husserl e heidegger - da fenomenologia transcendental à fenomenologia existencial

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Trabalho de Conclusão de Disciplina Da Fenomenologia Transcendental à Fenomenologia Existencial Por Caius Brandão Disciplina: Filosofia Contemporânea Continental Responsável: Prof. Fabio Ferreira de Almeida Faculdade de Filosofia Universidade Federal de Goiás - UFG

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O objetivo central deste trabalho é estabelecer uma relação entre a compreensão da fenomenologia em Edmund Husserl e Martin Heidegger, em sua maior parte, com base nos textos A crise da humanidade européia e a filosofia e Conferências de Paris, ambos de Husserl, e na Introdução de Ser e tempo, de Heidegger. Com esse objetivo, buscaremos explicitar aspectos centrais em cada um desses pensadores, além de demonstrar alguns elementos comuns e discrepantes entre eles.

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Page 1: Husserl e Heidegger - Da Fenomenologia Transcendental à Fenomenologia Existencial

Trabalho de Conclusão de Disciplina

Da Fenomenologia

Transcendental à Fenomenologia

Existencial

Por Caius Brandão

Disciplina: Filosofia Contemporânea ContinentalResponsável: Prof. Fabio Ferreira de AlmeidaFaculdade de FilosofiaUniversidade Federal de Goiás - UFG

Page 2: Husserl e Heidegger - Da Fenomenologia Transcendental à Fenomenologia Existencial

Dezembro, 2009

1

Page 3: Husserl e Heidegger - Da Fenomenologia Transcendental à Fenomenologia Existencial

Introdução

O objetivo central deste trabalho é estabelecer uma relação entre a compreensão

da fenomenologia em Edmund Husserl e Martin Heidegger, em sua maior parte, com

base nos textos A crise da humanidade européia e a filosofia e Conferências de Paris,

ambos de Husserl, e na Introdução de Ser e tempo, de Heidegger. Com esse objetivo,

buscaremos explicitar aspectos centrais em cada um desses pensadores, além de

demonstrar alguns elementos comuns e discrepantes entre eles.

Conhecido como o fundador da fenomenologia, Husserl (1859 - 1938) nasceu de

uma família judaica em  Prossnitz, Moravia, do antigo Império Austríaco, e faleceu em

Friburgo, Alemanha, onde lecionou até o ano de 1928. Na Universidade de Friburgo,

Husserl foi professor de Martin Heidegger (1989 – 1976) – filósofo alemão reconhecido

como um dos mais influentes pensadores do século XX. Heidegger chegou a ser

considerado um protégé de Husserl, mas distanciou-se do seu mestre por razões

políticas. Por julgá-las irrelevantes ao objetivo deste trabalho, optamos por não tratar

aqui sobre tais questões. Interessa-nos, contudo, investigar alguns pontos convergentes e

divergentes nas obras desses autores.

Em primeiro lugar, vamos expor, brevemente, o projeto filosófico de Husserl.

Veremos como que, motivado pela preocupação com a então situação das ciências, ele

retoma o projeto cartesiano de fundamentar todo conhecimento possível através da

filosofia e cria a Fenomenologia Transcendental, uma ciência eidética. Neste percurso e

através de uma redução fenomenológica, Husserl chega ao Ego Transcendental para

conhecer as leis e princípios universais do conhecimento.

Em seguida, passaremos à análise da Introdução da obra Ser e tempo, de

Heidegger. Considerada por seus leitores e comentadores como sendo sua obra-prima,

Ser e tempo tem como objetivo central uma elaboração criteriosa da questão acerca do

sentido do ser. O método heideggeriano, a Fenomenologia Existencial, não investiga a

“quidade real”, mas antes, o modo de ser dos objetos da investigação filosófica. Antes

de expor este método no Segundo Capítulo da Introdução da obra, Heidegger reintroduz

a questão sobre o sentido do ser e identifica o ente que, por seu primado ôntico-

ontológico, será o primeiro a ser interrogado (Dasein ou Ser-aí, em alemão) para uma

correta interpretação sobre o sentido do ser em geral.

Por fim, buscaremos traçar um paralelo entre os dois autores, apontando alguns

elementos convergentes e divergentes entre a Fenomenologia Transcendental, de

2

Page 4: Husserl e Heidegger - Da Fenomenologia Transcendental à Fenomenologia Existencial

Husserl, e a Fenomenologia Existencial, de Heidegger. Para limitar a abrangência de tal

empreendimento, nos concentraremos na análise de três elementos que consideramos

mais fundamentais, a saber: o objetivo, o método e o objeto de investigação em cada

autor.

A Fenomenologia Transcendental

Tendo como cerne de sua preocupação a crise do espírito europeu e a

precária situação da ciência moderna, Husserl se propõe a re-fundar as ciências

positivas a partir de seu projeto filosófico. Para a melhor compreensão deste projeto,

vamos brevemente percorrer o caminho histórico/filosófico aberto por ele no texto

intitulado A crise da humanidade européia e a filosofia. Em seguida, procuraremos

demonstrar a relação do projeto husserliano com o objetivo central de Descartes em sua

obra Meditações, a saber: através da filosofia como unidade universal das ciências,

oferecer um solo seguro para validar o conhecimento das ciências em geral.

Aproximadamente no século VII a.C., os gregos deram início ao que Husserl

chama de “transformação da humanidade.” 1 Ele se refere ao surgimento da filosofia

como ciência universal. As ciências particulares surgem, a partir daí, como ramos da

filosofia. Neste momento, é bastante claro o papel desta filosofia como uma “ciência da

totalidade do mundo, da unidade total de todo o existente.” 2 Desta forma, observamos

como o saber filosófico uma vez serviu ao propósito de fundamentação de todo

conhecimento das ciências particulares.

Entretanto, a partir da renascença, assistimos ao agravamento de uma situação já

iniciada no período pós-socrático, quando as ciências começaram a se desenvolver

seguindo um caminho orientado mais pela práxis do que pela filosofia como ciência

global que deveria fundamentar todas as ciências particulares. Com a perda deste

fundamento, as ciências da natureza inauguram o “objetivismo” do método científico,

promovendo um modo de pensar científico-natural. Vejamos então no que consiste este

objetivismo das ciências tão duramente criticado por Husserl. Em suma, é a separação

entre o sujeito que conhece e o objeto a ser conhecido. Enquanto que no surgimento da

filosofia como ciência universal o mundo era compreendido como um todo integrado

1 HUSSERL, E. A crise da humanidade européia e a filosofia. Ed. EDIPUCRS, Rio Grande do Sul: 1996.2 Idem.

3

Page 5: Husserl e Heidegger - Da Fenomenologia Transcendental à Fenomenologia Existencial

que existe por si mesmo (phisis), na modernidade temos a crescente valorização do

método científico que busca a certeza matemática para as verdades de uma natureza

objetificada, medida e controlada. Isso cria as condições necessárias para o que Husserl

chama de “verdadeira revolução técnica da natureza.” 3 Ao promover a separação entre

o sujeito que conhece e a natureza, agora objetificada, as ciências naturais se abstraem

completamente do elemento espiritual, ou seja, a subjetividade.

Acontece que, para Husserl, as ciências positivas são incapazes de questionar

seus próprios princípios. Mesmo que os resultados a que se propõem sejam alcançados

com êxito, como poderiam as ciências validar seu conhecimento do mundo e da

natureza? Fato é que os cientistas não precisam lançar mão dos fundamentos últimos de

suas atividades para o êxito de seus trabalhos, mas, ainda assim, como poderiam eles

provar os pressupostos sobre os quais baseiam a validade de suas “verdades”? Para

Husserl, este trabalho é um empreendimento a ser realizado exclusivamente pela

filosofia. Exatamente por isso, Husserl retoma as Meditações de Descartes para criar um

‘neocartesianismo’ e, assim, buscar o desenvolvimento de uma filosofia que se coloca

no caminho seguro de uma ciência rigorosa e universal – a filosofia transcendental. Esta

filosofia, chamada de Fenomenologia Transcendental, vem, então, ao socorro das

ciências positivas, lançando luz sobre seus fundamentos. De acordo com Husserl, a

objetificação do mundo por cento tipo de ciência que carece de fundamentação

universal provocou o agravamento da situação de penúria em que se encontravam as

ciências modernas. O projeto husserliano, através da Fenomenologia Transcendental,

busca justamente remediar esta situação de falta de fundamentação racional rigorosa

para as ciências positivas.

A fenomenologia de Husserl é uma ciência eidética (relativa à essência), pura e

transcendental. Husserl promove um retorno ao Ego Cogito e busca conhecer as leis e

princípios universais onde repousa a validade de todo e qualquer conhecimento

possível. Através de uma operação metodológica que coloca entre parênteses as

verdades científicas, a natureza ou a própria existência do mundo natural conhecido

através da experiência, bem como a existência dos outros Eus e, desta forma, de todas as

realizações sociais e culturais, Husserl chega ao “Ego Transcendental”. Este método é o

que ele chama de epoché, ou ainda, de redução fenomenológica do eu natural

(psicofísico).

3 Idem.

4

Page 6: Husserl e Heidegger - Da Fenomenologia Transcendental à Fenomenologia Existencial

O Ego Transcendental é o princípio de unificação e individualização da

consciência. Ele é apresentado por Husserl como sendo o único responsável por todo

conhecimento possível.

“Pretender conceber o universo do ser verdadeiro como algo fora

do universo da consciência possível, do conhecimento possível, da

evidência possível, e ambos relacionados entre si de um modo

puramente extrínseco por um lei rígida, é um absurdo. Ambos são

essencialmente solidários e o que é essencialmente solidário é

também concretamente um só, um só na concreção absoluta: da

subjetividade transcendental. – Ela é o universo do sentido

possível, um fora-de é, então, precisamente o absurdo.” 4

Apesar da sua aparente similaridade com o Ego Cogito cartesiano, o Ego

Transcendental além de ter sido alcançado através de um método diferente – a epoché,

em contraste com a negação do mundo, ele tem uma natureza distinta. Para Husserl, a

consciência transcendental possui um caráter absoluto, na medida em que ela existe por

si e para si. Em outras palavras, ela necessita apenas dela própria para existir. Para

Husserl, Descartes cometeu um erro ao considerar o Ego Cogito como sendo um axioma

apodítico, de onde ele trás à tona os axiomas fundamentais aos conhecimentos das

ciências que buscam explicar o mundo, tal como a matemática. Ao contrário da

perseidade do Ego Transcendental, o Ego Cogito necessita de uma causa exterior.

Destarte, torna-se necessário ao projeto cartesiano a dedução da existência e veracidade

de Deus e, a partir dele, a garantia da existência da natureza objetiva. Husserl entende

que, desta maneira, Descartes estabeleceu a dualidade das substâncias finitas (res

extensa) e os campos distintos de atuação da metafísica e das ciências positivas. Por

outro lado, Husserl reconhece que Descartes fez uma importante descoberta com o Ego

Cogito, mas não apreendeu a sua mais completa e verdadeira significação possível, a

saber, a da subjetividade transcendental. O que interessa a Husserl não é a prova de que

o mundo concreto existe, mas, antes, reconhecer como o próprio mundo e todo

conhecimento possível apenas é possível no Eu Transcendental, pois é ele que constitui

e dá sentido ao mundo.

4 HUSSERL, E. Conferência de Paris. Ed. Edições 70, Lisboa.

5

Page 7: Husserl e Heidegger - Da Fenomenologia Transcendental à Fenomenologia Existencial

A epoché fenomenológica procura descrever as vivências como elas aparecem à

consciência que constitui seus objetos intencionais. Aqui, vemos como o conceito de

intencionalidade é axial na fenomenologia de Husserl. Intencionalidade significa que a

consciência está sempre consciente de algo, ou ainda, direcionada a algo. E o que

Husserl busca é a consciência absoluta, revelada apenas pela redução fenomenológica.

Neste sentido, a fenomenologia husserliana pode ser interpretada como um tipo de

idealismo transcendental. Isso significa que todo sentido e todos os seres imagináveis

pertencem, antes de mais nada, à subjetividade transcendental, ou seja, se constituem no

âmago do Ego Transcendental. Exatamente por isto, para Husserl, a teoria do

conhecimento que se pretende realimente válida deve ser fenomenológica e

transcendental.

Conclui-se, desta forma, que a Fenomenologia Transcendental tem em seu

propósito geral um caráter epistemológico, a saber, a fundamentação de todo e qualquer

conhecimento possível do mundo como ele aparece em nossa própria experiência,

determinando o que é mundo para nós.

Fenomenologia Existencial

Heidegger inicia a Introdução de Ser e tempo com a discussão a acerca do

esquecimento do ser pela filosofia ocidental. O autor postula que, a partir de Platão, a

filosofia abandonou o sentido original atribuído ao ser pelos pré-socráticos –

desocultação do princípio (arché) de todas as coisas que possibilita a compreensão do

ser em geral. Mas a questão do ser, objeto de estudo de Platão e Aristóteles, foi

esquecida e trivializada pela metafísica tradicional. Com o esforço dos gregos para se

compreender o ser, deu-se início a um dogma: a superficialidade da questão sobre o

sentido do ser e a sua falta de definição. Desta forma, preconceitos com raízes na

ontologia antiga passaram a fundamentar o não-questionamento do ser. Heidegger

explicita tais preconceitos (a universalidade do ser, que revela a sua obscuridade; a

indefinibilidade, que corrobora a necessidade de lhe atribuir sentido; e a evidência em si

mesmo, que demonstra o enigma da questão do ser) na esperança de superá-los e, assim,

trazer novamente à tona o questionamento sobre o sentido do ser. Com base na

preponderância da linguagem, ao invés de buscar uma definição para o que é o ser,

Heidegger postula a necessidade de se interpretar o sentido do ser. Quando indagamos o

6

Page 8: Husserl e Heidegger - Da Fenomenologia Transcendental à Fenomenologia Existencial

que é ser, compreendemos esse “é” sem estabelecermos a ele uma definição conceitual:

essa é uma compreensão vaga e mediana acerca do ser.

“(...) é a partir da claridade do conceito e dos modos de

compreensão explícita nela inerentes que se deverá decidir o que

significa essa compreensão do ser obscura e ainda não esclarecida

e quais espécies de obscurecimento ou impedimento são possíveis

e necessários para um esclarecimento explícito do sentido do ser.”5

Em seguida, Heidegger coloca de forma objetiva a estrutura mais adequada para

o questionamento sobre o sentido do ser. Nesta estrutura, temos três elementos

essenciais, a saber: o questionado é o próprio ser; o interrogado é o ente; e o perguntado

é o sentido do ser. Ora, se todo ser é ser de um ente, então, que ente é este que pode

oferecer uma compreensão sobre o sentido do ser em geral? Heidegger entende que o

primeiro a ser interrogado deve ser aquele ente capaz de linguagem, pois somente ele

poderia se questionar sobre o sentido do ser. O questionamento em questão envolve

atitudes também complexas, tais como visualizar, compreender, escolher e aceder.

Então, quem é este ente exemplar que, por ser dotado de linguagem, tem em seu modo

de ser a capacidade de se questionar sobre o sentido do seu próprio ser? Nas palavras de

Heidegger, “Esse ente que cada um de nós somos e que, entre outras, possui em seu ser

a possibilidade de questionar, nós o designamos com o termo pre-sença.” 6 Logo, aquele

que pode oferecer acesso ao sentido do ser é o ente denominado Dasein.

Heidegger analisa o aspecto ontológico e ôntico da questão do ser, com o intuito

de evidenciar a primazia deste questionamento. Podemos justificar o seu primado

ontológico com base nos fatos de que nos movemos sempre numa compreensão

mediana (ou pré-ontológica) do ser e de que a questão do ser permaneceu esquecida

pela metafísica tradicional. Para ele, até mesmo as ciências se movem numa

compreensão mediana do ser, na medida em que quer conhecer o ente, mas sem se

preocupar com o sentido do ser. O primado ontológico é identificado com o objetivo-

científico. Isto porque a ontologia é aquele tipo de investigação que se preocupa com o

real. A ciência, por sua vez, procura desvendar os fundamentos do real, ou seja, ao

5 HEIDEGGER, M., Ser e tempo. Parte I. Introdução. Editora Vozes, 2005.

6 Dasein foi traduzido por Marcia Sá Cavalcante Schuback como “pre-sença”. Neste trabalho, todavia, utilizaremos o termo em alemão.

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Page 9: Husserl e Heidegger - Da Fenomenologia Transcendental à Fenomenologia Existencial

analisar os entes reais, ela busca estabelecer a essência da realidade. O primado ôntico,

por sua vez, é estabelecido ao se reconhecer a ciência como uma atitude do homem.

Esta atitude é o modo de lidar ou de se comportar com o real, com a natureza. É

justamente isso que possibilita, ou faz surgir o ‘mundo’. Ademais, a questão do ser

apenas pode ser colocada a partir e com vistas aos entes. Assim se justifica o primado

ôntico da questão do ser. Temos, então, que o primado ontológico se refere ao ser,

enquanto que o primado ôntico, ao ente. Se, mais uma vez, o ser é sempre o ser de um

ente, então o primado ontológico do Dasein se dá em virtude de ter em seu próprio ser a

possibilidade de se perguntar sobre a compreensão do ser, ao passo que o primado

ôntico está relacionado ao fato de que Dasein é ele próprio um ente. Portanto, outra

confirmação do privilégio ôntico-ontológico da questão do ser se dá em virtude da

primazia ôntico-ontológica do Dasein.

Heidegger afirma que as ciências possuem o modo de ser do Dasein, mas este

ente privilegiado possui outros modos de ser diferentes da investigação científica e que

este não é o único possível.

O ser do Dasein, sendo, coloca em jogo o seu próprio ser. Para Heiddeger, é

sendo que Dasein se compreende em seu ser. Uma de suas características essenciais é

que, sendo, ele se abre e se manifesta no mundo por meio de seu próprio ser. Portanto, o

que pode dar sentido ao ser do homem é a sua própria existência, que se dá no modo de

compreensão do ser. Heidegger designa Dasein enquanto “pura expressão de ser”. Em

suas próprias palavras:

“Como a determinação essencial desse ente não pode ser efetuada

mediante a indicação de um conteúdo quidativo, já que sua

essência reside, ao contrário, no fato de dever sempre assumir o

próprio ser como seu, escolheu-se o termo pre-sença para designá-

lo enquanto pura expressão de ser.” 7

Heidegger nos chama a atenção para a mundaneidade do Dasein, ou seja, faz parte da

natureza deste ente existir no mundo. Logo, a interpretação que Dasein faz acerca do

seu próprio ser inclui a compreensão de mundo, bem como a compreensão do ser dos

entes neste mundo.

7 HEIDEGGER, M., Ser e tempo. Parte I. Introdução. Editora Vozes, 2005.

8

Page 10: Husserl e Heidegger - Da Fenomenologia Transcendental à Fenomenologia Existencial

“(...) de acordo com um modo de ser que lhe é constitutivo, a pre-

sença tem a tendência de compreender seu próprio ser a partir

daquele ente com quem ele se relaciona e se comporta de modo

essencial, primeira e continuamente, a saber, a partir do “mundo”. 8

Uma vez estabelecidos os primados ôntico e ontológico da questão do ser, bem

como, identificado o ente a ser o primeiro interrogado nesse questionamento (Dasein),

Heidegger dá continuidade à investigação analítica existencial (ou ontológica) deste

ente privilegiado. Aqui, o objetivo é descobrir a forma mais adequada de aproximação e

interpretação dos modos de ser do Dasein para, desta forma, descortinar o horizonte que

permitirá uma interpretação do sentido do ser em geral. O papel de uma investigação

analítica existencial é a de revelar a estrutura categorial do Dasein, ou seja, a sua

constituição específica de ser (tal como a mundaneidade). As modalidades de acesso e

interpretação deste ente devem permitir que ele se mostre em si e por si mesmo em sua

cotidianidade mediana, ou seja, “como ela é antes de tudo e na maioria das vezes.” 9

Todavia, por mais que tal abordagem explicite o ser do Dasein, ela ainda não permite

lhe atribuir um sentido.

Como observamos anteriormente acerca da constituição ôntica do Dasein, sendo

no mundo, cotidianamente, ele se move desde sempre numa compreensão vaga e

mediana do ser (pré-ontológica). A partir deste entendimento, a temporalidade será

interpretada como o sentido do Dasein. Isso significa que o tempo é o referencial e o fio

condutor mais seguro para o questionamento e a interpretação do sentido do ser. Desta

forma, o alvo principal de toda ontologia se funda no fenômeno do tempo.

“Se o ser deve ser apreendido a partir do tempo e os diversos

modos e derivados do ser só são de fato compreensíveis em suas

modificações e derivações na perspectiva do tempo e com

referência a ele, o que então se mostra é o próprio ser, e não apenas

o ente, enquanto sendo e estando “no tempo”, em seu caráter

“temporal”.” 10

8 Idem.9 Idem.10 Idem.

9

Page 11: Husserl e Heidegger - Da Fenomenologia Transcendental à Fenomenologia Existencial

É importante ressaltar o nexo entre os elementos da estrutura categorial do

Dasein: mundo – cotidianidade – tempo. A ligação entre tais elementos aponta para a

historicidade enquanto um modo de ser constitutivo do Dasein. “Em seu ser de fato, a

pre-sença é sempre como e “o que” ela já foi.” Isto significa, então, que Dasein é antes

de mais nada um ente histórico. Em suma, é o tempo que libera o horizonte para uma

investigação ontológica concreta.

Em Ser e tempo, Heidegger explicita o seu método fenomenológico juntamente

com o delineamento do seu objeto temático, a saber: o ser dos entes e o sentido do ser

em geral. Para ele, uma investigação que se orienta pela questão acerca do sentido do

ser é tarefa da filosofia e o modo de tratar este questionamento é o fenomenológico. Ao

contrário da ontologia tradicional que investiga a “quidade real” dos entes, Heidegger

está preocupado com o modo de ser e como são os objetos da investigação filosófica.

Em suma, ao colocar a questão acerca do sentido do ser, Heidegger inaugura uma

ontologia concreta que servirá de fundamento para todas as ontologias.

A partir deste breve panorama sobre as fenomenologias de Husserl e Heidegger,

passaremos, a seguir, à tentativa de estabelecer paralelos com pontos confluentes e

divergentes entre esses dois pensadores, tomando como foco o objetivo, o método e o

objeto de investigação em cada autor.

Da Fenomenologia Transcendental à Fenomenologia Existencial

É sob o ponto de vista da própria fenomenologia que identificamos a mais

importante aproximação entre Husserl, considerado o seu fundador, e Heidegger, a

quem é atribuído uma radical transformação da fenomenologia husserliana. Com o

intuito de fundamentar a fenomenologia, ambos os autores retomam a forma de

compreender o mundo dos filósofos pré-socráticos – desocultação do princípio (arché)

de todas as coisas que possibilita a compreensão do ser em geral. Com essa munição,

eles justificam uma crítica radical à tradição filosófica – de Platão a Descartes, no caso

de Husserl, e de Platão a Nietzsche, no caso de Heidegger (Heidegger acreditava que

Nietzsche foi o último dos metafísicos). O cerne das críticas que Husserl e Heidegger

fazem à tradição é a separação entre o sujeito que conhece e o objeto a ser conhecido

(em termos husserlianos); e a falta de distinção entre ser e ente, que resulta na

entificação do ser (em termos heideggerianos).

10

Page 12: Husserl e Heidegger - Da Fenomenologia Transcendental à Fenomenologia Existencial

No entanto, a convergência entre os pontos de partida de cada autor não

possibilitou que o caminho a ser percorrido por eles fosse o mesmo. De fato, cada um

seguiu objetivos distintos na formulação de suas fenomenologias. De certa forma,

podemos caracterizar o projeto husserliano como epistemológico, na medida em que ele

busca fundamentar todo e qualquer conhecimento possível no Ego Transcendental.

Numa visão mais abrangente, todavia, o que Husserl buscava era remediar a crise das

ciências modernas que careciam de fundamentação filosófica. A busca por um

conhecimento seguro sobre o qual todos os demais conhecimentos podem ser erguidos

também é um projeto cartesiano. Husserl, entretanto, apesar de ter reconhecido a

influência de Descartes em sua obra, distancia-se do dualismo cartesiano (res cogito

versus res extensa) para criticar com veemência o objetivismo das ciências que suprime

o elemento espiritual, ou seja, a subjetividade transcendental. Em suma, a

fenomenologia de Husserl não pretende ser uma ciência exata, mas sim, uma ciência

rigorosa e eidética.

Por outro lado, o projeto heideggeriano não pode ser de forma alguma

caracterizado como epistemológico. Isto porque o objetivo da Fenomenologia

Existencial é o de fundamentar todas as ontologias, a partir de uma ontologia concreta.

Com este fim, Heidegger dedica sua obra-prima, Ser e Tempo, ao questionamento sobre

o sentido do ser. Heidegger reconhece que as ciências se movem numa compreensão

mediana do ser, visto que ao investigarem os entes, elas não se perguntam sobre o

sentido do ser. Mas isto, Heidegger nos adverte, é o papel da filosofia.

Um conceito de extrema importância, tanto em Husserl, quanto em Heidegger, é

a noção de ‘mundo’. Diferente da concepção cientificista de objetificação do mundo

natural e do próprio espírito humano, ambos os autores consideram o mundo como um

elemento espiritual. Neste sentido, apenas o homem constitui mundo. Então, é este

mundo que existe apenas a partir dos seres humanos que desempenha uma função axial

nos métodos de investigação husserliano e heideggeriano. Por exemplo, a operação

metodológica utilizada por Husserl para chegar ao Ego Transcendental é a epoché, que

consiste justamente em colocar o mundo entre parênteses (isso inclui as verdades

científicas, a natureza ou a própria existência do mundo natural conhecido através da

experiência, bem como a existência dos outros Eus e, desta forma, de todos os

elementos sociais e culturais). Heidegger, por sua vez, elabora um método

fenomenológico, que ele chama de analítica existencial, o qual consiste em analisar o

ser humano (Dasein) enquanto um ente ‘cravado’ no mundo. A mundaneidade é

11

Page 13: Husserl e Heidegger - Da Fenomenologia Transcendental à Fenomenologia Existencial

elemento constitutivo do Dasein, ou seja, faz parte da natureza deste ente existir no

mundo. O papel de uma investigação analítica existencial é o de revelar a estrutura

categorial do Dasein, ou seja, a sua constituição específica de ser.

Uma diferença bastante significativa entre a Fenomenologia Transcendental e a

Fenomenologia reside nos seus objetos de investigação. Enquanto Husserl edifica a sua

fenomenologia sobre o Ego Transcendental, Heidegger desenvolve a sua ontologia

concreta interrogando o ente a quem ele chama de Dasein. Tanto o Ego Transcendental,

quanto o Dasein são os responsáveis pela constituição de mundo. Aqui vale ressaltar

que em ambos os casos, o mundo é constituído, na verdade, pela interação entre os egos

transcendentais (intersubjetividade), por um lado, e pela interação entre os daseins

(cultura), por outro lado.

Ainda é importante ressaltar a distinta natureza destes dois objetos de

investigação. A natureza do Ego Transcendental é a intencionalidade, que subsiste aos

diferentes níveis de redução fenomenológica. Com isso temos o seu caráter de

perseidade, ou seja, o Ego Transcendental existe independentemente da veracidade do

mundo exterior à consciência. O mesmo já não é verdade para o Dasein. Vimos acima

que este ente está cravado no mundo e que sua mundaneidade é um elemento

constitutivo do seu ser. Se pudermos atribuir uma natureza ao Dasein, ela teria que ser a

‘existência’, compreendida nos termos estritamente heideggerianos. Neste sentido,

apenas o ser humano (Dasein) tem existência e, como já vimos, é constitutivamente uma

existência no mundo. O mundo também é responsável pela constituição dos diversos

modos de ser do Dasein, na medida em que é a partir dele (do mundo) que o Dasein

compreende o seu próprio ser.

Heidegger também se distancia do mestre Husserl ao não conceber o ser humano

meramente como sujeito (ego) que se relaciona com objetos (a natureza, outros egos,

etc.). Hubert Dreyfus, Professor de Fenomenologia da Universidade de Berkeley, fez o

seguinte comentário num programa de entrevistas:

“The traditional philosophy regards man as a subject relating to

objects, a tradition from which Husserl did not seem to depart.

Heidegger, on the other hand, reacted against it. That Cartesian

tradition became so clear, and in a certain way so persuasive in

Husserl, that Heidegger was driven to see whether that was the true

description of the phenomena. Because Husserl kept saying that we

12

Page 14: Husserl e Heidegger - Da Fenomenologia Transcendental à Fenomenologia Existencial

must go to the things themselves, and let them show themselves as

they are in themselves. And when Heidegger actually looked at the

way that human beings are related to the world, he found that they

are not subjects related to objects at all. He found that awareness,

consciousness, did not play any role.” 11

Por exemplo, na realidade, nem sempre desempenhamos tarefas complexas em

plena consciência do que estamos fazendo, assim como muitas vezes um motorista

experiente dirige desatento ao fato de estar dirigindo. De fato, este motorista poderia

perfeitamente estar engajado numa discussão filosófica enquanto dirige. Ou seja, muitas

vezes, reagimos ao mundo muito mais do que agimos nele com plena consciência das

nossas ações, atitudes, sentimentos, etc.

Conclusão

Mesmo que partindo da mesma compreensão pré-socrática a cerca do mundo

(physis), vimos como Husserl e Heidegger se lançam em diferentes direções ao

fundarem, respectivamente, a Fenomenologia Transcendental e a Fenomenologia

Existencial. A exposição que fizemos acima evidenciou algumas similaridades, mas, de

forma mais significativa, talvez tenha justamente corroborado as diferenças entre eles,

tomando como exemplo o objetivo, o método e o objeto de investigação em cada autor.

Naturalmente, não era nossa intenção esgotar o tema desenvolvido neste trabalho. Muito

pelo contrário, esta breve exposição abre um enorme e intrigante campo de pesquisa

acadêmica, ao qual esperamos dar prosseguimento num futuro próximo.

Referências Bibliográficas

Livro:

HEIDEGGER, M., Ser e tempo. Parte I. Introdução. Editora Vozes, 2005.

Textos:

11 DREYFUS, H. Husserl, Heidegger and Modern Existentialism, disponível no link: http://www.youtube.com/watch?v=aaGk6S1qhz0

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Page 15: Husserl e Heidegger - Da Fenomenologia Transcendental à Fenomenologia Existencial

HUSSERL, E. A crise da humanidade européia e a filosofia. Ed. EDIPUCRS, Rio

Grande do Sul: 1996.

____________ Conferência de Paris. Ed. Edições 70, Lisboa.

Enciclopédia Online:

Phenomenology. Stanford Encyclopedia of Philosophy. Ed. Stanford University,

Stanford: 2003. Disponível no link: http://plato.stanford.edu/entries/phenomenology/

Entrevista em Áudio-Visual:

DREYFUS, H. Husserl, Heidegger and Modern Existentialism, disponível no link:

http://www.youtube.com/watch?v=aaGk6S1qhz0

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