sabor do cerrado

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  • 8/14/2019 Sabor Do Cerrado

    1/7Sabores do Brasil 95

    Alice Mesquita de Castro

    O sabor do cerradoCheire, prove, sugue, ame.

  • 8/14/2019 Sabor Do Cerrado

    2/796 Textos do Brasil.

    N 13

    A

    desconhecida culinria do cerrado exi-

    ge disposio e nenhum preconceito.Quem se arrisca, no se arrepende.

    As rvores tortas, com jeito de que cresce-

    ram sem gua em uma das regies semi-ridas doNordeste, podem dar a impresso de que estamosem uma terra seca, rf de vida, cores e sabores.

    um engano dos desavisados. A ora do cerra-do, que ocupa 25% do territrio nacional, umadas mais ricas do Brasil. Devido sua localizao

    central, o cerrado tem espcimes encontrados namaioria dos biomas brasileiros (Floresta Amaz-nica, Caatinga e Mata Atlntica). Tem uma bio-

    diversidade to variada e particular que camoscom vontade de realmente desvendar seus segre-dos. Na culinria, ento, eles so muitos.

    No Nordeste, h frutos exticos como agraviola e o umbu. No Sul, a diversidade dasuvas e os marmelos, por exemplo, chamam sem-

    pre a ateno. No Norte do Pas, o aa se tornouproduto de exportao de sucesso, tal a pecu-liaridade do seu sabor, textura - e que linda cor.

    Nessa rea que ocupa o Brasil central (Gois, To-

    cantins, Mato Grosso do Sul, a regio sul de MatoGrosso, o oeste e o norte de Minas Gerais, o oeste

    da Bahia e o Distrito Federal), a impresso deque o estranhamento dos leigos sobre as frutaslocais ainda maior. Quem j ouviu falar de pe-

    qui, sabe alguma coisa alm de que, se mordidoerrado, ele capaz de fazer um tapete de espi-nhos da sua lngua garganta? Pois . O licor de

    pequi j exportado para o Japo. A amndoa do

    baru (Baru? Algum sabe o que isso?) objetode desejo na Alemanha.

    O Caryocar brasiliense Camb, ou pequizeiro,pode medir at dez metros de altura. Tem frutosde casca esverdeada e polpa amarela. A polpa, a

    parte que mais se utiliza na cozinha, a base dospratos mais populares da culinria goiana: o ar-roz com pequi, o frango com pequi e guariroba.

    O pequi tem caractersticas nicas. Seu in-

    terior repleto de milhares de minsculos espi-nhos e preciso ser muito cuidadoso ao com-lo. preciso raspar sua polpa com os dentes. Se for

    mordido, os espinhos colam desagradavelmenteem toda a boca.

    Eu sei do que estou falando. Nos anos 80,

    durante um almoo na casa de uma amiga, fuiuma das vtimas do poder do pequi. Sim, j ha-viam me dito que era preciso raspar os dentes na

    polpa, que no deveria mord-lo, mas, na pr-tica, a coisa ainda mais difcil. Eu achava queestava fazendo tudo certo, quando, de repente,

    senti a lngua arder como se houvessem me fei-to beber cido. Da casa da amiga, fui direto paraa cadeira do dentista que passou uma hora e

    meia pinando os espinhos um a um com o au-xlio de uma lupa. Senti os efeitos da minha bo-

    bagem por ainda mais dois meses. Volta e meia,

    acordava com uma sensao estranha na boca.Era ele, o pequi.

    H um folclore de que o goiano aprovei-

    ta o desconhecimento de quem de fora para se

    divertir com os acidentes causados pelo fruto.Goianos adoram acompanhar as reaes s pri-

    meiras mordidas. ali que se dene quem enten-de ou no da coisa.

    Quem do ramo costuma aconselhar a in-

    gesto de uma colher de azeite de oliva nessescasos. O azeite teria a propriedade de amoleceros espinhos, que, assim, podem ser retirados sem

    tanto sofrimento para o incauto mordedor.

    O pequi presta-se a inmeras preparaes.Uma das mais interessantes o licor feito com

    calda de acar e infuso do fruto em lcool decereais.

    Mas nem s de pequi vive o cerrado. O

    araticum, o buriti, o murici, o caj, a mangaba,a cagaita tambm apresentam teores de vitami-nas do complexo B, tais como as vitaminas B1,

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    Pequi. Foto: Nivaldo Ferreira da Silva

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    Buriti. Foto: Nivaldo Ferreira da Silva

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    B2 e PP, equivalentes ou superiores aos encon-

    trados em frutas como o abacate, a banana e agoiaba, tradicionalmente consideradas boas fon-tes dessas vitaminas. O Ministrio da Sade tem

    estimulado a implementao de programas deeducao alimentar para incentivar o consumode produtos ricos em vitamina A e em outros nu-

    trientes. E a esto os frutos do cerrado prontospara serem largamente utilizados.

    Uma das frutas tpicas do cerrado que hoje

    comea a ser conhecida a cagaita (Eugenia dy-senterica DC ), parente distante da pitanga. ar-redondada e tem uma cor amarela suave. De na

    casca, tem um sabor cido e bastante suculenta,apresentando cerca de 90% de suco em seu inte-rior. Apesar de tantas virtudes, a cagaita deve ser

    apreciada com moderao. Em excesso, ela pro-voca um mal-estar semelhante ao da embriaguez.Sem ressaca no dia seguinte. No incrvel?

    E o buriti?Em Braslia, a sede do governo do Distrito

    Federal recebeu o nome de Palcio do Buriti em

    homenagem a essa planta tpica da regio. Suas fo-

    lhas, em forma de leque, so brilhantes e enormes.Os frutos so consumidos pela populao, princi-

    palmente na forma de sucos e doces caseiros.A polpa fresca ou congelada aproveita-

    da para a elaborao de doces, sorvetes, cremes e

    compotas. O leo da polpa serve como temperona cozinha e base para se fazer sabo.

    J as folhas maduras podem ser aprovei-

    tadas na cobertura de casas rsticas do interior

    e as folhas novas na confeco de redes, chapuse balaios.

    No cerrado brasileiro a estrela do momen-to a castanha do baru, tambm conhecido pordiversos nomes como cumbaru, barujo, coco-fei-

    jo e cumarurana.O barueiro produz de 500 a 3.000 frutos

    por planta, com tamanho variando de 5 a 7 cm

    de comprimento por 3 a 5 cm de dimetro. A cor

    da casca, quando maduro, amarronzada, assimcomo a polpa. Cada fruto possui uma amndoade cor marrom, rica em calorias e protenas. Eu

    costumo usar o baru em receitas como Doce deLeite com Baru e Pesto de Baru. Seu gosto pa-recido com o do amendoim, mas um pouco mais

    suave ao paladar.Os frutos do cerrado sempre nos surpreen-

    dem! H algum tempo comprei farinha de jatob

    em uma fazenda no interior de Gois. Levei paracasa e deixei armazenada para logo fazer algunspes e biscoitos. Aps alguns dias, um forte chei-

    ro se espalhou pela cozinha afastando qualquerpessoa do local. Aprendi que a farinha de jatobprecisa ser guardada na geladeira e por muito

    pouco tempo. O odor caracterstico tende a au-mentar com a fermentao natural da farinha. Osmoradores da regio apreciam bastante tanto o

    mingau quanto o po de jatob.Da famlia da pinha, ata e fruta-do-conde

    o araticum, cuja casca mais dura e o sabor bem

    pronunciado.

    Quem ainda no provou, no sabe o queest perdendo... Guariroba, no gororoba!

    A guariroba uma espcie de palmeira quepode atingir at 20 metros de altura. Suas folhaspodem alcanar at trs metros de comprimento.

    O fruto dado em cachos, de colorao verde-amarelada, com uma amndoa branca oleagino-sa comestvel. Ela o principal ingrediente dos

    recheios dos saborosssimos empades goianos.

    At o nal do sculo 19, a farinha de trigoencontrada no Brasil era importada. Mesmo as-

    sim, o empado j era considerado uma iguariabrasileira. A massa original levava farinha de tri-go, banha de porco, sal e ovos. O recheio levava

    queo, ovos cozidos, azeitona, pimenta-de-cheiro,carne de porco em pedaos, coxa de frango inteira,pedaos de lingia e guariroba. Todos os ingre-

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    Araticum. Foto: Nivaldo Ferreira da Silva

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    dientes eram levados ao fogo para dourar e adqui-rir a consistncia de molho. Assava-se em formasde barro, com 38 centmetros de dimetro.

    Naquela poca, ningum ousava engrossara mistura com batata algo que s foi introduzi-do nos modos de preparar o empado na dcada

    de 30. Somou-se a ele tambm o tomate. De acor-do com os registros histricos, foi a guarirobaque deu sustncia aos bandeirantes que des-

    bravaram Gois. Deve-se a um deles a idia dejuntar a guariroba ao recheio do empado. Alis,guariroba conhecida por palmito amargo, para

    car mais sosticado.

    Depois de 12 anos, trabalhando, provan-do, comendo, gostando, fazendo propagandadas frutas do cerrado, digo com propriedade: jo-

    guem-se na culinria do centro-oeste! Ela aindapouco conhecida, pouco explorada, mas, comoum pas distante, cheia de segredos e surpre-

    sas. Eu me arrisco sempre. E, de fato, nunca mearrependo.

    Alice Mesquita de CastroProprietria do Restaurante Alice, em Braslia

    Baru. Foto: Nivaldo Ferreira da Silva