velha do cerrado

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  • 8/3/2019 Velha Do Cerrado

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    LARISSA DOS SANTOS MALTY

    Centro de Desenvolvimento Sustentvel

    Mestrado Acadmico em Gesto Ambiental

    Orientador: Othon Leonardos

    Co-Orientador: Altair Sales

    Ttulo: VELHA DO CERRADO: A PERSONIFICAO DE UM

    ARQUTIPO EM BUSCA DA SUSTENTABILIDADE CULTURAL NO

    CERRADO

    Santa Rita, para quem os milagres

    nunca so impossveis, e ao meu filho

    Joo.

    DEDICO

    Ao meu companheiro, Rodrigo, minha

    menina de luz, Natlia, aos meus pais,

    Dalva, Gerson e Renato e aos meus

    irmos, Simone, por sua voz e

    inteligncia, Juliano por me ensinar que a

    terra vive, e Jnior por seu gosto pela

    msica e pela mistura de idias.

    OFEREO

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    AGRADECIMENTOS

    A todos os deuses e deusas que tive a oportunidade de conhecer, pela proteo,

    sade e iluminao.

    minha av Filinha, por ensinar pacincia, minha av Erlinda, por estimular

    poesia, a meu av Rispe, por incentivar o trabalho honesto e a meu av Miguel, por que

    sempre gostou de viver.

    Aos meus orientadores Othon Leonardos e Altair Sales, pela oportunidade, crticas

    e ensinamentos e por acreditarem em minhas intuies e me acompanharem por caminhos

    fininhos onde s se podia passar com os ps em forma de linha.

    Ao amigo e mestre Paulo Bertran, em memria a todas as andanas que me

    proporcionou fazer pela histria do povo cerratense.

    Ao amigo mestre Zezito, em memria, por seus brinquedos de criana e gente

    grande.

    Ao grupo Sons do Cerrado, Andra, Vernica, Albinha, Mestre Arnaldo e Wagner,

    por me inspirarem idias, pelos momentos de andanas pelo Cerrado, por me ensinarem a

    ouvir o que no se escuta a toa e nem se grava em gravador de pesquisa de campo.

    Aos amigos que fiz no Instituto do Trpico Submido, em especial durante sSemanas de Folclore, por seu carinho e incentivo.

    s velhas mulheres moradoras do Cerrado e a todas as suas comadres, por sua f.

    Aos meus amigos do teatro e da msica, pela baguna que fazemos com a vida.

    Ao amigo Bismarque Leal, por suas idias sem beira nem alcance de fundo.

    s amigas Stefania e rica pelos momentos de alegria e tristeza que passamos entre

    um fim de ano e outro.

    Obrigada.

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    SUMRIO

    1. TEMA.....................................................................................................052. INTRODUO.................................................................................... 053. METODOLOGIAS UTILIZADAS.....................................................094. MEMORIAL..........................................................................................164.1 Tempo de rvore....................................................................................164.2 Tempo de brisa4.3 Tempo de inspirao4.4 Tempo de chocalho4.5 Tempo de cura4.6 Tempo de floresta4.7 Tempo de orixs4.8 Tempo velho

    PARTE I REFLEXES E QUESTIONAMENTOS

    TRANSDISCIPLINARES

    5. PROPOSTA INTUITIVA DE GESTO AMBIENTAL A PARTIRDO CONHECIMENTO TRADICIONAL DE COMUNIDADES DOCERRADO.............................................................................................24

    6. O PODER, OS LDERES E OS FUNDAMENTOS EMSOCIEDADES PRIMITIVAS.....................................................................39

    7. VALORES QUE DESVALORIZAM..................................................47

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    8. O PAPEL DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS NAELABORAO DE POLTICAS PBLICAS.........................................50

    PARTE II EXPERIMENTO

    9. ELEMENTOS VIVOS, RECURSOS MORTOS................................5610. EDUCAO AMBIENTAL E PESQUISA-AO...........................6011. A EFICINCIA DO MTODO DE EXPERIMENTO CNICOENQUANTO MEIO DE EDUCAO AMBIENTAL E

    CONSERVAO DO CERRADO.............................................................61

    12. A ARTE COMO FORMA DE SENSIBILIZAO..........................6313. A ARTE COMO POSSIBILIDADE DE RELIGAO ENTRE OSAGRADO E PROFANO...........................................................................65

    14. A ARTE E A TRANSDISCIPLINA....................................................6815. A COMPOSIO DA PERSONAGEM VELHA DO CERRADO........................................................................................................................69

    16. PESQUISA DE CAMPO: ONDE TUDO NASCE.............................7217. APRESENTAES DA PERSONAGEM: ONDE AS VELHAS SEENCONTRAM.............................................................................................73

    18. A CRIAO COLETIVA DE UM MITO.........................................8119. A CONSERVAO DO CERRADO PELA COMPREENSO DESUA PRODUO CULTURAL.................................................................83

    20.CONCLUSES......................................................................................85

    21. ANEXO: CD DE MSICA E ESTRIAS...........................................86

    13. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.................................................87

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    RESUMO

    Em busca da sustentabilidade cultural, esta pesquisa procura trazer para a academia oconhecimento tradicional de comunidades do cerrado mantidos por suas matriarcas, para

    que fosse possvel refletir a partir dessa tica, sobre alguns dos principais paradigmas daGesto Ambiental na regio.

    Utilizando a arte como forma de sensibilizao e instrumento de EducaoAmbiental, este trabalho utiliza-se da pesquisa-ao e da heurstica como metodologias, ede tcnicas teatrais embasadas na mimes is, para o desenvolvimento de uma personagemteatral arquetpica, a Velha do Cerrado, que visita as comunidades pesquisadas em busca dacompreenso de sua produo cultural relacionada preservao ambiental.

    A proposta desse estudo norteou-se na identificao do arqutipo da Grande Me emmulheres curandeiras, rezadeiras, benzedeiras, portadoras do conhecimento ancestral de

    dilogo entre a comunidade e os elementos naturais que a cerca. Entendendo que naturaisso os animais, as espcies vegetais, os rios e a terra, mas tambm as comadres que jmorreram, os pais e avs ausentes ou o conhecimento ancestral a respeito da utilizao dasplantas medicinais do cerrado.

    Assim, a Velha do Cerrado so variaes de velhas, so velhas variando, num dilogoentre o real e o abstrato, a academia e conhecimento tradicional, a intuio e a natureza, aarte e a cincia.

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    ABSTRACT

    In the quest for cultural sustainability, this research seeks to bring into the academicworld the traditional knowledge ofcerrado communities, as preserved by their matriarchs,to foster reflection on some of the main paradigms of Environmental Management withinthis area.

    Using art as a means for promoting awareness and as an instrument for EnvironmentalEducation, this project uses research-action and heuristics as methodologies, and dramatictechniques based on mimesis to develop an archetypical dramatic character, the Old Lady ofthe Cerrado, who visits these communities, seeking to understand their cultural productionas it relates to environmental conservation.

    This studys proposition is based on the identification of the Great Mother archetypein the shaman-like curandeiras, rezadeiras and benzedeiras, all of them bearers of theancestral knowledge of dialogue between the communities and the natural elementssurrounding it. Natural elements such as animals, plants, rivers and the earth, but also long-gone comadres, absent parents or grandparents or the ancestral knowledge of the uses ofold medicine plants of the cerrado.

    In this way, the Old Lady of the Cerrado are variations of old ladies, are manyvarying old ladies, in a dialogue between reality and abstraction, academia and traditionalknowledge, intuition and nature, art and science.

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    1. TEMA

    A construo de um personagem arquetpico inspirado em rezadeiras,benzedeiras e curandeiras do Cerrado foi o instrumento utilizado para facilitar a

    compreenso da cosmoviso dos Povos do Cerrado, bem como de sua relao com o

    ambiente natural que os envolve.

    2. INTRODUO

    A vida sempre se me assegurou uma planta que extrai sua vitalidade do rizoma;A vida propriamente dita no visvel, pois jaz no rizoma.O que se torna visvel sobre a terra dura s um vero, depois fenece...

    Apario efmera.Quando se pensa no futuro e no desaparecimento infinito das culturas,

    No podemos nos furtar a uma impresso de total futilidade;Mas nunca perdi o sentimento da perenidade da vida sob a eterna mudana.

    O que vemos a florao e ela desaparece.Mas o rizoma persiste.

    Carl Jung

    Arqutipo primordial da prpria sabedoria, do conhecimento ancestral, da

    intuio e da fertilidade, a Grande Me, portadora de cada uma das essncias que

    identifica os diferentes povos indgenas americanos, Nan, me de todos os orixs,

    segundo as principais crenas afro-brasileiras, fonte da vida, o Universo-Me

    revelado em tantos templos da ndia, Nut, a Deusa-rvore, a deusa representada na

    teologia egpcia, ou simplesmente a Velha do Cerrado trazem consigo a memria

    coletiva, intocada e indestrutvel do amor pela vida mesmo diante de tantas torturas e

    desesperanas. Ela faz rir e chorar, nos relembra nossa existncia comum.Essa dissertao descreve a vivncia da Velha do Cerrado, personagem

    arquetpico, com seu grau de transdisciplinaridade, questionando alguns dos

    paradigmas atuais relativos sensibilizao do homem diante de seu habitat, suas

    crenas e seu conhecimento tradicional.

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    Pela definio tradicional, arqutipos so as formas

    primrias que governam a psique. Mas no podem ser

    contidos apenas pela psique, uma vez que tambm semanifestam nos planos fsico, social, lingstico, esttico

    e espiritual.

    Hillman, James (1983). Psicologia Arquetpica. Cultrix

    Quando a psicologia analtica se refere imagem

    primordial ou ao arqutipo da Grande Me, no se

    refere existncia de uma imagem concreta existindo

    com tempo e espao, mas a uma imagem interior emoperao na psique humana. A expresso simblica

    desse fenmeno psquico so as figuras e as imagens da

    Grande Deusa, reproduzidas nas criaes artsticas e nos

    mitos da humanidade.

    Erich Neumann, A Grande Me, 1996/9,19

    Tive um sonho enquanto vivia que essa velha existia dentro e fora do pensar.

    Procurei de onde vinha, seus rios, pedras, montanhas, onde era o seu lugar. Persegui

    caminhos trilhados por tantos andarilhos, reconheci pontos certos, relembrei

    passagens secretas, revivi ao procurar. E a velha senhora guiava cada passo

    persistente at se reencontrar: estava espalhada em mulheres, em histrias que vou

    contar. Vivia em meu prprio corpo, na arte de improvisar.

    Uma era Maria de Lara, outra se chamava Selma e tantas mulheres da reza,

    da cura, da benzeo religavam o sagrado e o profano, seu caminho e as linhas da

    mo, no arrancavam folha de cura sem devida permisso, danavam enquanto

    sagravam, cada palavra, um verso, que por trs do verde tinha o invisvel, indizvel

    legado do universo.

    Investigar a origem da prtica da cura na regio do Cerrado, sua preservao

    e continuidade, relatar a relao dessas velhas com o prprio meio e com a

    comunidade na qual se inserem, traduzem a proposta desse trabalho.

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    Essa investigao subdividiu-se em quatro momentos distintos e

    interligados: a pesquisa de campo, a construo da personagem, o experimento teatral

    e a reflexo analtica, que busquei desenvolver de forma transdisciplinar.

    Metodologicamente, a pesquisa de campo e a construo da personagem

    foram desenvolvidas coletivamente, ou seja, a partir das comunidades visitadas e de

    reflexes pessoais. O experimento teatral foi fundamentado na tcnica de

    improvisao, onde os temas, sempre desenvolvidos a partir de questes ambientais,

    eram postos em cena e transcorriam conforme as interferncias do pblico e do

    ambiente natural, cenrio principal das apresentaes.

    Por fim a Heurstica, mtodo intuitivo de investigao a partir do auto-

    conhecimento e da exteriorizao de pensamentos e aes, serviu como suporte

    metodolgico para a criao da personagem e composio dos textos da Velha do

    Cerrado e reflexes prprias.

    Este trabalho foi realizado durante os anos de 2004 e 2005, conforme

    cronograma pr-estabelecido, sendo seus principais locais de estudo o entorno de

    Braslia - DF, guas Emendadas DF, o ITS Instituto do Trpico Submido em

    Goinia - GO, Correntina BA.

    As apresentaes foram realizadas tambm nessas comunidades, bem com

    para um pblico especfico de professores, alunos e pesquisadores de reas

    relacionadas com a gesto ambiental e a sustentabilidade cultural, em especial no

    Instituto do Trpico Submido ITS da Universidade Catlica de Goinia e em

    projetos que associam as questes culturais e ambientais.

    Assim, memria, investigao e intuio compuseram os elementos centrais

    da construo dessa personagem que revela um dos principais arqutipos da religao

    do ser humano com seu habitat. A Velha do Cerrado, como ser chamada, recontar

    os mitos e lendas que permeiam o universo mtico do Cerrado, bem como divulgar,

    em parte, a arte da cura a partir dos elementos naturais presentes nesse ecossistema.

    Ao refletir sobre nossa histria e a arte de interpret-la teatralmente, gostaria

    de ressaltar que h que se compreender histria como essa fuso entre memria,

    investigao e inveno intuitiva. E me permito revelar certas confuses da alma.

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    Alma, no sentido proposto por James Hillman, em seu livro Psicologia Arquetpica

    onde essa expresso compreende uma perspectiva, ao contrrio de uma substncia,

    um ponto de vista sobre as coisas, mais do que uma coisa em si.

    Vez por outra confundo em minha alma, almas que no so minhas. Tomo

    emprestadas estrias alheias. Vivo encantada, nessa tal ilha longnqua, que tanto

    procuravam os portugueses, onde tantas velhas do continente africano vieram morar

    com seus destinos, onde ndios de diversas etnias se misturavam e ainda hoje se

    misturam com a prpria terra.

    Desde que cheguei aqui no parei de sentir saudade. Ocupou-me, ento, uma

    Velha do Cerrado, fazedora de chs e histrias.

    Essa velha me disse um dia, que histria e ch so fatos mergulhados em

    gua quente, com ou sem acar, dependendo do autor. Fui, ento, em busca de fatos.

    Descartei, de imediato, essa marca do descobrimento do Brasil, que isto no fato.

    Fato, que somos fugitivos e nos escondemos uns nos outros. Somos misturados pela

    necessidade de sobrevivncia. No centro do Brasil, no centro do meu corpo, fui

    colher fatos para fazer este ch. Uma infuso potica que poder servir como

    instrumento de comprovao da inexistncia de limites exatos entre o Sagrado e o

    Profano, conforme M. Eliade ressalta, e que faz com que determinados Povos do

    Cerrado promovam, de forma intuitiva, o desenvolvimento sustentvel.

    Sou ningum. Fui inventada pelo tempo.Meu corao no meu, sempre de algum que ocupo.Meus olhos dependem dos olhos de quem v.Meus ps so os mesmos seus ps.Meus ouvidos so os seus, agora.Me inventaram em sonho e eu fuji de l.Morei em lugares de mata fechada, rio corrente, Rio das Almas...E eu via sempre uma luz entrando por uma janelinha pequena l em cima,

    onde tambm entra o beija-flor e a chuva.Esse lugar, mais tarde fui saber que fazia parte de algum.Era um sonho pessoal.Era inveno ou quase nada. Fuji novamente do pensar e vagou em mim o

    universo. Voei por trs dias e trs noites. Uma coruja me acompanhava de perto. Ocu e a amplido. A distncia e o escuro. Tudo estava contido em algum. Desconfieidisso quando a pessoa que eu habitava desconfiou de mim.

    Olhamos uma para outra. Cara a cara. Cara a tapa num grito comum.

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    Sumimos de nossas vistas.

    Habitei tantas pessoas... Variei de pensamentos. Sou simples pensamento. Meassusta no existir... Mas esse medo... Esse medo no meu. De quem ser essemedo? Esse medo comum? Esse lugar comum... Eu me lembro desse lugar antigo. Melembro de voc. Essa forma de olhar. Estou nela agora. Vejo por seu olhar. Me vejouma velha senhora, contadora das lendas sagradas. Me vejo por voc, sentada numa pedra senhora, uma pedra que pode pertencer ao sonho. Pode ser inveno... Imaginao... Memria... Pode ser coisa da minha cabea... Vivo assim, quaseinexistente, igual a essa pedra, igual a esse cho, igual a voc e a Deus. E voc,existe, ou igual coruja? Igual a mim e a Deus: s pensamento de algum quesonha tudo isso enquanto dorme? Sonhos comuns.

    Velha do Cerrado, Goinia, junho 2005

    3. METODOLOGIAS UTILIZADAS

    Pesquisa-Ao Qualitativa

    a pesquisa-ao uma ao em nvel realista,

    sempre acompanhada de uma reflexo autocrtica

    objetiva e de uma avaliao dos resultados

    Kurt Lewin

    a pesquisa-ao de Kurt Lewin pode ser definida

    como uma pesquisa psicolgica de campo, que tem como

    objetivo uma mudana de ordem psicossocial... com a

    inteno de explorar o comportamento e as

    representaes de um sujeito ou de um grupo de sujeitos

    diante de uma situao concreta, para compreender-lhes

    o sentido, colocando-se alternadamente na perspectiva de

    observador e na de sujeitos-atores de sua vivncia

    Barbier (1985), (in. HAGUETTE, 1995).

    A pesquisa-ao uma metodologia de pesquisa cientfica qualitativa, que teve seu

    conceito desenvolvido por Kurt Lewin, psiclogo alemo, naturalizado americano, durante a

    Segunda Guerra Mundial, na tentativa de responder algumas demandas dessa sociedade

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    americana do ps-guerra, em busca de modificar determinados comportamentos sociais, servindo

    assim como um instrumento capaz de unir teoria e prtica.

    Para Lewin, essa era uma forma de realizar aes e reflexes autocrticas objetivas a estas

    relacionadas, resultando em uma avaliao consistente dos efeitos obtidos. Esta metodologia

    utiliza a investigao como um processo que se move sempre em uma espiral de ao-reflexo,

    pensamento-prtica.

    "A administrao social racional avana, portanto, numa

    espiral de fases, cada uma das quais compe um ciclo de

    planejamento, ao e averiguao de fatos referentes ao resultado

    da ao" (LEWIN, 1946:22).

    Assim, a princpio, as aes estariam vinculadas reflexo, ou seja a um trabalho de

    pesquisa cientfica, assim como a pesquisa no deveria estar desvinculada da prtica.

    Ainda devido anlise constante do meio estudado, bem como das relaes criadas a partir

    do contato entre o pesquisador e o espao pesquisado, esse processo sugere uma constante

    implicao entre esses dois universos.

    Na pesquisa-ao, o pesquisador includo no processo que investiga e sua ao tambm

    modifica o que est sendo analisado.A partir desta possibilidade de envolvimento do pesquisador com sua pesquisa, o papel do

    cientista, que antes se restringia a descrever, explicar e prever os fenmenos naturais e

    antrpicos, situando-se como um observador neutro, agora passa a cumprir a funo de servir

    como um instrumento de mudana social, comprometido com os resultados prticos de sua

    pesquisa-ao.

    A pesquisa-ao implica numa complexidade de

    pensamento. O paradigma da complexidade ope-se ao paradigma

    da simplicidade concebido como uma anlise, visando desconstruira totalidade em unidades isoladas. A complexidade aceita a

    incerteza, o imprevisvel, o no-saber e a contradio. Ela

    reconhece que tudo est ligado. Para o pesquisador em pesquisa-

    ao, o fato de aceitar o paradigma da complexidade impe uma

    viso sistmica aberta.

    Mriam Aparecida Bueno da Silva.

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    Ampliando sua aplicabilidade a pesquisa-ao passa a no mais se restringir adaptao

    das minorias sociedade, pretendida por LEWIN (1946), e acaba por designar-se como sendo

    uma prtica inevitavelmente participativa, que se aprimora com as colocaes de FREIRE

    (1983b) a respeito da prtica da educao e da pesquisa.

    Assim a pesquisa-ao no algo a ser aplicado por aquele que educa ou pesquisa, mas

    mostra uma possibilidade de aprimoramento dos seres humanos, sejam eles educadores ou

    educandos, a partir da investigao de sua realidade, incluindo-se nela, para que seja possvel a

    transformao daquele que investiga e de seu ambiente de pesquisa.

    "A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista elibertadora, ter dois momentos distintos. O primeiro, em que osoprimidos vo desvelando o mundo da opresso e vocomprometendo-se na prxis, com a sua transformao; o segundo,em que, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixade ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens emprocesso de permanente libertao."

    Freire (1983b:44).

    A Pesquisa-Ao Qualitativa foi, portanto, uma das metodologias adotadas para o

    desenvolvimento deste trabalho, onde foram visitadas as comunidades, bem como

    determinadas mulheres que vivem de forma isolada, e que revelam uma relao bastanteparticular com seu meio ambiente. A partir deste mtodo foram registrados tanto em vdeo

    quanto em fitas K7 alguns dilogos e reflexes que deram origem aos textos que a Velha do

    Cerrado assina como seus. So eles criaes coletivas, vozes unssonas de um povo que

    habita hoje o Cerrado.

    Foi ainda adotada uma forma mais livre de investigao e registro a partir de

    conversas informais e dilogos memorizados durante a pesquisa de campo, que

    posteriormente foram trabalhados vocal e corporalmente de forma solitria, em trilhaspessoais do Cerrado.

    Esta primeira etapa da pesquisa, a pesquisa de campo, serviu de base para a

    construo da personagem, bem como para o acompanhamento das prticas cotidianas dessas

    mulheres e suas relaes com a valorizao do ambiente circundante.

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    5.2 Pantheatre

    Esta tcnica teatral, que envolvem a intuio e a improvisao no processo deconcepo e realizao teatral, abrange expresso corporal, desenvolvimento da habilidadevocal e as idias culturais propostas pela Psicologia Arquetpica.

    A Psicologia Arquetpica foi fundada e desenvolvida por James Hillman, pensador junguiano contemporneo que une Psicologia Profunda, herdada de Freud e Jung, astradies culturais ocidentais da imaginao.

    A companhia teatral Pantheatre foi fundada em 1981 por Enrique Pardo, depois darealizao da performance sobre o Deus P. Em sua co-direo esto Linda Wise,especialista no desenvolvimento de tcnicas particulares desta companhia teatral, atriz e

    pedagoga, e Liza Mayer, que alm de diretora atriz, cantora e tambm pedagoga.

    Esta foi a primeira companhia originada a partir do grupo Roy Hart Theatre, queintegrou ao trabalho vocal desenvolvido por Roy Hart, o movimento corporal, a mmica e otreinamento proposto por Odin Theatre and Dance. Atualmente est instalada em Paris,divulga suas tcnicas em montagens, treinamentos e seminrios por eles organizados emdiversos pases.

    O pesquisador e diretor cnico Enrique Pardo, define seis principais linhas de atuaoa partir das quais desenvolve seu trabalho. So elas: O teatro coreogrfico, a voz, osestudos mitolgicos, o teatro alqumico, a academia do enfado e a superstio como um

    modelo para a percepo imaginria.Segundo o pesquisador ns habitamos e movemos nossos corpos como templos

    mticos. H muitos deuses e deusas, e cada um tem seu templo e rituais, tendo tambm seuprprio teatro.

    Tive a oportunidade de receber seus treinamentos e tcnicas teatrais em 1997, emMalrargues, no sul da Frana, pouco antes de concluir o curso de artes cnicas, na UnB, ea partir da incorporei alguns dos conceitos e tcnicas desenvolvidos por essa companhia sminhas atividades teatrais.

    Esta tcnica est embasada no estudo da mitologia, e busca a essncia do trabalho doator a partir do autoconhecimento, associando repetio do movimento a busca da foraindividual do intrprete. Ler os sinais revelados pelo mundo que nos envolve estimulanossa percepo imaginria, e este um exerccio essencial ao trabalho de improvisaocnica.

    20.1 A Heurstica

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    A Heurstica foi a terceira metodologia utilizada no processo de busca e

    entendimento do universo pesquisado e do universo interior daquele que pesquisa.

    Heuristic research is an extremely demanding

    process, not only in terms of continual questioning and

    checking to ensure full explication of ones own

    experience and that of others, but also in the challenges

    of thinking and creating, and in the requirements of

    authentic self-dialogue, self-honesty, and unwavering

    diligence to an understanding of both obvious and subtle

    elements of meaning and essence inherent in human

    issues, problems, questions, and concerns.

    Clark Moustakas, Heuristic Research

    Este mtodo busca responder a uma questo relacionada ao meio scio-

    ambiental no qual se insere o pesquisador, tomando por base a auto-investigao e o

    auto-entendimento.

    A Heurstica , portanto, um processo autobiogrfico, no qual, a partir de

    determinada experincia pessoal, o pesquisador pode obter respostas relativas s

    questes sociais, ou mesmo universais, do ser humano.

    Partindo de uma investigao sincera do universo pessoal, que est de

    alguma forma relacionado com determinado ambiente scio-cultural, este mtodo

    permite a criao de possibilidades para a resoluo de questes mais abrangentes,

    relativas ao objeto da pesquisa.

    A Heurstica um caminho de pesquisa cientfica que estabelece um

    processo de descobertas intrnsecas ao pesquisador, um caminho de auto-avaliao e

    dilogo com outros universos, objetivando o entendimento das experincias humanasfundamentais e comuns.

    Esta linha intuitiva de conhecimento baseia-se na percepo individual, suas

    crenas e julgamentos, porm requer disciplina e comprometimento no

    desenvolvimento de suas etapas e aes, propondo um intenso e contnuo dilogo

    interior a partir de questionamentos e inquietaes pessoais.

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    Seu primeiro passo a identificao do foco da pesquisa, ou seja, a

    identificao do tema, uma perspectiva que ser o incio do auto-entendimento. O

    que eu realmente quero experimentar em meu trabalho cientfico e como eu utilizarei

    isso para o entendimento da condio humana? Esta a pergunta guia do processo

    de investigao.

    I do not remember exactly at what point I began

    to apply this way of examining my experience, but very

    early in my life I would imagine myself in the position of

    the object in which I was interested.

    Clark Moustakas, Heuristic Research

    A partir da busca-se um dilogo interior, que deve, sempre que possvel, ser

    anotado em um dirio de bordo.

    A intuio a chave deste mtodo cientfico, e deve ser desenvolvida,

    aprimorada e valorizada durante qualquer fase do processo. Durante todo o trabalho

    deve-se exercitar e testar a intuio.

    No caso especfico da pesquisa aqui realizada, a intuio foi uma

    caracterstica essencial, no somente para o desenvolvimento psicolgico do campo

    de conhecimento, mas tambm para o desenvolvimento de caractersticas fsicas e

    corporais da Velha do Cerrado.

    Assim, as interfaces e relacionamentos entre o pesquisador e seu objeto de

    estudo vo sendo descobertos e aprimorados. Esta a essncia deste mtodo

    cientfico de pesquisa. Relacionar-se.

    As seis fases da pesquisa Heurstica incluem: o comprometimento inicial, a

    imerso, a incubao, a iluminao, a explicao e por fim a sntese criativa.

    Estabelece-se ento uma forma de estar presente no universo pesquisado, bem como

    de senti-lo internamente.

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    Considero importante ressaltar que esse caminho proposto, esse mtodo

    elucidativo de pesquisa deve ser visto tambm como uma experincia pessoal de seu

    autor, uma referncia e no uma regra a ser seguida passo a passo. Este no o nico

    caminho, mas um caminho paralelo que pode servir como uma lembrana de que

    preciso comunicar-se em sua experincia pessoal para que ela possa ser mais bem

    aproveitada.

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    4. MEMORIAL

    4.1.Tempo de rvore

    Foi assim: Eu corria muito pelo jardim e acabava sempre conversando com

    as rvores que minha me plantava e com uma rvore velha que tinha por l desde

    antes da gente ir morar naquele lugar. Era uma rvore toda torta, mas muito

    inteligente, tinha uma pele enrugada de rvore velha e parecia que se curvava quando

    eu ia perguntar alguma coisa pra ela. Mas ela no crescia. Eu achava que era porqueela j tinha crescido tudo e agora s estava brincando com o tempo. Floria, depois

    chorava as flores. Ficava verde, depois ia marronzando as folhas e ficava pelada na

    chuva. Com essa rvore tive minhas primeiras aulas de como ouvir o silncio. Ento,

    um dia meu pai chegou cheio de mudas de mangueiras. Eu estava estudando na

    escola: como enxertar um galho de uma rvore em outra rvore que j estava

    plantada. Era tudo um pouco terico demais pra eu acreditar. Mas l em casa eu

    peguei um galho de manga espada e enxertei na outra muda de manga comum e

    plantei. Essa rvore eu vi crescer. E ela crescia muito mais rpido que eu. Eu dormia

    e ela crescia. Eu viajava e ela continuava crescendo. E mesmo enquanto o motor do

    carro esquentava, de manh cedo, essa mangueira crescia e criava fora nos galhos. O

    tempo passou e a minha sorte foi ter tido uma adolescncia de pernas magras e corpo

    fino para poder servir na rvore. Eu cabia em seus galhos. E conversava com minha

    mangueira sobre eu ter segurado ela nas mos. Minha mangueira ainda hoje d dois

    tipos de manga. A manga comum e a espada. Com essa rvore eu aprendi, entre

    tantas outras coisas, que era possvel, interferir na natureza utilizando o conhecimento

    desenvolvido pelo homem. Cabia a mim agora desenvolver o bom senso.

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    4.2 Tempo de brisa

    Era uma noite cheia de estrelinhas brilhando,

    quando vi um vaga-lume e pensei que uma estrela tinha

    cado do cu. Larissa Malty, aos 7 anos.

    Aos 10 anos de idade publiquei um livro. Era um livro de poesia, ingnuo e

    cor de rosa, mas que me permitiu estar em feiras de livro ao lado de grandes poetas.

    Cora Coralina me deu sua bno num encontro inesquecvel. Era minha primeira

    mostra pblica, a dela seria a ltima. Nesse tempo eu gostava da rima perfeita. Ficava

    procurando palavras que cantavam a mesma msica e descobrindo um sentido para

    elas. Tudo tinha um ritmo preciso e os poemas que eu fazia muitas vezes seguiam seuprprio caminho, arriscando-se sozinhos no mundo da crtica, independentes,

    impacientes, tomando sua forma prpria, seguindo seu prprio caminho. Muitas

    vezes eu cheguei a dialogar com essas letras e suas idias conservadoras, mas o que

    prevalecia era sua vontade prpria de nascer da cabea para o papel e essa

    personalidade impulsiva de correr entre as linhas, driblar meus pensamentos e ocupar

    o espao branco. certo que muitas vezes me surpreendi com o resultado, mas o que

    mais me intrigava era ver a espontaneidade da vida, depois de surgida. Como as

    plantas, os pensamentos se iniciam da semente, e tendo espao, se desenvolvem,

    sabe-se l em que direo, buscando fontes e brisa. Foi assim que comecei a perceber

    o inquestionvel elo que liga a arte natureza, a natureza ao divino, e os deuses, em

    suas danas circulares, novamente arte. Esse dilogo o que inspira e intriga. Ser

    que o prprio Criador no tem essa sensao de impotncia ao ver sua criao

    assumir as rdeas do destino? Ou ser que a semente geradora de um universo dana

    com ele o movimento de expanso entregando-se ao prazer da incerteza?

    O tempo de contemplar garante a presena de quem observa. Assim, d-se a

    inevitvel simbiose entre o sujeito e o objeto. Eu via a formiga de fora e buscava a

    formiga de dentro. Via a chuva de fora e buscava a chuva de dentro. Via a gua de

    fora e sentia a gua de dentro. E a partir desse movimento circular alguma parte de

    mim esboava a necessidade de compreender a relao do homem com o seu meio

    atravs dos tempos.

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    4. 3. Tempo de inspirao

    Nossas idias motivadoras atuais no so mitos,

    mas ideologias, carentes de significao transcendental.

    Penso que essa perda da conscincia de mito a mais

    devastadora que a humanidade poderia sofrer. Pois,

    como tenho afirmado, a conscincia do mito o lao que

    une os homens uns aos outros e ao insondvel Mistrio

    de onde surgiu a humanidade, e sem cuja referncia e

    significao radical j no mais tolerado; os homens

    ficam radicalmente instveis e se agarram qualquer mito

    ou pseudomito que aparea.

    Philip Wheelwright . Poetry, Myth and Reality.

    Entrei para universidade e iniciei os estudos acadmicos das artes cnicas.

    verdade que eu j havia atuado antes, mas ali tive a oportunidade de experimentar a

    construo de personagens e sua relao com o mundo de forma menos preocupada

    com um resultado final esteticamente aceitvel. A proposta era vivenciar o processo.

    Isso nos dava liberdade para percorrer caminhos desconhecidos a convite da intuio.

    O corpo se doava criao numa busca incessante por seus arqutipos e smbolos. A

    memria se estendia por tempos vividos ou imaginados, o corpo aceitava novas

    formas e percorria o espao concreto ou abstrato em suas manifestaes animais ou

    humanas. Esse momento de intenso contato com emoes variadas, de plena entrega

    ao mundo mtico, muitas vezes exigia a presena da iluminao do universo

    acadmico, onde os livros nos indicam o caminho de volta ao mundo racional e nos

    relembram que experincias em princpio pessoais podem ser esclarecidas ou mesmo

    confirmadas por pesquisadores ao longo da trajetria humana. Porm, a importncia

    de experimentar o contato com a intuio antes de refletir sobre a realidade sempreme pareceu fundamental. Assim tambm o fazem os portadores do conhecimento

    tradicional, que estabelecem uma religao com seu mundo mtico e com seu

    universo natural a partir da f. Estava a a confirmao do elo que ligava o fazer

    artstico ao respeito e conservao da natureza, onde o ser humano est inserido, e a

    partir da qual recebe o conhecimento de seus ancestrais. Meu caminho se abria para a

    transdisciplinaridade em busca do desenvolvimento humano de forma sustentvel.

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    4.4 Tempo de chocalho

    O Palhao

    (Matria de poesia, 1974)

    Gostava s de lixeiro, crianas e rvores.

    Arrastava na rua por uma corda, uma estrela suja.

    Vinha pingando oceano

    Todo estragado de azul.

    Manoel de Barros

    Foi tambm nesse tempo que comecei a trabalhar no Ncleo de Educao

    Ambiental do Jaburu, como Educadora Ambiental a partir das artes. As crianas que

    me ensinavam cursavam a 5a. srie primria de colgios da rede pblica e diariamente

    colhamos no cerrado, matria prima de poesia. Buscvamos, os alunos e eu, a

    simplicidade despretensiosa conforme nos orientava os pequenos arbustos

    caractersticos de uma vegetao que gosta de brincar com fogo.

    Pela manh uma trilha pelo cerrado que contava com um passeio de barcopela lagoa do Jaburu, depois um almoo coletivo e um tempinho para ouvir um

    violeiro fazer msica em baixo de uma rvore bem grande. Ento, amos fazer arte:

    Teatro, msica, pintura ou reciclagem de papel, conforme o aluno quisesse se

    expressar. Nesse momento as vagens do barbatimo viravam chocalhos pra msica, a

    terra vermelha ou amarela era tinta pra pintar, qualquer pena do caminho, qualquer

    semente ou casca de rvore, qualquer som de passarinho, podia virar poesia.

    certo que muitos alunos terminavam o curso considerando o fazer artsticoe a preservao ambiental to fceis e divertidas que seriam capazes de mudar o

    mundo em sonhos. Mesmo sabendo das imensas dificuldades que esses jovens

    encontrariam pela frente ao se depararem com a realidade de nosso pas, me sentia

    realizada. A Educao Ambiental naquele momento dava-se por meio da

    sensibilizao. Mais tarde, com a descontinuidade poltica que nosso pas enfrenta,

    esse projeto foi abandonado.

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    4.5 Tempo de cura

    O teatro o estado, o lugar, o ponto onde se pode

    compreender a anatomia humana; com a anatomia

    humana se pode curar e dirigir a vida. Artaud

    Ainda na Universidade de Braslia elaboramos, eu e um colega da faculdade

    de medicina o projeto Teatro em Hospitais, e com apoio do Decanato de Extenso,

    levamos durante dois anos consecutivos o espetculo de boneco Os Saltimbancos a

    todos os hospitais da rede pblica de Braslia. A partir da a teia da vida me inspirou a

    refletir sobre mais um de seus fios: a sade do corpo e da mente. O tempo, um dos

    deuses mais flexveis, assume formas e ocupa o espao de maneiras variadas. Quandose est bem, o tempo mais um componente da vida. Quando se est doente, ele o

    maior companheiro, ainda que no se queira. Reduzir o tempo entre a medicao e a

    cura era um de nossos objetivos.

    Existe uma grande diferena entre estar doente e ser doente. E essa diferena

    est tambm relacionada ao tempo, tempo de espera. Estar doente pressupe-se um

    tempo anterior de bem estar, de boas lembranas, de momentos sadios, quando se era

    livre de dor, mais que isso, pressupe-se a possibilidade de cura. Esperana. Serdoente no. Ser doente impe outra relao com a doena, uma relao de convvio.

    Melhorar a qualidade de vida desse indivduo, reduzir o tempo de solido e desse

    dilogo infindvel com a doena tambm consistia em um dos objetivos desse

    trabalho.

    Posteriormente montamos um grupo de teatro com doze atores portadores de

    deficincia. Sete portadores de deficincia fsica, cinco, de deficincia mental. Foi

    bastante complexo compreender a relao desses indivduos com a natureza, com seu

    corpo. O maior presente foi observar os diferentes caminhos propostos por cada um

    deles para a soluo de problemas simples do cotidiano, como, por exemplo, descer a

    escada do teatro ou de enfrentar situaes fantsticas como as propostas pelo texto O

    Flautista Mgico onde a cidade inteira invadida por milhares de ratos. Nesse

    momento o teatro era a prpria vida, a natureza, um bloqueio ou um estmulo, e os

    deuses, os deuses estavam todos dentro de ns. Ns Outros, o nome do grupo.

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    4. 6 Tempo de floresta

    A humanizao da natureza a naturalizao do homem

    Karl Marx

    J era tempo de dissertao. No sei muito bem como a idia surgiu... Se foi

    numa conversa com uma amiga... Se um vdeo-documentrio, um sonho com a mata

    fechada e uma fogueira... No sei se inventamos esse incio. Um dia me lembrei que

    era ndia. Lembrei de meus pais que eram ndios, do povo da minha aldeia, dos

    deuses incorporados nas rvores da mata e nos bichos da mata. Lembrei-me da ona

    que eu era, dos filhos dela que eu era. Lembrei-me da teia de aranha, do velho e do

    novo Xam. E abriu-se um espao no cu, por onde eu passei enfeitada de penas e

    toda pintada de urucum. Koikwa: Um Buraco no Cu foi um espetculo teatral criado

    a partir de minha convivncia durante aproximadamente um ano, meu ltimo ano de

    faculdade, com os ndios Kaiap da aldeia Xicrim do Catet, no sul do Par.

    O Decanato de Extenso da UnB nos cedeu o micronibus. Montamos a

    equipe. Fomos pela primeira vez ao nosso encontro. Muitas outras vezes fomos e

    voltamos. Nesse tempo de floresta o tempo parou de repente. Eu estava num espao

    criado. Entre o cu e a terra. Um olho no meio da Amaznia, que de cima do avio eu

    via. Um olho no meio da Amaznia onde s deus podia me encontrar. Aprendi a

    danar para a terra. Aprendi a cantar para mim. Aprendi a sentir para todos. Aprendi a

    ser grande e pequena. Aprendi que tudo que eu sabia sobre Educao Ambiental

    estava ultrapassado. Que o mais atual da arte estava ali, co-existindo comigo.

    Presente. Era como estar dentro da me. Tudo era uno. Eu poderia morrer e viraria

    terra.

    Montamos um espetculo sobre a mitologia indgena relativa origem douniverso. Esse espetculo rodou por muitos teatros e mostrou nossos ndios recriados,

    nossa memria. E no momento em que apresentamos nossos brancos ndios para a

    prpria comunidade indgena e apresentamos o espetculo para nossos educadores, o

    espetculo se abriu ao cotidiano da aldeia e danamos e cantamos durante cinco dias.

    A partir desse encontro, foi publicado um vdeo-documentrio homnimo, que seria

    premiado como melhor vdeo latino-americano de meio ambiente em 1999 e um

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    livro, lanado pela Editora da Unb, em verso bilnge. No sei no... Mas misturar

    tudo por dentro como danar sem movimento aparente.

    4.7 Tempo de Orixs

    So Lus do Maranho. Janeiro de 2000. Nesse tempo eu cheguei a acreditar

    que para onde quer que eu fosse existiria um universo para me apaixonar. Fui para os

    lenis maranhenses em busca de uma comunidade de albinos que viviam em meio

    s dunas refazendo suas casas de tempos em tempos enquanto o vento brincava com apaisagem. As dunas mudavam de lugar e as casas tinham sempre que estar flutuando.

    Uma moradora das dunas me disse: Aqui a gente no faz casa pra durar. Percebia-

    se naquele lugar uma relao particular entre o homem e a natureza sua volta.

    A maior comunidade de albinos do mundo se dizia filha de Dom Sebastio

    com a Lua. O Sebastianismo renascia no Brasil por meio do Terreiro de Mina.

    Tempo de entrega. Tempo de Terreiro e de respeito. Tempo de olhos

    entreabertos e boca fechada. Enquanto a luz do sol refletia na areia e incidia sobretodos em quantidade dobrada, pintando tudo de ouro, a escurido do mistrio reinava

    nos coraes. Era chegada a hora.

    Estvamos, nessa poca, comemorando a marca de 500 anos da chegada dos

    portugueses no Brasil, um fato que levou muitos pesquisadores a repensar nossa

    formao tnica. Um fato que me fez pensar que somos todos fugitivos de ns

    mesmos e nos escondemos uns nos outros, misturados pela necessidade de

    sobrevivncia. L, onde o Brasil acaba, num pedao de terra fugitiva do continente So Lus do Maranho convidou-me para danar.

    Localizada entre as guas do Norte, que nos fazem arrastar os ps no cho, e

    o fogo do Nordeste, que nos ensina a saltar de banda, a Ilha me props espalhar.

    Espalhei-me ento, entre sombras, lendas e desertos, guas salgadas e doces, a

    convite de todas as correntes do mar, que quanto mais soltam, mais prendem, quanto

    mais prendem mais soltam e assim por diante.

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    Foi no Terreiro de Mina e no toque do tambor que pude ouvir os

    preparativos para a grande festa. L estavam, no terreno, homens e deuses ocupando

    um espao nico numa intrnseca relao, onde a natureza flutuante de areia ensinava

    o desapego, onde a humanidade se permitia continuar alm mar, numa mistura tnica

    e na busca inquieta da sacralizao do conhecimento.

    4.8 Tempo Velho

    De volta Braslia, de volta ao Cerrado, uma voz rarefeita dizia meu nome.Depois de tanta Amaznia, de tantas dunas de areia, novamente buscar a gua no

    fundo profundo de meu Cerrado natal. A secura do tempo racha minha boca, racha

    meus ps, racha minha pele e envelhece minhas mos. Nascia aqui a A Velha do

    Cerrado, oradora de estrias de antigamente, de quando nem gente existia. Pr-

    histrica mulher de olhos de ona.

    Nasceu no bero das bacias, emendando sua vida s guas emendadas. E

    assim, essa personagem tem aparecido por a, em pequenas comunidades do Centro Oeste, s vezes em Correntina, na Bahia, s vezes na cabea de quem quis ouvi-la. A

    Velha do Cerrado tem aprendido com mulheres de sua idade coisas sobre essa

    vegetao, essas guas, esse povo Cerratense, como diria Paulo Bertran, essas

    pedras preciosas.

    No caminho das guas uma rvore velha observa a velha senhora. Elas so

    do mesmo tamanho. Elas tm a mesma raiz. Esto ambas sentadas sobre as pedras.

    Vem a chuva e elas abrem a boca. Vem a tempestade e elas se fincam nas pedras. Vem o sol e elas bebem a chuva. Se curvam diante do sol, como se

    murchassem, elas reverenciam.

    Nos dedos mais finos da rvore esto os rostos de seus filhos, os brotos.

    Nas mos velhas da velha tem as linhas.

    Tudo est escrito na terra. Tudo est na ponta dos dedos, na palma da mo.

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    Tudo tem seu tempo de amanhecer.

    Se broto, ao mesmo tempo me; Se me, ao mesmo tempo deus; Se

    deus, ao mesmo tempo chuva.

    No corao da rvore tem uma flor. Na flor da velha, um corao.

    A velha pe sua flor nos cabelos e sai embelezando o caminho. E o corao

    da rvore brotou todo dentro dela.

    Velha do Cerrado, Goinia, maio 2005

    PARTE I REFLEXES E QUESTIONAMENTOS TRANSDISCIPLINARES

    1. PROPOSTA INTUITIVA DE GESTO AMBIENTAL A PARTIR

    DO CONHECIMENTO TRADICIONAL DE COMUNIDADES DO CERRADO

    O homem, sempre que andava, corria e ento no podia ver que o tempo pode

    abrir-se em espaos, que a estrada o prprio fim, que a vida, enfim, pode ser o sonho,

    o sonho comum de fazer parte do meio em que habita.

    De outro lado vinha A Velha, surda, mocoronga, ignorando os conflitos

    universais, transcendendo o paradigma do desenvolvimento humano, como ele,

    incgnita.

    Os passos dela se aprofundavam em razes e ele no compreendeu como ela

    podia andar. J os passos dele, quase no tocavam o cho, obcecado que estava pela

    curiosidade do mistrio.

    De uma ou de outra forma se encontraram, enfim. Ele, como quem v Deus, ela,

    desprevenida, mergulhou em seus olhos, permeou suas veias, inteirou-se de seus

    pensamentos e possuiu o homem.

    Nos tempos antigos chamariam esse encontro de encanto. Encantaria. Bruxaria.

    Hoje, o termo mais comum seria a incorporao.

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    Negros, no Brasil, permitem-se estar com seus deuses. Dentro de um ser, outro

    ser, no mesmo espao, ao mesmo tempo, como os sons naturais.

    ndios brasileiros olham o tempo e sabem que o tempo os olha tambm.

    Cuidam de Deus. Cuidam da casa. Cuidam do mato e dos remdios do mato.

    Cuidam da terra e dos que nascem da terra. Cuidam dos conhecimentos dos que

    morreram e cuidam da noite para que ela possa, um dia, amanhecer.

    No encontro das geraes so reveladas as leis fundamentais, e sobre elas no

    se escreve, se sabe. sabido que tudo continua. A planta continua no remdio. Oremdio continua no homem. O homem no outro homem e na ona. A ona na outra

    ona e na capivara. A capivara continua na terra, a terra o mesmo que a gua, a gua

    o prprio cu refletido. Tudo continua e cuida.

    Depois que chegou a estrada de asfalto era bom continuar pra l e ir cuidando

    no caminho. A estrada, que dizem que chegou, estava era indo, daqui pra l. Foi gente,

    veio coisa, foi crena, veio nada, foi numa lngua, veio em outra, foi numa mo, voltou

    em outra. Caminho. Farol. Luz alta. Atropelamento. Teve um tempo, aqui pertomesmo, onde se podia contar uma poro de tamandu-bandeira na beira do asfalto.

    Depois, pode ser que eles morreram mesmo, pode ser que aprenderam com a rua. Hoje,

    no se conta mais.

    O homem, cheio de velha dentro, diziam que estava enlouquecido. Conversava

    sozinho, mas nunca estava s. Ouvia vozes e elas repetiam coisas como se fosse ele

    mesmo falando. claro, existia um rio dentro dele. claro, uma montanha era

    continuao de seus dedos do p. Montanha inteira, com grutas, lenis de gua no

    fundo, morcegos, aleluias de chuva, silncio.

    Mas como manter Deus dentro Dele? Era isso que o angustiava agora. E se

    Deus enjoasse? Fugisse? Achasse apertado ou seco?

    Nesse momento de ansiedade tudo se esvaziava e sumia. A era o prprio homem

    que aconselha aos outros distncia. Dizia-se, em voz alta, um louco. E procurava,

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    correndo, sempre correndo de cidade em cidade, de lngua em lngua, de estrada em

    ponte, asfalto, ouvidos, sempre correndo, enquanto caminhava, uma forma de fazer

    parte do meio. Entrar e sumir dentro dele.

    Velha do Cerrado, Braslia, 17 de novembro de 2005.A busca de respostas que possam originar a paz entre os homens, o

    desenvolvimento humano, de forma a preservar os recursos naturais para geraes

    futuras, vem sendo intensificada desde 1972, na Conferncia de Estocolmo, quando

    representantes de 113 pases, 19 rgos intergovernamentais e 400 organizaes

    intergovernamentais e no-governamentais, participaram contribuindo para o fomento dequestes relativas a preservao ambiental e desenvolvimento da qualidade de vida. Esta

    conferncia, segundo Maurice Strong, lanaria um novo movimento de libertao, que

    emanciparia os seres humanos dos perigos ambientais causados por eles mesmos.

    Preocupava-se a, principalmente, com a relao do homem com os recursos

    naturais e seus efeitos na qualidade de vida humana.

    Brbara Ward coloca que: Antes de Estocolmo, as pessoas geralmente viam omeio ambiente [...] como alguma coisa totalmente separada da humanidade [...]

    Estocolmo registrou um deslocamento fundamental na nfase de nosso pensamento

    ambiental. [...] Pela primeira vez, o meio ambiente estava sendo discutido pelos

    governos do mundo como um tema em si, por seu prprio mrito.

    A posio dos pases menos desenvolvidos foi alterada a partir da, uma vez que

    a conservao dos recursos naturais globais estava relacionada, a princpio, estagnao

    do desenvolvimento desses pases.

    A China tomou frente a esse propsito de defender a explorao dos recursos

    naturais por pases menos desenvolvidos, de acordo com seu interesse e necessidade de

    desenvolvimento, levantando, assim, a reflexo sobre a relao entre economia e

    conservao ambiental.

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    O importante papel das ONGs, que organizaram um Frum Ambiental de debates

    e encontros paralelos Conveno de Estocolmo, antes e durante sua realizao, foi

    outro fator relevante nessa conveno.

    Declarao, Princpios e Plano de Ao foram produzidos na Conferncia de

    Estocolmo.

    Entre os principais registros das questes levantadas e refletidas durante a

    conveno, que tentaram definir no simplesmente o termo meio ambiente humano,

    mas estabelecer um caminho, com planos efetivos para a promoo desta rea do

    conhecimento, esto os 26 princpios, que podem ser resumidos em 5 grupos principais,sendo eles:

    A conservao dos recursos naturais; Assistncia e incentivo aos pases menos desenvolvidos no sentido de promover a

    elevao da qualidade de vida local e global;

    A promoo da cooperao internacional para o melhoramento ambiental; A poluio, em especial a dos mares, no deveria exceder capacidade de renovao

    do meio ambiente.

    A Cincia, tecnologia, educao e pesquisa deveriam ser utilizadas para promover aproteo ambiental.

    Enfim, o plano de aes definiu uma srie de atividades internacionais em busca

    do desenvolvimento de estudos a respeito do meio ambiente e suas principais tendncias,

    bem como de seus efeitos sobre a humanidade, visando a melhoria da qualidade de vida

    de forma mundial e o planejamento da administrao dos recursos ambientais.

    O legado de Estocolmo pode ser resumido em quatro resultados importantes:

    A conferncia confirmou a tendncia mundial em direo a uma nova nfase sobre omeio ambiente humano.

    A conferncia forou um compromisso entre as diferentes percepes sobre o meioambiente defendidas pelos pases mais e menos desenvolvidos.

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    A presena de ONGs na conferncia marcou seu novo papel no trabalho dos governose das organizaes intergovernamentais.

    O evento possibilitou a criao do Programa de Meio Ambiente das Naes Unidascomo um produto tangvel da conveno.

    Enfim, a Conferncia de Estocolmo pode ser considerada um marco fundamental

    no que se refere ao tema Meio Ambiente Humano e ao crescimento do ambientalismo

    internacional, pois pela primeira vez foram discutidos problemas polticos, sociais e

    econmicos relacionados ao desenvolvimento ambiental global, em um mbito

    internacional, onde foram ouvidos governos, organizaes interestaduais e no-

    governamentais de pases desenvolvidos e de pases em desenvolvimento.

    A Declarao, os 26 princpios estabelecidos e o Plano de Ao foram os

    produtos efetivos decorrentes de Estocolmo, alm, claro, da abertura inevitvel de

    dilogo entre Estados em diferentes fases de desenvolvimento em busca de objetivos

    comuns capazes de melhorar a qualidade de vida humana na terra.

    Vinte anos depois ocorreria a Conveno sobre a Diversidade Biolgica CDB,

    assinada por 156 pases, incluindo o Brasil, durante a Conferncia das Naes Unidas

    sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento ou Rio 92, ratificada pelo Congresso Nacional

    em 1994.

    Alm de recomendar a conservao da biodiversidade e dos recursos naturais que

    a envolvem, e promover a busca pela utilizao razovel destes recursos para o

    desenvolvimento humano, esta conveno ressaltou a necessidade da repartio justa e

    eqitativa dos benefcios derivados dos usos diversos dos recursos genticos.

    O que se buscou durante esta conveno foi associar proteo ambiental, o

    desenvolvimento social, cultural e econmico, em especial daqueles pases em

    desenvolvimento, que detinham, alm da expressiva variedade biolgica, uma

    deficincia tecnolgica, econmica e social em relao a pases mais desenvolvidos.

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    A partir de meados dos anos 80, comeou a surgir no Brasil

    um tipo de ambientalismo distinto do preservacionista, mais

    ligado s questes sociais. Esse novo movimento surgiu nobojo da redemocratizao, aps dcadas de ditadura militar,

    e, conseqentemente, caracteriza-se pela crtica ao modelo

    de desenvolvimento econmico altamente concentrador de

    renda e destruidor da natureza, que teve seu apogeu durante

    esse perodo.

    A. C. Diegues 2000:21

    Assim, as aes voltadas para a preservao dos recursos naturais passam a ser

    associadas a uma necessidade de desenvolvimento econmico e social capazes de

    promover a qualidade de vida humana.

    A Conveno prope uma srie de estratgias e aes para a implementao de

    polticas pblicas alm de incentivar programas inovadores de conservao dos recursos

    in situ e ex situ, e promover a disseminao de informaes relativas a pesquisas

    recentes e resultados obtidos.

    Segundo a CDB, os pases tm soberania sobre sua diversidade biolgica e pela

    utilizao sustentvel de seus recursos biolgicos, devendo conserv-la e us-la de

    forma sustentvel, quando for o caso.

    Alm disso, a CDB assegura a proteo e regulamenta o acesso do conhecimento

    tradicional, incentivando o retorno de benefcios gerados pela utilizao da

    biodiversidade, inclusive de produtos advindos da biotecnologia ou de qualquer

    aplicao tecnolgica e/ou cientfica que utilize sistemas biolgicos, organismos vivos,ou seus derivados para fabricar ou modificar produtos ou processos para sua utilizao.

    A Medida Provisria n 2.186, de 23.08.2001,regulamenta o inciso II do 1o e o

    4o do art. 225 da Constituio, os arts. 1o, 8o, alnea "j", 10, alnea "c", 15 e 16, alneas

    3 e 4 da Conveno sobre a Diversidade Biolgica, dispondo sobre o acesso ao

    patrimnio gentico, a proteo e o acesso ao conhecimento tradicional associado, a

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    repartio de benefcios e o acesso tecnologia e a transferncia de tecnologia para sua

    conservao e utilizao.

    Esta MP preserva o intercmbio e a difuso do patrimnio gentico e de seus

    componentes, bem como do conhecimento tradicional a ele associado e praticado por

    comunidades indgenas e tradicionais em benefcio prprio.

    Art. 8o Fica protegido por esta Medida Provisria o

    conhecimento tradicional das comunidades indgenas e das

    comunidades locais, associado ao patrimnio gentico,

    contra a utilizao e explorao ilcita e outras aes lesivas

    ou no autorizadas pelo Conselho de Gesto de que trata o

    art. 10, ou por instituio credenciada.

    Legalmente conceitua-se o conhecimento tradicional associado como sendo a

    informao ou prtica individual ou coletiva de comunidade indgena ou de comunidade

    local, com valor real ou potencial, associada ao patrimnio gentico.

    Assim, o acesso ao conhecimento tradicional entendido como sendo a obteno

    de informao sobre tais conhecimentos ou prticas, promovidos individual oucoletivamente.

    O que se constata que, a partir de ento, o Estado reconhece o direito das

    comunidades tradicionais de decidir sobre o uso de seus conhecimentos associados

    preservao e utilizao do patrimnio gentico, firmando que este conhecimento

    integra o patrimnio cultural brasileiro, podendo ser objeto de cadastro.

    Assim, a comunidade local tem garantido seu direito de permitir ou no, autilizao de seu conhecimento, a divulgao e a retransmisso de dados ou informaes

    que integram o conhecimento tradicional, tendo assegurado seu direito de ter indicada a

    fonte deste patrimnio intelectual em todo material publicado a partir dele.

    Esta demanda pela necessidade de se resguardar o direito sobre a proteo e o

    acesso ao conhecimento tradicional associado constata, a princpio, a expressiva

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    diversidade cultural brasileira, demonstrando as diversificadas naturezas scio-culturais

    e tnicas de nosso Estado.

    No Brasil, o que se observa que as leis que regem as polticas pblicas voltadas

    para a soluo de questes relativas gesto ambiental vm sendo aprimoradas ao longo

    do tempo, de forma a contemplar o desenvolvimento econmico, social e cultural do

    pas, minimizando os impactos ambientais gerados a partir das aes antrpicas, e

    valorizando os diferentes olhares nacionais que traduzem nossa diversidade biolgica.

    Um pas como o Brasil, em desenvolvimento, e que reserva a principal floresta

    tropical nativa, onde se situa quase a metade da gua potvel do planeta, conformerevelam as pesquisas mais recentes, privilegiando a diversidade de ecossistemas, e, por

    conseguinte, a diversidade biolgica, deve, claro, estar frente em discusses

    interestaduais que promovem a gesto dos recursos ambientais, bem como dos recursos

    humanos e tecnolgicos necessrios ao desenvolvimento do pas.

    importante ressaltar ainda que a diversidade cultural que co-existe neste amplo

    territrio, de cultos sincretizados, saberes miscigenados, valores vindos de regies to

    distantes, deve ser observada como uma possibilidade de multiplicao de olhares, que

    intensificam o dilogo entre o desenvolvimento e a preservao ambiental.

    O conhecimento tradicional associado torna-se relevante conservao da

    diversidade biolgica, integridade do patrimnio gentico do Pas e utilizao

    adequada de seus componentes, uma vez que atribui a este patrimnio valores que so

    repassados atravs das geraes, valores ancestrais.

    Porm, o conhecimento tradicional vai alm de sua aplicabilidade associada ao

    patrimnio gentico, como define Antnio Carlos Diegues:

    O Conhecimento tradicional pode ser definido como o saber

    e o saber-fazer, a respeito do mundo natural e sobrenatural,

    gerados no mbito da sociedade no urbano / industrial e

    transmitidos oralmente de gerao em gerao. Para muitas

    dessas sociedades, sobretudo as indgenas, existe uma

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    interligao entre o mundo natural, o sobrenatural e a

    organizao social.

    A. C. Diegues, 2000:30

    Manter a diversidade cultural do pas, e os diferentes olhares a partir dela sobre a

    biodiversidade uma das formas de preservar a intrnseca relao entre o homem e a

    natureza, para inmeras espcies, inmeros olhares, inmeras identificaes, variadas

    formas de integrao entre a complexidade humana e a biodiversidade que o acolhe

    desde h tantas geraes.

    As populaes tradicionais no s convivem com a

    biodiversidade, mas nomeiam e classificam as espcies

    vivas segundo suas prprias categorias e nomes. Uma

    importante diferena, no entanto, que essa natureza diversa

    no vista necessariamente como selvagem em sua

    totalidade; ela foi, e , domesticada, manipulada. Uma outra

    diferena que essa diversidade da vida no vista como

    recurso natural, mas sim como um conjunto de seres vivos

    que tm um valor de uso e um valor simblico, integrado

    numa complexa cosmologia.

    A. C. Diegues, 2000:31

    Conhecimentos tradicionais to variados a respeito de recursos naturais to

    abundantes podem tambm estar sendo perdidos diante do avano tecnolgico e da

    massificao de informaes que chegam de tantas formas como verdades absolutas.

    Perde-se, ao longo do tempo, peculiaridades dos saberes locais a respeito dosrecursos naturais, perdendo-se assim inmeras possibilidades de associao do

    conhecimento tradicional, de informaes ou de prticas com valor potencial ou real

    associados ao patrimnio gentico.

    Alm disso, sabe-se, que no somente a amplido espacial de nosso territrio

    capaz de promover esta multiplicao de olhares sobre as questes ambientais, mas

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    tambm a co-existncia de tempos distintos num mesmo tempo mundial capaz de

    provocar o dilogo em tempo real entre o homem e seus ancestrais.

    A matria do Globo Reprter, noticirio da TV Globo, que foi veiculada no dia

    20 de novembro de 2005, revelou um grupo indgena da Amaznia em seu primeiro

    contato com homem branco e sua cultura. Essa amplitude temporal faz do Brasil um

    pas ainda mais rico em suas formas de relacionamento com o meio ambiente que o

    constitui.

    Se as relaes do homem com seu habitat vm se transformando ao longo do

    tempo, no Brasil este dilogo intensifica-se, uma vez que aqui o homem pode serobservado em diferentes fases de seu convvio com a natureza que o cerca, refletindo o

    meio e sendo tambm seu reflexo.

    Ao percorrer o espao, observando a paisagem, deve-se estar

    atento s mudanas expressivas tanto do relevo, quanto da

    vegetao; tanto do clima, quanto da ocupao humana.

    Deve-se parar, observar atentamente, assinalar as rupturas,

    ou seja, as zonas fronteirias. Procurar a divergncia, o

    contraste e a mudana, enfim, a fronteira. Harmonia e

    contraste, eis os dois elementos fundamentais de toda

    beleza, dizia M. Vatel, um grande chef de cozinha da corte

    de Lus XIV. Sem perder de vista o carter holista, prprio

    da geografia, essa frase traduz tambm uma das primeiras e

    mais importante contribuies do pensamento geogrfico ao

    entendimento do planeta Terra e das sociedades humanas

    que o habitam, que a percepo da diversidade que

    caracteriza tanto o meio natural como o social e cultural.

    Antnio Teixeira Neto1

    Situada na Chapada dos Veadeiros, especificamente nos fundos do Vale dos

    Contrafortes da Serra Geral do Paran, a regio dos Kalunga um exemplo de uma

    1 Professor visitante do Instituto do Trpico Submido da Universidade Catlica de [email protected]/[email protected]

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    realidade peculiar que at bem pouco tempo quase desaparecia em meio paisagem, to

    era seu distanciamento de outras culturas da mesma regio, tal era seu entrosamento com

    o prprio ambiente.

    Mesmo sendo sua regio inspita, justamente a aspereza

    desse meio geogrfico que se constitui na imensa barreira

    natural que assegurou e, bem ou mal, ainda assegura hoje, a

    sobrevivncia, a segurana, as particularidades e a

    originalidade do povo Kalunga.

    Antnio Teixeira Neto

    Em um tempo prprio, em um espao particular, os Kalunga, ainda hoje se

    relacionam intimamente com a diversidade natural que os envolve, um Cerrado

    composto por diferentes ambientes locais, vales frteis, brejos que alimentam crregos,

    buritis e buritiranas que alimentam a famlia, segredos ancestrais que alimentam a

    comunidade. O povo Kalunga vive ali h mais de dois sculos.

    Cada stio, cada micro-paisagem situada em um contexto

    geogrfico mais amplo, como s acontece nesse imenso eaparentemente homogneo territrio do Cerrado, tem

    especificidades que lhe conferem uma certa originalidade,

    como a umidade permanente dos terrenos de vrzeas e

    varjes, a temperatura amena nos baixades alagados, os

    capes sempre verdes e bastante arborizados nos relevos

    tpicos das chapadas e muitos outros enclaves geogrficos

    que abundam nesse imenso territrio do Cerrado.

    Antnio Teixeira Neto

    O Cerrado abriga povoados to diversos quanto as paisagens naturais do Trpico

    Submido, que envolvem num s ecossistema aparentemente homogneo diversas

    paisagens, campos abertos, campos limpos, campos sujos, cerrados e cerrades,

    chapadas, mata ciliar e ripria, cada um desses ambientes contribuindo para a formao

    de olhares e conceitos a respeito do espao.

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    Encontram-se a referncias de valores essenciais para a melhoria da gesto dos

    recursos naturais, exemplos de solues prticas para os conflitos gerados a partir dessa

    diversidade de encontros espaciais e temporais do homem com o ambiente, enfim,

    princpios que regem e regulamentam a gesto ambiental.

    Tais princpios talvez ainda no possam ser protegidos como sendo um

    conhecimento tradicional associado, j que so prticas amplas de dilogo e convivncia

    do homem consigo prprio, com sua comunidade e com os recursos ambientais que o

    cercam, mas que certamente deveriam ter a ateno dos tcnicos, polticos e cientistas

    que se interessam pelo desenvolvimento sustentvel e por possibilidades de gesto dos

    recursos naturais.

    So princpios tais como observar o mundo natural a partir do prprio homem,

    considerando seu carter antropomrfico, observar o homem como sendo um fractal do

    universo, onde ao mesmo tempo parte dele e o contm por completo.

    Assim, as relaes entre ser humano e natureza, entre ele e os deuses ou espritos

    d-se de forma a unificar suas essncias, abrindo um dilogo unssono, em uma mesma

    lngua, e isto se observa nos mitos originais dessas comunidades tradicionais. Neles est

    contido o estatuto, as leis universais que regem a comunidade.

    (...) nas mitologias antigas ou em mitologias antigas

    contemporneas de outras civilizaes, os rochedos,

    montanhas, rios so biomrficos ou antropomrficos e o

    universo povoado de espritos, gnios, deuses, que esto

    em todas as coisas ou por trs de todas as coisas.

    Reciprocamente, o ser humano pode sentir-se da mesmanatureza que as plantas e os animais....

    Morin, 1986:151

    Na segunda metade do sculo XIX, em uma busca ilusria pelo paraso

    perdido, ou o que Diegues trata por natureza intocada, so concebidos os primeiros

    parques nacionais norte-americanos, quando espaos delimitados considerados

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    intocados so transformados em reas naturais protegidas, nas quais no se permitiriam

    moradores.

    Estes espaos, no entanto, so o refgio de moradores metropolitanos capazes de

    gerar benefcios a seus visitantes e turistas. Muitas vezes estabelecendo valores para

    visitas peridicas e, principalmente em pases em desenvolvimento, desterrando

    moradores locais, estas reas acabam por distanciar ainda mais o homem de seu habitat

    natural, considerando-o sempre como uma ameaa preservao do meio ambiente.

    Toda a concepo de conservao passa necessariamente

    pela noo do mundo natural. Esse conhecimento, mesmohoje, no se restringe ao produto da cincia moderna,

    cartesiana, mas representado por smbolos e mitos.

    (Diegues, 1993:57)

    certo que essas reas protegidas esto permeada de smbolos que levam o ser

    humano a encontrar-se consigo mesmo, resguardando-se da constatao do homem

    como sendo uma espcie fracassada, suicida, responsvel pela morte de seu planeta me,

    de seu semelhante contemporneo, pela falta de amor por geraes inteiras, futuras.

    Sabe-se que caminhando pelo Cerrado encontra-se inspirao para a vida. Sente-

    se a a paz necessria para se criar o filho. V-se na mata a si mesmo, e essa reflexo

    permite situar-se no tempo e nos ciclos universais.

    Mas a reside o atual paradigma da gesto ambiental. O lugar do homem na

    natureza. O controle dos instintos humanos. O descontrole da razo pragmtica de

    enquadrar as coisas, os pedaos de cho, os deuses bons e ruins.

    Sociedades primitivas e tradicionais esto em simbiose com a natureza e, antes

    disso com o semelhante, com a comunidade. Essa unicidade fortalece o sentido das

    partes. Partes completas do todo.

    Observa-se isso em seus mitos bioantropomrficos, e principalmente, no valioso

    lugar que eles ocupam no cotidiano comunitrio.

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    Se o vento frio, ele chama a chuva. A chuva pode ser fina ou grossa, tudo

    indica o que deve ser feito. Se a lua cheia, ela marca o tempo. Se os rios respondem ao

    pedido dela, os peixes viro para onde est o homem. Se o homem silencia, ele pode

    ouvir os sinais. Tudo tem seu tempo. Tudo escuta e responde. Mas se os homens se

    confundem, em milhares de direes, correndo em crculos, desprendendo-se dos

    princpios fundamentais, eles confundem os peixes, e esses podem no se lembrar do

    tempo de piracema. O homem a montante passa fome e resmunga. Tudo ressente.

    Em junho de 2000 alei n 9.985 que regulamenta o art. 225, 1, incisos I, II,

    III, e VII da Constituio Federal e institui o Sistema Nacional de Unidades de

    Conservao da Natureza - SNUC, estabelece critrios e normas para a criao,

    implantao e gesto das unidades de conservao.

    Com objetivo de contribuir para a manuteno da diversidade biolgica e dos

    recursos genticos no territrio nacional, resguardando espcies ameaadas de extino e

    contribuindo para a preservao e a restaurao da diversidade de ecossistemas naturais,

    esta lei busca a promoo do desenvolvimento sustentvel a partir do uso devido dos

    recursos naturais.

    Entretanto, quando projetos de governo e de organizaes no governamentais

    almejam incentivar atividades de pesquisa cientfica, estudos e monitoramento

    ambiental, em conformidade com um dos objetivos especficos da lei, o fazem de forma

    a prever o apoio a pesquisas respaldadas por instituies acadmicas ou cientficas

    desconsiderando, o conhecimento tradicional e suas habilidades particulares de controle

    e manuteno da biodiversidade.

    Essas habilidades praticadas cotidianamente, tais como a pesca, a caa e o

    plantio, geralmente promovidas durante tantas geraes, estabelecem uma real religao

    com o meio ambiente e os mitos que o envolvem.

    Quando a lei promove a educao e interpretao ambiental, o incentivo

    recreao em contrato com a natureza e o turismo ecolgico, o faz buscando a utilizao

    indireta dos recursos naturais no por comunidades anteriormente instaladas nessas reas

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    de preservao natural ou em seu entorno, mas por aquela parte da sociedade capaz de

    garantir o ingresso nessas reas pagando tarifas em prol de sua manuteno.

    O que se tem observado a prtica da supervalorizao dos conhecimentos

    acadmicos, muitas vezes respaldados em estudos de casos ocorridos fora da regio de

    sua aplicao, ou ainda fora da nossa prpria extenso territorial, onde as condies

    econmicas, sociais e culturais so, como os recursos naturais, diversos.

    O que se tem observado a prtica da teoria, desenvolvida de forma a manter as

    mos limpas de terra, os ps altos do cho, a pele longe dos insetos tropicais, o corao

    distante dos saberes locais.

    Art 4 O SNUC tem os seguintes objetivos:

    (...) XIII - proteger os recursos naturais necessrios

    subsistncia de populaes tradicionais, respeitando e

    valorizando seu conhecimento e sua cultura e promovendo-

    as social e economicamente.

    E de longe A Velha ficou admirada de ver o homem correndo pra cima e prabaixo, cidade em cidade, asfalto, noticirio, jornal, explicando pra tantos outros sobre

    umas Reservas Naturais, onde ningum podia ir porque ningum nunca tinha ido...

    De incio, pensou a velha que era dela que ele falava...

    Existiam mesmo lugares na Velha que nem ela prpria sabia chegar...

    Mas o homem continuou falando que protegia pra no acabar...

    E a Velha, j surda de estrias, falava sozinha: Como que num vai acabar

    uma coisa que ningum pode ir l pra cuidar? Quem que vai saber contar como que

    as coisa acontece? Ele disse que em volta podia ir. Que em volta no tinha importncia.

    Mas como que logo onde pode ir que no tem importncia?

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    Se ningum nunca foi l, quem que vai ensinar pra gente como que vive l?

    Qual o tempo da lua falar pros peixe subir o rio pra gente ir pescar eles l em cima?

    Que jeito que a chuva engrossa pra dizer que t na hora? Esse tempo o tempo quem

    diz... Eu heim... Homem doido... Parece at que t possudo.

    Velha do Cerrado, 22 de novembro de 2005.

    2. O PODER, OS LDERES E OS FUNDAMENTOS EM

    SOCIEDADES PRIMITIVAS

    Em uma de minhas visitas comunidade indgena Xicrim do Catet, no sul

    do Par, quando coordenava uma equipe de pesquisadores, ocorreu um incidente

    importante para minha reflexo a respeito do poder e da liderana em sociedades

    onde no se verifica a presena de um Estado. Assim, comearei por relatar o

    ocorrido a fim de orientar as palavras e idias que se seguem, assumindo desde o

    incio este aprendizado como um dos pressupostos deste trabalho.

    Estvamos nos preparando para retomar nossa viagem de barco, a montante

    do rio Catet, na Amaznia, saindo da Aldeia Xicrim em direo Aldeia Djudjek,

    quando o vento mido anunciou a chuva que nos acompanharia durante parte do

    trajeto. Como dispnhamos de equipamento de filmagem e registro fotogrfico que

    no poderiam entrar em contato com a gua, solicitei que uma pessoa da equipe me

    ajudasse a estender a lona preta sobre o barco a fim de poupar-nos de algum possvel

    transtorno futuro. Esta pessoa ops-se a mim alegando que a lona seria desnecessria,

    expondo suas justificativas. Talvez em decorrncia do cansao de nosso grupo, que

    estava viajando j fazia alguns meses, entramos em atrito e estabeleceu-se uma

    discordncia generalizada, onde cada um se pronunciava desordenadamente.

    Crianas e jovens da comunidade indgena que acompanhavam nossa partida

    silenciaram-se a um s instante. Todos pareciam um ser nico. O mesmo olhar, a

    mesma gua parada na boca. Nosso grupo discutia incessantemente e quando

    pudemos ouvir o silncio ele j gritava sobre ns. Nesse momento o lder da

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    comunidade que visitvamos tocou meu ombro com um simples questionamento:

    Quem o lder de sua equipe? Constrangida, baixei a cabea e o acompanhei at

    sua casa.

    Chegando l, sozinha, me deparei com um crculo composto pela maior parte

    dos homens da aldeia. Impressionei-me com a eficincia da organizao daquela

    sociedade, que a poucos minutos do ocorrido j se mobilizara de tal forma a fim de

    me garantir mais um ensinamento.

    Pediram-me que eu tirasse os culos, talvez para que pudssemos nos olhar

    sem mscaras, e em seguida me perguntaram o que minha gente queria. Naquele

    momento pude perceber que o papel do lder naquela sociedade definitivamente no

    estava vinculado ao poder, mas era antes a simples representao de uma voz

    coletiva. O lder a voz do social, ele que funciona para o grupo, ele que trabalha

    pelo grupo, e no o contrrio.

    Recebi orientaes como se falassem para todos ns, minhas palavras tinham

    o peso da coletividade e minha opinio pessoal no tinha espao naquele espao.

    Senti que estava ligada minha equipe, mais ainda, ligada minha sociedade de no

    ndios e tudo o que eu falava dizia por ns.

    Inevitavelmente me afastei daquela comunidade indgena que tanto busquei

    encontrar, e assim, falei como uma lder que dialoga com outro lder. Busquei minha

    identidade, minha tradio, meus antepassados, meu bom senso. Realmente me perdi

    buscando a mim mesma porque tudo o que buscava era ser como eles, mas eu no era

    mais. Minha equipe esperava de mim uma lder com poder de arbitrar, e eu j no

    podia ser. Meu conflito estava exatamente no papel do lder que eu exercia em minha

    sociedade. Que espcie de lder? Que espcie de sociedade?

    Mas existia em mim uma velha Kaiap, e ela me corria por dentro. Sua voz

    era clara e me aproximava daqueles ndios em crculo. Eu era quase igual a eles, no

    fosse a sociedade que eu representava, sociedade estatal, incompleta, infantil, em seu

    estgio embrionrio, contrariando a linearidade histrica da concepo tradicional de

    Marx, onde as sociedades primitivas ocupam o grau zero da histria. Para mim, era

    claro: eu estava diante de uma sociedade completa, sem Estado por opo, por

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    recusarem a diviso de seu corpo social em dominantes e dominados. Estava diante

    de mim mesma. Assim, eu aprendia uma vez mais com meus antepassados. Desta vez

    sobre o poder na organizao social.

    Esses dias um homem ndio morreu mendigo. Esses tempos queimaram seu

    corpo porque pensaram que ele no tinha alma. Esses homens que tinham o fogo nas

    mos esqueceram que um dia o fogo j foi da ona, e queimaram o ndio e se foram,

    sem alma. O ndio no conseguiu entender as regra dos homens de fogo. No por que

    no teve tempo, porque morrer queimado leva muito tempo, mas por que no sabia

    que arma devia usar. Quais as armas legais? Quais as regras da selva, se essa selva

    no responde mais? Antigamente a selva respondia, o homem ouvia e essa era aregra. Antigamente os maracs cantavam as sabedorias do tempo. O homem beirava

    os deuses e os deuses ditavam as regras. Mas se a selva mudou de dono, quem que

    dita as leis agora? Quem olha por todos? Se nos queimamos toa, no podemos

    brincar com fogo.

    Velha do Cerrado, 12 de fevereiro de 2004.

    O poder em organizaes sociais primitivas no est especificamente

    vinculado a seu lder, antes disso, dissolve-se entre as mulheres, os homens, as

    crianas e os velhos dessa comunidade. O poder de uma sociedade primitiva est em

    sua unidade, na trajetria comum de seus antepassados, na possibilidade de dilogo

    espiritual entre seus indivduos, de revelaes coletivas inerentes queles que so

    unos, capazes de religarem-se com seus deuses, seu meio ambiente, seu semelhante.

    O poder no est concentrado, mas diludo nessas sociedades. Assim como seusdeuses so eles prprios, assim como o sobrenatural natural, assim como a

    sabedoria arquetpica e simblica est presente em seus mitos contados e revividos

    diariamente no cotidiano simples de uma sociedade sem Estado, o poder est na

    coletividade.

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    Falamos em solidariedade, isso porque j estamos to divididos e

    subdivididos e subnutridos de fora coletiva, que nos tornamos incapazes de nos ver

    em nosso semelhante. A solidariedade a esperana dos farelos de deuses que somos.

    O verdadeiro lder de uma comunidade deve simplesmente ter essa

    capacidade de unir, ou de representar uma sociedade uma, e somente ir qualificar-se

    assim tendo a generosidade, a humildade e a capacidade da oratria em sua essncia.

    Pierre Clastres, em seu artigo sobre o Etnocdio (Encyclopaedia Universalis,

    Paris:1974), nos revela que ...o Estado , por essncia, o emprego de uma fora

    capaz de esmagar foras divergentes inversas. O Estado se intitula o centro de uma

    sociedade. Mas exatamente a fora que deveria represent-la que a esmaga,

    negando as diversidades culturais, o conhecimento tradicional e as diferenas locais,

    e impondo valores absolutos com o intuito de facilitar a administrao social.

    Se o termo genocdio remete idia de raa e

    vontade de extermnio de uma minoria racial, o termo

    etnocdio aponta no para a destruio fsica dos homens

    (caso em que permaneceria na situao genocida), mas

    para a destruio de sua cultura. O etnocdio, portanto,

    a destruio sistemtica dos modos de vida e pensamento

    de povos diferentes daqueles que empreendem essa

    destruio.

    Clastres, Pierre 2004:83

    O autor do livroArqueologia da Violncia sugere ainda que o lder em uma

    sociedade primitiva tem uma dvida para com a sociedade, e no o contrrio.

    Quando a sociedade tem uma dvida em relao sua chefia, ela se ausenta do poder

    e esta sociedade se divide ento em dominantes e dominados.

    Na contramo, o que se observa que justamente a partir da diversidade

    tnica surge a possibilidade de resoluo de conflitos locais que acabam servindo

    como referncia para problemticas globais; a integrao dos conhecimentos que

    nos garante um conhecimento menos mutilado.

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    O etnocdo, portanto, a reduo do outro ao mesmo. Reduo, e no

    agregao, j que dissolve o mltiplo para alcanar o uno, mas no soma, no reflete

    sobre as diferenas, no percorre o todo em busca de arqutipos comuns e diferentes,

    mas reduz a verdade sob uma nica tica, mostrando horror s diversidades e

    abolindo o outro quando este se torna a oposio. Assim sendo, a organizao estatal

    por essncia etnocida. Destruir a diferena quando ela se transforma em oposio

    uma prtica etnocida do Estado.

    A violncia etnocida, como negao da diferena,

    pertence claramente ao Estado, tanto nos imprios

    brbaros quanto nas sociedades civilizadas do Ocidente:

    toda organizao estatal etnocida, o etnocdio o modo

    normal de existncia do Estado.

    Clastres, Pierre 2004:90

    Em especial, as sociedades ocidentais, devido a seu regime de produo

    econmica, cedem espao ao etnocdio, contribuindo para a destruio de indivduos,

    de raas, de sociedades, de espaos naturais, do solo e do subsolo etc. O capitalismo

    acarreta a exigncia intrnseca da utilidade das coisas. Tudo deve ser til, tudo deve

    se permitir ser utilizado, comercializado, tudo deve ser produtivo para que possa ser

    aceito e incorporado ao sistema econmico. Assim, pensamentos divergentes, crenas

    opostas ou solues criadas a partir de valores diferentes e que poderiam desencadear

    novas possibilidades podem originar o etnocdio.

    O que diferencia o Ocidente o capitalismo, enquanto

    impossibilidade de permanecer aqum de uma fronteira,

    enquanto passagem para alm de toda fronteira; ocapitalismo como sistema de produo para o qual nada

    impossvel, exceto no ser para si mesmo seu prprio

    fim: seja ele alis, liberal, privado, como na Europa

    ocidental, ou planificado, de Estado, como na Europa

    oriental.

    Clastres, Pierre 2004:91

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    Neste momento questiona-se a importncia de determinados selvagens

    considerados improdutivos capazes de desperdiar seu tempo e o espao comum

    realizando atividades inviveis economicamente, como por exemplo, o dilogo com

    os animais e as plantas, a sintonia coletiva em busca do bem estar, a utilizao

    sustentvel do meio ambiente, a preservao do conhecimento secular ao redor da

    fogueira, enquanto o cu dita as normas naturais de autoconhecimento e respeito

    vida.

    Entretanto, possvel assegurar que o etnocdio est inevitavelmente

    relacionado ao prprio genocdio. Um indivduo morto em seus valores, descrente de

    seus deuses, perdido etnicamente um homem estril, incapaz de transmitirconhecimentos tradicionais, de dialogar com seus antepassados. Uma sociedade

    incapaz de reproduzir sua cultura tem sua identidade perdida, seus indivduos

    perdidos, seus velhos mudos e seus fundamentos banalizados.

    Torna-se necessrio sacralizar as leis fundamentais que norteiam a

    sociedade. O contato com a sabedoria milenar estreita o contato consigo mesmo, e

    conseqentemente promove o respeito aos seus iguais e s diferenas entre seus

    iguais.

    Esse o papel dos ritos de passagem, enquanto ritos de iniciao, em

    sociedades primitivas: comunicar ao iniciado as regras da sociedade qual ele est se

    inserindo. a partir desses ritos que so repassados o saber sobre o prprio indivduo

    em sua essncia constituinte da comunidade qual ele pertence.

    No rito inicitico, os jovens recebem da sociedade

    representada pelos organizadores do ritual o saberdaquilo que , em seu ser, a sociedade, daquilo que a

    constitui, a institui como tal: o universo de suas regras e

    normas, o universo tico-poltico da lei. Ensinamento da

    lei e, conseqentemente, prescrio da fidelidade a essa

    lei, na medida em que ela assegura a continuidade, a

    permanncia do ser na sociedade.

    Clastres, Pierre 2004:116

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    A verdadeira instituio da sociedade ocorre em um tempo anterior ao tempo

    humano, onde homens eram deuses e esses deuses-homens agiam de acordo com suas

    normas. A lei, portanto, obra dos antepassados, e o mito a forma de relato desses

    fundamentos sociais, de suas normas e leis. a partir do mito que a sociedade entra

    em contato com seus fundamentos e consigo mesma e isso se d de forma natural e

    cotidianamente, e se acentua por meio dos rituais de iniciao.

    Em volta de uma fogueira os velhos revelam o conhecimento de seus

    antepassados s crianas e aos jovens por meio da linguagem mitolgica, mas nos

    rituais de iniciao que o indivduo interioriza a verdade mtica e as leis que o

    governa, revivendo o gesto fundador.

    So os antepassados mticos ou os heris culturais que conduzem os rituais

    enquanto os jo