goulart

Page 254: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

38

assuma. Ele fala muito em reformas de base,reclamam. Ameaçam com uma parte dos militares.Parece aquela atitude de atiçar o cachorro. Ogoverno agora é parlamentarista, deu tempo doCongresso Nacional mudar as regras. Jango aceitouo jogo, mas, em 1963 num plebiscito, o povo quisJango como presidente, com todos os poderes. Osmilitares, uma parte, não gostaram, nem a burguesia.Os americanos dão uma no cravo e outra na ferradura.O cravo é a Aliança para o Progresso, a ferradura é aEscola das Américas.

Page 255: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

39

5. Os marinheiros da Guanabara

–– Zeppelim! Era Olavo que falava. Isso mes-mo, Zeppelin! Agora me lembrei! Nasci em trinta ecinco e meu pai dizia que neste ano só duas coisasforam importantes para ele, além do meu nascimen-to, é claro! Ter visto o Zeppelin e os comunistastomarem o poder na cidade do Natal. Quando elecontava sobre o Zeppelin, parecia que passava umfilme. Eu gostava de vê-lo contar sobre o Zeppelin.

Reunidos na embarcação quase todas as noi-tes, olhavam o mar e o cais vazio até a hora em queexaustos, desciam para os beliches do alojamentoapertado que fedia a óleo. Dias felizes, esperanço-sos, ou então, dias tristes, cabisbaixos, enfezados.

Olavo, o mais velho do grupo, continuava nar-rando:

–– Estava meu pai e seus companheiros de tra-balho da estrada de ferro quando um deles correu eapontou para o céu. Era um charutão enorme quevinha na direção deles. Parecia uma coisa do outromundo. Correram todos para se esconder na mata,mas o capataz falou que era um balão dirigível quevinha da Alemanha e que ninguém precisava termedo não. Não se convenceram muito, mas ficaramtodos olhando. Meu pai disse que ficou abobalhado,olhando aquela coisa enorme, prateada, reluzente,linda, linda e que não fazia nenhum barulho. Pas-sou bem baixinho e seguiu rumo ao sul. O capataz

Page 256: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

40

anunciou: Vai para o Rio e São Paulo. E eles fica-ram olhando até o balão sumir no horizonte. Nin-guém mais trabalhou nesse dia. A imagem do balãoera muito forte e à noite, quando se reuniram noacampamento depois do jantar, só falaram noZeppelin, uns dizendo que as pessoas do balão ti-nham acenado para eles, outros que chegaram a veruma moça bonita de cabelos compridos e houve atéquem viu quando jogaram um lenço branco quefoi cair na direção do mar. Meu pai disse que so-nhou a noite toda com o Zeppelin e que passaramvárias semanas falando no Zeppelin.

Olavo interrompeu a narrativa e ficou pensati-vo, talvez com a imagem do Zeppelin, tão plásticacomo seu pai contava. Depois falou:

–– Meu pai disse que a vontade dele e dos com-panheiros depois daquele dia era abandonar tudo eir para o Rio ou São Paulo!

Eram lembranças, belas lembranças. Cesário,potiguar das caatingas, do Cabugi pedregoso, com-pletou:

–– Eu até tenho saudades do tempo que nosreuníamos na pracinha da igreja que ficava na fren-te da estação do trem. Diziam que o chefe da esta-ção era comunista. Eu nunca fiquei sabendo se eleera ou não comunista, mas tinha medo dele porqueo meu avô dizia que os comunistas comiamcriancinhas. Aliás, eu tinha um medo danado doscomunistas, dos índios e dos ciganos. A história erabonita e todos prestavam atenção:

Page 257: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

41

–– Éramos um grupo grande de rapazes. Decinco até dez, conforme a noite . Ficávamos con-versando na pracinha até o trem passar. O trem eraum misto com vagões de carga e de passageiros.Passava entre uma e duas horas da manhã. E nóssó íamos para casa depois do terceiro apito, quan-do ele ia saindo da cidade.

Cesário sabia narrar e isso encantava a todos:–– Naquele tempo a gente já achava que as

coisas tinham que mudar no Brasil. E todos fazía-mos planos para sair daquela cidadezinha e ir paraRecife, Rio ou São Paulo. Eu me lembro que todasas noites, adormecia sonhando com o Rio de Janei-ro: apartamentos, belas praias e eu num rabo depeixe desfilando com mulheres bonitas, daquelas dacapa do Cruzeiro.

–– E sobre os comunistas que tomaram Natal,o que seu pai dizia, Olavo? Perguntou um dos ma-rinheiros, assim que Cesário terminou.

Olavo retomou:–– Meu pai dizia que comemoraram muito no

dia que souberam, porque os comunistas eram ami-gos dos cassacos e estavam sempre punindo por eles.Estavam muito afastados da cidade num trecho daferrovia que estava afundando. Só depois, muito de-pois que ficou sabendo que no dia que estavamcomemorando a vitória dos comunistas em Natal,eles já tinham sido expulsos do poder e estavamsendo presos e torturados.

Todos se calaram pensativos por um bom tem-

Page 258: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

42

po, até que um deles falou:–– Meu tio disse que os comunistas lutam pela

reforma agrária, para que todo mundo tenha o seupedacinho de terra!

–– É verdade!Isso é verdade! Confirmou outrose levantando para dar mais ênfase à sua fala. Econtinuou:

–– Lá em Pernambuco faz bastante tempo queo povo luta para ter um pedaço de terra. Agora asLigas Camponesas do Julião está conseguindo mui-ta coisa!

Outro marinheiro interviu. Era paraibano e ad-mirador de Miguel Arraes:

–– Não é só o Julião não! A sorte de todo mun-do lá é o Arraes, se não fosse ele os usineiros játinham mandado matar muita gente!

Inácio, um cearence caladão, cismado, final-mente interviu, feliz por dizer uma coisa que só elesabia:

–– Lá no Cariri todo mundo diz que Julião vaisempre em Cuba e é grande amigo de Fidel Castro!E completou um tanto eufórico:

–– Em Cuba é o povo que está mandando.Novamente Olavo falou, agora com autorida-

de:–– É a organização. Sem organização não se

consegue nada. Por isso a nossa associação tem queser forte e vai ser! Temos que pensar no Brasil! Senão fosse a luta pela Petrobrás, o petróleo não seriamais nosso e sim dos americanos que pensam que

Page 259: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

43

são os donos do mundo!Pedro era gaúcho, saído das serras e criado

naquele espírito da nova pátria que alemães e itali-anos abraçaram quando migraram para o Brasil:

–– Eles só pensam isso porque aqui no Brasiltem muita gente que acha que eles são tudo. E sebaixa até o chão quando vê um estrangeiro! Porisso que admiro o Brizola. Com ele não tem essenegócio não! Ele sim faz a gente ter orgulho de serbrasileiro!

Olavo lembrou da Tribuna do Mar:–– Amanhã sai o jornal da Associação! Eu sei

que a almirantada não vai gostar!–– Precisamos estudar! Agora quem falava era

João Neto, sempre tímido, a voz contida, o maisnovo da turma. E continuou:

–– Aqui, eu vejo que a maioria gosta de ler!Calou-se e parece ter viajado no tempo. Depois re-tomou:

–– A época que mais lí era quando ajudavaminha mãe encerar a casa. A gente encerava e de-pois eu ia espalhando o jornal pela sala e o corre-dor até chegar na cozinha. Eu colocava uma folhade jornal no assoalho e aí via uma notícia que meinteressava e me abaixava e ficava lendo. Minha mãenão se importava, pois se eu estava lendo estavaaprendendo alguma coisa. Eu demorava muitas ho-ras nessa leitura. Aprendi muito no Diário dePernambuco e no Jornal do Commércio.

Olavo empolgou-se e completou, agora já era

Page 260: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

44

um pequeno discurso:–– A Marinha precisa de pessoas com boa for-

mação, só assim seremos respeitados pela socieda-de. Pois bem, e agora estamos aqui e queremos ca-sar, votar, eleger-se, estudar, andar à paisana. E nos-sos pais querem terra para trabalhar e nossos ir-mãos, escolas e empregos! E tudo está encaminhan-do para isso. As reformas que o presidente Jangoquer fazer é para isso mesmo. Emprego e salário,terras para os camponeses. Haveria mundo melhorque esse, olhando este mar e esta cidade?

Nessa noite todos desceram para os belichesfelizes, esperançosos.

13 de março de 1964. No Rio, no Comício dasReformas que reuniu cerca de 150 mil pessoas, JoãoGoulart anunciou reformas: agrária, eleitoral, uni-versitária, tributária, a revisão da Constituição, o di-reito de voto do analfabeto, a nacionalização das re-finarias, legislação contra aluguéis extorsivos, desa-propriação das terras às margens de rodovias, ferro-vias e açudes públicos. A população do Brasil era de80 milhões de pessoas e cerca de 60 milhões apoia-vam o presidente. Mais uma vez a burguesia, partedos militares e os americanos não gostaram. Diziamque as reformas eram comunistas demais. Os go-vernadores do Rio, São Paulo e Minas também nãogostaram. Prometeram dar o troco.

Page 261: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

45

6. O golpe

–– E você ainda não ouviu não? Ligue o rádioque está dando a notícia toda hora. É no ReporterEsso! Estão dizendo que vão prender todos osmarinheiros! Era a vizinha da casa da frente, aindamuito cedo, que trazia a notícia. Na quinta feira,esta mesma vizinha já lhe falara sobre o noticiário.

Os marinheiros seriam presos. Foi isso que Geniouviu no plantão da rádio Mayrink Veiga naquelasexta feira santa, 27 de março de 1964.

Estava no quarto e dava a mamadeira paraseu filhinho quando ouviu a chamada da ediçãoextraordinária. O rádio ficava na cozinha. Demorou-se um pouco, mas ainda pode ouvir alguma coisasobre os marinheiros. Estava preocupada, poisZezinho não chegava e nem dava notícia. Ficou alijunto do rádio esperando novas notícias.

Zezinho saíra na quarta feira à tarde e elapassara a quinta-feira sem notícia nenhuma, aflita,cuidando do bebê que apresentava sintomas de gripe.

Na quinta feira, pela manhã, a vizinha dafrente veio lhe dizer que o Reporter Esso anunciavaalgum problema com os marinheiros. Geni não deramuita importância, pois sabia que era apenas umafesta da Associação dos Marinheiros no Sindicatodos Metalúrgicos.

Aumentou o volume do rádio para se sobreporao choro do bebê que reclamava a mamadeira. Se

Page 262: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

46

era edição extraordinária devia ser alguma coisaimportante. Ficou sabendo que iam prender osmarinheiros que estavam reunidos no Sindicato dosMetalúrgicos. O prédio estava cercado pelo exércitoe o presidente da República João Goulart haviasubstituído o ministro da Marinha que pedirademissão. O problema parecia grave.

Não conhecia muito bem o Rio de Janeiro. Eagora essa notícia da prisão dos marinheiros a deixoumuito preocupada. Iria até o Sindicato dosMetalúrgicos, nem que fosse a última coisa que fariana sua vida. Morava longe, na Baixada, em Mesquita.A cidade quase deserta em razão do feriado. Tomouum ônibus e foi se informando pelo caminho. Ocobrador sabia dos acontecimentos no Sindicato dosMetalúrgicos. Um primo dele, marinheiro, tambémestava lá. Ele falou muito preocupado para Geni:

–– Moça é coisa muita séria!Ela queria ter ido àquela festa, afinal fazia

muito tempo que não ia numa festa. E ainda maisque Zezinho e o Bicho passaram mais de um mêsconversando sobre a festa de aniversário daassociação no dia 25 de março. O Bicho, era comoZezinho chamava o sargento José Raimundo, seuamigo conterrâneo que conhecera na Marinha emNatal.E em Natal também já haviam tentadoorganizar uma associação.

Mas enfim, não podia ir mesmo. Seu primeirofilho só tinha cinco meses e não poderia ficar comoutra pessoa. Conformou-se, apesar de sentir uma

Page 263: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

47

vontade enorme quando viu Zezinho sair de casadizendo que não o esperasse pois a festa terminariatarde da noite e ele só voltaria no outro dia.

Agora, alí estava naquele ônibus sem saberainda como chegaria até o Sindicato dosMetalúrgicos. Quando se levantou para descer doônibus, um senhor de cabelos grisalhos e barba porfazer, alertou-a:

–– Moça, se eu fosse você não iria lá noSindicato não! Nós estamos num pé de guerra. Voltepara sua casa!

Ela não disse nada. Baixou a cabeçapreocupada, mas iria, mesmo com todo o risco.

Desceu perto de um posto de gasolina e foicaminhando conforme lhe indicaram. Quando entrouna rua Ana Neri, ao longe viu a rua cheia de gente,tomada por caminhões, tanques do exército esoldados armados, que cercavam o prédio doSindicato dos Metalúrgicos. Ninguém entrava ou saíado prédio. Era a determinação do comandante daoperação.

Medo era uma coisa que ela quase nunca sentia,mas vendo aquele aparato militar, estremeceu. Oque seria tudo aquilo logo numa simples festa deaniversário da Associação dos Marinheiros?

Passou pelos soldados como se nada existisse.Eles formavam um cordão, isolando o prédio epreparados para invadí-lo. Ouviu um grito:

–– Alto!Nem percebeu que era com ela. Continuou

Page 264: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

48

andando, avançando para o prédio do sindicato. Oprédio era grande, muito grande e cheio de janelas ebandeiras hasteadas. As janelas estavam todasocupadas pelos marinheiros que começaram a acenarpara ela, dando vivas e atirando os bonés para a ruae gritando palavras de ordem. Ela olhou para cima,mas não entendeu nada daquilo. Queria apenas falarcom o seu marido, saber o que estava acontecendo equando ele voltaria para casa.

O clima era de muita excitação.O sargento José Raimundo, postado numa das

janelas e também saudando a moça corajosa queignorara a ordem dos soldados, rompera a barreirae avançava destemida para o sindicato, gritou paraum amigo ao seu lado:

–– Nossa! É Geni, a mulher de José Manoel!Saiu dali e foi à procura do amigo no interior

do prédio. Caminhou por entre as centenas demarinheiros que descansavam estirados no chão. Emmeio a um grupo que vinha para as janelas,encontrou José Manoel curioso para saber o porquêdaquelas manifestações ruidosas.

Quando Geni se aproximou da grade de ferroque dava acesso ao sindicato, foi abordada poralguém que segurou bem firme o seu braço:

–– Onde vai criança?Virou-se e viu que era um militar do exército.

Um militar graduado. Devia ser o comandante.Das janelas, os marinheiros protestaram,

iniciando um coro:

Page 265: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

49

–– Solta! solta! solta! ...Geni falou com expontaneidade, explicando-

se ao oficial:–– Vim porque ouvi no rádio que vão prender

os marinheiros! Vim para falar com meu marido queé cabo da marinha e também está aí nessa festa!

O coronel não duvidou da sua justificativa eapesar de todo aquele clima de nervosismo ebeligerancia, foi educado e paciente. Nemconsiderou o ato de Geni como uma provocação aobatalhão que estava ali com a missão de prender osmarinheiros e levá-los para o Quartel de Guardas.

–– Vá para casa que seu marido mais tardeestará lá!

–– Mas eu quero falar com ele! Eu quero vê-lo!

José Manoel já vinha descendo do prédio e oscaminhões do exército já começavam estacionar nafrente do sindicato.

Enfim, o governo Goulart havia tomado umadecisão. Os marinheiros seriam levados ao Quartelde Guardas e depois liberados. Seriam anistiadoscontra o desejo da burguesia e dos militares golpistasque apostavam num banho de sangue alí mesmo noprédio do Sindicato dos Metalúrgicos. O golpe,preparado há muitos anos, agora estava próximo.As lideranças democráticas sentiam o cheiro do golpeno ar.

O encontro de Geni e José Manoel foi rápidoe tenso. Abraçaram-se e seguraram o choro. Ela viu

Page 266: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

50

que Zezinho estava apreensivo. Ele quis logo saberdo seu filhinho e procurou tranquilizar Geni:

–– Aqui, apesar de tudo , está tranquilo. Nãofaltou nada, pois o povo foi solidário e mandou águae comida. Só estamos cansados. Já tenho notíciaque vão nos liberar mais tarde. Vá para casa e meespere, se não for hoje, amanhã no almoço estareilá.

O comandante da operação deu ordem paraos marinheiros embarcarem e José Manoel seguiucom seus companheiros para o caminhão. Geni ficoualí plantada, um nó na garganta e sem entender comouma festa poderia terminar daquela forma.

Ela voltou para Mesquita mais preocupadado que viera. Pensava agora no seu filhinho quedeixara com uma vizinha que tinha poucas relações,mas que fora solidária, aceitando ficar com a criançae as duas mamadeiras que preparara.

19 de março de 1964. Em São Paulo foirealizada a Marcha da Família com Deus pelaLiberdade. Organizada pelo IPES [entidade mantidapelos empresários], União Cívica Feminina, parte doclero e das forças armadas, reuniu cerca de 500 milpessoas. O discurso do deputado Auro de MouraAndrade, presidente do Congresso Nacional, foi a senhapara o comando militar deflagrar o golpe. A Repúblicavai sangrar.

Page 267: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

51

7. O marinheiro João Cândido

Os acontecimentos dos dias 25, 26 e 27 demarço de 1964 no Sindicato dos Metalúrgicos foramtalvez os mais intensos nas vidas daquelas pessoasque participavam da assembléia dos marinheiros.

Durante muito tempo o cabo marinheiro JoséManoel iria contar o episódio dos discursos, do hinonacional e dos fuzileiros navais abandonando asarmas e se unindo a eles entre choros convulsivos dealegria, medo e incerteza. Tudo foi muito intenso.

Não se tratava apenas de uma reunião festivapara comemorar o segundo aniversário da Associaçãodos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil. Osmarinheiros lutavam por direitos bem definidos: odireito de votar e ser votado; o direito de casar, odireito de vestir à paisana, o direito de estudar, ofim da humilhação a que eram submetidos com oLivro de Castigo, que substituiu a chibata nos navios,dentre outros direitos que não podiam exercer emrazão da proibição formal ou das dificuldades que aprópria Marinha impunha. Enfim, lutavam pormelhores condições de vida, lutavam por dignidade.

A festa de aniversário da Associação era umato político bem organizado e aguardado comansiedade pelos marinheiros.

Os marinheiros estavam embalados pelaconjuntura favorável da grande mobilização popularque no dia 13 de março demonstrara força

Page 268: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

52

excepcional na concentração da Central do Brasil,onde as lideranças políticas, sindicais e estudantisafinaram o discurso a favor das reformas de base:agrária, bancária, universitária, administrativa eeleitoral, cujo ato culminou com um emblemáticodiscurso do presidente João Goulart.

A Associação era tudo para os marinheiros.A doutora Érica Roth fora contratada parareorganizar a Associação, definindo suas funções eatividades.Buscavam elevar a auto-estima dosmarinheiros. Criaram brigadas para tirar dos cabarése bares da zona portuária os marinheiros queandavam por ali, levando-os para a sede daassociação, onde teriam uma convivência melhor,com mais dignidade.

Organizaram uma visita à Petrobrás.Buscaram o congraçamento com marinheiros deoutros países, de passagem pelo Rio. Organizarampasseios para as cidades do interior; organizarambibliotecas, criaram um setor de saúde e de apoiosocial, enfim queriam elevar o conceito dosmarinheiros junto à sociedade.

Não queriam mais que a população tivesseaquela idéia de marinheiro brigão, causador deconfusões e mal educados. Todos estes fatoreslevaram os marinheiros a despertar a consciênciasobre o seu papel na sociedade e qual a sociedadeque queriam.

Mas, parece que a oficialidade, ao menos umaparte dela, não via tudo isso com bons olhos. A

Page 269: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

53

impressão é que para eles os marinheiros e osfuzileiros deveriam ser estúpidos, como devem sertodos os subalternos. Que não deviam discutir umadeterminação superior, apenas acatar. E à medidaque a Associação crescia e tomava corpo ereconhecimento social, as punições aos diretores eassociados se multiplicavam, sem nenhum motivoreal. Ou então, alegavam qualquer motivo deindisciplina e puniam.

Com a intenção de reunir um númeroexpressivo de marinheiros e convidados de outrossindicatos, partidos políticos e associaçõesestudantis, e dar mais um passo para a consolidaçãoda Associação, escolheram como local da festa deaniversário a sede do Sindicato dos Metalúrgicos queera grande e bem localizada.

Estavam lá os representantes do Governobrasileiro, Max da Costa, representando o Presidenteda República e o Ministro do Trabalho, AmaurySilva; Osvaldo Pacheco e Dante Pelacani daConfederação Geral dos Trabalhadores; o deputadoHércules Correa, um comunista eleito pelo PartidoTrabalhista Brasileiro; dirigentes da União Nacionaldo Estudantes; representantes de AssociaçõesFemininas e muitos outros convidados ilustres quedavam apoio aos marinheiros e lutavam por umBrasil livre das amarras do capital estrangeiro e commais justiça social.

O clima político nesse momento era deincitação. Perigosa incitação. A burguesia e os

Page 270: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

54

militares entreguistas, histéricos com a políticaexterna de total independência do presidente JânioQuadros, pressionaram-o, levando-o à renuncia.Depois, tentaram dar o golpe, impedindo que JoãoGoulart, o vice-presidente eleito democraticamente,assumisse a presidência. No plano externo dominavaa guerra fria e os golpistas internos e externos, nãoperdoavam o fato de Jânio Quadros ter condecoradoErnesto Chê Guevara.

Agora, viam o cargo de presidente ocupadopor um nacionalista das hostes getulistas. Era muitopara eles que há vários anos tramavam, com o apoionorte-americano, um golpe contra a democracia noBrasil.

As reformas anunciadas pelo presidente JoãoGoulart era o assunto que dominava as conversasdo povo. Só se falava no discurso do presidente Jangono comício na Central do Brasil, ondecomprometera-se com as esperadas reformas de base,contemplando a reforma agrária, a reforma naeducação e o controle na remessa de lucros dasempresas estrangeiras, dentre outras mudançassociais e econômicas propostas.

Nessa conjuntura amplamente favorável dasreformas anunciadas, a perseguição implacável e aintransigência do almirantado contra os marinheiroslevava ao acirramento das posições. Os marinheirosperceberam que o momento era propício paraavançar e viam que seus anseios eram os mesmosdos demais trabalhadores brasileiros.

Page 271: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

55

O Ministério da Marinha fez de tudo paraimpedir a festa. Os fatos, todos os fatos ocorridosnos dias anteriores ao 25 de março de 1964,conspiravam contra os marinheiros. A decretaçãodas prisões dos membros da diretoria da associação,as perseguições nos navios e até o episódio covarde,quando metralharam marinheiros desarmados queiam para a reunião na manhã do dia 26, eram atosde provocações do almirantado daquela época.

Do dia 25 para a madrugada do dia 26 omovimento foi tomando outra proporção. A cadamomento novas notícias chegavam até à assembléiaprovocando mais revolta nos marinheiros. Havia umclima de excitação muito grande.

A reunião prevista para terminar cedo,transformou-se num ato de protesto e numaassembléia permanente, com discursos calorosos dosmarinheiros e de lideranças políticas, estudantis ede outros trabalhadores que estavam ali emsolidariedade aos marinheiros.

E o Conselho do Almirantado constatavaagora que a Marinha errara no recrutamento. Foramatrás dos jovens broncos dos campos do sul e dosestúpidos nordestinos da caatinga para burros decarga. Queriam homens que baixassem a cabeça enão reclamassem de nada. Trouxeram homenshonestos e inteligentes e com o gérmem da revoltacontra a situação de miséria que viviam nos sertõesdo país. Trouxeram valorosos patriotas etrabalhadores, mas não trouxeram covardes.

Page 272: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

56

O jornal a Tribuna do Mar, elaborado pelosmarinheiros não deixava dúvidas: eles eram muitomais do que o almirantado queria.

Os marinheiros falavam com o coração e todaa revolta contra o massacre moral e a humilhação aque estavam submetidos, explodiu naquele atopolítico. E ali, junto com eles naquela assembléia,um emblema: João Candido.

O velho marinheiro levantou os olhos cansadose emocionou-se. Há muitos anos não sentia umaemoção tão forte como aquela. Centenas decompanheiros, de pé, aplaudindo e gritando vivaspara ele. Alguns, mais exaltados, gritavam palavrasde ordem. Outros atiravam seus bonés para cima.

E lembrou da sua luta e de seus companheiros,há mais de meio século, contra aquela mesmaopressão, contra o castigo medieval aplicado aosmarinheiros: a chibata. O castigo físico que nãoexistia mais, custara a vida de vários marinheiros,só João Cândido conseguiu escapar da masmorracruel a que foram submetidos. Depois, montaramuma farsa para expulsá-lo da Marinha. Sobreviveuvendendo peixe na praça da República. Nuncaesmoreceu e agora estava ali recebendo aquela justahomenagem dos seus companheiros. Ele aindaacenou várias vezes para os marinheiros e depoissentou-se. Sua expressão era de felicidade. Talvezpoucas vezes em toda sua vida sentira-se tão felizcomo naquele momento. João Cândido tinhaconsciência daquela mobilização . Não era só a

Page 273: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

57

Marinha, mas o Brasil também precisava dasreformas.

10 de abril de 1964. A edição extra da revistaO Cruzeiro, resumiu assim o golpe militar:

Em Minas, no dia 30 de março de 1964, ocomandante da Base Aérea de BH foi chamado aoPalácio da Liberdade pelo governador Magalhães Pintoque expõe ao oficial seus planos e em 1º de abril,usando uma cadeia de rádio e televisão, fez suaproclamação como chefe vitorioso da revolução.

Em São Paulo no dia 31 de março de 1964, ogovernador Adhemar de Barros se reuniu com odeputado Ranieri Mazzilli, presidente da CâmaraFederal e disse que não existia mais o regimefederativo no país. Em 1º de abril, à tarde ele disseque “com o Exército, a Marinha, a Aeronáutica e aForça Pública e com o apoio de todas as suas classessociais, ressurge o São Paulo eterno para a eternidadedo Brasil”.

O General Aldévio disse que o movimento jáestava previsto nos planos Alvorada, Eclipse e Borealque foram elaborados por uma equipe de estrategistasem 1963.

No Estado da Guanabara em 31 de março de1964, o governador Carlos Lacerda mandou prendertodos os líderes sindicais.

Para a revista, a figura central do golpe, queeles chamaram de revolução foi o general CastelloBranco, chefe do Estado Maior do exército. A ditadura

Page 274: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

58

estava implantada. Sangraram a República.Nem foi preciso acionar a Operação Brother Sam. Oembaixador norte-americano no Brasil, LinconGordon, comemorou.

Page 275: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

59

8. Um dia de fuga no Rio de Janeiro

As bonequinhas caíram no chão. Geni ficouentre alegre e surpresa quando viu as trêsbonequinhas de pano caírem no chão. Fazia muitotempo que as procurava. Agora, quando menosesperava, elas apareceram alí enfiadas no guarda-roupa. Fora buscar uma toalha de mesa, presenteda sua mãe e que nunca usara, e quando puxou atoalha vieram junto as três bonequinhas de pano.

Ela fechou a porta do guarda-roupa, apanhouas bonequinhas e ficou brincando, recordando otempo que brincava com elas lá no bairro de AreiaBranca, em Nova Iguaçu, na primeira casa quemoraram no Rio de Janeiro. A estação do trem,igualzinha a da Ribeira em Natal. A casa com umquintal enorme, onde criava coelhos e brincava comsuas bonecas, bruxinhas de pano que trouxera deNatal. Estendia sua infância no Rio de Janeiro,enganando o tempo que passava sozinha, poisZezinho tomava o trem das quatro da manhã para ocentro do Rio e só voltava à noite para o jantar. Eramarinheiro na Ilha do Governador.

Agora, morando em Mesquita e com o filhopequeno para cuidar, nunca mais pode brincar e atéesquecera as bonequinhas. Zezinho, agorapromovido a cabo paioleiro, continuava voltandosó para o jantar.

Apanhou a toalha e foi arrumar a mesa do

Page 276: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

60

almoço. Era sábado 28 de março de 1964. Eleprometera que viria para o almoço. No dia anterior,todos aqueles acontecimentos no Sindicato dosMetalúrgicos, a deixaram preocupada com a situaçãode Zezinho e dos seus amigos marinheiros.

Lembrava-se dos acontecimentos sem entendero porquê deles. Precisava conversar mais comZezinho, prestar mais atenção no que ele falava esaber mais sobre a Associação dos Marinheiros.

Recordava-se do quanto ele gostava daMarinha, da Associação e do jornal dos marinheiros,a Tribuna do Mar. Estava bem vivo para ela alembrança daquele dia de março de 1963, quandoele chegou orgulhoso em casa declamando:

“[...] Lugar de destaque nos banquetes,Habitar em suntuosos palacetes,Espoliando o povo que agoniza?Não quero! Prefiro o convés frio do navio,Onde nas noites serenas de estio,Eu me confundo com o silvar da brisa”.

Uma enorme felicidade e na mão, o jornalque publicara sua poesia. E com que emoçãodeclamava:

“É porque, mar, vento, céu, terra,Um marujo, não foge a guerra!Sempre que a pátria reclama,Deixa tudo, vai embora, se ufana,

Page 277: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

61

De ser matuto-brejeiro.E nos palcos da batalha.Tem por honra e mortalhaA farda de marinheiro!”

E como, quase sem voz a abraçara, beijara-ae lhe dizia que seus filhos viveriam num país melhor,sem miséria e teriam orgulho de sua terra.

Suas conversas com José Raimundo eramintermináveis. O sargento da Marinha JoséRaimundo, um pernambucano valente e solidário eum dos grandes amigos de Zezinho, que sempre ia àsua casa para estudar ou conversar. E sempre queJosé Raimundo chegava com um sorriso bondosono rosto e carregado de livros, Zezinho pedia:

–– Geni, faça um café para o Bicho!José Raimundo ia direto para um quartinho,

uma espécie de edícula no fundo do quintal e alípassava horas e horas estudando.

Geni pensava no quanto sua vida mudara empouco tempo. Saíra de Natal, uma cidade pequenase comparada ao Rio, casara e agora já tinha umfilho que sua mãe e seu pai ainda nem conheciam.E agora preocupada ouvindo as notícias no rádio.Prisões, invasões, bombas, tiros, movimentação detropas. E a culpa de tudo aquilo, de acordo com osnoticiários, eram os marinheiros.

José Manoel só chegou na segunda-feira, dia30 pela manhã. Chegou num taxi e com umapassagem de avião na mão.

Page 278: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

62

–– Dei baixa na marinha e vamos voltar paraNatal. Arrume as malas que o taxi está aí foraesperando. Foi só o que disse.

Geni apressou-se na arrumação das malas. Elanão entendia nada daquilo. Não dava tempo deentender.

–– Pegue só nossas roupas! As outras coisasdeixe que eu levo!

–– E eu vou só com nosso filho? Perguntouassustada.

–– Vai sim! Eu vou depois! José Manoelrespondeu com segurança.

Quando foi saindo da casa, Geni olhou pelaúltima vez para a castiçal da sala. Planejara levá-lode presente para sua mãe quando fosse para Natal.Era uma peça bonita, com 18 lâmpadas pequenas.José Manoel comprara há pouco tempo.

–– E o resto das coisas Zezinho, os móveis, acozinha...esse castiçal que eu queria levar paramamãe? Foi só o que perguntou.

–– José Manoel foi um tanto ríspido: Eu vouficar mais um dia para resolver tudo e entregar acasa!

Estava com o bebê no colo, pegou a bolsacom a mamadeira e as fraldas e seguiu Zezinho quejá colocava as malas no táxi que a levaria para oaeroporto. Emocionada com aquela atribulação,não compreendia ou não havia parado para pensarnaquilo tudo.

No caminho para o Aeroporto ouviu a

Page 279: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

63

conversa entre Zezinho e José Raimundo. Elesestavam tensos. Haviam tentado voltar para osnavios e foram recebidos à bala.

Ouviu muito bem quando José Raimundodisse que Ozéas havia levado um tiro na pernaquando tentara voltar para o navio.

Ela conhecia Ozéas desde Natal. Ozéas eramagro, muito magro e branquelo dos cabelosavermelhados. Ele era do interior do Paraná emorava no navio. Tinha apenas um armário alugadonuma casa em frente ao porto onde guardava umaroupa de paisano para trocar quando andava pelacidade.

Ela ouviu José Raimundo narrar o episódio:–– Então o Ozéas disse: “Vim para dormir!”

O oficial atirou nele e o tiro pegou na perna e elecaiu. Aí o oficial disse: “Vai dormir no inferno,comunista filho da puta!” Depois, vieram e levaramele para o hospital. Ficou preso!

10 de abril de 1964. Todos falaram comexclusividade para a revista O Cruzeiro. Todos, apóso golpe, são: Magalhães Pinto, governador de MinasGerais; Adhemar de Barros, governador de São Pauloe Carlos Lacerda, governador da Guanabara.Magalhães Pinto, disse que “o movimento restauradorda legalidade, que Minas tomou a iniciativa e aresponsabilidade de desencadear, com o apoio de todosos brasileiros, em breve estará concluído com aformação de um Govêrno em condições de promover

Page 280: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

64

a paz, o desenvolvimento nacional e a justiça social”.Adhemar de Barros disse que “agora caçaremos oscomunistas por todos os lados do País. Não deporemosarmas enquanto não expulsarmos toda a canalhavermelha”. Carlos Lacerda disse que “o senhor JoãoGoulart jurou fidelidade ao Parlamentarismo, paralogo em seguida impor o plebiscito, e todo o povovotou”. Ele, Lacerda, não votou!

Page 281: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

65

9. Abril de 1964 em Natal

Um jipe do exército vindo do centro entrou naAvenida Duque de Caxias em alta velocidade e naesquina do prédio da alfândega fez o retorno quasena mesma velocidade e depois veio bem devagar, aossolavancos, o motor quase estancando.

Os dois oficiais que estavam no jipe passaramolhando as pessoas nas calçadas. José Manoelafastou-se da pequena mala, empurrando-a com opé para junto da parede. Prendeu a respiração e sepreparou para o pior.

O jipe parou um pouco à frente, bem no meioda rua, atrapalhando o trânsito e um dos oficiaisdesceu, entrou num bar e depois de algum tempo,voltou e foi embora. Bem próximo, haviambarricadas na rua que dava acesso ao porto de Natal.

Depois passou um caminhão do exército comsoldados armados na carroceria e José Manoel queestava cada vez mais tenso, olhava a todo instantepara o começo da rua esperando a volta de JoséRaimundo.

Sentou-se na calçada alta do Banco do Brasil,as roupas fedendo a suor, amedrontado com o vai evem dos veículos do exército que cruzavam a todomomento a Ribeira. Nem acreditou quando viu, aolonge, atravessando a avenida em sua direção, umdos seus cunhados.

Ele vinha da praia do Forte com a intenção de

Page 282: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

66

resolver alguns problemas no escritório datransportadora da família, que ficava numprediozinho espremido entre outros da Rua DoutorBarata, uma rua estreita que ligava o cais da Ribeiraao largo da estação rodoviária.

Era domingo de manhã e havia pouca gente narua. Até os bares da região, que não fechavam nunca,estavam quase todos fechados. O povo brasileirocomeçava a respirar o ar pesado da ditadura.

Assustou-se quando percebeu que era mesmoJosé Manoel. Como era improvável encontrá-loàquela hora, naquele dia e naquele lugar, quando seaproximou e teve certeza, levou um grande susto.

–– Não me restou outro caminho senão fugir!Se voltássemos aos navios seríamos mortos! Abriramos processos contra todos nós e a acusação é decrime hediondo! Foi uma debandada geral dosmarinheiros, uma dispersão! Ninguém sabia o quefazer e nem para onde fugir! Disse José Manoelaperreado, antes mesmo de cumprimentar ocunhado.

E narrou o seu drama, da reunião dosmarinheiros no Sindicato dos Metalúrgicos no dia25 de março até sua fuga para Natal e o medo de serpreso. A presença em massa dos marinheiros nareunião da Associação. A reação do almirantadoque via tudo aquilo como insubordinação edecretara a prontidão rigorosa no dia 26 pararecolher todos aos navios e prejudicar o movimento.E depois, a ordem de prisão, a reação dos

Page 283: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

67

marinheiros e a solidariedade dos fuzileiros navaisque haviam sido enviados para reprimir a assembléia,mas se juntaram a eles. E tudo o que se seguiu depoiscom o golpe militar, a prisão dos que participaramdo movimento e a fuga dos companheiros emdesespero, sem nem mesmo saber para onde fugiriam.

Agora, aguardava José Raimundo, seucompanheiro de luta, que fora no Alecrim em buscade ajuda. Ficaram ali pouco tempo, pois logo surgiuJosé Raimundo em pânico, contando que o Alecrimestava tomado pelos fuzileiros navais.

A ditadura irrompera no dia primeiro de abril.Em Natal, a movimentação maior que se via era doexército, cujos veículos se deslocavam de um ladopara outro da cidade com as sirenes ligadas ecaminhões de soldados armados com fuzís. Dequando em quando um avião militar surgia no céuem voo rasante.

A cidade estava toda tomada pelos militares.Já havia muita gente presa: as lideranças políticas,sindicais e estudantis, jornalistas, professores,funcionários dos Correios, outros da RedeFerroviária e todos os que participavam da“Campanha de Pé no Chão também se aprende aler”, do educador Paulo Freire.

O exército invadira a prefeitura e depusera oprefeito. Buscavam montar uma farsa paraincriminar por corrupção o prefeito DjalmaMaranhão, um dos poucos homens íntegros nahistória política do Rio Grande do Norte.

Page 284: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

68

O governador Aluisio Alves aderiu logo nasprimeiras horas aos golpistas. Para o governador,importante não era a defesa da legalidadedemocrática, mas o respeito às forças armadas, querepresentava o grupo que levara Getulio Vargas aosuicídio e pusera obstáculos à posse de Juscelino ede João Goulart, tudo sob a supervisão doimperialismo norte-americano.

Nervosos e impacientes viram quando doiscaminhões do exército, apinhados de soldadosarmados, cruzaram a avenida em direção ao cais.

–– Parece que o exército vai ocupar toda aRibeira! É melhor a gente sair daqui! Falou JoséManoel um tanto preocupado.

Seu cunhado sugeriu que fossem para oescritório da transportadora:

–– Deixo vocês lá e vou conversar com papaipara ver o que podemos fazer!

Não havia quase ninguém na rua. O prédioficava perto dali e era bem simples. Na fachada umapequena placa identificava a transportadora. Elesforam até o prédio e subiram para o primeiro andar.Das poucas coisas que traziam nas bolsas, Zezinhotirou o panfleto do 13 de março na Central do Brasile comentou com José Raimundo:

–– Veja só , Bicho, eu nunca me emocioneitanto na minha vida como nesse dia treze de março.E tudo o que foi dito alí, por todos os quediscursaram, dava-me a esperança de que teríamosum Brasil melhor! E agora, o que vamos fazer?

Page 285: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

69

Depois, tirou outro panfleto e mostrou paraJosé Raimundo:

–– Você já tinha lido esta patifaria aqui?José Raimundo pegou o panfleto da mão de

Zezinho, leu e disse:–– Não se podia esperar outra coisa desse

deputado Amaral Peixoto, ele sempre serviu detapete para o almirantado!

Depois, José Manoel tirou da mala o rádioPhilco, novinho, novinho. Foi a última coisa quecomprou no Rio de Janeiro antes da fuga.José Raimundo examinou o rádio:

–– É de quantas pilhas?–– Seis pilhas, oito faixas e dez transistores.

Parece que é bom! respondeu José Manoel, ligandoo rádio.

Ficaram ouvindo as notícias do golpe militar.As rádios de Natal ainda comentavam a “Marchada Família, com Deus pela Liberdade” realizada nodia 7 de abril, elogiando a participação dos militares,dos próceres da igreja e do empresariado potiguar.

José Raimundo comentou:–– Veja como são as coisas. Centenas de

militares legalistas que não aprovaram o golpe, opresidente Goulart prestes a mudar o rumo do nossopaís e com uma grande aprovação popular,reconhecido até pelas pesquisas, recua e foge e nosdeixa assim sem suporte! E o Brizola? Segundodizem, foi o próprio presidente que pediu que elenão reagisse! Eles não queriam sangue! Bem diferente

Page 286: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

70

dessa linha dura que há muitos anos quer tomar opoder pela força!

José Manoel baixou o volume do rádio e falou:–– Esse povo tá doido pra ver sangue! Eles

nunca aceitaram o plebiscito! Eles queriam umpresidente João Goulart sem poder! Abreu Sodré,Ademar, Magalhães Pinto , Lacerda, são mesmocomo disse o presidente, são os democratas anti-povo, anti-reformas! São os democratas dosmonopólios e dos privilégios, são os sabujos dosEstados Unidos!

José Raimundo completou:–– Como é possível eles falarem na

Constituição quando dão um golpe contra umgoverno eleito democraticamente pelo voto? Caiu amáscara! Agora, caiu mesmo a máscara! Não temoutro nome não! É ditadura mesmo! E continuou:

–– E agora nós fazemos parte daquilo que ocapitão vivia dizendo: inimigos internos! Somosmesmos os inimigos internos?

José Manoel olhou para José Raimundo e disse:–– Escolhemos o nosso campo que é do lado

do povo! Forças armadas é para defender o povo enão para defender os interesses dos mais ricos!

9 de abril de 1964. A junta militar edita o AtoInstitucional nº 1 para dizer que “o movimento é civilmilitar e é uma autêntica revolução no interesse evontade da nação”, por isso, “é o poder constituinte ese legitima por si mesmo”.

Page 287: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

71

10. Itapissuma

A camioneta entrou na curva em grande velo-cidade. Mal deu tempo do motorista desviar da car-roça parada na estradinha. Apertados na cabine fo-ram jogados uns contra os outros. A carroça estavametade no mato e metade na estrada. O motoristaaprumou o carro e soltou um palavrão:

–– Cacête! Aqui é assim, esse povo não temnenhuma responsabilidade, depois a gente atropelae tem de responder inquérito! Falou com raiva, en-direitando o corpo, trocando a marcha, reduzindoa velocidade, quase parando e se recompondo dosusto.

Outra curva e a porteira. Nem era mais estra-da, era um caminho de pouco movimento. Se viamesmo. A mata era alta e fechada e as imbaúbasdominavam a paisagem.

Zé de Antão, o motorista, freiou junto da por-teira e disse:

–– Pronto! É aqui! Era um vale suave e à di-reita começava um canavial que sumia de vista. Pas-saram a porteira e já avistaram uma casa grandecom varandas, o curral, as pocilgas, os galinheiros,tudo junto. Mais ao fundo a casa do morador emais à frente um grande coqueiral, mangueiras, goi-abeiras, cajueiros e mais ao longe um bananal quedescia para as margens de um pequeno rio no fundodo vale.

Page 288: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

72

Desceram e olharam espantados. Não tantopela geografia, bem familiar para os dois amigos,afinal estavam na sua terra. O que os espantava erainusitado de tudo aquilo. Há poucos dias no ruge-ruge do Rio de Janeiro e vendo o mar a toda hora eagora alí, sem uma viva alma por perto, sem gente,sem carros, sem buzinas, sem navios e mar. Nadade montanhas. Retornar assim de sopetão, semplanejar nada e ainda mais fugitivos procuradospela Marinha.

–– Vizinhos? Perguntou José Manoel.–– Por trás desta matinha mora seu Antonio.

Vizinho bom e prestativo. Tem mulher e oito filhostudo trabalhando na terra. Quem respondeu foi Se-bastião, o único trabalhador do sítio e que moravana casinha ao fundo, com a mulher e um meninopequeno. Tão logo ouvira o barulho do carro cor-reu para abrir a porteira e receber os visitantes, aten-cioso, explicando tudo, informando, alertando.

Uns sanhaços cantaram nas imbaúbas. Cantolongo, floreado. Pararam para ouvir pois há muitonão ouviam canto de passarinho, assim, selvagem.Os amigos se entreolharam e sentiram: começou oexílio. Começava alí naquela cantoria dos sanhaços.

E assim, os dois marinheiros completaram suafuga, retomada em Natal quando o sogro de JoseManoel chegou na segunda de manhã com a boanova:

–– Vocês vão amanhã para Pernambuco!ParaItapissuma!

Page 289: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

73

Eles já estavam desesperados sem saber direitoo que fariam e para onde iriam. Deixar Natal era aúnica certeza que eles tinham, pois seria um dosprimeiros lugares que iriam procurá-los. Eles, comomembros da diretoria da Associação já estavam sen-do perseguidos pela ditadura.

–– Já está tudo combinado! Disse o sogro deJosé Manoel e continuou:

–– Vocês descem em Igarassu e vai estar láuma camioneta Ford azul e branca! O nome do mo-torista é Zé de Antão e vocês estão indo para lápara arrendar a propriedade do Medeiros! É um sí-tio em Itapissuma! Até acalmarem as coisas vocêsficam lá, depois a gente vê o que vai fazer!

Por fim, surgia uma saída. José Manoel e JoséRaimundo sentiram um pouco mais de alento umavez que quase não dormiam, angustiados com o quepudesse acontecer com eles, com os seus compa-nheiros e com seus familiares, pois a repressão pro-metia ser feroz, principalmente contra os marinhei-ros.

Geni viajou para Itapissuma alguns dias de-pois. Da vida no Rio de Janeiro não restara nada.Agora era candieiros, lamparinas e água de poço.Os hábitos mudando para se acostumar com aquelavida de exilado na própria terra. Para quem estavaacostumado com energia elétrica e água encanada,não era nada fácil. Foram se adaptando, apesar dasdificuldades.

–– O carro do leite passa às seis. São dois tam-

Page 290: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

74

bores de vinte e cinco. Eles querem que a gente dei-xe na porteira! Era Sebastião que orientava. Eramtrabalhos que eles conheciam, mas não faziam hámuitos anos. Ficaram trabalhando, cuidando dogado, dos porcos, das galinhas. Plantavam inhame,muito inhame. Os caminhões vinham buscar e saí-am abarrotados. Foram se acostumando com os sonsdo lugar. Conheciam os barulhos dos veículos quepassavam por ali. Qualquer som diferente, vinha aangústia e o medo. Vida de fugitivo. E Sebastiãonão podia saber. Inventaram uma história de brigade família. Eram muitas no sertão e ficava mais fá-cil justificar. Uma vida difícil de sobressaltos e in-certezas.

Agora eram noites mais longas. Lamparinas ecandeeiros e a conversa curta na varanda. Nada desábados, domingos e feriados. Dias todos iguais. Se-bastião vinha com a mulher e o menino que dormialogo no chão da varanda junto da cadeira do pai.As conversas variadas, chuvas, secas, rios que trans-bordavam, safras boas e ruíns, gado, bezerras e va-cas leiteiras. De tudo um pouco. A boa safra doinhame: um milagre de Nossa Senhora do Amparo.“Santa boa sem igual”! Falava Sebastião, fazendo osinal da cruz e tirando o chapéu.

As notícias chegavam pelo rádio. Pelo meio doano de 64 começaram a falar nas punições aos mari-nheiros. Falavam em cinco, dez, vinte anos de pri-são pelos inquéritos instalados pelo Cenimar.

Um dia Geni ouviu bem que falavam em mais

Page 291: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

75

de 1.500 marinheiros condenados. Ficou preocupa-da. Zezinho e Zé Raimundo na roça de inhame. Pas-sou o dia todo com aquele nó na garganta. À noite,na varanda e depois que Sebastião e a mulher fo-ram embora, falou:

–– A notícia é que a Marinha vai aguardar aapresentação voluntária dos marinheiros para ocumprimento da pena!

E falou mais:–– Vai expedir os mandados de prisão para to-

das as Delegacias de Polícia!E mais ainda:–– Estão enviando notas para todas as empre-

sas não empregar marinheiros! Vão cortar os em-préstimos das que desobedecerem!

–– Estamos emparedados! Disse JoséRaimundo.

–– Estamos! Concordou Zezinho.A chuva começara pela noitinha, entrou pela

madrugada e àquela hora, quase seis, continuava,ora forte, ora fraquinha. Fizera até frio de madru-gada. Deixaram os tambores de leite na porteira eretornaram para o curral. Um jipe parou junto daporteira quase sem fazer barulho parecendo mes-mo vir com o motor desligado. Não era o carro doleite, viram logo que não era. Foram buscar refúgioali pelo curral e mandaram Sebastião ver o que era.Ele voltou assustado.

–– É a polícia! Disse finalmente. Procuram des-de ontem um sujeito que esfaqueou um vereador lá

Page 292: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

76

por Igarassu! A informação é que o sujeito fugiupara este lado. O homem está de camisa amarela,calça preta e usa chapéu!

Era madrugada e o bebezinho chorou. Ela le-vantou e trocou a fralda. Sequinho e o choro acal-mado, adormeceu logo. Ela apagou a lamparina eacomodou-se na cama. Na porta uma claridade quenão era de candeeiro e nem luz elétrica. Na clarida-de, surgiu assim do nada um rapaz bonito, cabeçacomprida, cabelos curtos, um terço na mão, um sor-riso terno e um olhar tranquilo e lhe disse:

–– Aqui voce está guardada! Bem guardada!Não tenha receio!

Não deu nem tempo de ficar com medo. O ho-mem desapareceu junto com a claridade. Ela ficouali abobalhada e acordou José Manoel. Ele levan-tou, acendeu a lamparina e foi até a porta, olhou oquarto todo e voltou para a cama.

–– Foi um bom aviso, durma tranquila! Foi sóo que disse e adormeceu em seguida.

Depois, ela ficou sabendo que um jovem da-quele lugar havia morrido queimado num acidentede carro. Era ele. Quando soube da história tevecerteza que era ele. Era preciso que alguem confir-masse que estavam seguros naquele lugar.

Em outubro José Raimundo foi ao Recife evoltou desanimado:

–– É pior do que imaginamos! Disse quaseprostado. Passara três dias telefonando para o Riode Janeiro, buscando contato e recebendo negati-

Page 293: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

77

vas. Telefone desligado na cara assim que se identi-ficava. Medo, muito medo. Ligações que não com-pletavam, Não é mais aqui não! Não conheço essapessoa! Viajou! Mudou-se e não deixou endereço!Mas por fim, alguém que se propôs a dar notícias emanter contato.

José Raimundo continuava falando:–– Sabe como a ditadura está justificando o

golpe? Dizem que havia um complô, um golpe co-munista com a invasão dos russos que iriam dividiras propriedades e as mulheres, que agora seriam detodos! As crianças seriam mandadas para estudarlonge, bem longe das familias. Brizola era o coman-dante do golpe e Julião e Arrais os sub-comandan-tes. João Goulart era pau-mandado do Brizola queera quem mandava de fato. E dizem mais: Fizemosa revolução antes dos comunistas dar o golpe, poiso Prestes já se preparava para invadir o país com osrussos! É toda essa patifaria! completou JoséRaimundo, baixando a cabeça e demonstrando umagrande revolta.

–– Debandada geral dos marinheiros! Disse JoséRaimundo e continuou:

–– Muitos foram presos. Estão falando nummovimento a partir do Uruguai, comandado peloBrizola, aquela história do MRN. Me falaram tam-bém que o Julião está organizando uma resistência.A palavra de ordem é organizar a luta armada. Fo-mos pegos de surpresa e é preciso organizar a lutacom urgência. Empresários e militares não se en-

Page 294: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

78

tendem, eles estão divididos. O momento é propí-cio, o povo já não está apoiando a ditadura comoantes!

E agora o pior! Falou impaciente, revoltadocom tudo aquilo:

–– Saiu a nossa condenação no dia 30 de se-tembro, o ato é de número 365. E olha que o cincosempre foi o meu número de sorte! Sorriu JoséRaimundo. Um sorriso de asco.

Mudaram de assunto quando Sebastião apro-ximou-se. Estavam sob as mangueiras que prometi-am uma safra e tanto.

Seguia a vida de muito trabalho e Geni nãosuportava mais aquele exílio forçado. Mais de umano afundada ali naquele sítio longe de tudo e detodos. Um dia, tomou uma decisão:

–– Vim porque não aguento mais e eu sei queZezinho nunca viria aqui pedir nada para vocês, nãoé orgulho não, mas ele acha que poderá trazer pro-blemas! A Marinha continua perseguindo ele! EraGeni na casa dos sogros em Toritama.

Nunca tinha ido a Toritama, mas foi. Cami-nhou a pé pela estradinha até atingir a estrada prin-cipal. Tomou o onibus e desceu ao lado da delega-cia de polícia e perguntou para um soldado ondemorava Manoel da Santa.

Manoel da Santa nem discutiu. No outro diapegou o caminhão e foram lá buscar a mudança.Ficaram em Toritama. José Manoel ficou trabalhan-do no caminhão, transportando cana em Palmeiras

Page 295: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

79

dos Indios. Depois da safra, ficou dirigindo a RuralWillis do pai, levando passageiros para Caruaru.

–– Se a Marinha vai prendê-lo, que venha pren-der aqui na minha casa e que diga qual foi o seucrime e se é crime querer o bem do nosso país! Foio que disse o pai.

10 de abril de 1964. O Ato Institucional da dita-dura cassou os direitos políticos de vários cidadãos,dentre eles o deputado Leonel Brizola, um dos pro-váveis candidatos à sucessão de João Goulart. Os ou-tros prováveis candidatos eram Carlos Lacerda, go-vernador da Guanabara e que participara ativamentedo golpe e Juscelino Kubstichek, senador por Goiás,que mesmo não participando, deu apoio aos golpistas.Foi cassado em junho de 1964. Para a ditadura, elenão era confiável. A linha dura limpava o caminho efincava os marcos. Profundos. Leonel Brizola foi parao exílio no Uruguai onde buscou organizar o movi-mento de resistência armada contra a ditadura, oMovimento Nacionalista Revolucionário, extinto em1967. Vários outros grupos foram organizados a par-tir de então.

Page 296: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 297: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

81

11. Marinheiro só

José Manoel chegou de madrugada em Caruaru.Quando estacionou o carro perto da lanchonete paratomar um café, viu o rapaz saindo de um bar aolado. Não era seguro chamá-lo pelo nome. Para ne-nhum dos dois era seguro. Esperou que ele se afas-tasse e seguiu-o até uma praça onde alcançou-o.Quando ficou ao lado, olhou e disse:

–– Como vai, Mário?O rapaz olhou para ele espantado, parecendo

ver alma, pois reconheceu logo seu companheiro daMarinha, o cabo José Manoel, companheiro desdeNatal. Achava que ele estivesse morto.

Entraram num bar e pediram café.–– E então? Perguntou José Manoel.–– Estou fugindo de novo! Consegui uma car-

teira de identidade nova e uma carteira de traba-lho! Uma parte do pessoal é solidária , outra partequer dinheiro e assim não foi difícil conseguir osdocumentos!

–– Essa história eu sei, já passei por isso! In-terrompeu José Manoel.

Mário sorriu e retomou a fala:–– O difícil mesmo é a gente se manter no em-

prego! A almirantada quer que morramos de fome,continua nos perseguindo!

–– Quantos anos? Perguntou José Manoel.–– Eu não sei não, deve ser cinco anos, por-

Page 298: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

82

que eu não era da Associação! Só estava na reu-nião!

José Manoel interrompeu o amigo:–– Eu devo pegar 15 anos porque era da dire-

toria da Associação, estava na organização da as-sembléia e ainda escrevia para o jornal! Segundo oalmirantado uma ruma de crimes, gravíssimos!

–– Consegui um emprego e fiquei quase cincomeses! Agora era Mário que falava. A situação nãoé boa!Você arruma o emprego e passa a trabalharcom vontade, animado, fazendo tudo muito direiti-nho e eles até fazem elogio pelo seu trabalho! Só épreciso ter cuidado com as sextas-feiras! Aí é queestá o problema! Numa sexta-feira qualquer você échamado no departamento pessoal! Para nós mari-nheiros, nunca é notícia boa! Se lá já não estiver apatrulha da Polícia Militar para lhe prender e man-dar para o Rio, você é chamado para ser demitido!Acredite, é bem melhor que seja só a demissão!

–– E então? Perguntou novamente JoséManoel.

–– Não sei, estou meio desesperado! O pessoallá de casa acha que eu devo ir para São Paulo. Lá écidade grande e mais fácil para trabalhar! Tenhoum primo camelô que está ganhando dinheiro lá!Eu tenho medo, muito medo! Encontrei outro diaum companheiro nosso que estava fugindo, me dis-se que ia para Manaus e depois para um fundo defloresta onde um tio dele estava morando! Ele foido grupo do Brizola, aquela história do Uruguai e

Page 299: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

83

ficou preso um tempo e depois chamaram ele parair para Cuba! Ele teve medo e não foi! Ele acha quemais dois ou três anos as coisas mudam e nós pode-remos ser anistiados!

Foi uma despedida emocionada.–– Nos veremos, certamente em condições me-

lhores! Disse José Manoel abraçando o amigo.Duas semanas depois desse encontro José

Manoel estava no Recife e passaria a temer as sex-tas-feiras.

–– Os documentos! Disse o funcionário que ti-nha um ar sério, cansado. Fazia tudo quasemecânicamente. A fila imensa de homens e mulhe-res calados, um turbilhão de pensamentos, de espe-ranças e desesperanças.

José Manoel apresentou a identidade e a car-teira de trabalho e a ficha que preenchera ainda hápouco, candidatando-se para a vaga de auxiliar dealmoxarife.

O funcionário apanhou tudo, conferiu tudo epassou para uma pilha enorme de outros docu-mentos.

–– Aguarde lá fora até a gente chamar! Foi sóo que disse, entediado e acendendo um cigarro.

–– José Manoel da Silva! Era uma funcionáriaque chamava. Ela era fanha e o pessoal que aguar-dava ficava imitando e sorrindo de lado, às escondi-das.

Ele, José Manoel depois de esperar quase duashoras alí, sentado numa mureta, agora era auxiliar

Page 300: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

84

de almoxarife na Odebrecht em Recife. Uma boanotícia neste final de 1966. Só temeria, a partir deagora as sextas-feiras.

27 de outubro de 1965. A ditadura baixou o AI-2 e interviu no Poder Judiciário. O poder agora é dajustiça militar. Suspendeu a Constituição de 46, ex-tinguiu os partidos, instituiu eleições indiretas eemasculou o Congresso. Decretou o fim das garanti-as constitucionais para funcionários públicos civis emilitares. Cassou e baniu mais patriotas brasileirosque não concordavam com a ditadura. De passagem,condenaram os marinheiros severamente. porindisciplina e quebra da hierarquia.

O marechal Castelo Branco foi substituído pelomarechal Costa e Silva. No Ceará, sua terra natal, foiconvidado para uma voltinha de avião. Ele tinha medode avião, mas foi. Um caça Lockheed TF-33 da FABque coincidentemente ia passando naquela hora, atin-giu o pequeno Piper Aztec PP-ETT que caiu. Só oPiper caiu. Dizem que o Piper voava a muitos pés e ocaça a poucos pés. Há controvérsias com os pés! Era18 de julho de 1967. Morreu o marechal Castelo Bran-co e um grande arquivo de pelo menos meio século.Para o chamado núcleo duro da ditadura, àquela al-tura o marechal era melhor morto.

Page 301: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

85

12. Companheiro Moisés

–– Agora é a luta José Manoel! Entregou paraJosé Manoel a cópia de um texto escrito à máqui-na. Era uma cópia mimeografada. Eram quatro oucinco folhas de ofício. E continuou falando:

–– Vou deixar com você, leia e depois queime!Era José Raimundo que falava, o fraterno amigoJosé Raimundo, o Moisés, que mudara para SãoPaulo e com quem agora, José Manoel tinha pon-tos e codinomes.

–– Não é preciso falar em discrição, nossa se-gurança vem em primeiro lugar! Nossa amizade con-tinua mais forte ainda, mas agora temos que nosresguardar! Teremos pontos, encontros para o avan-ço da luta! Era quase um desabafo e José Manoelouvia com atenção.

–– Minha conclusão, depois de tudo o queestamos vendo é que não há outro caminho senão oda luta armada! A ditadura avança sobre nós, nospersegue, nos tortura e mata. O PCB não quer aluta armada, avaliam que é um erro! Mas nós nãopodemos ficar parados assistindo o massacre e so-frendo o massacre! O Brizola também está desistin-do da luta armada. O MNR está praticamente aca-bado! Os companheiros do PC do B estão indo parao norte. Falam na guerrilha rural. A luta é de van-guardas. Foi possível em Cuba, aqui também será!Deixo o livro de Debray para você ler!

Page 302: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

86

Amigos inseparáveis desde marinheiros emNatal, o sargento José Raimundo da Costa e o caboJosé Manoel da Silva, estreitaram a amizade com omesmo pensamento de fraternidade e solidariedadedo sertão pernambucano de onde, oriundos. Bus-caram refúgio juntos quando perseguidos pela dita-dura. Lutavam por um Brasil com mais justiça. Con-tinuaram a acreditar na luta. Nunca desistiram eseguiram o caminho quase natural daqueles mari-nheiros que não se curvaram ao golpe de 64.

José Raimundo continuava falando, agora pau-sadamente sobre a Vanguarda Popular Revolucio-nária:

–– Também somos nós militares cassados doMNR!

Era uma história que José Manoel conhecia. OMovimento Nacionalista Revolucionário, surgiraapós o golpe de 1964 e juntava militares e pessoasligadas ao Partido Trabalhista Brasileiro e ao Par-tido Socialista Brasileiro, além de militantes de es-querda que apoiavam Brizola, que organizara a re-sistência ao golpe a partir do Uruguai. Na esteirado internacionalismo proletário, receberam o apoiocubano para treinamento dos militantes, mas apósduas tentativas frustradas, abandonaram a luta ar-mada e discutiam outras formas de luta. Váriosdos seus militantes foram para os grupos armadosque estavam se formando.

José Manoel já estava convencido há muitotempo que o caminho era aquele. Não havia outro.

Page 303: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

87

Eles, que sempre prezaram e defenderam a Marinhado Brasil foram severamente perseguidos e conde-nados pela ditadura por reivindicar melhorias paraos marinheiros e para o povo.

Para ele era inconcebível que aqueles que ras-garam a Constituição Brasileira, depuseram um pre-sidente eleito democraticamente pelo voto livre esoberano do povo, agora os perseguiam como seeles fossem facínoras perigosos.

–– E ainda falam em hierarquia e disciplina!Dizia José Manoel, balançando a cabeça.

13 de dezembro de 1968. O marechal Costa eSilva, o ditador referendado por um colegio eleitoralem 3 de outubro de 1966, baixou o Ato Institucionalnº5. O AI-5 determinou o fechamento do CongressoNacional, a intervenção nos Estados e Municípios,cassou o mandato de parlamentares, suspendeu o“habeas corpus” e suspendeu por 10 anos os direitospolíticos de vários cidadãos que não concordavam comos atos da ditadura. Entre uma parcela da juventude,notadamente os universitários, 1968 era assim: Marx,Mao e Marcuse como leitura e ação. As palavras deordem iam desde “Só o povo armado derruba a dita-dura” até “Só o povo organizado derruba a ditadu-ra”.

Page 304: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 305: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

89

13. Jonatas, que não era mais

Como estaria José Raimundo? Era isso queJosé Manoel vinha pensando pelo caminho naquelaquinta-feira, 20 de maio de 1971. Aquela vida peri-gosa, prisões de companheiros, o cerco apertando,a repressão tomando fôlego, comemorando cadacaptura como um troféu. Torturas e notícias de trai-ções. E eles alí na trincheira, a luta difícil que pou-co avançava. Depois de quase um ano, os ditadoresainda usavam a vitória da copa do México para fa-zer propaganda do Prá frente Brasil, do Ninguémsegura este país e do Brasil, ame-o ou deixe-o!. Di-fícil. Ele sempre teve certeza disso, mas sempre acre-ditou que um dia tudo daria certo. Desistir nunca,ele queria ver seus filhos vivendo num país melhor,mais justo, mais digno, mais solidário.

Chorava vendo o sofrimento do seu povo. Amiséria crescendo. E agora ele e José Raimundo seencontrando num ponto. Aquela amizade fraternade vários anos e horas e horas de conversas e deba-tes sobre os rumos da Associação dos Marinheiros,os rumos do governo do Jango, os rumos da dita-dura de 64, no Rio, em Natal e no Recife. Tudopassara, agora encontro furtivo num ponto, trocan-do poucas palavras, só as necessárias para a luta irà frente. A segurança de um e do outro em risco.Encontros rápidos, instruções. Só instruções. Mais,seria perigoso.

Page 306: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

90

Entrou na Cruz Cabugá. Primeiro deu umachecada passando pela Rádio Clube e avançandoduas quadras, procurando um lugar para estacio-nar o carro. Era um Gordini verde claro, bem con-servado. Achou a vaga e estacionou. Tudo limpoaté agora. Voltou caminhando até o ponto de ôni-bus que ficava na frente da rádio que tinha um lu-minoso bem grande na frente com o PRA-8. Nocaminho ele vinha se perguntando quem teria sidoCruz Cabugá, agora nome de avenida no Recife. Es-tava tenso, as mãos frias e suadas e mancando daperna esquerda, cheia de pinos e mais curta peloacidente na Odebrecht em 1968. Haviam poucas pes-soas no ponto de ônibus. Naquela hora, 8 da noite,alguns funcionários retardatários, algumas empre-gadas domésticas e um homem visivelmente embri-agado. Era preciso ter cuidado que esse povo se fin-ge de tudo. Mas o homem estava mesmo bêbado enão falava coisa com coisa.

Passou olhando o povo no ponto de ônibus eviu um homem com a caneta esferográfica azul porfora do bolso da camisa. Não era José Raimundo.Ele se juntou ao grupo que esperava o ônibus e seaproximou um pouco mais do homem com a cane-ta esferográfica azul por fora do bolso.

–– Você tem duas de 50? Perguntou JoséManoel

–– Não, só tenho uma. Respondeu o homemcom um olhar perscrutador.

Eles esperaram o pessoal embarcar no ônibus.

Page 307: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

91

José Manoel ficou emocionado, já reconhece-ra o homem pela voz. Uma voz inconfundível queele nunca esquecera. Uma voz que incendiou o mar-ço de 1964. Uma voz que orgulhava todos os mari-nheiros. E então não obedeceu as convenções de se-gurança. Os cumprimentos, não foram os de praxe.Havia mais que a relação formal de revolucionári-os. Aquela camaradagem, o espírito de solidarieda-de, o companheirismo comum nos marinheiros,aflorou todo ali para José Manoel.

Anselmo não o reconheceu de imediato. De-pois olhou bem e descobriu que Cirilo era JoséManoel, poeta e seu companheiro da Marinha, ocabo paioleiro da Ilha do Governador e muito atu-ante no conselho fiscal da diretoria da Associaçãodos Marinheiros e pessoa da estrita confiança dosargento José Raimundo. O amigo que JoséRaimundo não cansava de elogiar pela seriedade ecompromisso, primeiro com a Associação e depoisdo golpe, o compromisso com um país melhor emais justo. Para Jonatas tudo isso estava bem me-lhor do que ele esperava.

–– Você engordou muito! Lembrando-se que omais expressivo em José Manoel naquela época damarinha eram os grandes olhos que se destacavamno rosto magro e corpo esguio. Bem mais gordo,José Manoel perdera esta característica.

–– Pois é, a vida!–– Eu observei que você está puxando uma

perna!

Page 308: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

92

–– Acidente! Estou usando um sapato ortopé-dico para compensar a perna acidentada mais cur-ta! Ela está cheia de platina e dói quando o tempoesfria! Dos males, o menor, pois pensei que fosseperdê-la!

–– E então? O que traz? Perguntou Cirilo.–– Estou buscando contato!. Disse Jonatas.–– O próximo é dia 25! Moisés!Depois só no

dia 30, mas aí é ele que deve localizar você!–– É seguro onde você está?–– Estou no Hotel Rex!–– Não! Não dá certo não! Você tem que sair

dali! A polícia mantém o controle de todos os hoteis,pensões e pousadas! Está tudo sujo aqui no Recife!A deduragem é grande, parece que dão até recom-pensa! Depois, completou:

–– Vamos cuidar de transferir você para outrolugar!

–– Amanhã em Olinda em frente ao cinema!Cine Duarte Coelho, às 8 da noite! Ponto marcado.O encontro foi assim, rápido como deveria ser.

No outro dia José Manoel estava mais relaxa-do, mas não descuidou da segurança. Foi de ônibus,desceu no ponto em frente ao cinema e fez achecagem. Tudo limpo. Anselmo já estava lá.

–– Só problemas! Falou Jonatas e continuou:–– Dificuldades de contato, de trabalho, de

ação! Todo mundo lá meio queimado! Pelo que meinformaram, Moisés não pode circular muito no Rioe São Paulo. Muita dissensão! Muita desorganiza-

Page 309: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

93

ção e muito intelectualzinho querendo nos ensinaras coisas. Pouca ação! Esse pessoal não tem a visãoque nós militares temos. Eles precisam de treina-mento. Lamarca está completamente desprotegido!

Enquanto Anselmo falava, José Manoel pen-sava nos laços fortes que os prendiam há muitosanos. Lembrava-se da festa de aniversário da Asso-ciação, daqueles dias fatídicos, das perseguições, dosalve-se quem puder dos companheiros que deban-daram em fuga, porque o presidente Jango recuarapara não participar de um derramamento de san-gue. Tinha orgulho de ter Jonatas como compa-nheiro de farda. Lembrava-se da sua coragem, dosdiscursos inflamados, da defesa que fizera dos mari-nheiros e do povo brasileiro. Depois, as notícias desua fuga espetacular, as notícias de Cuba e as notí-cias de sua volta para reforçar a luta contra a dita-dura. Era um companheiro de fibra.

E fugindo às regras de segurança, José Manoelfalou com muito orgulho do seu filhinho que parti-cipava de um concurso na televisão respondendosobre a história do Brasil, da sua filhinha recém nas-cida, do seu emprego na Odebrecht até 70, do aci-dente, da perna mais curta com platina, do sapatoortopédico que usava e da pensão que recebia daPrevidência.

Anselmo anotou tudo. E percebeu que poderiasempre contar com isso: a confiança, a extrema con-fiança que seus companheiros da marinha deposita-vam nele. Ele era mesmo uma pessoa acima de qual-

Page 310: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

94

quer suspeita, pelo menos para os seus companhei-ros da marinha.

Depois, José Manoel retomou a conversa, fa-lando do seu trabalho na luta revolucionária, umtrabalho de conversa, de conhecimento, de penetra-ção tímida, mas segura, enfim um trabalho para lon-go prazo, sem ações espetaculares, sem grande ex-posição, mas seguro e avançando sempre. Por fim,disse:

–– Por tudo o que vem acontecendo, o mo-mento de recuo!

–– Não sei não, o pessoal do Chile não achaisso! Retrucou Jonatas.

O encontro estava ficando demorado. JoséManoel sabia dos riscos para ambos:

–– Sábado às 3 da tarde no Hospital São José,vamos levar você para um local seguro! Falou umtanto aperreado.

No sábado, José Manoel deixou Jonatas numachácara em Abreu e Lima. Alguns dias depois,Jonatas voltou para São Paulo com o ponto com-binado para encontrar Moisés. Era domingo, 30 demaio de 1971 e Anselmo já estava em São Paulo.

O problema era que Anselmo já não era Jonatashá algum tempo. E os poucos que desconfiavam dis-so estavam presos e tentando passar a informaçãopara os companheiros, mas os desentendimentos en-tre os grupos, a divisão entre os que achavam queera o momento de recuar para reorganizar a luta eos que acreditavam que o governo cairia com um

Page 311: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

95

pouco mais de ação e luta, provocou um fosso pro-fundo entre as organizações armadas. Tirando pro-veito deste fosso entre as esquerdas, Anselmo agiatranquilo e sem medo.

1971. O General Humberto Melo assumiu o co-mando do II Exército em São Paulo com uma só de-terminação: não se deve prender mais nenhum ter-rorista. É para matar. E assim foi feito. A economiaia bem. Televisão, geladeira, fusquinha, corcel, a se-leção canarinho campeã do mundo mais uma vez,tudo isso embalado com o fundo musical do “Eu teamo meu Brasil”.

Page 312: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 313: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

97

14. Paratibe, adeus!

–– Geniiii! Geniii! Eram as mocinhas da pada-ria que a chamavam. Ela ia passando direto, aper-reada para chegar em casa e fazer o almoço. Saírabem cedinho e fora até o Posto de Saúde de Paulistapara vacinar seu filho. Paratibe era um lugar ondequase nunca acontecia nada e as mocinhas da pada-ria estavam ansiosas para contar a novidade.

–– Hoje bem cedo, antes de oito vieram aquiuns homens perguntando pelo seu marido! Disseuma delas atropelando a outra, que completou comos olhos brilhando:

–– Uns homens altos e bonitos de roupa boanum carrão e com sotaque do sul! Eu acho que eleseram de São Paulo!

Geni nem deu muita importância para o fato.Devia ser engano. Quando se aproximou da sua casaela viu na ponta da rua um automóvel preto, gran-de, novo e sem nenhuma razão para estar alí naque-la hora e naquele lugar.

Pouco tempo depois que entrou em sua casa,viu o carro estacionar em frente e dele descer doishomens. Viu que dois permaneceram no veículo, omotorista e um que estava no banco de trás. Nemprecisaram chamar ou bater palmas pois Geni saiulogo para atendê-los.

A casa de Geni em Paratibe tinha uma cerca devaras na frente. A casa ficava mais ao fundo. Seu

Page 314: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

98

filho brincava no quintal. Os homens eram aqueles,tal qual descritos pelas mocinhas da padaria. Esta-vam bem vestidos, eram altos, usavam óculos escu-ros, camisas de manga comprida e um deles usavaaté gravata.

–– Olha! Nós viemos aqui e queríamos falarcom o seu marido, o José Manoel! Você é a esposadele, não é?

Geni ficou preocupada mas confirmou que JoséManoel morava alí e era seu marido. Depois, pen-sou que podia ser o pessoal da Marinha, pois já ou-vira falar que eles estavam procurando os ex-mari-nheiros e levando-os para o Rio de Janeiro paracumprir pena de prisão. Ela pouco sabia, mas des-confiava que José Manoel era procurado pela Mari-nha. Ele não falava e ela também não perguntava eassim iam vivendo.

Os homens escondiam os rostos nos óculos es-curos, grandes, muito grandes. Um deles se adian-tou encostou no portão e disse com muitatranquilidade para Geni:

–– É que o seu marido ganhou na loteria ecomo é muito dinheiro a gente veio buscá-lo paraque ele receba em segurança. Quando é assim mui-to dinheiro, a gente prefere buscar a pessoa paraentregar o prêmio pessoalmente.

–– Vocês vão sair da miséria! Disse o que esta-va no volante do carro. Falou com seriedade, masdepois traiu-se com um risinho de sarcasmo que nãopassou despercebido por Geni.

Page 315: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

99

Meu marido está viajando e só volta daqui doisdias! Geni estava espantada com aquela notícia, masacreditava mesmo que aqueles homens estavam alipara entregar um prêmio para seu marido. E entãodisse:

Olha! Meu marido nunca me falou que jogavana loteria!

Um dos homens respondeu:–– É assim mesmo, tem marido que gosta de

fazer surpresa para a mulher! E todos sorriram.Depois, entraram no veículo e saíram sorrindo. Nemdisseram quando voltariam.

José Manoel viajara no dia anterior. Recife,João Pessoa e Natal vendendo mercadorias e fazen-do seu trabalho de militante. A previsão era quevoltaria mesmo depois de três dias. Quase sempreera assim.

Chegou naquele dia, à tardinha quase noite eencontrou Geni entufada. Muito entufada. Apanhouseu filho pela mão e foram na bodega da esquina.Ele preocupado e tentando adivinhar porque Geniestava daquele jeito, ela que sempre o recebia commuita alegria, sempre sorridente e agora, calada,sem graça e querendo dizer alguma coisa.

Voltou da bodega com uma lata de sardinha,refrigerante e cerveja. Ela nem olhou para ele. E aí,ele não aguentou. Rendeu-se àquela situação:

–– O que houve Geni? Você está magoada co-migo?

Ela respondeu quase chorando:

Page 316: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

100

–– Mas como pode isso Zezinho, a gente casa-do há muitos anos, correndo prá lá e prá cá, juntosnesse aperreio e você nem me diz que joga na lote-ria! Ah! Zezinho eu não esperava isso de você não!

Primeiro ele ficou relaxado. Era menos do queele pensava que fosse. Depois preocupado com odespropósito da situação. Ela, sua mulher embur-rada por causa de um negócio desses.

–– Por que você me diz isso? Eu nunca jogueiem loteria não, aliás eu sempre fui contra jogar naloteria e você sabe disso!

–– É por isso mesmo Zezinho, pois quantasvezes a gente já discutiu sobre isso e você sempreme disse que não jogava e nunca jogou! E agoraisso...

–– Isso o quê?–– Isso de você ganhar na loteria!José Manoel chegou no máximo do espanto

com aquela conversa.–– O quê???–– É isso mesmo, hoje cedo vieram quatro ho-

mens num carro preto, novinho, novinho e me dis-seram que iam levar você para receber o prêmio! Eque era muito dinheiro e um deles disse até que agente ia sair da miséria!

–– E como eram estes homens? Quis saber.–– Bem vestidos, de camisas de mangas com-

pridas, óculos escuros, todos altos e com sotaquede paulista!

José Manoel empalideceu. Geni percebeu algu-

Page 317: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

101

ma coisa estranha e não falou mais nada.José Manoel foi até o quarto e tirou o sapato

ortopédico que calçava. Agora estava calado. Cis-mado. Ele já sabia que a equipe do Fleury estavaem Pernambuco. Aliás era uma disputa que se tra-vava entre o DOI-CODI e o CENIMAR para verquem capturava a presa primeiro. Quem torturavaprimeiro.

–– Arrume as malas, junte as coisas da cozi-nha que nós vamos viajar!

–– Para onde? Ela quis saber.–– Depois eu lhe digo! Agora vá arrumando as

coisas!Geni já estava acostumada àquilo e nem per-

guntou mais nada e nem discutiu. Entrou e foi ar-rumar as coisas. Do quarto ouviu o barulho do au-tomóvel de Zezinho arrancando e ganhando veloci-dade. Era noitinha. Eles nem haviam jantado.

Em menos de uma hora José Manoel voltounum caminhão simples. Ele, o dono do caminhão eum ajudante. Voltou sem o seu automóvel. Não fa-lou nada para Geni sobre isso e ela também nãoperguntou. Foi o tempo de colocar, móveis, malas eroupas e sair. Era mais de onze da noite quandoviajaram para Toritama.

Geni gostava de Paratibe. Quando se mudarapara lá, uma vizinha lhe falou:

–– Dizem que o nome daqui é dos índios e querdizer cheio de rios ou entre rios. É um lugar muitobom para se morar!

Page 318: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

102

Era um terreno grande, cercado de arame far-pado. José Manoel sempre quis ter um terreno na-quele local. Festejaram muito quando finalmente ocompraram. Depois, fizeram uma cerca de varas nafrente e construíram a casa lá no meio do terreno.

Geni tomou a frente e com o seu filho, aindacriança, e alguns vizinhos levantaram a casa de tai-pa e piso de cimento queimado. Sala, quartos, cozi-nha, banheiro. O barro tirado do próprio terreno,argila das boas. Lugar simples e vida simples. Vizi-nhança melhor não havia. Solidários, sempre soli-dários. Nos domingos, embarcavam no Gordini ver-de claro e iam fazer a feira em Abreu e Lima. Tem-pos felizes. Assim era Paratibe para Geni.

1972. O Brasil vai bem, sob censura. O PIB crescea 12%. Televisão em cores a prestação. A classe mé-dia, uma parte, vibra com tudo. O Fittipaldi é cam-peão do mundo. É estrada, é siderúrgica, é porto, éusina. É o diabo! A ditadura anuncia o milagre. É o“Milagre brasileiro”! É mais fusca e mais corcel naprestação. Um banco vai engolindo o outro e ficandomais forte e cobrando juros mais altos. É o progres-so. No Uruguai, os Tupamaros são mortos. Há umaestranha música tocando em Santiago do Chile, anun-ciando uma tragédia. Há muitos surdos no Chile. NaArgentina é muito perigoso viver. Numa casa dePetrópolis, depois de torturados, enterram-se os ca-dáveres no jardim.

Page 319: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

103

15. O Comando Gelson Reicher

–– O moço veio com uma espingardona assimdesse tamanho para o meu lado e me ajudou a le-vantar! Eu estava meio zonza porque quando caí,bati a cabeça na quina da mesa! Ele me levantou eperguntou se estava tudo bem! Não estava, eu sen-tia uma dor danada na cabeça! Mas não respondinada! Só fiz balançar a cabeça que estava tudo bem!

Geni e algumas mulheres da vizinhança, prote-gidas do sol debaixo daquela mangueira no quintalgrande da sua casa em Toritama, ouviam com inte-resse a história da vizinha que chegara há pouco deSão Paulo. Ela gesticulava muito, falava bem alto eterminava a frase com um risinho nervoso no cantoda boca.

–– Aí ele apanhou a bandeja, o bulezinho docafé, as chicaras e os cacos das chícaras e botoutudo em cima da mesa e me pediu desculpas! Eufiquei calada, nem respondi! Estava em estado dechoque! Ele era bem novinho e tinha uma barbinharalinha, meio avermelhada! Os olhos dele eram bemverdes e ele me olhou mesmo com o jeito de quempedia perdão! Ah! Isso eu não vou esquecer nunca!Aqueles olhinhos verdes de criança!

Calou. Ficou pensativa olhando os raios do solatravessando a folhagem da mangueira. Era um si-lencio grande, todos olhando para ela, admirados.

–– Meu tempo em São Paulo foi bem curto!

Page 320: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

104

Arrumei esse emprego em Osasco e fazia limpeza eservia o cafezinho! Era um emprego bom, de car-teira assinada e um pessoal bem legal, mas depoisque aconteceu esse negócio, ninguém mais na firmateve sossego! Fiquei com muito medo! A polícia tan-to ia na casa da gente como na firma! E queria sa-ber isso, aquilo, o nome do pai, da mãe, do tio e sea gente tinha irmão, primo, o que faziam e ondemoravam! Um inferno!

Um carro de propaganda passou na rua anun-ciando a inauguração de uma loja na cidade e nin-guém mais ouvia a narração da história. Ela perce-beu e parou. Quando o veículo se afastou, ela reto-mou, mas aí Geni perguntou:

–– Mas então, como foi que aconteceu do ra-paz derrubar você?

–– A porta da contabilidade era de duas ban-das igual aquelas dos filmes de bandido e mocinho!Eu até achei engraçado porque só tinha visto aque-las portas nos filmes! Eu ia distribuir o cafezinhopara o pessoal da contabilidade! Eu nem sabia da-quele movimento todo, porque estava na cozinhafazendo o cafezinho! Aí o moço ouviu barulho eveio pela porta com tudo e me derrubou, eu e abandeja de cafezinho! Foi café para todo lado, por-que eu já trazia servido nas chícaras! Foi um mo-mento terrível e eu tremia muito e não conseguiaparar de tremer! O moço me acalmou e pediu ape-nas que ficasse quieta, sentadinha na cadeira e eufiquei! Ele não tinha jeito de pessoa má! Aí eles

Page 321: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

105

pegaram o dinheiro do cofre e nos entregaram umafolhinha escrita, que o seu Claudemir da contabili-dade disse que era um panfleto. Depois eles escreve-ram bem grande na parede com tinta preta, “Co-mando Gelson Reicher” e “Abaixo a ditadura as-sassina”! Isso eu também nunca vou esquecer!

O sol baixando, um sanhaço cantou numa ár-vore bem próxima. Outro veio e também cantou,agora, na mangueira. Todos olharam para o pássa-ro e ele voou, aí voltaram a olhar para ela.

–– Depois foi um inferno! Todo mundo teveque ir na polícia! E lá era pergunta que não acabavamais! Na outra semana fui pedir a conta para o ge-rente, seu Tarcísio, mas ele me aconselhou a nãopedir porque senão a polícia ia desconfiar de mim!E perguntou se eu tinha pego a folhinha escrita dosmoços e se tivesse em casa que queimasse e jogasseas cinzas na rua sem ninguém ver! Aí eu tive maismedo ainda, porque eu levei umas cinco e distribuícom os vizinhos, porque achei o máximo tudo aquiloacontecer ali na firma! Só depois de três meses foique seu Tarcísio me deu as contas! Eu tive até quechorar e mentir que minha mãe estava doente e eutinha que voltar para Pernambuco para cuidar dela!No outro dia eu vim embora para cá e não voltonunca mais naquela terra! Faz muito frio, a maio-ria do povo não tem consideração com a gente etem muita polícia perturbando! É um povo engra-çado que chama a gente de nortista ou de baiano!Aí eu dizia! Não sou baiana, mas gosto muito dos

Page 322: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

106

baianos que são bonitos e legais, mas soupernambucana e nordestina! Um tio meu havia mefalado tudo isso e eu tinha o maior gosto de dizerque era nordestina e pernambucana! Olha bem senão é o destino! Mamãe não queria que eu fosse!Disse que o número setenta e dois não era bom parase mudar e aí deu o que deu, não foi?

Agora, estavam todos curiosos para saber a con-tinuação e Geni a interrompeu novamente:

–– Mas e então como foi que eles entraram lá?–– Foi tudo assim e eu tive muita pena do pes-

soal da contabilidade que estava esperando a moçaloira bonita que ia trabalhar com eles! Era uma ani-mação que só vendo! Agora, quem eu ví dizer queapanhou da polícia foi seu Antonio da portaria, nãosei se pelo fato dele ser preto, mas dizem que a polí-cia levou ele lá no DOPS e bateu nele para ele con-fessar que abriu o portão para os terroristas entrar!Era mentira porque a loira já tinha ido lá fazia umasemana com o recorte do jornal na mão! Eles esta-vam procurando uma funcionária para a contabili-dade que deveria ter experiencia! Eu nem sei se elatinha, mas foi contratada na hora! Era muito boni-ta! Aí, calou-se, olhou para Geni e continuou:

–– Depois fiquei sabendo que a polícia invadiuo quarto dos rapazes da contabilidade e depois cha-maram eles lá no DOPS! O Claudemir foi um delesque teve que ir lá! Acontece que eles pegaram ospanfletos e guardaram numa mala! A polícia ficoudesconfianda deles porque eles tinham os panfletos

Page 323: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

107

e porque contrataram logo a moça! Interrompeunovamente parecendo buscar na memória os acon-tecimentos e depois prosseguiu:

–– A moça foi lá para arrumar emprego e fi-cou de começar em dez dias! Fez logo amizade como seu Antonio da portaria, que até comentou co-migo que a moça era muito educada! Na outra se-mana ela foi e seu Antonio da portaria já conheciaela e abriu a porta! Ela entrou e rendeu seu Anto-nio da portaria com um revólver! Seu Antonio dis-se que nem acreditava que era verdade e só acredi-tou quando ela falou que não iam atirar em nin-guém, mas que iam levar o dinheiro da empresa por-que o dono dela estava dando dinheiro para a polí-cia torturar os estudantes! Depois vieram os ami-gos dela todos com uma espingardona bem grandee entraram e um deles foi logo escrever na parede,“ALN , Comando Gelson Reicher!”. É bem assim onome porque o Claudemir da contabilidade que foium dos rapazes que pegou o panfleto me disse queos moços não eram terroristas não, terrorista era apolícia que tinha quebrado tudo no seu quarto, in-clusive sumido o dinheiro dele pagar a escola decontabilidade e tinha batido no seu Antonio queera uma pessoa muito boa!

Um raio de sol atravessou a mangueira e bateudireto no rosto dela. Ela caretou e mudou de lugar.Foi sentar numa pilha de tijolos junto do alpendreda casa. Sorriu ao lembrar-se de alguma coisa e con-tinuou:

Page 324: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

108

–– Um dos rapazes que estava com aespingardona disse que faziam aquilo para o bemde nós trabalhadores! E que só restara aquilo paraeles porque não era mais governo, era ditadura! Euestava com muito medo, não disse nada e tambémnão entendia nada da política, mas ví que ele falavaaquilo com a razão dele, eu senti isso!

9 de julho de 1972. O Jornal do Brasil descreveuassim o comportamento do ditador GarrastazúMédice no jogo Brasil e Portugal no cinquentenárioda independência: “Como os outros, ele chegou cedo.Nervoso, mudou o radinho de pilha de um ouvido paraoutro 13 vezes, fumou cinco cigarros. Falou pouco,sorriu quatro vezes e deu dois socos no ar. Mas nahora do gol ele pulou como todo mundo, os dois bra-ços levantados.(...) O Presidente dá o 1º soco no ar.Três minutos: o Presidente fuma o seu primeiro ci-garro deslocando o radio do ouvido esquerdo. Seteminutos: balança a cabeça desaprovando um passeerrado de Gérson. Oito minutos: troca o radio de ou-vido, passando do esquerdo para o direito. (...) Qua-renta e três minutos e meio, o Presidente pula. Osdois braços levantados. Era um torcedor simples, igualaos 99 mil que foram ao Maracanã. Mas, três minu-tos depois, representando o cargo no ato e o torcedorno abraço, entregou a Gérson a Taça Independência.E, feliz, foi um dos últimos a deixar o Maracanã. Aífoi sua vez de ser aplaudido”.

Page 325: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

109

16. O marinheiro Custódio

Custódio continuava falando, uma voz mansa,pausada, parecia saborear cada palavra.

–– Você tem razão! Falou José Manoel assen-tindo com a cabeça.

–– Sabe José Manoel, ainda vamos sofrer mui-to antes de conseguir mudar alguma coisa no nossopaís! Não há mais formas de participarmosdemocráticamente. Cortaram todas as possibilida-des. E vem mais truculencia por aí.

Há muitos anos que Geni não via aquele ami-go de Zezinho. Lembrava-se dele na farda de mari-nheiro e que duas ou três vezes fora na casa dela emMesquita, sempre com jornais e livros na mão. Che-gava sempre com um ar sério e chamava Zezinhopor José Manoel, assim bem pronunciado e sem es-conder o seu sotaque cearense. Tinha um rosto decriança e quando sorria, parecia mesmo uma crian-ça.

Custódio chegara no dia anterior, pela noite efora dormir muito tarde, pois ele e Zezinho passa-ram horas e horas conversando.

Era domingo e os três almoçavam sem as cri-anças que estavam na casa dos avós ali mesmo emToritama.

Só se ouvia o silêncio dos talheres.–– Estive no Ceará. Faz vinte dias que estive

lá. Disse Custódio olhando para Zezinho, entabu-

Page 326: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

110

lando uma conversa.Zezinho e Geni olharam para ele. Zezinho ba-

lançou a cabeça aguardando a continuação da his-tória.

–– E então?–– Fui ver minha irmã, mas nem a ví...–– E porque?–– Tudo seco pelo caminho e uma tristeza gran-

de. É muita miséria. Aquilo que nós já conhecemos:sol e poeira, mata seca, açudes vazios, gado morto,o povo nas estradas sem saber para onde ir e acoronelzada gastando dinheiro , mangando da gentee dizendo que vai para o Rio comer gente.

Arrastou a cadeira, afastando-se um pouco damesa e disse:

–– Continuamos como o grande depósito demão-de-obra do capitalismo. E agora, os que fo-ram para a Transamazônica estão voltando: os vi-vos com os fantasmas dos mortos. Dois tios e trêsprimos morreram lá. Minha tia disse que todo diamorria muito índio também. “Afinal, a terra é de-les, não é?”. Ela sempre falava assim, esperando mi-nha confirmação.

–– Sim, mas e sua irmã? Perguntou Zezinho.–– Pois é, não a ví... Respondeu, baixando a

cabeça, o rosto crispado. Parecia não querer falarno assunto que ele mesmo começara.

–– Veja como é a vida. Falou finalmente. Saí-mos todos de lá em cinquenta para o interior deSão Paulo, fugindo da seca. Aquela história que todo

Page 327: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

111

mundo sabe de caminhão de pau de arara. Minhairmã que já era casada naquela época, ficou. Meupai não aguentou muito tempo lá em São Paulo,voltou e ficou morando na casa da minha avó, amãe dele. Minha mãe não quis voltar e criou a gen-te sozinha. No mês passado quando consegui falarcom minha mãe, ela me avisou que minha irmã es-tava doente. Minha mãe recebera uma carta delapedindo ajuda. Consegui me organizar e fui lá a se-mana passada. De Fortaleza fui para SenadorPompeu. Dormi lá para pegar o trem que só saía atarde para Piquet Carneiro. Fiquei hospedado numapensãozinha simples, mas agradável. Pela manhãtomei café e saí para a rua. Fui abordado logo nasaída por um engraxate. Parece que ele fazia pontoali entre as poucas pensões da cidade.

Interrompeu a narrativa e olhou pensativo paralugar nenhum. Geni e José Manoel fitaram-nointerrogativos.

–– Este sapato não é daqui! Me disse de pron-to o engraxate. Quando eu disse que comprara emSão Paulo, ele ficou muito feliz porque naquelespoucos anos de engraxate sabia distinguir de ondeeram os sapatos que engraxava em Senador Pompeu.Depois continuou conversando e me disse que nãoera dalí, mas de Piquet Carneiro, e vinha todos osdias de trem para engraxar sapatos porque rendiamais. Aproveitei para perguntar se ele conhecia Se-bastião de Totonho Dantas.

Interrompeu novamente, baixou a cabeça e

Page 328: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

112

quando levantou estava chorando. Com a voz qua-se sumida, continuou:

–– Aí o engraxate me disse: Todo mundo co-nhece Tião de Totonho Dantas! É o maior bêbadode Piquet Carneiro. E a mulher dele morreu na se-mana passada! Diz o povo que os filhos dele estãomorrendo de fome.

As lágrimas agora escorriam pelo seu rosto,abundantes. Soluçou, retirou um lenço do bolso,enxugou-as e continuou:

–– Veja a situação, eu recostado na parede dapensão com um pé apoiado na caixa do engraxate,acabara de saber, de uma só vez, da morte da minhairmã, que o meu cunhado agora era um bêbado eque meus sobrinhos estavam passando fome.

José Manoel fez sinal para ele parar. Mas elecontinuou.

–– Fui neste mesmo dia buscar meus sobrinhose rezar na cova da minha irmã. Meu cunhado pediuuma chance. “Se eu me separar dos meus filhos,morro em pouco tempo!”. Ele me disse. Trouxe eletambém e até agora não bebeu mais e já está traba-lhando.

Agora estava mais calmo, enxugou novamenteo rosto e continuou:

–– Depois fui visitar o meu pai e a minha avóque moram num sítio próximo de Piquet Carneiro,num lugar chamado Algodões, talvez o lugar maisseco que existe no Ceará.

Agora falava com a voz mais clara e até apre-

Page 329: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

113

sentava um sorriso tímido.–– O motorista da Rural Willys que me levou

até lá, duvidou que ainda tinha gente morandonaquele lugar. Não existia nem porteira e nem cer-ca. Muito mal existia a estrada. A casa tinha viradouma tapera. Desci pouco antes da casa, próximo dojuazeiro e da casa de desmancha, onde brincava etrabalhava quando criança. O juazeiro era a únicacoisa verde naquele mundo.

Parou e olhou longamente para José Manoel edepois para Geni que estavam apreensivos.

–– Foi bom eu ter ido até lá! Fiquei recordan-do minhas traquinagens recriminadas pela minhaavó que não queria que matássemos os passarinhos.No dia que fomos embora, ela nos chamou e disse:“Vocês estão indo para o sul que é terra de genteeducada. Sejam educados também e sempre peçama benção dos mais velhos!”.

José Manoel concordou:–– É assim mesmo que todo mundo pensa, que

o sul é sempre melhor!Custódio que interrompera a narrativa parecia

agora mais alegre, recordando dos momentos e daemoção que sentira naquela visita ao sítio da suainfância. Continuou:

–– Nem um sinal de vida na casa. Depois demuito tempo ouvi o latido de cachorro. Um latidobem fraquinho que vinha por detrás da casa. Cami-nhei até lá . Interrompeu a narrativa e fitou JoséManoel e Geni, os olhos lacrimejantes e continuou:

Page 330: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

114

–– Minha tia me esperava na porta da casa.Ela estava muito velha. Era surda muda e nós cri-anças fazíamos muitas brincadeiras com ela. Ela nãome reconheceu, mas estendeu uma pequena tabule-ta pintada de preto onde estava escrito: Quem évocê? Custódio sorriu tímido, parecia envergonha-do e continuou:

–– Aí ela me estendeu um giz. Eu escrevi, Cus-tódio de Dedé Grande e ví que os olhos dela brilha-ram. Ela me reconheceu. Veio e me abraçou bemforte. Fez sinal para que eu entrasse. A sala despo-jada e com os mesmos móveis de mais de vinte anos.

Custódio baixou a cabeça. Chorava de novo.Mas fazia um esforço enorme para não chorar, masnão conseguia segurar as lágrimas. Enxugou o ros-to e olhou envergonhado para Geni e Zezinho.

Eles, calados, solidários, até que Geni falou:–– Chore, chore que chorar faz bem. Só estamos

nós aqui e somos amigos. Não se aperreie.Ele retomou a história:–– Meu pai estava sentado junto de uma jane-

la. Ficara cego. Minha tia foi até ele, que estendeuo braço para ela. Era tudo bem definido. Pareciaque há muito tempo era assim. Ela, com o dedo , otoque do dedo, escreveu alguma coisa no seu braço.Sem tinta sem nada, só com o tato! “Meu filhoCustódio!” Meu pai disse, emocionado. Levantou-se e com a voz quase sumida falou: “Venha cá meufilho para eu lhe dar um cheiro!” Eu não conseguiafalar nada, só chorava. Minha avó estava deitada

Page 331: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

115

numa rede puída, as varandas aos pedaços, numquarto junto à sala. Não andava, não falava e co-mia com dificuldade. Meu pai tateou até a porta doquarto onde estava minha avó e falou bem alto paraela: “É seu neto! É meu filho Custódio que é daMarinha!” Disse orgulhoso.

–– E eu nem era mais da Marinha...

15 de setembro de 1972. Um jornal paulista re-cebeu o seguinte comunicado do Ministério de Justi-ça: “De ordem do senhor Ministro da Justiça fica ex-pressamente proibida a publicação de: notícias, co-mentários, entrevistas de qualquer natureza sobreabertura política ou democratização, anistia aos cas-sados, situação econômico-financeira, problemasucessório”, ... etc. etc.

Page 332: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

116

Page 333: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

117

17. Um cachorro chamado Kimble

Anselmo, o Jonatas, agora era Daniel e vinhapara Toritama. Toritama fica no agreste, quase ser-tão de Pernambuco e era onde José Manoel, mili-tante da VPR morava. Vivia modestamente e fabri-cava chinelos de couro crú que vendia nas feiras dePernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. Ocor-re que Anselmo nem era mais Jonatas e muito me-nos Daniel, agora era Kimble e tinha virado cachor-ro. Aproveitava os problemas internos da VPR, umcaldeirão que fervia em discordâncias profundasde táticas e estratégias que rodava o mundo entreBrasil, Cuba, Chile, Argélia e a Europa. Alheio atudo, Anselmo fazia o seu novo trabalho. O seu sujotrabalho. Agora para a ditadura. Estava sob as or-dens do delegado Fleury do DOPS, onde dinheironão era problema, nem escrúpulos, nem nada. O ri-gor da clandestinidade o favorecia. Anselmo tinhaconsciência de tudo isso e sabia usar a seu favor.Juntava segredos, terríveis segredos que não teriadepois com quem partilhá-los.

Para José Manoel, o Cirilo, Anselmo não eraKimble, ainda era Jonatas e agora Daniel. A admi-ração e o respeito por Anselmo era sincero, afinalele fora o grande condutor da assembléia naquelemarço de 1964 lutando pelos direitos dos marinhei-ros e pelas reformas de base que iriam melhorar avida do povo brasileiro e levara para a reunião nin-

Page 334: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

118

guém menos que João Cândido, o líder da Revoltada Chibata, o homem que ousou dirigir uma revol-ta contra os poderosos e que pela primeira vez tira-va a máscara da república. Uma república fardada ecomandada por coronéis sem farda.Os marinheirosprovaram que a república não era a res-pública. OEstado tinha dono e seu dono não era o povo.

Mas Anselmo se fiava também em outras coi-sas. A herança moral da Associação dos Marinhei-ros, a bela herança construída pelo companheirismo,a solidariedade, o despojamento dos marinheiros.Kimble também se aproveitou disso e então foi atéa casa de José Manoel em Toritama, um pecadomortal na luta clandestina, onde o contato é nospontos e onde não se deve saber onde mora o com-panheiro, o que faz e o seu nome verdadeiro. E elefoi a Toritama porque agora seu mundo era o po-rão fétido da repressão, onde torturadores erampagos por banqueiros, industriais e fazendeiros epela rapina dos bens dos militantes capturados eonde não havia escrúpulos. Para ele era fácil atuar,pois entre militares na luta armada a confiança eratotal.

O pessoal do INCRA também estava emToritama, vigiando. Era a equipe do delegadoFleury, que usava um carro com o emblema doINCRA e que vigiava tudo desde algum tempo. Des-de o tempo que Anselmo virara cachorro com onome de Kimble.

José Manoel tinha disciplina. Era um militan-

Page 335: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

119

te fixado numa base e que desenvolvia um bom tra-balho político. Um trabalho lento, mas sólido. Eleestava conseguindo fincar uma trave naquele chãoduro de pedras de muita miséria para o povo, masde muita riqueza para os coronéis que ganharamfôlego servindo de capachos da ditadura. JoséManoel ultrapassara a fase do foquismo. Atuava naregião e procurava organizar uma escola de alfabe-tização e era da diretoria do time de futebol, oIpiranga Futebol Clube, onde ganhara a estima econsideração e procurava mostrar outras coisas alémdo futebol bem jogado pelo seu time.

Anselmo e sua companheira Soledad aparece-ram para o almoço e agora conversavam na varan-da. Era novembro. Final de novembro.

–– Ficou quanto tempo em Natal? EraAnselmo que falava agora.

–– Dois anos, se muito. Cheguei solteiro e saícasado, quer dizer meio casado porque foi casamentona igreja. No civil casei lá em Nova Iguaçu e aindanem era cabo!

Anselmo continuou:–– Tenho boas lembranças de Natal! Estive lá

no começo de 64 e visitei o pessoal da nossa associ-ação, fui apresentado ao prefeito Djalma Maranhãoque morreu agora no exíio em Montevidéu! Fize-mos uma reunião no Sindicato dos Bancários quefoi mais um discurso sobre as reformas de base! Ti-nha gente do Partido Comunista... o pessoal lá é defibra! Depois vim para o Recife e também fizemos

Page 336: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

120

uma boa reunião num sindicato de lá! Todo mundoestava confiante nas reformas do Jango!

Depois do almoço, Anselmo saiu com JoséManoel que queria ver algumas propriedades ruraiscom a intenção de comprar:

–– Uma fazendinha para engordar gado! Dis-se José Manoel para Geni.

Soledad chegou tensa, calada e bem diferentedo que se falava dela, mulher expansiva e sorriden-te. Não saiu com Anselmo e José Manoel, ficou epassou o dia fazendo bordados, calada, cismada.Parecia sofrer muito. De vez em quando levantavaos cabelos, os tirava da nuca e numa dessas vezesGeni viu uma mancha avermelhada, uma escamação,como se fosse uma cicatriz. Soledad percebeu queGeni olhava com certo espanto e disse sorrindo qua-se se desculpando:

–– Psoríasis! aumenta cuando estoy nerviosa!Geni sorriu e concordou com a cabeça, mas

não entendera nada. Percebeu sim uma enorme an-gústia naqueles olhos que pareciam pedir socorro.Foi das poucas vezes que Soledad falou. Econômicanas palavras, pedia por favor e dizia obrigado, sem-pre com um sorriso terno, mas era só. Geni nãoestava gostando daquilo. Sentira um clima pesadoe desagradável entre Soledad e Anselmo. Eles nãopareciam um casal feliz como Zezinho lhe falara.

Geni atribuia a mudez de Soledad à barreirada língua. Estava aperreada por entender pouco doque ela falava. Achava uma língua diferente, estra-

Page 337: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

121

nha. Era muito difícil para Geni tudo aquilo, logoela muito expansiva e prestativa. E assim Soledadpassou a tarde bordando blusas, muitas blusas, numrítmo frenético, cabeça baixa concentrada no bor-dado.

José Manoel chegou tarde da noite sem a com-panhia de Anselmo. Soledad já estava dormindo.Geni a acomodara no quarto de seu filho. Não hou-ve novidades na chegada de José Manoel. Soledadcontinuou dormindo. Talvez já tivessem combina-do tudo aquilo, mas Geni achou aquilo estranho.

–– Anselmo está aperreado. Soledad estágravida e eles não podem ter este filho agora. Preci-sa de alguém que faça o aborto! Você sabe de al-guém por aqui ou lá em Natal que faça o aborto?

–– Eu sou contra fazer aborto. Não é umacoisa certa! Sou católica e contra o aborto. Foi sóo que disse Geni. José Manoel ouviu e ficou calado.Não tocaram mais no assunto.

Na verdade, aquela visita de Anselmo, quebran-do todas as regras de segurança, tivera vários pro-pósitos: levantar a atuação da VPR na região, co-nhecer a extensão do trabalho de José Manoel econvencê-lo a ir ao Chile para creditá-lo junto àVPR e a Onofre, além de trazer dinheiro para aorganização e mostrar que ele Anselmo, não era umtraidor. Isso aplacaria as desconfianças de Soledadque àquela altura estava desesperada com apossilidade de Anselmo ser um agente da ditadura.Para Anselmo, ninguém melhor que José Manoel,

Page 338: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

122

um romântico, um poeta, um ex-marinheiro que forada direção da Associação dos Marinheiros, militan-te da VPR, ligado umbilicalmente a José Raimundoda Costa, figura respeitada pelos grupos de esquer-da, para avalizá-lo à direção da VPR no Chile. Fa-lar da sua atuação no Nordeste e mostrar que asdenúncias eram insinuações maldosas, provocadaspelo personalismo que invadia as organizações eque provocava a divisão dos revolucionários e aju-dava a ditadura. Enfim era tudo fruto da invejaentre os grupos da esquerda.

Militares são homens de ação. Os marinheirosentraram no movimento para agir e não pensandoem teorizar, mas no desenrolar da luta foram apren-dendo, foram estudando e foram percebendo quehavia a necessidade de um trabalho mais profundo,de raízes, de estrutura, afinal, não bastava fazer umaação espetacular para o povo ir atrás. O povo nãoestava indo atrás. E porque não ia? O que faltava?A teoria era importante sim. Isso eles foram apren-dendo com o desenrolar da luta armada.

Quando Anselmo saiu depois do almoço comJosé Manoel, despediu-se de Geni. Geni ficou comaquela sensação estranha, aquele nó na garganta,aquele mal estar sem saber o porque daquilo. Sen-tiu muito medo de Anselmo. Seu olhar e o beijoque ele deu na sua face ficou congelado na sua me-mória. A cada vez que lembrava ficava arrepiada demedo. Sentiu que era um beijo de traição.

Mais tarde quando se preparavam para dor-

Page 339: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

123

mir, Geni confessou suas dúvidas para Zezinho.José Manoel lhe respondeu um tanto ríspido:–– Mulher tire isso da sua cabeça que ele é um

cabra muito bom! Um grande companheiro de lon-ga data!

Soledad foi embora na manhã do dia seguinte.Ao sair, deixou uma bolsa com algumas roupas pró-prias para o frio. Eram roupas que pouco se usa-vam naquele clima quente do Recife.

1972. Na região do Araguaia a luta prosseguia.No Brasil, poucas pessoas sabem que há uma guer-rilha no Araguaia. Nas redações dos jornais e revis-tas e nas universidades circula um relato datilogra-fado que é reproduzido por cópia xerografada e pas-sado de pessoa a pessoa. No dia 29 de setembro, numencontro casual, cai a jovem guerrilheira Elenira.Elenira Resende de Souza Nazaré. Juntamente comoutro companheiro, ela fazia guarda num ponto altoda mata onde havia uma estrada, a fim de assegurara passagem sem surpresa do Destacamento ... Emsetembro de 1972, as Forças Armadas da ditaduravoltam para a segunda campanha. Empregarm efe-tivos de 8 a 10 mil homens sob o comando dos gene-rais Viana Moog e Antonio Bandeira.

Page 340: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 341: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

125

18. Primavera em Santiago

“Sim, é bem possível no próximo ano vamoster o festival de cinema aqui!” Na recepção do hoteldois homens conversavam em voz alta. Não haviacomo não escutar. E José Manoel que naquele mo-mento entregava as chaves do quarto na recepção,pensou que talvez no próximo ano ele poderia virnesse festival de cinema. Ele que sempre gostou decinema.

Deixaram o hotel e foram passear pela cidade.–– Vamos até alí, parece que é um lugar bom!

Geni falava inebriada com toda aquela beleza quenunca vira antes.

–– É para lá mesmo que vamos! RespondeuJosé Manoel sorrindo, compartilhando a felicidadede Geni.

Estavam em Gramado. Caminhavam por umarua como duas crianças descobrindo o mundo. Aolonge Geni viu a placa Café Colonial num localaprazível. Era novembro, quase dezembro de 1972e tudo para Geni parecia um sonho. Para ela, aqui-lo era mesmo um sonho. Um povo todo diferentedaquele que conhecia, de uma fala diferente, simpá-ticos e uma cidade toda florida, Hortênsias azuisnas estradas, praças e ruas. A serra, as plantaçõesde uva e maçã, o verde das pastagens, as árvores.Tudo tão diferente da secura de pedras de Toritama.Era mesmo um alumbramento.

Page 342: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

126

Adorou tudo no café colonial, os doces, os bo-los, o chocolate e lembrou dos filhos e o quantoeles gostariam daquele passeio.

–– Eu não imaginava que podia ter tanta coisabonita no Brasil! Falou, naquela felicidade sem ta-manho, quase nunca vivida até aquele dia.

–– Se correr tudo bem, a gente vem no anoque vem com as crianças! José Manoel também es-tava em estado de graça naquele lugar. Poucas ve-zes, durante toda a viagem, Geni o viu menos ten-so.

Para Geni, a viagem não fora planejada. Nodia que José Manoel chegou dizendo que finalmen-te fariam a viagem de núpcias, com um atraso dedez anos, ficou muito feliz.

–– Para onde? Perguntou curiosa.–– É segredo e ninguém pode saber! É nosso

presente pelos dez anos de casamento!Ela não estranhou, pois José Manoel era cheio

de segredos. Achou tudo normal.–– E as crianças, também vão?–– Não! Desta vez não vai dar. Vamos deixá-

las com mamãe! Afinal é nossa viagem de núpcias!Falou sorrindo.

–– É bom você levar aquelas roupas queSoledad deixou porque são roupas de frio e ondevamos pode fazer frio!

Geni vestiu uma saia longa quadriculada e umablusa azul clara de manga comprida. As roupas fi-caram bem nela. José Manoel aprovou.

Page 343: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

127

A viagem daquele casal de comerciantes brasi-leiros, seguiu pelos Andes. Agora estavam em San-tiago do Chile. Geni um tanto assustada, mas ado-rando a viagem. Chegaram pela manhã e JoséManoel buscou apressadamente um telefone e dis-cou 3-5818.

–– Alô! Atendeu uma voz cansada.–– Quiero hablar con el doutor Morais!–– É ele mesmo! É o Morais!–– É da parte do Maurício e quero falar com o

Ribeiro!–– Correto! Onde?–– Bem, é na praça ....–– Certo, certo! Preste atenção...existe um bar

no lado esquerdo. Vá para lá e peça um café e espe-re uns dez minutos e depois volte para a praça!

Aguardaram uns cinco minutos na praça, de-pois do café. Um automóvel parou bem junto deles,Havia um casal no veículo. Eles não desceram. De-ram uma chave, o endereço e saíram apressadamen-te.

José Manoel e Geni tomaram um táxi e foramaté o local indicado, um pequeno apartamento nocentro de Santiago.

No Chile, a burguesia e a alta cúpula militarsob a orientação da CIA preparava o golpe contra ogoverno democrático do presidente SalvadorAllende.

Geni estava no banho quando começou ouvirum barulho de latas batendo, de início tímido, mas

Page 344: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

128

que foi aumentando e ficando cada vez mais forte emais perto. Depois começou a ouvir também o somdas buzinas dos carros. Assustou-se e procurou ajanela para ver o que ocorria lá fora. Na rua, tudoparecia normal, na pracinha que avistava pela jane-la também, mas, nas varandas dos outros aparta-mentos pôde ver dezenas de pessoas batendo pane-las. Em muitas varandas, estavam lá as pessoas ba-tendo panelas. Estranhou tudo aquilo e saiu de pertoda janela. José Manoel pedira que não ficasse juntoda janela.

–– Estou cuidando do meu retorno para a Ma-rinha! Mas é segredo e ninguém deve saber! Pelamanhã, antes de sair, José Manoel conversoudemoradamente com ela. Mostrou-lhe tudo no apar-tamento e como deveria se portar. Ele só voltaria ànoite. Um papel pregado na parede da cozinha ori-entava sobre alguns procedimentos, coisas simplescomo por exemplo chá mate com leite condensado.Era tudo minuciosamente organizado.

José Manoel, além de creditar Anselmo juntoa Onofre Pinto e à VPR, anulando as notícias quechegavam denunciando Anselmo como traidor, de-veria ainda trazer dinheiro da organização para asações no nordeste. Militar como Anselmo e Onofree de confiança da organização, José Manoel era ami-go de Anselmo desde o tempo da Associação dosMarinheiros, onde ambos foram da diretoria. Eraamigo fraternal de José Raimundo da Costa, sar-gento da marinha, também da diretoria da Associa-

Page 345: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

129

ção dos Marinheiros e um militante respeitado pe-las organizações revolucionárias. Anselmo sabia queJosé Manoel era a pessoa certa para desfazer as no-tícias que o acusavam de agente da repressão sob ocomando do delegado Fleury do DOPS de São Pau-lo.

–– E então? Perguntou Onofre. Onofre eraum militar, respeitado por todos, homem sério, or-ganizado e que tinha a convicção que a luta deveriacontinuar de alguma forma.

–– Está tudo bem! Respondeu José Manoel.Anselmo esteve lá e disse que era preciso que euviesse. Dizem que estão queimando ele entre os com-panheiros. Ele se diz injustiçado! Afirma que é opessoal das outras organizações com suas desconfi-anças. Diz que não tem nada a temer. Esteve lá efomos até um sítio que poderá ser comprado. Elefoi ver o sítio e achou que é um bom negócio! Elefoi com Soledad...mas, parece que eles estão meiobrigados!

Interrompeu a fala e olhou para Onofre queouvia com atenção.

–– Anselmo acha que o problema maior é queentre nós militares há uma identificação que não háentre o pessoal oriundo do movimento estudantil eentre os intelectuais! Ele acha que nós, pela nossaorigem não tergiversamos e agimos quando é preci-so! Ele também acha que o pessoal teoriza muito eage pouco. Eu acho que é um problema que aindanão conseguimos superar: este negócio de revoluci-

Page 346: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

130

onários da pena e revolucionários do gatilho! Preci-samos superar isto, nós temos valorosos compa-nheiros saídos do movimento estudantil, do opera-riado, do campesinato e da intelectualidade. JoséRaimundo já havia superado isso. Eu também jásuperei!

Onofre o fitava pensativo sem expressar ne-nhuma reação. Há dois meses tivera um contatocom Diógenes de Arruda Câmara, um valoroso mi-litante do PCdoB que lhe dissera que vira Anselmono DOPS, não como prisioneiro, mas como cachor-ro do Delegado Fleury.

–– Eu não tenho motivos para duvidar deAnselmo, fosse ele militar ou não -- continuou JoséManoel -- nós somos amigos desde a Marinha, des-de sessenta. Minha presença aqui é mais para isso:desfazer um mal entendido e buscar recursos!

Onofre encarou o companheiro com certa an-gustia. Ele já não tinha tanta certeza se Anselmomentia ou não. E se fosse mais uma trama deAnselmo, das que vinham sendo comentadas? En-viar para o Chile, um valoroso companheiro se va-lendo da amizade pessoal, da extrema dedicação esolidariedade? Tentar encobrir sua traição, abjeta ecovarde expondo um companheiro? Seria possívelum ser humano assim? Depois refletia: não, não, étudo mesmo fruto da dissensão entre as esquerdase Anselmo é vítima. Como desconfiar de Anselmo,um homem que voltara de Cuba para a luta revolu-cionária e que tinha tido todas as oportunidades de

Page 347: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

131

viver tranquilamente na Europa. Não, Anselmo nãoé um traidor.

Onofre, visivelmente abatido disse:–– Está tudo muito confuso! Eu já não tenho

tanta convicção quanto a Anselmo. Agora é precisoter mais cuidado! Não estão claras as circunstânci-as da prisão e assassinato de José Raimundo e demuitos outros companheiros! Vocês todos podemestar em grande risco! Por outro lado devemos pri-meiro ter evidências, pois ninguém pode acusar as-sim sem provas! Há muita contra-informação e aditadura fomenta e se aproveita disso!

José Manoel sentiu faltar o chão. Erainacreditável tudo aquilo. Não era bom expressarreações sobre dúvidas, mas ele quase desabou comaquela suspeita por parte de Onofre. Aquilo eracomo uma lâmina entrando em seu peito devagari-nho. E lembrar agora que fora ele quem dera oponto para Anselmo com José Raimundo. E aí lem-brou-se das desconfianças de Geni após a visita deAnselmo em Toritama.

Na verdade, Anselmo estava ganhando tempo.Ele esperava reunir uma grande parte dos compa-nheiros da VPR alí em Pernambuco para entregá-los ao sadismo da equipe do delegado Fleury, nummomento em que a ordem era matar.

Onofre orientou José Manoel a fazer outro ca-minho na viagem de volta. Deveria tentar um pon-to na Argentina para esclarecer algumas dúvidascom relação à atuação de Anselmo.

Page 348: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

132

Quando voltavam do Chile de avião, Geni pre-ocupada, mas feliz pela viagem olhava os picos ne-vados das montanhas. Zezinho lhe falava:

–– Veja é a cordilheira dos Andes que a gentesó tinha visto no mapa! Na verdade José Manoeldisfarçava seu nervosismo. Estava apavorado. Olhavaa todo momento para as pessoas dentro do avião.Achava que estavam sendo seguidos.

Aterrisaram em Buenos Aires e foram para umhotel bem afastado da cidade. Ele tentaria um con-tato com um companheiro da VPR. Geni achou tudoaquilo muito estranho. José Manoel saiu e ela ficouno saguão do hotel e viu quando alguns militares sedirigiram à recepção e conversaram demoradamentecom o funcionário. Quando José Manoel voltou elafalou sobre o episódio dos militares alí no hotel.Imediatamente, José Manoel foi até o quarto, apa-nhou as malas, pagou a conta e foram embora.Ocompanheiro do ponto já havia caído. Era a opera-ção Condor em andamento.

De volta a Toritama, assim que entrou em casa,Geni viu José Manoel ir até a cozinha e anotar al-guma coisa debaixo da mesa da cozinha. Viu, masnão perguntou nada e ele também não falou nada.

1964. Os Estados Unidos investiram US$20 mi-lhões na eleição do democrata-cristão Eduardo Freino Chile, para barrar Salvador Allende. Deu certo,mas o governo de Frei foi um desastre. Em 1970 os

Page 349: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

133

Estados Unidos investiram no conservador JorgeAlessandri do Partido Nacional. Não deu certo e Sal-vador Allende foi eleito presidente do Chile. O pri-meiro presidente socialista eleito pelo voto livre. AUnidade Popular iniciou a construção do socialismocom o fim dos monopólios, a nacionalização de em-presas, a reforma agrária e melhorias na saúde, edu-cação, habitação, política de empregos e melhoriados salários. Em 1971, a Unidade Popular aumentousua votação nas eleições municipais. Tudo ia bem paraos trabalhadores e os pobres no Chile, mas a classemédia estava incomodada, não que faltasse comidana sua mesa, mas como ela almejava um dia ser daburguesia, achou que Allende barrava-lhes o acesso.Ele é socialista demais, dizia. Aí, juntou-se, os gran-des capitalistas do mundo, os donos das grandesmídias, a CIA e etc, sob o comando do presidenteNixon e do secretário de Estado americado HenryKissinger e sangraram o governo de Salvador Allende.Recorreram aos militares nativos. Eles tinham largaexperiência no trato com os militares latino-ameri-canos. Deu-se o golpe e o assassinato de SalvadorAllende, eleito pelo voto livre do povo chileno. A classemédia chilena comemorou. Tinham chances nova-mente de ascender à burguesia. Parece um esquema,não é? Era. O esquema norte-americano para asAméricas.

Page 350: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 351: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

135

19. Um sequestro em Toritama

–– Mas, e o jogo? Perguntou Rodrigues umtanto preocupado. Ele e José Manoel eram os res-ponsáveis pelo Ipiranga Futebol Clube, e iam jogarem Pão de Açúcar naquela tarde de domingo.

–– Vocês cuidam aí! Respondeu José Manoel,completando:

–– Apareceu assim de repente esse pedido, ali-ás, um bom pedido! Eu tenho que ir agora paraRecife deixar a mercadoria! Se não for agora percoo freguês! E saiu acelerando o carro, apressado. Nocarro além de alguns pares de calçados, José Manoellevava o dinheiro da VPR para ser entregue aAnselmo com quem ia manter o contato, cobrir oponto. Estava desarmado, aliás, José Manoel nun-ca portava arma. Recebera o comunicado pela ma-nhã daquele domingo, foi até à mesa da cozinha echecou a senha. Era a hora. Anselmo o aguardavaem Recife. Sentiu um alívio grande com aquela no-tícia, porque não tivera sossêgo desde que viera doChile em razão das desconfianças sobre Anselmo.Aquilo tudo era demais para ele que sonhava comuma vida de dignidade para os filhos. E sempre queimaginava aquela situação entrava em desespero:

–– Meu Deus! Anselmo traidor! Não! É difícilacreditar nisso. Deve haver engano! Agora estavafeliz por confirmar que Anselmo não era traidor.

Apesar de toda aquela situação de desconfian-

Page 352: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

136

ça que agora pairava sobre Anselmo, não havia meios–– dado a clandestinidade –– e nem era correto acu-sar companheiros de luta sem evidências concretas.Elas não existiam até aquele momento.

–– Viche! Que pressa é essa? Era João Messi-as, um dos jogadores do Ipiranga que chegava na-quela hora e viu José Manoel sair a toda velocidadee dobrar a esquina perigosamente.

Passou na casa da mãe e beliscou as panelas. Amãe pediu:

–– Fique meu filho, almoce aqui!–– Não, agora eu não posso, tenho de viajar!

Deu um beijo na sua mãe e saiu.Parou na bomba de Pedrinho, que era o posto

de gasolina de Toritama e pediu para João, o em-pregado do posto e cunhado do Pedrinho que veri-ficasse o óleo de freio.

Naquele local tinha a bomba de gasolina e aofundo um pequeno prédio de duas portas onde fun-cionava um bar. José Manoel entrou no bar cumpri-mentando os homens que estavam sentados próxi-mos da entrada. Um deles era João Joaquim.

João Joaquim viu quando uma Variant pretade placas brancas do Recife com o emblema doINCRA estacionou logo depois ao lado do carro deJosé Manoel e dele desceram três homens que sedirigiram ao bar. Ele já tinha visto aquele carrocirculando por ali. Numa cidade pequena, qualquerpessoa ou carro diferente chama a atenção. E aindamais com o emblema do INCRA e placa de Recife.

Page 353: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

137

Faziam duas semanas que aquele povo era visto alíem Toritama. Aguardavam as ordens de Anselmo edo delegado Fleury.

João Joaquim viu que um dos homens estavadesenrolando uma corda fina e passaram por elescom a cara fechada e entraram no bar sem nemcumprimentá-los. Um dos homens permaneceu fora,alí por perto. João Joaquim ouviu uma alteraçãode voz dentro do bar e levantou-se para olhar, foiquando o homem que estava fora encostou umaarma em suas costas e lhe disse:

–– Entre e aguarde a segunda ordem!João Joaquim virou-se para o amigo com quem

estava conversando e disse:–– É! Vamos entrar, não é, Nivaldo? O homem

está pedindo para a gente entrar!Quando estavam entrando no bar, os dois ho-

mens já vinham saindo com José Manoel com osbraços amarrados.

João Joaquim ainda ouviu quando José Manoelpediu:

–– João, guarde aí a chave do meu carro!Ao que um dos homens, de pronto, avançou

sobre João gritando:–– Me dê aqui a chave do carro! E tomou a

chave da mão de João, que se preparava para verifi-car o óleo do carro.

Depois, colocaram José Manoel no carro doINCRA e um dos homens foi sentado junto dele nobanco de trás. Um outro homem pegou o carro de

Page 354: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

138

José Manoel e seguiu o veículo dos sequestradores.Geni voltava da bodega onde fora comprar alho,

quando foi abordada por um rapazinho que vinhanuma desabalada carreira de bicicleta e lhe disse daprisão de José Manoel pelos homens do INCRA.

De início, um grande choque. Não pensou emnada, não fazia idéia do que poderia ser o motivoda prisão de Zezinho. Só podia ser um engano. Deimediato foi até a casa dos sogros que estavam de-sesperados e sem saber o que fazer e o porquê da-quela prisão.

Por fim, uma e outra pessoa chegando e co-mentando o fato, concluíram que a prisão de JoséManoel fora em razão da sua fabriqueta de calça-dos. Falta de nota fiscal e do pagamento de impos-tos. Alguém deve ter denunciado.

Quando chegaram nessa conclusão, Geni de-sesperada pensou no pai em Natal. Ele resolveria oproblema. Ele poderia emprestar o dinheiro, elapagaria os impostos e depois registraria a firma deZezinho; mandaria fazer a nota fiscal e tudo ficavabem de novo.

Um tio de José Manoel a trouxe até Natal.Quando viu o pai, sentiu-se mais segura. O pai sem-pre terno, sempre amigo e acolhedor, disse-lhe:

–– Veja lá, minha filha, quanto é que Zezinhotem de pagar de multa ou imposto que a gente vaiprocurar pagar isso daí para ele ser solto logo! Oque tem que fazer agora é procurar saber qual é aacusação!

Page 355: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

139

Até então, Geni só pensava que o fato deZezinho vender tudo sem nota fiscal era o motivoda sua prisão. Era uma fabriqueta de fundo de quin-tal. Ele fazia tudo quase sozinho e vendia nas fei-ras. Eram sandálias e chinelas simples de couro bru-to. Baratos. Muito baratos que só os sertanejos com-pravam. Não dava mesmo para pagar impostos.

Voltou no mesmo dia para Toritama mais ali-viada, planejando falar com um advogado e ir logona Receita resolver tudo aquilo. Ao chegar em casa,tarde da noite, outro susto enorme: sua casa estavatoda revirada, móveis quebrados, os sofás e os col-chões rasgados. Saiu dalí desesperada e foi para acasa de seus sogros que estavam mais apavoradosque antes e então, quase não suportou mais e des-maiou. Acordou com todos à sua volta, ainda de-sesperados. Os sogros, os cunhados, os filhos, vizi-nhos, todos numa comoção. Ninguém conseguiudormir naquela noite.

Mais tarde, sua cunhada lhe contou os fatosque se seguiram à prisão de José Manoel. Bem àtardinha, alguns homens no mesmo carro do INCRAvieram e arrombaram a casa de José Manoel e revi-raram tudo. Saíram um tanto desapontados e comraiva, muita raiva, pois pareciam não ter encontra-do o que queriam, ou esperavam encontrar. Depois,foram até a casa do pai de José Manoel e prende-ram sua irmã. Maria Luíza estava apavorada semsaber o porquê de tudo aquilo.

O homem, que parecia ser o chefe do grupo,

Page 356: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

140

foi gritando assim que desceu do carro, lá do meioda rua:

–– Se não encontrarmos o que buscamos, va-mos levar você para Recife! Lá você vai se lembrarmelhor das coisas! E passaram a aterrorizá-la paraque dissesse onde estava o material subversivo. Bus-cavam algo que incriminasse José Manoel, armas,panfletos, qualquer coisa. Por fim, depois de revi-rar tudo por ali, encontraram na garagem da casaum mimeógrafo à álcool, enferrujado e faltandopeças e saíram desapontados carregando omimeógrafo. Na verdade, buscavam mais que obje-tos que incriminassem José Manoel, buscavam o di-nheiro da VPR, o tão falado dinheiro do cofre doAdemar de Barros.

1972. Ápice do Milagre Brasileiro. Os pobres fi-caram mais pobres e os ricos mais ricos. Nos campos:soja, trigo, cana-de-açúcar e depois cana-de-álcoolcombustível; e mais, tratores, inseticidas e pesticidas.Nas cidades, cinturões de miséria. Os agricultores ex-pulsos da terra pela cana, soja, inseticidas e tratores,viraram pipoqueiros, serventes de pedreiro e boias-frias, enfim um bom exército de reserva. Era a mo-dernização do Brasil. Nas propagandas da ditadura:“Brasil, ame-o ou deixe-o!”.

Page 357: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

141

20. Sequestros no Recife

Naquela segunda-feira 8 de janeiro de 1973,Pauline e Eudaldo saíram de casa bem cedo e forampara o apartamento de Anselmo e Soledad. Eudaldoficou lá com Anselmo, e Pauline foi com Soledadpara a praia de Boa Viagem. Soledad fornecia rou-pas bordadas para uma boutique que ficava na Ave-nida Conselheiro Aguiar,1934. Era uma segunda-fei-ra cheia de sol no Recife.

Soledad levava uma sacola com as blusas queela caprichosamente bordava e agora, pouco maisde nove horas, negociava com Sonja, a dona daboutique.

Conversavam animadamente quando dois veí-culos em grande velocidade, um fusca da polícia euma perua Variant preta de placas brancas 7831 como emblema do INCRA, frearam subitamente na fren-te da loja, arrastando os pneus, fazendo grande alar-de e fechando toda a frente da loja, impedindo acirculação de veículos e pessoas no local. Dos veícu-los saltaram cinco homens, todos com armas empunho, e um deles, forte, de camiseta e com umcolar de continhas, esferiu uma violenta coronhadana cabeça de Pauline que deu um grito forte, assimcomo um urro, e estatelou-se no chão da loja como rosto exprimindo uma dor lancinante. O grito dePauline chamou a atenção das pessoas que passa-vam próximas dalí. As pessoas acorreram assusta-

Page 358: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

142

das para a loja tentando se aproximar.Postado na calçada da loja, um dos homens,

acintosamente exibindo uma arma pesada, gritava:–– Circulando! Circulando! Somos da polícia e

estamos prendendo umas contrabandistas!Soledad, acuada na parede por dois homens

que tentavam algemá-la, gritava desesperada:–– Por quê? Por quê?A dona da boutique, em estado de completa

histeria e gritando muito, foi ouvida nos fundos dacasa por seu marido que veio em socorro. Tambémmuito assustado com tudo aquilo, foi abordado porum dos homens que colocou um revólver na suacabeça e gritou:

–– Faça sua mulher calar a boca ou vamos levá-la também!

O homem, tomado de pavor pela cena insólita,ainda perguntou:

–– Mas quem são vocês e o que querem?–– Somos da polícia e sem perguntas que é me-

lhor para você! Só queremos as duas mocinhas aqui!Nessa altura, um dos homens falava num rádio

de comunicação do fusca:–– Ok!, Ok! Tudo certo! Tudo limpo!Arrastaram Soledad amordaçada e amarrada

para dentro do fusca e jogaram Pauline no chão dooutro carro, onde dois homens entraram e pisaramno corpo dela com maldade. Pauline somente arfa-va e o olhar era de terror. Assim como Soledad,também estava amarrada com as mãos para trás e

Page 359: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

143

amordaçada. Saíram em grande velocidade, assimcomo chegaram. Agora, escandalosamente, sirenaligada, buzina impaciente contra aqueles que dirigi-am devagar e ousavam não lhes dar passagem. As-sim que os ultrapassavam, xingavam, ofendiam,ameaçavam. Um carro da polícia podia tudo. E ospoliciais estavam acima das leis.Tempos de ditadu-ra fardada e coronéis sem farda.

Quando Tércia abriu a janela do quarto e aclaridade do sol e os sons da segunda-feira no Reci-fe invadiram tudo, Jarbas, ainda sonolento pela noitemal dormida, sentou-se na cama e olhou a mulherdemoradamente e teve a certeza que Tércia, tão frágile tão terna, não poderia acompanhá-lo naquelaaventura. Não era justo. Ela, junto ao berço, acari-ciava sua filhinha que reclamava a mamadeira. Acriança ainda não completara o primeiro ano devida.

Jarbas baixou a cabeça e pensou mais uma vezque deveria fugir do Recife naquela manhã, naque-la hora. Dormira pouco e mal. Adormecera pelamadrugada, depois que o cansaço o dominou. Pas-sou o tempo todo assustado com os sons da noite,percrustando tudo, levantando seguidamente, indoaté a porta da sala, encostando o ouvido na pare-de, uma agonia sem fim. Estava verdadeiramenteangustiado. Naquela semana, na quinta-feira, maisuma desconfiança levantada sobre a atuação deAnselmo. Partia de uma pessoa acima de qualquersuspeita, porque era da VPR, do mesmo grupo do

Page 360: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

144

Recife, ligado a Onofre, vindo do Chile recentemen-te e amigo de Anselmo desde a Associação dos Ma-rinheiros. Não era uma acusação definitiva, mas umalerta que veio se juntar aos outros alertas queJarbas recebera de companheiros de outras organi-zações, muitos deles já fora da luta armada, mascom honradez suficiente para alertar um amigo so-bre os perigos que corria.

Dias antes, Jarbas, que trabalhava na LivrariaModerna, na Rua Ubaldo Gomes de Matos, 115,procurara a advogada Mércia Albuquerque, sua ami-ga, que ao vê-lo, perguntou, como sempre fazia:

–– E então, Jarbas, algum livro novo e inte-ressante na Moderna?

Jarbas sorriu, balançou a cabeça negativamen-te e falou baixinho:

–– Preciso conversar com você!A advogada Mércia Albuquerque sabia o que

significava aquele “eu preciso conversar com você”,dito daquela maneira quase gutural. Experiente, pre-sa várias vezes sem acusação formal, sequestradapela ditadura, ameaçada de morte em razão de sualuta na defesa dos presos políticos, entre elesGregório Bezerra, leu a angústia nos olhos de Jarbas.

–– E então?–– Estou apavorado, três companheiros, com

quem eu tive ponto foram presos! Eu não sou trai-dor, mas alguém está querendo me jogar uma pechade traidor. E eu só tenho dois contatos de quem eudesconfio: Anselmo e César, um dos dois é traidor!

Page 361: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

145

–– Ou os dois! Respondeu Mércia.Naquela mesma noite, Jarbas voltou ao apar-

tamento de Mércia e angustiado lhe disse:–– São muitas as evidências e agora me veio

mais uma, Anselmo deve ser a pessoa infiltrada! Avoz quase não saía. Os olhos choravam sem chorar.

A advogada Mércia Albuquerque entendia tudoaquilo também. Sabia da decepção dos militantesquando descobriam uma traição. Sabia da dor quesentiam, daquela dor que não passava nunca e queficava enroscada em algum lugar do pensamento. Esem mais, nem menos, vinha à tona e doía. Sabiada sensação de impotência que invadia o militante,tomado de chofre com as traições. Ela sabia o quan-to tudo aquilo era devastador.

–– Tome uma água e vamos conversar! Vocêtrouxe o que lhe pedi?

–– Sim! Está tudo aqui! E passou para Mérciaum envelope com os seus documentos pessoais. De-pois, tirou uma fotografia que trazia no bolso e en-tregou para ela.

–– É Anselmo... Cabo Anselmo! Ele usa os no-mes de Daniel, Jadiel e Américo Balduíno. É o com-panheiro daquela moça paraguaia, Soledad!

Depois continuou:–– A notícia é que a equipe do delegado Fleury

está aqui em Pernambuco e teve um pau danadona cúpula da polícia daqui, porque o pessoal nãoaceita que venha gente de fora atuar aqui. Dizemque o Fleury tem carta branca dos generais para

Page 362: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

146

agir onde quiser e da forma que quiser. O Centro deInformações da Marinha também está na área. OCentro de Informações do Exército também atuaaqui. É todo mundo querendo chegar primeiro, masparece que o Anselmo trabalha mesmo para o Fleury,que também está atrás dessa história do cofre doAdemar. O que o pessoal daqui reclama é que,assim como os de São Paulo e Rio, eles tambémforam treinados nos cursos da USAID americana etem a mesma competência!

–– É melhor que você dê o fora, Jarbas! Vocêestá correndo risco ficando aqui no Recife! Veja bemo resumo disso que você falou. O primeiro que pe-gar um de vocês, não vai deixar para outro não. Hámuito que não há mais auto de prisão.

–– Eu não posso! E Tércia e minha filhinha?E, depois, nós não fizemos nada! Não há nenhumaacusação contra nós!

–– Não se fie nisso, Jarbas! Eles, agora, estãona fase de matar primeiro para depois perguntar! Émais seguro que você saia de Recife! Eu cuido dasua filhinha!

–– Não, não posso! E também nada devo... enão há mesmo acusação contra mim!

Jarbas saiu, e Mércia ficou naquela angústia.Há muito percebera que a ordem da ditadura eramatar. Já tinham informações sucificientes sobretoda a luta armada e sabia que pouco restava dela.Agora era extirpar, matando.

E Jarbas, mesmo com toda a angústia e as in-

Page 363: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

147

certezas que carregava, não fugiu. Foi para o seutrabalho na Livraria Moderna naquela segunda-fei-ra, 8 de janeiro de 1973. À tarde, recebeu a visita deAnselmo e César que queriam falar com ele fora dalivraria. Aquilo não era comum, era excepcional.Nunca se chegava assim, havia códigos, havia re-gras. Mas afinal era uma emergência e ele conheciaos dois, apesar da suspeita sobre Anselmo. Não ca-minharam muito. A Variant preta do INCRA esta-va numa rua lateral. Quando dobraram a esquina ese aproximaram do carro, Jarbas levou uma panca-da na cabeça que o deixou desacordado. Foi atira-do no banco traseiro do carro que saiu acelerando.Se alguém viu a cena, fez que não viu. Era muitoperigoso ver naquele Recife dos setenta.

11 de janeiro de 1973. Diário de Pernambuco,quinta-feira. “Equipes especiais dos Órgãos de Segu-rança cercaram no dia 8 de janeiro do corrente ano,o aparelho ... numa chácara dentro do LoteamentoSão Bento ... que vinha sendo utilizada como centrode treinamento e de guerrilhas. Nesse local foi dadaa ordem de prisão aos terroristas que... reagiram abala ...”

Page 364: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 365: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

149

21. É como se mata cachorro

Quando os policiais do DOI/CODI, comanda-dos por Fleury, chegaram na Chácara São Bentocom José Manoel, ele já estava meio morto. Duran-te todo o trajeto, de Toritama até ali, foi pisado,asfixiado e esmurrado. A tortura a que o submete-ram quase não lhe deixou forças. E não havia maisnada para saber, pois Anselmo tinha o controle detudo, graças à confiança que do Chile, Onofre, ocomandante da VPR lhe depositava. Mas, era mui-to importante saber se havia alguma carta na man-ga de José Manoel, como dizia o delegado Fleury.Anselmo tinha certeza que não havia e, mesmo as-sim não interveio.

Onofre, ainda com aquele pensamento de re-volucionários da farda e revolucionários da pena,fizera chegar até José Manoel a contra senha para oencontro com Anselmo. Era tudo que José Manoelmais queria e finalmente respirou aliviado. Enfim,Anselmo é dos nossos e tudo não passava mesmo decontra-informação da ditadura ou desentendimen-tos da esquerda.

E naquele domingo, 7 de janeiro de 1973, saiude Toritama para ir ao Recife e agora, encontrava-se jogado alí, pés e mãos amarrados, arfando e sa-bendo que ia morrer. Um ferimento junto ao olhosangrava e atraía um sem número de mosquinhasverdes, importunando-o. Formigas às centenas, mi-

Page 366: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

150

lhares, de todos os tamanhos e cores. Ao redor dacasa, a mata havia sido derrubada. Mal derrubada.A vegetação, roçada a meia altura há poucos dias,encolhia-se e o cheiro de folhas, cozidas ao sol, do-minava os outros cheiros do lugar. Estranhou tudoaquilo. Os sons que chegavam eram poucos: um bem-te-ví e sanhaçús-de-coqueiro cantavam por alí. Umveículo passou um pouco longe. Uma buzina insis-tente, mais longe ainda. Olhou em volta e viu quehaviam cortado uma imbaúba alta que ficava juntoda casa. Só não haviam cortado as macaíbas e ou-tras palmeiras que ele não sabia o nome. Olhou maisuma vez e estava tudo na altura das samambaias eartemísias.E afinal quem mandara roçar e por quê?Aquilo não fora combinado.

Olhava com pavor para os homens que conver-savam com Fleury na porta da casa. César eAnselmo, outrora companheiros de sonhos, de uto-pias. Um olhar de pavor ao pensar o que poderiaacontecer com os outros companheiros, com suafamília, sua companheira sempre tão amiga e fiel ecom os filhos pequenos, indefesos.

César se aproximou de José Manoel que estavacaído há poucos metros da casinha de chão batido,jogado que fora por cima de uns arbustos pontia-gudos e espinhentos. José Manoel olhou mais umavez para aquele companheiro sempre sorridente ebrincalhão, sempre pronto para agir qual fosse oproblema e não podia acreditar que tudo aquilo eraverdade. Então, Anselmo e César eram os traido-

Page 367: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

151

res. Geni tinha razão. Só ele não acreditara. E atéOnofre ficara com uma ponta de desconfiança so-bre as atitudes de Anselmo. Só ele nunca descon-fiou de nada.

Sem falar muito alto, Fleury determinou:–– É melhor acabar logo com isso!Um policial bem jovem, com um cavanhaque

cerrado e bem negro, jogou o cigarro que havia aca-bado de acender e pisou uma, duas vezes e olhou seestava apagado. Depois, aproximou-se de JoséManoel apontando a arma. José Manoel consegui-ra deslocar o corpo, de forma a tirar o braço decima de uma ponta do arbusto roçado que lhe pro-vocara mais um ferimento. Estirado alí, com as mãose os pés amarrados não tinha mais forças nem paramexer o rosto. Foi a expressão que ficou, de pavor.O policial titubeou e voltou-se, olhando para o ou-tro lado. Isso não passou despercebido por Césarque aproximou-se mais, apontou sua arma para JoséManoel e disse:

–– Olha, é assim! É como se mata cachorro! Esorriu. Sem arrependimentos. E lembrou-se delemenino e o tio que lhe colocara a arma na mãopara atirar no cachorro que adoecera e seria sacrifi-cado. O animal, imobilizado e olhando para ele comcomiseração e o tio ordenando: “Atire! Atire! Sejahomem! Atire!” E ele criança, a arma pesando namão, o animal que lhe fora fiel durante muito tem-po agora com aquele olhar compadecido, inerme.

–– Não seja frouxo! Atire! Veio mais uma vez

Page 368: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

152

a ordem. Aí foi um, dois, três,... seis tiros, um emcada lugar para ficar bem morto. Aí, César fitou opolicial que tremia, virou-se e deu mais um tiro.Sete ao todo, foi o que os peritos do IML dePernambuco relataram no laudo do cadáver de JoséManoel.

Quando, no dia seguinte pela manhã, os polici-ais do grupo do Fleury trouxeram os outros mili-tantes da VPR, José Manoel já estava morto e mi-lhares de moscas, atraídas pelo sangue nas roupas,no chão e nos arbustos, sobrevoavam frenéticas.

–– Sem perder tempo! Disse Fleury!Os policiais, dois a dois apanharam os homens

e mulheres nos veículos, já amarrados e amordaça-dos, e entraram na chácara. Um policial se encarre-gou de afastar algumas pessoas da vizinhança, que,ante aquele movimento incomum, buscavam sabero que acontecia no pacato Loteamento São Bento.Entraram arrastando Soledad, Pauline, Eudaldo eJarbas sobre o cadáver de José Manoel e da foguei-ra que ainda fumegava e que ao ser mexida soltoufagulhas e quis reavivar. Subiu uma fumaça escurae um cheiro desagradável de borracha queimada seespalhou.

Eudaldo foi deixado na sala da pequena casi-nha de chão de barro, na janela, onde também co-locaram Jarbas. Soledad foi levada para o quarto ePauline foi atirada na cozinha, junto à porta.

Depois, saíram todos. Eram doze policiais.César, adiantou-se, olhou para o jovem policial

Page 369: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

153

do cavanhaque preto e falou:–– Como eu disse, é como se mata cachorrro!Entraram quatro policiais no casebre e foram

24 tiros, cabeça e tronco. Depois de alguns minu-tos, desamarraram os cadáveres e recolheram ascordas manchadas de sangue.

–– As armas! Gritou Fleury.Um policial apanhou as armas numa sacola.

Outro policial veio ao seu auxílio e entraram nacasa com elas. Depois saíram.

Fleury entrou, olhando a distribuição das ar-mas.

–– Porra, que merda! Foi o que ouviram Fleurygritar pouco depois. Os policiais, na pressa, ou soba emoção da cena macabra que participavam, havi-am colocado a espingarda de pé, apoiada na parededo quarto, o que irritara o delegado que a colocouentre as pernas de Soledad.

Fleury era detalhista e conferiu toda a cena,cadáver a cadáver, arma a arma. Segundo o laudodos peritos, os integrantes da VPR também dispa-raram 18 tiros, mas não atingiram nenhum policial.

Antonio era o responsável pelo arquivamentodos dossiês no Instituto de Polícia Técnica dePernambuco e por zelo ou curiosidade, sempre quearquivava os documentos, dava uma olhadarápida.Com os da Chácara São Bento, município dePaulista, não foi diferente. Mas, o fato de ter ouvi-do um comentário sobre aquela ocorrência, aguçousua curiosidade e, depois que leu, passou aquele dia

Page 370: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

154

e o seguinte com a história na cabeça e foi comen-tar com o seu colega de repartição sobre o que ha-via lido.

–– Primeiro, você não é pago para ler, é pagopara arquivar! Disse João, seu colega de repartição,experiente e já perto da aposentadoria. Segundo éque você não procure lógica em nada disso que vocêarquiva. Arquive e pronto, que você chega onde euestou chegando, a aposentadoria.

O que perturbava Antonio era o teor do laudodos peritos Mauro Pamplona Monteiro e AscendinoJosé da Silva Cavalcanti, que concluíram que houvealí um enfrentamento, uma troca de tiros. mesmoconstatando que José Manoel levara 7 tiros no tó-rax, Eudaldo, seis tiros, quatro na cabeça e dois notronco; Jarbas, 4 tiros, dois na cabeça e dois notronco; Soledad, 6 tiros, quatro na cabeça e doisno pescoço e Pauline, oito tiros, quatro na cabeçae quatro no tronco e que os policiais não foramalvejados por nenhum dos 18 tiros disparados pelosguerrilheiros e que nenhum tiro acertou a parededa casa onde estavam escondidos.

No dia 11 de janeiro, quando os jornais foramautorizados a noticiar o fato com o material quefoi distribuído, texto e fotos, Antonio caiu em sí econcordou com seu colega que, calado, ele chegariaà aposentadoria. Os jornais divulgaram as fotos dosmortos com uma breve biografia de cada um e umtexto descrevendo o embate.

Angustiado com o clima de normalidade que

Page 371: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

155

via na repartição, apesar de todo aquele absurdo,Antonio só teve um alento quando leu no final damatéria do Jornal do Commercio o seguinte regis-tro: “Estas informações foram fornecidas pelas au-toridades responsáveis pelos órgãos de Segurança”.

Aí, concluiu: Bem, eu não estou maluco!

8 de janeiro de 1973. Quatro homens armadosde metralhadoras, num veículo de placas de Afoga-dos da Ingazeira IK 3157 e que não se identificaram,invadiram a casa de João Francisco da Silva e o pren-deram. João Francisco era membro do Movimento deEvangelização da Arquidiocese de Olinda e Recife.

Page 372: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

156

Page 373: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

157

22. Um dia de muita chuva no Recife

Geni desceu do ônibus nas imediações doCemitério da Várzea, bem mais segura que da outravez. Agora já sabia o caminho. Olhou o céu compreocupação. Pelos lados do mar, começavam a seformar umas torres altas e escuras. Nuvens de chuva,de muita chuva, pensou.

Estava novamente no Cemitério da Várzea. Jásabia o itinerário dos ônibus e travara amizade coma mulher de uma barraquinha que vendia lanches,velas, coroas de flores de lata e quase de um tudo. Amulher era bem clara, forte e de cabelos amarelomanga. Tinha uma cicatriz na testa e um sorrisobondoso. Geni passou por lá, comprou velas, fósforose ouviu da galega que a chuva não demorava.

–– Formou no olho da Guaiúba, vem mesmo!Alertou a mulher com um sorriso largo.

Uma lufada de vento provocou um certorebuliço nas barraquinhas. Os barraqueiroscomeçaram a recolher as mercadorias mais expostas.

Geni ficou pouco tempo por ali e apressou opasso quando o vento soprou mais forte. Ao chegarna porta do cemitério, olhou novamente e viu queas nuvens que prometiam chuva cobriam agora umaboa parte do céu. Quase não se via mais a claridadedo sol.

O vento soprou, levantando uma areia miudinhaque veio chocar contra o seu rosto. Cobriu os olhos

Page 374: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

158

e buscou proteção junto ao muro do cemitério.Quando passou o vento forte, as folhas caídas

das árvores. a areia fininha e uns pingos grossos dachuva, ela pode avistar uma mulher junto do lugaronde José Manoel estava enterrado. Estancou, quasena entrada do cemitério, apatetada e sem saber oque fazer. Muita coisa passou pela sua cabeça.Procurou pelo coveiro sem avistá-lo. Um homemque fazia algum serviço num túmulo junto ao murolhe deu notícia:

–– Saiu faz tempo, mas disse que voltava antesdo meio-dia! Geni conferiu no seu relógio. Era quasemeio dia.

Ficou sem saber o que fazer. Uma brutalinterrogação tomou conta dela. Encostou-se numtúmulo grande e ficou cismada. O túmulo era grandee deteriorado e com trincaduras nas peças demármore. Devia ter sido um belo túmulo, pensouGeni que ficou lendo as datas e os nomes dosdefuntos e concluiu que naquele túmulo estava umafamília toda, enterrados desde 1945. Bem no anoque nasci, lembrou-se. Ficou na recordação do seutempo de criança em Natal, a rua 10 do Alecrim, asfeiras, as enormes feiras que tinham tudo e a distantee quase inalcançável praia de Ponta Negra. Depoiso dia que conhecera José Manoel na festa dapadroeira e do seu vestido de bolinhas amarelas e osmarinheiros.

As torres de nuvens negras fechavam agora océu por completo e alguns pingos grossos vieram

Page 375: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

159

lhe tirar dos pensamentos.Olhou de novo para o céu e crispou o rosto: vai

ser muita chuva, pensou. Olhou e viu que a mulhercontinuava lá, imóvel, mesmo com o vento forte e achuva que começava.

Nova lufada de vento e areia e folhas se lançaramnovamente contra ela que se protegeu. Olhou orelógio: doze e cinco. Nada do coveiro. Ficou olhandopara a mulher. Era mais baixa do que alta e vestiauma saia azul escuro e blusa preta larga. Tinha oscabelos castanhos compridos que esvoaçavam a cadalufada do vento. Quando a mulher se virou todapara evitar o vento contra o seu rosto, percebeuque ela estava com uma bolsa de cor claracomprimida contra o peito.

O coveiro passou por Geni como se não aconhecesse. Ela correu atrás dele e perguntou sobrea mulher. Ele nem parou. Respondeu apressado,buscando se abrigar da chuva. Nem olhou para ela:

–– Ela tem um filho enterrado junto da covado seu marido! E completou no mesmo tom:

–– Faz três dias que vem aqui e já chorou umCapibaribe inteiro!

Ia falar mais e desistiu. A chuva que engrossavae o vento mais forte o fez buscar refúgio. Saiu quasecorrendo, deixando-a no meio do caminho, parada,sem ação, com as últimas palavras ainda ressoandonos ouvidos.

Sentiu o baque, mas ficou mais aliviada. Elasempre temia uma cilada da polícia. Conhecia muito

Page 376: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

160

pouco os amigos do seu marido. Conhecera Anselmoe Soledad que estiveram algumas vezes na sua casa.Anselmo era um velho amigo do tempo da marinhae José Manoel tinha muito respeito por ele.

Olhou mais uma vez para a mulher, agora nummisto de curiosidade e angústia. A mulher não semexia apesar do vento e da chuva mais fortes.

O tempo se fechou de vez e se fez quase noite.As árvores vergaram com o vento forte. Geni sentiuum nó na garganta, um aperto no coração queacelerava. Avançou, contra a chuva e o vento, atéonde estava a mulher, que percebeu sua aproximação.Virou-se com os olhos vermelhos e o rosto crispado.

–– Você é a mulher de Zezinho, não é?Perguntou.

Geni assentiu com a cabeça e não foi precisomais palavras. Se abraçaram chorando e ficaram nomeio da chuva grossa e do vendaval que agoratomava corpo.

Parecia que todo o Recife chorava.

16 de junho de 1973. Policiais invadiram a CNBBno Recife e levaram cópias do discurso de DomHélder proferido na AL de Pernambuco. Após asaída destes policiais, chegaram quatro policiais daPolícia Federal e apresentaram um mandado deapreensão do Manifesto dos Bispos do Nordeste.

De acordo com estes policiais, os que os ante-cederam deviam ser policiais do DOPS dePernambuco ou então os “homens do Fleury”.

Page 377: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

161

23. Todas as mortes de José Manoel

–– Pegue esta porra e suma daqui! Foi assimque ela recebeu a Certidão de Óbito de José Manoel.Apenas olhou para o funcionário, fuzilando-o comos olhos. Se quer enfrentamento, paciência... Vocênão é melhor do que eu não... Pensou, mas não fa-lou. Qualquer palavra, entendida como desaforo,atrasaria ainda mais a entrega do documento, dariaprisão por desacato e toda uma complicação queela queria evitar. Humilharam-na o quanto quise-ram, e ela, desesperada, aguentou calada tudo aqui-lo, pois precisava requerer a pensão do INSS a quetinha direito.

No outro dia foi ao INSS. O funcionário, solí-cito, apanhou a papelada e foi conferir. Eram mui-tos documentos. Analisou mais detidamente a Cer-tidão de Óbito. Leu todinha uma, duas, várias ve-zes e depois verificou o verso do documento. De-pois, levantou-se e foi até a mesa de um outro cole-ga mostrar o documento.

Geni, acompanhava cada movimento do funci-onário, angustiada. Será que tinha problema? O quefaltava agora? Tinha sido tão difícil conseguir aqueledocumento. Fora tão humilhada naquela reparti-ção. E agora? Se tivesse que voltar lá, como seria?

Estava tensa, muito tensa e viu o funcionáriobalançar a cabeça negativamente e o outro, o que aatendia, franzir o rosto, apanhar o documento e vir

Page 378: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

162

até ela cabisbaixo, preocupado. Havia problemas.–– Infelizmente o Atestado de Óbito está in-

completo! Falou quase se desculpando. E então,pacientemente, mostrou para Geni, que àquela al-tura era toda tensão, que no preenchimento da Cer-tidão de Óbito eles haviam omitido os dados im-prescindíveis para o requerimento da pensão.

Ela deixou a repartição sem destino, desani-mada, preocupada, sem coragem para ir reclamar acorreção da certidão. Sentou-se no banco de umapracinha próxima. Estava triste, muito triste, fa-lando para si mesma: Meu Deus! Quantas vezes ain-da matarão Zezinho? E ficou recordando da mortefísica que diziam ter sido no dia 8 de janeiro e que omataram de novo com a acusação maldosa no epi-sódio da Chácara São Bento, para encobrir a trai-ção de Anselmo, e a outra morte ao noticiaremque ele morrera no confronto com os companhei-ros de luta; uma nova morte ao lhe enterrarem comoindigente e agora, mais uma morte ao fornecer umdocumento omitindo propositalmente os dados,mesmo de posse dos documentos de José Manoel, eque ele portava quando foi preso e assassinado.

22 de janeiro de 1973. Foi assassinada no DOPS-PE a militante do PCBR, Anatália Melo Alves. E maisuma farsa foi montada pela ditadura.

Page 379: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

163

24. Uma sessão de tortura

–– Porra, vá chamar o Miranda, avie!Ela ouviu o grito da sala de onde saía uma

pessoa. Ao sair, o homem bateu a porta com tantaviolência que o barulho repercutiu por todo o cor-redor. Ela ainda pôde ouvir um gemido abafado demuito sofrimento. Não era a primeira vez que ou-via gritos de pavor naquele prédio.Depois, come-çou a ouvir o som alto de uma música que se sobre-punha a todo o barulho do corredor comprido quefedia a cigarro.

Foi levada novamente para a Sala de Opera-ções. A sala ficava no final do corredor. Na porta,estava fixada uma tabuleta branca, de plástico, comletras vermelhas. Era uma sala grande, fria e feden-do a creolina. Era a terceira vez que a levavampara lá desde que começara a ser investigada.

Na Sala de Operações, observou que dois ho-mens fumavam e conversavam reservadamente numcanto. O corte de cabelo de um deles era militar,seusgestos eram de uma pessoa educada e usava óculosescuros. Portava uma pasta com papéis e, assim queela entrou, ele saiu sem falar com ninguém. Ele sem-pre conversava com a pessoa que dirigia os interro-gatórios. Não era a primeira vez que via aquele ho-mem alí, que sempre saía quando ela chegava. Nun-ca o viu assistindo as sessões de tortura.

Após o assassinato do marido pela ditadura,

Page 380: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

164

acusado de pertencer à VPR, a Vanguarda PopularRevolucionária, ela ficou sob suspeição e ameaçasde torturas físicas e prisão. Da primeira vez, sem-pre a ameaçando com torturas físicas, perguntaramsobre vários nomes e um sem número de apelidosde pessoas. Queriam que ela confirmasse se os co-nhecia.

Na segunda vez trouxeram algumas fotografi-as de lugares públicos, algumas em praças, rodoviá-rias, aeroportos, mas a maioria, em bares e lancho-netes do Recife, João Pessoa e Natal. Apontavam apessoa e pediam que ela identificasse. Ela não co-nhecia ninguém. Nem os nomes e nem as pessoasnas fotos.

–– Agora, você vai pro pau de arara! Os polici-ais se zangavam e faziam novas ameaças.

Na segunda vez, quando deixava o prédio, umpolicial já idoso, alcançou-a e disse:

–– Moça, venha assim mesmo! Sempre bem ves-tida, porque quem vier aqui com roupa de pobre ,está lascado!

Neste dia, foram buscá-la em casa e a levaramdireto para a Sala de Operações. Pouco depois, sur-giu um grupo de homens arrastando um rapaz decabelos pretos e longos e de olhos miúdos. Ele esta-va com a roupa pregada ao corpo, de suor ou água,e sangrava muito pela boca. Era um animal acuado,mas vinha com a cabeça erguida encarando todomundo.

Ao se aproximar da cadeira onde a mandaram

Page 381: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

165

sentar, viu um dos homens se postar atrás da víti-ma e bater de uma só vez com as mãos nos ouvidosdele. Ele se contorceu de dor, mas voltou a cabeça efuzilou com os olhos o agressor.

Os homens riram e um deles comentou:–– O seu telefone está mais fraco que caldo de

biloca, mais tarde eu lhe ensino como se faz! E com-pletou:

–– E olha que eu aprendi com o DoutorBarreto, viste!?

Quando ela sentou na cadeira em frente ao ra-paz, uma lâmpada foi acesa, de forma que ela ficarabem visível.

Depois do golpe nos ouvidos, deixaram-o nú eo sentaram numa cadeira grande de placas de zincoe colocaram vários fios no corpo dele. Depois, umdos homems jogou um balde d´água no seu corpo,espirrando a água por todo lado. A água misturou-se com o sangue que saía da sua boca e escorreu porum ralo próximo da cadeira.

–– Agora você vai dizer o nome dessa mulher eonde era o ponto que vocês se encontravam aqui noRecife!

Antes que ele respondesse, um dos homens comuma caixa de madeira,cujos fios estavam ligados aocorpo dele, girou uma manivela e ele se contorceuvárias vezes. Mas, como estava amarrado na cadei-ra, não conseguia levantar e ficou gemendo um bomtempo. O rosto dele era só dor.

Nisso, entraram dois homens jovens e fortes e

Page 382: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

166

foram conversar com o que dirigia as torturas:–– Doutor –– disse um deles –– é o caso da-

quela empregada doméstica... o negócio do colar depérolas!

O homem não gostou. Fez cara feia e respon-deu com brutalidade:

–– Vocês já deram um pau nela? Ela falou?–– É justamente isso doutor! O Catatau que-

brou o braço dela!–– Porra! Que merda! É só eu descuidar que

vocês fazem merda!O outro rapaz, que permanecia calado, falou:–– Doutor o pior é que a madame disse que

achou o colar! Ela tinha guardado em outro lugar esó se lembrou hoje cedo! Ela já veio até buscar aempregada.

–– Levou?–– Aí é que está o problema! Ela disse que não

mandou ninguém quebrar o braço da mulher. Erasó para dar um aperto. E está reclamando que ago-ra não tem quem faça as coisas na casa dela, porquea outra empregada ficou com medo e foi embora.

–– Olha! Eu não vou entrar nessa não! Mandea madame dar um jeito nisso.

–– Doutor! Acontece que o marido dela é capi-tão do exército!

Nisso, entraram outros homens e chamaramos dois rapazes para conversar fora da sala.

O Doutor ficou ali espumando de raiva. Virou-se para a parede e falou sozinho: Esses filhos da

Page 383: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

167

puta só botam a gente em enrascada! Ditadura debosta!

Haviam interrompido a sessão de tortura, maso rapaz continuava arquejando, respirando com di-ficuldade.

–– Vamos começar de novo que eu não tenho odia todo não! Gritou o chefe dos torturadores.

Um dos torturadores se aproximou e levantoua cabeça do rapaz:

–– Agora diga quem é essa moça! O nome, onome!

–– Eu não a conheço! Ele tinha um sotaqueestrangeiro, assim como argentino, uruguaio, chile-no, talvez.

O homem girou a manivela e ele se contorceunovamente. Deu um urro de dor.

Geni comecou a ter ânsia de vômito.–– Se vomitar aqui, vai limpar! Gritou um dos

torturadores ameaçando-a com um bofete.Ela fechou os olhos.–– O nome dela e o ponto onde se encontra-

vam!?–– Não! Eu nunca ví esta moça!Um dos homens pegou uma mangueira num

armário, fixou na torneira no canto da parede eenfiou a outra ponta na boca do rapaz e tapou seunariz.

–– Liga! Abriram a torneira e o rapaz come-çou a se afogar. Agora era choque e afogamento.

–– Fala, filho da puta! O nome e o ponto!

Page 384: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

168

–– Eu nunca ví esta moça! Não conheço! Avoz do rapaz estava bem fraca.

Um dos homens se voltou para ela e disse en-carando-a:

–– Depois é a sua vez! O olhar dele era de sa-dismo, um olhar degenerado.

Os policiais sorriram e um deles saiu pulandopela sala, saltitando, um sorriso no rosto, comemo-rando com gritinhos histéricos.

Um dos torturadores mandou que ela virassea cabeça.

–– Olhe bem agora! Conhece? Diga o nomedessa mulher, cabra safado!

Ele balançou a cabeça negativamente e disse jáquase sem forças, mas com altivez:

–– Eu não conheço essa moça! Eu nunca viessa moça! E mesmo que conhecesse não falaria não, bando de viados!

Levou um murro na boca e começou a sangrarde novo.

–– Ele só vai falar no pau de arara! Disse umdeles.

–– Aqui, nenhum filho da puta aguenta cincodias de serviço completo! Gritou um dos tortura-dores olhando para Geni com ódio.

O homem girou a manivela de novo e ele sol-tou um grito terrificante e arriou completamente ocorpo, a cabeça pendendo para frente.

–– Filho duma puta! Eu não lhe disse para to-mar cuidado com essa merda! Gritou o policial que

Page 385: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

169

dirigia a tortura para o que estava com a máquinade choque.

Um dos homens saiu e voltou acompanhadopor outra pessoa que devia ser um médico, que apósexaminá-lo, disse:

–– Por enquanto, é melhor parar!Quando iam saindo, chegou um homem de ter-

no claro, gravata borboleta e fumando uma piteiradourada. Vinha muito perfumado, espalhando umcheiro agradável naquele ambiente fétido. Paroutodo mundo na porta.

–– E então? Perguntou o chefe dos tortura-dores.

–– É aquele negócio do desfalque do gerentedo banco! Respondeu o de gravata borboleta.

–– Qual é o banco? Perguntou o chefe da tor-tura. Mas, logo em seguida disse:

–– Deixa prá lá, deixa prá lá!–– Quanto? Continuou perguntando.–– Cinco! Respondeu o da gravatinha, e conti-

nuou:–– Dois e meio agora e dois e meio depois.–– Quanto o cara levou?–– Foi muito!–– Quanto?!–– Dizem que foi mais de novecentos!–– Porra! ...você confirma?–– Bem, eu acho... Não,... é que a amante dele

disse que o cara comprou um Maverick zero e umapartamento no Rio, tudo no dinheiro!

Page 386: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

170

–– E ela?–– Não, não, ela tá colaborando! Do cara ela

só queria mesmo o dinheiro, jóias,restaurantes...Triste é a situação da família. Mulhercom um bucho por acolá... Mas eu acho...que deveser mesmo uns oitocentos, porque a turma da segu-rança do banco tá fazendo muita questão!

–– Eu não quero saber o que você acha! Con-firma ou não confirma?

–– Confirmo!–– Então vá lá e peça para que eles melhorem

a proposta! Afinal, não vai ser um servicinho não.Depois, olhou com desconfiança para o homem dagravatinha e completou taxativo:

–– Deve ter muita gente envolvida! É muitodinheiro!

Aquela conversa toda, aquele descaramento,aquela certeza de que para eles, ela não era nada,foi deixando Geni nervosa, impaciente. Ela doidapara sair, ir embora e eles não a liberavam. Depoisde algum tempo foi dado a ordem:

–– Pode mandar a moça embora! Mande queela venha amanhã, às quinze!

Voltou para a casa arrasada. Foi assim maisuma sessão de tortura.

Depois de muito tempo, quase dois anos, osdepoimentos no DOPS de Pernambuco foramsuspensos:

–– Por enquanto está suspenso, mas mante-nha seu endereço atualizado aqui! Podemos lhe cha-

Page 387: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

171

mar a qualquer hora! Disse-lhe o policial com todaa autoridade do mundo e tendo certeza da humi-lhação que fazia.

28 de outubro de 1973. Foi assassinado no Re-cife, Jose Carlos Mata Machado, dirigente a AçãoPopular. Ele havia sido preso em São Paulo no dia 18de outubro de 1973. Até hoje não se conhece os mo-tivos de sua transferência para o Recife. Testemu-nhas comprovam que o militante morreu sob torturano DOI-CODI do Recife. A ditadura mandou publi-car outra versão. E os jornais publicaram.

Page 388: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 389: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

173

25. Um pé de fruta-pão

–– Mas, porque isso agora? Geni perguntouansiosa e foi se acomodar na mureta da porta docemitério olhando aperreada para o coveiro, que,impassível e com a mesma voz sonora de sempre,comunicava-lhe uma tragédia:

–– É a lei! Sentenciava, olhando para o lado,sem encará-la.

Ela não acreditava naquilo que ouvia. Agoraque as coisas estavam mais ou menos bem, esse pro-blema. Fitava o coveiro angustiada e não se confor-mava com aquela notícia devastadora. Ela ia umavez por mês no cemitério. Levava flores, acendiauma vela e orava por José Manoel. Depois, gratifi-cava o coveiro conforme o combinado. Plantara atéalgumas flores que agora vicejavam sobre aquelascovas de indigentes. Era assim há mais de dois anosdesde que ela prometera que um dia daria um en-terro digno ao marido. Agora morando em Natal,continuava indo todo mês no cemitério da Várzea,no Recife, orar pelo marido. Mudara-se para Natal,para a casa dos pais e com muita dificuldade criavaseus filhos.

–– É isso mesmo que você ouviu! Estou aquicumprindo ordens! Disse o coveiro, também um tan-to nervoso. E completou:

–– Eu não posso fazer nada, só cumprir as de-terminações dos homens quem mandam aqui!

Page 390: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

174

–– Mas vocês não podem fazer isso! insistiuGeni.

–– Bem, é a lei ! O administrador do cemitériojá determinou e é assim mesmo, depois de dois anosos ossos dos indigentes vão para o ossário, o bura-co do inferno! Por minha conta, eu esperei até vocêvir.

–– Mas ele não é uma coisa! É José Manoel émeu marido e é um cristão!

–– Aqui é tudo cristão, mas vão prá lá do mes-mo jeito!

–– Mas eu podia falar com o administrador,você não acha?

–– Eu acho é que ia complicar mais para vocêe para mim devido à situação do seu marido! Elescontinuam vigiando por aqui! De vez em quandovem um sondar, fazer perguntas. Nós já nos acostu-mamos! Eles já ficaram donos daquela área do ce-mitério!

Agora o problema era sério. Ela conseguiraque o coveiro cuidasse por dois anos da cova deindigente de José Manoel. Só ela e o coveiro sabiamque aquela era a cova de José Manoel. Os livros deregistros estavam rasurados. A ditadura matavaJosé Manoel mais uma vez. Guardara aquele segre-do temendo a repressão contra os seus familiares eos do marido. E chorava toda vez que via donaLuiza, sua sogra, sentada no fundo do quintal dacasa com olhar fixo na estrada do Recife, horas ehoras aguardando que um dia seu filho voltasse.

Page 391: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

175

Geni via aquilo, e saía para chorar. Mas não podiarevelar que José Manoel estava enterrado no Cemi-tério da Várzea, no Recife. Era um segredo dela edo coveiro.

Agora, ante a informação do coveiro, via omundo desmoronar:

–– Ah! Essa não! Ficar sem os despojos deZezinho e não ter mais um lugar onde pudesse orarpor ele, uma cova! Todo cristão tem uma cova!

Sentia faltar forças para lutar. Matavam JoséManoel mais uma vez. Estava apavorada. Começoua passar mal e o coveiro aperreou-se. Saiu e voltoucom um copo d’água.

–– Beba, por favor! Eu também estou sentin-do muito tudo isso, pois o pessoal da polícia quevem aqui não tem nenhum sentimento!

Ela se recompôs e disse ao coveiro:–– Mas Zezinho não vai para esse buraco do

inferno não!–– Mas como? Assustado, retrucou o coveiro.–– Você tem que me ajudar! Fica novamente

entre eu e você! Me diga um lugar do cemitério quevocê acha que não vão mexer tão cedo?

–– E você está pensando em quê? E mesmo acontragosto e achando aquilo tudo um absurdo,pensou e depois olhou em volta e disse:

–– Eu acho que junto do pé de fruta-pão. Tal-vez seja difícil que um dia vão bulir naquela área!Mas lhe digo que isso é crime!

–– Pois é isso mesmo! Eu vou enterrar os os-

Page 392: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

176

sos dele lá! E quando for possível eu levo para Na-tal ou Toritama e faço um enterro para ele. Aí en-tão eu vou requerer com documento e fica tudocerto para você, sem problemas!

O coveiro acendeu um cigarro, deu uma fortetragada e falou quase num apelo, soltando fumaçapelo nariz e boca:

–– Moça, você está doida! Moça, você não podefazer isso ! Isso é um crime!

–– Posso sim! Crime maior o governo fez comele! Ele é um cristão e não pode ir para esse buracodo inferno não!

–– E como a senhora vai fazer isso, de que ma-neira?

–– Me espere que eu volto logo! Saiu e foi atéum mercadinho. Voltou com uma bacia, álcool, sa-cos plásticos e alguns panos.

O coveiro não acreditava em tudo aquilo e quisrecuar:

–– É hora do almoço, tenho que fechar o ce-mitério!

–– Feche que eu fico aqui para resolver o pro-blema! Ela disse decidida.

O coveiro foi, fechou a porta do cemitério evoltou para tentar dissuadí-la:

–– Moça! Isso é um crime!–– Você cava, ou quer que eu cave?Ele se apiedou dela e não esperou mais. Pegou

a pá e começou a cavar.O coveiro estava assustado. Mesmo com o ce-

Page 393: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

177

mitério fechado, ela cavava e olhava para os ladoscom medo, muito medo.

Geni, ao ver os primeiros ossos de José Manoel,emocionou-se e chorou tudo que estava preso na-queles anos fúnebres de muito sofrimento. A medi-da que os ossos foram aparecendo, ela foi apanhan-do um a um, limpando, lavando com álcool, enxu-gando e colocando nos sacos plásticos. Depois foiaté o pé de fruta-pão. O coveiro fez uma nova cova,pouco profunda e ela colocou os sacos com os ossosde José Manoel.

–– Um dia eu volto para dar um enterro dignopara ele! Foi só o que disse. E o segredo ficou enter-rado ali. Geni nunca mais foi ao cemitério da Vár-zea.

3 outubro de 1975, página 2, Jornal Opinião,“Uma toalha na cela. O delegado Wanderley GirãoMaia, do DOPS cearense, ainda não disse a que con-clusões chegou o inquérito instaurado para apuraras causas e circunstâncias da morte do pedreiro PedroJerônimo de Souza, que estava detido naquela dele-gacia. Pedro, veterano militante comunista, foi ––segundo informações policiais –– encontrado mortoem sua cela, enforcado com uma toalha”. Depois pro-vou-se que ele morreu sob tortura. O deputado AlfredoMarques, do MDB, denunciou o então tenente HorácioMarques Gondim, como um dos assassinos.

Page 394: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 395: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

179

26. Barro Vermelho

Era um caminhão carga seca lotado de entu-lhos de construção, que vinha do centro e, sabe-selá por qual motivo, entrou naquela rua que não davaem lugar nenhum. Uma rua irregular, como quasetodas as outras do Barro Vermelho e só usadas pe-los moradores do bairro e pelos vendedores ambu-lantes e seus pregões que ecoavam pelas colinas sua-ves do bairro. Um entrançado de ruas, um labirin-to que, depois de muitas voltas, finalmente davamacesso às avenidas e levavam a algum lugar.

Ela viu quando o caminhão entrou na rua cho-roso e o motorista desviando de um buraco paracair num outro mais à frente A roda traseira afun-dou toda, até o eixo. A rua era estreita e ficou sóum pequeno vão que mal dava para passar carrospequenos. Não era problema pois era uma rua qua-se morta.

Ela parou de esfregar a roupa e olhou aquelaarrumação na rua. Quase nada acontecia de novi-dade naquela rua de doze casas, nenhum comércioe com um nome de presidente que ninguém nuncaouvira falar. Uma rua sem calçamento que no in-verno virava um lamaçal vermelho e escorregadio.

Filhos de uma puta! Ela não falou, pois evita-va o palavrão. Pensou e se recriminou logo em se-guida: A mãe desses bandidos não tem culpa! Faloubaixinho, um susurro, para si mesma:

Page 396: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

180

–– De novo meu Deus, como é possível viverassim?

Eram eles que passavam pela quarta ou quintavez naquela semana. Vinham num automóvel gran-de, sem placas e eram quatro. Olhavam acintosa-mente. Não escondiam os rostos e olhavam daque-la maneira, para ela saber que a estavam vigiando.Sorriam com escárnio.

Naquele dia, passava das quatro da tarde e elaaproveitava a estiagem e estava lavando roupa nafrente da casa debaixo de um jambeiro. Um restode enxurrada ainda escorria rente ao meio fio, ver-melha, parecendo sangue.

Eles vinham quase parando, desviando do ca-minhão de entulhos, que tomava quase toda a rua,e das pessoas que se juntaram ao redor do veículona tentativa de tirá-lo do buraco.

–– Papai, são eles de novo! Ela gritou.Seu pai, depois de todas aquelas atribulações

da filha, adoecera, ficara cego e definhava. Estavasentado no fundo da varanda, levantou-se e foitateando na parede até a frente da casa. O carroveio, com os mesmos quatro homens e passaramolhando para ela, nem se importando com a pre-sença do pai.

–– Tenha paciência minha filha! Um dia tudoisso acaba! Pediu, impotente. Uma dor apertandoainda mais seu peito. Uma dor estranha, agoniada.

Era uma semana ruim para Geni. No dia ante-rior, seu filho voltara chorando da escola e contou-

Page 397: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

181

lhe o ocorrido: Caminhava para a sala de aula, apóso recreio, e, no corredor, um professor apontoupara ele com deboche, e disse: Olha aí! Esse aí éfilho de terrorista! Nesta escola tem até filho deterrorista!

Agora ela não suportava mais aquilo, ver opai definhando e aqueles homens alí, zombando delae do seu pai.

22 de dezembro de 1975. Jornal Movimento,pagina 7: O senador Dinarte Mariz, que é frequente-mente recebido pelo presidente da República, falounuma entrevista ao Correio Brasiliense, sobre a im-portância da imprensa: “Muito mais importante doque vocês próprios imaginam quando estão escreven-do, elogiando ou criticando, daí a necessidade de umaampla união aos militares e aos políticos no combatesistemático ao comunismo. A Revolução não pode enão deve ser contestada, principalmente pela impren-sa”. Revolução para o senador biônico da ARENAdo Rio Grande do Norte era como chamava o golpede 1964.

Page 398: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 399: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

183

27. Terroristas, em Natal

Geni caminhava na Avenida Rio Branco e vi-nha pensando o quanto era belo o entardecer emNatal. Era outubro de 1976. Aquela luz difusa,rutilante, uma sensação de brumas que parecia exa-lar do rio Potengi e envolver a cidade e depois, umresplandecer final efêmero e de repente, a escuri-dão, como uma cortina que se fecha abruptamente.Agora só amanhã, neste mesmo horário! Falou parasí, sorrindo. Estava feliz dentro daquele possível desua vida atribulada pelas perseguições que nuncacessaram desde o assassinato de José Manoel. Mu-dara-se para Natal e a perseguição mudou junto.

Naquele começo de noite, voltava para o Bar-ro Vermelho onde morava com os pais. Fora levarum remédio para o avô na Cidade Alta, quase nocentro. Passava na frente de um restaurante que,naquele horário, ainda estava com as mesas vazias,quando um homem de barba comprida e óculos es-curos, saído não sabe de onde, aproximou-se e dis-se:

–– Continue caminhando e olhe só para o chão!Obedeça que é melhor para você!

Ela sentiu um frio intenso e a boca secar ime-diatamente. As pernas fraquejaram e ela bambo-leou sob o olhar atento do homem. Na sua memó-ria, veio uma imagem de alguma coisa já acontecida.Ela parecia esperar que um dia isso acontecesse. Ti-

Page 400: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

184

nha aquela impressão. Continuou caminhando, ago-ra com o homem ao seu lado. Na esquina o homemdeterminou: Dobre a esquerda! E sem gracinhas!

Não havia quase ninguém na rua àquela hora.O comércio já fechara, a maioria dos ônibus já ha-viam passado e poucos carros circulavam naquelelocal. Um grupo de homens à frente dobraram noBeco da Lama. Vão aos bares, pensou Geni que ago-ra apressava o passo na tentativa de alcançar o gru-po.

–– Nada de gracinhas, eu disse! Devagar! Erao homem novamente dando as ordens. A voz firme,demonstrando tranquilidade.

Ao lado da igreja ela viu alguns veículos esta-cionados e quando passava junto de uma perua Ve-raneio, a porta se abriu abruptamente e ela foi jo-gada dentro do carro. Foi tudo muito rápido. Apraça estava deserta e os poucos transeuntes nemobservaram o que acontecia. Foi encapuzada e per-cebeu que rodavam com ela na cidade. Ouvia o ba-rulho dos ônibus, buzinas de carros, as paradas nasesquinas e então o veículo estacionou, sem no en-tanto desligar o motor. Estavam numa rua movi-mentada e sentiu quando outro homem subiu noveículo.

Tudo limpo? Perguntou o homem.Tudo! Respondeu um deles que estava no ban-

co dianteiro.O homem sentou ao lado dela. Agora estava

entre dois homens e um deles com uma arma en-

Page 401: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

185

costada nela. Ela sentia o frio do metal no pescoço.Quando o homem entrou no carro, Geni sentiu umcheiro forte de bebida que se misturou ao cheiro decigarro impregnado no carro. Teve náuseas.

–– Sem gracinhas! Falou o homem que porta-va a arma.

Depois de algum tempo percebeu que o veícu-lo se afastava da cidade. E aí, começou.

–– O dinheiro? O que a gente quer saber é so-bre o dinheiro! Onde seu marido deixou o resto dodinheiro? Gritavam todos de uma só vez.

Notou que a velocidade aumentara e percebeuque tomaram uma estrada de terra devido os sola-vancos do carro.

–– Quais eram as ligações dele aqui em Natal?Vamos, responda! Aos gritos eles continuavam to-dos de uma vez.

–– Os pontos aqui em Natal! Vamos!–– O dinheiro!? Você abre e a gente não faz

nada com você! Disse o homem com cheiro de bebi-da, e que agora também fumava, tocando-a.

Ela novamente sentiu náuseas.–– Eu não sei do que vocês estão falando! Dis-

se quase numa súplica.Percebeu o veículo perdendo velocidade até

parar de vez. Agora só ouvia os sons noturnos damata. Não ouvia mais barulho nenhum de veículos.

–– Desça! E não adianta gritar porque ninguémvai escutar! Um dos homens foi falando e empur-rando-a com violência para fora do carro.

Page 402: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

186

E aí foi uma sessão de tortura. Murros e ta-pas. Atirada ao chão pelos homens e a sequência deperguntas: dinheiro e os pontos em Natal. Pareceque tudo girava em torno da história do cofre doAdemar.

Ela desconhecia tudo aquilo. Eles tinham qua-se certeza disso. Mas não custa tentar! Disse umdeles e convenceu o grupo.

Depois, foi estuprada. Lutou e resistiu o quan-to pôde. Eram quatro homens e ora diziam que eramdo exército, ora da polícia, ora polícia federal.

24 de outubro de 1975, o jornalista VladimirHerzog, 38 anos, então diretor da TV Cultura, apre-sentou-se no DOI-CODI em São Paulo, para prestaresclarecimentos sobre suas ligações com o PCB. Foitorturado e assassinado. Assim que a notícia do as-sassinato do jornalista se espalhou, um silêncio pro-fundo tomou conta de tudo, redações de jornais, rá-dios, tvs, universidades, etc. Esse protesto silenciosomarcou o início da derrocada da ditadura.

Page 403: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

187

.

28. Recordações de Pernambuco

–– Mas, padre, esses homens devem ser os mes-mos que torturaram e mataram meu marido! Faloudesesperada.

–– Ah! minha filha, você vai ter este filho! Abor-to, nem pensar! Você é cristã e sabe o pecado quepode cometer! Era o padre falando, mas nem de-monstrava tanta certeza no que dizia.

Era uma cena de desespero. Ela aflita com tudoaquilo, procurara o padre que havia sido seu pro-fessor na escola católica. Ele que a viu crescer na-quela escola, adolescente, cheia de sonhos e ela bus-cando forças para abortar o filho indesejado, frutode uma violência da ditadura.

Ela custava a acreditar naquilo tudo. Gravi-dez. Depois do estupro, a gravidez. Escondera dasua família tudo o que passara naquela noite fatídi-ca. Dissera que fora assaltada e não comentou maiso assunto. Mas e agora? Ela, uma cristã que semprefora contra o aborto iria seguir com aquela gravidêsfruto do estupro praticado por seus torturadores?

–– Ah! filha... E o padre despediu-se, virou-see foi embora sem falar mais nada.

Tomou um ônibus para o Recife e quando viua placa na divisa de Pernambuco, começou arememorar o seu drama. Por fim, lembrou-se commuita força do ocorrido no dia que sequestraramZezinho. Ela havia apagado aquilo tudo, mas, ago-

Page 404: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

188

ra, vinha-lhe à memória, vivo, vivo, o dia do se-questro do seu marido. E via seu filho, ainda crian-ça, em desabalada carreira por entre ruas e becosde Toritama e ela sem forças para chamá-lo. O me-nino foi para a pedra da Torre nos arredores deToritama. No imaginário dos meninos de Toritama,a pedra da Torre era o esconderijo ideal para resis-tir. E ele resistiria.

O desespero de Geni aumentava à medida queo ônibus avançava. Recordava-se da sua viagem paraNatal buscando o socorro do pai:

–– Papai, deve ser alguma coisa com o impos-to, porque Zezinho não paga imposto dos calçadosque fabrica e vende!

E o pai com todo carinho:–– Veja lá minha filha quanto é que ele tem

que pagar ao governo que a gente arruma, paga esoltam ele!

E à noite quando voltou para Toritama, aque-le reboliço todo. Sua casa toda revirada. Sofás ecolchões rasgados, móveis quebrados, paredesdestruídas. Tudo jogado no chão.

E no outro dia, ela desesperada em Recife semconseguir notícias do marido. A polícia negando, oExército negando, a Marinha negando, todos ne-gando. E na quinta-feira, dia 11, quatro dias depoisda prisão de Zezinho, as notícias nos jornais: terro-rista! Tudo aquilo vinha agora num filme para ela.

Com quem contaria agora em Recife, depoisde todo o ocorrido? Bateu em algumas portas que

Page 405: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

189

se fecharam, agora definitivamente. Os antigos vi-zinhos tinham medo e filhos para criar, diziam.

Por fim, uma antiga vizinha a ajudou. Fez oaborto, as coisas complicaram e ela findou numhospital do Recife. Os médicos perceberam logo oproblema: Mais uma que veio do matadouro! Disseo médico para a enfermeira.

Ela ouviu aquilo e se lembrou de Soledad emToritama em busca de ajuda para fazer um aborto.Quatro anos haviam se passado.

Após o atendimento no hospital, sedada, ador-meceu logo. À noite, depois da refeição, veio-lhe àmemória tudo que lhe dissera a doutora Mércia, asempre terna doutora Mércia: “Ví seu marido nonecrotério. Ele estava muito inchado. Vi todos osseis mortos lá. Eu fui lá em busca do Jarbas! Vocêo conhecia? Jarbas já me falara há alguns dias queestava com medo e desconfiado que eles estavamsendo traídos. Na quarta-feira, eu soube que haviaseis corpos no necrotério do Santo Amaro, fui lá efiquei horrorizada com o que vi. Estavam todos se-minus e inchados. Seu marido estava muito incha-do. Todos eles tinham marcas de tiro no peito e nacabeça. A Soledad estava com os olhos e a bocaaberta. Havia muito sangue coagulado e o feto es-tava nos seus pés. Era uma cena de filme de terror.A Pauline estava com a boca arrebentada, pareceque rasgaram sua boca. O Jarbas parece que foi en-forcado pois estava com a língua de fora e uma man-cha escura no pescoço”.

Page 406: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

190

Perto da meia-noite, uma auxiliar da enferma-ria foi até ela e falou baixinho:

–– Você tem algum problema com a polícia?–– Não, penso que não tenho! falou assustada.–– Na portaria estão dois polícias perguntan-

do por você! Falou e saiu rapidamente.Geni aperreada, fugiu. Àquela hora, sem saber

para onde. Por fim, foi para a rodoviária e voltoupara Natal, abalada com tudo aquilo.

24 de agosto de 1977. Jornal O Estado de SãoPaulo, página 12: “Estudantes saem à rua e confun-de polícia. Com jatos dágua, gás lacrimogêneo e gol-pes de cassetetes, uma passeata de mais de mil estu-dantes foi dispersada por tropas de choque da PolíciaMilitar quando se reunia à tarde no Largo do Rosá-rio, a principal praça de Campinas. Os estudantes pre-tendiam fazer a leitura de um manifesto dirigido àpopulação brasileira sob o título O Brasil é feito pornós”.

Page 407: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

191

29. Incidente em Brasília

Um dos homens da segurança fez sinal para ooutro apontando para ela. Quando foi entrar o se-gurança lhe barrou o caminho:

–– A senhora está proibida de entrar! Disse comarrogância. E completou:

–– São ordens da presidência da casa!Ela não discutiu. Nem esboçou nenhuma rea-

ção. Os amigos, ex-marinheiros, que estavam comela protestaram:

–– Cadê a democracia? O Congresso Nacionalé a casa do povo! Gritaram, em vão.

Mas ela tinha outros planos e já imaginavamesmo que seria barrada. O episódio do dia anteri-or havia repercutido muito mal. A imprensa havialhes chamado de baderneiros. Aquilo só agradavaaos órfãos da ditadura que não se conformavam comos avanços democráticos conseguidos pelo povo commuita luta.

Ela serenou os ânimos dos amigos que entra-ram protestando e quando foi saindo, um homem –– depois ficou sabendo que era um deputado daextrema direita –– a encarou e disse:

–– Mulher de terrorista era para apanhar nacara!

O homem se afastou rapidamente e quando sevirou para ver a reação de Geni, recebeu umasapatada na cara. Os seguranças correram na dire-

Page 408: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

192

ção dela que não reagiu. O deputado, deixou logo orecinto acompanhado de alguns auxiliares. Geni, cal-mamente apanhou o sapato e deixou o local. Saiu eaguardou um deputado que lhes dava apoio desdequando chegaram alí. Houve negociação e ela en-trou de braços dados com o deputado. Os seguran-ças não interviram. Veio ordem para que nãointervissem. Os companheiros a receberam com pal-mas e gritaram palavras de ordem.

Era 1988 e os marinheiros e seus familiares es-tavam no Congresso Nacional acompanhando a vo-tação da nova Constituição que finalmente deverialhes garantir a anistia. Geni viajara desde Natal atéo Rio de Janeiro para se juntar à caravana organi-zada pela UMNA, a entidade que organizava a lutados marinheiros. Desde 1975, eles lutavam pela anis-tia que viera em 1979, anistiando até torturadores,mas não os marinheiros.

Mas eles nunca desistiram da luta e, só em 2002,depois de 23 anos, conseguiram finalmente a anis-tia. Para o almirantado, os marinheiros que esta-vam na assembléia de março de 1964 no Sindicatodos Metalúrgicos do Rio, haviam cometido os cri-mes de motim, de revolta, de aliciação, incitamentoe insubordinação. Para Geni, os marinheiros se reu-niram para debater o que era bom para o povo bra-sileiro e o Brasil e não havia que pedir perdão denada a ninguém. E em Brasília, quando lhe pergun-taram sobre os atos de José Manoel, ela foi taxativa:

–– Eu falaria para ele que se ele tivesse cora-

Page 409: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

193

gem, poderia fazer tudo de novo. Se é para o bemda gente, para o bem da nação, o bem do nossopróximo, eu dava apoio para ele fazer!

30 de abril de 1981, atentado do Riocentro: nopavilhão Riocentro, à noite, onde se comemorava oDia do Trabalhador, reunindo artistas da MPB, umabomba explodiu no colo do sargento Guilherme Pe-reira do Rosário, matando-o e ferindo o motorista doveículo, o capitão Wilson Dias Machado. A ação dogrupo naquela noite era pichar o Riocentro com asigla VPR, detonar bombas nos portões do pavilhão eexplodir a casa de força. O primeiro IPM - InquéritoPolicial Militar instaurado pelo Exército em 1981, ino-centou os militares reputados vítimas de grupos deesquerda. O segundo IPM, em 1999, comprovou oenvolvimento dos militares, agora anistiados. O mi-nistro aposentado do STM, Julio de Sá Bierrenbach,declarou que nunca foi tomado o depoimento do ca-pitão, hoje coronel e professor no Colégio Militar deBrasília.

Page 410: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 411: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

195

30. Tecendo a manhã

Quando Beto Galdino apanhou o grito que hámuito ecoava entre ruas e becos, pôde entender quehavia uma história encoberta e uma ferida abertaem Toritama. Foi nos livros e descobriu mais.

Até então, era assim em Toritama:––Aquele Zezinho de Manoel da Santa falava

todo dia com Fidel Castro e ia soltar uma bombapara destruir Toritama!

E as crianças de Toritama cresceram ouvindoessa história. E os filhos de Zezinho escorraçados,quando de qualquer desavença:

–– Saia daqui filho de terrorista! Seu pai que-ria era acabar com a cidade!

Beto Galdino, também cresceu ouvindo essahistória, mas cismado, viu alguma coisa falseadanaquilo tudo e quando conseguiu lançar mais longeo grito que apanhara, os ecos lhes trouxeram outrahistória. Bem diferente daquela que Toritama co-nhecia. Então, ele teceu a sua manhã mais intensa.E quando alcançou Geni em Natal, ela pôde saberque a memória de José Manoel não restaria enter-rada junto ao pé de fruta pão no Cemitério da Vár-zea no Recife.

No dia que Geni foi com seu irmão buscar oautomóvel de Zezinho na Secretaria de SegurançaPública de Pernambuco, no Recife, percebeu quealém da vida do seu marido, a ditadura também

Page 412: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

196

avançara sobre os seus bens. Tinha receio de ir, masfoi. Afinal, era seu direito reaver um bem que eraseu.

Primeiro, disseram que não constava que o ve-ículo tivesse sido apreendido.

Depois, no outro dia, um delegado lhe disse:Sim, encontramos! Ele está no páteo! Um fun-

cionário a acompanhou até o páteo, mas o veículonão estava lá.

Ela voltou no dia seguinte e o veículo final-mente estava no páteo. Depenado. O veículo chega-ra quase novo e saía muito estragado. Pneus ve-lhos, sem o toca-fitas, o suporte, ferramentas e obanco traseiro. Até uma das portas fora substituí-da por outra mais velha.

Assim que saíram e se afastaram, Geni, maisaliviada, abriu o porta luvas do carro e encontrouum livro sujo, sem a capa e com manchas que pare-ciam sangue, mas que depois viu se tratar de tintamarrom de calçados. Os sequestradores e assassi-nos de José Manoel não se interessaram pelo livro eele ficou alí naqueles anos todos.

O livro tinha o nome de José Manoel na pri-meira página que ficara como capa e uma data mui-to apagada, mas que ainda se podia ler 1968. Tinhauma marcação na página 78 com uma tirinha decouro, bem fininha, que com o tempo, manchara asduas páginas, sem no entanto atrapalhar a leitura.

Quem viu o marcador de página foi seu irmão,quando em casa e mais tranquilos, contavam a his-

Page 413: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

197

tória do resgate do automóvel de José Manoel. Eraum livro de poesias e na página marcada se lia apartir de uma anotação a tinta azul, manchada, oseguinte:

“E onde o levais a enterrar,irmãos das almas,com a semente de chumboque tem guardada?Ao cemitério de Tôrres,irmão das almas,que hoje se diz Toritama,de madrugada.E poderei ajudar,irmãos das almas?vou passar por Toritama,é minha estrada.Bem que poderá ajudar,irmão das almas,é irmão das almas quem ouvenossa chamada.E um de nós pode voltar,irmão das almas,pode voltar daqui mesmopara sua casa.”

Geni se lembrou do episódio do livro no metrô,em Recife, a caminho do encontro com Maria doAmparo, a coordenadora do “Grupo Tortura Nun-ca Mais”, em Recife. Geni não conhecia o poeta João

Page 414: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

198

Cabral de Melo Neto, nem a poesia que ela achoumeio parecida com o que vivia agora. Ia enterrarZezinho, com muitas sementes de chumbo no cemi-tério de Toritama. Ele, José Manoel, que lutara pelareforma agrária.

Naquele dia, um dia de muita tristeza, de lem-branças do marido assassinado, ela reforçara umaesperança que guardava consigo desde muito: fazero enterro do marido em Toritama e mostrar que elenão era o bandido que a ditadura propagara.

O encontro com Maria do Amparo foi de mui-to enternecimento e grande surpresa para Maria doAmparo que não imaginava aquele desfecho. E Genise encheu de esperança e percebeu que estava bempróxima de lavar a honra manchada de José Manoel.

Foram ao Cemitério da Várzea e constataramque muitas páginas do livro de registro do cemité-rio estavam rasuradas para dificultar a localizaçãodos corpos.

No cemitério além delas, a imprensa. Havia umnovo coveiro. O outro estava aposentado, mas fica-va por alí fazendo serviços de limpeza dos túmulose pequenas reformas e assim complementava suaaposentadoria.

Ele demorou para aparecer e quando veio de-monstrava medo, muito medo. Primeiro buscaramtranquilizá-lo e depois Geni perguntou:

–– Você ainda lembra onde enterramos os os-sos do meu marido?

–– Essas coisas a gente não esquece! Disse e foi

Page 415: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

199

caminhando para o pé de fruta-pão.Quando começaram a cavar no lugar indicado,

vinte, trinta centímetros talvez, surgiram os primei-ros ossos, os fêmures, parte do crâneo, algumasvertebras, depois duas partes da arcada dentária comdentes intactos. Dos sacos plásticos, poucos vestígi-os. Foi um novo momento de comoção. Geni, pro-curou ser forte. E foi. O que lhe dava forças era apossibilidade real que tinha agora, passados maisde vinte anos, de gritar para todos, anunciar queZezinho não era o terrorista que a ditadura fez opovo acreditar naqueles anos todos. Apanhou ossopor osso, limpou-os e foi colocando na urna quehaviam trazido. Era 19 de dezembro de 1994.

Geni chegou em Toritama à tardinha. Entroue falou com sua cunhada:

–– Ela continua lá?–– Continua! Fica lá sentadinha olhando to-

dos os carros que chegam!–– Mas como é possível, meu Deus? Geni aper-

reou-se.–– Ela não acredita que ele foi assassinado! Ela

ainda tem a esperança de que qualquer hora ele vol-te. E nós temos muito medo do que pode acontecera ela! Geni, sentiu um aperto no peito, era umaagonia, um mal estar. Entrou, passou pela sala, pelacozinha e viu sua sogra sentada no quintal olhandoa estrada.

–– Ele não veio ainda! Disse-lhe a sogra, vol-tando-se para ela. Mas, meu coração de mãe diz que

Page 416: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

200

ele vem num carro vermelho grande! Esta noite eusonhei que ele chegava pela tardinha. Eu estou aquiesperando! Quero estar arrumada quando ele che-gar! Eu só não sei se eu resistiria ao seu abraço!

Geni abraçou a sogra, engoliu o choro e disse:–– Está bem perto dele chegar!Em março de 1995, finalmente José Manoel

voltou para Toritama. O caminhão do corpo debombeiros, trazendo a urna mortuária apontou lána entrada da cidade. As pessoas estavam na ruapara recebê-lo. Geni nem acreditava que pudessefazer tanto. Recuperar a imagem distorcida que aditadura fez do seu companheiro.

E lá estava ela, Dona Luíza, sentada no quin-tal olhando entre as varas da cerca, as torres bran-cas de pedra ao longe, viu quando o carro do corpode bombeiros apontou e aí vieram lhe dizer:

–– É seu filho Zezinho que vem chegando. Elase levantou e foi para mais perto da cerca. Olhouaquele povo todo saudando seu filho; sirenes liga-das, palavras de ordem, virou-se para a vizinha quelhe amparava e disse:

–– É meu filho Zezinho que vem vindo. Ele éda Marinha!

17 de março de 1995. em Toritama[PE]. Com oapoio da Prefeitura de Toritama e da Secretaria deJustiça de Pernambuco, o Grupo Tortura Nunca Mais[Maria do Amparo], Paróquia N. S. da Conceição,

Page 417: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

201

Centro D. Hélder Câmara, GAJOP, Movimento de Re-tratação Política de José Manoel da Silva, vereadoresMarcelo Santa Cruz e Dilson Peixoto e o Dep. Fede-ral Fernando Ferro, e mais a participação da UMNA- Unidade de Mobilização Nacional pela Anistia[Coutinho], Centro de Direitos Humanos e MemóriaPopular [Roberto Monte] e o povo brasileiro, fize-ram o traslado dos restos mortais do militante políti-co José Manoel da Silva. O governador de Pernambucoera Miguel Arraes.

Page 418: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 419: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

203

31. Hoje, morreu um cristão

Ideraldo ouviu o barulho dos foguetões e dasbuzinas dos carros. Ele já estava de banho tomado,roupa nova e os cabelos ralos, ainda molhados, aágua escorrendo pelo pescoço. Eram as pedras quefalavam para ele. Os sons de Toritama chegavamaté ele através das pedras, por entre as torres depedras. E neste momento, falavam sobre JoséManoel. Era 17 de março de 1995.

Um locutor num carro de som vinha anunci-ando pela estrada: Aplausos para José Manoel!Estamos fazendo a retratação política daquele quetombou em defesa da democracia! A p l a u s o spara José Manoel da Silva. O povo de Toritama vemostensivamente...

Lá do alto, da sua casinha de telhadomarronzinho e já pretejando, naquela imensidão depedras que desciam até a estrada, ele viu a fileira decarros e de motos e o caminhão do corpo de bom-beiros que seguia em direção a Toritama.

Ele sabia da homenagem e também estaria lá.Até ajudara a pintar as pedras que se transforma-ram nos “outdoors” com as palavras de ordem:“Zezinho Vive!”, “Tortura nunca mais!”

Morando entre pedras no alto da colina. Meialégua da cidade, mais pedra que terra e que nin-guém nunca reclamara dono, pois nem para criarprestava, plantava rocinha de milho e feijão e alu-

Page 420: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

204

gava seu trabalho nas várzeas. Foi a terra pedraque restou para ele e os irmãos.

Num domingo, seu filho viera para o almoçocom a notícia. Quase sempre, seus filhos vinhampara o almoço no domingo. Moravam em Toritamanas casinhas nuas entre pedras e sem arruamento.O progresso. Ah! O progresso! Estavam todos notrabalho das roupas, “dins”, como diziam.

–– O painho lembra do finado José Manoel?–– Zezinho de Manoel da Santa que foi assas-

sinado pela ditadura?–– Sim, ele!–– Ora meu filho, seria muita ingratidão mi-

nha e dos meus companheiros esquecer Zezinho! Foiele que deu a esperança da reforma agrária! Elecom aquela certeza toda! Que a gente sairia daquidesta secura branca de pedras para uma várzeaverdinha onde dá tudo! Ele sim, era nosso amigo!Lutava para que a gente tivesse uma vida melhor!

E recordou daquele dia de tristeza e medo quan-do lhe trouxeram o jornal.

–– Eu nem podia acreditar que era ele de tãoinchado que estava! E o jornal dizendo que ele eraterrorista, um rapaz que quase ví nascer e que co-nhecia o pai, a mãe, os irmãos? Não, não esquece-ria nunca!

O filho sabia quanto o pai lamentara aquelamorte e o quanto também temeu ser assassinado.Lembrava-se da fuga do pai e dos companheiros as-sim que chegou a notícia em Toritama. Passaram

Page 421: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

205

um bom tempo escondidos, dormindo cada dia numlugar. Insônia, desassossego e desconfiança de tudoe de todos. Em seguida, as conversas das traiçõescontra Zezinho que foram esclarecendo tudo aqui-lo. Depois de muito tempo é que foram retornandoaos poucos para suas casas, assustados e sofrendopreconceito. Lembrava-se das acusações infundadasque fizeram espalhar pela cidade:

–– Saia daqui, terrorista safado! Cadê a bom-ba que você e Zezinho ia explodir em Toritama, ca-bra de peia?! Era uma amargura lembrar daquelestempos, mas, enfim, chegara a grande oportunida-de de esclarecer tudo e colocar a verdade no lugar.Zezinho merecia aquilo. Agora estava impaciente.Queria ir logo para Toritama.

–– Ceição! Será que Tapuia vem?–– Hôme! Deixe de aperreio, parece que você

não conhece seu filho! Se ele diz que vem, é porquevem!

Ceição descendia dos tapuias, povo quase tododizimado pelos portugueses. Os que não foram as-sassinados, foram se casando com os brancos e pre-tos. Baixinha e atarracada, cabelos lisos, já quasebranco. O filho tinha as feições dela, só que alto eforte. Um Tapuia. O apelido foi das ruas e ficoupara sempre. Ele já se acostumara e tinha orgulhodos antepassados, homens bravos que não se curva-ram ao colonizador.

Ideraldo só sossegou quando as pedras fala-ram novamente. Da porta da sua casa ouviu o ron-

Page 422: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

206

co da motocicleta e foi para a porteira. De lá, podiaver bem longe. E viu a moto que vinha naestradinha, quase trilha, estreita por entre as pe-dras, aparecendo e sumindo e o som do motoralteando e quase desaparecendo.

Chegou na cidade no exato momento que Geni,à frente do cortejo e com a urna mortuária deZezinho nos braços, coberta com a bandeira brasi-leira, gritava:

–– Estou aqui limpando a sua honra, Zezinho!Você que foi tão pisado, tão machucado e tratadocomo um terrorista perigoso, como um homem semcaráter... Receba esta gratidão da sua mulher, dosseus filhos, do pessoal de Toritama e de toda a im-prensa.

Um dia inesquecível para Toritama. A cidadeparou para receber Zezinho de Manoel da Santa.Ele estava mais vivo do que nunca. Milhares de pes-soas nas ruas, nas varandas, nas calçadas, nos mu-ros. Um desfile colorido de guarda-sóis. Criançasem júbilo correndo de um lado para o outro. À fren-te as faixas, às dezenas: “Tortura nunca mais!”“Zezinho vive!”. O povo aplaudindo à passagem deZezinho.

Primeiro vinha o caminhão do Corpo de Bom-beiros, depois, o povo: velhos, jovens e crianças,homens e mulheres. Depois as bandas marciais emais povo. Depois veículos, dezenas deles. Um car-ro com grandes alto-falantes anunciando:

–– Zezinho vive! Tortura nunca mais! O povo

Page 423: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

207

de Toritama está fazendo a retratação política deJosé Manoel!

E lá estava Geni, carregando uma grande co-roa de flores nos braços. Estava lá, brava, valente, acabeça erguida e gritando para toda a cidade:

–– Zezinho não era o bandido que a ditaduraquis fazer dele. Ele lutava por uma vida melhor paratodos. Ele sempre lutou por isso!

E assim, o comércio de portinhas estreitas duasa duas reclamando pintura e os telhados compridosdas casas antigas de duas águas, viram passar aque-la mulher valente. O povo se acotovelando no meiofio da rua de calçamento de paralelepípedos; o povodando vivas das varandas, o povo nos muros e noscarros; aplausos que vinham daquelas casinhas es-premidas umas contra as outras.

–– Quem era ele? Perguntou um forasteiro.–– É José Manoel, Zezinho de Manoel da San-

ta, um filho valente de Toritama! Respondeu umnativo.

E na sombrinha pequena do meio dia, sol apino na cabeça seguia o povo de Toritama homena-geando seu filho. As motos e bicicletas seentrançando por entre o povo no cortejo, percor-rendo becos, ruas e avenidas. Geni à frente gritan-do em cada canto:

–– Meu marido não era o terrorista que a dita-dura disse que era. Ele lutou por nós e deu sua vidapela democracia.

E mais à frente, Geni mostra a foto do marido

Page 424: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

208

assassinado. O rosto de sofrimento da tortura,irreconhecível! Torturado! Uma camponesa com umpano amarrado na cabeça se aproxima e vê e dizpara a amiga:

–– Eu conheci ele mocinho! Era pouco maisnovo que eu! Era cheio de vida!

Não se vê sorrisos. Só cenhos fechados.–– É Zezinho de Manoel da Santa, um homem

que não se curvou à ditadura! Passa outro e diz. Ospanfletos são distribuídos e o povo vai lendo, infor-mando-se. Aula de cidadania. Aula da verdade. E opovo afoito querendo saber mais. Aqui, acolá, umprédio de fachada moderna dessa modernidade queestá aportando aqui: “jeans” e violência.

A multidão se espalha agora pela avenida e logoà frente se comprime no beco. Ao fundo, as casi-nhas simples de testeira branca.

Depois homenagem e missa no Ipiranga Fute-bol Clube. Ipiranga, rio vermelho, independência.Geni pensou em tudo isso num segundo. Mural nasparedes. Murais no Ipiranga Futebol Clube. E o povolendo, buscando informação. Aula de história. His-tória dos tempos recentes do Brasil. História escon-dida do Brasil. História revelada do Brasil. E ve-lhos, crianças, homens, mulheres e jovens lendo. Avi-damente lendo os murais.

Como há jovens em Toritama! Diz o visitante.Dalí, foram para o cemitério. Um homem pas-

sou de bicicleta com os olhos marejados:–– Fomos amigos de infância! Diz e sai.

Page 425: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

209

O povo vai se concentrando na rua do cemité-rio. Parece que todo o povo está nas ruas para pres-tar a homenagem a José Manoel. E o céu sempreazul.

–– Como é azul o céu de Toritama! diz o visi-tante.

E agora trazem as bandeiras, a do Brasil, a dePernambuco e a de Toritama. É homenagem. Ho-menagem pungente e o orgulho no rosto de cadapessoa. Aplausos, mais aplausos. E falou um, fala-ram vários. Tortura nunca mais!, todos dizem. EToritama e seu povo se tornaram maior a partirdaquele dia. Muito maior.

3 de agosto de 1995. Jornal Correio da Paraíba,Brasília[AG] - O Governo admitiu ontem ampliar alista dos desaparecidos políticos durante o RegimeMilitar de 136 para 372. [...] Requerimento do depu-tado Domingos Dutra [PT-MA], aprovado ontem,Jobim também terá que explicar os motivos pelosquais a proposta formulada pelo governo não prevêa hipótese do relato das circunstâncias dos desapare-cimentos. ... O presidente da comissão, deputadoNilmário Miranda [PT-MG], enfatizou que, agora queo assunto dos desaparecidos deixou de ser “margi-nal”, várias pessoas têm contado suas histórias e queé importante ouvir todos os depoimentos. ...

Page 426: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão
Page 427: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

211

Não meu, não meu é quanto escrevo.

A quem o devo? [Fernando Pessoa, novembro de 1932]

A Geni [Genivalda Melo da Silva] que, mesmo reabrindoferidas, se propôs a contar sua história.e mais a:Abreu, João Batista de, As manobras da informação - Aná-lise da cobertura jornalística da luta armada no Brasil,EdUFF/Mauad, Rio de Janeiro,2000.Almada, Izaías, A metade arrancada de mim, Estação Li-berdade, São Paulo, 1989.Almeida, Anderson da Silva, Todo leme a bombordo, Mari-nheiros e ditadura civil-militar no Brasil: Da Rebelião de1964 à Anistia, Programa de pós-graduação em história,UFF, Niterói, 2010.Assis, Chico, A Trilha do Labirinto, Inojosa, Recife, 1995.Borba, Marco Aurélio, Cabo Anselmo - A luta armada feri-da por dentro, Global, São Paulo, 1981.Cano, Wilson, Soberania e Política Econômica na AméricaLatina, Unicamp e Unesp, São Paulo, 2000.Capitani, Avelino Bidem, A Rebelião dos Marinheiros, Ar-tes e Ofícios, Porto Alegre, 1997.Cavalcanti, Paulo, O caso eu conto, como o caso foi - memó-rias políticas - 2º volume, Guararapes, 1980.Duarte, Antonio, A Luta dos Marinheiros, Inverta, Rio deJaneiro, 2005.Conserva, Paulo, Navegando no exílio, Gráfica NE, JoãoPessoa, 1991.Fon, Antonio Carlos, Tortura - A história da repressão polí-tica no Brasil, Global, São Paulo, 1979.Gabeira, O que é isso companheiro?, Nova Fronteira, Riode Janeiro, 1982.Gaspari, Elio, A Ditadura Envergonhada, Cia das Letras,São Paulo, 2002.

Page 428: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

212

Gaspari, Elio, A Ditadura Escancarada, Cia das Letras, SãoPaulo, 2002.Gorender, Jacob, Combate nas Trevas - A esquerda brasilei-ra: das ilusões perdidas à luta armada, Ática, São Paulo,1987.Koval, Boris, História do Proletariado Brasileiro - 1857 a1967, Alfa-Omega, São Paulo, 1982.Laque, João Roberto, Pedro os os lobos - Os Anos de chum-bo na trajetória de um guerrilheiro urbano, Editorial, SãoPaulo, sem o ano de publicação.Maciel, Vilma Antunres, O capitão Lamarca e a VPR - Re-pressão judicial no Brasil, Alameda, 2006.Mariani, Bethania, O PCB e a imprensa - Os comunistas noimaginário dos jornais 1922-1989, Revan e Unicamp, Cam-pinas, 1988.Mazzeo, Antonio Carlos, Sinfonia inacabada - A política doscomunistas no Brasil, Boitempo e UNESP-Marília, SãoPaulo, 1999.Melo Neto, João Cabral de, Morte e vida Severina e outrospoemas em voz alta, Editôra do Autor, Rio de Janeiro, 1966.Miranda, Nilmário e Tibúrcio, Carlos, dos filhos deste solo -Mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura mili-tar: a responsabilidade do Estado, Fundação Perseu Abramoe Boitempo,São Paulo, 1999.Morel, Edmar, A Revolta da Chibata, Grral, Rio de Janeiro,1979.Mota, Urariano, Soledad no Recife, Boitempo, São Paulo,2009.Paiva, Marcelo Rubens, Não és tu, Brasil - Romance,Mandarim, São Paulo, 1996.Paiva, Mauricio, O sonho exilado, Achiamé, Rio de Janei-ro, 1986.Palmar, Aluízio, Onde foi que vocês enterraram nossos mor-tos?, Travessa, Curitiba, 2006.

Page 429: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

213

Parucker, Paulo Eduardo Castello, Praças em pé de guerra- o movimento político dos subalternos militares no Brasil[1961-1964] e a Revolta dos Sargentos de Brasília, Expres-são, São Paulo, 2009.Paulino, Leopoldo, Tempo de Resistência, COC, sem localde publicação, 2006.Pedroso Júnior, Antonio, Sargento Darcy - Lugar tenentede Lamarca - Uma vida dedicada ao socialismo, Edição doAutor, Bauru, 2003.Politi, Maurice, Resistência atrás das grades, Plena, SãoPaulo, 2009.Reis Filho, Daniel Aarão, E Outros, Versões e Ficções: o se-questro da história, Fundação Perseu Abramo, São Paulo,1997.Ribeiro [Pena Branca], Octávio, Por que eu traí - Confis-sões de Cabo Anselmo, Global, São Paulo, 1984.Rodrigues, Flávio Luis, Vozes do Mar - O movimento dosmarinheiros e o golpe de 64, Cortez, São Paulo, 2004.Rollemberg, Denise, Exílio - entre raízes e radares, Record,Rio de Janeiro, 1999.Silva, Alberto Galdino da, Movimento de Retratação Polí-tica de José Manoel da Silva - Zezinho Vive, Vivo entre nós,Cópia reprográfica - Torirama[PE], 1995.Silva, Antonio Ozai, História das Tendências no Brasil [Ori-gens, cisões e propostas], Proposta Editorial, São Paulo, semo ano de publicação.Silva Filho, Emiliano José e Miranda, Oldack de, Lamarcao capitão da guerrilha, Global, São Paulo, 1980.Syrkis, Alfredo, Os Carbonários - memórias da guerrilhaperdida, Global, São Paulo, 1980.Souza, Percival de, Eu, cabo Anselmo - Depoimento aPercival de Souza, Globo, São Paulo, 1999.Tapajós, Renato, Em Cãmara Lenta - Romance, Alfa-Omega,São Paulo, 1979.

Page 430: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

214

Toledo, Caio Navarro, O governo Goulart e o golpe de 64,Brasiliense, São Paulo, 1988.Ventura, Zuenir, 1968 O ano que não terminou - A aventurade uma geração, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1988.Viegas, Pedro, Trajetória Rebelde, Cortez, SP, 2004.e mais a:Arquidiocese de São Paulo, Um relato para a História -BRASIL: NUNCA MAIS, Vozes, Rio de Janeiro, 1985.Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políti-cos, Instituto de Estudo da Violência do Estado - IEVE -Grupo Tortura Nunca Mais - RJ e PE, Dossiê dos Mortos eDesaparecidos Políticos a Partir de 1964, CEPE, Recife,1995.Documento do Comitê Brasileiro pela Anistia -Secção do Rio Grande do Sul, Dossiê dos Mortos e Desapa-recidos, AL do RS, Porto Alegre, 1984.PCB: vinte anos de políticia - documentos 1958-1979, LECH,São Paulo, 1980.Relato da guerrilha do Araguaia, autor desconhecido, có-pia reprográfica de documento datilografado , datapresumível 1975.Revista Carta Capital, Editora Confiança., SP, 18/3/2009.Revista Carta Capital, Editora Confiança, SP, 17/6/2009.Revista ISTOÉ, Editora Três, São Paulo, 28/3/1984.Revista ISTOÉ, Editora Três, São Paulo, 28/12/2007.Revista Manchete - Edição histórica, Bloch Editores, Riode Janeiro, ano 11 - abril de 1964.Revista O Cruzeiro Extra - Edição histórica da revolução,O Cruzeiro S/A, Rio de Janeiro, 10/4/1964.Revista O Cruzeiro Extra - A crise militar em fotos, O Cru-zeiro S/A, Rio de Janeiro, 30/5/1964.Revista O Cruzeiro, O Cruzeiro S/A, RJ, 10/4/1964.Revista O Cruzeiro. O Cruzeiro S/A, RJ, 08/8/1964.Revista VEJA, Editora Abril, SP, 18/02/1970.Programa Linha Direta Justiça - Rede Globo de Televisão -

Page 431: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

215

Caso Cabo Anselmo - exibido em 05/7/2007.Programa Canal Livre - TV Bandeirantes - Cabo Anselmo -exibido em 30/8/2009.Vídeo. José Manoel, um herói não reconhecido, Trabalho deconclusão do curso de Jornalismo, FAVIP-Faculdade do Valedo Ipojuca [PE], Natália Maciel e Oiarllane Muniz[Direção],2006.Vídeo. Zezinho de Manoel da Santa Vive, Retratação políti-ca de José Manoel da Silva, Divanildo Foto e Vídeo Produ-ções, Toritama[PE], 1995Vídeo. Retrospectiva dos 25 anos da UMNA [Unidade deMobilização Nacional pela Anistia, ex-União dos Militaresnão Anistiados], Rio de Janeiro, 1989.e mais a:Relatório de José Anselmo dos Santos, Declarações presta-das nesta Especializada de Ordem Social, Documento nº 03- 209 - Secretaria de Estado dos Negócios da Segurança Po-lítica, Policia Civil de São Paulo, Departamento Estadualde Ordem Política e Social, Divisão de Ordem Social, Setorde Análise, Operações e Informações, São Paulo, 1971.Relatório de Paquera, referente a: Onofre Pinto, Maria doCarmo Brito e Marcio Moreira Alves, Documento nº 09 - 143,Secretaria de Estado dos Negócios da Segurança Política,Policia Civil de São Paulo, Departamento Estadual de Or-dem Política e Social, Divisão de Ordem Social, Setor deAnálise, Operações e Informações, São Paulo, 1971.Exame em Local de Ocorrência, Portaria 11/73 de 9/1/1973- Granja São Bento, município de Paulista[PE}, Secretariada Segurança Pública - Instituto de Polícia Técnica -Pernambuco, Recife, 09/01/1973.e mais a:Arquivo Edgar Leuenroth - Projeto Brasil Nunca Mais -UNICAMP - http://segall.ifch.unicamp.br/site_ael/Banco de Dados da Folha de São Paulo - Acervo de Jornais:28/3/1964 e 29/12/1964, sítio:bd.folha.iol.co.br

Page 432: E ninguém dirá ... hoje morreu um cristão

216

Carta O Berro - [email protected], Fábio A. G. das, As Teses de Jamil e a luta armadados anos 1960-70 no Brasil, Revista Brasileira de História& Ciências Sociais, vol. 1, nº 2, dezembro de 2009.[www.rbhcs.com]Motta, Rodrigo Patto Sá, Modernizando a repressão: aUSAID e a polícia brasileira, no sítio:www.scielo.br/pdf/rbh/v30n59/v30n59a12.pdfwww.armazemmemoria.com.brwww.averdadesufocada.comwww.dhnet.org.brwww.direitoshumanos.gov.brwww.resgatehistorico.com.brwww.ternuma.com.brwww.torturanuncamais-rj.org.brwww.vermelho.org.bre mais a:Antídio Lima, Beto Galdino, Carlos Gregório, Clarissa Ma-ria, Genaldo Gomes, Gustavo Cabral, José Gomes, JoséRodrigues, Luiz Ernesto, Maria do Rosário, Mery Medeirose Ni Guerra[in memorian].