veja - o islamismo em profundidade

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8/20/2019 Veja - o Islamismo Em Profundidade http://slidepdf.com/reader/full/veja-o-islamismo-em-profundidade 1/305  A RELIGIÃO ISLÂMICA Origem  O islamismo foi fundado no ano de 622, na região da Arábia, atual Arábia Saudita. Seu fundador, o profeta Maomé, reuniu a base da fé islâmica num conjunto de versos conhecido como Corão - segundo ele, as escrituras foram reveladas a ele por Deus por intermédio do Anjo Gabriel. Assim como as duas outras grandes religiões monoteístas, o cristianismo e do judaísmo, as raízes de Maomé estão ligadas ao profeta e patriarca Abraão. Maomé seria seu descendente. Abraão construiu a Caaba, em Meca, principal local sagrado do islamismo. Para os muçulmanos, o islamismo é a restauração da fé de Abraão. Ainda no início da formação do Corão, Maomé e um ainda pequeno grupo de seguidores foram perseguidos por grupos rivais e deixaram a cidade de Meca rumo a Medina. A migração, conhecida como Hégira, dá início ao calendário muçulmano. Em Medina, a palavra de Deus revelada a Maomé conquistou adeptos em ritmo acelerado. O profeta retornou a Meca anos depois, perdoou os inimigos e iniciou a consolidação da religião islâmica. Quando ele morreu, aos 63 anos, a maior parte da Arábia já era muçulmana. Um século depois, o islamismo era praticado da Espanha até a China. Na virada do segundo milênio, a religião tornou-se a mais praticada do mundo, com 1,3 bilhão de adeptos. 

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A RELIGIÃO ISLÂMICA

Origem 

O islamismo foi fundado no ano de 622, na região da Arábia, atualArábia Saudita. Seu fundador, o profeta Maomé, reuniu a base da féislâmica num conjunto de versos conhecido como Corão - segundo ele,as escrituras foram reveladas a ele por Deus por intermédio do AnjoGabriel. 

Assim como as duas outras grandes religiões monoteístas, o

cristianismo e do judaísmo, as raízes de Maomé estão ligadas aoprofeta e patriarca Abraão. Maomé seria seu descendente. Abraãoconstruiu a Caaba, em Meca, principal local sagrado do islamismo. Paraos muçulmanos, o islamismo é a restauração da fé de Abraão. 

Ainda no início da formação do Corão, Maomé e um ainda pequenogrupo de seguidores foram perseguidos por grupos rivais e deixaram acidade de Meca rumo a Medina. A migração, conhecida como Hégira,dá início ao calendário muçulmano. Em Medina, a palavra de Deusrevelada a Maomé conquistou adeptos em ritmo acelerado. 

O profeta retornou a Meca anos depois, perdoou os inimigos e iniciou aconsolidação da religião islâmica. Quando ele morreu, aos 63 anos, amaior parte da Arábia já era muçulmana. Um século depois, oislamismo era praticado da Espanha até a China. Na virada do segundomilênio, a religião tornou-se a mais praticada do mundo, com 1,3bilhão de adeptos. 

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A RELIGIÃO ISLÂMICA

Profeta Maomé 

Maomé nasceu em Meca, no ano de 570. Órfão de pai e mãe, foi criadopelo tio, membro da tribo dos coraixitas. De acordo com historiadores,tornou-se conhecido pela sabedoria e compreensão, tanto que serviade mediador em disputas tribais. Adepto da meditação, ele realizavaum retiro quando afirmou ter recebido a primeira revelação de Deusatravés do anjo Gabriel. Na época, ele tinha 40 anos. As revelaçõesprosseguiram pelos 23 anos restantes da vida do profeta. 

Contrário à guerra entre tribos na Arábia, Maomé foi alvo de terroristas

e escapou de várias tentativas de assassinato. Enquanto conquistavafiéis, empregava as escrituras na tentativa de pacificar sua terra -tarefa que cumpriu antes de morrer, aos 63 anos, depois de retornar aMeca. Para os muçulmanos, Maomé é uma figura digna de extremaadmiração e respeito, mas não é o alvo de sua adoração. Ele foi oúltimo dos profetas a trazer a mensagem divina, mas só Deus éadorado. 

A RELIGIÃO ISLÂMICA

Conversão 

Não é preciso ter nascido muçulmano ou ser casado com um praticanteda religião. Também não é necessário estudar ou se prepararespecialmente para a conversão. Uma pessoa se torna muçulmanaquando proferir, em árabe e diante de uma testemunha, que "não hádivindade além de Deus, e Mohammad é o Mensageiro de Deus". Oprocesso de conversão extremamente simples é apontado como um

dos motivos para a rápida expansão do islamismo pelo mundo. A jornada para a prática completa da fé, contudo, é muito maiscomplexa. Nessa tarefa, outros muçulmanos devem ajudar noensinamento. 

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A RELIGIÃO ISLÂMICA

Crenças 

A base da fé islâmica é o cumprimento dos desejos de Deus, que éúnico e incomparável. A própria palavra Islã quer dizer "rendição", ou"submissão". Assim, o seguidor da religião islâmica deve obedecer àsescrituras, orar e glorificar apenas seu Deus e ser fiel à mensagem queMaomé trouxe. 

Os muçulmanos enxergam nas escrituras divulgadas por Maomé acontinuação de uma grande linhagem de profecias, trazidas por figurasque fazem parte dos livros sagrados dos judeus e cristãos - como

Adão, Noé, Abraão, Moisés, Davi e Jesus. Os cristãos e judeus, aliás,são chamados no Corão Povos das Escrituras, com garantia de respeitoe tolerância. 

O seguidor do islamismo tem como algumas de suas obrigações"promover o bem e reprimir o mal", evitar a usúria e o jogo e nãoconsumir o álcool e a carne de porco. Um dos principais desafios domuçulmano é obter êxito na jihad - que, ao contrário do que muitosacreditam no Ocidente, não significa exatamente "guerra santa", massim o esforço e a luta do muçulmano para agir corretamente e cumprir

o caminho indicado por Deus. 

Os muçulmanos acreditam no dia do juízo final e na vida após a morte,quando o praticante da religião recebe sua recompensa ou sua puniçãopelo que fez na Terra. Acreditam também na unidade da "nação" doIslã - uma crença simbolizada pela gigantesca peregrinação anual aMeca, que reúne muçulmanos do mundo todo, lado a lado. 

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A RELIGIÃO ISLÂMICA

Cinco pilares 

Os cinco pilares do islamismo formam a estrutura de vida do seguidor dareligião. São eles: 

• Pronunciar a declaração de fé intitulada "chahada": "Não há outradivindade além de Deus e Mohammad é seu Mensageiro".

• Realizar as cinco orações obrigatórias durante cada dia, no ritualchamado "salat". As orações servem como uma ligação direta entre omuçulmano e Deus. Como não há autoridades hierárquicas, como padresou pastores, um membro da comunidade com grande conhecimento doCorão dirige as orações. Os versos são recitados em árabe, e as súplicaspessoas são feitas no idioma de escolha do muçulmano. As orações sãofeitas no amanhecer, ao meio-dia, no meio da tarde, no cair da noite e ànoite. Não é obrigatório orar na mesquita - o ritual pode ser cumprido emqualquer lugar. 

• Fazer o que puder para ajudar quem precisa, no chamado "zakat". Acaridade é uma obrigação do muçulmano, mas deve ser voluntária e, depreferência, em segredo. O muçulmano deve doar uma parte de suariqueza anualmente, uma forma de mostrar que a prosperidade não é da

pessoa - a riqueza é originária de Deus e retorna para Deus. 

• Jejuar durante o mês sagrado do Ramadã, todos os anos. Nesseperíodo, todos os muçulmanos devem permanecer em jejum doamanhecer ao anoitecer, abstendo-se também de bebida e sexo. Asexceções são os doentes, idosos, mulheres grávidas ou pessoas comalgum tipo de incapacidade física - eles podem fazer o jejum em outraépoca do ano ou alimentar uma pessoa necessitada para cada dia que o

 jejum foi quebrado. O muçulmano que cumpre o jejum se purifica aovivenciar a experiência de quem passa fome. No fim do Ramadã, o

muçulmano celebra o Eid-al-Fith, uma das duas principais festas docalendário islâmico. 

• Realizar a peregrinação a Meca, o "haj". Todos os muçulmanos comsaúde e condição financeira favorável deve realizar a peregrinação pelomenos uma vez na vida. Todos os anos, cerca de 2 milhões de pessoas detodas as partes do mundo se reúnem em Meca, sempre com vestimentassimples - para eliminar as diferenças de classe e cultura. No fim daperegrinação, há o festival de Eid-Al-Adha, com orações e troca depresentes - a segunda festa mais importante. 

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A RELIGIÃO ISLÂMICA

O Corão 

O livro sagrado dos muçulmanos reúne todas as revelações de Deusfeitas ao profeta Maomé através do anjo Gabriel. No Corão estãoinstruções para a crença e a conduta do seguidor da religião - não falaapenas de fé, mas também de aspectos sociais e políticos. Dividido em114 "suratas" (capítuolos), com vários versículos cada (o número variade 3 a 286 versículos), o Corão foi escrito em árabe formal e, com otempo, tornou-se de difícil entendimento. 

O complemento para sua leitura é a Sunna, coletânea de registros de

discursos do profeta Maomé, geralmente em linguagem mais clara efluente. Cada uma dessas mensagens tiradas dos discursos éconhecida como "hadith". Como os relatos foram de pessoasdiferentes, há muitas divergências entre os registros de ensinamentosdo profeta: cada um contava a mensagem da forma que o interessava.Além de contradições, as "hadith" provocaram também uma expansãodos conceitos do Islã, ao incorporar tradições e doutrinas sobresociedade e justiça - aspecto importante na formação da culturaislâmica em geral, que não ficou restrita à religião. 

A RELIGIÃO ISLÂMICA

Sharia 

É a lei religiosa do islamismo. Como o muçulmano não vê distinção entreo aspecto religioso e o resto da sua conduta pessoal, a lei islâmica nãotrata só de rituais e crenças, mas de todos os aspectos da vida cotidiana.Apesar de ter passado por um detalhado processo de formatação, a lei

islâmica ainda é aplicada de formas variadas ao redor do mundo - ospaíses adotam a sharia têm interpretações mais ou menos rigorosas dela. 

Na Arábia Saudita, por exemplo, vigora uma das mais conservadorasversões da lei islâmica. O Afeganistão da época da milícia Talibã teve amais dura e radical aplicação da sharia nos tempos modernos - proibiamúsica e outras expressões culturais e esportivas, restringia gravementetodos os direitos das mulheres e ordenava punições bárbaras. A sharia,porém, é adotada formalmente numa minoria de países com grandespopulações islâmicas. 

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A RELIGIÃO ISLÂMICA

Mesquitas 

As construções reservadas para as orações dos muçulmanos sãochamadas mesquitas, ou "masjids". Os prédios, contudo, não precisamser especialmente construídos com esse fim - qualquer local onde acomunidade muçulmana se reúne para orar é uma mesquita. 

Há dezenas de milhares de mesquitas no mundo, e elas vão desde asconstruções mais esplendorosas, com arquitetura riquíssima, às maismodestas, adaptadas dentro de outras estruturas. 

A mesquita de Caaba, em Meca, é uma das mais famosas, pois é ocentro da peregrinação do "haj". A mesquita de Al-Aqsa, emJerusalém, também é um local muito visitado pelos muçulmanos detodo o mundo - ela abrigaria a pedra de onde Maomé "ascendeu aocéu". 

A RELIGIÃO ISLÂMICA

Festas e datas 

As duas principais festividades do islamismo são o Eid-Al-Adha, quecoincide com a peregrinação anual a Meca, e o Eid-al-Fith, quando sequebra o jejum do mês do Ramadã. O mês sagrado, aliás, é o principalperíodo do calendário islâmico. 

Os muçulmanos xiitas também comemoram o Eid-al-Ghadir -aniversário da declaração de Maomé indicando Ali como seu sucessor.Outras festas islâmicas são o aniversário de Maomé (Al-Mawlid Al-

Nabawwi) e o aniversário de sua jornada a Jerusalém (Al-Isra Wa-l-Miraj).

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A RELIGIÃO ISLÂMICA

Grupos 

Os muçulmanos estão divididos entre sunitas, o grupo majoritário, exiitas, a minoria dentro da religião. Os sunitas formam o troncoprincipal da religião, ligado à interpretação mais aceita da históriaislâmica, e reúnem cerca de 90% dos muçulmanos no mundo. Adiferença em relação ao Islã xiita é a aceitação à seqüência de califasda história islâmica. Sem características comuns entre si, osmuçulmanos sunitas incluem praticantes da religião em todas as partesdo mundo e de todas as tendências, dos mais conservadores até osmoderados e seculares. 

Os xiitas, que reúnem cerca de 10% dos muçulmanos, surgiram comomovimento político de apoio a Ali e acabaram formando umaramificação da religião islâmica. A dissidência surgiu quando os xiitasse uniram para apoiar Ali, primo de Maomé, como o herdeiro legítimodo poder no Islã após a morte do profeta, com base na supostadeclaração de que ele era seu sucessor ideal. 

A evolução para uma fórmula religiosa diferente teria começado com omartírio de Husain, o filho mais novo de ali, no ano de 680, em Karbala

(no atual Iraque). Os clérigos xiitas são os mulás e mujtahids, mas oclero não tem uma hierarquia formal. Os xiitas foram os responsáveispela revolução islâmica do Irã, em 1979, e têm graves divergênciascom setores do islamismo sunita. 

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OS PAÍSES COM MAIORIA ISLÂMICA

Oriente Médio 

Arábia Saudita95% de muçulmanos sunitas, 5% de muçulmanos xiitas

Berço do Islã, abriga as cidades sagradas de Meca e Medina e adotauma interpretação conservadora da lei islâmica. País natal de Osamabin Laden e de quinze dos 19 seqüestradores dos aviões de 11 desetembro de 2001. Em função de sua boa relação com os EUA, afamília real sofre a oposição de vários grupos radicais, incluindo a redeAl Qaeda. Sabe-se, porém, que muitas figuras importantes ajudam afinanciar os terroristas muçulmanos. 

Irã 89% de muçulmanos xiitas, 10% de muçulmanos sunitas

O país se tornou uma República Islâmica depois da revolução de 1979.Desde então, os aiatolás são a autoridade política máxima, cujo poderse sobrepõe ao do presidente e do parlamento, eleitos em votação

popular. Desde o fim da década de 90, o Irã vive uma luta entre osclérigos conservadores e os reformistas, que defendem a flexibilizaçãodo regime islâmico. 

Iraque 60% de muçulmanos xiitas, 32% de muçulmanos sunitas

No regime de Saddam Hussein (um sunita), o estado era secular, emanifestações religiosas eram proibidas dentro da estrutura do

governo. Com a queda do ditador, a maioria xiita pretende ter umpapel mais influente no comando do país. A guerra teve um efeitocontrário ao esperado pelos EUA: o fanatismo religioso e o terrorismoligado à religião estão mais fortes que na época de Saddam. 

Egito94% de muçulmanos sunitas

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O governo e o sistema judicial são seculares, mas as leis familiares sãobaseadas na religião e a atuação de grupos radicais ainda é grande. O

Egito é o local de origem da primeira facção radical do Islã, aIrmandade Muçulmana, e deu origem também ao grupo Jihad Islâmica.Depois da execução do presidente Anuar Sadat pelos radicais, em1981, o governo prendeu e matou milhares de pessoas na repressãoao extremismo religioso. 

Territórios palestinos 90% de muçulmanos

A sociedade e a política palestinas têm fortes tradições seculares. Arevolta contra Israel, no entanto, deu força a grupos religiosos radicais(Hamas, Jihad Islâmica, Brigadas de Mártires de Al Aqsa) e a influênciado islamismo na política tornou-se dominante. 

Líbano 41% de muçulmanos xiitas e 27% de muçulmanos sunitas

Com uma formação de governo que reflete a distribuição religiosa da

população (primeiro-ministro é sempre sunita e o presidente doparlamento, xiita), é a terra do grupo radical Hezbolá. Para os EUA, oHezbolá é uma organização terrorista; para o Líbano, um movimentolegítimo de resistência contra os israelenses e uma organização políticalegalizada. 

Jordânia 92% de muçulmanos sunitas

A família real está no poder desde a independência, em 1946 - e suaaceitação se baseia no fato de que os príncipes seriam descendentesdiretos do profeta Maomé. A sociedade é conservadora e ainterpretação do Islã é rigorosa - costumes de séculos atrás sãomantidos graças à religião. 

Outros países de maioria muçulmana: Iêmen, Omã, Emirados Árabes Unidos, Catar, Bahrein, Kuwait, Síria

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OS PAÍSES COM MAIORIA ISLÂMICA

Ásia 

Indonésia88% de muçulmanos

Apesar de abrigar a maior população muçulmana do planeta, o país tem umaconstituição secular. Há dezenas de facções radicais que defendem a adoçãoda lei islâmica e a formação de um estado com governo religioso, mas osmuçulmanos moderados são contra. É a terra do Jemaah Islamiah, grupoligado à Al Qaeda culpado pelo atentado que matou 200 pessoas em Bali, em2002. 

Afeganistão 84% de muçulmanos sunitas, 15% de muçulmanos xiitas

País onde surgiu a mais radical forma de interpretação do islamismo, atravésda milícia Talibã, que governo o país do fim da década de 90 até depois do11 de setembro de 2001. Serviu de campo de treinamento para terroristasislâmicos do mundo todo, até que a ação militar americana atacou essasinstalações e colocou no poder um líder muçulmano moderado. 

Paquistão 77% de muçulmanos sunitas, 20% de muçulmanos xiitas

Formado como um estado muçulmano resultante da partilha dosubcontinente indiano, em 1947, trava uma tensa disputa com a vizinhaÍndia pela posse da Caxemira. Os extremistas islâmicos atacam os soldadosindianos, que controlam o território, por julgar que a área é dosmuçulmanos. Além disso o país sofre com conflitos entre sunitas e xiitas eentre muçulmanos radicais e cristãos.

Malásia53% de muçulmanos

O governo diz ser tolerante com todas as religiões, mas o islamismo é a féoficial do país. Não-muçulmanos dizem ser vítimas de discriminação dasautoridades. Os radicais muçulmanos dizem que não é o bastante: queremoficializar a adoção da lei islâmica tradicional em toda a Malásia.

Outros países de maioria muçulmana: Brunei, Bangladesh 

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OS PAÍSES COM MAIORIA ISLÂMICA

África 

Nigéria50% de muçulmanos

Tensões com os cristãos provocaram milhares de mortes no país. A adoçãoda lei islâmica em doze estados do norte provocou um êxodo entre osseguidores do cristianismo. O governo tem dificuldade para controlar osgrupos radicais de ambos os lados. 

Argélia 99% de muçulmanos

Em 1991, a vitória de um partido islâmico nas eleições gerais foi impedidapor um golpe político. Desde então, governo e exército combatem osextremistas muçulmanos numa disputa que já provocou dezenas de milharesde mortes. 

Sudão 70% de muçulmanos

Governado por um partido islâmico desde 1989, quando um golpe militarteve apoio dos extremistas, o país foi devastado por uma guerra de duasdécadas entre rebeldes muçulmanos do norte e cristãos do sul. Osama binLaden permaneceu no país por alguns anos antes de ir para o Afeganistão. 

Somália100% de muçulmanos

A religião da população é a mesma, mas conflitos entre tribos inimigasalimentaram uma guerra que se arrasta desde os anos 90. Há gruposradicais em atividade no país - e um deles é ligado à Al Qaeda. A maiorempresa do país foi fechada pelos EUA por suas ligações com Osama binLaden.

Outros países de maioria muçulmana:  Senegal, Gâmbia, Guiné, SerraLeone, Costa do Marfim, Mauritânia, Mali, Níger, Chade, Líbia, Tunísia,Eritréia, Djibouti, Ilhas Comoros 

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OS PAÍSES COM MAIORIA ISLÂMICA

Europa 

Turquia99,8% de muçulmanos

Estado secular, a Turquia garante liberdade religiosa à população. Na prática,porém, os costumes e crenças do islamismo têm grande influência sobre o comandodo país. O partido que conquistou o poder em 2002, por exemplo, tem raízesislâmicas, apesar de se descrever como "conservador". 

Kosovo 

92% de muçulmanos

Palco de uma violenta campanha de perseguição pelos sérvios, o território foiocupado pela Otan e teve seu controle assumido pela ONU em 1999. Isso nãoimpediu a morte de 10.000 pessoas e a fuga de cerca de 1,5 milhão para a Albâniaou para a região da fronteira. 

Albânia 70% de muçulmanos

O governo comunista do país fechou todos os templos religiosos - incluindo igrejas emesquitas - em 1967. A prática religiosa só voltou a ser permitida em 1991. 

Chechêniamaioria de muçulmanos

Desde o fim da União Soviética, a república russa vem sendo palco de violentosconfrontos entre o governo de Moscou e as forças separatistas formadas pelosradicais islâmicos. No período em que a Rússia retirou suas forças do território, oislamismo tornou-se religião oficial. 

Usbequistão88% de muçulmanos

Estado secular, viu o islamismo ganhar força nos anos 90. Junto com essecrescimento, surgiram os grupos radicais contrários ao governo. Depois de umasérie de atentados, as forças do governo reprimiram os radicais. Os grupos, porém,continuam em atividade.

Outros países de maioria muçulmana: Azerbaijão, Turcomenistão, Quirgistão, Tadjiquistão, Cazaquistão 

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A PRESENÇA DO ISLAMISMO EM OUTROS PAÍSES

Estados Unidos 

O palco do maior ato de terrorismo islâmico da História tem mais de 6milhões de muçulmanos e em torno de 2.000 mesquitas. Entre os seguidoresda religião nos EUA, 77,6% são imigrantes, e 22,4%, americanos natos.Apesar do 11 de setembro de 2001, o islamismo está crescendo: estima-seque, no ano de 2010, a população muçulmana supere a judaica - apenas ocristianismo terá mais seguidores. 

A PRESENÇA DO ISLAMISMO EM OUTROS PAÍSES

Índia 

Cerca de 12% dos indianos são muçulmanos, formando uma população totalde 120 milhões de pessoas. A constituição do país garante a liberdadereligiosa. Na prática, contudo, os muçulmanos da Índia são alvos freqüentesde atos de violência - e as facções radicais revidam as agressões. Na últimaonda de conflitos entre muçulmanos e os hindus radicais, cerca de 2.000pessoas morreram. 

A PRESENÇA DO ISLAMISMO EM OUTROS PAÍSES

China 

O país mais populoso do mundo tem cerca de 20 milhões de muçulmanos,cerca de 1,5% da população. A religião está no país desde o século VII. Éoficialmente reconhecida e tolerada no país, que tem mais de 30.000mesquitas, e os chineses muçulmanos estão concentrados no extremo oestedo país. Há facções extremistas - uma delas listada como grupo terroristapela ONU e pelos EUA. 

A PRESENÇA DO ISLAMISMO EM OUTROS PAÍSES

Brasil 

Um dos maiores países católicos do mundo tem uma comunidade islâmicarelativamente grande - e seus números vêm crescendo. Há quarenta anos acomunidade árabe brasileira tinha uma única mesquita. Atualmente são maisde 50 templos, espalhados por todo o país e freqüentados por entre 1,5 e 2milhões de fiéis. Não há atuação de grupos extremistas armados no territóriobrasileiro. 

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CONTEXTOPERSPECTIVAS

O Islã no centro do mundo 

A religião que mais cresce vive uma hora decisiva 

CADA VEZ MAIOR: peregrinação anual a Meca, um dos pilares do Islã 

O mundo islâmico vem sendo rotineiramente devassado nos meiosacadêmicos há muito tempo. Contudo, até 11 de setembro de 2001,

quando dezenove muçulmanos praticaram o maior atentado terrorista daHistória, as multidões nos países ocidentais não sabiam que o universodos turbantes era muito mais complexo do que parecia. Depois do fim docomunismo, os Estados Unidos e seus aliados - os países industrializadosda Ásia e da Europa - convenceram-se de que a modernidade, ademocracia e a economia de mercado são desejadas em todo o mundo.Devido a outra escala de valores, porém, tais novidades não são bem-vindas para um número significativo de muçulmanos. Foi a descoberta deque o Islã era um dos limites da globalização, até então despercebido.

Após o choque resultante da carnificina cometida em nome de Alá, omundo islâmico foi repentinamente iluminado por um holofote. Nunca, atéonde a memória alcança, uma civilização foi tão escrutinada como amuçulmana está sendo nos dias atuais. Uma cultura e uma fé que viviamrelegadas à periferia do mundo dito civilizado despertam agora uminteresse voraz em pessoas que até outro dia dispunham de pouquíssimasreferências sobre o universo islâmico. Os governos das nações poderosastambém estão ávidos por entender e agir de forma a evitar uma explosãonas sociedades dos turbantes que elegeram como seu herói o terroristaOsama bin Laden e como bandeira a guerra santa aos valores ocidentais.

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E, no decorrer desse processo de exploração, a opinião pública mundialdescobriu que esse universo era menos administrável do que se imaginava.

20% do mundo - Para elevar ainda mais o grau de importância dessarevelação, pesquisas realizadas ao redor do globo mostraram que oislamismo é a religião que mais cresceu nas últimas décadas, e que essatendência não mudou depois do 11 de setembro. Em 1973, havia 36 paísescom maioria muçulmana no planeta; exatos trinta anos depois, eles já eram47. Também no início dos anos 70, o islamismo reunia cerca de 370 milhõesde fiéis. Três décadas depois, eles chegaram a 1,3 bilhão. Hoje, quase 20%da população do mundo é muçulmana, e estima-se que, em 2020, de cadaquatro habitantes do planeta um seguirá o islamismo. Essa explosãodemográfica - em parte provocada pela proibição religiosa do uso de

métodos contraceptivos - está devolvendo ao islamismo uma forçaconsiderável.

E não é só no Oriente: com o liberalismo religioso da maior parte doOcidente, os muçulmanos também se espalham com alguma facilidade. Sóna Europa, berço da civilização cristã, existem 20 milhões de muçulmanos, equase metade deles está instalada na Europa Ocidental. Há mesquitas até naRoma dos papas. Outro fator que emprestou maior visibilidade aos paísesislâmicos está em sua imensa riqueza estratégica: são donos das maisgenerosas reservas de petróleo do mundo. Entre os cinco maiores produtoresde óleo do Oriente Médio, o PIB conjunto quadruplicou nos últimos trintaanos, enquanto o PIB mundial apenas dobrou de tamanho. O crescimento dorebanho e a fartura do petróleo, no entanto, produziram um barril depólvora.

Bomba-relógio - Em geral, os regimes dos países islâmicos são ditadurasteocráticas e a riqueza não é distribuída, deixando a maior parte dapopulação relegada à miséria. É dentro desse caldeirão paradoxal queressurgiu a força da religião, em especial depois da Revolução Islâmica noIrã, em 1979. O Islã é multifacetado por várias nações, mas tem umacaracterística curiosa: não produziu um só país democrático e desenvolvido.

O contraste entre a pobreza dos fiéis e a riqueza do Ocidente fomentourancor. A resposta às dificuldades materiais e à falta de liberdade, levantadanas mesquitas, é a de que a identidade religiosa supera todos os valorespolíticos. A questão tornou-se urgente depois do 11 de setembro, masaté agora não se encontrou uma resposta: como desarmar a bomba-relógiodo radicalismo islâmico? Enquanto os nós não forem desfeitos, é possível queo extremismo e o fanatismo, embora restritos a grupos minoritários, sigamachando espaço para ensangüentar a história humana. 

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ANTECEDENTES

As raízes de uma religião pacífica 

A mensagem do profeta Maomé era de tolerância 

FANATISMO É MINORIA: muçulmanas oram pela paz depois do 11/9 

A ligação entre a carnificina provocada pelos terroristas muçulmanos eas raízes verdadeiras da fé islâmica é o maior problema enfrentado nosdias atuais pela religião mais praticada do planeta. Dezenas de milhõesde pessoas, em especial no Ocidente, confundem o islamismo comuma prática religiosa radical e raivosa, que convoca seus seguidores a

matar inocentes, permite (e recompensa) o suicídio em nome de Deuse não tolera crenças diferentes. De acordo com a esmagadora maioriados especialistas, religiosos e fiéis, contudo, a verdadeira face do Islã éexatamente oposta: a de uma fé que estimula o entendimento edesencoraja o conflito. 

A própria origem do termo Islã - ou "rendição", em árabe - está ligadaà palavra salam, que significa "paz". O fundador do islamismo, oprofeta Maomé, dedicou sua vida à tentativa de promover a paz emsua terra, a Arábia. Antes do Islã, as tribos árabes estavam presas

num círculo vicioso de ataques, revides e vinganças. O próprio Maomée seus primeiros seguidores escaparam de dezenas de tentativas deassassinato e de uma grande ofensiva para exterminá-los em Meca. Oprofeta teve de lutar, mas em nome da própria sobrevivência - quandoacreditou estar a salvo, passou a dedicar-se exclusivamente àreconciliação das tribos, através de uma grande campanha ideológicade não-violência. Quando morreu, no ano de 632, a meta havia sidocumprida - e justamente em função de seus ensinamentos sobre paz etolerância. 

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Espírito de caridade - Quando revelou a base da crença islâmicapelos versos do Corão, Maomé convivia com uma guerra em larga

escala em sua terra. Assim, muitas passagens das escrituras sagradasdos muçulmanos tratam de conflitos armados, da execução deinimigos, da guerra em nome de sua crença. Os terroristas e radicaisde hoje, contudo, gostam de citar o Corão apenas nos trechos em quese convoca a luta, e não nos versos em que se prega a paz e oentendimento. Pouco depois do ataque de 11 de setembro de 2001, aescritora americana Karen Armstrong, autora de vários livros sobre areligião islâmica, compilou alguns desses versos. A seguir, algunsdeles: 

• No Corão, os muçulmanos recebem a ordem de Deus para "eliminaros inimigos onde quer que eles estejam". A frase é uma das preferidasde Osama bin Laden e seus discípulos do terror. No verso seguinte,contudo, a mensagem é a segunte: "Se eles deixarem-no em paz enão fomentarem guerra, e oferecerem a paz, Deus não permite quesejam machucados". 

• O texto sagrado dos muçulmanos diz que a única forma aceitável deguerra é aquela conduzida em auto-defesa. Os muçulmanos jamaisdevem iniciar as hostilidades. A guerra é sempre manifestação do mal,

indica o Corão, mas às vezes é preciso lutar para preservar seusvalores - ou, como fez o profeta Maomé em Meca, para combaterperseguições e se livrar dos opressores. 

• Em certo trecho, o Corão cita a Torá, escritura sagrada dos judeus,ao dizer que é permitido ao muçulmano retribuir uma agressão - olhopor olho, dente por dente. O texto ressalta, porém, que perdoar edeixar de lado as vinganças em nome de um espírito de caridade éuma atitude digna de mérito e admiração. 

• Quando a guerra é necessária e justificada, as hostilidades contra oinimigo devem acabar logo que for possível. A guerra termina quandoo inimigo acena com um gesto de paz. O Corão também diz que osoutros povos, mesmo quando forem inimigos, jamais devem serforçados a seguir a crença dos muçulmanos: "Não deve haver coerçãonos assuntos da fé!" 

•  Na mais famosa distorção a respeito da doutrina muçulmana, apalavra "jihad" é traduzida no Ocidente como "guerra santa" - quando,

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na verdade, equivale a "luta", "esforço", "empenho". O termo se refereao esforço que deve ser empregado para que a vontade de Deus seja

colocada em prática em todos os aspectos da vida - não só na política,como também na vida pessoal e social. Há relatos de que Maomé dissecerta vez, ao retornar de uma batalha: "Estamos voltando da jihadmenos importante para a jihad maior", que seria a tentativa de curaros males da sociedade. 

•  O Corão diz que os "Povos das Escrituras", os cristãos e judeus -principais alvos dos extremistas islâmicos hoje, - devem serrespeitados. Em um de seus últimos discursos, o profeta Maomé teriadito: "Formamos nações e tribos para que conhecessem uns aos

outros" - ou seja, não para que os povos conquistassem outros povos etentassem oprimir suas crenças.

Reação à modernidade  - Se a brutalidade contra outros povos ereligiões é proibida, se a guerra é uma manifestação do mal, se oinimigo só pode ser atacado se agredir primeiro, por que os radicaismuçulmanos continuam usando a religião para justificar seus atos deterrorismo? Para quase todos os especialistas, essa pergunta não temuma resposta sensata - o que significa que a luta dos extremistas é, defato, ilegítima e injustificada. Na avaliação de Karen Armstrong, a

forma militante de culto religioso surgida no século XX sob aclassificação de fundamentalismo é uma reação à modernidade. Seusseguidores estão convencidos de que a sociedade liberal e secular visaacabar com a religião - assim, os princípios de sua fé acabamdesvirtuados e distorcidos em nome de uma luta irracional. Destaforma, enxergar em Osama bin Laden e em seus seguidores terroristasuma representação legítima da tradição e da fé islâmica é um errogravíssimo. Resta à maioria dos muçulmanos, que condenam os atosterroristas e as interpretações radicais das escrituras, a árdua missãode reverter essa imagem e reforçar as raízes pacíficas de sua crença. 

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ANÁLISE

A minoria que agride e assusta 

O que está por trás do extremismo no mundo islâmico? 

CONTRA O OCIDENTE: protesto anti-EUA na tensa Karachi, Paquistão 

Com o surgimento dos primeiros indícios de que a onda de terror de 11de setembro de 2001 nos Estados Unidos foi obra de radicais islâmicos,uma questão tornou-se inevitável: quem é essa gente que se suicida

 jogando aviões contra edifícios? Que se veste de bombas e se explodeem supermercados e pizzarias de Israel? Que estoura carros recheados

de explosivos contra muros de quartéis? Quem é, enfim, essa genteque se mata em nome de Alá? Atualmente, calcula-se que exista emtorno de 1,3 bilhão de muçulmanos no mundo, divididos em diversascorrentes religiosas - e apenas uma parcela pequena está disposta aentregar a vida pela causa. São muçulmanos que integramramificações extremistas da religião, como os sunitas do Afeganistão eos xiitas do Líbano, para os quais o suicídio em nome de Alá,normalmente cometido aos gritos de "Deus é grande", é uma formasuprema de entrega ao amor divino. A maioria dos muçulmanos, noentanto, repudia os ataques suicidas e os considera pecado extremo,

uma ofensa contra Alá, na medida em que atenta contra o dom da vida- um dom divino. "O primeiro equívoco comum entre ocidentais ecristãos é considerar todo islâmico um extremista suicida e, porextensão, um terrorista em potencial", adverte a historiadora MariaAparecida de Aquino, da Universidade de São Paulo.

O islamismo é a religião que mais cresce no planeta, e ganhouvisibilidade nas últimas décadas em função de sua imensa riquezaestratégica: eles são donos das mais generosas reservas de petróleo

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do mundo. O crescimento do rebanho e a fartura do petróleo, noentanto, produziram um barril de pólvora. Em geral, os regimes dos

países islâmicos são ditaduras teocráticas e a riqueza não é distribuída,deixando a maior parte da população relegada à miséria. É dentrodesse caldeirão paradoxal que ressurgiu a força da religião, emespecial depois da Revolução Islâmica no Irã, em 1979. "Numambiente de carência social e autoritarismo político, a religião funcionacomo uma poderosíssima válvula de escape", define a historiadoraMaria Aparecida de Aquino, da USP. Mas isso não é tudo. Até poucotempo atrás, a América Latina também convivia simultaneamente commiséria e ditadura - e, no entanto, nunca se viram grupos extremistasde latino-americanos promovendo atos de terrorismo pelo mundo afora

em nome de sua libertação econômica e política. Por que então algunsgrupos de fanáticos islâmicos chocam o mundo com espetáculosinimagináveis de terror? A explicação sobre o que move essesextremistas, segundo alguns especialistas, talvez esteja num dadomais sutil: o choque de civilizações.

Cimitarra no coração - "Os Estados nacionais permanecerão como osatores mais poderosos no cenário mundial, mas os principais conflitosglobais ocorrerão entre nações e grupos de diferentes civilizações",aposta o professor Samuel P. Huntington, especialista em estudos

internacionais da Universidade Harvard e autor de um livro dedicadoao assunto. "O choque de civilizações será a linha divisória dasbatalhas do futuro." Nem todos os estudiosos do assunto concordamcom a tese de Huntington, mas não há como negar que, num mundocada vez menor, cada vez mais próximo, a religião também funcionacomo um instrumento de afirmação da identidade nacional. E aglobalização crescente é um processo que se desenrola sob o comandoinequívoco do mundo ocidental - em especial, do império americano. 

As potências ocidentais não trilham sua trajetória segundo parâmetrosda Bíblia, da fé cristã, dos ensinamentos de Jesus, mas, mesmo assim,elas acabam por se contrapor, culturalmente, aos países muçulmanos,muitos dos quais se pautam pelo Corão, pela fé islâmica, pelosensinamentos de Maomé. Hoje, as potências ocidentais encontram-seno auge do poder. Os Estados Unidos, com sua incomparável pujançaeconômica, seu formidável poderio militar e sua vigorosa influênciapolítica e cultural sobre os destinos do mundo, representam o triunfodos valores ocidentais - pelo menos aos olhos de fundamentalistasislâmicos, que, é sempre bom lembrar, são uma minoria entre os

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muçulmanos. Daí por que o terror de 11 de setembro não se esgotouna destruição de arranha-céus e na morte de inocentes. Pretendeu,

sobretudo, cravar uma cimitarra no coração e no orgulho da maiorpotência ocidental. 

McDonalds no Líbano - Os extremistas, que enxergam o mundo pelaoposição entre Jesus e Maomé, se ressentem da avassaladorainfluência ocidental sobre o planeta - nos costumes, nos hábitos deconsumo, no modo de vida. Tanto que, em países dominados porradicais islâmicos, especialmente os talibãs do Afeganistão, tudo o quelembra a cultura ocidental é proibido e severamente punido. Mas, denovo, isso não é uma regra. No Irã, há grandes anúncios de produtos

ocidentais pelas ruas de Teerã, existem mulheres procurandocirurgiões plásticos, num sinal de vaidade antes inadmissível, e é muitoexpressivo o contingente feminino que freqüenta a universidade - umararidade em algumas nações islâmicas que confinam a mulher aoslimites do lar. "Há aspectos do capitalismo ocidental que sãoplenamente aceitos pelas populações muçulmanas", diz um diplomatabrasileiro que serviu por oito anos no Líbano. "As cadeias de fast food,como o McDonald's, fazem sucesso do Marrocos ao Líbano," diz ele.

"Sem dúvida, o extremismo religioso está ligado às frustrações,

principalmente entre os mais jovens, pois os países árabes têmeconomia fraca, analfabetismo e desemprego crescente", afirma SharifShuja, professor de relações internacionais da Universidade Bond, naAustrália. "Mas, além disso, o massacre de muçulmanos na Bósnia, naChechênia, na Palestina e na Caxemira faz o mundo árabe imaginarque o Ocidente está contra ele", completa o especialista. A melhormaneira de reduzir o crescimento do extremismo talvez esteja naexpansão democrática dos países islâmicos - tema ao qual as potênciasocidentais vinham dedicando pouca atenção até 11 de setembro. Ariqueza econômica do petróleo, por si só, não foi capaz de melhoraresse cenário. "Na verdade, ocorreu o contrário", analisa o professorMichael Hudson, da Universidade Georgetown. "Jordânia, Líbano,Marrocos e Palestina, que não têm reservas petrolíferas, hoje sãopaíses muito mais abertos que os ricos em petróleo, como ArábiaSaudita, Iraque e Líbia." A exceção é o Irã, único islâmico rico que viveum acelerado processo de democratização.

'Todas as armas' - Osama bin Laden e sua corte de fanáticos vivemna clandestinidade, enfurnados em cavernas do Afeganistão, envoltos

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numa aura de mistério, mas seus objetivos são bem claros. Bastaconsultar os escritos do milionário que virou o mais exaltado dos

radicais islâmicos. Primeiro, ele pretende expulsar os militaresamericanos das bases que eles mantêm na Arábia Saudita, onde amera presença de não-muçulmanos é vista pelos fanáticos como umaprofanação do solo santo onde nasceu o Islã. "Todos os esforçosdevem ser concentrados em combater, destruir e matar o inimigo atéque, pela graça de Alá, esteja completamente aniquilado", esclareceLaden, em documento datado de 1996. Realizada a primeira missãodivina, ele pretende partir para a segunda, de alcance mais amplo:unir todos os muçulmanos numa mesma comunidade, governada deacordo com a interpretação mais literal e estrita dos preceitos do

Corão. 

Para isso, os governos dos países muçulmanos consideradoscorrompidos pela influência ocidental - ou seja, todos - devem servarridos do mapa. Sem fronteiras nacionais, unificados sob essegoverno ideal, chamado califado, os verdadeiros crentes se lançariamentão rumo à etapa final - arrebatar o resto do planeta. "Chegará otempo em que vocês desempenharão papel decisivo no mundo, deforma que a palavra de Alá seja suprema e as palavras dos infiéissejam subjugadas", prometeu ele a seus seguidores. Em qualquer uma

dessas etapas, o dever dos muçulmanos é empregar todas as armaspossíveis para atacar os inimigos de Alá. O título do documento emque faz essa afirmação diz tudo: "A Bomba Nuclear do Islã". Parececoisa de uma mente delirante, dos gênios do mal caricaturados nocinema ou nas histórias em quadrinhos. A forma aberrante defanatismo religioso pregada por Laden, porém, tem raízes bemfincadas na história da religião muçulmana, constantemente marcadapor esse desejo de mergulhar na fonte original, de beber da palavramais pura do Corão, de reviver um passado mítico. 

Período de decadência - Uma comparação que ajuda a entender amentalidade fundamentalista é com a Igreja Católica na fase em quese encontrava quando tinha a mesma "idade" do Islã hoje. Naquelaépoca, os padres da Santa Inquisição queimavam pessoas que nãoacreditassem em dogmas católicos. Torturavam e matavam suspeitosde crimes como bruxaria. Qualquer idéia inovadora era condenada,mesmo que fosse uma idéia científica defendida por pesquisadores detalento, como Galileu Galilei, que sofreu perseguição no século XVIIpor ter afirmado que a Terra girava em torno do Sol. Os historiadores

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também coincidem ao apontar as razões desse movimento de refluxo:em comparação com seu passado glorioso, os países islâmicos vivem

hoje um período de decadência. O Ocidente cristão, com o qualconviveram e combateram ao longo dos séculos em pé de igualdade,às vezes até de superioridade, superou-os vastamente em matéria deprogresso material, científico, administrativo e tecnológico. A primeiraorganização fundamentalista moderna, a Fraternidade Muçulmana, foicriada em 1928 pelo xeque Hasan al-Banna num Egito humilhado pelocolonialismo britânico. Também ganharam contornos de males a sercombatidos as liberdades individuais, a emancipação das mulheres, asmudanças nos padrões familiares e outras transformações que sesucederam nas sociedades ocidentais. 

Chegamos, assim, àquilo que distingue o fundamentalismo em suavertente mais extremada: o recurso à violência como meio não sólegítimo como obrigatório. Ancorados em textos do Corão ouensinamentos do profeta e seus seguidores, evidentementeinterpretados da maneira mais literal, os fundamentalistas aperfeiçoamhá séculos uma teoria da violência total. "Aqueles que ignoram tudo doIslã pretendem que ele recomende não fazer a guerra. São insensatos.O Islã diz: 'Matem todos os infiéis da mesma maneira que eles osmatariam'", escreveu um dos aiatolás que lançaram as bases da

revolução fundamentalista que derrotou o regime do xá Reza Pahlevino Irã. O aiatolá complementa: "Aqueles que estudam a guerra santaislâmica compreendem por que o Islã quer conquistar o mundo inteiro.Todos os países subjugados pelo Islã receberão a marca da salvaçãoeterna. Pois eles viverão sob a luz da lei celestial". Quando Osama binLaden diz que "matar americanos e seus aliados, civis e militares, é umdever individual de todo muçulmano que tenha condições de fazer isso,em qualquer lugar onde seja possível fazer isso", ele está seguindoexatamente o mesmo raciocínio.

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DEBATE

O papel da mulher no islamismo 

Elas ainda sofrem, mas a culpa não é apenas da religião 

POR TRÁS DOS VÉUS: garota olha entre mulheres afegãs com burcas 

A lista de horrores já soa, a esta altura, familiar. Meninas proibidas de ir àescola e condenadas ao analfabetismo. Mulheres impedidas de trabalhar ede andar pelas ruas sozinhas. Milhares de viúvas que, sem poder ganharseu sustento, dependem de esmolas ou simplesmente passam fome.Mulheres com os dedos decepados por pintar as unhas. Casadas,

solteiras, velhas ou moças que sejam suspeitas de transgressões - e tudoo que compõe a vida normal é visto como transgressão - são espancadasou executadas. E por toda parte aquelas imagens que já se tornaram umsímbolo: grupos de figuras idênticas, sem forma e sem rosto, cobertas dacabeça aos pés nas suas túnicas - as burqas. Quando o Afeganistãoentrou no noticiário por aninhar os terroristas que bombardearam o WorldTrade Center e o Pentágono, essas cenas de mulheres tratadas comoanimais voltaram a espantar o Ocidente. Elas viviam em regime desubmissão absoluta havia muito tempo, mas a situação ficou ainda piordesde que a milícia Talibã tomou o poder no país, em 1996.

O cenário de Idade Média não era uma prerrogativa afegã. Trata-se deuma avenida permanentemente aberta aos regimes islâmicos quedesejem interpretar os ensinamentos do Corão a ferro e fogo. A isso se dáo nome de fundamentalismo. Há países de islamismo mais flexível, comoo Egito, e outros de um rigor extremo, como a Arábia Saudita. Para opensamento ortodoxo muçulmano, a mulher vale menos do que ohomem, explica Leila Ahmed, especialista em estudos da mulher e doOriente Próximo da Universidade de Massachusetts, nos Estados Unidos."Um 'infiel' pode se converter e se livrar da inferioridade que o separa dos

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'fiéis'. Já a inferioridade da mulher é imutável", escreveu Leila num ensaiosobre o tema, em 1992.

Por trás dessa situação há uma ironia trágica. A exclusão feminina nãoestá presente nas fundações do islamismo, mas apenas no edifício que seerigiu sobre elas. O Corão, livro sagrado dos muçulmanos, contémversículos dedicados a deixar claro que, aos olhos de Alá, homens emulheres são iguais. O mais importante deles é o que está reproduzidonesta página. Ele mostra que Deus espera a mesma fidelidade de ambosos sexos, e que a premiará de forma idêntica. O Corão é o mandamentodivino, e não uma interpretação qualquer da vontade de Deus. Como seexplica, então, que idéias tão avançadas tenham se perdido, para darlugar a Estados religiosos em que as mulheres têm de viver trancafiadas ecobertas por véus, em pleno século XXI? As respostas têm de serbuscadas muito longe, no próprio nascimento do Islã.

Casamento aos 9 - Quando tinha 25 anos, Maomé se casou comKhadidja, uma viúva rica que o empregara para supervisionar suacaravana de comércio entre a cidade de Meca, na atual Arábia Saudita, ea Síria. A própria Khadidja, de 40 anos, propôs as núpcias, num arranjoque não era assim tão incomum. Naquela época, a Arábia era uma daspoucas regiões do Oriente Médio em que o casamento comandado pelomarido ainda convivia com outros tipos de união. Acredita-se que havia

até mulheres que tinham vários maridos - e muitas viviam comconsiderável autonomia pessoal e financeira. Era o caso de Khadidja, umanegociante experiente. Alguns anos depois de seu casamento, Maomécomeçou a receber o que seriam revelações de Deus. Julgando-se louco,procurou o conselho da esposa. Ela dispersou suas dúvidas e, para provarsua confiança no marido, converteu-se à nova religião. O primeiromuçulmano foi, assim, uma mulher. Quando Khadidja morreu, Maoméentrou em vários casamentos simultâneos. A mais célebre de suasesposas é Aisha, que tinha 9 anos na ocasião das bodas. Segundo algunsrelatos, ela brincava no quintal quando foi chamada para dentro de casa.

Lá, encontrou o noivo e foi posta sobre seus joelhos. Os pais da meninase retiraram, e o casamento teria se consumado ali, na casa paterna.

Aisha é uma figura central nesses primeiros anos do Islã (cujo calendáriocomeça a ser contado no ano 622 da era cristã). Inteligente, articulada edona de uma memória prodigiosa, ela foi a mais querida e respeitada dasmulheres do profeta - embora todas partilhassem de seus ensinamentos eapoiassem ativamente sua causa. Eram, aliás, tão assediadas por pessoasem busca de favores e influência que talvez por isso tenham sido asprimeiras muçulmanas (e, por algum tempo, as únicas) a usar véu e ficar

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recolhidas em casa - e, ainda assim, só nos últimos anos da vida deMaomé. Aisha tinha 18 anos quando Maomé morreu. Nas quase cinco

décadas seguintes de sua vida, ela foi inúmeras vezes consultada empontos importantes da religião, da política e também da conduta doprofeta. Isso porque Maomé legou aos muçulmanos o Corão, que é quaseum tratado ético, mas não teve tempo de regulamentar todos osprincípios que deveriam reger o cotidiano dos convertidos. Quando vivo,podia ser consultado a qualquer momento. Depois de sua morte, tornou-se tarefa de seus seguidores próximos transferir da memória para aescrita as palavras e ações do profeta. A intenção era que o conjuntoservisse de guia aos fiéis. Esses "ditados" são os Hadith. Juntos, elescompõem a tradição maior, a Sunna. Com as complicações surgidas porcausa da sucessão de Maomé, os Hadith tornaram-se uma ferramentacrucial. Não era difícil que alguém sacasse um deles para resolver umimpasse. E, é claro, não demorou para que muitos fossem forjados. Cercade 200 anos depois da morte do profeta, um respeitado historiador doislamismo, al-Bukhari, contou 7 275 Hadith genuínos, contra quase600.000 inventados. Mesmo os tidos como verdadeiros merecem algumescrutínio, argumentam estudiosos como a marroquina Fatima Mernissi.

Fatima investigou a origem dos Hadith que são as pedras angulares para justificar a inferioridade feminina no Islã. Um deles é o que compara asmulheres aos cães e jumentos na sua capacidade de perturbar a oração.Fatima concluiu que o narrador desse Hadith, Abu Hurayra, era umhomem com sérios problemas de identidade sexual e um feroz opositor deAisha, que amiúde o repreendia em público por sua mania de inventarHadith. Nessa ocasião, ela corrigiu Hurayra, dizendo que o profetacostumava rezar perto de suas mulheres sem nenhum medo de que elaso atrapalhassem. Mas sua versão não passou à história. Outro Hadith quetodo muçulmano sabe de cor é o que diz que "aqueles que confiam seusnegócios a uma mulher nunca conhecerão a prosperidade". SegundoFatima Mernissi, o surgimento desse Hadith é ainda mais misterioso. AbuBakra, seu narrador, lembrou dessa frase do profeta (e pela primeira vez)mais de vinte anos depois de supostamente ela ter sido dita.Curiosamente, veio-lhe à memória (assim ele afirmou) no momento emque Aisha sofreu sua grande derrocada. A viúva do profeta virou o centrode uma crise quando, ao suspeitar de um golpe, pegou em armas paraintervir numa das etapas da sucessão de Maomé. Na batalha que seseguiu, perdeu 13.000 de seus soldados e saiu derrotada, em váriossentidos. Foi, primeiro, criticada por ter se exposto de uma maneirainconveniente a uma mulher. E, com a perda de prestígio, teve muitos deseus comentários e correções sobre importantes Hadith suprimidos ou

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ignorados - como no caso daquele que fala dos cães e jumentos. Essessão só alguns exemplos de como a voz feminina, tão valorizada nos

primórdios do Islã, começou a se silenciar.Ideais de pureza  - A pesquisadora Leila Ahmed tem mais explicaçõespara a opressão das mulheres no Islã. Os muçulmanos, diz ela,costumavam manter os hábitos das regiões onde se firmavam, desde queesses estivessem em sintonia com seu pensamento. O restante eradescartado. Na Arábia, por exemplo, eliminaram as outras formas decasamento para que prevalecesse apenas o patriarcal. Quandoconquistaram a região que hoje abarca o Irã e o Iraque, assimilaram aprática de formar haréns, o uso disseminado do véu para as mulheres e,principalmente, os mecanismos de repressão feminina que eram umacaracterística marcante dos povos locais. Foi nesse ambiente altamentemisógino que, nos séculos seguintes, o direito islâmico foi elaborado.Separado em escolas que diferem em vários pontos, mas se apresentamcomo sendo timbres diversos de uma só voz, esse direito é dado comoabsoluto e imutável. Seus princípios não podem ser questionados nemrelativizados à luz de traços culturais. Por isso são, até hoje, uminstrumento útil para calar as mulheres em países nos quais vigora oregime teocrático. Um dado complicador é que as muçulmanas têm atéhoje um conhecimento muito vago da lei divina. Aderem aofundamentalismo atraídas pelos ideais de pureza da religião e, quando eleé instaurado, são surpreendidas por seus rigores - a exemplo do queocorreu no Irã dos aiatolás.

Não é pequena a importância de estudos históricos como os de LeilaAhmed e Fatima Mernissi. Eles ajudam a demonstrar que a liberdadefeminina não equivale à ocidentalização e à aculturação - ou, em outraspalavras, à traição do Islã. Pelo contrário: é possível ser, ao mesmotempo, uma muçulmana livre e uma muçulmana fiel. Se a democraciachegou para as mulheres que vivem sob a égide da civilização judaico-cristã, que também não é lá muito célebre por sua visão feminista do

mundo, não há por que ela não possa ser almejada pelas muçulmanasque se orgulham de sua religião. Em tempo: um dia, um seguidor deMaomé lhe indagou qual a pessoa que ele mais amava no mundo. "Aisha,minha mulher", respondeu o profeta. Irritado com uma resposta assim,no feminino, o curioso insistiu: "E qual o homem que o senhor maisama?". Maomé não hesitou. "Abu Bakr. Porque ele é o pai de Aisha." 

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POLÍTICA

A democracia poderá prosperar? 

A ofensiva para reformar os regimes mais opressores 

POUCOS PODEM VOTAR: muçulmana na eleição presidencial argelina 

Entre mais de meia centena de países com maioria muçulmana,apenas três nações adotaram regimes com característicasdemocráticas: Turquia, Bangladesh e Indonésia. Com exceção daTurquia, no entanto, nenhum governo islâmico seria reconhecido comodemocrata pelos padrões ocidentais. Eles são governados por

teocracias, monarquias absolutas, ditaduras de partido único epresidentes perpétuos. Mesmo na Turquia a situação é bastantediferente se comparada às democracias ocidentais. Na fundação dopaís sobre as ruínas do Império Otomano, o Estado tornou-se laico namarra: foram impostas roupas ocidentais, o uso do véu feminino emrepartições e escolas públicas foi proibido e o alfabeto árabe foisubstituído pelo latino no prazo recorde de seis meses. Os militaresturcos trataram de impedir, desde então, que os fundamentalistaschegassem ao poder - na única vez em que isso ocorreu, na década de90, eles caíram um ano depois de assumir o governo. O Estado

supervisiona a educação religiosa, nomeia os 80.000 clérigos do país epaga seus salários. Mesmo assim, o islamismo continua forte. De cadadez turcos, nove fazem o jejum no mês do Ramadã e metade rezacinco vezes por dia para Alá. 

A esperança de democracia no Oriente Médio se assentaprincipalmente na multiplicação dos muçulmanos moderados. Essespersonagens não oferecem perigo ao Ocidente. Eles são, no entanto,uma ameaça para os regimes totalitários da região - que ganharam a

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tolerância do Ocidente por tanto tempo justamente por combaterem osextremistas - na verdade, oprimindo qualque voz forte de oposição.

Serão necessárias centenas de milhares deles em dezenas de paísespara que a química explosiva da região encontre um mínimo deequilíbrio. Para muitos analistas ocidentais, essa possibilidade nãopassa de uma utopia. Mas todos concordam que a única barreira realde longo prazo para deter o terrorismo religioso são os moderadosislâmicos. A eficiência dos serviços de contenção dos radicais prestadospor regimes totalitários pró-ocidentais na região está se exaurindo.Essa tendência deve acentuar-se com a presença dos Estados Unidosno Iraque, na exata medida em que os americanos sejam bem-sucedidos na instalação de um governo minimamente representativo

no país que já foi de Saddam Hussein e seus asseclas.  

Maldição do petróleo - Se no mundo islâmico em geral a democraciaé raridade, nos países árabes ela inexiste. Segundo especialistas, adificuldade de criar regimes democráticos em países árabes decorre defatores históricos e culturais, mas se agrava hoje em dia em razão dedois aspectos. De um lado, existe um estado permanente debeligerância, pela vizinhança com Israel, o que tende a concentrar opoder nas mãos de um líder ou de um grupo. O constante clima deguerra, além disso, torna prioridade o fortalecimento do Exército, do

serviço de inteligência, da polícia secreta, da guarda nacional,instituições que também servem para conter aspirações popularesmalvistas pelos dirigentes. 

De outro lado, a comunidade árabe é dividida pela glória e peladesgraça do petróleo. Quem tem senta-se sobre ele. Quem não temusa sua influência junto aos países ricos em petróleo para garantirinvestimentos e ajuda externa. Assim, tanto os com-petróleo quanto ossem-petróleo, excessivamente amarrados à dependência de capitalexterno, tendem a ignorar as demandas internas por maiorparticipação política. "A principal barreira à democracia no mundoárabe não é o islamismo ou a cultura árabe. É o petróleo", diz o

 jornalista Fareed Zakaria, jornalista da revista Newsweek e professorda Universidade Harvard. "Como bastava furar o chão para o dinheiro

 jorrar, não houve a necessidade de criar uma economia capitalistamoderna, que exige trabalho duro. Costumo dizer que o petróleo é amaldição do mundo árabe. Pelo menos no que diz respeito àmodernização econômica e política. De todos os países com petróleo,apenas um, a Noruega, é democrático." 

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Sinais de mudança - Na avaliação de outro importante especialistano assunto, o escritor Bernard Lewis, os exemplos de democracia no

mundo islâmico são "raros, mas não impossíveis". "É um processolento e difícil. Não podemos esquecer que generalizações sãosempre imprecisas. Quando discutimos o Islã, estamos falando demais de catorze séculos de história, mais de cinqüenta países, umatradição cultural de uma diversidade enorme. O Islã pode serinterpretado de várias formas", diz ele. É inegável que os sinais demudança estão aparecendo. Além dos casos do Iraque e doAfeganistão, em que os americanos investem pesado para estimulara democracia, e do Irã, onde o rígido regime islâmico não impediuuma onda de apoio popular às reformas democráticas, há váriosepisódios animadores: 

• Horas depois da queda da capital iraquiana, o presidente do Egito,Hosni Mubarak, anunciou sua desistência de fazer o filho, Gamal,seu sucessor no poder. O Egito está submetido a variações deestado de sítio desde 1931 e seus principais órgãos de imprensa sãoestatais. Portanto, o gesto de Mubarak tem um peso. 

• O príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Abdullah bin Abdul Aziz,

anunciou em 2003 o desencadeamento de um plano de"aprimoramento econômico e político" que, segundo Alkebsi, prevê aeleição de um Parlamento. Monarquia religiosa, a Arábia Saudita é opaís formalmente mais alinhado com o Ocidente na região. Masexistem evidências desconcertantes de que, nos bastidores, adinastia saudita dá sustentação a grupos terroristas. O aceno com apossibilidade de eleger um Parlamento é a melhor notícia ventiladadaquele lado do deserto há dezenas de anos. 

• Em setembro de 2002, o Marrocos promoveu as primeiras eleiçõeslivres de sua história. A ida às urnas foi fiscalizada por monitoresinternacionais. Um partido ligado ao clero islâmico ganhou um bomnúmero de cadeiras no Parlamento, e o governo reconheceuoficialmente o resultado. 

• Também no fim de 2002, o Barein, um pequeno país do Golfo commenos de 1 milhão de habitantes, convocou eleições gerais em que,pela primeira vez, as mulheres também puderam votar e secandidatar a cargos eletivos. 

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Do Iraque à Suíça  - A empolgação sobre a possibilidade deespalhar a democracia pelo mundo islâmico contagia os ocidentais,

mas os próprios defensores da idéia de que vale a pena semeardemocracia no deserto alertam para os perigos. O mais evidentedeles é o fato de que naturalmente os políticos com ligações com oclero islâmico serão, pelo menos no primeiro momento, os maispopulares. Há possibilidade também de que os radicais sejam osmais votados e até que cheguem ao poder pelo voto. Na Argélia, em1992, os militares deram um golpe preventivo assim que aspesquisas não deixavam mais dúvidas de que os fundamentalistaschegariam ao poder nas eleições gerais daquele ano. O que fazernesses casos?

Esse é um ponto crucial, pois, se os eleitores dos países árabessuspeitarem que a democracia só vale quando forem eleitos políticoscom simpatia pelo Ocidente, todo o processo ficará desmoralizado."Não esqueçamos que Adolf Hitler chegou ao poder na Alemanha pormeio de uma eleição. Se a democracia for introduzida de formaprematura, é possível que tenha vida curta", afirma Bernard Lewis."Uma eleição livre é o fim de um processo de democratização, não ocomeço. A democracia é um remédio forte que tem de ser tomado

em doses pequenas e com cuidado. Não se pode importar ademocracia como quem compra um brinquedo com instruções noestilo monte você mesmo. O Iraque não vai transformar-se numaSuíça da noite para o dia." 

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ECONOMIA

O caminho para o desenvolvimento 

Por que não há países islâmicos entre os mais ricos? 

AVANÇANDO POUCO: sauditas acessam a internet num hotel de Riad 

Ainda sob o choque do 11 de setembro de 2001, o mundodescobriu, espantado, que os homens que haviam derrubado omaior símbolo do capitalismo mundial viviam num dos países maismiseráveis e arrasados do planeta. A pobreza, obviamente, não éuma exclusividade daquele país. E muito menos se trata de uma

criação muçulmana. Mas uma pergunta começou a ser feita: seria oIslã uma barreira intransponível para o surgimento de umasociedade rica, moderna e democrática? As estatísticas, se nãorespondem a tal questão, oferecem ao menos uma constatação: nãohá nenhuma nação com maioria muçulmana que se situe entre asmais avançadas do mundo. Ao contrário - a esmagadora maioriadelas ocupa posições vexaminosas nas categorias que aferem odesenvolvimento humano e os graus de instrução e de liberdade dapopulação. 

Nem mesmo os países do Golfo Pérsico, que embolsaram centenasde bilhões de dólares nos últimos anos por meio da exportação depetróleo, conseguiram (ou souberam, ou quiseram) melhorar oestado geral das coisas de maneira a incluir-se no clube dosdesenvolvidos. Entre os cinco maiores produtores de óleo do OrienteMédio (Irã, Iraque, Arábia Saudita, Emirados Árabes e Kuwait), oPIB conjunto quadruplicou nos últimos trinta anos - enquanto o PIBmundial apenas dobrou de tamanho. Os petrodólares, na verdade,

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só serviram para aumentar a concentração de renda e criarsimulacros de modernidade em meio às areias escaldantes do

deserto. Para se ter uma idéia, a família real saudita detém 40% detoda a renda nacional.

Ocidentalização forçada - Nas nações islâmicas, a religiãoespraia-se pelos campos econômico, social e moral de maneirasufocante. E não se está falando apenas dos regimes teocráticos,como o do Irã e o do Afeganistão. Mesmo nos países com umgoverno descolado formalmente da hierarquia religiosa, essadistância não é suficiente para neutralizar a crescente ingerência deimãs, aiatolás e ulemás em assuntos que se encontram fora doâmbito teológico. A exceção é a Turquia, que passou por umviolento processo de ocidentalização forçada na década de 20. Oproblema é exatamente esse: entre os muçulmanos, a religião não éparte, mas cada vez mais o todo. Engana-se quem acha ser esse umpecado original. 

O totalitarismo islâmico - uma outra designação para ofundamentalismo que hoje Osama bin Laden encarna de forma tãoassustadora - é produto recente, tem menos de meio século, como

notou o jornalista Fareed Zakaria, da revista Newsweek. Ele foiadubado em terreno secular e árabe. Nasceu no Egito, na década de50, como resistência ao processo de modernização que o entãopresidente Gamal Abdel Nasser procurou implementar a ferro efogo. Nasser causou a reação fundamentalista ao tentar, por meiode uma repressão feroz, divorciar completamente o Estado dareligião muçulmana. Falhou, como está claro, principalmente porquesuas reformas nunca foram além do aspecto cosmético. E, ao falhar,abriu caminho para que o fundamentalismo ganhasse corpo dentro e

fora das fronteiras egípcias.'Preço dos melões' - No Ocidente, a reforma protestante do séculoXVI engendrou uma ética que, como demonstrou o sociólogo alemãoMax Weber, acabaria por libertar o espírito empreendedor dasamarras católicas e impulsionar o capitalismo. O fundamentalismoislâmico do século XX, e que adentra o XXI, é uma mentalidade que,do ponto de vista econômico e social, se originou da oposição cega aavanços de qualquer tipo. Alimenta-se da pobreza e, por issomesmo, não pode ser apartado dela, sob pena de desaparecer como

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uma miragem. Daí a razão de seu discurso ser irracional - estásempre atrelado a causas genéricas e vagas, como o "pan-

islamismo" e a "destruição do Grande Satã". Nunca se detém sobreas questões que realmente interessam. Em seu grande momento, arevolução iraniana de 1979, o fundamentalismo encontrou suatradução mais fiel numa frase do aiatolá Khomeini: "A revoluçãorefere-se ao Islã, e não ao preço dos melões".

Para alguns especialistas, não é possível dizer que o islamismodetermina o fracasso econômico e comercial de uma nação. Nocenário atual, porém, é impossível não culpar o fundamentalismopela escassez de avanços nos países islâmicos. Ele não encerraprojeto que vise, pelo menos em tese, ao desenvolvimento de umpovo. No máximo, oferece migalhas assistencialistas - um modoeficiente, aliás, de arregimentar os jovens sem futuro queperambulam nas superpovoadas e caóticas metrópoles do OrienteMédio. A um fundamentalista cabe tão-somente vagar no inferno,com a esperança de alcançar um paraíso que não existe. O Islã éuma barreira para o desenvolvimento? Diante do radicalismo quecontaminou a religião nas últimas décadas, infelizmente sim. 

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Perguntas e respostasAs dúvidas freqüentes sobre a religião que mais cresce no planeta

O que é islamismo, Islã e muçulmano?O islamismo é a religião fundada pelo profeta Maomé no início doséculo VII, na região da Arábia. O Islã é o conjunto dos povos decivilização islâmica, que professam o islamismo; em resumo, é omundo dos seguidores dessa religião. O muçulmano é o seguidor da féislâmica, também chamado por alguns de islamita. O termomaometano às vezes é usado para se referir ao muçulmano, masmuitos rejeitam essa expressão - afinal, a religião seria de devoção a

Deus, e não ao profeta Maomé.

De onde vem o termo Islã?Em árabe, Islã significa "rendição" ou "submissão" e se refere àobrigação do muçulmano de seguir a vontade de Deus. O termo estáligado a outra palavra árabe, salam, que significa "paz" - o que reforçao caráter pacífico e tolerante da fé islâmica. O termo surgiu por obrado fundador do islamismo, o profeta Maomé, que dedicou a vida àtentativa de promover a paz em sua Arábia natal. 

Todos os muçulmanos são árabes?Esta é uma das mais famosas distorções a respeito do Islã. Naverdade, o Oriente Médio reúne somente cerca de 18% da populaçãomuçulmana no mundo - sendo que turcos, afegãos e iranianos (persas)não são sequer árabes. Outros 30% de muçulmanos estão nosubcontinente indiano (Índia e Paquistão), 20% no norte da África,17% no sudeste da Ásia e 10% na Rússia e na China. Há minoriasmuçulmanas em quase todas as partes do mundo, inclusive nos EUA(cerca de 6 milhões) e no Brasil (entre 1,5 milhão e 2 milhões). A

maior comunidade islâmica do mundo vive na Indonésia. 

As raízes do islamismo são conflitantes com as origens docristianismo e judaísmo?Não. Assim como as duas outras grandes religiões monoteístas, asraízes do islamismo vêm do profeta Abraão. O profeta Maomé,fundador do islamismo, seria descendente do primeiro filho de Abraão,Ismael. Moisés e Jesus seriam descendentes do filho mais novo deAbraão, Isaac. Abraão, o patriarca do judaísmo, estabeleceu as bases

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do que hoje é a cidade de Meca e construiu a Caaba - todos osmuçulmanos se voltam a ela quando realizam suas orações. 

Os muçulmanos acreditam num Deus diferente?Não, pois Alá é simplesmente a palavra árabe para "Deus". A aceitaçãode um Deus único é idêntica à de judeus e cristãos. Deus tem omesmo nome no judaísmo, no cristianismo e no islamismo, e Alá é omesmo Deus adorado pelos judeus, cristãos e muçulmanos. 

Como alguém se torna muçulmano?Não é preciso ter nascido muçulmano ou ser casado com um praticanteda religião. Também não é necessário estudar ou se preparar

especialmente para a conversão. Uma pessoa se torna muçulmanaquando proferir, em árabe e diante de uma testemunha, que "não hádivindade além de Deus, e Mohammad é o Mensageiro de Deus". Oprocesso de conversão extremamente simples é apontado como umdos motivos para a rápida expansão do islamismo pelo mundo. A

 jornada para a prática completa da fé, contudo, é muito maiscomplexa. Nessa tarefa, outros muçulmanos devem ajudar noensinamento. 

Os muçulmanos praticam uma religião violenta ou extremista?

Uma minoria entre os cerca de 1,3 bilhão de praticantes da religião éadepta de interpretações radicais dos ensinamentos de Maomé. Entreeles, a violência contra outros povos e religiões é considerada umaforma de garantir a sobrevivência do Islã em seu estado puro. Para amaioria dos seguidores do islamismo, contudo, a religião muçulmana éde paz e tolerância. 

O Islã oprime a mulher?A base da religião muçulmana não determina qualquer tipo dediscriminação grave contra a mulher. No entanto, as interpretações

radicais das escrituras deram origem a casos brutais. A opressãocontra a mulher é comum nos países que seguem com rigor a Sharia, alei islâmica, e têm tradições contrárias à libertação da mulher. Assim, oproblema da opressão à mulher muçulmana não é causado pela crençaislâmica em si - ele surgiu em culturas que incorporaram tradiçõesprejudiciais às mulheres. Um ótimo exemplo disso é o fato de que ouso de véus e a adoção de outros costumes que causam estranheza noOcidente muitas vezes são mantidos por mulheres mesmo quando não

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há nenhuma obrigação. Ou seja: os hábitos estão integrados àsculturas, não necessariamente à religião. 

Os muçulmanos são mais atrasados do que os povosocidentais?Durante séculos, as civilizações do Islã foram muito superiores àsocidentais. A combinação de idéias orientais e ocidentais provocougrandes avanços na Medicina, Matemática, Física, Arquitetura e Artes,entre outras áreas. Muitos elementos importantes para o avanço dohomem, como os instrumentos de navegação marítima e os sistemasalgébricos, surgiram no Islã. Nos últimos séculos, contudo, os povos doocidente conquistaram a supremacia das novas descobertas. A religião

islâmica não pode ser apontada como origem do abismo crescenteentre algumas potências do Ocidente e alguns países subdesenvolvidosdo Islã. O fundamentalismo muçulmano, contudo, é visto por muitosespecialistas como enorme barreira ao avanço destes povos orientais. 

O Islã é um obstáculo para a democracia?Os especialistas se dividem em relação a esse assunto. Para muitos, areligião e cultura islâmica formou sociedades em que os princípiosdemocráticos não ganham espaço nem atraem as pessoas. Quemacredita nessa linha de pensamento consideram que é inútil tentar

impor regimes democráticos no Islã - a própria população não estariadisposta a abraçar a mudança. Mas outros analistas dizem que oislamismo não impede o florescimento da democracia, e que os paísesmuçulmanos têm ditaduras e monarquias por causa de outros fatores.Seja qual for a explicação, o fato é que as democracias são raras noIslã: só a Indonésia, a Turquia e Bangladesh têm esse tipo de regime.

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GuiaLista de termos, lugares, grupos e personagens ligados ao assunto  

• Akhirah: Crença na vida após a morte, parte importante da fé islâmica

• Alá Akbar: "Deus é grande"

• Alá: Palavra que significa "Deus" em árabe (não é o nome de um deusdiferente dos outros)

• Azan: Convocação à oração dos muçulmanos

• Bismillah: "Em nome de Deus", verso usado pelos muçulmanos parapedir a bênção divina. Aparece no início de quase todas as suratas doCorão

• Caaba: Construção rochosa localizada no centro da grande mesquita deMeca e ponto focal das orações muçulmanas. Teria sido erguida porAbraão

• Cinco pilares do Islã: As obrigações que o muçulmano deve cumprirpara seguir sua fé

• Corão: O livro sagrado do Islã, com as revelações de Deus ao profetaMaomé

• Din: A religião e o estilo de vida do Islã

• Eid-Al-Adha: Festa que coincide com a peregrinação anual a Meca

• Eid-al-Fith: Festa celebrada no fim do mês do Ramadã, a principal dareligião

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• Eid-al-Ghadir: Aniversário da declaração de Maomé indicando Ali comoseu sucessor, comemorado apenas pelos xiitas

• Fard: Obrigação, algo que deve ser feito em nome da fé

• Hadith: Um discurso, mensagem, ação ou história do profeta Maomé,relatado pelos seus contemporâneos

• Hafiz: Pessoa que sabe todos os versos do Corão

• Haj: A peregrinação anual a Meca, um dos cinco pilares do Islã. Omuçulmano saudável e com condições financeiras deve fazer o haj pelomenos uma vez na vida

• Halal: Algo que o muçulmano pode fazer ou comer

• Haram: Algo que o muçulmano não deve fazer ou comer

• Hégira: A migração de Maomé e seus seguidores de Meca para Medina,para escapar da perseguição às suas crenças. A migração inaugura oislamismo é marca o início de seu calendário

• Hijab: Traje típico islâmico usado pelas mulheres para "proteger suamodéstia", como manda o Corão. Seu tamanho varia de acordo com astradições regionais

• Iftar: Desjejum

• Ihram: Estado de pureza espiritual exigido dos muçulmanos quedesejam fazer a peregrinação a Meca

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• Imã: Professor, clérigo ou figura que lidera uma oração muçulmana

• Islã: Conjunto dos povos de civilização islâmica, que professam oislamismo. Significa "rendição" ou "submissão" em árabe

• Islamismo: A religião dos muçulmanos

• Jihad: A luta e o esforço de um seguidor da religião para viver a féislâmica da melhor forma possível e defender o Islã, mesmo que issosignifique o uso da força

• Madraçal: Escola dedicada a formar e doutrinar meninos muçulmanos

• Masjid: Sinônimo para mesquita

• Mawlid Al-Nabi: Festa do aniversário de nascimento de Maomé

• Meca: Cidade sagrada do islamismo, onde Maomé nasceu e para onderetornou depois de fundar o islamismo

• Medina: A segunda cidade sagrada do islamismo, para onde Maoméfugiu quando foi perseguido

• Mesquita: Local onde os muçulmanos fazem suas orações em conjunto

• Mihrab: Nicho aberto em todas as mesquitas para apontar a direção deMeca

• Minaret: A torre da mesquita, de onde é feita a convocação para asorações

• Minbar: Púlpito de uma mesquita

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 • Muçulmano: Seguidor da fé islâmica

• Muezzin: O religioso que convoca os muçulmanos para as orações

• Niyya: Declaração sincera da intenção de glorificar Deus, feita emsilêncio

• Quiblah: A direção de Meca

• Rakah: Conjunto de movimentos do ritual de orações, ou salah

• Ramadã: Mês sagrado dos muçulmanos

• Sadaquah: Fazer doações voluntárias para caridade

• Salah: Ritual obrigatório de cinco orações por dia

• Salat-ul-Juma: As orações de sexta-feira, dia sagrado dosmuçulmanos, nas mesquitas

• Saum: Jejuar durante o dia

• Shahadah: A declaração de fé ("Não há outra divindade além de Deuse Mohammad é seu Mensageiro")

• Sharia: Conjunto de leis islâmicas, tratando de costumes e da vida emsociedade

• Sufismo: Movimento místico dentro do islamismo

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• Sujud: Posição de oração em que testa, nariz, mãos, joelhos e dedosdo pé devem tocar o chão

• Sunita: O principal tronco da religião, concentrando 90% dosmuçulmanos

• Surata: Capítulo do Corão

• Takbir: O processo de se concentrar numa oração e ignorar o que estáao redor

• Tawaf: Dar sete voltas na Caaba durante o haj

• Wudu: O ritual de lavar as mãos antes das orações diárias

• Xiita: O segundo maior grupo dentro da religião, concentrando 10%dos muçulmanos

• Zakat: Doação anual de parte das riquezas acumuladas por ummuçulmano

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CronologiaOs principais fatos da trajetória religiosa e política do islamismo

Origens (570-632) 

• 570: nasce, em Meca, o profeta Maomé• 595: Maomé se casa com Khadija• 611: o profeta começa a receber a revelação do Corão• 622: Maomé e seus seguidores migram para Medina; começa ocalendário islâmico

• 630: os discípulos do profeta conquistam Meca e Maoméretorna à sua terra• 632: Maomé morre 

Formação e expansão (632-661) 

• 632-634: califado de Abu Bakr, sucessor de Maomé; o Islã seexpande rumo ao Egito, Síria e Irã• 634-644: califado de Umar, o segundo sucessor; o texto doCorão é lançado• 644-656: califado de Uthman, o terceiro sucessor• 656-661: califado de Ali, o quarto sucessor 

Islã Clássico (661-1258) 

• 661-750: dinastia Umayyad; o Islã cruza os mares e chega àEspanha e Índia

• 680: fundação do xiismo• 750-1258: dinastia Abbasid• 800-900: texto das Hadith é compilado• 909-1171: dinastia Fatimid no Egito• 1095-1270: cruzadas cristãs na terra santa 

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Últimos impérios (1258-1918) 

• 1200-1526: sultanato de Dehli no norte da Índia• 1350-1680: estados muçulmanos no sul da Índia• 1380-1918: Império Otomano• 1453: otomanos conquistam a cristã Constantinopla, que passaa se chamar Istambul• 1492: cristãos expulsam os últimos muçulmanos da Espanha• 1501-1799: dinastia Safavid no Irã• 1526-1857: dinastia Mughal na Índia• 1654: concluída a construção do Taj Mahal

• 1798: Napoleão invade o Egito• 1815-1900: cristãos colonizam o norte da África e o OrienteMédio 

Período moderno (1918-) 

• 1918: Império Otomano é dividido entre potências européias• 1919-1984: países muçulmanos deixam de ser colônias doOcidente• 1928: fundada a Irmandade Muçulmana, primeiro grupoextremista• 1948: guerra entre árabes e israelenses• 1964: fundação da Organização para Libertação da Palestina• 1979: Revolução Islâmica do Irã• 1996: milícia Talibã toma o poder no Afeganistão e cria regimeislâmico mais rigoroso da Terra• 2001: ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 contra osEUA; guerra no Afeganistão• 2003: EUA atacam o Iraque e derrubam o ditador SaddamHussein; começa ofensiva para democratizar o mundo islâmico 

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FrasesDeclarações marcantes no Islã, dos extremistas aos moderados

"Islã é a solução"Lema dos líderes e seguidores da Revolução Islâmica do Irã (1979) 

"Se a carnificina que testemunhamos em 11 de setembro fossetípica da religião, e se o Islã realmente justificasse tal violência,seu crescimento e presença na Europa e nos EUA seria umaperspectiva aterradora. Felizmente, esse não é o caso."Karen Armstrong, escritora americana, autora de vários livros sobre a

religião (2001) 

"O clero e os fundamentalistas ensinam uma história errada doislã, olhando apenas para o autoritarismo e o militarismo dopassado. Por que nunca falam no verso corânico que diz que afé não tem valor se for imposta à força?"Tarik Ali, romancista paquistanês que reside na Inglaterra (2000) 

"O Islã pode ser interpretado de várias formas. A pergunta talveznão seja o que o Islã fez com os muçulmanos, mas o que os

muçulmanos fizeram com o Islã."Bernard Lewis, pesquisador especializado em Oriente Médio (2003) 

"Onze coisas são impuras: a urina, o excremento, o esperma, otutano, o sangue, o cão, o porco, o homem ou a mulher nãomuçulmanos, o vinho, a cerveja e o suor de camelo que comeexcrementos."Aiatolá Khomeini, líder da Revolução Islâmica do Irã (1979) 

"Todas as religiões produziram terroristas, incluindo o

cristianismo e o judaísmo. O extremismo islâmico é responsável,hoje, pela maioria dos atentados, e há várias razões para isso. Boaparte dos países muçulmanos é governada por regimes ditatoriais,que só fizeram aumentar o sentimento de frustração. É precisolembrar que os EUA sempre preferiram apoiar esse tipo degoverno."Jessica Stern, especialista americana em terrorismo (2003) 

"Os moradores dos países islâmicos são escravizados. Devemospenetrar em seu coração, com a verdade libertadora do

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Evangelho."Luis Bush, pregador cristão americano (2003) 

"Os não-muçulmanos deverão ter uma marca de diferenciação emseus trajes para que possam ser identificados."Maulawi Abdul Wali, ministro da Promoção das Virtudes e da Supressãodos Vícios, do extinto governo Talibã do Afeganistão (2001) 

"Se as vozes moderadas do Islã não modernizarem sua cultura esua fé, pode ser que os ‘Rushdies’ tenham de fazê-lo por elas."Salman Rushdie, escritor condenado à morte em 1989 pelos líderes doIrã por causa de seu livro Versos Satânicos, em artigo no The New YorkTimes (2002) 

"No Alcorão há várias citações exigindo o uso do véu."Sultaana Freeman, cidadã americana convertida ao islamismo, queentrou na Justiça em busca da permissão para não tirar o véu ao posarpara o retrato de sua carteira de motorista (2003) 

"Todos os esforços devem ser concentrados em combater, destruire matar o inimigo até que, pela graça de Alá, estejacompletamente aniquilado."Osama bin Laden, dissidente saudita e líder da rede terrorista Al Qaeda

(1996) 

"A esmagadora maioria da sociedade saudita apóia Osama binLaden."Saad al-Fagih, dirigente do Movimento por uma Reforma Islâmica naArábia, um grupo de oposição à família real saudita com sede em Londres(2002) 

"A guerra vai produzir uma centena de Bin Ladens."Hosni Mubarak, presidente do Egito, antes da invasão americana ao

Iraque - a segunda guerra entre os EUA e um país muçulmano em apenasdois anos (2003) 

"A elite intelectual nos países árabes não vê diferença entre osvalores da democracia ocidental e os prescritos nos livrossagrados do Islã. Dignidade humana, império da lei e a limitaçãodo poder do Estado estão claramente expostos no Corão."Abdulwahab Alkebsi, diretor executivo do Centro para Estudos do Islã ea Democracia e pregador da moderação no Oriente Médio (2003) 

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"A comunidade muçulmana precisa decidir se quer fazer as pazescom a modernidade."

Francis Fukuyama, historiador americano (2002) 

"Os líderes fundamentalistas são demagogos. Eles sabemperfeitamente que não existe algo como 'a volta às raízes do Islã'.Utilizam as crenças das pessoas para tecer discursos ideológicos eimplementar políticas retrógradas."Tahar Ben Jelloun, escritor marroquino (2002) 

"Quase todo muçulmano acha que não teve papel algum naconfiguração do sistema mundial em vigor, na fixação de seusvalores, na montagem de suas regras. Fascinados pelo mundocontemporâneo, alguns também se assustam com ele. E reagemde maneiras diversas."Amir Taheri, escritor e jornalista iraniano, editor da revista PolitiqueInternationale, publicada em Paris (2002) 

"Um 'infiel' pode se converter e se livrar da inferioridade que osepara dos 'fiéis'. Já a inferioridade da mulher é imutável."Leila Ahmed, especialista em estudos da mulher e do Oriente Próximoda Universidade de Massachusetts, dos EUA (1992) 

"A força do Islã está no fato de que é uma religião extremamenteacessível. Não há hierarquia, a fé pode ser praticada em qualquerlugar e não exige muito engajamento de seus adeptos."Frei Betto, dominicano brasileiro, na época em que o Islamismo tornou-se a religião mais praticada do mundo (1999) 

"A despolitização do Islã é a urtiga que todas as sociedadesmuçulmanas terão de agarrar com as mãos para poder se tornarmodernas."Salman Rushdie, escritor, para quem a grande questão levantada pela

guerra ao terror é o Islã (2001) 

"A turba que se apressa a pôr a culpa no Islã tem, obviamente, razãonum certo sentido. A atitude dos fundamentalistas contraria a lógicada globalização e, mais cedo ou mais tarde, alguma das partes teráde ceder. Porém, se a história serve para alguma orientação, quemvai ceder, no fim, será a religião reacionária, não o progressotecnológico. Não existe uma essência do Islã eterna e imutável,enraizada no Corão, que o condene a uma moralidade medieval."Robert Wright, ensaísta e autor de diversos livros (2002) 

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INFOGRÁFICOS E MAPAS

O mundo é de Alá02 de junho de 1999

Com a conquista de católicos, o islamismo se transforma namaior religião do mundo

Uma revelação estatística paira sobre ospreparativos para as comemorações dos 2.000

anos do cristianismo. A hegemonia da IgrejaCatólica Romana começará o novo milênio maisabalada do que nunca. A maior religião do mundopassou a ser o islamismo. O número demuçulmanos supera o de católicos romanos. O islãcongrega 1,14 bilhão de fiéis. São 100 milhões depessoas a mais que o rebanho do papa João PauloII. Há várias razões para as mudanças ocorridas

no ranking da fé. Não há religião que cresça no ritmo do islamismo –16% a mais de crentes a cada ano. Há de se levar em conta que mais

da metade dos muçulmanos vive na Ásia, onde as taxas de natalidadesão muito altas. A maior parte dos católicos, por sua vez, se concentrana Europa, Estados Unidos e América Latina, onde o crescimentodemográfico vem caindo nos últimos anos. Os fatores demográficos,porém, não explicam toda a força da expansão islâmica. Mesmo empaíses de forte tradição cristã cresce a presença muçulmana. Em 1970,havia na França apenas onze mesquitas. Quase trinta anos depois, ostemplos já somam mais de 1.000. No início da década de 70, aInglaterra contava com 3.000 muçulmanos. Agora, eles são 1 milhão.Até no Brasil, um dos maiores países católicos do mundo, o Alcorão,livro sagrado do islã, atrai cada vez mais adeptos. Há quarenta anos acomunidade árabe possuía uma única mesquita. Hoje são 52 templos,espalhados por todo o país e freqüentados por cerca de 2 milhões defiéis.

"O aumento do contingente nos países ocidentais ocorreu graças àadesão de ex-cristãos convertidos à fé islâmica", diz Faustino Teixeira,professor de ciência da religião da Universidade Federal de Juiz deFora. "A conquista de novos adeptos alavancou a liderança

Paulo Martins reza emmesquita de São Paulo:contato direto com Deus

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muçulmana." Duas vezes por dia o computador do corretor de segurosPaulo Martins emite um pequeno sinal luminoso. Nesses momentos, ele

interrompe o trabalho e ora. Em um tom quase inaudível, voltado paraa cidade de Meca, na Arábia Saudita, Martins recita orações em árabe.Repete as preces cinco vezes por dia. Às sextas-feiras, ele reza emcompanhia de centenas de outros brasileiros em uma mesquita em SãoPaulo. Nascido em uma família de forte tradição católica, Martins, de41 anos, abandonou suas origens e se converteu ao islamismo em1995. "No catolicismo, sempre me senti distante de Deus", diz ele."Com o islamismo, a aproximação com o sagrado não depende deterceiros. Quando eu rezo, falo diretamente com Deus."

O contato direto com Alá, sem intermediários – esse é um dos grandestrunfos do islamismo na conquista de cristãos para as fileirasmuçulmanas. "A força do islã está no fato de que é uma religiãoextremamente acessível. Não há hierarquia, a fé pode ser praticada emqualquer lugar e não exige muito engajamento de seus adeptos",analisa o dominicano frei Betto. Os ensinamentos contidos no Alcorãotêm força de lei. Os muçulmanos acreditam na ressurreição dosmortos, no inferno e no paraíso. Misericordioso, benévolo, perdoante,clemente, pacificador – o Deus do islã é um só, mas pode seridentificado por 99 adjetivos expressos no Alcorão. Um ditado repetido

entre os fiéis diz que "Deus está mais perto de nós do que nossa veia jugular". São metáforas simples mas repletas de sentido místico efascinantes para muitos. Muito mais atrativas e confortadoras do que aformalidade católica e a exaltação evangélica.

Desde 1979, quando a revolução iraniana, liderada pelo clero xiita,derrubou uma monarquia pró-Ocidente, o islã virou sinônimo defanatismo e terrorismo. Os radicais existem, mas são minoria. NaArábia Saudita, berço do islamismo, quem rouba tem a mão cortada.Quem mata injustamente é executado em praça pública. Sãoresquícios de um radicalismo cada vez menos praticado. Hoje, amaioria dos países muçulmanos reconhece os direitos das mulheres. Aelas já é permitido trabalhar fora. Os tradicionais véus que cobrem orosto e a cabeça das mulheres convivem em paz com calças jeans etênis da moda. Com a bênção de Alá.

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Sob o manto do fanatismo01 de março de 2000

O fundamentalismo islâmico, que ameaçasubverter o mundo com as bombas dosterroristas, perde fôlegoe enfrenta uma contra-revolução na suamaior fortaleza, o Irã

O islã tem catorze séculos de existência,mas é relativamente recente a preocupaçãodo mundo com os aspectos de fanatismopolítico que cresceu nas comunidadesislâmicas. O fenômeno tem pouco mais deduas décadas e sua forma é uma guerrasanta cujo projeto é tomar o poder, varrer ainfluência ocidental e estabelecer o reino deAlá na Terra. O novo credo espalhou-secomo uma labareda entre o 1,2 bilhão defiéis, fatia que representa um quinto dahumanidade. Produziu ditaduras religiosas medievais, dadas ao

terrorismo em nome de Deus. Logo se profetizou que a existência deuns cinqüenta países com populações majoritariamente muçulmanas,além de algumas dezenas deles com grandes minorias de seguidoresde Alá, poderia evoluir como uma nova ameaça global, comparável emalguns aspectos a outra ideologia messiânica do século XX, ocomunismo. Estudiosos apressaram-se em prever um titânico choquede civilizações, ainda mais irreconciliável que a falecida Guerra Fria.

O ápice do furor revolucionário foi a derrubada da monarquia e acriação da primeira república islâmica no Irã, em 1979. A tomada do

poder num país de importância estratégica e dono de 9% da reservamundial de petróleo pôs em marcha uma cadeia de acontecimentosque até hoje ameaça mudar a ordem mundial. Nesta virada do milênio,uma nova revolução está em marcha no país que serve de vitrine àteocracia islâmica. Só que esta revolução agora vai no sentidocontrário da anterior. Uma nova geração, moderada e moderna,decidiu guardar a espada e tenta dar uma face humana ao regime dosaiatolás. O que está ocorrendo no Irã vai ter influência em todo ouniverso muçulmano. É ali que se pôde observar com mais clareza

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como funciona um regime islâmico que aplica a lei do Corão a todos osaspectos da vida do povo. O resultado é desencorajador e essa

conclusão tem a força de uma prova de laboratório.Além de seu poder religioso, como intérpretes da vontade de Alá, osaiatolás se firmaram no papel de donos do aparelho de Estado, dostribunais e dos canhões. Mas, finalmente, começam a perder a lutapela alma do povo iraniano. Na sexta-feira 18, o voto popular colocoupara fora uma chusma de clérigos que há duas décadas dava as cartasno Parlamento do Irã. A sede de mudança ficou demonstrada de formacristalina: 70% dos deputados eleitos estão alinhados com a alamoderada e reformista do presidente Mohammed Khatami, o inimigo

número 1 da linha dura dos turbantes negros. Só a Frente deParticipação Islâmica, liderada por Reza Khatami, irmão do presidente,conquistou 141 cadeiras. Vinte e um anos depois de o aiatolá RuhollahKhomeini derrubar o xá Reza Pahlevi e instalar uma ditadura religiosa,os mais de 70 milhões de iranianos estão fartos do clero que manda nopaís e em cada detalhe de suas vidas. O resultado das urnas é umadessas reviravoltas que os historiadores costumam aproveitar comoum marco que sinaliza o antes e o depois. O antes era uma nação decostumes medievais, opressão política e furor místico de meter medoaté na superpotência americana. O que se tem agora é a contraprova

de que o fanatismo islâmico – o mesmo que parecia prestes a pôr fogono mundo – está perdendo fôlego. Dentro e fora do Irã, respira-se umar um pouco mais leve.

Os iranianos já tinham expressado sua insatisfação nas eleições parapresidente, em 1997. Khatami foi eleito com mais de 70% dos votos,massacrando o adversário abençoado pelos ultraconservadores. Elepróprio é um clérigo, filho de um aiatolá famoso e usa com orgulho oturbante preto daqueles que se acreditam descendentes diretos doprofeta Maomé. A diferença é que reza por um catecismomoderadíssimo. Ministro da Cultura em 1992, ele se pôs a liberar livrose a permitir debates públicos sobre temas tabus. Terminou expurgadopor "liberalismo" e "negligência". Dois em cada três iranianos são

 jovens demais para se lembrar das frustrações da vida sob amonarquia do xá. Eles só conhecem as frustrações sob os aiatolás eesperam que Khatami promova uma reforma de alto a baixo narepública islâmica. Querem coisas complexas, como restabelecer asupremacia da lei civil sobre o direito canônico. E também restaurardireitos triviais do cotidiano, como namorar, vestir gravata e usar saia

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curta. Se isso está demorando é porque, apesar do formidável valorsimbólico da votação, o presidente tinha até agora limitada liberdade

de ação. Não controlava o Parlamento, nem os órgãos de segurança eo Exército. Mesmo a economia, por ser em grande parte nacionalizada,está sob o domínio da caciqueria religiosa. A maioria no Parlamentosignifica que agora o Irã dispõe de uma base sólida na luta peladescompressão política e religiosa. Mas é preciso reconhecer: osiranianos ainda estão longe de resolver a polêmica sobre quem mandano país.

No Irã, como em todo o mundo muçulmano, a questão vai muito alémde desacordos políticos. Khatami sustenta que a vontade popular,

expressa pelo voto, deve prevalecer sobre a opinião dos sábios nasmesquitas. Trata-se de um conceito aceito universalmente, mas para oclero iraniano é mais que subversivo, beira a heresia. Desde o início doséculo XX, quando a influência ocidental entrou na terra dos minaretes,teólogos e políticos engalfinham-se em torno de uma dúvida: ademocracia pode existir numa verdadeira república islâmica? Osaiatolás iranianos dizem que não. Num Estado islâmico perfeito, aúnica lei é a de Alá e daqueles que governam em seu nome. "O próprioconceito de liberdade do homem pode ser visto como uma afronta àúnica lei legítima, a de Deus, porquanto o islã dispõe de regras para

qualquer assunto espiritual ou temporal", escreveu um especialista, oinglês David Hirst.

O desastre eleitoral da ortodoxia iraniana reflete um fenômeno maisabrangente, o declínio do islã militante, aquele das bombas assassinas.O fanatismo político islâmico que o mundo conheceria a partir deatentados terroristas e do controle total das sociedades pelo clero nãonasceu em Teerã, mas com a Fraternidade Muçulmana no Egito, nosanos 20. Demorou meio século para o grito de "O islã é a solução"tornar-se uma ideologia forte no mundo muçulmano. Outro problema:o mundo muçulmano adora fingir unidade, mas é um saco de gatosétnico e político, onde se misturam povos e culturas totalmentediferentes uns dos outros.

Os governos em alguns países de maioria muçulmana olham para oislã político com temor e aversão ainda maiores que os sentidos nospaíses de tradição européia e cristã. Em 1982, o governo Hafez Assadmassacrou 20 000 pessoas na cidade síria de Hama, considerada umbastião da Irmandade Muçulmana. O Egito recém-proclamou vitória

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sobre o terrorismo islâmico, que durante uma década tentou arruinar aindústria turística do país chacinando visitantes estrangeiros. A

Turquia, talvez o mais democrático país muçulmano do Oriente Médio, já saiu dos trilhos para impedir que a oposição islâmica(moderadíssima) assumisse o poder conquistado nas urnas. Omomento é contraditório, pois, ao mesmo tempo em que ofundamentalismo armado perde fôlego, o islã, como fé e cultura, passapor um vibrante processo de renascimento. A noção de que a religiãodeve ter um papel importante na vida pública tem raízes profundas enão pode ser ignorada pelos governantes dos países de populaçãomuçulmana. Como reagem à religiosidade de seus habitantes depende,contudo, das peculiaridades de cada país.

O que se conhece como mundo islâmico é uma área vasta, que vai daEuropa ao Pacífico, no outro lado do planeta. Um único país, o Irã, éabsolutamente teocrático, ou seja, é dirigido pelo clero muçulmano apartir não de leis votadas em parlamento, e sim das regras do Corão. Boa parte dos 23 países árabes é governada por presidentes compreocupações religiosas apenas formais. Ainda que disponham depoder de decisão equivalente ao dos aiatolás do Irã, Hafez Assad, naSíria, Hosni Mubarak, no Egito, e Saddam Hussein, no Iraque, se fazemreeleger periodicamente em simulacros de eleições, mantendo uma

democracia de fachada. O zelo religioso é várias vezes mais intensonas monarquias do Golfo Pérsico. Guardiã dos lugares santos, a famíliareal saudita inventou a polícia da moralidade, que os iranianoscopiariam mais tarde. Mulher que sai de casa sem véu apanha na ruade chicote. Uma embaixatriz brasileira levou um pontapé no traseironum shopping de Riad, capital da Arábia Saudita, porque deixou o véusobre cabeça deslizar para cima dos ombros. Adúlteras são executadasem vários países muçulmanos rígidos, como o Afeganistão. Mesmo opai que mata uma filha, por surpreendê-la em relação sexual fora do

casamento, não costuma ser condenado a prisão.A diversidade das formas de governo é sempre citada, entre os árabes,como prova de que o islamismo não é necessariamente sinônimo deditadura. Dizem eles que, se há pouca democracia no Oriente Médio,isso decorre mais da história de cada país do que da religião. Há certaverdade nisso. Mesmo naqueles países onde os cléricos não tomaram opoder, no entanto, há quase sempre partidos islâmicos, mais ou menosextremados, na oposição política. Não costumam ter sucesso nasurnas. Nas desastrosas eleições de 1992, na Argélia, cujo

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cancelamento levou à guerra civil com 100.000 mortos, a FrenteIslâmica recebeu apenas 3,25 milhões dos 13 milhões de votos. Onde

ganhou, como ocorreu na Turquia, declinou nas eleições seguintes. Abaixa popularidade dos islâmicos fundamentalistas nesses lugaresdecorre, em parte, da sombria invocação dos chamados Versos daEspada. Trata-se de uma interpretação seletiva do Corão, com ênfaseno apelo à Guerra Santa. "O clero e os fundamentalistas ensinam umahistória errada do islã, olhando apenas para o autoritarismo e omilitarismo do passado", disse a VEJA o romancista paquistanês TarikAli, que vive em Londres. "Por que nunca falam no verso corânico quediz que a fé não tem valor se for imposta à força?" O fato é que apostura belicosa que se tornou a palavra de ordem no islã significa

encrenca em toda parte. Em fevereiro, a introdução da sharia, a leiislâmica, em dois Estados no norte da Nigéria deflagrou uma guerratribal com a população cristã, minoritária. Há também conflitosconfessionais na Indonésia e perseguição oficial aos cristãos noPaquistão.

A adoção da sharia faz parte do discurso oposicionista em todo omundo islâmico. Mas quando isso ocorre os excessos assustam atéquem está disposto a colaborar. Os iranianos sentiram na carne o quesignifica reduzir a religião à observância cega de certas normas que

proíbem o álcool, exigem vestuário de freira para as mulheres e nãoadmitem sexo nas condições aceitas em países ocidentais. Um grupode estudantes fanáticos e com origem tribal, o Taliban, tomou a maiorparte do Afeganistão e adotou a sharia ao pé da letra. Baniu o corte debarba e a música e proibiu as mulheres de trabalhar fora de casa. Háuma longa distância entre o exagero bárbaro do Taliban e o exagerorefinado dos aiatolás. Os dois regimes são, por sinal, inimigos mortaise já estiveram perto da guerra aberta. "Como fundamentalista sunita,o Taliban é profundamente antixiita", explica o professor Houchang E.

Chehabi, da Universidade de Boston. "Se o Irã abrandar o regime, osfundamentalistas sunitas podem entender isso mais como um fracassoda seita rival do que como um exemplo a ser seguido."

A revolução iraniana começou como uma explosão espontânea,reunindo todas as forças políticas e os grupos sociais descontentes coma monarquia. O regime tornou-se rapidamente um pesadelo. Ossacerdotes (mulás) saíram matando e exilando todos que pudessemser oposição, de comunistas a muçulmanos moderados. Logo fizeram oaparato repressivo do xá parecer coisa de criança. Os mulás também

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não tinham nenhum truque para sanar as mazelas dosubdesenvolvimento. Talvez não exista mesmo como aplicar na prática

uma economia baseada na justiça islâmica. O clero foi além, contudo,aproveitando-se das propriedades confiscadas para enriquecer. O Irã,em que o petróleo responde por 85% das exportações, foi esmagadopela queda no preço do barril, pelas sanções internacionais (impostasporque o regime financiava o terrorismo no exterior) e pelainterminável guerra contra o Iraque. Não houve investimentos ematividade produtiva e o desemprego tornou-se crônico.

Na última década, o governo iraniano produziu alguns benefícios:pavimentou estradas, melhorou a distribuição de eletricidade e de

água. No final dos anos 70, só metade dos jovens iranianos eramalfabetizados. O porcentual cresceu 93% em duas décadas. O númerode formandos universitários saltou de 430.000 para mais de 4 milhões.Com o xador negro, as iranianas tornaram-se o estereótipo daopressão xiita. Em contrapartida, são as mulheres com maior atividadepolítica no Golfo Pérsico e, talvez, no mundo islâmico. Mais de 40%dos estudantes universitários são do sexo feminino. É verdade que arevolução também baixou a idade mínima para uma mulher se casarpara 9 anos. A ironia é que a revolução produziu uma geração bem-educada, ansiosa por mergulhar na cultura globalizada. Iranianos,

homens e mulheres, querem hoje usar roupas elegantes, expor suasantenas parabólicas e namorar em público – exatamente o que éproibido.

O fracasso da única teocracia deu impulso a novas formulações sobre oEstado islâmico moderno. Muitas das discussões mais profundas dentrodo islã estão ocorrendo nos jornais, tribunais e salas de aula iranianas.Mesmo clérigos e intelectuais que foram próximos a Khomeini estãoagora colocando em dúvida as bases do pensamento religioso sobre oqual construíram a República Islâmica. A luta dos iranianos paraliberalizar o regime (ninguém sugere publicamente que a teocraciapode ser abolida) é um dos movimentos mais fascinantes da virada domilênio. Ao derrubar o xá, Khomeini atingiu pela primeira vez naHistória moderna o objetivo comum a todos os muçulmanos: tomar opoder político em nome de Alá. A atual geração está tentando devolvero poder político ao povo, sem precisar jogar Alá pela janela.

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A vida atrás dos véus

O mais enérgico movimento social a emergir no Irã desde 1979 foi o dasmulheres. Apesar de obrigadas a esconder os cabelos com lenços pretos, asiranianas conquistaram posições importantes no governo, na universidade ena imprensa. Não é uma situação comum no mundo islâmico, sobretudo nospaíses árabes. Ao contrário, as mulheres são privadas de direitos básicos namaioria deles e não há notícia de nenhuma organização pelos direitosfemininos que tenha sobrevivido por muito tempo. Na Arábia Saudita, elasnão podem dirigir automóvel ou sentar-se sozinhas num restaurante. Emvários países, entre eles o Irã, seu testemunho na Justiça vale metade do deum homem. O Egito, que no início do século XX aboliu o uso do véu e nosanos 50 adotou o voto feminino, não permite que a mãe passe a

nacionalidade egípcia ao filho. Há hoje 80 000 apátridas no país, todos filhosfora do casamento ou de pai desconhecido. Na década passada, o Estadobaniu a mutilação genital, mas o hábito – cujo objetivo é privar a mulher doprazer sexual – continua amplamente difundido. Recentemente, para nãocontrariar a oposição islâmica, o governo retirou um projeto de lei quepermitiria às mulheres viajar para o exterior sem autorização escrita domarido.

A situação de inferioridade da mulher no Islã decorre, sobretudo, doscostumes patriarcais, mas a religião desempenha seu papel. Inspirada nos

preceitos do Corão, a lei concede ao marido o direito de repudiar a esposa,sem que ela possa contestar ou pedir pensão. Na situação inversa, o divórcioexige da mulher longas batalhas judiciais. Em muitas nações, a mãedivorciada só pode criar as filhas até os 12 anos e os filhos até os 10. Daí emdiante são entregues ao pai. Em vários países, a viúva não tem direito àherança do marido, repartida apenas entre a prole masculina. O próprio reida Jordânia está empenhado numa campanha contra os chamados "crimesde honra". São pais ou irmãos que matam a filha ou irmã solteira suspeita deconduta sexual imprópria e raramente são punidos. A polícia jordanianacoloca as jovens ameaçadas atrás das grades para evitar que sejamassassinadas pela própria família. Em todos os países árabes em que há

estatísticas disponíveis, a presença das mulheres no mercado de trabalhodobrou nos últimos vinte anos. Em vários existem mais mulheres quehomens nas universidades. Ainda assim, elas continuam inferiores perante alei e sem presença na política. A milícia fundamentalista Taliban, dona damaior parte do território do Afeganistão, foi mais longe. Proibiu as mulheresde trabalhar fora de casa, obrigou-as a cobrir todo o corpo – inclusive osolhos – com vestidões que escondem as formas femininas. Um tornozelo àmostra em local público pode ser punido com chibatada. Uma suspeita deadultério é morte certa, a pedrada.

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O mundo do Islã26 de setembro de 2001 

Um quinto da população mundial segue os mandamentos de Maomé,o profeta que queria conquistar o planeta para Alá 

Primeiro é preciso considerar que o Islã é o segundomaior grupo religioso do planeta. A grande maioria dosmuçulmanos está na Ásia e na África, mas entre osamericanos eles já são quase 7 milhões – e o númerode adesões é crescente. Depois, é preciso admitir que

os muçulmanos ocupam países paupérrimos, como oSudão, mas também controlam áreas que são grandesprodutoras de petróleo. E, finalmente, deve-se levarem conta que, embora os islamitas em sua maioriasejam pessoas pacíficas e generosas, há um gruporadical e violento cuja influência entre os seguidores deMaomé vem se tornando mais importante a cada ano.E que esse grupo foi capaz de explodir o World TradeCenter, ícone do capitalismo, matando mais de 6 000pessoas.

As faces do Islã são tão diversas como os países nosquais se estabeleceu ( veja mapa ).  Mas de maneirageral os muçulmanos formam um povo profundamentereligioso. Seguem os mandamentos de Maomé, oprofeta que nasceu em 570, em Meca, na ArábiaSaudita. Maomé viveu os primeiros cinco anos dainfância no deserto. Depois, foi ser pastor de carneirose, quando completou 20 anos de idade, trabalhoucomo caravaneiro de uma viúva rica, Khadidja. Ela eradez anos mais velha que ele. Os dois se casaram, tiveram uma filha e,por volta do ano 612, Maomé começou a ter visões. Ele criou entãouma religião que absorveu toda a tradição judaica e cristã. Dizia queAbraão, Moisés e Jesus eram profetas de uma mesma linhagem. Elepróprio era o último e o mais importante dos profetas de Alá. Seusensinamentos, portanto, eram os que deveriam ser seguidos. E todo omuçulmano teria como missão espalhar a fé islâmica pelo planeta. 

MULHERMUÇULMANAEla tem de andar

com o corpo todocoberto, não podeestudar nemtrabalhar, não temdireito a herança e,em caso deadultério, éapedrejada. Osmuçulmanosacreditam queassim demonstramo apreço que têmpela mulher

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Nos ensinamentos de Maomé hápreceitos religiosos, regras para a

organização do Estado, instruções para orelacionamento entre pessoas e aténormas para o dia-a-dia do tipo: aspessoas devem cortar as unhascomeçando pelo dedo mínimo da mãodireita e terminando no polegar.Segundo sua doutrina, todo muçulmanonasce puro, e ganha o reino dos céus secumpre com suas obrigações, todasmuito bem definidas. Os cinco pilares da

religião islâmica são:

a propagação da crença num deus único;

a oração, que deve ser feita cinco vezes ao dia;

o jejum durante o mês do Ramadã (em que o Corão  foi revelado aMaomé);

o zakat, doação anual que todos estão obrigados a fazer ao governo

para redistribuição posterior;a peregrinação anual a Meca.

O problema está justamente no primeiro dos itens acima. Segundo oCorão, os crentes devem defender sua fé, divulgá-la e lutar pela justiçae pelo bem. Ocorre que, há cerca de três décadas, vem crescendo onúmero de grupos que interpretam o texto sagrado de forma radical epegam em armas para impor a fé islâmica. Hoje, todo o governosecular muçulmano enfrenta o desafio desses grupos radicais. Eles

reclamam não apenas que os líderes políticos abandonaram a lei doCorão,  mas que fizeram isso sem resolver os problemas crônicos dedesemprego, corrupção e desesperança que afligem seus povos. Osamericanos são odiados e atacados por seu apoio a Israel, a governosditatoriais, como o do xá Reza Pahlevi, do Irã (deposto em 1979), pormanterem tropas no território santificado da Arábia Saudita, berço doislamismo, e por serem o símbolo do capitalismo, que os maisconservadores consideram uma ameaça.

O XADORA falta de liberdade, a pobreza e adesesperança têm feito crescer oradicalismo islâmico entre os jovensmuçulmanos 

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A tradução da palavra Islã é "rendição" – rendição dos infiéis àdoutrina de Maomé. Os muçulmanos comuns, quando morrem, ficam

numa espécie de estágio intermediário aguardando o juízo final,quando será decidido se irão para o céu ou para o inferno. Mas a féislâmica reverencia os mártires da luta religiosa, que vão diretamentepara o céu, sem escalas – e o céu dos muçulmanos é maravilhoso. Nadescrição do texto sagrado, ele tem leitos incrustados com ouro epedras preciosas, onde os homens são servidos de frutas e bebidas desua predileção por jovens que fazem sexo, mas permanecem semprevirgens. Cada homem tem direito a 100 virgens.

Mulher, no universo muçulmano, é um ser especial. Tem de vestir uma

bata longa que esconda as formas do corpo e cubra o cabelo. Empaíses mais tradicionais, mulheres que deixam o lenço escorregar emlocal público são chicoteadas. Elas sofrem ainda outras restrições noIslã. Não podem estudar, trabalhar, discutir com seus maridos – aliás,é permitido a eles bater nas esposas. E, se ficam viúvas ou órfãs, nãotêm direito a herança. Essas são normas que vêm do século VII. Aindavalem em muitas regiões porque o Corão  é tido, entre os islamitas,como uma versão concreta do sagrado. Conforme a crençamuçulmana, o Corão  já existia, no céu, antes que Maomé pusesse aspalavras no papel. É, portanto, intocável. No capítulo que trata das

obrigações missionárias do povo, o Corão  esclarece: "Não hácompulsão no Islã". Os povos não podem ser convertidos pela força.Mas a força pode e deve ser usada para banir a hostilidade aoislamismo. O texto sagrado, está-se vendo, autoriza a guerra contra osinimigos do povo muçulmano. E ainda ensina: "Quando empreendida, aluta deve ser levada a cabo com vigor".

A história do Islã tem catorze séculos. Durante oito deles, osmuçulmanos dominaram um terço do mundo conhecido. Invadiramgrande parte da Europa e a Pérsia, chegaram à Indonésia. Naquelaépoca, eles formavam um povo ilustrado que impunha sua cultura emambientes medievais decadentes. Foi um tempo de glória. A força dosradicais muçulmanos, atualmente, está no apelo que fazem à memóriados tempos de prestígio de seu povo. E a uma interpretação meioenviesada do Corão. Em sua versão, o suicídio no campo de batalha éuma das espécies de martírio, em favor da fé, premiadas com asdelícias do céu. 

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Os pobres de Alá17 de outubro de 2001

A PERGUNTA Cabul, antes dos bombardeios: seria o Islã uma barreiraintransponível para o surgimento de uma sociedade rica,moderna e democrática? 

A fotografia acima mostra uma cena da capital do Afeganistão, Cabul, antesdo início da ofensiva militar americana. É uma imagem edulcorada, quasealegórica, da falta de perspectiva da população afegã. A pobreza,obviamente, não é uma exclusividade daquele país. E muito menos se tratade uma criação muçulmana. Mas, neste hiato politicamente incorreto que omundo vive, há uma pergunta que finalmente pode ser feita: seria o Islãuma barreira intransponível para o surgimento de uma sociedade rica,moderna e democrática? As estatísticas, se não respondem a tal questão,oferecem ao menos uma constatação: não há nenhuma nação com maioriamuçulmana que se situe entre as mais avançadas do mundo.

Ao contrário, a esmagadora maioria delas ocupa posições vexaminosas nascategorias que aferem o desenvolvimento humano e os graus de instrução ede liberdade da população ( veja quadro ). Nem mesmo os países do GolfoPérsico, que embolsaram centenas de bilhões de dólares nos últimos 25anos, por meio da exportação de petróleo, conseguiram (ou souberam, ouquiseram) melhorar o estado geral das coisas de maneira a incluir-se noclube dos desenvolvidos. Os petrodólares, na verdade, só serviram paraaumentar a concentração de renda e criar simulacros de modernidade em

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meio às areias escaldantes do deserto. Para se ter uma idéia, a família realsaudita detém 40% de toda a renda nacional.

Poder-se-ia culpar o catolicismo pelo atraso brasileiro, se o papa João PauloII – ou Frei Betto, tanto faz – legislasse sobre assuntos econômicos. Afinalde contas, padres de direita e de esquerda são, em linhas gerais, contra ocapitalismo e o anatematizam como se fosse o demo. Mas as batinas poraqui não têm muita voz, graças a Deus. O Brasil, assim como tantos outrosintegrantes do Terceiro Mundo, ainda está longe de ser um modelo desociedade harmoniosa por motivos estritamente laicos, que vão darapacidade da classe política a uma crônica falta de bom senso. No que serefere às nações islâmicas, no entanto, a religião espraia-se pelos camposeconômico, social e moral de maneira sufocante. E não se está falando

apenas dos regimes teocráticos, como o do Irã e o do Afeganistão. Mesmonos países com um governo descolado formalmente da hierarquia religiosa,essa distância não é suficiente para neutralizar a crescente ingerência deimãs, aiatolás e ulemás em assuntos que se encontram fora do âmbitoteológico. A exceção é a Turquia, que passou por um violento processo deocidentalização forçada na década de 20.

O problema é exatamente esse: entre osmuçulmanos, a religião não é parte, mascada vez mais o todo. Engana-se quemacha ser esse um pecado original. Ototalitarismo islâmico – uma outradesignação para o fundamentalismo quehoje Osama bin Laden encarna de formatão assustadora – é produto recente, temmenos de meio século, como notou o

 jornalista Fareed Zakaria, da revistaNewsweek . Ele foi adubado em terrenosecular e árabe. Nasceu no Egito, nadécada de 50, como resistência aoprocesso de modernização que o entãopresidente Gamal Abdel Nasser procurou

implementar a ferro e fogo. Nasser causou a reação fundamentalista aotentar, por meio de uma repressão feroz, divorciar completamente oEstado da religião muçulmana. Falhou, como está claro, principalmenteporque suas reformas nunca foram além do aspecto cosmético. E, aofalhar, abriu caminho para que o fundamentalismo ganhasse corpo dentroe fora das fronteiras egípcias.

MIRAGEM O hotel Burj Al Arab, nos EmiradosÁrabes: a arquitetura pode serarrojada, mas a paisagemverdadeira é de atraso 

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No Ocidente, a reforma protestante do século XVI engendrou uma éticaque, como demonstrou o sociólogo alemão Max Weber, acabaria porlibertar o espírito empreendedor das amarras católicas e impulsionar ocapitalismo. O fundamentalismo islâmico do século XX, e que adentra oXXI, é uma mentalidade que, do ponto de vista econômico e social, seoriginou da oposição cega a avanços de qualquer tipo. Alimenta-se dapobreza e, por isso mesmo, não pode ser apartado dela, sob pena dedesaparecer como uma miragem. Daí a razão de seu discurso serirracional – está sempre atrelado a causas genéricas e vagas, como o"pan-islamismo" e a "destruição do Grande Satã". Nunca se detém

sobre as questões que realmente interessam. Em seu grandemomento, a revolução iraniana de 1979, o fundamentalismo encontrousua tradução mais fiel numa frase do aiatolá Khomeini: "A revoluçãorefere-se ao Islã, e não ao preço dos melões".

O humorista Millôr Fernandes é autor deuma máxima preciosa: "Xadrez é um

 jogo chinês que aumenta a capacidadede jogar xadrez". Parafraseando Millôr, ofundamentalismo é um jogo árabe queaumenta a capacidade de serfundamentalista. Ele não encerra projetoque vise, pelo menos em tese, aodesenvolvimento de um povo. Nomáximo, oferece migalhasassistencialistas – um modo eficiente,aliás, de arregimentar os jovens sem

futuro que perambulam nas superpovoadas e caóticas metrópoles doOriente Médio. A um fundamentalista cabe tão-somente vagar noinferno, com a esperança de alcançar um paraíso que não existe. Estárespondida a pergunta do primeiro parágrafo. 

É SÓ PARA SAUDITA VER  A Fundação Rei Faisal, em Riad: nãoexiste nação muçulmana entre asmais avançadas do mundo 

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Fontes: População: ONU (2001)/Índice de liberdade: Freedom House (2000-01)/Ranking dedesenvolvimento humano: ONU (2000)/Liberdade de imprensa: Freedom House (2001)/Acesso àinternet: Freedom House (2001)/Porcentual da população analfabeta: ONU (2000)

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OPINIÃO

Ao meu amigo muçulmano

"O terrorismo é uma guerracontra a humanidade e deveser combatido por todos"

Henry I. Sobel

Caro amigo muçulmano, escrevo-lhe hoje com pesar no coração,

profundamente abalado com o hediondo atentado contra a sede daAssociação Mutual Israelita Argentina, Amia, em Buenos Aires, e com asbombas terroristas que explodiram em Londres. Escrevo-lhe para desabafare, ao mesmo tempo, para lhe oferecer consolo. Sei quanto sofro quandoradicais do meu lado praticam um ato de violência. Imagino que você devaestar sentindo agora a mesma angústia.

Embora não existam ainda provas conclusivas, há indicações de que oscriminosos pertencem a um grupo islâmico fundamentalista. Até o momento,dois dos tais grupos reivindicaram o atentado. É óbvio que pelo menos umdeles está mentindo, vangloriando-se à toa. Vangloriando-se de que, meuDeus? O que há de tão heróico em tramar a morte de crianças, mulheres ehomens desarmados? Não se derramou sangue de guerreiros, mas sanguede civis inocentes. Não se atacou um objetivo estratégico, mas um prédioonde trabalhavam mais de 100 pessoas, numa rua por onde passavamdezenas de transeuntes. Foi um atentado perverso, abominável, covarde.

O que me assusta - e certamente o assusta também, meu amigo muçulmano- é a selvageria do terrorismo contemporâneo, seu tenebroso grau debrutalidade. Antigamente, o terror era dirigido contra a pessoa supostamenteculpada dos males reais ou imaginários que os terroristas pretendiam

eliminar. Se algum inocente fosse ferido ou morto, era apenasacidentalmente. Hoje em dia, o alvo do terrorismo são sempre inocentes:atletas participando de uma Olimpíada, crianças assistindo às aulas numaescola, turistas num aeroporto, passageiros de um ônibus ou um avião, fiéisorando numa sinagoga ou numa mesquita. A finalidade de tal matançaindiscriminada é simplesmente espalhar o terror, semear o pânico, abalar asestruturas da sociedade. Um determinado grupo terrorista pode-se rotular deanti-semita e dizer que está atacando apenas os judeus. Mas asconseqüências transcendem a comunidade judaica. O terrorismo é umaguerra contra a humanidade e deve ser combatido, em conjunto, por todas

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as nações civilizadas e por todos os seres humanos que repudiam aviolência.

Eu e você, meu amigo muçulmano, trazemos na alma as marcas daperseguição. Seu povo e o meu sofreram na própria carne os golpes do ódioirracional. E, mesmo assim, mantivemo-nos fiéis aos nossos respectivoscredos, às nossas respectivas tradições. Não abandonamos nosso legado defé. E continuamos saudando nossos irmãos com a mais bela palavra domundo: shalom, Salam, paz.

O número de vítimas da atrocidade perpetrada em Buenos Aires éinfinitamente maior do que foi noticiado. Fomos vítimas todos nós, judeus enão judeus, que sonhamos com um mundo de paz e harmonia e

fraternidade. Esperemos que esse crime tão sórdido seja prontamentepunido - não com retaliações para vingar o sangue dos que caíram, mas simcom o firme empenho de identificar os autores do atentado e buscar, portodos os meios civilizados possíveis, submetê-los aos rigores da Justiça.

No auge da ditadura em nosso país, um general mandou um recado a líderesda oposição: "Segurem seus radicais, que a gente segura os nossos". Este éagora o nosso papel, meu amigo muçulmano: tentar, dentro das nossaslimitações (e como são grandes as limitações), segurar nossos radicais.Tentar mostrar-lhes que o derramamento de sangue não leva a nada. Tentarmostrar-lhes que a sua percepção da verdade não passa disso: umapercepção. E, como tal, pode ser parcial, distorcida, tingida por traumaspassados, os quais - por mais reais e dolorosos que sejam - não justificamatos de loucura no presente. Tentar mostrar-lhes que somos todos filhos deum mesmo Deus, embora o chamemos de nomes diferentes, e que o direitoà filiação divina é atributo que não se rompe pelo explodir de bombas. Tentarmostrar-lhes que só atingiremos nossos objetivos se desarmarmos o espíritoe nos empenharmos pelo entendimento entre nossos povos e apoiarmos oslíderes moderados no Oriente Médio - líderes israelenses e árabes - queestão determinados a superar, por meio do diálogo, anos e anos deressentimento mútuo.

Não desanimemos, meu amigo muçulmano. Não deixemos que a esperançade paz fique soterrada sob os escombros do prédio da Calle Pasteur.

H e n r y I . So b e l   é presidente do rabinato da Congregação Israelita Paulista

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Árabe, islã efundamentalismo 

" É p e r i g o s o v e r um m o n o l i t o o n d e

há um m o s a i c o d e e t n i a s , c u l t u r a s

e d i v e r s i d a d e r e l i g i o s a "   

Claudio de Moura Castro 

Farid era um colega egípcio durante meu doutorado nos Estados Unidos.Sendo profundamente religioso, logo que alugou um apartamento saiu atrásde uma igreja. Escolheu a mais próxima, que, por acaso, era batista. Quandoestranhei que um muçulmano passasse a freqüentar uma igreja batista,

tranqüilamente retrucou que era o mesmo Deus.

Esse pequeno episódio de tolerância dá o mote para desfazer algunsequívocos perigosos. A imprensa cotidiana mistura árabe com islã, comfundamentalismo e com terrorismo. Árabe pode não ser muçulmano, comoos libaneses cristãos que vieram para o Brasil. E muçulmano pode não serárabe, como é o caso dos turcos, iranianos, indonésios e outros. Mas o errodaninho é imputar ao islã uma índole fundamentalista e intolerante. Pior:supor que mesmo as minorias fundamentalistas endossam o terrorismo.Desfazer tais equívocos é vital, tratando-se de uma religião abraçada por 1,3bilhão de pessoas – um quinto da população do globo.

Historicamente, o cristianismo tem sido mais intolerante que o islã. Ao longodos séculos, havia templos e mosteiros católicos espalhados por quase todosos países islâmicos e não havia uma só mesquita na Europa. Existiam bairros judeus e sinagogas em Sevilha, Cairo, Samarcan e outros grandes centrosculturais islâmicos. As Cruzadas eram guerras religiosas apenas para oscristãos. Para os árabes, significavam não mais do que uma invasão pornações estrangeiras.

Com a iminente queda de Constantinopla, sede da igreja cristã ortodoxa, a

comunidade religiosa que lá operava tinha a opção de fugir ou ficar. Comoconfiava na tolerância religiosa dos muçulmanos que estavam prestes aocupar a cidade, preferiu ficar. De fato, estão lá bem tranqüilos, há mais de500 anos, rodeados de muçulmanos.

Por sua índole, o impacto dos mandamentos islâmicos afeta muito mais ofuncionamento da família do que a sociedade ou o sistema político. É umareligião com a tônica de regular a vida pessoal e familiar. Embora em suaorigem e difusão o islã tenha sido um movimento com característicasagressivas e fundamentalistas, ele secularizou-se, dando lugar à Idade de

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Ouro do Racionalismo Islâmico, enquanto a Europa permanecia mergulhadanas trevas da Idade Média. Lembremo-nos: no primeiro contato da Europacom Aristóteles, os livros estavam escritos em árabe e tiveram de sertraduzidos.

No mesmo Irã dos rabugentos aiatolás viveu Omar Kayyam, um poetarespeitado e de grande liderança intelectual na sua época. Em seu conhecidoRubaiyat, ele não se cansa de louvar Alá, o vinho e a beleza das mulheres(no Corão,  as bebidas alcoólicas são desaconselhadas, mas não sãoproibidas).

O que aconteceu nas últimas décadas foi o uso político da religião. Em paísescomo Turquia, Malásia, Marrocos, Tunísia e muitos outros, o islã permaneceu

em seus eixos tradicionais. Contudo, no Irã, Líbia, Sudão, Afeganistão,Palestina e Argélia, a religião foi usada por líderes políticos, como uma formade mobilização fanática. De religião tolerante, virou seita fundamentalista.De uma fonte de orientação para o comportamento individual, foitransformada em um grito de guerra, a guerra santa do Jihad. Osmovimentos fundamentalistas islâmicos são movimentos políticos que usama religião para recrutar os pobres, os menos educados e os mais vulneráveis.É uma forma de controle social brandindo a caricatura de uma religião.

Ora, se o islã se presta a tais reinterpretações, por que imputar a ele atolerância e não o fundamentalismo? A razão para isso parece bem sólida,pois, segundo meus amigos muçulmanos, a natureza do Corão é ser explícitoem seus ensinamentos, diferentemente da Bíblia, que fala por metáforas epermite interpretações.

O Corão diz o que se deve fazer, o que é aceitável mas não é bom e o quenão se pode fazer. O Corão é literal em seus ensinamentos. O que não dizque é proibido não pode passar a sê-lo em interpretação de algum fanático.Segundo as lideranças intelectuais islâmicas, as interpretações intolerantes eextremadas defendidas pelos fundamentalistas colidem com o espírito doCorão.

É perigoso ver um monolito onde há um mosaico de etnias, culturas,diversidade religiosa, tolerância, enclaves fundamentalistas e, no limite,terrorismo desfraldando a bandeira do islã. Corremos o risco de criar umaoutra intolerância contrária, esvaziando o espaço para o tradicional islãtolerante e empurrando para os braços dos extremistas grupos e pessoascuja índole não podia ser mais diferente. 

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Em torno do xador

A mulher – eis a causa dagigantesca discórdia que barbariza e assusta o mundo

Roberto Pompeu de Toledo 

A jornalista australiana Geraldine Brooks, então trabalhando no Irã, cobriu-se com um xador e disparou para a casa do grande morto. O xador, o leitorsabe, é o traje que esconde as mulheres muçulmanas da cabeça aos pés.Ficam de fora apenas o rosto, entre as sobrancelhas e a boca, e as mãos, enesse ponto o xador é mais liberal do que a burqa em voga no Afeganistão –

um traje que nem o rosto deixa a descoberto, comportando apenas umapequena tela, à altura dos olhos e do nariz, para permitir que a criaturaembrulhada lá dentro enxergue por onde anda e não venha a sufocar. Nempor ser esse tanto menos estrito, o xador é menos indicativo de uma certaforma de encarar a mulher, e naquela época, a época do grande morto,estava no auge. Era um dos símbolos do tempo, no Irã.

O grande morto era ele mesmo – o aiatolá Ruhollah Khomeini, líder supremoda revolução. Geraldine Brooks se tinha enfiado no xador para apresentar ascondolências à viúva, Khadija. Até aquele momento, poucos sabiam da

existência de Khadija. Khomeini nada deixava entrever de sua vida pessoal.Agora lá estava aquela viúva, ela também, claro, enrolada num xador, doqual emergia, descreve a jornalista, "o rosto enrugado e amável de umavovó". Quando Khadija estendeu a mão a Geraldine, o movimento deslocou-lhe ligeiramente o véu – e então Geraldine viu... Viu uma réstia de cabelosencaracolados – brancos na raiz e cor de cenoura mais acima. Espanto. Asenhora Khomeini pintava os cabelos!

Geraldine Brooks aproveitou o tempo em que trabalhou comocorrespondente do The Wall Street Journal  no Oriente Médio para pesquisar oque haveria para mais além do xador. Qual seja, o mundo das mulheres

islâmicas. O resultado foi o livro Nove Partes do Desejo,  que ganhou umaedição brasileira em 1996 (Editora Gryphus). Qual o sentido do xador? Oclérigo iraniano Ibrahim Amini dizia que era o de deixar as esposastranqüilas. Como todas as mulheres o usavam, oferecia a garantia de que osmaridos, ao sair de casa, não seriam atraídos pela lascívia de algumaassanhada. Uma visão alternativa, também citada no livro, e de autoria doerudito Shabbir Akhtar, era a de que o xador contribuía para "umaverdadeira cultura erótica, em que se prescinde da excitação artificial dapornografia". Já entre os jacobinos da revolução iraniana o sentido eraclaramente anticapitalista. O traje ocidental transformaria a mulher num

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produto de comércio, e as mulheres do Terceiro Mundo em consumidorasdependentes de modas que rapidamente ficam obsoletas.

Põe o xador, tira o xador, põe o xador, tira o xador. Essa tem sido a sina dasmulheres iranianas, e muçulmanas em geral. Os ventos que sopram napolítica acabam por cobri-las ou descobri-las. No tempo do xá Reza Pahlevi,que tinha por meta a ocidentalização do país, o xador foi proibido. Asmulheres que ousavam desobedecer à ordem se arriscavam a ter as roupasarrancadas e rasgadas por policiais, além de ser impedidas de subir nosônibus e entrar nas lojas. Algumas, inconformadas, nunca mais saíram decasa. A mulher de Khomeini foi uma delas.

Uma vez, Geraldine Brooks foi convidada a tomar chá, num hotel, com duas

mulheres do Hezbollah, o grupo fundamentalista do Líbano. Quando chegou,foi recebida por uma mulher com os cabelos oxigenados até a cintura,vestindo um négligé de seda. Pensou que tivesse batido na porta errada. Nãoreconheceu a militante que, dias antes, encontrara na paz de seu xador.Outra mulher, deitada na cama, vestia uma camisola escarlate com grandesfendas laterais. Quando a jornalista confessou sua surpresa em encontrá-lasdaquele jeito, elas riram. "É assim que ficamos em casa", explicaram,enquanto encenavam poses sedutoras. "O Islã nos encoraja a ficar lindaspara nossos maridos." Geraldine Brooks deu neste momento um passo amais na compreensão dos cabelos pintados da senhora Khomeini.

Cherchez la femme... Procure-se a mulher, diz a sabedoria francesa, e seencontrará a razão que leva os homens a agir, a brigar, a perder a cabeça.No atual momento de barbárie e de guerra, concentremo-nos no xador. Oumelhor, no que existe dentro dele. Procuremos a mulher. Eureca! Eis a chavede tudo! Está ali, no modo de encará-las e conceber o papel que lhes cabe,um dos pontos centrais – não, o ponto central – da divergência entre as duasconcepções de mundo que se chocaram, primeiro nos céus de Nova York e,agora, nos do Afeganistão. 

. . . 

E por falar em mulher... eis a piada que circula na internet. Matar Laden sótrará aborrecimentos aos Estados Unidos. Equivale a canonizar um santopara multidões de islamitas. Prendê-lo também tem inconvenientes. Éincentivar os seqüestros para obter sua libertação. A solução seria capturá-loe levá-lo a um hospital, para uma rápida mudança de sexo. Em seguida, ele– ou melhor, ela – seria solto em Kandahar, para viver – como mulher –entre os talibãs.

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Em torno do xador (II) 

Um pouco mais sobre a mulher como pólo de estranhamento entre os ocidentais e os muçulmanos 

Maomé teve mais de dez mulheres. As mais famosas são a primeira,Khadidja, com quem viveu monogamicamente até a morte dela, e Aisha, aqueridinha da fase poligâmica que se seguiu. Chegou a ficar casado comnove a um tempo. Não se tratava de furor pela prática do sexo, embora oprofeta não escondesse que a apreciava. Os casamentos constituíam-se emrecurso para firmar alianças com diferentes clãs. Maomé era carinhoso eatencioso com as esposas. Dormia uma noite com cada uma, em sistema derodízio. À parte o fato de a poligamia, quando só permitida para o homem,constituir-se em si numa violência contra as mulheres, era o mais justo ebondoso possível.

Jesus de Nazaré não casou, segundo o entendimento dominante. Mantinharelações, porém, relações sociais, bem entendido, assíduas e naturais, comas mulheres. Para apóstolos, é verdade, escolheu só homens. Mas umpunhado de amigas desfilam nos evangelhos – Marta e Maria de Betânia,Maria Madalena, Joana e Susana, estas duas, menos conhecidas, citadas porLucas entre as "várias" mulheres que o seguiam nas peregrinações pelospovoados da Galiléia. Há cenas de carinho entre Jesus e as mulheres. Numa

delas, Maria de Betânia lava os pés de Jesus com um perfume e enxuga-oscom os próprios cabelos.

Embora a sexualidade explícita do primeiro não se confirme no segundo,tanto um como o outro dos fundadores das duas maiores religiõesmonoteístas conviviam tranqüilamente com as mulheres. Eis um ponto decoincidência entre ambos. Nos dois casos, foi aos herdeiros que coube iniciara escalada discriminatória que, quando não condenava, isolava ou diminuíaas mulheres. Entre os muçulmanos, Omar, o segundo califa, foi quem baixouos decretos mais cruéis para elas. Determinou que ficassem confinadas emseus quartos, de onde só poderiam sair cobertas da cabeça aos pés, quetivessem lugares separados para fazer as orações e que as adúlteras fossemcastigadas com a morte por apedrejamento.

No cristianismo, a lenta elaboração de um pensamento que estigmatizava osexo e, de cambulhada, a mulher desembocou, na virada do século IV para oV, nas construções teóricas de Santo Agostinho, o grande Santo Agostinho,ele que tanto pecara na juventude. "Estou convencido de que nada afastamais o espírito do homem das alturas do que os carinhos da mulher eaqueles movimentos do corpo sem os quais um homem não pode possuir suaesposa", escreveu. Segundo o biógrafo Possídio, Agostinho não permitia que

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mulher ingressasse em sua casa se não houvesse ali uma terceira pessoa,sem exceção para a irmã nem para as três sobrinhas, todas freiras. Talcomportamento fixaria um padrão de longa duração. O papa João XXIII, omaior reformador da Igreja no século XX, escreveria 1.500 anos depois emseu diário como lhe foi benéfica a educação que recebeu do bispo deBergamo, Radini Redeschi, que lhe falava de tudo – menos de mulheres."Era como se não existissem mulheres no mundo", deixou registrado, paraconcluir: "Essa falta de familiaridade com relação ao sexo oposto foi uma dasmais poderosas e profundas lições em minha juventude como padre, e aindahoje preservo, grato, a excelente e benéfica lembrança daquele homem queme educou nessa disciplina".

Tudo isso é para dizer, neste momento em que tanto se comparam as

culturas muçulmana e cristã, que em si, no que se refere à crucial questãoda mulher, as duas religiões não diferem tanto. Certo, o cristianismo jamaisprescreveu o apedrejamento das adúlteras. Em compensação, mandou-aspara a fogueira, as adúlteras e outras que, ao explorar, ou imaginar-se queexploravam, os dengos femininos, caíam na fúria da Inquisição. O quedistingue de verdade os povos cristãos e muçulmanos é a maneira como elesinteragiram, a partir de certo momento, e interagem ainda, com asrespectivas religiões. As sociedades ocidentais, robustecidas por períodos deafirmação humanística como o Renascimento e o Iluminismo, deram comoque um chega-pra-lá no império da religião. Não é apenas que, como um dosfundamentos da democracia, tenham consagrado o princípio da divisão entreIgreja e Estado. Também na vida íntima, os cidadãos esvaziaram o poderlegiferante da Igreja. Tomem-se os anticoncepcionais. O papa os proíbe, masquem se importa com isso? Mesmo robustecidas por períodos de afirmaçãohumanística como o Renascimento e o Iluminismo, deram como que umchega-pra-lá no império da religião. Não é apenas que, como um dosfundamentos da democracia, tenham consagrado o princípio da divisão entreIgreja e Estado. Também na vida íntima, os cidadãos esvaziaram o poderlegiferante da Igreja. Tomem-se os anticoncepcionais. O papa os proíbe, masquem se importa com isso? Mesmo católicos que vão à missa não seimportam.

Salto semelhante ficou faltando nas sociedades muçulmanas. Talvez isso sedeva, entre outros motivos, ao fato de Maomé, fundador, de um só golpe, dafé muçulmana e do império árabe, ter criado ao mesmo tempo uma religiãoe um Estado. Ficou mais difícil separá-los. Até hoje, monarquias como as daArábia Saudita e da Jordânia são conduzidas por dinastias que se dizemherdeiras do profeta. Daí que, nessa confusão, as leis da religião sirvam aoEstado e vice-versa. O resultado é o xador que tanta estranheza causa a umocidental. Ou, inversamente, a minissaia e a mulher ao volante que tantoescandalizam os muçulmanos ortodoxos.

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Em torno do xador (III)

O contrato de namoro no Irã,os apuros da rainha da Jordânia,a poligamia: casos de mulhere sexo no Islã 

No Brasil há o namoro, o noivado, a transa, o chamego, a ficada, a pulada decerca. Há ainda o ajuntamento dos trapos, também conhecido, se se preferirfórmulas tão mais castiças quanto mais bregas, por "amancebamento" ou"concubinagem". São todas variedades de relacionamento amoroso que sedistinguem do ato formal e religiosamente sancionado do casamento. No Irã,existe o "sinjeh". É o que se aprende no livro da jornalista australianaGeraldine Brooks já citado nesta coluna, dois números de VEJA atrás (NovePartes do Desejo, edição brasileira da editora Gryphus).

Que é o sinjeh? Esse nome compreende diversas formas de relacionamento –namoro, ficada, transa, amancebamento. Pode durar um dia ou anos. Aocontrário dos jeitos brasileiros de não-casar, no entanto, o sinjeh tem acuriosa característica de ser religiosamente aprovado. Faz-se um contrato desinjeh perante o mulá, ou o aiatolá, os clérigos credenciados para chancelá-lo. De posse desse documento, o casal terá direito a se hospedar num hotelou viajar junto sem o risco de ser detido numa blitz na estrada. O contrato

serve também para conferir reconhecimento aos filhos nascidos dessa união,além de representar a versão iraniana da barriga de aluguel: o marido demulher infértil pode celebrar o sinjeh com outra mulher, ter um filho com elae trazê-lo para ser criado com a mulher permanente. Antiga instituição doramo xiita do Islã, o sinjeh caíra em desuso, mas foi ressuscitado depois daguerra Irã-Iraque. Rafsanjani, o presidente da época, julgou que as muitasviúvas deixadas pela guerra tinham direito à retomada de uma vida afetiva.Além disso, precisava-se investir no repovoamento do país. Foi um avanço,em relação à repressão anterior às relações fora do casamento.

O livro de Geraldine Brooks, fruto dos seis anos que ela passou comocorrespondente no Oriente Médio, é uma investigação sobre a condição damulher no mundo islâmico, recheada de episódios vividos pela autora. Umavez, na Jordânia, ao cobrir uma manifestação contra o aumento dos preços,teve a surpresa de descobrir que, a esse protesto, somava-se outro: pedia-se que o rei Hussein se divorciasse da mulher, a americana Noor. Umbeduíno que estava por perto, kaffiyeh à Arafat na cabeça, explicou: "Aspessoas daqui fazem muitas perguntas sobre a rainha. Ela era virgemquando se casou com o rei? É mesmo muçulmana, como diz? Se é, por quenão cobre os cabelos?" Noutra ocasião, Geraldine Brooks acompanhou arainha Noor numa solenidade. A rainha vestia uma saia que lhe cobria os

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 joelhos. Já a saia de Geraldine era mais curta. No dia seguinte, teve asurpresa de notar, numa foto de jornal em que aparecia atrás da rainha, quesuas pernas haviam sumido. Um retoque lhes providenciara um par depudicas calças.

Na Arábia Saudita de hábitos muito mais estritos, onde nada além de cobriro corpo todo é permitido, uma vez a autora foi a uma festa em que, como éde regra, as mulheres entravam por uma porta, os homens por outra e, umavez lá dentro, eles ficavam num ambiente e elas noutro. Como Geraldineprecisava entrevistar um dos homens da festa, sobre tema político, tevepermissão para ir ao ambiente dos homens. Quando voltou, a mulher doentrevistado piscou e lhe disse: "Você me fez um grande favor. Meu maridoadora falar de política. E falar de política com uma mulher certamente o

deixou excitado. Hoje vou ter uma grande noite de sexo". Em territóriopalestino, Geraldine fez amizade com uma família de marido, duas mulherese catorze filhos. O ambiente poligâmico lembrou-a de uma canção berbere,cujos pungentes versos celebram a chegada de uma nova esposa a casa: "Aestranha chegou; ela tem seu lugar na nossa casa. / Ela é nova, é linda, bemcomo meu marido queria. / As noites não são suficientemente longas para os jogos deles. / Desde que ela chegou a casa não é mais a mesma. (...) Masaceito meu novo destino / Porque meu marido está feliz com sua novamulher. / Eu também já fui linda, mas meu tempo passou".

Imagine-se a situação do passageiro de avião que não leu as instruções desegurança ao embarcar, nem prestou atenção nas palavras do comissário.No meio do vôo há uma pane, e ele agora procura desesperadamente seatualizar sobre o tema. E toca a procurar o papel com as instruções, aconsultar o passageiro ao lado, a chamar a aeromoça... Após os atentadosde 11 de setembro, o resto do mundo procura, com a mesma sofreguidão, ena mesma situação de emergência, atualizar-se sobre o Islã. O livro deGeraldine Brooks aborda um assunto, a mulher, que é talvez, como já seinsistiu aqui, nos dois textos anteriores, a causa de maior estranhamentoentre a cultura muçulmana e a de origem européia. Algumas pessoas fazemdiários para recordar-se das viagens, outras juntam fotos. Geraldine diz que

tem o guarda-roupa nesse papel. Ali estão os lenços e véus sem os quais nãocircularia na região. E, num lugar de honra, o xador negro de rigor no Irã,com o qual se embrulha e se esconde essa nitroglicerina pura que é amulher. 

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O gringo talibã

" A e x p a n são do I s lã t r a z n o b o j o s u ap r óp r i a t r a n s f o rm ação . Seu con vív i o com

o u t r a s r e l i g i õe s , n o s e i o d e E st a d o s q u e

r e s p e i t a m o p r i n cíp i o d a l a i c i d a d e , d a r á

a p l e n a d i m e n são d e s e u h um a n i s m o . "   

Luiz Felipe de Alencastro 

O rosto emaciado de John Philip Walker, o jovem americano de famíliacatólica que se converteu ao Islã e combatia ao lado dos talibãs, surgiu emTVs e jornais do mundo inteiro na semana passada. Com seus olhos fundos,o americano assemelhava-se aos afegãos e aos árabes: o rosto de todos oshomens acuados encontra-se na mesma parecença, no mesmo desespero.Mas a foto do gringo talibã deixava também entrever outro aspecto daatualidade: o avanço muçulmano no Ocidente, dentro e fora dascomunidades de imigrantes tradicionalmente filiados a essa religião.

Como se sabe, o Islã é a religião que mais se estende no mundo. Algumasfontes, como o Book of the Year  da enciclopédia Britannica, calculam que jáexistam mais muçulmanos (cerca de 5,8 milhões) que judeus (5,6 milhões)nos Estados Unidos. O mesmo crescimento é observado na Europa, onde oIslã conta com um número crescente de seguidores. Em certas mesquitasfrancesas e inglesas já é perceptível a presença de muçulmanos dedescendência européia. Nos Estados Unidos, é notória a penetração do Islãentre os afro-americanos.

Qual o impacto desse fenômeno?

Na The New York Review of Books,  Christopher Jencks, professor emHarvard, publica um ensaio resenhando livros importantes sobre a populaçãoamericana ("Who should get in?", 29 de novembro de 2001). Recapitulando

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a imigração nos Estados Unidos, Jencks observa a virada operada nos anos1921-1924, quando foram estabelecidas as cotas que reduziamdrasticamente o número de imigrantes vindos da Europa central e da Europado sul. Jencks cita os efeitos da crise econômica dos anos 1890 como um dosmotivos do freio à imigração. Mas não menciona as conseqüências doprocesso de Sacco e Vanzetti. Acusados de roubo e assassinato, esses doisimigrantes italianos, militantes anarquistas, foram condenados à morte em1921 e executados em 1927. Persuadidos de sua inocência, milhares demanifestantes se mobilizaram em vários países. No entanto, para muitasoutras pessoas o caso Sacco e Vanzetti teve significação diferente.

De fato, para a maioria dos americanos que acreditavam na culpabilidadedos dois italianos, o caso Sacco-Vanzetti rompia um dos mitos fundadores

dos Estados Unidos: a idéia de que o país podia receber do mundo inteirogente de todas as crenças e transformá-la em bons cidadãos. Doravante, ogoverno deveria rejeitar os indesejáveis. Tal foi o contexto da política decotas de 1924.

Em 1965, o Congresso abrandou as cotas, abrindo espaço para os imigrantesda América Latina, das Antilhas e da Ásia. A modificação deu lugar a umanova vaga de imigração que facilitou a ida dos brasileiros atualmenteresidentes nos Estados Unidos. Se o movimento prosseguir no mesmo ritmo,em 2050 metade da população americana será formada pelo conjunto dosimigrantes pós-1965 e seus descendentes. Os atentados de 11 de setembrofarão com que a política imigratória americana se torne novamenterestritiva?

Mais de 100.000 pedidos de autorização de residência e extensão de visto,assim como 80.000 solicitações de asilo por parte de refugiados, estão sendopassados a pente-fino pelas autoridades. Nessa perspectiva, o presidenteBush deu uma declaração bastante significativa: "Saudamos o processo queencoraja pessoas a vir para nosso país para visitá-lo, estudar ou trabalhar. Oque não saudamos são pessoas que vêm para ferir o povo americano". Naseqüência, o secretário da Justiça, John Ashcroft, foi encarregado de

implementar uma política de imigração restritiva a fim de impedir a entradano território americano de terroristas e seus aliados.

O endurecimento visará aos muçulmanos em geral e aos árabes emparticular? Se tal for o caso, a nova política americana estará fadada aofracasso. Na realidade, a expansão do Islã traz no bojo sua própriatransformação. Seu convívio com outras religiões, no seio de Estados querespeitam o princípio da laicidade, dará a plena dimensão de seuhumanismo.

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É possível a integraçãodos países islâmicos aomundo moderno? 

O ódio dos muçulmanos ao Ocidente écultivado por governos e imprensa

Amir Taheri 

Ainda que a maioria não goste de admitir, porque seria pouco polido, poucopolítico, ou ambos, o fato é que existe no mundo muçulmano um sentimentode raiva contra o sistema global regido por um punhado de potências

ocidentais, sobretudo pelos Estados Unidos.Fingir, como faz o primeiro-ministro inglês, Tony Blair, que a guerra contra oterrorismo não tem nada a ver com o Islã é, no mínimo, ingenuidade.Tampouco a afirmação do presidente George W. Bush de que o Islã é uma"religião de amor e misericórdia" reflete a realidade existencial do islamismode hoje.

Quase todo muçulmano acha que não teve papel algum na configuração dosistema mundial em vigor, na fixação de seus valores, na montagem de suasregras. Fascinados pelo mundo contemporâneo, alguns também se assustam

com ele. E reagem de maneiras diversas.

A imensa maioria responde tentando minimizar seu contato com o mundodominado pelo Ocidente. Mesmo os muçulmanos que vivem na Europa e naAmérica do Norte procuram criar refúgios seguros – mentais, culturais, porvezes físicos, para não dizer guetos.

Medo do Ocidente e fascínio diante de suas realizações são temas constantesem praticamente todos os níveis do discurso islâmico. Lá estão, em quasetodos os sermões das mesquitas, da Indonésia ao Marrocos, passando pela

Europa e pelas Américas.Os mais serenos desses sermões buscam marcar a distância entre o Islã e oOcidente sem necessariamente incitar ódios. As versões mais radicais,porém, retratam o Ocidente como uma civilização baseada em cobiça,materialismo, corrupção e, pior, falta de religião. Apresentam o Islã como "aúnica fé verdadeira" e "a última chance para a humanidade" salvar-se dadegeneração moral e da destruição completa. Quanto mais causticantes osataques ao "Ocidente podre", mais altos os brados de "Allah Akbar" ("Alá égrande") nas multidões eletrizadas das preces de sexta-feira. 

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O EFEITO DOMINÓManifestações foram orquestradas pelostradicionais inimigos dos Estados Unidos nomundo, em especial por ex-comunistas aindapesarosos da derrocada da União Soviética, hádez anos. Em países como a Indonésia, oantiamericanismo se fundiu com o ressentimentoreligioso islâmico. O resultado foram grevesgerais, tumultos de rua e protestos violentosproduzidos por estudantes como o da foto, quefreqüenta a Universidade da Indonésia emJacarta

OVOS DA SERPENTEHá indícios de que os terroristas que atacaram os Estados Unidosem 11 de setembro foram chefiados pelo egípcio Mohamed Atta ( f o t o m a io r )  . Numa hipótese perversa, aventada no vídeo em queOsama bin Laden confessa ter conhecimento dos crimes e sugeretê-los planejado, alguns dos terroristas árabes não saberiam quese tratava de uma missão suicida. Só os pilotos dos aviõesseqüestrados que se chocaram contra as torres gêmeas e oedifício do Pentágono, em Washington, sabiam da natureza doataque. Os demais foram levados a pensar que o seqüestro lhesrenderia um bom dinheiro e uma aposentadoria segura em algumpaís árabe que dá guarida a terroristas islâmicos. Atta e oscomparsas aprenderam a pilotar nos Estados Unidos efreqüentaram escolas técnicas na Alemanha

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Durante a Guerra Fria, parte do repúdio muçulmano ao mundo modernovoltou-se contra o bloco soviético, execrado por seu ateísmo. De lá para cá,os Estados Unidos tornaram-se o alvo principal. Muitos ex-comunistas deorigem muçulmana disfarçam agora seu ódio ao "imperialismo" americanocomo atos de "autodefesa cultural do Islã".

A raiva do Ocidente reflete-se nos livros didáticos em todo o mundomuçulmano. Muitas vezes eles oferecem uma visão acanhada da história, naqual a experiência das Cruzadas e do colonialismo define as relações atuaisentre o Islã e a cristandade. Afastam-se o mais possível da "ciência ímpia"do Ocidente, insistindo em que todas as "boas ciências" provêm dosmuçulmanos de séculos atrás.

Às publicações didáticas somam-se dezenas de livros de intelectuaismuçulmanos que frisam o tema antiocidental de modo por vezesfrancamente vulgar. Numa recente feira de livros pan-islâmica em Doha, acapital do Catar, contamos mais de 100 títulos com temas contra o Ocidentee os judeus.

Boa parte da mídia do mundo muçulmano ganha dinheiro com o sentimentoantiocidental. Quase sempre, mais por oportunismo comercial dos donos egerentes da mídia que por análise refletida.

O fato de praticamente todo o produto cultural do mundo islâmico, daliteratura ao cinema, à música, à arquitetura, ser obra de leigos aprofunda osenso de isolamento das massas muçulmanas, mesmo em seus países.

Para se distinguirem, muitos muçulmanos passaram a fazer uso da aparênciafísica. Os homens deixaram crescer barbas hirsutas e as mulheres adotaramum pano especial na cabeça semelhante ao utilizado pelas freiras católicas,adereço até meados da década de 70 desconhecido no Islã. Muitos homenstambém adotaram o traje paquistanês (uma camisa comprida chamadaqamis) e o gorro típico de algodão, modas, de novo, só lançadas nos anos70.

Mais importante ainda, houve uma explosão no número de muçulmanos quemandam os filhos a escolas corânicas, em tempo integral ou de meioperíodo. Mesmo na Europa, sempre que possível, muitos fazem questão deuma educação separada para meninos e meninas e organizam para elescursos especiais. O objetivo desses cursos é "proteger as crianças" dacontaminação de idéias ocidentais. Em diversas escolas para meninasmuçulmanas na Inglaterra, os professores homens dão aula atrás de umacortina, para não ver as alunas.

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Nem todos os radicais defendem a violência, inclusive o terrorismo, paracombater o Ocidente. A galáxia de organizações terroristas do mundoislâmico talvez se resuma a alguns milhares de homens espalhados porvários países. Mas, usando a analogia das bonecas matrioshkas russas, essesminúsculos grupos de terror estão lá no fundo das grandes comunidades.

Essas comunidades talvez não aprovem os métodos dos terroristas, mascertamente simpatizam ao menos com alguns de seus objetivos. A maioriados muçulmanos com quem se fala no assunto condena os ataques de 11 desetembro a Nova York e a Washington. Porém em seguida argumentam poruma "compreensão" que, às vezes, beira a justificação. Argumento típico: osresponsáveis pelo 11 de setembro erraram. Mas foram forçados aoextremismo pelo apoio dos Estados Unidos a Israel, que oprime os

palestinos.

Claro que a questão de Israel não é o único motivo para "compreender" osatos terroristas em nome do Islã. Em 1979, os mulás montaram a tomada daembaixada americana em Teerã e fizeram reféns seus diplomatas não porcausa de Israel, mas porque queriam que os Estados Unidos prendessem oex-xá, hospitalizado em Nova York. Em 1983, terroristas islâmicosassassinaram cerca de 300 fuzileiros navais americanos que dormiam, emBeirute, não por causa de Israel, mas porque os EUA intervieram para ajudarYasser Arafat a escapar de uma armadilha mortal montada por Ariel Sharon!O atentado aos fuzileiros foi organizado pela Síria e pelo Irã, que tambémqueriam Arafat morto – ainda que por motivos próprios! Os soldadosamericanos que participavam da força de paz na Somália foram mortos nãopor causa de Israel, e sim porque tentaram prender o criminoso de guerraMohamed Aidid, em nome das Nações Unidas.

Mesmo que Israel seja varrido do mapa, radicais haverá no mundomuçulmano convencidos da missão divina de uma "guerra santa" contra oOcidente liderado pelos Estados Unidos.

Eles odeiam a democracia – qualificada por Khomeini como "forma de

prostituição" – e os escandaliza o conceito de direitos humanos que tratacomo iguais homens e mulheres, crentes e não-crentes.

O radicalismo islâmico rega o solo no qual crescem e prosperam movimentosterroristas. A violência não se limita a degolar alguém num aviãoseqüestrado. Também vem sob a forma de campanha de ódio em sermões,livros, artigos de jornal e programas de rádio e televisão. É desnecessáriodizer que as primeiras vítimas dessa violência são os muçulmanos que nãose submetem aos radicais.

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O radicalismo islâmico recruta quase todo o seu pessoal na classe média enas camadas ricas das sociedades muçulmanas. Dizer que o terrorismo é aarma dos pobres não é verdade. Entre meados da década de 60 e fim dosanos 70, quase todos os grupos terroristas operantes no Islã foram criados econtrolados por governos, sobretudo do Egito, da Síria e do Iraque. O grupoFatah, de Yasser Arafat, nasceu de um cheque de 50 000 dólares do emir doKuwait, em 1967. Todos os dezenove terroristas dos ataques de 11 desetembro a Nova York e Washington vinham de família abastada. Quinzeeram da Arábia Saudita, o país mais rico do mundo muçulmano, enquantodois outros eram cidadãos dos Emirados Árabes, que têm um PIB per capitade quase 20 000 dólares.

Novidade é a "privatização" do terrorismo no mundo islâmico, a partir dos

anos 80, simbolizada pelo surgimento de grupos não controlados pornenhum Estado.

No momento, as organizações terroristas muçulmanas podem ser divididasem três categorias. A primeira é composta de grupos que são, pelo menosem parte, controlados por algum Estado. É o caso do Hezbollah, com filiaisem dezessete países muçulmanos e forte presença de agentes "dormentes"na Europa, sobretudo na Alemanha, nos Estados Unidos e na América do Sul.Criado pelo serviço secreto iraniano, o movimento é financiado por Teerã. Jáseu ramo libanês é obrigado a "consultar" também Damasco nas decisões-chave, quando mais não seja porque a Síria ocupa o Líbano, com cerca de 40000 soldados. Outro exemplo é o grupo dos Combatentes do Povo,financiado e controlado pelo Iraque, que também controla o que restou dobando de Abu Nidal. Ainda nessa primeira categoria seria possível incluiruma série de organizações palestinas menores, em geral de esquerda,estabelecidas na Síria e controladas por Damasco. O Tehrik Jaafari(Movimento Xiita Jaafarita), do Paquistão, entra nessa categoria por causadas ligações financeiras e políticas que tem com Teerã, que também controlavários grupos menores, inclusive o bando Imad Mughniyah, no Líbano, e oPartido da Ação Islâmica, do Iraque. O Sudão fundou e continua a financiar oCongresso Popular do Povo Muçulmano e seus rebentos terroristas.

A segunda categoria de grupos que empregam o terrorismo é a dos que seconcentram em questões específicas. Nela entram várias organizaçõespalestinas, formadas por gente disposta a matar israelenses inocentes, masque não opera contra outras nacionalidades e países. Também se poderiamincluir nessa categoria os grupos que lutam por autonomia ou independênciana Caxemira, na Chechênia, em Xinjiang, no vale Fergana (Uzbequistão-Quirguistão), nas Filipinas e em várias ilhas indonésias.

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Esses, e outras duas dúzias de grupos parecidos, ativos em partes da África,de Zanzibar à Nigéria, recorrem a táticas terroristas apenas contra inimigoslocais.

A terceira categoria é composta de grupos terroristas pan-islâmicos quefazem uma guerra global contra os "inimigos do Islã", reais ou imaginários.Os EUA identificaram essa terceira categoria com um único homem: Osamabin Laden, um milionário saudita que, a certa altura da vida, participou deum esquema anti-soviético liderado pela CIA no Afeganistão. Mas omovimento armado islâmico vai muito além de Laden. Seus integrantes sãovistos lutando ao lado da UCK em Kosovo e na Macedônia, onde Mohamed, oirmão mais moço de Aiman al-Zawahiri, tido como o herdeiro de Laden atéser morto no Afeganistão, comanda uma das unidades. E também são vistos

combatendo numa dezena de outras frentes, de Sumatra à Argélia, passandopela Chechênia e Líbia. O movimento pan-islâmico terrorista criou umateoideologia própria, baseada no wahabismo, versão radical do islamismoformulada inicialmente no século XVIII. Essa teoideologia se chamasalafismo e é o alicerce da rede global tecida nos últimos 25 anos.

A Al Qaeda ("a base") de Laden, como o nome indica, era uma espécie dequartel-general do movimento armado mundial salafi. A Al Qaeda tinha cercade cinqüenta acampamentos grandes e pequenos no Afeganistão. Alguns,como Badr I, Badr II e Abu Khabab, eram quartéis de grande porte, capazesde receber milhares de soldados a qualquer momento. O cerne do exércitoparticular de Laden não deve ter passado de algumas centenas de homenscomandados por seu segundo filho, Mohamed. Mas no passado o saudita fezuma série de alianças com comandantes irregulares afegãos e com chefesterroristas de uma dúzia de países árabes e chegou a dispor de uns 20 000guerreiros no efetivo total. Além disso, a Al Qaeda ainda conta com umarede de "células dormentes" em diversos países árabes e ocidentais.

Mencionem-se ainda vários grupos egípcios, entre os quais Anátema eMigração, Vanguardas da Vitória, Jihad Islâmica e Espada da Justiça. O grupofilipino Abu Sayyaf faz seqüestros e atua sobretudo em Mindanao. No

entanto, alguns de seus integrantes têm combatido em outros teatros,inclusive no Afeganistão e no Uzbequistão.

Os maiores grupos salafis, contudo, têm base no Paquistão. Um deles é oLashkar Taibah (Exército dos Puros), uma força, segundo se diz, de 50 000homens. Suas operações se limitam, em princípio, a ataques contra xiitaspaquistaneses e incursões ocasionais na Caxemira sob o domínio da Índia.Mas alguns de seus homens também combateram na Chechênia, noDaguestão, na Bósnia, em Kosovo e na Macedônia.

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Vai mais longe, entretanto, o papel especial do Paquistão, que tem cerca de70 000 escolas corânicas, financiadas pelos países petroleiros do GolfoPérsico, onde 6 milhões de crianças são instruídas na versão mais militantedo islamismo e preparadas para dedicar a vida à guerra santa.

O salafismo conseguiu dominar os movimentos radicais da Argélia,substituindo grupos mais tradicionais, como a Frente de Salvação Islâmica.

O Grupo Islâmico de Combate líbio, ainda que se dedique à derrubada docoronel Kadafi, também andou lutando em regiões muito distantes de suabase. Uma rede complexa de bancos, instituições de caridade, associações eempresas comerciais, dos quais só alguns têm ligação com Laden, apóia omovimento salafi e suas diversas facções armadas. Desmantelar essa rede

pode levar anos.

O movimento terrorista contra o qual o presidente Bush declarou sua"cruzada" tem raízes profundas não só no Afeganistão e no Paquistão, masnuma dezena de outros países muçulmanos e em várias nações ocidentais,notadamente nos próprios Estados Unidos. Os EUA, na verdade, têm sidouma das principais fontes de recursos do salafismo, e isso desde o começodos anos 80. Em 1985 houve em Dallas, no Texas, a maior conferência delíderes islâmicos radicais, a que estiveram presentes, inclusive, vários chefesterroristas ligados ao grupo de Laden.

Mesmo que Laden seja morto ou preso, com seus principais homens, oOcidente ainda terá dois problemas cruciais. O primeiro é desmontar o polvo.O segundo é convencer o mundo muçulmano de que o sistema global, comtodas as suas imperfeições, está aberto a todos. É nessa segunda frente quepode acabar sendo bem mais difícil vencer a guerra.

Amir Taheri Iraniano, escritor e jornalista, editor da revista

Politique Internationale , publicada em Paris

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O islamismo éuma religião violenta? 

Quem vai ceder no fim será a religiãoreacionária 

Robert Wright 

A opinião politicamente incorreta a respeito do Islã parece estar ganhandoimpulso. Logo após 11 de setembro, o governo Bush fez questão de declararque o Islã é uma religião pacífica, "seqüestrada" por alguns poucosextremistas. Na ocasião, em artigo publicado na New York Times Magazine, 

Andrew Sullivan discordou. Admitiu que existem muçulmanos moderados eque certas passagens do Corão  recomendam a misericórdia e a tolerância."Mas seria ingenuidade não reconhecer, no Islã, uma profunda tendência àintolerância com relação aos infiéis, sobretudo quando são tidos como umaameaça ao mundo islâmico." Em seguida, citava o preceito do Corão  quemanda "matar aqueles que misturam outros deuses ao Deus, onde quer quetu os encontre". Agora, um artigo publicado no Washington Post   reforça aidéia de que devemos examinar o Corão em busca de indícios para entendero Islã moderno – e admite que os indícios são incriminadores. "Os estudiososdo Corão nos asseguram que, no texto, não há nenhuma ordem para os fiéisempunharem a espada contra os inocentes", escreve Michael Skube. "No

entanto, como o texto deixa claro, a espada tem de ser empunhada – contraaqueles que negam Alá e seu Mensageiro, contra aqueles que acreditarammas se afastaram da fé, contra os inimigos da fé, reais ou imaginários."

Num recente balanço do incessante debate em torno do Islã, SethStevenson, da revista eletrônica Slate, observou de passagem que os textossagrados cristãos e judeus também não são isentos de beligerância. Ele nãoestava brincando. Eis uma recomendação do livro Deuteronômio: "Quando teaproximares de alguma cidade para lutar contra ela, oferecerás a paz. Se aresposta for de paz e a cidade te abrir as portas, todo o povo que nela

estiver será sujeito a trabalhos forçados para ti e te servirá. Porém, se elanão fizer paz contigo, mas sim guerrear contra ti, então a sitiarás; e, quandoo Senhor teu Deus a entregar na tua mão, passarás a fio de espada todos osdo sexo masculino que houver na cidade, mas as mulheres, as crianças e osanimais, e tudo o mais que houver na cidade, todo o seu despojo, tomaráspara ti".

Sem dúvida, o Deus judaico-cristão – ao contrário dos seqüestradoresmuçulmanos – parece, aqui, disposto a poupar mulheres e crianças. Masesse tratamento é reservado às "cidades muito distantes de ti". Nas mais

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próximas, "as cidades daqueles povos que o Senhor teu Deus te dá emherança, não deixarás com vida nada que respire, deves antes destruí-loscompletamente: os heteus, os amorreus, os cananeus, os perizeus, osheveus e os jebuseus, conforme te ordenou o Senhor teu Deus; para quenão te ensinem a agir segundo todos os usos abomináveis que seguem noculto aos deuses deles e, portanto, a pecar contra o Senhor teu Deus". Poroutro lado, o Corão – na interpretação não de Mohamed Atta, mas sim deMohamed (Maomé), uma tremenda autoridade no assunto – recomendapoupar mulheres e crianças, mesmo numa guerra santa.

Não estou dizendo que o Islã é irrelevante com relação ao que ocorreu em11 de setembro. De fato, admito em larga medida a tese de Sullivan de queentender o fundamentalismo contemporâneo como algo distinto das

correntes moderadas do Islã ajuda a esclarecer nossos apuros. Mas digo quetoda essa história de garimpar o Corão à cata de citações incendiárias é, emessência, inútil. As religiões se desenvolvem e em suas escrituras fundadorasexiste, em geral, ambigüidade bastante para permitir que elas evoluam emqualquer direção. Se Osama bin Laden fosse cristão e quisesse destruir oWorld Trade Center, citaria a reação violenta de Jesus contra os vendilhõesno templo. Se não quisesse destruir o World Trade Center, poderia destacaro Sermão da Montanha.

Para certos críticos do Islã, essa concepção evolutiva da religião pareceapenas reforçar sua acusação contra a fé. Por que, perguntam eles, o Islãnão fez o mesmo que outras crenças – usar a margem de liberdadeconcedida pela ambigüidade das escrituras para afastar-se da intolerânciatruculenta? Se, durante as Cruzadas, os muçulmanos e os cristãos europeusse mostraram igualmente propensos a massacrar os infiéis (ou seja, amassacrar-se mutuamente), os cristãos europeus de hoje parecem aceitar adiversidade religiosa de um modo inadmissível para milhões de muçulmanos.Por que é assim?

Para mim, a resposta parece simples: as nações predominantemente cristãstornaram-se mais avançadas economicamente, mais globalizadas, o que leva

naturalmente a uma perspectiva mais cosmopolita. É impossível fazernegócios com pessoas ao mesmo tempo que as massacramos e é bem difícilfazer negócios com elas enquanto lhes dizemos que vão arder para semprenas chamas do inferno. O capitalismo global moderno tem seus defeitos, masa intolerância religiosa não está entre eles.

Desse ponto de vista, a intolerância dos fundamentalistas islâmicos nãoreflete as escrituras tal como registradas 1 400 anos atrás, mas sim ascircunstâncias sociológicas em que viveram essas pessoas nas últimasdécadas. No Paquistão, ao lado de milhões de fundamentalistas isolados e,

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na maior parte, pobres, existem muçulmanos mais ricos, mais profanos emais moderados. Os marxistas se equivocam na maioria das coisas, mas,quando encaram a religião como uma "superestrutura" – o produto de umadinâmica econômica e política mais profunda –, estão no caminho certo.

Entre aqueles que reconhecem que a modernização salvou o cristianismo daintolerância raivosa, alguns gostariam de converter mesmo isso numaacusação contra o Islã. Por que, indagam eles, desconfiados, o mundomuçulmano não se modernizou rapidamente? Por que a Europa cristãalcançou a Revolução Industrial antes da civilização islâmica? Não haveria noIslã algo intrinsecamente opressivo e economicamente paralisante? A chavepara o sucesso da era industrial na Europa não estaria em alguma ênfasecristã na liberdade pessoal?

Há várias coisas que me desagradam nessa linha de raciocínio: 1) suaincompatibilidade com as grandes conquistas intelectuais e econômicas dacivilização islâmica durante boa parte da Idade Média; 2) suaincompatibilidade com o profundo autoritarismo de alguns líderes cristãosantes da Revolução Industrial (Calvino governou Genebra tão brutalmentequanto Stalin, na Rússia); 3) sua incompatibilidade com minha teoriapredileta sobre a razão pela qual a Europa se industrializou antes da China eda civilização islâmica, que até então estavam na ponta-de-lança docomércio e da tecnologia.

Essa teoria destaca a ausência de um poder eficaz – de um governocentralizado e firme – na Europa durante o fim da Idade Média e o início daEra Moderna. Como a Europa estava fragmentada politicamente, numerososEstados experimentavam diferentes formas de organização política eeconômica, no intuito de superar seus vizinhos. Quanto mais experimentos,maiores as chances de encontrar uma fórmula vitoriosa – como acombinação de liberdade política com liberdade econômica, que demonstrousua força na Holanda, no fim do século XVI, e na Inglaterra, no fim do séculoXVII. O êxito dessa fórmula deixou as nações cristãs vizinhas sem outraopção senão adotá-la também, e seu cristianismo desenvolveu-se em

consonância com isso.

A fórmula mágica de liberdade política mais liberdade econômica difundiu-se,desde então, por boa parte do mundo. Mais cedo ou mais tarde, tenhocerteza, ela prevalecerá mesmo nos Estados islâmicos repressivos atuais.

Infelizmente, a transformação pode ser dolorosa. Embora a globalizaçãoconstitua, a longo prazo, a esperança para a sociedade muçulmana, ela éuma ameaça a curto prazo. Sim, economias de mercado são o único remédioduradouro para a pobreza. Mas, não raro, o primeiro passo da cura força em

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demasia os laços da tradição, ao deslocar pessoas de comunidades rurais,alicerçadas no parentesco, para cidades ou favelas. E, mesmo décadas apósesse deslocamento inicial, quando as famílias já foram postas a salvo dapobreza, a modernização pode ainda ameaçar os valores de pessoasprofundamente religiosas. Daí decorre o paradoxo entre os dois tipos deseqüestradores que agiram em 11 de setembro: os pobres e de poucainstrução e os de classe média porém alienados.

A turba que se apressa a pôr a culpa no Islã tem, obviamente, razão numcerto sentido, e o Islã é parte do problema. A atitude dos fundamentalistasmuçulmanos – sua repulsa ao mundo não-islâmico – contraria a lógica daglobalização e, mais cedo ou mais tarde, alguma das partes terá de ceder.Porém, se a história serve para alguma orientação, quem vai ceder, no fim,

será a religião reacionária, não o progresso tecnológico. Tal como ocorreu nopassado, o efeito será o desenvolvimento de uma fé mais humana etolerante. Não existe uma essência do Islã eterna e imutável, enraizada noCorão, que o condene a uma moralidade medieval.

A realidade já é bastante desalentadora: temos de combater a pobreza e aignorância, no entanto o remédio mais seguro para isso – a modernizaçãoeconômica – comporta graves perigos a curto prazo. Não é preciso aumentarmais ainda nosso desânimo esquecendo que a maior parte das nações cristãsprósperas já teve, em outros tempos, a mesma mentalidade dosmuçulmanos fundamentalistas atuais. Viviam atoladas num sistema religiosopré-moderno – e, não fosse por obra e graça de umas poucas reviravoltas dahistória, poderiam ainda estar lá. 

Robert Wright Ensaísta e autor de diversos livros, entre eles

O Animal Moral: Psicologia Evolucionária e o Cotidiano

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Os jovens muçulmanos daEuropa podem se integrar àvida local ou serão semprefocos de tensão? 

Eles são milhões e vivem entre nós

Dominique Schnapper 

Os países europeus em sua maioria foram, até a II Guerra Mundial, países deemigração. Eles povoaram as Américas e a Austrália e também muitos paísesda Ásia e da África. Nesse caso, a França é uma exceção. A inversão desituação que se observa agora não poderia ser mais impressionante. A

Europa tem recebido uma imigração em massa desde o fim da guerra. Doisfenômenos históricos se conjugaram: o fim dos impérios coloniais daInglaterra, da França, da Bélgica e da Holanda e um desenvolvimentoeconômico que pareceu milagre para quem conheceu as crises de entre asduas guerras. As necessidades da economia criaram um verdadeirosorvedouro, que se conjugou ao atrativo das sociedades européias, maisricas e mais livres que as sociedades de origem. O apelo da modernidade,seja qual for a ambigüidade do termo, somou-se ao efeito da pobreza nospaíses de origem.

Migrações têm fluxos diversos e as populações muçulmanas não são asúnicas que se instalaram na Europa estabilizada. Mas constituem uma altaproporção. A maioria dispõe, ademais, da cidadania do país de chegada. Osfilhos de imigrantes nascidos na Europa só conhecem a terra natal dos paiscomo lugar de férias, e ninguém pretende "retornar". Mas o número não é oúnico ponto: é em torno da presença dos muçulmanos que se cristalizam asinterrogações, inquietações e oposições, às vezes violentas, que recém-chegados sempre suscitam nas coletividades organizadas. Os paquistanesesna Inglaterra, os marroquinos, turcos, surinameses e molucanos na Holanda,os argelinos, marroquinos e tunisianos na França e os turcos na Alemanhasão as mais numerosas populações recentemente instaladas. Mas, além

disso, tornaram-se os símbolos do imigrante e do que é considerado um"problema" social e político. O imaginário cristão é também rico emrepresentações fantasmagóricas do Islã, tido como irracional, fanático eperigoso. É claro que os eventos de 11 de setembro as reativaram esuscitaram nova rodada de interrogações sobre a integração dosmuçulmanos.

Pergunta-se sobre sua disposição em participar de sociedades democráticasmodernas e de que forma as tradições muçulmanas podem adaptar-se àsexigências da sociedade democrática. Afinal, é possível a participação dos

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muçulmanos nas democracias européias? A prática do Islã ultrapassa odomínio apenas religioso, impondo-se a lei religiosa em todos os aspectos davida familiar e social. A não-separação do político e do religioso, quecaracteriza o islamismo, não contradiz o princípio da separação do político edo religioso inscrito na legitimidade democrática? Por outro lado, o direitoislâmico, fundado na desigualdade entre homens e mulheres, não contradiz oprincípio de igualdade civil e política de todos, homens e mulheres, nasdemocracias?

É bom não ceder à tentação de globalizar "o Islã". As culturas muçulmanassão tão diferentes entre si quanto os países de onde partiram os imigrantes.O Islã paquistanês, que é o fundamento da existência do país, é austero,autoritário e exigente, comparado ao Islã do Magreb, a região formada por

Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia no norte da África. Formou-se numcombate de vida ou morte pela independência da união indiana, quando daretirada das tropas inglesas. É um "Islã de combate", trazido pela fortepolitização dos paquistaneses britânicos. A situação é muito diferente naFrança, onde a maioria dos muçulmanos vem de três países do Magreb. Noislamismo do Magreb se misturam as recordações romanas, as tradiçõescabilas e berberes e as singularidades próprias dos países mediterrâneos,sem esquecer a longa influência que os franceses exerceram sobre o país –no caso da Argélia, por mais de um século. Antes de emigrarem, osmagrebinos tiveram uma forte aculturação francesa durante a colonização.

A posição do Islã na sociedade difere igualmente de um país para outro,segundo a tradição de cidadania e segundo a maneira como as relaçõesentre a política e a religião se organizam. Em todos os casos, impõe-se anecessidade, conforme os valores democráticos, de reconhecer o islamismocomo uma das religiões da população nacional. Mas as maneiras de procedera esse reconhecimento continuam muito diferentes.

Os ingleses têm uma política de grande tolerância. Admitem a representaçãosocial da comunidade muçulmana. Os paquistaneses, em geral agrupados noespaço urbano em comunidades em volta de suas mesquitas, que fazem o

papel de centros comunitários, gozam de uma autonomia cultural einstitucional desconhecida nos outros países. Eles ainda não têm os mesmosdireitos das outras religiões no que toca às escolas, mas dispõem de seusprogramas de rádio e televisão, reivindicam a construção de mesquitas, cujonúmero se multiplica. Conseguiram que suas filhas tenham um regimeespecial nas escolas, que respeite sua "discrição", conforme as regrasimpostas pela tradição islâmica. Desde o caso Salman Rushdie, os líderes dacomunidade islâmica na Inglaterra têm assumido abertamente uma posiçãocada vez mais política.No clima liberal da Inglaterra, as redes islâmicas sedesenvolvem com muito desembaraço. O governo inglês, contudo, recusou a

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possibilidade de um "Parlamento muçulmano", e os juízes negam-se, emnome da convenção européia de direitos humanos, a admitir as práticas maisarcaicas, como casamento forçado, matrimônio precoce, a proibição dedesposar um não-muçulmano ou a mutilação genital.

A política francesa tem um estilo aparentemente diverso. País de imigraçãodesde a primeira metade do século XIX, a França tem uma políticatradicional de integração dos imigrantes, adaptada à integração nacional detipo jacobino e ao ideal da cidadania individual. A integração é pessoal, nãoreconhece comunidades. A maioria das populações imigradas reivindicadireitos de cidadania, mas não direitos comunitários. Os muçulmanosfranceses se abstiveram de manifestação na crise Salman Rushdie. Não semanifestaram durante a Guerra do Golfo.

A Alemanha é ainda um caso diferente. Há muito tempo, recusa considerar-se um país de imigração e quer adotar uma política de gastarbeiter,  querdizer, de trabalhadores vindos de fora em busca de um emprego por tempolimitado. Declaradamente, espera-se que retornem ao país de origem. Nãose trata de transformar imigrantes em alemães. Um código restritivo denacionalidade contribuiu para essa política.

Apesar das diferenças, vê-se que as políticas de diversos países europeusante as populações muçulmanas acabam convergindo. A presença destas setornou um fato e um direito e impõe aos governos o objetivo de ajudar oprocesso de integração dos imigrantes e sobretudo de seus filhos nacoletividade nacional.

Todos os países estão num processo de reconhecimento. A Alemanha debateo assunto, mas a reticência das populações e dos governos estaduais nãopermitiu ainda concluir o avanço. A organização de um "culto" muçulmano é,de resto, difícil, pois o Islã vem sendo diversificado por islamismos nacionais.Turcos e marroquinos, na Holanda, recusam-se a participar da mesmaorganização. Na França, sucessivos ministros da Justiça tentaram formaruma representação muçulmana no modelo da representação judaica. Mas os

muçulmanos estão divididos e o projeto ainda não se concluiu. Como naHolanda, os turcos se recusam a colaborar com os muçulmanos magrebinos.

É claro que o reconhecimento institucional não é o único fator de integração.O que dizer da integração social? As pesquisas sociológicas mostram aspopulações muçulmanas da Europa democrática, em sua maioria, evoluindopara a integração, cada qual no estilo do país onde se instalou. Osmuçulmanos franceses aceitam os princípios fundadores da república laica.Na Alemanha, o comportamento das famílias turcas alinha-se mais e mais aodas alemãs: a fecundidade das mulheres turcas criadas e educadas na

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Alemanha é próxima à das mulheres alemãs, não à de suas compatriotas naterra natal. As normas de educação, mais indulgentes e individualistas,conformam-se àquelas correntes na sociedade global. Vêem-se os mesmosresultados na França. Apenas os paquistaneses britânicos se conservam maisespecíficos. Brilham na vida econômica e cultural, mesmo mantendo osvalores muçulmanos, de modo que seus filhos, ao mesmo tempo queparticipam da vida coletiva, têm o comportamento e os valores marcadospela tradição que os pais lhes inculcaram. Entretanto, de modo geral, não hádúvida quanto à tendência à integração.

Mas por vezes essa adoção de um islamismo "tranqüilo", estimulada pelasfamílias e pelos assistentes sociais, se transforma. Alguns dos convertidosacabaram por entrar nas redes islâmicas mundiais. Trata-se de uma ínfima

minoria, que pode tornar-se significativa se adotar a suspeita dos nacionaisde que o Islã é inassimilável pelas democracias européias.

Na Inglaterra, os paquistaneses cultivam relações antigas com osmovimentos fundamentalistas. Mantêm-se em contato estreito, econômico,familiar, cultural com seu país de origem. Alguns são bem ligados aos meiosintegristas. Veja-se a fúria com que aderiram à fatwa que condenou SalmanRushdie à morte. Nos outros países, o apoio à sentença iraniana contra oescritor anglo-indiano foi esporádico ou nenhum.

A identificação com um Islã combativo perante o Ocidente é grande napopulação britânica de origem paquistanesa. Os muçulmanos modestos dasperiferias francesas têm uma consciência islâmica e nacional bem menosforte, mas sua solidariedade com o Islã vem crescendo desde 11 desetembro, e o anti-semitismo se desenvolve.

Os acontecimentos de 11 de setembro nos ensinaram que a adoção dealguns traços de modernidade ocidental com a profunda rejeição do poder edos valores do Ocidente é uma combinação possível na cabeça dosmuçulmanos que vivem na Europa. As populações muçulmanas instaladas naEuropa integram-se cada vez mais na vida coletiva. Mas isso não exclui a

solidariedade com o Islã transnacional. Não basta falar a mesma língua nemter a mesma formação técnica para compartilhar os mesmos valores moraise políticos. De qualquer modo, a integração objetiva em larga escala nãoimpede que os acontecimentos mundiais dificultem a plena participação dosmuçulmanos nas sociedades democráticas da Europa. 

Dominique Schnapper Socióloga, integrante do Conselho Constitucional da França,

estudiosa do fenômeno das migrações 

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Os provocadores de Cristo 

Um a h o r d a d e   p r e g a d o r e s   ev an gél ic o sl a nça - s e àem p r e i t a d a   d e co n v e r t e rm uçu lm a n o s   n o I r a q u e   

Roberto Pompeu de Toledo 

Com tanto espaço no planeta, por que as religiões foram nascer todas nomesmo lugar, amontoadas umas sobre as outras, acotoveladas como emônibus cheio? Quer dizer: todas não – as "três grandes religiõesmonoteístas", como é costume referir-se à trinca integrada (por ordem deentrada na história) por judaísmo, cristianismo e islamismo. Se uma tivesse

nascido na Sibéria, outra na Patagônia e outra – uma só ainda vai – noOriente Médio, o mundo seria menos conflitado. Mas não. Nasceram todasnaquela congestionada esquina do mundo. Pode-se mesmo dizer quenasceram – ou, se não nasceram, ganharam força e ressonância – na mesmacidade, Jerusalém. São as três aparentadas, fincadas nas mesmas raízessemitas, nascidas na mesma paisagem onde os desertos se alternambruscamente com rios generosos e os tipos humanos se distribuem entrenômades, pastores de ovelhas e mercadores com bancas em sujas vielas. Asorigens comuns poderiam ter gerado compreensão e fraternidade entre elas,ainda mais que, em princípio, o deus é o mesmo. Não. O que há éhostilidade e tensão, responsáveis por algumas das piores catástrofes da

história humana.

Já não bastasse a impossível convivência, em espaço tão reduzido, de judeuse muçulmanos, os cristãos não esquecem de meter sua colher. Em seguida àinvasão americana do Iraque, missionários evangélicos enxergaram no paísantes governado por Saddam Hussein uma oportunidade. E lá estão eles,Bíblias  traduzidas e panfletos escritos em árabe nas mãos, quando nãovídeos com a história de Jesus, devidamente dublados na mesma língua, naempreitada arriscada e arrogante, quando não suicida, de tentar converteros muçulmanos. A estrela maior dessa onda é Franklin Graham, filho do mais

célebre pregador evangélico dos Estados Unidos, Billy Graham. Como o paiem sua época, Graham filho mantém relações estreitas com os altos poderesde Washington. É próximo de George W. Bush. Já pregou para os militaresdo Pentágono numa Sexta-Feira Santa. Sua opinião sobre o Islã é que é umareligião "do mal".

A revista Time dedicou sua última reportagem de capa ao tema. "Devem oscristãos converter os muçulmanos?" é o título da reportagem, e nela se éapresentado a personagens como Luis Bush (não é parente de sangue, mas,nas idéias... quem sabe?), outro pregador evangélico. Ele é autor da tese de

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que toda uma larga faixa do planeta, variando entre 10 e 40 graus norte, é"escravizada" pelo Islã, pelo hinduísmo e pelo budismo e portanto, em últimaanálise, pelo demônio. O Islã, segundo ele, tenta, a partir de sua base,lançar tentáculos pelo mundo afora. "Numa estratégia similar", acrescenta,"devemos penetrar em seu coração, com a verdade libertadora doEvangelho." Outro personagem, este protegido pela Time,  por razões desegurança, com o nome fictício de "Robert", festejou a guerra contra oIraque como o evento que lhe abriu as portas para o país onde mais queriaconcentrar os esforços. "O que é preciso entender", diz ele, "é que adiplomacia não funciona com Satanás."

Nem todos os missionários compartilham a mesma visão predatória. Algunsnem proselitismo fazem. Contentam-se com as obras de caridade como

forma indireta de angariar simpatias e, com alguma sorte, adeptos. Há umaviolência intrínseca, no entanto, mesmo nas versões mais benignas domissionarismo. O Brasil das origens teve experiência disso. Os jesuítas eevangelizadores de outras ordens contribuíram para o desenraizamento e aperda de identidade dos nativos tanto quanto os colonos que osescravizavam e maltratavam fisicamente. O missionário sempre se põe numasituação de superior para inferior com relação à sua presa. Claro, ele é oportador da Verdade. A Verdade. Quem pode com ele? Ainda se fosse comono Japão... No Japão as famílias têm em casa um altar xintoísta e outrobudista. Podem praticar as duas religiões ao mesmo tempo. Já asmonoteístas são terrivelmente exclusivistas. Há exceções, como osincretismo que no Brasil mistura o cristianismo e as crenças africanas. Areligião católica, depois de um milênio e meio de intolerância, muitas vezesintolerância assassina, aprendeu as virtudes da flexibilidade. O mesmo nãose pode dizer dos evangélicos.

Os missionários que invadem o Iraque, implicitamente estimulados pelofundamentalismo reinante em Washington, agem, se se permite acomparação, como o PTB ou o PL, quando lançam sua rede de pescar sobreas almas perdidas do Parlamento brasileiro. Só que muçulmano é diferentede deputado brasileiro do baixo clero. A religião integra sua identidade.

Tentar despojá-lo dela equivale a tentar quebrá-lo por dentro. DiogoMainardi escreveu, algumas edições de VEJA atrás, que o Brasil precisa demenos deus. O mundo precisa de menos ainda. A religião está entranhadaem quase todos os conflitos contemporâneos – da Irlanda e da Bósnia, naEuropa, às lutas da África. Religião, no mundo de hoje, divide de modo maiscruel que política, que cor da pele ou que futebol.

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ENTREVISTAS

O terror de Alá Amir Taheri - 21 de outubro de 1987 

O radicalismo islâmico, que está no poder no Irã do aiatoláKhomeini, conduz sempre ao terrorismo, diz escritorexilado

Desde que começou a expor ao mundo as entranhas do regime do aiatoláKhomeini através de seus livros, o jornalista, escritor e economista iraniano

Amir Taheri, de 43 anos, tinha consciência de que o preço dessa ousadiaseria alto. Taheri não visita a família em Teerã desde setembro de 1982 enão pensa em repetir a viagem tão cedo. "Depois de ter publicado meuslivros, não sei como seria recebido", desconfia ele. "Poderia até passardespercebido - afinal, sou um escritor -, mas correria o risco de ser fuzilado.0 regime iraniano é imprevisível." Exilado por conta própria em Paris, poucosmeses depois de Khomeini tomar o poder, em 11 de fevereiro de 19791Taberi transformou-se em um dos mais requisitados observadores dosacontecimentos em seu país no Ocidente. por onde circula quinzenalmenteno eixo Paris-Londres-Nova York.

Em 1985, Taberi escreveu Khomeini , uma biografia do aiatolá já traduzidapara oito idiomas, em que mostra por que o líder iraniano desafia igualmentea União Soviética e os Estados Unidos. No ano passado, ele publicou HolyTerror (Terror Santo), considerada uma das obras mais bem documentadassobre o terrorismo islâmico. Economista formado na Inglaterra, Taheridespeja em seus livros toda a experiência acumulada como jornalista no Irã.Quando Khomeim assumiu o poder, ele era o redator-chefe do principal jornal iraniano, o Kayan, e deixou o país, decepcionado, ao ver o novoregime nacionalizar toda a imprensa.

Em qualquer capital da Europa onde esteja, Taheri toma precauções básicaspara sua segurança pessoal, não fornecendo o número do seu telefone eendereço sem antes certificar-se da identidade e das intenções de quem oprocura. "A polícia européia não elucida os casos de terrorismo entremuçulmanos", queixa-se ele. Ocupado com os retoques finais do livro queescreveu sobre o escândalo da venda de armas americanas ao Irã e o iníciode uma nova obra sobre a vida dos muçulmanos na União Soviética, Taberiabriu um espaço em sua agenda para falar a VEJA sobre a vida no lrã dosaiatolás e a temida exportação da revolução islâmica.

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VEJA - Em s e u l i v r o K h om e i n i o s e n h o r c om pa r a o a i a t o l ó a S tálín .

Q u e p o n t o s ex i s t e m e m c o m um e n t r e e l e s?

TAHERI - Os dois são idealistas, no sentido de tentar impor a sua verdade,as suas idéias. Os dois são extremamente cínicos e acham que o fim justificaos meios. O culto à personalidade é outra característica em comum. Não épor acaso que o título de Stálin era o "Guia Supremo". Khomeini também é oguia supremo. Mas acho que Khomeini é pior do que foi Stálin. Khomeini éum rebelde místico, o que o torna mais perigoso ainda.

VEJA - Com o o s e n h o r d e f i n e o r e g i m e d o a i a t o lá K h om e i n i ?

TAHERI - O Irã vive hoje uma versão oriental do nazismo. Toda dissidência é

punida, o povo é arregimentado e, como fazia Hitler, o governo de Khomeinise dirige aos jovens.

VEJA - Que técn i c a s d e p e r s u a são o s a d e p t o s d o s e u g o v e r n o

u t i l i z a m ?   

TAHERI - As pessoas vivem aterrorizadas no Irã. Quando vai haver algumamanifestação, os líderes mais fanáticos saem batendo de porta em portaanunciando a hora e o local, e dizem que se eles não participarem o sanguedos mártires da guerra vai ferver e coisas ruins podem acontecer. A casapode ser incendiada, o carro destruído, os filhos poderão desaparecer e a

mulher ser presa. Aterrorizando as pessoas, os adeptos do governo aomesmo tempo as mobilizam.

VEJA - P o r q u e a s m u l h e r e s i r a n i a n a s v o l t a r a m a u s a r o ch a d o r ,

d e p o i s d a r e v o l u ção , c om t a n t o e n t u s i a sm o ?

TAHERI - As que não portam o chador são atacadas pelas gangues de jovensmilitantes. Eles desfiguram as mulheres com ácido sulfúrico ou comcanivetes e elas podem ser presas por vários meses. O terror é permanentee as mulheres são os seres mais oprimidos pelo regime de Khomeini.

VEJA - Mas são c o n s t a n t e s a s m an i f e s t a çõe s d e a p o i o a o r e g im e

f e i t a s po r m u l h e r e s . Es s e ap o i o n ão ére a l ?

TAHERI – O islamismo infantifiza as mulheres e, ao mesmo tempo, lhes dásegurança. Elas não têm que competir no mercado de trabalho, nãoprecisam encontrar um marido. Tudo é arranjado para elas.

VEJA - A q u e s e d e v e a o p r e s são d a s m u l h e r e s n o I rã?

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TAHERI - Khomeini prega que as mulheres têm satã dentro delas e que 60%dos problemas humanos são devidos à relação sexual. Ele diz comfreqüência: "Pena que as mulheres existam, porque sem elas os homenspoderiam dar toda a sua atenção a Alá".

VEJA - Com o o r e g i m e i r a n i a n o m o b i l i z a o s j o v e n s ?

TAHERI - As crianças e os jovens são recrutados, manipulados e submetidosa uma lavagem cerebral. O regime lhes dá uma ilusão de poder. Nasrepartições públicas, existem muitos adolescentes que possuem poderesextraordinários. Ao lado de cada funcionário graduado existem dois ou três jovens, com a barba rala, que podem decidir até quem deve ou não ir para acadeia.

VEJA - E is s o n ão g e r a o c ao s n a ad m i n i s t r a ção i r a n i a n a?

TAHERI - Recentemente, um bando de jovens funcionários do governoprendeu por dez dias o prefeito de Ispahã, a segunda cidade mais importantedo Irã, e houve muita confusão antes que os próprios dirigentes osconvencessem a soltá-lo. Ninguém foi punido. Em outra ocasião, um rapazde 16 anos foi à principal agência do Banco Nacional de Teerã, expulsou odiretor e instalou um comitê revolucionário em seu lugar. Verificando osarquivos do banco, eles viram que muitas pessoas deviam dinheiro econsideraram isso um pecado. Mandaram prender todos os devedores e asautoridades levaram quinze dias de negociação para explicar-lhes queaquelas pessoas haviam feito empréstimos regulares com o banco.

VEJA - D e q u e m a n e i r a o s j o v e n s são r e c r u t a d o s p a r a a g u e r r a ?

TAHERI - Antes de partir, eles recebem uma chave de plástico coloridafabricada em Formosa que Khomeini diz ser a chave do paraíso. E eles acolocam em torno do pescoço. Khomeini diz também que os combatentescorajosos montarão num cavalo feito inteiramente de luz e subirão ao céupara contemplar Alá.

VEJA - Qu e i d a d e t êm es s a s c r i a n ças?

TAHEIU - Em média 15 anos, mas muitos têm 10 ou 12 anos. É a idadepropícia a qualquer manipulação. Atores arregimentados pelo regime fazemrepresentações de aparições de santos no horizonte e uma voz lúgubre diz:"Meus filhos, eu vim do céu para confortá-los nesse momento terríve!". Sãoatores pagos pelo Estado para fazer o papel das aparições divinas.

VEJA - E qu a l a f u n ção d a s c r i a n ças n a g u e r r a e n a c i d a d e?

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TAHERI - Elas servem para a limpeza dos campos minados. Muitas vezes ospais têm de esconder os filhos para impedir que sejam mortos no front. Nascidades elas são recrutadas também como espiões para vigiar quem é ummau muçulmano. Em troca, Khomeini promete que elas terão um lugar noparaíso. Em 1984 ele conclamou as crianças a espionar os hábitos dos pais,dos professores e dos vizinhos. Cada jovem tinha o dever de espionar setevizinhos.

VEJA - Qu a l éa j u s t i f i ca t i v a p a r a e s s e t i p o d e t r a t am e n t o ?

TAHERI - Khomeini diz que a infância é uma invenção do Ocidente paraimpedir os seres humanos de assumir suas responsabilidades. "Se umacriança compreende que não deve pôr a mão no fogo porque queima, ela já

é uma pessoa que sabe distinguir entre o bem e o mal", escreveu Khomeiniem seu livro. Não se deve esquecer que os homens podem se casar aos 16anos e as mulheres aos 9. Khomeim mesmo se casou com sua mulherquando ela tinha 9 anos.

VEJA - Po r qu e o Oc i d e n t e étão o d i a d o n o I rã?

TAHERI - Com a corrupção do regime do xá, os regimes ocidentais foramassociados à falta de honestidade. As elites que falavam em democracia esocialismo andavam de Mercedes-Beriz. Os iranianos não perderam aconfiança na democracia, mas a falta de tradição democrática ajudouKhorneini a pregar a volta ao século XIV.

VEJA - Com o éf e i t a e s s a p r o p a g a n d a ?

TAHERI - Khomeini diz que os estrangeiros, principalmente os americanos,vão conquistar nosso país, vão dormir com nossas mães, irmãs e filhas, vãonos desonrar e nos violentar.

VEJA - Mu i t a s p e s so a s d a c l a ss e d i r i g e n t e d o r e g i m e d e K h om e i n i

e s t u d a r a m em u n i v e r s id a d e s d a Eu r o p a e d o s Es t a d o s U n i d o s . Com o

épo s síve l q u e h o j e pe n s em as s im ?

TAHERI - O ministro das Relações Exteriores do Irã é médico pediatra. Seupai era contínuo de um banco e sua mãe empregada doméstica. Ele foienviado, corn bolsa de estudo do governo, para estudar nos Estados Unidos.Trata-se de um caso típico. Quando um homem assim retorna, os pais quepossuem um vocabulário de cerca de 1 000 palavras não conseguementendê-lo. Ele se revolta com isso e passa a rejeitar o Ocidente. Sair do Irãpara estudar num país desenvolvido equivale, muitas vezes, ao choque deum carro num muro de concreto a 200 quilômetros por hora.

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VEJA - A p r e s e n ça d a M a r i n h a d o s E st a d o s U n i d o s n o Go l f o Pérs i c o

e s tá i n f l u i n d o n o s r um o s d a g u e r r a e n t r e o I rã e o I r a q u e ?

TAHERI - Mesmo com incidentes com os recentes ataques americanos contrabarcos do Irã, Khomeini tem pouco a reclamar da vigilância da Marinha dosEUA no golfo. A presença americana exige também que os iraquianos nãoataquem navios e instalações petroleiras do Irã. Ora, é exatamente isso queos iranianos pedem desde 1984. O Irã é forte na guerra em terra firme. Noar, a supremacia é do Iraque. Por isso, o único local onde os iraquianosinfligiam perdas significativas ao Irã era no golfo, atrapalhando a exportaçãodo petróleo iramano. O Iraque não tem nenhum interesse nessa área porqueescoa sua produção através da Turquia e da Arábia Saudita. É a primeira vezdesde 1983 que o Irã está vendendo seu petróleo sem problemas - 400 000

barris de óleo a mais atualmente do que antes da presença americana nogolfo. É o recorde absoluto desde que a guerra começou.

VEJA - Os EUA g a s t am m i l h õe s d e d ó la r e s p a r a p r e s e r v a r o s s e u s

i n t e r e s s e s e a c a b am p r o t e g e n d o o s i n t e r e s s e s d o I rã?

TAHERI - Os americanos gastam cerca de 10 milhões de dólares por dia paramanter a frota no Golfo Pérsico e, por tabela, ajudam Khomeini a receber 60milhões de dólares a mais diariamente. Ao mesmo tempo, o aiatolá mobilizao país contra o "Grande Satã".

VEJA - É po s síve l a de r i r a o s p r i n cíp i o s do f u n da m en t a l i sm o

m uçu l m a n o s em s e r t e r r o r i s t a ?

TAHERI - O radicalismo islâmico leva inevitavelmente ao terror. Há catorzeséculos que isso é verdade. Não se pode dizer que um islamita radical -mesmo que trabalhe num escritório, escreva tranqüilamente e não participede nenhuma ação - seja inofensivo. As coisas que ele escreve matam. Não sepode impor o fundamentalismo islâmico no mundo de hoje sem a violência.Conheço radicais islamitas que são puros e gentis, mas estão fora do poder.Uma vez no governo, o idealismo deles mata. O fundamentalismo é um

instrumento de assassinato individual e coletivo.VEJA - P o r q u e o s g o v e r n o s d a F r a n ça e d o s EUA , e n t r e o u t r o s ,

n e g o c ia m c o m o t e r r o r i sm o ?

TAHERI - Para obter resultados eleitorais. O governo de Khomeini é terroristaem sua política externa e interna. E preciso haver uma ação comum paracombatê-lo. Essa atitude comum deve basear-se em princípios claros deretaliação econômica e política, e não em bravatas no Golfo Pérsico.

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VEJA - Com o o r e g i m e d e K h om e i n o r g a n i z a a e x p o r t ação d a

r ev o l u ção i s lâm i ca ?

TAHERI - Khorneim diz que o dever de cada islamita é de "matar e ser mortopor Alá". É assim que ele encoraja os terroristas. Ele diz também que oprimeiro dever de cada diplomata no exterior é a exportação da revoluçãoislâmica. A Embaixada do Irã em Brasília não existe para fazer diplomacia,comércio ou intercâmbio cultural. O dever dos diplomatas que lá estão é o depromover a revolução islâmica. Há quatro meses Khomeim recebeu todos odiplomatas do Irã na Europa e reafirmou essa orientação.

VEJA - A s e m b a i x a d a s p r a t i ca m a t o s d e t e r r o r i s m o ?

TARERI - Elas servem de base logística. Algumas são de extrema importânciacomo a Embaixada do Irã no Vaticano. Desde 1982, ela passou a funcionarcomo o principal centro de incentivo ao terrorismo islâmico na Europa.

VEJA - Qu e a t r i b u i çõe s t i n h a e s t a em b a i x a d a ?

TAHERI - Financiar o terrorismo, utilizar a mala diplomática para troca dedocumentos sobre as operações, fornecer documentos falsos e recrutarpessoas. Nós sabemos hoje que a embaixada no Vaticano chefiava a rede deterroristas na Europa.

VEJA - P o r q u e a Em b a i x a d a d o V a t i ca n o f o i e s co l h i d a p a r a e x e r c e r

e s se t i p o d e co o r de n ação?

TAHERi - Exatamente porque o Vaticano não exerce nenhum tipo de controlee fiscalização sobre ela e porque ela está a salvo da polícia italiana. Hoje, aembaixada em Genebra tomou-se muito importante também como centro deespionagem. A da Inglaterra e a da França foram núcleos importantes atérecentemente. Não se trata de nenhum segredo, só que ninguém lê osdiscursos de Khomeini como ninguém lia os discursos de Hitler.

VEJA - Com o éa f o r m ação d e um t e r r o r i s t a ?

TAHERI - Primeiro existem escolas ideológicas para lavagem cerebral, comoa escola de Qom. Os alunos em seguida seguem três caminhos distintos:uma parte é enviada ao front de guerra, outros tornam-se propagandistas evão pregar a revolução islâmica nos países árabes, na Europa e nos EstadosUnidos, e uma terceira parcela especializa-se em atos terroristas.

VEJA - O q u e s e e n s i n a n e s s e s c u r s o s d e t e r r o r i s m o ?

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TAHERI - Existem basicamente dois cursos: o de pirataria aérea. localizadono Líbano, e o de fabricação de bombas e terrorismo urbano, ministrado emTeerã e Tabriz. Na escola de pirataria aérea, o aprendizado é feito emmaquetes de aviões Boeing e Airbus.

VEJA - A s e s co l a s r e l i g i o s a s c o n h e c id a s c om o c e n t r o s co r ân i c o s e q u e

c om eçam a s e e s p a l h a r p e l a Eu r o p a t am bém f a z em p a r t e d e s sa r e d e ?

TAHERI – Os radicais de cada centro pressionam e intimidam os moderados.Em Genebra, um bando de khorneinistas atacou recentemente uma escolacoránica enorme. Eles destruíram tudo, bateram nos alunos e a polícia suíçanada fez. Também recentemente os radicais mataram um iraniano no centrode Genebra, na frente de sua mulher, e a polícia nada descobriu.

VEJA - E p o r q u e a p o l íc i a s e a c om od a n e s s e s c a s o s ?

TAHERI - Quando se trata de terrorismo entre muçulmanos, a polícia nadafaz com medo de represálias contra a sua própria população. Se mataremum cidadão suíço, será outra coisa. Em Paris, foram assassinadas cincopessoas ligadas ao regime do xá, e não se descobriu nada.

VEJA - Qu a l a r e ação d a s c o m pa n h i a s aér ea s a o t e r r o r i sm o?

TAHERI - A Lufthansa, a British Airways e a Swissair pagam aos terroristas

iranianos para não ter seus aviões seqüestrados. Minhas fontes no OrienteMédio deram provas disso. Evidentemente, não posso identificá-las, mas sãode toda confiança.

VEJA - A e x p o r t ação d a r ev o l u ção i s l âm i c a ém a i s a g r es s i v a d o q u e a

c o m u n i s t a ?

TAHERI - Eu creio que sim. O comunismo faz parte do mundo moderno. Nóspodemos gostar ou não dele. Nos países desenvolvidos, os comunistas, emgeral, combatem no plano das idéias. Na França, o comunismo não é

exportado pela violência, mas o islamismo é. A implantação do comunismonos países subdesenvolvidos é violenta, mas esse combate se dá em tomode idéias e sistemas aceitos no século XX. Os comunistas, com freqüência,negociam politicamente. Com os islamitas não existe acordo possível. Elesquerem dominar e destruir não importa qual sistema de todos os países.

VEJA - Qu a l éo p o n t o f r a c o d o r e g i m e i r a n i a n o ?

TAHERI - A multiplicidade das facções que disputam o poder. No Irã existemvárias correntes contraditórias unidas pela autoridade de Khomeini. Com o

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fim do aiatolá, esses grupos vão perder esse fator de coesão. Será o mesmoque imaginar o nazismo sem Hitler.

VEJA - Qu a l éo f u t u r o do I r ã n a s u a o p i n ião?

TAHERI- Acho que até o fim do século a República islâmica estará extinta. Oradicalismo dos camicases do regime age nos dois sentidos. Hoje, os livrosislamitas, vendidos a preços irrisórios, sobram nas livrarias. Os cidadãoscomuns freqüentam cada vez menos os locais de peregrinação e os queperderam as suas casas e seus filhos na guerra começam a associar talfatalidade ao regime a que estão submetidos. São 4 milhões dedesabrigados, 1 milhão de mortos e 1 milhão de feridos. Cento e cinqüentamil prisioneiros, 3 milhões de exilados e 5 milhões de desempregados que

começam a gerar uma reação em cadeia. Aristóteles diz que a corrupção deum sistema vem sempre do exagero de seu princípio fundamental. Excessode democracia mata a democracia. O comunismo radical acaba asfixiando oregime comunista. Assim, o exagero islâmico acabará com o regime islamita.

VEJA - O s e n h o r p r e vê a v o l t a d a m o n a r q u i a ?

TAHERI - Acho difícil prever a forma do regime político que o povo escolherácom o fim do islamismo. Espero que seja um governo capaz de fazer o Irãentrar no século XX antes que ele acabe. 

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Não peço desculpasSalman Rushdie - 17 de maio de 95 

Condenado à morte por Khomeini há seisanos, o escritor está farto de viver escondido,mas continua resistindo às pressões 

.........................William Waack

Entrevistar o escritor britânico Salman Rushdie, escondido desde 1989,quando o aiatolá Khomeini, então o todo-poderoso líder do Irã,

prometeu 3 milhões de dólares para quem o matasse, é comoparticipar de um filme barato. Rick, do Special Branch da Scotland Yard(os 280 policiais do esquadrão de elite antiterrorista), abre cada umadas 36 latinhas de filme, revista minuciosamente repórter e fotógrafoe, sempre vigilante, só então os transporta para um lugar neutro edesconhecido, que resulta ser uma suíte no 2º andar de um tradicionalhotel no centro de Londres. Outro policial está no quarto, recompondoa TV que desmontou à procura de alguma bomba. Acompanhado pormais dois agentes, Rushdie chega apressado, o rosto disfarçado comum vistoso chapéu marrom de abas largas e óculos escuros. "Já estou

cheio de viver assim", desabafa. 

Depender para sobreviver da mesma polícia que ele acusava de brutale racista em relação a imigrantes é apenas uma das ironias dos últimosconturbados anos da vida de Rushdie, 47 anos, filho de uma prósperafamília de Bombaim e há 33 vivendo na Inglaterra. Revelação literáriano país com sua novela Os Filhos da Meia-Noite, ganhou celebridademundial ao se transformar em alvo de muçulmanos enfurecidos com apublicação de Os Versos Satânicos, livro tão discutido quanto poucolido e que, do ponto de vista de fundamentalistas, contém ofensasimperdoáveis ao Islã. Governos ocidentais trataram do caso Rushdiecom visível má vontade, companhias aéreas o tiraram da lista depassageiros, o casamento acabou e a ex-mulher saiu criticando-o ementrevistas. No Brasil, nunca foi publicado, por temor dos editores. MasRushdie não parou de trabalhar. Seu último livro, Oriente, Ocidente,uma coleção de contos tendo a imigração como tema principal, sai noBrasil no mês que vem. Um novo romance, O último Suspiro do Mouro,está programado para 1996. Rushdie falou a VEJA na semana passada,

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pensando na hipótese de visitar o Brasil. "Disseram-me que lá é oparaíso", sonha ele.

VEJA - Com o év i v e r e s c o n d i d o d u r a n t e s e is a n o s , d e p o i s d e t e r

s i d o c o n d e n a d o à m o r t e p o r f u n d am e n t a l i s t a s i s lâm i c o s ?

RUSHDIE - Intolerável. Estragou a melhor parte da minha vida: tinha41 anos quando isso começou. 

VEJA - O s en h o r p o d e s a i r , i r a r e s t a u r a n t e s o u a o c in em a ?

RUSHDIE -  Posso, pois há uma diferença entre esconder e proteger

alguém. 

VEJA -  Ce r c a d o d e a g e n t e s s e c r e t o s , dá p a r a f a z e r c o i s a s

c o m u n s , co m o v i s i t a r a m i g o s?

RUSHDIE - Prefiro nem responder a essa pergunta, tire suas própriasconclusões. O confinamento a que eu estava submetido no começo nãoexiste mais, embora a ameaça continue presente. E isso destrói a vidade qualquer um. 

VEJA - So b r o u a l g um a c o is a d a i n t e n s a v i d a s o c i a l q u e o s e n h o rl e v a v a a n t e s ?

RUSHDIE - Os jornais já se acostumaram a que eu apareça em umlugar ou outro, a ponto de os conservadores dizerem que não valemais a pena gastar dinheiro público na minha proteção pessoal. 

VEJA - É v e r d a de qu e o s e n h o r e s t á pa ga n do s u a p r o t eção d o

p r ó p r i o b o l s o ?   RUSHDIE -  Mais de 800.000 dólares do meu dinheiro foram gastos

nisso. Foi um acordo com a polícia, do qual não posso dar detalhes,para melhorar minha segurança pessoal. Tem gente falando que minhaproteção custou cerca de 6 milhões de dólares ao ano. É exagero. Achoque nunca chegou nem perto disso. 

VEJA - Com pa n h i a s aér e a s c o n t i n u am r e c u s a n d o - s e a a c e i t á- l o

c om o p a s s a g e i r o ?

RUSHDIE - Com a Lufthansa e a British Airways é um problema. Osargumentos que elas mencionam para não me transportar não são

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racionais. O governo britânico acha que se forem tomadas asprecauções habituais eu não represento nenhum risco adicional. No

caso da Lufthansa, acredito que as verdadeiras razões são as boasconexões comerciais entre os alemães e os iranianos. 

VEJA - Se u c a s am e n t o t e r m i n o u d u r a n t e e s se p e r ío d o , o s e n h o r

e s tá s e p a r a d o d e s e u f i l h o . Com o f a z p a r a l i d a r c om e s s e t i p o d e

s i t u ação ?

RUSHDIE -  Meu casamento já estava terminando, de qualquermaneira. Mas consegui levar uma vida quase normal, emocionalmente.Eu não quero dar detalhes, só posso dizer que nada é impossível.

Quanto ao meu filho, se você não se importa, gostaria de deixar issode fora. Eu tento ser pai, falo muito com ele pelo telefone e acho queconseguimos estabelecer uma boa relação, mas não quero falar muitodisso. Fico impressionado com a coragem que ele mostrou nessetempo todo. 

VEJA - Com o t e m s id o s e u t r a b a l h o d e e s cr i t o r , a r t i f i c ia l m e n t e

s e p a r a d o d e q u a s e t u d o ?

RUSHDIE - A memória de um escritor é muito ampla, e há muita coisa

para tratar. Meu isolamento já não é tão completo como no começo,mas cria problemas especiais. O livro que acabei de terminar, e quesairá no Brasil, estava na minha cabeça há muito tempo. Uso muito asanotações sobre vários lugares que visitei na índia e a memória tãoviva que tenho de minha cidade natal, Bombaim, da qual sou capaz dedizer qual loja está em qual esquina, qual ônibus vai para onde. 

VEJA - O s e n h o r e s tá p e n s a n d o em t r a b a l h a r l i t e r a r i a m e n t e s u a

e x p e r iên c i a c om o c o n d e n a d o à m o r t e ?

RUSHDIE -  Durante esse tempo todo escrevi um diário. Um diagostaria de escrever um livro contando tudo, sobretudo um monte desegredos que não posso revelar agora, nomes de pessoas maravilhosasque me ajudaram e ainda não posso mencionar. 

VEJA - É ve r d a d e q u e , em t r o c a d a s u s p e n são d a s e n t e n ça , o

s e n h o r e s t a r i a d i s p o s t o a n ão s e m e t e r m a i s em p o lít i c a ?

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RUSHDIE -  Não faço compromissos com assassinos. Não tenhointeresse, de qualquer maneira, em projeção política, embora minha

obra seja de certo modo política, o que traz suas conseqüências. 

VEJA - Se u c a s o não t em s i d o d e f e n d i d o c om u n a n i m i d a d e , não

im p o r t a s e em cír c u l o s d e e s q u e r d a o u d i r e i t a . Com o o s e n h o r

s e se n t e d i a n t e d i s s o ?

RUSHDIE - Há períodos em que realmente é muito difícil interessar aspessoas ou os governos pelo meu caso. Aqui na Inglaterra, porexemplo, foi duro mobilizar até mesmo a antiga liderança do PartidoTrabalhista, que eu sempre apoiei. Com Tony Blair (o novo líder

trabalhista), isso mudou. Por outro lado, o governo conservador foimuito enérgico em me proteger. 

VEJA - O se n h o r , q u e t e m c r i t i ca d o a b e r t a m e n t e o s g o v e r n o s

e u r o p e u s , a c r e d i t a q u e n a d a e s t á s e n d o f e i t o p a r a a j u d á- l o ?

RUSHDIE  - Até há pouco não havia realmente muita disposiçãopolítica em resolver meu caso. É muito difícil convencer esses governosa aplicar pressão econômica sobre o Irã, pois existe um desejo muitoforte de ganhar dinheiro com esse país. Mas agora o Irã passa por uma

situação difícil e não está mais podendo pagar suas contas, o quetornou mais fácil para os governos europeus lembrar coisas comodireitos humanos. 

VEJA - Ma s o s g o v e r n o s d a Un ião Eu r o péia ap r e s e n t a r am ao I rã

a e x i gên c i a d e s u s p e n d e r a s e n t e n ça d e m o r t e c o n t r a o s e n h o r .

RUSHDIE - Até agora não temos resposta a essa exigência, que não éa criação de uma zona livre para mim - algo com que não concordo,pois seria admitir implicitamente a sentença de morte. O que está

sendo exigido são garantias, de alcance mundial, de que essa sentençanão será executada. 

VEJA - O g o v e r n o i r a n i an o a r g u m e n t a q u e n a d a t em a v e r co m

i s s o , q u e a d e c i são f o i t o m a d a p o r a u t o r i d a d e s r e l i g i o s a s e não

s e c u l a r e s .

RUSHDIE - O regime iraniano é teocrático. Em tudo está misturada aautoridade governamental e a religiosa. Só no meu caso seriadiferente? Existe uma unidade entre religião e governo no Irã. Desde

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1989, quando o aiatolá Khomeini pronunciou a sentença, a únicaameaça detectada pelos serviços secretos britânicos era representada

por agentes diretamente ligados ao governo do Irã. Se obtivermosuma garantia do Estado iraniano de que nada será feito, 95% doproblema estará resolvido. A longo prazo admito que outro fanáticopossa representar perigo, mas todo tipo de personalidade pública sofreessa espécie de risco. No fundo, essa coisa toda a meu respeito estácansando todo mundo. A mim, inclusive. Gostaria de nunca mais ter demencionar a palavra Irã, um país pelo qual nunca me interessei muito. 

VEJA - N em p e l o t i p o d e m o v i m e n t o p o l ít i c o , p o p u l a r e r e l i g i o so

q u e o c o r r e u lá?  

RUSHDIE -  Nem isso, pois eu fui criado num tipo de islamismo defundo sunita. Nada tenho a ver com os xiitas iranianos. Minha famílianão era muito religiosa. 

VEJA -  M a s o s e n h o r d e c l a r o u , p o u c o d e p o i s d a s e n t e nça

p r o f e r i d a p o r K h om e i n i , q u e s e h a v i a co n v e r t i d o a o I s lã. P o r

q u e f e z i s s o ?

RUSHDIE - Esse foi meu maior erro. Aconteceu no final de 1989, no

pior momento psicológico para mim, quando me sentia totalmentesozinho e abandonado. Por culpa desse desespero é que declarei queme tinha convertido ao Islã, o que tratei de corrigir mais tarde. A razãopara voltar atrás é que não estava sendo honesto comigo mesmo. Foi aúnica vez em que disse alguma coisa que não correspondia a minhaconvicção. 

VEJA - O m o v i m e n t o r e l ig i o so e p o p u l a r i n sp i r a d o p o r K h o m e in i

n u n c a o i m p r e s si o n o u ?

RUSHDIE  - Evidentemente, quando a revolução iraniana começou,unia todo o arco da sociedade em torno de Khomeini. Muita gente, eutambém, cometeu o erro de acreditar que depois da vitória darevolução o elemento religioso ficaria em plano secundário. Acho quetodo mundo o subestimou. Minutos após a vitória da revolução,Khomeini a devorou. Foi uma revolução extraordinária, e uma grandetragédia que essa coligação contra o xá tivesse sido destruída demaneira tão rápida. 

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VEJA - Ao e s c r e v e r s e u l i v r o m a i s f am o s o , Os V e r s o s Sa t ân i c o s ,

q u e o r i g i n ou t od a e ssa s i t u ação , h av i a o u n ão a i n t e n ção d e

c r i t i c a r u m a r e l i g ião , o I s lã?

RUSHDIE -  Não, a maior parte do livro não é sobre religião, e simsobre imigração, sobre gente que sai de um mundo e entra em outro.Minha idéia, muito simples, era a de que uma pessoa que passa porisso acaba questionando tudo, sua cultura, sua identidade,reinventadas num novo mundo. Isso vale tanto para um indiano quechega à Grã-Bretanha como para um brasileiro que aterrissa nosEstados Unidos. Um desses aspectos é, obviamente, a religião. No meulivro o que existe é uma versão do Islã, mas poderia ter sido de

qualquer outra religião, a católica, a judaica ou a hinduísta. 

VEJA - Ma s o s e n h o r e s c o l h e u o I s lã, e m u i t a g e n t e s e se n t i u

o f e n d i d a .

RUSHDIE - O Islã entra no livro através de seqüências de sonhos deum dos personagens, e ainda por cima um personagem que estáficando louco. Não pretendia fazer um retrato dessa religião. 

VEJA - Pe s s o a s m u i t o r e l i g i o s a s em g e r a l n ão e s t ão d i s p o s t a s a

a c e i t a r q u e s e f açam p a r ó d i a s, r e t r a t o s o u b r i n c a d e i r a s c omsu as c r en ças .

RUSHDIE - No fundo tudo isso pode ser resumido a uma guerra entrepessoas que encaram uma piada e outras que não conseguem aceitarbrincadeiras. A maioria das pessoas que se sentiram ofendidas nemsequer leu o livro. 

VEJA -  O s e n h o r não e s t á e s p e r a n d o d e r e l i g i o s o s u m a

a b o r d a g em f r i a e r a c io n a l q u a n d o s e s e n t em o f e n d i d o s , e s tá?

RUSHDIE - Muita gente se sente ofendida por várias coisas, até porobras de arte. O papa achou ofensiva a nudez das pinturas deMichelangelo na Capela Sistina, por exemplo. É comum que obras dearte ofendam pessoas. 

VEJA -  O se n h o r n u n c a s e s e n t i u c om p e l id o a o f e r e c e r

d e s c u l p a s às p e s s o a s q u e s e s e n t i r am o f e n d i d a s c om s e u l i v r o ?

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RUSHDIE -  Não. Eu me sinto ofendido o tempo todo por muitascoisas, mas não penso em matar seus autores. É muito fácil não se

sentir ofendido por um livro: é só não lê-lo. Se você é uma pessoamuito religiosa, não precisa ler o livro. Se estiver lendo e não gostar,feche o livro. 

VEJA  -  A p r o v e i t a n d o o f u r o r e m t o r n o d o s eu c a so , a lg u m a s

p e s s o a s d i z em q u e v a l o r e s r e l ig i o s o s d e v e r i a m t e r um t i p o d e

p r o t eção es p ec ia l .

RUSHDIE - Discordo totalmente disso. Claro que valores religiosos sãoimportantes para muita gente, mas quem vai decidir quais valores

serão protegidos de que maneira? Os extremistas religiosos? Éimportante que o discurso religioso não mereça nenhum outro tipo deprivilégio em relação a qualquer outro tipo de discurso. Toda religião érelevante, mas ela é apenas uma idéia entre outras idéias. 

VEJA  - Com o o sen h o r vê a ex p an são d e i déias r e l i g i o sa s

f u n d am en t a l i s t a s p e l a ás i a , áf r i c a e O r i e n t e Méd io?

RUSHDIE  - O fundamentalismo é um movimento político, e nãoreligioso. A teologia do fundamentalismo é completamente banal. Nada

tem a oferecer. É sofisticado apenas como movimento terrorista. E traza maior das opressões: a opressão contra a mulher. Nenhuma culturaprogride enquanto se encerra numa gaiola. Cultura é diálogo, é umainfinita e ininterrupta conversa entre pontos de vista divergentes. 

VEJA - A l g u n s d e s e u s am i g o s d e es q u e r d a d i ze m q u e o s e n h o r

não o s a j u d a a d e f e n dê- l o , j á q u e a s s u m i u e m s u a o b r a

p o s içõe s i n c ôm o d a s , a g r e s s iv a s c om o s s i s t em a s d e v a l o r e s d e

m u i t a g e n t e . O se n h o r c o n c o r d a ?

RUSHDIE - Eu sou incômodo porque tentaram me matar. O engraçadoé que meu livro nem sequer é uma crítica muito forte ao Islã. No meulivro o Profeta se sai bem, supera as tentações a que é submetido -como todo profeta em toda religião. E, ao superar as tentações edeparar em seu triunfo com todo tipo de pessoa, as que o amavam eas que o odiavam, ele se mostra em meu livro uma pessoa tolerante. Aúnica pessoa que ele mata é o personagem do escritor. 

VEJA - Es s e m e sm o p e r s o n a g em a f i r m a n o l i v r o q u e não c o n s e g u e

v e r a d i f e r e n ça e n t r e e s c r i t o r e s e p r o s t i t u t a s . É um r e c a d o s e u ?

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RUSHDIE - Não, isso não é o que eu penso, é o que gente do tipo deKhomeini pensa. A grande diferença entre escritores e prostitutas é que a

maior parte dos escritores ganha menos dinheiro do que elas. VEJA - Em s u a o b r a o s e n h o r j á e x p e r i m e n t o u d i v e r s o s e s t i lo s .

I s so f o i in t e n c i o n a l o u o r e s u l t a d o d e a m a d u r e c i m e n t o ?

RUSHDIE - Eu escrevi um livro uma vez pensando numa criança de uns11 anos de idade. Da mesma maneira que no cinema, acho possívelescrever de forma que, pronto o trabalho, nem interessa mais saber se foioriginalmente feito para crianças ou não. Basta pensar em Spielberg. 

VEJA  - Com o o s e n h o r a c h a q u e s u a o b r a s e rá r e c e b i d a n o B r a s i l ,

um p aís q u e p e r t e n c e a um a r e g ião e um a c u l t u r a c om a s q u a i s o

s e n h o r n u n c a t e v e m u i t o c o n t a t o ?

RUSHDIE  - Estou muito curioso. Críticos compararam meus livros aescritos de autores como Gabriel García Márquez. O realismo mágico estárelacionado a uma literatura e a um continente específico, é umaexpressão que pretendo evitar utilizar em meu caso. Nos últimos vinteanos algumas das melhores obras vieram da América do Sul. Li Márquez,Vargas Llosa, Juan Rulfo, Jorge Amado, Alejo Carpentier, Ernesto Sábato,Carlos Fuentes, Julio Cortázar. Li todos eles em inglês. Indiretamente fui

influenciado por eles, sobretudo quando era estudante e descobri JorgeLuis Borges. Autores desdobram e mostram quais são as possibilidadesque se tem ao escrever. Ele foi importante na minha formação. E quandomeu livro Os Filhos da Meia-Noite foi publicado fiquei muito lisonjeado aosaber da comparação com os realistas mágicos da América Latina. Nuncaconheci García Márquez, que acho um dos maiores escritores do mundo.Encontrei uma vez Jorge Amado, aqui em Londres, numa recepção daembaixada brasileira. Fui lá apertar a mão dele, a quem admiro muito,mas acho que ele não vai lembrar-se de mim. O mundo latino-americanoé muito diferente do meu, mas fico contente em saber que existe essa

literatura com a qual me identifico bastante. 

VEJA - O s en h o r p e n s a em i r a o B r a s i l?

RUSHDIE  - Penso, se eu puder. Minha agente adora o Brasil e semprefala tanto de lá. Minha teoria é a de que o Brasil é o paraíso.  

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O Islã na mira

Paul Johnson - 26 de setembro de 2001 

Para o historiador inglês, não bastadar caça aos terroristas internacionais.É preciso levar a democracia aospaíses muçulmanos

......................................Carlos Graieb 

O inglês Paul Johnson é um homem sem meias palavras. Enquanto boa parte

dos intelectuais do Ocidente lança mão de eufemismos e procura relativizar aresponsabilidade das nações islâmicas nos atentados terroristas aos EstadosUnidos, Johnson ataca de frente. Nesta entrevista a VEJA, ele defende demaneira incondicional a posição americana e israelense nos conflitos doOriente Médio e afirma que o fundamentalismo não é um traço acidental doIslã, mas algo inerente a ele. São opiniões que esse ex-aluno daUniversidade de Oxford, hoje com 73 anos, forjou em várias décadas detrabalho como jornalista e historiador. Católico, monarquista, conservador,ele é um dos principais colunistas da revista The Spectator, uma das maistradicionais da Inglaterra. No campo da pesquisa histórica, Johnsonespecializou-se em elaborar grandes sínteses – tijolões com várias centenasde páginas, no estilo "tudo que você queria saber sobre...". Uma de suasobras mais recentes, A History of the American People (Uma História do PovoAmericano), de 1999, é uma homenagem do autor inglês ao país que eleconsidera "uma realização humana sem paralelos". Ao longo dos anos, oestudo da religião também ocupou lugar de destaque nas preocupações deJohnson. Sua bibliografia de dezessete títulos abriga dois volumes irmãos,História dos Judeus e História do Cristianismo, esse último recém-traduzidono Brasil. Johnson não descarta a idéia de um dia debruçar-se sobre aterceira das grandes religiões monoteístas – o islamismo, que ele considera"ainda mergulhado na Idade Média".

Veja – Há du a s e x p l i c ações , não n e c e s s a r i am en t e e x c l u d en t e s , p a r a

o a n t i a m e r i c an i sm o d o s m uçu l m a n o s . A p r i m e i r a é q u e e s se

s e n t i m e n t o d e c o r r e d e um ód i o r e l i g io s o à m o d e r n i d a d e , s im b o l i za d a

pe l o s Es t a d o s Un i d o s . A ou t r a , q u e e l e ére s u l t a d o d e ações po lít i c a s

c o n c r e t a s d o s am e r i c a n o s n o O r i e n t e Méd i o . Q u a l d e l a s o s e n h o r

a ch a a m a i s d e t e r m i n a n t e ?

Johnson –  Não é a segunda, definitivamente. As fontes doantiamericanismo exibido no ataque ao World Trade Center e ao Pentágono

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estão sem dúvida ligadas à natureza da religião islâmica. Tanto o judaísmoquanto o cristianismo, ao qual pertenço, são religiões antigas que passarampor grandes movimentos de modernização nos últimos séculos. O catolicismoviveu a Reforma e a Contra-Reforma, e com isso adaptou-se a situaçõescambiantes. O judaísmo atravessou aquilo que se convencionou chamar deIluminismo Judaico, no século XVIII. Já o islamismo não passou por umcorrespondente período de modernização. Permaneceu uma religião defeições medievais e gerou Estados de feições medievais, nos quais religião epolítica não se separaram uma da outra. Quando falamos defundamentalismo islâmico, na verdade estamos usando uma expressãoenganosa. Todo o Islã é fundamentalista na essência. É uma característicacongênita. Baseia-se na crença de que toda palavra do Corão é verdadeira eimutável – algo que só o mais extremista dos extremistas sustentaria hoje

num ambiente cristão, em relação à Bíblia.  Em termos de religiãocomparada, não há nada de moderado no islamismo.

Veja – A i n d a q u e se co n co r d e co m essa i d éia , d aí não d eco r r e

n e c e s s a r i am e n t e q u e o i s l am i sm o i n c i t e à v i o lên c i a . É o q u e m u i t o s

e s t u d i o s o s têm l em b r a d o n o s úl t i m o s d i a s : q u e a r e l i g ião m uçu l m a n a

p r e g a a p a z e a c o n v i vên c i a e n t r e o s p o v o s .

Johnson – Sim, há ensinamentos de paz no islamismo, mas eles nãocompõem o coração da doutrina. A palavra "Islã" não significa paz, mas"submissão". Basta ler o Corão. A sura 9, versículo 5, decreta: "Matai osidólatras onde quer que os encontreis, e capturai-os, e cercai-os e usai deemboscadas contra eles". E mais adiante o livro insiste que nações, nãoimporta quão poderosas, deverão ser combatidas "até que abracem o Islã".Essa é a vertente central, ortodoxa do islamismo. Paz não é uma palavra quese possa encaixar facilmente nessa forma de pensamento. Estamos falandode uma religião imperialista, que parte da premissa de que deve espalhar-sepela força, se necessário. Na Indonésia, por exemplo, muitos não-muçulmanos são confrontados hoje com uma escolha absurda: converter-seou morrer. Como contraste, gostaria de citar o exemplo dos Estados Unidos.Eles são de longe o país mais religioso do Ocidente – e não uma sociedade

puramente materialista, como costumam dizer seus críticos. A diferença éque lá a religião é uma escolha voluntária.

Veja – E q u a n t o a o e l em e n t o p o l ít i c o d o s a t a q u e s ?

Johnson – Possivelmente o desejo de desestabilizar os governos de paísesmuçulmanos alinhados com o Ocidente é um dos elementos políticos dosataques. Boa parte desses governos não tem o apoio de suas populações,como ilustra o Paquistão. Mas a principal questão política é a incapacidadedos países árabes de reconhecer os direitos e a existência do Estado de

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Israel. Embora nas Nações Unidas e nas mesas de negociação países como oEgito pareçam aceitar Israel e reconhecer o direito dos israelenses de viveronde vivem, em seus jornais nacionais, em suas mesquitas e em suasuniversidades a pregação é diferente: a opinião hegemônica é a de que oEstado judaico é ilegítimo e, portanto, deve ser eliminado.

Veja – O s e n h o r não p a r e c e v e r u m a s o l u ção p a r a o c o n f l i t o n o

Or i en t e Méd io .

Johnson – A dificuldade é que os árabes sempre quiseram resolver esseconflito pela força. Eles poderiam ter conseguido um acordo interessante naépoca da II Guerra, mas não quiseram. Em 1947, o plano das Nações Unidaspara a divisão da Palestina teria significado um Estado de Israel

substancialmente menor do que ele é hoje. Em vez de aceitarem esse plano,no entanto, os árabes foram à guerra e ela significou o nascimento de umEstado judaico muito mais forte. Algo semelhante ocorreu em 1956 e em1967. Combates que deveriam culminar na aniquilação de Israel tiveram oefeito contrário: a cada vez, o país emergia mais poderoso. Não vejo comoresolver o conflito árabe-israelense pela via da negociação, neste momento.Nos últimos anos, Israel fez diversas ofertas, mas elas sempre caíram emouvidos moucos. As relações de Israel com seus vizinhos continuarão sendoas de uma paz armada. A paz real não virá até que o Islã passe por umamodernização revolucionária.

Veja – N a s em a n a p a s s a d a , o e s cr i t o r am e r i ca n o G o r e V id a l a f i r m o u

q u e o s E st a d o s U n i d o s se t r a n s f o r m a r a m n u m " Es t a d o p o l ic ia l " e q u e

o s a t e n t a d o s têm t u d o p a r a f o r t a l e c er o s m e c a n is m o s d e co n t r o l e d e

um a e l i t e t r o g l o d i t a s o b r e a p o p u l ação d o p a ís . V i d a l t em a l g u m a

r a zão n o q u e d i z ?

Johnson – Gore Vidal é um extremista que ninguém mais leva a sério. Elesempre vem com essa história, e todo mundo de bom senso o ignora. Não háperigo de os Estados Unidos se transformarem num Estado policial. Suasinstituições democráticas são fortes demais. E acho que as agências de

investigação vão conquistar mais poderes não por causa de uma conspiraçãoda elite, mas porque os americanos se deram conta de que suas amplasliberdades não devem servir para que terroristas, aproveitando-se delas,possam armar durante dezoito meses seguidos uma enorme operaçãoassassina como aquela que acabamos de presenciar. As preocupações deVidal passam ao largo do debate verdadeiramente importante que está sedesenrolando agora: qual a retaliação adequada para o crime cometido pelosterroristas e como ela será feita. O país está de acordo em que o ataque foium ato de guerra e deverá ser respondido como tal. Também há consensosobre a idéia de que uma nação que abriga terroristas é, ela mesma,

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terrorista e deve sofrer as conseqüências. A questão é onde, como e quandoas medidas de guerra terão lugar.

Veja – Geo r g e W . B u s h é um líd e r à a l t u r a d o d e s a f i o q u e v a i

e n f r e n t a r ?   

Johnson – Ele é um presidente inexperiente, que teve o azar de enfrentaressa crise no começo de seu mandato. Mas é também um homem de bomsenso, que está aprendendo rápido. Acima de tudo, Bush tem um vice e umgabinete excepcionalmente fortes. Também acredita que governar é umtrabalho de equipe. A existência desse gabinete forte e a obediência de Bushà Constituição dos Estados Unidos são, a meu ver, dados tranqüilizantes parao resto do mundo.

Veja – B u s h e s tá d em o r a n d o a r e a g i r ?   

Johnson –  De maneira nenhuma. Ainda existe uma investigação emandamento e ela é fundamental por duas razões. Primeiro, para estabeleceros culpados sem nenhuma possibilidade de erro, o que é importante para alegitimação de qualquer ação de guerra no futuro. Em segundo lugar, osEstados Unidos têm de organizar sua estratégia militar e uma ampla coalizãopolítica, o que deve levar um bom tempo. Lembremos do Vietnã: o períodode preparação para a guerra foi curto, as estratégias de ataque esustentação política tiveram de ser remendadas depois e o resultado foi umdesastre. Na Guerra do Golfo, ao contrário, os americanos demonstraramhaver aprendido a lição. Montaram, sem pressa, uma coalizão internacionalde forças e um plano militar. Assim, atingiram seus objetivos em poucotempo, com poucas perdas humanas. Não prenderam Saddam Hussein, maso alvo militar primário foi atingido de maneira exemplar. Esse é o tipo deprocedimento que está sendo adotado agora. Teremos de esperar algumtempo pela resposta americana.

Veja – Er a m e sm o p o s sív e l p r e v e r o a t a q u e t e r r o r i s t a a o s E st a d o s

U n i d o s ?   

Johnson –  Sim, essa era uma tragédia anunciada. Espero não soararrogante, mas desde o final dos anos 70 venho alertando para os perigos doterrorismo internacional. Naquela época, organizei, juntamente com o ex-primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, uma conferência pioneirasobre o assunto. Tivemos uma rodada de debates em Jerusalém e outra emWashington, para a qual conseguimos atrair o então secretário de Estadoamericano, George Shultz. Foi a primeira vez, creio, que os Estados Unidosse deram conta de que o terrorismo não era apenas um problema judeu, porcausa dos palestinos, ou inglês, por causa do IRA, mas uma questão que

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deveria preocupar a todos. Infelizmente, não deram ao assunto a prioridadepolítica que, estou certo, ele terá a partir de agora.

Veja – O I m pér io Br i t ân i co , n o sécu lo X I X , e a U n ião Sov iét i ca , n o

sécu l o XX , f o r am d e r r o t a d o s em g u e r r a s n o A f e g a n i s tão . O q u e

e s p e r a r d e um n o v o c o n f l i t o n a q u e l a r e g ião ?   

Johnson – Ficarei muito surpreso se os Estados Unidos decidirem ir à guerrano Afeganistão. Seria uma escolha perigosa e desnecessária. Já existe ummovimento de oposição ao Talibã no país, o que torna mais razoável ahipótese de armar e dar apoio a esse grupo. Acho que os efeitos positivos deuma ação militar voltada contra o Iraque seriam maiores. A substituição daditadura de Saddam Hussein por um regime democrático seria uma

conquista e tanto. A guerra deve ser travada não apenas para exterminar oterrorismo internacional, mas para dar a uma larga porção do mundo algoque ela nunca teve: liberdade. Se os países árabes pudessem ter regimesdemocráticos, nos quais a voz do povo contasse com canais para se fazerouvir, o problema do terrorismo tenderia a desaparecer.

Veja – Com ex c eção d a l i d e r a n ça b r i t ân i c a e d a l i d e r a n ça e s p an h o l a ,

o s g o v e r n a n t e s d o s o u t r o s p aís e s e u r o p e u s têm - s e m o s t r a d o

r e t i c e n t e s a o f a la r s o b r e o a p o i o a o s Es t a d o s U n i d o s n o c a s o d e um a

g u e r r a . Q u a i s são o s o b s tác u l o s p a r a q u e e s s e a p o i o s e j a

c o n q u i s t a d o ?   

Johnson – Como sempre, os franceses estão fazendo fricote, enquanto osalemães se mostram nervosos. A Europa continental é sempre recalcitrante.Basta ver a sujeira que eles fizeram no caso dos Bálcãs: no fim, americanose ingleses acabaram tendo de resolver o problema sozinhos. Estamosacostumados a isso e essa situação não me preocupa, porque o apoiorealmente importante, que é o da Otan, foi irrestrito. Isso significa que osEstados Unidos receberam carta branca da aliança militar para tomar asações militares necessárias, quando necessário. Não acho que esse apoio váser retirado. Quanto às relações entre Estados Unidos e Inglaterra, não há

nada a temer. Elas estão mais fortes que nunca e é como se a aliança da IIGuerra houvesse renascido.

Veja – Q u a i s a s ch a n c e s d o s Es t a d o s U n i d o s n e s s a g u e r r a c o n t r a o

t e r r o r i sm o ?

Johnson – Eles vão ganhar essa guerra. Não tenho dúvida nenhuma sobreisso. 

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Entre dois mundos

Tahar Ben Jelloun - 14 de agosto de 2002 

O respeitado escritor marroquino atacaos preconceitos e procura criar umaponte entre o Ocidente e o Islã 

...................... Carlos Graieb 

Se existe um fosso entre as civilizações do Ocidente e do Islã, poucos intelectuaistêm feito mais esforços para estreitá-lo do que o marroquino Tahar Ben Jelloun, de

58 anos. Num vaivém contínuo entre seu país natal e a França, onde fixouresidência, ele tem procurado traduzir e interpretar as queixas que surgem de ladoa lado. Além de uma abundante produção jornalística, também dedica seu tempo acriar obras de caráter didático, como O Racismo Explicado à Minha Filha ou O IslãExplicado às Crianças. Mas o empenho político de Ben Jelloun não deve ocultaroutro fato: ele é um poeta e romancista consagrado. Já recebeu a mais importantehonraria literária francesa, o Prêmio Goncourt, e é um best-seller no mundo árabe.Uma de suas coletâneas de contos foi há pouco publicada no Brasil: O Primeiro

 Amor É Sempre o Último, um retrato da guerra dos sexos à maneira muçulmana."Freqüentemente me perguntam se minhas raízes literárias são mais marroquinasou francesas. Na verdade, acho que os autores de que me sinto mais próximo sãomesmo os latino-americanos, como Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa",diz Ben Jelloun, que nesta entrevista fala de xenofobia na Europa, antiamericanismono Oriente Médio – e amor. 

Veja – Se u m j o v e m m a r r o q u i n o l h e p e r g u n t a s se h o j e se d e v e r ia o u

não em i g r a r p a r a a Fr a nça , o q u e o s e n h o r d i r i a ?

Ben Jelloun –  Eu certamente procuraria dissuadi-lo se ele pensasse ememigrar clandestinamente. Há todo tipo de argumento contrário a essa formade emigração, a começar pelo político – não invada um país que vem dandomostras muito claras de que não deseja sua presença. As circunstâncias em

que a travessia para a Europa é feita também são cada vez maisassustadoras. Não passa uma semana sem que a televisão espanhola,sintonizada facilmente no Marrocos, mostre imagens de africanos emagrebinos detidos quando tentavam entrar na Espanha ilegalmente ouafogados quando a barca precária em que navegavam afundou. O que meespanta, contudo, é o fato de as pessoas continuarem emigrando, apesar detodos os perigos e de saberem que não terão uma vida fácil se conseguiremchegar ao seu destino. Isso é o sinal claro de um desespero muito grande. 

Veja – O q u e c a u s a e s s e d e s e sp e r o ?

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Ben Jelloun – O fato de países como o Marrocos, nas condições geopolíticasatuais, terem se transformado em verdadeiros fabricantes de pobres. Porque isso acontece? Por causa, é claro, de uma antiga história deconcentração de riqueza, que faz com que uma parcela ínfima da populaçãodetenha uma fatia imensa da riqueza desses países. Mas, sem o desejo desoar ressentido, gostaria de apontar também para a responsabilidade e oegoísmo dos europeus, que freqüentemente conduzem sua políticaeconômica de maneira a sufocar o crescimento das nações pobres que lhesestão próximas. Recentemente vimos o Marrocos ser fragorosamentederrotado numa negociação sobre cotas de venda de pescados – o país foiobrigado a aceitar uma cota bem mais baixa do que seria de seu interesse.Também vimos a Espanha impor barreiras de importação contra nossosprodutos agrícolas. É hipócrita torcer pelo desenvolvimento marroquino e ao

mesmo tempo tomar medidas que sufocam esse desenvolvimento. Oproblema é que, quando as iniciativas marroquinas se tornam impossíveis, omarroquino perde seu sustento e sente a necessidade de partir para ondehaja emprego. 

Veja – O q u e m u d o u n a v i d a d o s im i g r a n t e s d e p o i s d o 1 1 d e

s e t e m b r o ?

Ben Jelloun – Houve um recrudescimento do medo, da raiva e dadesconfiança dirigidos contra eles. E, como vem sendo fartamente noticiado,tornaram-se muito mais audíveis as vozes de extrema direita que falamcontra o imigrante. É preciso dizer que esse movimento de inclinação para adireita vem crescendo já há vinte anos. Mas o 11 de setembro criou oambiente propício para que ele ganhasse força mesmo em países como aHolanda, onde o número de imigrantes está longe de ser tão grande quantona França ou na Bélgica. 

Veja – Fa l a - s e n a p o s s i b i l i d a d e d e a Eu r o p a h a rm o n i z a r su a s l e i s d e

im i g r ação . O s en h o r c r ê q u e i s s o se j a p os s ív e l ?

Ben Jelloun – Acho muito difícil. A França, por exemplo, ainda mantém uma

relação de metrópole com países como a Argélia e o Marrocos. Já a Itália nãotem nenhum antecedente nesse campo. Como harmonizar memórias que sãotão diferentes? Os magrebinos têm direito de reclamar muito mais da Françado que podem fazê-lo em relação à Itália ou à Holanda.

Veja – A lém de m u i t a r e t ó r i c a , o s p o l ít i c o s d e e x t r em a d i r e i t a

t am bém l a n çam m ão d e e s t a t ís t i c a s s ob r e c r im i n a l i d a d e , p a r a

d e f e n d e r m ed i d a s r i g o r o s a s c o n t r a a im i g r ação . E le s n ão t êm um

b om a r g um e n t o aí?

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Ben Jelloun –  Quanto à retórica, gostaria de registrar que ela é muitogrosseira e, ao mesmo tempo, muito eficaz. Quanto às estatísticas decriminalidade, é preciso observar os fatos de perto para interpretá-lasmelhor. Vejamos o exemplo da França. Lá, a delinqüência de fato cresceuentre os imigrantes. Na maior prisão de Marselha, quase 70% da populaçãocarcerária é de origem não-francesa. Mas é preciso notar que não estamosfalando de crimes graves, que envolvem assassinatos ou máfias organizadas.São coisas como furtos de automóveis, roubos de carteiras – enfim, o varejoda delinqüência. E isso se explica por motivos pelos quais a França tambémtem responsabilidade. Em 1974, o então presidente francês Valéry Giscardd'Estaing tomou medidas favoráveis ao chamado reagrupamento familiar –ou seja, a possibilidade de os imigrantes que trabalhavam na Françatrazerem seus parentes do estrangeiro. Foi um gesto generoso, mas sem

planejamento. Antes, era preciso criar condições de vida e educação paraaqueles que viriam e cresceriam no país. Em vez disso, deixaram essaspessoas entregues à sua própria sorte, vivendo em condições urbanasprecárias. Há, por exemplo, um número incrível de repetência escolar entreos imigrantes. Apenas 4% dos estudantes que entram na universidade naFrança, hoje em dia, são de origem estrangeira. O número se mostra maispreocupante quando se sabe que, entre os franceses com o mesmo nível deremuneração dos estrangeiros, 25% dos jovens conseguem chegar àuniversidade. As crianças não chegam ao ensino superior por duas razõesbásicas: como os pais em geral são analfabetos, eles não incentivam osfilhos a continuar na escola. Além disso, as crianças vivem em cômodosmuito pequenos e não têm privacidade para estudar. Nenhum governofrancês desde d'Estaing tomou medida alguma para cuidar desse problema, ehoje o país paga a conta. Tudo o que eles fizeram ficou no plano darepressão. E a repressão é política de curto prazo, que não tem efeitosduradouros. 

Veja – Qua l s u a o p i n ião s o b r e o l íd e r f r a n cês d e e x t r em a d i r e i t a

Je a n - M a r i e L e P e n ?

Ben Jelloun –  Ele é um político astuto e malicioso. Le Pen é

verdadeiramente racista, acredita de fato na inferioridade de certos homensem relação a outros. É um homem de má-fé, que utiliza táticas decomunicação muito bem estudadas, apresentando-se como um guru que temtodas as respostas, embora tecnicamente seus argumentos sejam absurdos.Quando ele afirma que enviará todos os imigrantes para casa, não proferemais que uma bravata. Num país em que 8% da força de trabalho é formadapor imigrantes, se isso acontecesse a economia entraria imediatamente emcolapso. Le Pen diz absurdos, mas com tal ênfase e brio demagógicos que aspessoas acreditam nele. 

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Veja – Re p e t i n d o o t ít u l o d e um d e s e u s l i v r o s , com o e x p l i ca r o

p r e c o n c e i t o a um a c r i a nça ?   É p r e c i so e x p l i c a r o p r e c o n c e i t o a u m a

c r i an ça?

Ben Jelloun – Se você está falando a uma criança privilegiada, é precisoestimular sua imaginação, colocá-la na posição de alguém que seria vítimade discriminação. É preciso perguntar se ela aceitaria ser privada desobremesa só porque é árabe. Em meu livro, e nas palestras que dou pelaFrança, é isso que procuro fazer: pôr as crianças numa posição deidentificação, fazê-las sentir que não tolerariam ser submetidas àquilo queseus vizinhos muitas vezes têm de agüentar. É uma técnica simples e eficaz.Para a criança que é vítima de preconceito, insisto na necessidade dediscutir, de dialogar. Acima de tudo, tento insuflar confiança nela. O mais

importante é impedir que se sinta uma vítima, que afunde no ressentimentoou na apatia, pois nesse caso endossará os preconceitos e contribuirá para asua perpetuação. 

Veja – O in t e l ec t u a l p a l e st i n o E d w a r d S a id c o s t u m a d i ze r q u e o

f u n d am en t a l i sm o " ém en o s u m r e t o r n o às r aíz e s d a r e l i g ião i s l âm i c a

d o q u e u m a r e ação a o s g o v e r n o s c o r r u p t o s d o O r i e n t e " . O se n h o r

c o n c o r d a c om es s a i déi a?

Ben Jelloun – Concordo, e acrescentaria que o fundamentalismo é tambémuma reação extremada ao Ocidente e à conivência dos governos ocidentaiscom os ditadores do mundo árabe-muçulmano. Os líderes fundamentalistassão demagogos. Eles sabem perfeitamente que não existe algo como "a voltaàs raízes do Islã". Utilizam as crenças das pessoas para tecer discursosideológicos e implementar políticas retrógradas. De certa maneira, estãopróximos de Le Pen, que também faz uso do medo e da ignorância paraatingir seus fins políticos. 

Veja – Q u a l o p a p e l d o p r o b l e m a p a l es t i n o n o r e l a ci o n a m e n t o e n t r e o

m u n d o m uçu l m a n o e o O ci d e n t e ?

Ben Jelloun – Absolutamente central. O nó do problema é a causa palestina, eo apoio sistemático que os Estados Unidos dão a tudo o que os israelensesfazem. O que ocorreu no campo de refugiados de Jenin deixou os árabesfuriosos, mais ainda porque nem os Estados Unidos nem a Europa seempenharam para que houvesse uma investigação séria a respeito. Nada disso,evidentemente, serve de justificativa para atentados terroristas. Atos comoesses não podem ser justificados de maneira nenhuma. Há uma diferença, noentanto, entre justificar um ato extremo e tentar compreendê-lo. Eu possocompreender por que um jovem palestino que viu sua casa ser dinamitada ouque não pode estudar nem trabalhar acaba se tornando um homem-bomba.Diante da falta de oportunidades, você se transforma em candidato a qualquer

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coisa, mesmo a essa morte absurda. É preciso colocar-se na pele desse jovemsem futuro. Mas são raras as pessoas no Ocidente que procuram fazer essaginástica intelectual. 

Veja – Em s e u l iv r o d e co n t o s , r e c e n t e m e n t e p u b l i ca d o n o B r a s i l , u m a

d a s p e r s o n a g e n s f em i n i n a s p e r g u n t a - s e : " P o r q u e , em n o s s o p o v o ,

q u a s e n u n c a e x i st e h a r m o n i a e n t r e o h o m em e a m u l h e r ?" É a s si m

m e sm o q u e o c o r r e e n t r e o s m uçu l m a n o s ?

Ben Jelloun –  A reflexão dessa personagem é verdadeira. Se, de um certoponto de vista, os sexos estão sempre em guerra, no Islã essa guerra éacentuada pela falta de justiça em relação às mulheres. Se um homem e umamulher se apresentarem diante de um tribunal num país muçulmano, ela, desaída, já está em desvantagem. Alterar essa situação é um dos maiores desafiospara os países islâmicos. Por causa dessa desigualdade perante as instituições,homens e mulheres também vivem suas relações amorosas, seus encontrosmais íntimos, como disputas de força. Não há negociação. Na Europa, se umhomem e uma mulher se sentem incapazes de conviver, eles negociam umaseparação, uma reparação. Nos países muçulmanos, não há diálogo. Há tomadade poder. 

Veja – Pa r e c e h a v e r u m a c o n t r a d ição n o q u e d i z r e s p e i t o a o s e x o n o s

p aíse s ára b e s . Fa l a - s e m u i t o a r e s p e i t o d a s e x u a l i d a d e , a o m e sm o

t em po qu e sua v i v ên c i a ép r ob l em át i c a .

Ben Jelloun –  Há, de fato, uma espécie de contradição que terminafreqüentemente em violência. Quando somos crianças, aprendemos que noislamismo a discussão sobre a sexualidade é autorizada e mesmo encorajada."Não há pudor em falar da sexualidade no Islã" é um bordão muito conhecido. Ehá muitos textos clássicos, feitos por grandes teólogos dos séculos XIV ou XVI,que têm por tema o erotismo. Eles são francos e claros. Por outro lado, há algoque é comum a todas as sociedades mediterrâneas, e não apenas às islâmicas:o que poderíamos chamar de "medo do feminino". Temos irmãos ciumentos desuas irmãs, pais obcecados por suas filhas, maridos que temem patologicamentea infidelidade de sua mulher. Lembro-me de um caso ocorrido há cerca de umano, na França, no qual um imigrante marroquino matou sua filha com aspróprias mãos porque ela queria casar-se com um católico. "Eu não pudesuportar a idéia de que ela se casaria com alguém não-muçulmano", disse ele. 

Veja – A p o l i g a m i a a in d a e x i s t e n o M a r r o c o s ?

Ben Jelloun – Sim, mas é extremamente rara e malvista. Hoje, as mulherespodem incluir em seu contrato de casamento uma cláusula contra essa prática.Ou seja, elas mesmas podem proibi-la. Para dizer a verdade, acho que a idéiada poligamia é muito mais excitante para os ocidentais do que para osmuçulmanos. 

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O futuro do Islã

Bernard Lewis - 2 de abril de 2003 

Guru do vice dos EUA é otimistacom a perspectiva de democraciano Oriente Médio, mas diz queantes é preciso remover os tiranos

............................... Eduardo Salgado

Depois de 11 de setembro de 2001, o vice-presidente dos Estados Unidos,

Dick Cheney, um dos mais influentes da história do país, começou a fazeruma espécie de curso privado em Islã e Oriente Médio. Cheney ouviuespecialistas para discutir o Iraque pós-Saddam Hussein e as perspectivas dademocracia na região. Bernard Lewis, de 86 anos, professor emérito daUniversidade Princeton e uma das maiores autoridades em Oriente Médio, foiuma das vozes que mais influenciaram Cheney. Com mais de vinte livrospublicados, Lewis é um ferrenho defensor da democracia na região. O autorde O que Deu Errado no Oriente Médio? explora sua extensa erudição sobreo mundo islâmico para justificar o fim do apoio do Ocidente aos mandatáriosda região. Nascido na Inglaterra, Lewis começou a dar aulas sobre o Oriente

Médio em 1938, na Universidade de Londres. Receptivo e bem-humorado,falou a VEJA por telefone de sua casa em Princeton, na costa leste dosEstados Unidos.

Veja – O g o v e r n o am e r i ca n o e s t a v a c e r t o d e q u e s eu s s o ld a d o s

s e r ia m r e c e b id o s c om o l i b e r t a d o r e s n o I r a q u e . Po r q u e n ão s e v i u

n a d a d i s s o ?

Lewis –  A relutância dos iraquianos em mostrar apoio aos soldadosamericanos tem boas razões de ser. Os iraquianos ainda temem SaddamHussein e seu aparato de repressão. Em 1991, o presidente George Bush pai

pediu que os iraquianos se revoltassem contra o tirano. Os curdos, no norte,e os xiitas, no sul, obedeceram. O que aconteceu? Saddam massacrou seusopositores enquanto os Estados Unidos assistiam a tudo passivamente. Alembrança do incitamento e da traição ainda está muito viva. Sejamos justos. Eles têm toda a razão em manter a cautela. O regime de Saddam foienfraquecido, talvez fatalmente, mas ainda não foi destruído. Em Basra, acidade xiita ao sul do Iraque, estou seguro de que a população daria asboas-vindas aos americanos se tivesse certeza de que não seria traída, comohá uma década, e se o aparato de repressão de Saddam não fosse aindaeficaz.

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Veja – Ou t r a d e c e pção d o g o v e r n o am e r i c a n o f o i c om a r e s i s tên c i a

m i l i t a r o f e r e c i d a p o r a l g um a s u n i d a d e s d e Sa d d am . A g u e r r a s e rá

l o n g a ?

Lewis – Uma guerra longa seria um desastre para todo mundo. Acho queisso não irá acontecer. O Iraque não é um novo Vietnã. Existe uma demandada população para que Saddam desapareça de vez. E outra coisa: não existenenhum Vietnã do Norte para ajudá-lo. Saddam não tem apoio externo.

Veja – N a o p i n ião d o s e n h o r , o q u e s e r ia um a g u e r r a l o n g a ?

Lewis – Seis meses. A opinião pública americana ficaria desiludida e exigiriaa saída das tropas. Para os governantes da região, a mensagem seria: os

americanos não são perigosos e podemos fazer o que quisermos.

Veja – Com a i n v a são d o I r a q u e e s t am o s v e n d o o i níc io d e u m a n o v a

f a s e d e d om i n a ção d i r e t a e s t r a n ge i r a n o O r i e n t e Méd i o ?

Lewis – É possível. Mas se acontecer não será uma dominação americana.Os Estados Unidos não têm interesses de longo prazo na região. O petróleopode ser vital hoje, mas existem outros fornecedores do produto e novasfontes de energia estão se tornando economicamente viáveis. É maisprovável que a dominação venha da Ásia. O Oriente Médio é de importânciavital para as potências asiáticas. Elas estão mais perto e possuem grandes

populações muçulmanas. Consigo ver a região se tornando um motivo derivalidade entre a Índia e a China, como era entre as potências européias nopassado. O real perigo no Oriente Médio, no entanto, é de outra natureza.Perigo mesmo é deixar as coisas como estão. Refiro-me aos conflitosarmados e ao sentimento cultivado pelos árabes de que são uns coitadinhose injustiçados. Um cenário em que os homens-bomba se tornem umametáfora da região como um todo é inaceitável. Caso isso de fato aconteça,as potências externas vão intervir mais severamente na região. Acho que aEuropa não faria isso. Talvez a Rússia. Cedo ou tarde, a Rússia vai sair daposição periférica que ocupa hoje.

Veja – Qu a i s a s c h a n c e s d e a d em o c r a c i a c r i a r r aíz e s n o O r i e n t e

Méd io ?

Lewis – São boas. É importante lembrar que a ditadura brutal de SaddamHussein é um produto europeu e não árabe ou de influência muçulmana. OPartido Baath, de Saddam, é o único baseado em um modelo europeu quefuncionou no Oriente Médio. Seus modelos são os partidos fascista, nazista ecomunista. As características são semelhantes: partido único cujo poderderiva da doutrinação e da repressão. Ou seja, é possível voltar ao sistema

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que vigorava antes de a região ser influenciada pelo que houve de pior noséculo XX. Obviamente, nunca existiu ali uma democracia nos moldesocidentais. Mas havia as noções de um governo responsável, com poderlimitado e obediente às leis. Tudo isso faz parte da tradição islâmica.Historicamente, a democracia começou a chegar à maior parte das regiõesdo mundo há bem pouco tempo. E os resultados não são tão ruins assim.

Veja – Os Es t a d o s U n i d o s têm c om o i m p o r a d em o c r a c i a ?

Lewis – Não. O que é possível é remover os obstáculos que impedem oflorescimento da democracia. Os americanos e ingleses não impuseram ademocracia aos alemães e japoneses no fim da II Guerra Mundial, mascriaram as condições para que ela se desenvolvesse. As chances de sucesso

no Iraque são boas por várias razões. Primeiro, porque os iraquianossentiram na pele a experiência de viver sob uma das ditaduras mais cruéis erepressivas. Segundo, porque, entre todos os países ricos em petróleo, oIraque foi um dos que melhor aproveitaram seus recursos. Criou uma boainfra-estrutura, investiu em educação primária e secundária e emuniversidades. Tem uma classe média culta, que não foi totalmente destruídapor Saddam. As mulheres têm acesso à educação e o nível de alfabetização éalto. Não deixa de ser curioso que, para os tiranos do Oriente Médio, umIraque democrático é visto como uma grande ameaça, um problema.

Veja – P o r q u e t e m e r se o s e x e m p l o s d e d e m o c r a ci a n o m u n d o

i s lâm i co são t ão r a r o s?

Lewis – Raros, mas não impossíveis. A Turquia tem uma democraciapluripartidária que funciona há cerca de cinqüenta anos. Em Bangladesh, háótimas perspectivas. O mesmo pode ser dito sobre nações de maioriaislâmica na África. É um processo lento e difícil. Não podemos esquecer quegeneralizações são sempre imprecisas. Quando discutimos o Islã, estamosfalando de mais de catorze séculos de história, mais de cinqüenta países,uma tradição cultural de uma diversidade enorme. O Islã pode serinterpretado de várias formas. A pergunta talvez não seja o que o Islã fez

com os muçulmanos, mas o que os muçulmanos fizeram com o Islã.

Veja – A r e l i g ião i s l âm i c a c om o épr a t i c a d a h o j e écom pa t íve l c om os

r i t o s d em o c r át i c o s ?

Lewis –  Eu respondo com outra pergunta: qualquer religião é compatívelcom a democracia? Do ponto de vista histórico, há respostas diferentes paracada uma das religiões. O cristianismo ortodoxo é compatível? Os livros dehistória não nos encorajam a dar uma resposta afirmativa. E o cristianismocatólico? As evidências são contraditórias. E o cristianismo protestante? Esse,

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sim. O vital é que exista clara separação entre o Estado e a religião. Nopassado, os muçulmanos faziam troça dizendo que essa separação era umremédio cristão para uma doença cristã. Eles estão começando a achar quepegaram a doença e precisam tentar o remédio.

Veja – Ex i s t e d em a n d a p o p u l a r p o r m u d a n ça s m o d e r n i za n t e s n a s

r u a s da s c i d a d e s ára be s ?

Lewis –  Existe, sim. Não digo que queiram uma democracia no estiloocidental. Mas um governo mais responsável. Infelizmente, existe umagrande desilusão com as idéias ocidentais. Nos últimos cinqüenta anos oumais, as duas idéias dominantes no Oriente Médio foram nacionalismo esocialismo, ambas importadas da Europa. Com a independência, se livraram

de governantes estrangeiros e ganharam tiranos locais. Com o socialismo,viram as promessas de desenvolvimento se transformar em economiasfalidas dominadas por elites corruptas. Eles não estão totalmente errados emculpar o Ocidente. Esses fatos dão força aos argumentos de líderes religiososcomo Osama bin Laden, que defendem a luta contra as idéias do Ocidente.Há dois grupos. Os que acham que o mal é a modernização no estiloocidental e os que dizem que houve modernização de menos. Se osiraquianos, com a ajuda dos americanos, conseguirem construir um país livredepois da guerra, poderão incentivar os reformistas em outras partes domundo muçulmano a se expressar com mais ênfase. A meu ver, o Irã e oAfeganistão vão ser os primeiros países a se reformar, seguidos de Malásia,Indonésia e Tunísia.

Veja – Q u a l éo p e r i g o d e a d em o c r a c ia l e v a r o s f u n d am e n t a l i s t a s a o

p o d e r ?

Lewis – A democracia tem seus perigos. Não esqueçamos que Adolf Hitlerchegou ao poder na Alemanha por meio de uma eleição. Se a democracia forintroduzida de forma prematura, é possível que tenha vida curta. Umaeleição livre é o fim de um processo de democratização, não o começo. Ademocracia é um remédio forte que tem de ser tomado em doses pequenas

e com cuidado. Não se pode importar a democracia como quem compra umbrinquedo com instruções no estilo monte você mesmo. O Iraque não vaitransformar-se numa Suíça da noite para o dia. Primeiro, terá câmarasmunicipais e assembléias legislativas. Talvez parte dos membros eleitos e aoutra parte indicada.

Veja – Os r e f o r m i s t a s da A r áb i a Sau d i t a n ão es t ão c e r t o s em

d e n u n c ia r o s E st a d o s U n i d o s p e l o a p o i o q u e dão à m o n a r q u i a

d e s pó t i c a ?

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Lewis – Sim. O mesmo vale para o Egito e para outros países. No Ocidente,há duas maneiras de encarar a questão do mundo islâmico. A primeira éorientada pela seguinte linha: aquele povo não é como a gente. Eles não sãocivilizados. São bárbaros. Qualquer ajuda que dermos de nada adiantará.Serão sempre governados por tiranos. Portanto, o objetivo de nossa políticaexterna precisa ser tiranos amigos em vez de tiranos hostis. Lembre-se deque Saddam já foi "o nosso" tirano. Essa abordagem é cínica e não funciona.Ela mostra desrespeito pelo passado do Islã e falta de consideração com seupresente e seu futuro. Essa política já evidenciou suas falhas quandoapoiamos tiranos na América Central e no Sudeste Asiático. Existe outramaneira de encarar o mundo islâmico que é o oposto da que mencionei. Osmuçulmanos são os herdeiros de uma grande civilização que estão numafase ruim e é nossa missão ajudá-los. E, com um pequeno empurrão, eles

voltarão ao elevado estágio de desenvolvimento que já desfrutaram. Essaestratégia, infelizmente, é chamada pelos críticos de imperialismo.

Veja – O se n h o r q u e r d i ze r q u e r e m o v e r o s t i r a n o s éum a m a n o b r a

 j u s t a e q u e d e v e co n t i n u a r a s e r im p l em e n t a d a n a r e g ião d e p o i s d a

d ep os i ção d e Sa d da m ?

Lewis –  Não podemos esquecer que o destino do mundo islâmico é deresponsabilidade dos muçulmanos. Não podemos resolver os problemasdeles. O que podemos fazer, sim, é parar de obstruir o caminho. Parar dedar apoio aos tiranos.

Veja – A Pa le s t i n a éb em m a i s co m p l ex a d o q u e s i m p l e sm e n t e

m a n d a r um t i r a n o p a s s e a r , não ?

Lewis – Ali, a solução é um Estado palestino convivendo ao lado de Israel.Obviamente, nenhum representante israelense aceitará colocar emnegociação a própria existência de Israel. Isso é um dado. Para muitosgovernos da região, a criação de um Estado palestino seria encarada comoum problema. Hoje, a questão palestina é usada como uma perfeita válvulade escape para esses governos. A população do Egito ou da Arábia Saudita é

em grande parte revoltada com a situação em que vive – seja a pobreza,seja a tirania, seja o atraso –, mas não pode reclamar. A única maneira demanifestar descontentamento nas ruas sem ser reprimida é atacar Israel edefender a causa palestina. Por isso, acho que muitos governos árabesquerem que a situação na Palestina se mantenha instável e sem solução.

Veja – A e x u b e r a n t e e c o n om i a ár a b e s e es t a g n o u em a l g um p o n t o d o

p a s s ad o e c om eço u a r e g r e d i r . A f in a l , o q u e d e u e r r a d o n o O r i e n t e

Méd io ?

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Lewis –  Não existe uma resposta simples. Isso é parte de um processolongo e complexo. Em parte, dá para responder perguntando: o que deucerto com a Europa, que na Idade Média era vista pelos muçulmanos damesma forma que a África? Vamos pegar o exemplo de Portugal. Mesmosendo um pequeno país, Portugal conseguiu criar um vasto império. Por quê?Por estarem na costa do Oceano Atlântico, os portugueses construírambarcos grandes. Quando chegaram ao Oriente, essas embarcações erammuito superiores aos barcos dos árabes. Uma caravela carregava mais armase carga que os barcos árabes. Era adequada tanto aos tempos de guerraquanto aos tempos de paz. A esquadra marítima européia é parte daresposta, mas não explica tudo. Você poderia perguntar: por que osmuçulmanos não construíram uma esquadra atlântica antes dosportugueses? Isso apenas mostra a complexidade dessa discussão.

Veja – Po r q u e a r i q u e z a d o p e t r ó l e o n ão f o i a e s p e r a d a r e d e n ção

p ar a o s p aíses ár ab es?

Lewis – Para mim, o petróleo foi uma maldição. Os países ricos em petróleoganharam dinheiro muito fácil. Com isso, não viram a necessidade de criaruma economia diversificada. No Ocidente, tivemos de trabalhar muito paradesenvolver uma economia moderna. Os árabes não tiveram sequer otrabalho de descobrir o petróleo. Ficaram sentados em cima daquela riquezadurante milhares de anos. Não inventaram nenhuma forma de utilizá-lo nemmesmo de extraí-lo. Dessa maneira, aumentaram a dependência deempresas estrangeiras.

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A reinvenção do Islã

Irshad Manji - 1° de dezembro de 2004

A escritora muçulmana diz que épreciso ler o Co r ão com olhar críticoe parar de segui-lo ao pé da letra

......................................Tânia Menai, de Nova York  

"Acredito que épossível seguir aortodoxia do Islã e, aomesmo tempo, sertolerante com o mundomoderno"

A canadense Irshad Manji, 36 anos, é muçulmana, feminista, jornalista ehomossexual. Âncora do programa Big Ideas (Grandes Idéias), exibido pelaTV Ontario, ela entrevista personagens do mundo intelectual. Antes disso,apresentou durante quatro anos um premiado programa sobre a vida gay.Irshad era pequena quando sua família fugiu da Uganda do ditador Idi Amin,

em 1972. Ela cresceu em Vancouver, onde, vestindo véu, freqüentava amadraçal, escola islâmica, todos os sábados. Dos ensinamentos, recorda-sede dois: as mulheres são inferiores aos homens e os judeus devem serodiados. Aos 14 anos, foi expulsa por seu professor, pois "questionavademais". Durante vinte anos, ela estudou o Corão  sozinha em busca derespostas. Sua imersão resultou no polêmico livro The Trouble with Islam(Minha Briga com o Islã, no título da edição brasileira que chega às livrariasnesta semana). Por causa do livro, no qual questiona a religião de dentropara fora, ela foi ameaçada de morte. Irshad recebeu VEJA para a seguinteentrevista na casa de amigos (aliás, judeus), em Nova York.

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Veja – Qu a l é, a f i n a l , s u a b r i g a co m o I s lã?

Irshad – É contra a maneira como a religião é praticada atualmente, combase na interpretação literal do Corão.  Isso faz com que os muçulmanosvivam sob uma lei marcial, sem liberdade para pensar ou discordar. Trata-sede um problema que surgiu há séculos, muito antes da colonização européiaou da criação de Israel, e está cada vez pior. Nos primórdios da religião, oIslã adotou a tradição do pensamento crítico, chamado ijtihad . O espírito doijtihad estimulou um clima de criatividade e de curiosidade que permitia àcivilização muçulmana liderar o mundo no aspecto da inovação. Na Espanhaislâmica, acadêmicos instigavam os estudantes a ler o Corão  com olharcrítico, mesmo que isso contrariasse a opinião do clero. Se essa tradição jáexistiu no Islã, temos apenas de redescobri-la.

Veja – Q u a n d o o s m uçu l m a n o s p a s sa r a m a in t e r p r e t a r o Corão d ef o r m a l i t e r a l ?

Irshad – No fim do século XI, os portões do ijtihad   foram fechados emdecorrência de disputas internas no império muçulmano. As 135 escolas depensamento independente que existiam ficaram reduzidas a quatro, todasconservadoras. Isso levou à leitura inflexível do Corão. Os acadêmicos foramproibidos de rejeitar ou contestar as opiniões legais, as chamadas fatwas. Ocastigo para quem o fizesse era a morte. No milênio seguinte, os acadêmicosislâmicos passaram apenas a imitar uns aos outros, incluindo seuspreconceitos. Embora esses problemas sejam antigos, sua gravidade ficoulatente apenas nos últimos anos. Com a queda do Muro de Berlim e o fim daGuerra Fria, o mundo tornou-se unipolar, dominado por uma superpotência,os Estados Unidos. Os radicais islâmicos se autoproclamaram os únicoscapazes de desafiar os valores de pluralismo, consumismo e materialismoque a cultura americana representa. Espanta que muitos não-muçulmanosconcordem com eles.

Veja – Os Es t a d o s U n i d o s d em o r a r am p a r a l e v a r a sér i o o

f u n d am e n t a l i sm o i s l âm i co ?

Irshad – Os Estados Unidos só se deram conta desse problema no mundomuçulmano depois dos atentados de Nova York e Washington. Um livro comoo meu não poderia ter sido publicado antes de 11 de setembro de 2001. Nãoque os assuntos nele tratados não fossem relevantes, mas porque o Ocidentenão estava prestando atenção. Isso é trágico por sugerir que nós, sereshumanos, com toda a nossa tecnologia, inteligência e desejo de fazer algumadiferença, ainda somos intelectualmente letárgicos. É preciso passar por umacrise dessas para constatar que precisamos ficar atentos o tempo todo. Casocontrário, o que acontecer em outra parte do mundo se voltará contra nós.

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Veja – Qu a l a r e ação do s m u çu lm an o s q u e d i s c o r d a m de s u a s i déi a s ?

Irshad – É comum me acusarem de ser uma "judia camuflada" ou de"agente do Mossad", o serviço secreto israelense. Também me chamam de"muçulmana ismaili", expressão que se refere a um setor liberal doislamismo composto de pessoas com educação de alto nível,empreendedoras e ligadas à filantropia. Por causa dessas qualidades, essegrupo é chamado de "judeus do mundo muçulmano". É um grande elogio,mas, obviamente, não estão me elogiando. Recebo muitas ameaças demorte por e-mail e, às vezes, pessoalmente. Certa vez, uma amiga que meacompanhava num aeroporto foi abordada por um árabe. Ele disse que elatinha mais sorte do que eu. Com a mão, imitou o gesto de puxar o gatilho deuma arma em minha direção. E foi embora. Por outro lado, desde o

lançamento do livro tenho recebido apoio de muçulmanos do mundo todo,principalmente de jovens e mulheres. Mas é um apoio secreto: eles nãopodem verbalizar publicamente suas opiniões porque temem represálias.Para chamar atenção para o assunto, resolvi não viajar mais com guarda-costas para fazer palestras, a não ser que a polícia local insista. Se acreditona possibilidade de seguir a ortodoxia da religião islâmica e, ao mesmotempo, ser tolerante com o mundo moderno, não posso carregar um leão-de-chácara comigo. Seria hipocrisia da minha parte.

Veja – O Can a d á éu m país s e g u r o e , m e sm o a s s i m , a s e n h o r a p r e c i s a

d e g u a r d a - c o s t a s ?

Irshad – Sim, mas uso esporadicamente. Primeiro, porque custa caro. OEstado não paga por ele, nem a editora do livro – sou eu quem pago. Nós,aqueles com coragem de levantar assuntos polêmicos e pregar a moderação,temos de encarar os seguidores da  Jihad   nos olhos e dizer que nosrecusamos a viver com medo. Não vou viver com paranóia, mas também nãoquero ser uma vítima inocente. Temo apenas a morte prematura, quecortaria uma vida cheia de propósitos.

Veja – Se r i a p o s sív e l e s c r e v e r e s t e l i v r o s e a s e n h o r a e s t i v e s s e

v i v e n d o n um p a ís m uçu lm a n o ?

Irshad – Mil vezes não. Essa é uma das razões pela qual agradeço a Alátodas as manhãs pela liberdade que tenho nesta parte do mundo. Sou umarefugiada que veio parar num país onde posso ser uma muçulmana engajadae explorar todo o meu potencial. Quantas muçulmanas têm esse privilégio?Quero desafiar todos os muçulmanos que vivem no Ocidente a usufruir essaliberdade preciosa.

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Veja – O q u e e s se s m uçu l m a n o s p o d em f a z e r ?

Irshad – Eles precisam ter a segurança de que podem ter fé e, ao mesmotempo, idéias próprias. Por isso, estou criando um instituto para estimular opensamento islâmico independente. A idéia é formar um centro de liderançapara educar jovens muçulmanos sobre a arte de debater, sobre a Era deOuro do Islã, quando judeus, cristãos e muçulmanos conviviam emharmonia. Quero trazer acadêmicos de outras religiões para conversar comesses jovens. Depois, devolveríamos esses jovens para suas comunidades,para que eles pudessem dar início a um processo de abertura no Islã dentroda realidade em que cada um deles vive. Ninguém é capaz de fazer issosozinho. Quando um jovem muçulmano me questiona sobre o próximopasso, eu devolvo a pergunta. Digo que cada um é o seu próprio líder.

Veja – Com o s e r i a p o s sív e l m e l h o r a r a s i t u ação d a s m u l h e r e s n o

m u n d o m uçu l m a n o ?

Irshad – O melhor caminho é a educação. Quando se educa um menino,educa-se apenas aquele menino. Quando se educa uma menina, educa-se afamília inteira. Não quero parecer romântica, mas quando as mulheres têmpermissão para aprender tornam-se capazes de interpretar as ambigüidadesdo Corão sobre os direitos delas. Assim, podem dispensar os conselhos dosmulás, que, aliás, nunca mencionam direito algum. A participação feminina évital para tirar o Islã do atoleiro em que ele se encontra.

Veja – O Corão c on de n a a s m u l h e r e s à po s ição su bm i s s a ou i s s o é 

um t em a a b e r t o a i n t e r p r e t açõe s ?

Irshad –  Diferentemente da Bíblia,  o Corão  não diz que Adão foi criadoantes de Eva. Portanto, não há base para alegar a superioridade masculina.Na verdade, o Corão  manda honrar a figura da mãe. O problema é queapenas algumas linhas adiante dá uma guinada com a afirmação de que oshomens foram criados superiores às mulheres. Impressionam asinterpretações de uma determinada passagem, na qual se lê: "As mulheres

são seus campos. Vá a elas e faça o que quiser". Alguns acadêmicos vêem aíuma comparação positiva, visto que os campos precisam ser cultivados. Ouseja, precisam do esperma masculino para se desenvolver em algo vibrantee robusto, e também de amor. Mas isso só diz respeito ao campo. E quantoao "faça o que quiser"? Não será um modo de estabelecer um poderdesproporcional? É curioso que são exatamente as passagens negativasexistentes no Corão que influenciam as leis no mundo muçulmano.

Veja – Mu i t o s m uçu l m a n o s a ch am q u e a s e n h o r a não d e v e s e r l e v a d a

a sér i o p o r s e r h o m o s s e x u a l . Com o a s e n h o r a l i d a c om e s s a q u e s tão?   

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Irshad –  O Corão  é ambíguo, e quem quiser segui-lo à risca terá deescolher a qual passagem dar ênfase. É verdade que alguns trechoscorânicos condenam o homossexualismo. Ao mesmo tempo, o livro sagradodiz que tudo o que Alá criou é excelente – e nada do que Ele criou foi emvão. Se devemos acreditar no Corão, como os muçulmanos podem conciliaresses ensinamentos com a condenação ao homossexualismo? Posso estarerrada, mas pergunto aos meus críticos: como eles sabem que estão certos?Não estou pedindo que aceitem ou aprovem minha orientação sexual. FoiDeus quem me criou. Apenas Ele irá me aprovar, ou não. Peço, somente,que haja espaço para debater esses assuntos.

Veja – Com o o m un d o ár a b e v ê o s E st a d o s Un i d o s ?

Irshad – É uma relação de amor e ódio. Políticos árabes cometem falcatruaspara enriquecer e mandar seus filhos para universidades americanas. São osmesmos que gritam "Abaixo os Estados Unidos". No íntimo, devemacrescentar "mas só depois que meu filho se formar". Em geral, os árabesnão consideram os americanos responsáveis por seus problemas. Se hádecepção é porque julgam insuficiente a interferência dos Estados Unidos naregião. Muitos governos americanos deixaram de apoiar os movimentospelos direitos humanos no mundo árabe. Reside aí a origem desseressentimento. Se o presidente George W. Bush fala em democratizar oIraque, por que não faz o mesmo com relação ao Irã e ao Egito?

Veja – O q u e a l e v o u a v i s i t a r I s r a e l?

Irshad – Para reportar sobre qualquer conflito, é preciso estar lá, ouvir aspessoas. Escutei de vários árabes israelenses, secretamente, que a vidadeles é melhor em Israel do que seria em qualquer país árabe. Eles dispõemde um sistema judiciário independente, têm direito de votar e sãorepresentados por cinco partidos políticos, o que é muito mais do que emqualquer outra parte do Oriente Médio. Por fim, têm oportunidades detrabalho e de estudo. Sei que Israel ocupa indevidamente territóriospalestinos e isso tem de acabar. Existe, contudo, algo pior: a ocupaçãoideológica dos palestinos, pelos seus líderes. Por que o texto do acordo de

Oslo, de 1993, entre Israel e os palestinos nunca foi traduzido para o árabe?Isso permitiria que pessoas comuns o lessem e decidissem por si. Acreditona democracia para os palestinos, mas isso não vai acontecer até que asduas ocupações acabem.

Veja – Po r q u e o s p a l e s t i n o s a c e i t am e s s a s i t u ação?

Irshad – Eles têm medo. Não é desculpa, apenas a realidade. Quando estiveem Ramallah, na Cisjordânia, procurei o escritor Raja Shehadeh. Eleescreveu um livro que me impressionou, no qual critica o sistema tribal quemarca as relações entre os palestinos. O encontro, na presença de outros

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ativistas palestinos, foi uma decepção. Shehadeh simplesmente se calou, eainda mudou o discurso – disse que Israel era o opressor e os palestinos, osoprimidos. Provavelmente, ele percebeu que colocaria sua vida em risco aodizer o que pensa. E ele é um advogado que criou uma organização dedireitos humanos. Imagine o que acontece com os pobres.

Veja – A s e n h o r a c o s t u m a d i z e r q u e o I s lã p r e c i sa s e l i v r a r d a

h e r an ça ár ab e . Po r q u ê?

Irshad – Os árabes representam apenas 13% dos muçulmanos, mas o pesode seus costumes é enorme no islamismo. É preciso separar o Islã dosconceitos tribais que são tradicionais entre os árabes. O profeta Maomélevou o Islã para o mundo árabe justamente para que ele aprendesse a fazer

a paz. A intenção era unificar as tribos árabes, que brigavam entre si. Umpsiquiatra na Faixa de Gaza disse-me que, em vez de abafar a parte negativada cultura árabe, o Islã acabou estimulando-a. Em janeiro, o Hamas tomouuma decisão "progressista": permitiu que mulheres se candidatassem aataques suicidas. Contudo, só aquelas que desonraram sua família. Ou seja,as que casaram fora de sua fé, que foram estupradas ou que traíram omarido. A morte, segundo o Hamas, as salvaria.

Veja – S e u l i v r o e s tá s e n d o t r a d u z i d o p a r a o ár a b e . A l g um a e d i t o r a

se d i s p ôs a p u b l i cá- l o?

Irshad –  Não, nenhuma. Mas jovens muçulmanos me deram a idéia depublicá-lo na íntegra, em árabe, no meu website. Estará também disponívelem urdu, a língua do Paquistão. Assim, muito mais gente terá acesso, comprivacidade e sem medo.

Veja – Os am a b i n L a d e n r e p r e s e n t a o I s lã?

Irshad – Não, ao contrário. Líderes fundamentalistas como Osama binLaden não têm a importância religiosa que lhes é atribuída. Eles usam o Islãapenas para alcançar o poder. Seu regime dos sonhos é baseado no

nazismo, não tem nada a ver com religião. Muitos muçulmanos estãocansados com o que está acontecendo com sua fé. Se alguém meperguntasse há alguns anos quanto de rancor antiocidental existe entre osmuçulmanos, eu teria dito 80%. Hoje, eu diria 50%. Algo já mudou, e paramelhor. O apoio que estou recebendo seria impensável no passado. Odesafio será transformar essa sede por mudanças em um fenômeno visível. Eisso significa dar à próxima geração de muçulmanos poder para transcenderesse medo de violência e de marginalização.

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"O Islã prega a paz”

Ali Mohamed Abdouni - 20 de julho de 2005

O líder da comunidade muçulmana diz que aação dos fanáticos fundamentalistas distorcea imagem da religião no Ocidente

.............................  

José Eduardo Barella

"Se uma pessoa sesubmetevoluntariamente àvontade de Deus, ela jamais teráenvolvimento com oterrorismo"

O título de xeque e o cargo de presidente do Conselho Superior paraAssuntos Islâmicos no Brasil dão ao sul-mato-grossense Ali MohamedAbdouni, de 41 anos, as credenciais para falar em nome do 1,5 milhão de

brasileiros que seguem a religião fundada por Maomé no século VII. NoBrasil, apenas o conselho que ele preside tem o direito de emitir fatwas, osdecretos que estabelecem a regra islâmica para uma questão. Desde osatentados terroristas de 11 de setembro de 2001, cometidos em nome doIslã, sua grande preocupação tem sido a de explicar aos não-muçulmanosque a "verdadeira natureza" de sua religião é ser pacífica e tolerante. Filhode imigrantes libaneses, Abdouni passou a infância no Líbano e aadolescência no Brasil. O fascínio pelo Corão,  o livro que os muçulmanosacreditam ser a palavra de Alá revelada ao profeta Maomé, levou-o a estudarteologia islâmica durante seis anos em Medina, na Arábia Saudita. Abdouni é

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casado e pai de cinco filhos, três meninas e dois meninos com idade entre 2e 11 anos.

Veja – O qu e s en h o r d i z a o s f iéi s e ao s a m i g o s não - i s l âm i c o s d e s u a

c o m u n i d a d e q u a n d o o c o r r e u m a t e n t a d o c o m o o d e Lo n d r e s , c u j a

a u t o r i a f o i a t r i b u íd a a s e g u i d o r e s d o I s lã?

Abdouni – Nós condenamos todos os tipos de atentados realizados contrainocentes, já que o Islã deixa claras todas as leis em estado de guerra e emestado de paz. Portanto, quando alguém comete um atentado como o deLondres, nós repudiamos e também instruímos nossa comunidade sobre osfatos. Muitas vezes não sabemos se realmente os autores são muçulmanos,mas, se forem, somos contra da mesma maneira. Cabe aqui um alerta. É um

erro generalizar e transformar um ato terrorista perpetrado por um grupo depessoas em algo que difame a imagem de toda uma nação ou de umareligião. A palavra Islã significa paz, justiça. Ou, em outra interpretação,submissão total à vontade de Deus. Se uma pessoa se submetevoluntariamente à vontade de Deus, ela jamais terá envolvimento com oterrorismo.

Veja – A l g um a s p e ss o a s a c r e d i t a m q u e o I s lã éem s i m e sm o um a

r e l i g ião q u e p r e d i s põe a s p e s s o a s a a t o s v i o l e n t o s . A téqu e p o n t o

i s s o éve r d ad e?

Abdouni –  Isso não é verdade. O Corão,  o livro sagrado do Islã, prega apaz. A guerra só pode ser uma forma de um muçulmano se defender, aindaassim, dentro de seu território. Como alguns grupos islâmicos estãopraticando agora atos terroristas, a religião muçulmana é vista no Ocidentecomo violenta. Ora, o Islã tem catorze séculos de existência e uma históriamarcada pela tolerância. Se o Brasil, a Espanha e a América Latina são hojepredominantemente católicos, isso se deve à tolerância que prevaleceu nosoito séculos em que o império muçulmano dominou a Andaluzia, naPenínsula Ibérica. Naquele período, o idioma, os costumes e as tradiçõesreligiosas locais foram cuidadosamente preservados. O Islã prega uma

mensagem de paz e harmonia, e não de guerra e terrorismo.

Veja – Su r p r e e n d e q u e o s r e l ig i o s o s m uçu l m a n o s t e n h am c o n d e n a d o

 à m o r t e u m e s c r i t o r a cu s a d o d e b l a s fêm ia , m a s n e n h u m t e n h a a té 

h o j e em i t i d o u m a c o n d e n ação c o n t r a O s am a b i n L a d e n . P o r q u e é 

a s s im ?

Abdouni –  Os muçulmanos deploram o terrorismo e, quando for provadoque Osama bin Laden organizou os atentados de 11 de setembro, ele

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também será condenado pelo Islã. O responsável deve ser procurado,processado, julgado e punido. Seja quem for. Seja de que religião for.

Veja – A s e p a r ação e n t r e a I g r e j a e o E s t a d o éum a d a s c o n q u i s t a s

m a i s p r e c i o s a s d a c i v i l i z ação o c i d e n t a l . P o r i s s o , o s o c i d e n t a i s s e

su r p r ee n d em q u e n ão se j a as s im n o I s lã. É p os sív e l ex i s t i r s ep a r ação

e n t r e o Es t a d o e a m e s q u i t a ?

Abdouni – A religião islâmica é o conjunto de leis criado por Deus para serseguido pelos homens. Ela permite que nós possamos respeitar o próximo,preservar o universo no qual vivemos e proteger nossos espíritos e mentespara alcançar a felicidade. A vida do ser humano, porém, não se restringe aotempo em que ele passa no templo religioso. A lei islâmica deve acompanhá-

lo em todos os momentos e lugares para impedir que ele cometa erros. Porisso, o Islã também se define como um sistema político, econômico, social,educacional, jurídico e familiar. É um código de vida completo, de fontedivina, que não pode ser dividido. As regras que vão definir todos essessistemas foram estabelecidas por Deus, e não pelo homem. Como Deus éperfeito e o homem não, a maior conquista dos muçulmanos é que a religiãopossa reger todas as esferas de sua vida.

Veja – O B r a s i l éa t e r r a d o Ca r n a v a l , d o s b i q u ín i s o u s a d o s e d o

s i n c r e t i s m o r e l i g i o s o . Com o ése r m uçu l m a n o em um p aís c om t a l

l ib e r d a d e d e c o s t u m e s ?

Abdouni –  No Brasil, como em qualquer país do mundo, ser muçulmanoimplica desafios. As pessoas constantemente deparam com testes a sua fé.Como disse Deus no Corão,  a religião não deve ser imposta. Ela deve serfruto de uma convicção, de análise e aceitação racional. Quando issoacontece, não importa o lugar onde um fiel se encontre, ele seguirá a religiãoe seus preceitos com tranqüilidade. Além do mais, assim como osmuçulmanos, uma grande parte dos brasileiros não aceita o Carnaval nem obiquíni. Essa é uma escolha livre. Quanto ao sincretismo, a religião islâmicaestabelece que os muçulmanos devem respeitar todo tipo de religiosidade.

Ela nos dá o direito de discordar de outras crenças, mas nos obriga arespeitá-las.

Veja – Du r a n t e sécu l o s , sáb i o s do I s lã d i s c u t i r a m s e u m m u çu lm an o

p o d i a v i v e r n u m p aís c r i s tão . O s m uçu l m a n o s r e a l m e n t e s e s e n t em

d e s c o n f o r táv e i s q u a n d o são m i n o r i a ?

Abdouni – Não há desconforto. Por duas razões. Primeiro, porque a religiãoislâmica é universal, ou seja, nada impede o muçulmano de praticá-la emqualquer lugar. Segundo, porque os muçulmanos estão acostumados a viver

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onde não são maioria. Nos primórdios da religião, o próprio profeta Maoméincentivou que muçulmanos viajassem para lugares distantes para queaprendessem com seguidores de outras religiões e também lhes ensinassema mensagem do Islã. O que os sábios do passado discutiam é se umaminoria muçulmana poderia permanecer em um país que não respeitassesua religião. Essa preocupação não existe hoje porque felizmente os direitosdos muçulmanos são preservados, tanto no Brasil quanto na América doNorte e na Europa.

Veja – O I s lã es t á i n t e r e s s ad o em con qu i s t a r f iéi s en t r e o s b r a s i l e i r o s

c r i s t ão s?

Abdouni –  O Islã é a religião que mais cresce no mundo. Cresce

principalmente no Ocidente. Em vários países da Europa, o islamismo já é asegunda religião. Nos Estados Unidos, existem 8 milhões de seguidores. Aquino Brasil há 1,5 milhão, muitos deles novos adeptos.

Veja –  O Corão  f o i e s c r i t o n o séc u l o V I I e r e f l e t e b a s t a n t e o s

c o st u m e s e a s c ir c u n s t ân c ia s d a q u e l e d e t e r m i n a d o m om e n t o

h i s t ó r i c o . P o r q u e étão d i f íc i l p a r a o s m uçu lm a n o s e x am i n a r s e u s

e n s in a m e n t o s n o c on t e x t o e m q u e f o r a m e sc r i t o s e m l u g a r d e l e v a r

t u d o a o péda l e t r a ?

Abdouni –  Desde que foi revelado, há catorze séculos, o Corão  asseguradireitos e deveres que permanecem imutáveis. O livro sagrado também trazsoluções para os problemas existentes numa sociedade moderna. Sob esseponto de vista, o Islã é moderno. Muitos intelectuais ocidentais reconhecemisso. O dramaturgo irlandês Bernard Shaw disse certa vez que, se vivesse naatualidade, aplicando os ensinamentos do Corão, o profeta Maomé resolveriaos problemas do mundo tomando uma xícara de chá.

Veja – Em vár i o s pa íse s m u çu lm an o s a m u l h e r q u e t i r a r o véu em

púb l i c o p o d e s e r p r e s a o u e s p a n c a d a p e l a p o l íc i a r e l i g i o s a . I s s o é 

m o d e r n o ?

Abdouni – Essas ações não são preceitos islâmicos, já que se segue o Islãpor meio da convicção, e não da imposição. Porém, sabemos o que acontecequando a mulher tira a roupa e se expõe, principalmente no mundoocidental: ela é desrespeitada de forma inaceitável. Estatísticas mostram quenos Estados Unidos ocorre um estupro a cada seis minutos. A exposição damulher acaba facilitando esse tipo de crime. É claro que o homem tambémdeve se preservar. O Corão  diz que a obrigação de evitar a cobiça e oadultério deve ser de ambos os sexos.

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Veja –  No s p aís e s q u e s e g u em a l e i i s lâm i c a a o péd a l e t r a , o

t e s t e m u n h o d a s m u l h e r e s v a l e m e n o s q u e o d o s h o m e n s n o s

t r i b u n a i s e a p a r t e d e l a s n a h e r a n ça t am bém é m en o r . Es s a s

d i sp o s ições d o Corão  t am bém não p o d em s e r c o n s i d e r a d a s

m o d e r n a s .. .

Abdouni –  Na religião muçulmana, a mulher tem o mesmo espaço que ohomem. A questão é que a maioria dos países não pratica o Islã de formacorreta. Talvez seja isso o que ocorre hoje. Na época de ouro do impérioislâmico, quando as leis do Corão eram seguidas à risca, a mulher ocupavapapel de destaque na sociedade. Antes do surgimento do Islã, as mulheresnão tinham direitos. Na Europa, elas permaneceram nessa situação até aIdade Média. Porém, quanto à herança, há um equívoco na interpretação,

pois o homem recebe mais que a mulher por ter de sustentar sua família.Então ele recebe bruto, enquanto a mulher não tem a obrigação de dividirnem de sustentar ninguém. Portanto, o que ela recebe é líquido.

Veja – O s e n h o r p e r m i t i r i a à s u a m u l h e r t r a b a l h a r f o r a ?

Abdouni –  Ela estuda computação e exerce a profissão mais importantepara a mulher, que é a de educar os filhos. A mulher tem granderesponsabilidade nessa tarefa, mais até do que o homem. Mas, se ela quiser,ela tem o direito de trabalhar.

Veja – A m u t i l ação g e n i t a l d a s m u l h e r e s ém esm o c om um em p aís e s

d e m a i o r i a m uçu l m a n a ?

Abdouni –  A mutilação genital é um costume pré-islâmico, proibido pelareligião muçulmana. Os líderes religiosos a condenam porque viola osdireitos da mulher contidos no Corão. A mutilação genital não é praticada namaioria do mundo islâmico. Apenas em países africanos e, mesmo assim, emalgumas tribos. Não é correto julgar o Islã por causa desse costume.

Veja – O p r o f e t a M a om éc a so u - s e c om um a m e n i n a d e 9 a n o s . Ca s a r -  

se a i n d a c r i a n ça éum a im p o s ição d o I s lã às m u lh e r es?

Abdouni –  O casamento é permitido pelo Islã quando a mulher atinge amaioridade. O critério de maturidade para a religião é a puberdade.Antigamente era comum as mulheres se casarem com 9 ou 10 anos. Tantoque ninguém contestou quando o profeta se casou com Aisha, nem osincrédulos, nem os idólatras daquele tempo. Devemos levar em conta oscostumes e as tradições de cada período histórico, como também odesenvolvimento físico das pessoas da época.

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Veja –  Um a d a s p r i m e i r a s m e d i d a s d o a i a t o lá K h o m e i n i , a p ó s a

Re v o l ução I s l âm i c a , em 1 9 7 9 , f o i b a i x a r p a r a 9 a n o s a i d a d e m ín im a

p a r a c a s a r . El e a g i u d e a c o r d o c om a l e i is l âm i c a ?

Abdouni – Para a religião muçulmana, a mulher não é mais dependente dospais quando atinge a puberdade e, portanto, a maioridade. Ela passa a terdireitos e deveres, entre eles o direito ao casamento. É assim desde o tempodo profeta. Temos de verificar em que idade a maioria dos jovens de hojeatinge a puberdade e determiná-la como maioridade.

Veja – P o r q u e r a zão , em c a s o d e d i v ó r c i o , a l e i i s l âm i c a dá a g u a r d a

d o s f i lh o s s em p r e a o p a i ?

Abdouni – O Corão assegura às mulheres todos os direitos, incluindo o deescolher o noivo e também o de se divorciar. Nesse caso, pela religiãomuçulmana, a mãe só perde a guarda dos filhos se não houver entendimentoentre os pais e ela se casar outra vez, para poder facilitar um novorelacionamento. Quando atingem a puberdade, os filhos têm a opção deescolher se querem morar com o pai ou permanecer com a mãe.

Veja – O t r e c h o c o r ân i c o q u e a u t o r i za o s m uçu l m a n o s a e l i m i n a r

i n f iéi s o n d e o s e n c o n t r a r em éen t e n d i d o p o r m u i t o s n ão -m uçu lm a n o s

c om o u m a l i ce nça p a r a m a t a r . É i s so m e sm o ?

Abdouni –  Não. Existe confusão em torno desse versículo. Essa confusãodesaparece quando se lê o texto por inteiro. Ele foi revelado depois que osidólatras romperam um acordo de paz com o profeta Maomé. Ou seja, asdeterminações expressas no versículo só valeram para aquela situação econtra aquele grupo específico. Prova disso são os templos religiososmilenares dos judeus e cristãos que permaneceram protegidos e funcionandonormalmente durante catorze séculos de governo islâmico. Os fanáticos detodas as religiões, e não apenas do Islã, costumam usar trechos tirados docontexto para justificar suas ações violentas.

Veja – Q u a l p aís t em o s i s t em a d e g o v e r n o m a i s a dm i ráv e l d o p o n t od e v i s t a d o I s lã?

Abdouni – Não há país que pratique o Islã de maneira perfeita. Mas existemalguns países que respeitam os preceitos mais amplos da religião, no que serefere à tolerância, à justiça social, ao desenvolvimento econômico etecnológico. Nesse grupo eu destacaria a Malásia, a Indonésia e Sharjah, umdos Emirados Árabes Unidos.

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REPORTAGENS

As chamas do Islã 21 de fevereiro de 1979 

Revivendo cenas que se julgavamesquecidas na História, a revoluçãoiraniana irrompe com ímpeto e abreperspectivas inquietantes no planointernacional 

Os homens enchiam de terra sacos de estopa, levantavam barricadas com

tijolos e madeira. E muitos entre eles traziam faixas de tecido branco natesta, símbolo muçulmano da disposição de morrer em combate. Envoltasem seus véus negros, os chadors, mulheres de todas as idades ocupavam-seem uma frenética fabricação de coquetéis Molotov. E pelas esquinas deFarahabad, bairro no setor leste de Teerã, jovens interrompiam os passantespara colocar-lhes nas mãos uma metralhadora, um fuzil - o convite para juntar-se à jihad, a "guerra santa" islâmica que começava a engolfar o Irã.

Um ano depois das primeiras passeatas contra o regime do xá MohammedReza Pahlevi, que governou o país com mão de ferro durante 37 anos, era

toda a população de Teerã que, como num único movimento, se sublevavapara tomar o poder pelas armas. Foi um dia sangrento, o sábado, 10 defevereiro, na capital do Irã. Durante todo o dia, multidões enfurecidasinvestiram contra quartéis, delegacias de polícia e outros postos deresistência da monarquia. A cidade cobriu-se de grossas espirais de fumaçaque, aqui e ali, indicavam tanques do Exército e edifícios públicosincendiados. Tudo que se ouvia eram explosões e tiros.

Ouviam-se também e principalmente os gritos dos seguidores do ayatollahRuhollah Khomeini, o líder supremo da rebelião, que insuflavam aturbamulta por meio de alto-falantes. No final da tarde, combatia-se por

toda a cidade. Pelo menos 200 mortos e 800 feridos haviam sido recolhidosdas ruas. E a fúria do levante popular trazia à lembrança de um mundoassombrado cenas que se acreditava definitivamente arquivadas nos livrosde História ou nos relatos do passado - como a tomada do Palácio deInverno, na Revolução Bolchevique de 1917, por exemplo, ou até mesmo aderrubada da Bastilha, durante a Revolução Francesa, no remoto 1789.

CAPÍTULO FINAL  - O fato é que bastaram onze dias da presença deKhomeini em Teerã, após um exílio de quinze anos - no Iraque, depois naFrança -, para que a insurreição iraniana ganhasse os contornos definitivos

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de uma revolução. Mais ainda: um verdadeiro assalto popular ao poder, algoque os cientistas políticos já não mais esperavam ver neste final de século,em que ações militares, as intervenções estrangeiras ou incontáveisfórmulas de acomodação tornaram-se a modalidade dominante detransformação política.

O capítulo final da monarquia persa, velha de 2.500 anos - e também damoderna dinastia Pahlevi, fundada pelo pai do atual xá em 1921 -, começouna noite de sexta-feira atrasada, quando cadetes da base aérea DashanTadeh se amotinaram contra seus oficiais. As Forças Armadas, talvez a únicainstituição que ainda barrava o avanço das hordas iranianas rumo ao poderem Teerã, começavam a ceder. Unidades da Guarda Imperial, uma tropa deelite incondicionalmente fiel ao governo do primeiro-ministro Shapour

Bakhtiar, foram chamadas para sufocar o levante. Mas os soldados malhaviam chegado a Dashan Tadeh quando milhares de populares armadossurgiram nas imediações da base para reforçar a posição dos cadetes.Começou então a batalha - e o sangue não deixaria mais de correr até aderrocada final do governo e a captura do poder pelo ayatollah.

ASSALTO À PRISÃO  - Os combates não tardaram a estender-se a umarsenal militar situado nas proximidades, o de Eshratabad, e prolongaram-sedurante toda a noite. Na manhã de domingo, finalmente, renderam-se osúltimos oficiais leais ao governo. Pouco depois, o Estado-Maior das ForçasArmadas comunicava que as tropas seriam chamadas de volta aos quartéis,"para evitar mais derramamento de sangue e anarquia". Era, na prática, aretirada de apoio militar ao desprestigiado governo de Bakhtiar, umadvogado de 63 anos, designado pelo xá no início de janeiro, antes dapartida do monarca para o exílio. E caía, com Bakhtiar, o último obstáculopara a instauração da "república islâmica" pregada por Khomeini.

Como seria de esperar, uma explosão de júbilo tomou conta da cidade mas acomemoração foi breve. Em poucas horas espalharam-se rumores de que asaída de cena das Forças Armadas não passara de um blefe dos comandosmilitares. Não era verdade - mas, no caos da revolução ainda quente, as

multidões enfureceram-se e lançaram-se a uma louca escalada deviolências. De Dashan Tadeh a massa humana dirigiu-se contra o PalácioGolestan, uma ex-residência do xá, atualmente destinada a hóspedes deEstado. Depois, investiu contra o escritório do primeiro-ministro Bakhtiar,que, àquela altura, estava desaparecido. A casa de Bakhtiar também foisaqueada, como a sede da missão comercial de Israel, a sede da missãomilitar americana - já abandonada - e o prédio onde funciona a CâmaraBaixa do Parlamento.

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À maneira da Revolução Francesa de 1789, não faltou nem mesmo umapoteótico assédio à maior prisão iraniana, a de Jamshidiyeh, em Teerã. Deum só golpe, nada menos de 11.000 presos, muitos deles criminososcomuns, ganharam a liberdade. Mas a massa queria, também, acertarcontas com alguns membros do antigo regime ali encarcerados porcorrupção. Suas presas mais desejadas: o ex-primeiro-ministro Amir AbbasHovejda, que ocupou o posto por treze anos, e o ex-chefe da odiada políciapolítica, a Savak, general Nematollah Nassiri.

CABEÇAS DECEPADAS  - Hovejda e Nassiri, que haviam sido presos porordem do xá no final do ano passado, como uma concessão aos opositoresdo regime, foram salvos do linchamento pela chamada "guarda islâmica" deKhomeini - a esta altura abrindo fogo não mais para derrubar o governo

mas, sim, para tentar recompor alguma ordem. Salvos, mas não por muitotempo. Ambos foram conduzidos a um cárcere improvisado no quartel-general do ayatollah. E, na sexta-feira, após um julgamento sumário, Nassiriseria fuzilado juntamente com mais três generais - as primeiras de umasérie de cabeças que, segundo se acredita, a espada da "república islâmica"vai decepar.

Mas, ao mesmo tempo que estendia seu domínio sobre o país, a rebeliãocomeçava a escapar, na semana passada, ao controle de seu patronoKhomeini - o líder religioso de 78 anos que, contando apenas com suaascendência sobre as massas, conduziu a revolta do exílio em Neauphle-le-Château, França, a 4.500 quilômetros de Teerã. Com a tomada de quartéis earsenais ao longo do fim de semana retrasado, cerca de 140.000 armasteriam caído nas mãos dos rebeldes. E, apesar dos apelos de Khomeini paraque a população os entregasse à "guarda islâmica", pouco mais de 10.000haviam sido recuperados até sexta-feira passada.

A maior parte desse material, segundo se acredita, está em poder de bandosanárquicos e de guerrilheiros marxistas, como os do grupo Fedayn-e-Kalc.Criada em 1971, esta organização uniu-se ao movimento religioso deKhomeini para a derrubada do xá - mas, como outros grupos radicais,

pretende ir muito além da "república islâmica" desejada pelo ayatollah. Aoque tudo indica, teriam sido esses extremistas os responsáveis pelo ataque àembaixada dos Estados Unidos em Teerã, na quarta-feira - explosão deviolência duramente amargada pelo novo governo.

O episódio, que aguçou as apreensões de Washington diante da revoluçãoiraniana, só terminou com a intervenção de uma força armada pró-Khomeini. Depois de quase duas hora de cerco pelos fedayin, os dezoitofuzileiros navais que defendiam a embaixada haviam recebido ordem doembaixador William Suilivan para que se rendessem devido ao desigual

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poder de fogo dos atacantes. Neste momento, extremistas invadiram oedifício. Eles já estavam retirando os 140 ocupantes da embaixada, sob amira de fuzis, quando a "guarda islâmica" os resgatou.

SOBRE BAIONETAS  - Havia, por outro lado, um foco de resistência doantigo regime na cidade de Tabriz, capital da província de Azerbaijão, nonorte, a 100 quilômetros da fronteira com a União Soviética. Ali, ex-agentesda Savak enfrentaram os populares pró-Khomeini até quarta-feira, com umsaldo de 700 mortos. Mas o fato é que, em sua primeira etapa, a revoluçãofora definitivamente vitoriosa - e seus inimigos, agora, estão dentro delaprópria. De fato, pouco ou nada restou do regime anterior. Já na segunda-feira, o primeiro-ministro Bakhtiar, que, segundo as primeiras versões, seteria suicidado, apresentou sua renúncia. Este veterano oposicionista, que

abandonou os correligionários ao aceitar sua nomeação pelo xá, passavaassim o governo a um ex-companheiro de luta política: o tecnocratamuçulmano Mehdi Bazaran, designado para o posto por Khomeini.

Como é natural nos momentos de grande convulsão política, abria-se então,para o Irã e seus 35 milhões de habitantes, um horizonte de incertezas. Masnão apenas para o Irã - pois o dramático desfecho da crise lança indagaçõesque se projetam muito além das fronteiras da antiga Pérsia. No final dasemana passada, diplomatas, estadistas e cientistas políticos de todo omundo debruçavam-se sobre o fenômeno em busca de suas raízes.

PRIMEIRO LUGAR   - Apesar de seus 78 anos, quinze dos quais longe doIrã, o ayatollah Khomeini conseguiu sobre as massas iranianas um domínioraras vezes visto na História - e acabou por se transformar numa dasgrandes figuras carismáticas deste século. Armado unicamente com suapalavra, este asceta de barbas brancas teleguiou multidões, manipulou semhesitar seu fanatismo, paralisou a economia do Irã, fechou as torneiras dopetróleo do segundo maior exportador do mundo.

Como tudo isso foi possível? Mas a revolução tem ainda outros pontosintrigantes. Como explicar que, em apenas um ano, um levante popular

tenha derrubado um governo sedimentado em 37 anos de existência eapoiado em um dos mais poderosos e bem armados exércitos do planeta?

Não eram poucas, na verdade, na semana passada, as reflexões sobre afragilidade da ordem que se apóia unicamente sobre as baionetas. Com osbilhões de dólares do petróleo, o xá dotou suas Forças Armadas de quase500.000 homens dos mais sofisticados equipamentos de que se tem notícia -só os Estados Unidos venderam ao Irã 12 bilhões de dólares em armas nosúltimos seis anos.

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O monarca se garantiu ainda contra seus opositores com uma brutal políciapolítica - a Savak, que deu ao Irã, em 1977, segundo a organização AnistiaInternacional, o primeiro lugar no mundo entre os países violadores dedireitos humanos.

REVOLUÇÃO DE MAIORIA  - Como se não bastasse, o xá Reza Pahlevitambém tinha a seu favor um insólito consenso internacional. Até o últimomomento, seu governo teve o apoio de países como China, Estados Unidos emesmo a União Soviética - os russos, na verdade, sempre preferiram o xá,com quem estabeleceram pacata convivência, ao visceralmenteanticomunista Ruhollah Khomeini. Mas nenhum desses pólos de sustentação,como se viu, mostrou-se suficiente para salvar o regime. Pelo contrário.Entre todas as revoluções da História, a iraniana prima pela quase

unanimidade da oposição à ordem reinante. Acredita-se que nada menos de90% dos iranianos colocaram-se contra o governo ao longo do ano passado.

Segundo disse a VEJA o professor Thomas Ricks, do Departamento deHistória da Universidade de Georgetown, em Washington, este particular fazda revolução iraniana um dos mais profundos movimentos sociais desteséculo. Ele lembra que a revolução comunista na Rússia, por exemplo, foifeita pelos bolcheviques, uma minoria dentro da sociedade. No Irã,diversamente, é ínfimo o número de defensores da velha ordem.

Mas o que dá ao fenômeno iraniano um caráter ainda mais intrigante é semdúvida seu conteúdo religioso. Seria a rebelião o primeiro rebento de umrenascimento islâmico? Existem, hoje, entre 750 milhões e 1 bilhão demuçulmanos no mundo. Trata-se da única religião em expansão - e, além domais, é a crença dominante nos países detentores das principais reservasconhecidas de petróleo.

80.000 MESQUITAS  - Esses fatos, por si só, bastam para explicar aapreensão com os perigos de contágio da insurreição iraniana. Pode-seenganar, contudo, quem interpreta a revolução como um fenômenoexclusivamente religioso. "Não houve uma revolução islâmica no Irã",

acredita o professor inglês Freddy Halliday, diretor do Transnational Institutede Londres. "O que aconteceu", disse ele na semana passada a VEJA, "foiuma revolução contra a velha classe política, na qual só existiu um elementocatalisador organizado: a religião."

É certo que o xiismo, a seita muçulmana que é a religião oficial do Irã, étradicionalmente vinculado às questões políticas. Mas é possível, como quero professor Halliday, que o movimento religioso não tenha sido o motor darebelião popular mas, sim, seu canal de expressão. Privados, sob o regimeditatorial do xá, de imprensa livre, partidos políticos representativos e

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entidades estudantis, os iranianos voltaram-se para o único fórum quepermanecera aberto: as 80.000 mesquitas existentes no Irã. Mas a maisimportante contribuição do clero para o movimento subversivo foiemprestar-lhe sua secular estrutura de comunicações no interior do país.Quando os ayatollahs ditavam palavras de ordem políticas para a população,elas eram imediatamente transmitidas, para baixo, em direção a uma redede 18.000 mullahs - espécie de sacerdotes paroquiais - e, ainda num degrauinferior, para 600.000 saias, crentes considerados como "descendentesdiretos" do profeta Maomé.

TRANSTORNOS - Durante a revolta dos últimos meses, esta rede foi aindaacrescida com a participação dos bawaris, os comerciantes tradicionais queexistem em todas as cidades iranianas. Muito ligados ao clero, eles recolhem

dízimos sobre seus ganhos. Por tradição, nomeiam líderes comunitários paraorganizar as procissões religiosas - e existem mais de 5.000 só em Teerã. Écompreensível, assim, que milhões de iranianos tenham se reunido comtanta freqüência nos últimos meses para clamar pelo fim da monarquia. E seentende, também, como a rebelião obteve tantos recursos materiais. Maspor que a insatisfação com o regime teria chegado só agora ao ponto deebulição?

As revoluções se desencadeiam, segundo a clássica fórmula do professoramericano Crane Brinton, de Harvard, "nos momentos em que crescem asexpectativas de ascensão econômica e social por parte das massas". E ocaso do Irã parece ajustar-se com perfeição ao modelo teórico. Aquadruplicação dos preços do petróleo em 1973/1974 multiplicou por 20 arenda do Irã com a exportação do produto, chegando a uma receita de nadamenos que 24 bilhões de dólares anuais - o dobro do total das vendasexternas brasileiras. Mas o fato é que o Irã não chegou a se estruturar comouma sociedade capitalista - passou do estágio feudal, vigente até algunsanos atrás, para um mero estado de crescimento desordenado.

Tentando utilizar o dinheiro do petróleo, o governo lançou-se a um vastoprograma de desenvolvimento acelerado e acenou com um futuro cheio de

promessas. Mas não conseguiu nem teve tempo de trazer parcelasconsideráveis da população para os benefícios do sistema - ou de criar nasociedade iraniana interesses que combinassem com os seus. Na verdade, ainjeção de capital na economia, sem a necessária competênciaadministrativa para geri-lo, acabou trazendo mais transtornos que benefíciospara o cidadão. Esta é, entre outras, a análise do professor americanoMarvin Zones, diretor do Centro de Estudos sobre Oriente Médio daUniversidade de Chicago e autor de um dos mais respeitados estudosrecentes sobre o Irã.

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TEIMOSIA  - Entre outras conseqüências, o Irã, antes auto-suficiente emprodução de alimentos, tornou-se gradativamente dependente deimportação para 50% do consumo. Grandes massas de populaçãoemigraram para as zonas urbanas - Teerã, por exemplo, ganhou 1 milhão dehabitantes em cinco anos. E, nas cidades, os novos contingentes vieramagravar a carência de infra-estrutura sanitária, serviços médicos e escolas -sem falar no desemprego. Paralelamente, cerca da metade das receitas dopetróleo era destinada anualmente à compra de armamentos. O restante,como se pode imaginar, não bastava para melhorar significativamente o lotedo cidadão comum.

A extraordinária inépcia na gerência da economia acabou obrigando a umapolítica de contenção. Em agosto de 1977, com a inflação por volta de 50%

ao ano, e uma dívida externa calculada em 10 bilhões de dólares, o governoresolveu restringir o crédito. Para agravar as coisas, este momento defrustração das expectativas abertas pelo petróleo coincidiu com uma tímidapolítica de liberalização política. Ou seja, ao mesmo tempo que seaprofundava a insatisfação popular abriam-se canais para sua manifestação.E esta combinação, segundo Marvin Zones, teria sido fatal para o regime.

Há quem veja ainda na rebelião iraniana um típico caso de crise demodernização, a exemplo da que levou à revolução chinesa na década de40. Assim, para Ira Klein, professor de História da American University, emWashington, os acontecimentos da semana passada seriam apenas o ápicede um processo revolucionário iniciado no Irã no começo do século: aadaptação da velha ordem política à nova realidade econômica do país.Segundo este raciocínio, a monarquia teria sido eliminada de forma pacíficahá muitos anos, não fosse a teimosia de nações estrangeiras no sentido demantê-la - como foi o caso do golpe patrocinado em 1953 pelos EstadosUnidos para repor o xá Reza Pahlevi no trono. Temporariamente contido, oprocesso histórico estaria agora apenas seguindo seu curso.

TRABALHO ÁRDUO  - O fato é que a intransigência do regime do xá emabrir espaço político para a oposição acabou radicalizando a frente

antigovernamental.

Agora, as conseqüências disso deverão revelar-se com toda sua força. Emprimeiro lugar, o país está falido. Não bastasse o corte nas receitas dopetróleo, o novo governo deverá enfrentar a conseqüência da inevitável fugade capitais que precedeu a queda da monarquia. Só em novembro edezembro passados, diante da absoluta incapacidade de se tocar qualquernegócio no país, mais de 3 bilhões de dólares fugiram do Irã.

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Por outro lado, o colapso da produção causado pelas greves prolongadasexigirá um árduo trabalho de reconstrução. No caso do petróleo,particularmente, acredita-se que a produção não voltará aos níveisanteriores antes de pelo menos um ano - mesmo que o novo governo seempenhe neste sentido, o que ainda não se sabe se acontecerá. Maisárduos, contudo, prometem ser os problemas na frente política. Já nasemana passada, com a república ainda nascendo, surgiram as primeirasfissuras na coalizão oposicionista que conduziu a luta contra o xá. E oconfronto principal, ao que tudo indica, será entre a esquerda e osreligiosos.

"CONSELHO REVOLUCIONÁRIO"  - Mais que o minúsculo PartidoComunista do Irã, o Tudeh - na clandestinidade desde 1949 - são os

extremados grupos marxistas-leninistas que estão pressionando parainfluenciar a nova ordem. Seu quartel-general é a Universidade de Teerã eforam eles, na verdade, que tomaram a dianteira nos combates de rua. Osesquerdistas também conquistaram posições junto aos trabalhadores doscampos petrolíferos e, agora, querem uma "participação" na feitura doprograma do governo. O problema é que não se trata bem de uma"participação" - e sim, a julgar por suas extraordinárias exigências, de umavirtual captura do governo.

Entre outras coisas, os fedayin, estimulados pelas armas que detêm, querema criação de um "exército popular" para substituir as atuais Forças Armadas.Pleiteiam também a transformação do conselho de representantes eleitosdas comissões de greve em um "conselho revolucionário" - o queeqüivaleria, na prática, a um soviete. E querem nada mais nada menos queo controle das grandes instituições nacionalizadas, como a CompanhiaNacional de Petróleo e a Rádio e Televisão Nacional.

Ao mesmo tempo que lida com a economia e duela com a esquerda armada,o novo primeiro-ministro Mehdi Bazargan terá que começar a construir asinstituições da "república islâmica" pretendida. Por enquanto, tudo que sesabe é que Bazargan pretende convocar um plebiscito popular sobre o

abandono formal da monarquia, eleições para uma Assembléia Constituintee, no futuro, para um novo Parlamento. Mas como funcionará o país nesteperíodo de transição? Será realmente a nova "república islâmica" umatentativa de copiar o sistema que vigorava na Arábia sob Maomé ou o califaOmar, 1.300 anos atrás? É pouco provável que o governo agora empossadopretenda realmente abolir todos os elementos de modernização da vidairaniana - mesmo porque tal empreitada seria simplesmente inviável. Mas ospassos concretos a serem dados nas próximas semanas permanecemmarcados pela mais absoluta incerteza.

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"ESTADOS-CLIENTES"  - Esta falta de definições é particularmente graveno campo das relações internacionais. Constata-se, de imediato, que oocidente perdeu um de seus mais importantes peões no Oriente Médio. Comseus 2.600 quilômetros de fronteira com a União Soviética, o Irã era umabase ideal para os sofisticadíssimos aparelhos americanos deacompanhamento eletrônico das atividades militares e espaciais soviéticas.Mais que isso, o Irã tem sido uma fonte vital de petróleo para todo o mundoocidental. E, para completar, empenhava-se de bom grado na missão de"policiar" o estratégico golfo Pérsico.

Mas a derrota ocidental no Irã não se limita à perda de "um verdadeiroprotetorado", como observa o jornalista americano Richard Burt. Mais graveque isso é a admissão do fracasso do sistema de "Estados-clientes", que

floresceu nos anos da guerra fria. Segundo esse sistema, a defesa ocidentalpassou a basear-se em pactos regionais centrados em "Estados-clientes" -países intermediários que se alinham aos interesses estratégicos americanosem troca de ajuda econômica e militar. A lição da revolução iraniana,segundo Burt, é que os "Estados-clientes" já não são mais confiáveis.

COM A OLP - Mas o país mais diretamente prejudicado com a derrubada doxá é sem dúvida Israel. Sob Reza Pahlevi, o Irã foi o único membro daOrganização de Países Exportadores de Petróleo (Opep) a ignorar o embargode petróleo para Telavive decretado pelos árabes, em 1973. E, até o início,da crise iraniana, ainda era responsável por 60% do petróleo consumidonaquele país. O Irã, daqui para frente, está firmemente alinhado com a OLP(Organização de Libertação da Palestina) - e aí está mais um dado capaz decomplicar consideravelmente a política internacional. Com a União Soviéticae os Estados Unidos acusando-se mutuamente pela radicalização do conflitono Irã, também a détente sofre abalos. Em suma, a primeira revolução feitasob a égide do Islã nos tempos modernos ainda tem contornos imprecisos -e o mundo todo, nas próximas semanas, estará acompanhando inquieto seudesenrolar.

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Morte à queima-roupa14 de outubro de 1981 

Assassinado em plena tribuna de honra, Anuar Sadatsai de cena no Oriente Médio deixando aliadose inimigos com expectativa de mudança 

Com garbo e orgulho, a esquadrilha de cinco aviões Mirage da Força Aéreado Egito prosseguiu com suas rasantes piruetas enquanto outros aparelhossoltavam caudas de fumaça vermelha, branca e preta - as cores nacionais doEgito - no céu ensolarado do Cairo. Para os pilotos, a perfeição era essencial:embaixo, na terra, o presidente Anuar Sadat deveria estar com os olhosvoltados para cima acompanhando as evoluções, satisfeito. Até as 13h02 dafatídica terça-feira da semana passada, assim foi. Mas, naquele instante,retomando as palavras de Moshe Dayan, "o mundo mudou".

A parada militar do dia 6 de outubro é o ponto alto da liturgia patrióticaegípcia. Para comemorar a data em que lançou a ofensiva para recuperar amargem oriental do canal de Suez, em 1973, Sadat mandou construir umatribuna de concreto e granito vermelho, diante da pirâmide estilizada queserve de túmulo ao Soldado Desconhecido no bairro de Medinet el Nasr, ameio caminho entre a capital e o aeroporto. Lá, todos os anos, assistia emcompanhia da cúpula do regime, do corpo diplomático e dos adidos militares

estrangeiros a um desfile de ambicioso rigor marcial, pontilhado deespetaculares demonstrações de eficiência bélica. Ao final, sempre sozinho,Sadat costumava embarcar num helicóptero que o esperava atrás da tribunae seguia para Mit Abul Kom, sua aldeia natal no delta do Nilo, para meditar epregar diante do túmulo do irmão mais moço, Atif, morto na guerra de 1973.

Também na semana passada o presidente egípcio embarcou no helicóptero,só que para um vôo inútil ao Hospital de Maadi: com sua impecável fardaazul-marinho de mushir - marechal e comandante-em-chefe - encharcada desangue, Anuar Sadat estava mortalmente ferido no pescoço, peito, braço epernas. Uma equipe de doze médicos militares instalou o presidente na salade cirurgia "A", no 1º andar, e durante meia hora lutou para evitar suamorte. Mas Sadat já chegou em coma profundo, com perda de sangue pelaboca.

Transfusões, injeções para reativar o coração, eletrochoques e massagenscardíacas externas foram tentados. Por fim, foi aberta a caixa torácica paramassagear diretamente o coração mas, a essa altura, a linha doeletroencefalograma já não apresentava mais nenhum relevo. Às 13h45, ogeneral Ahmad Sami Karin - o mesmo que assinou o atestado de óbito do xá

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Reza Pahlevi - declarou morto o Rais. "Só Deus é eterno", disse à viúvaJihane Sadat.

SURGE MUBARAK - O alucinante ataque de metralhadoras e granadas queirrompeu em pleno desfile, e tomou de assalto o palanque montado naavenida da Vitória, fora bem-sucedido. Restava ao mundo, perplexo, juntarrapidamente os estilhaços políticos do atentado mais dramático desde oassassinato de John Kennedy em 1963 e ficar de prontidão para aeventualidade de um desdobramento ainda maior.

De imediato, o próprio Egito, a vizinha Líbia e sobretudo Israel colocaramsuas Forças Armadas em estado de alerta. Os 4.000 homens das duasunidades anfíbias da VI Frota americana e a totalidade das Forças de

Deslocamento Rápido, recentemente constituídas para descer numa crise noOriente Médio, em poucas horas, também foram equipadas para umanecessidade de embarque. Tomando a ofensiva no plano diplomático, oprimeiro-ministro de Israel, Menahem Begin, tratou logo de conter o diquede interrogações que se formaram em torno da sobrevivência, ou não, dosacordos de Camp David, nos quais Israel e Egito regulamentaram um planode paz duradoura, em 1979, e anunciou que respeitaria metro por metro ocronograma da devolução do Sinai ocupado. Em suma, o mundo começava ase movimentar na ausência de Anuar Sadat, o estadista árabe mais singulardo pós-guerra. Ao mesmo tempo, no Egito, o atentado veio provar aexistência de uma oposição radical, cujo potencial não diminuiu com ademonstração de autocontrole institucional na rápida indicação do vice-presidente Mohammed Hosni Mubarak como sucessor do Rais.

Menos de quarenta horas após o brutal assassinato, o rosto anguloso deMubarak tomou conta do país - antes mesmo que os egípcios e o resto domundo tivessem uma imagem completa dos acontecimentos da avenida daVitória. Nem mesmo as 1.500 pessoas portadoras de convites individuais,sentadas no palanque e nas arquibancadas à volta de Sadat, tiveram umavisão clara do que ocorreu na imponente avenida de quase 100 metros delargura.

CAMINHÃO PARADO -  Por meio de testemunhos fragmentados, sabe-seque a 1 hora da tarde, faltando 20 minutos para o fim do desfile iniciado umahora antes, começaria a longa e ruidosa procissão de blindados e caminhõesda Artilharia. Enquanto na tribuna reservada aos diplomatas, à esquerda dopresidente, um suboficial distribuía suco de goiaba e Coca-Cola a algumascrianças, na tribuna dos adidos militares, à direita de Sadat, o coronelbrasileiro Ney Eichler Cardoso, oficial de Artilharia servindo na Embaixada doCairo, concentrava sua atenção num grupo de nove caminhões de fabricação

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soviética, que rebocavam reluzentes canhões de 122 milímetros,recentemente importados da Coréia do Sul.

"De repente", conta o coronel Eichler, "percebi que a linha dos caminhõesestava flutuando." No jargão militar, isso significa que a fila de veículosperdeu o alinhamento, coisa inesperada num desfile exaustivamenteensaiado. A surpresa foi ainda maior quando o primeiro caminhão da filamais próxima à tribuna parou, avançou mais alguns metros e paroudefinitivamente diante das autoridades. Segundo outro depoimento, opresidente pensou que o comando de assassinos vinha-lhe apresentararmas. A cena já se havia repetido algumas vezes durante o desfile. "Assim",lembra o general Mahmoud El Masri, comandante da Guarda Republicana,"quando eles se aproximaram, o presidente levantou-se naturalmente para

fazer continência." Seja como for, tudo indica que Sadat não usou o instintomilitar que levou seus dois vizinhos de tribuna, o ministro de Defesa, generalAbu Ghazala, e o vice-presidente Hosni Mubarak, a se lançarem ao chão aoprimeiro disparo. O ataque foi rápido e decisivo. Primeiro, um tenenterobusto e dois soldados saltaram do caminhão parado, e correram emdireção à tribuna de honra, lançando três granadas e disparando suasmetralhadoras Kalashnikov. Um quarto soldado, a bordo do veículo, abriufogo diretamente sobre Sadat. Talvez tenham sido estes tiros que o feriramprimeiro.

NA PONTA DOS PÉS - Com muita pontaria e pouca sorte, os assassinoslançaram duas granadas dentro da tribuna. "A primeira não explodiu",lembrou depois o ministro da Defesa, que estava sentado ao lado esquerdode Sadat. "A segunda atingiu o rosto do general Hafez, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, também sentado na primeira fila, mas tampoucoexplodiu." Se um dos dois petardos explodisse, desapareceria toda a cúpulado governo egípcio. Uma terceira granada, de fumaça, explodiu aos pés dopalanque. Os atacantes continuaram avançando e, segundo Ghazala,lançaram fora da tribuna mais duas granadas, do tipo defensivo, cujo lequede estilhaços bastante fechado e vertical feriu poucas pessoas. "Nessemomento, olhei para o presidente e fui ferido por estilhaços no braço direito

e na face", relatou o general. Haviam decorrido não mais de 30 segundosdesde a parada do caminhão.

Anuar Sadat ainda se encontrava em seu lugar quando o quarto atacante,mesmo ferido pelos disparos tardios de um agente de segurança, deixou oveículo e se juntou aos demais. Foi então que o general Hassan Allam, seuchefe da Casa Militar, junto com o secretário particular, Fawzi Abdel Hafez, eo ajudante-de-ordens Nazih Helmi, todos sentados na segunda fileira, selançaram sobre Sadat para jogá-lo ao chão. Mas, não sendo guarda-costasprofissionais, os três chegaram tarde: o presidente caiu entre as cadeiras já

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sangrando abundantemente, o general Allam morreu, e Helmi e Abdel Hafezficaram gravemente feridos. Quanto aos seis agentes de segurança dopresidente, incompreensivelmente sentados dez filas atrás, eles nãoimpediram sequer que dois dos assassinos chegassem livremente à tribuna,nela se apoiassem e, elevando-se na ponta dos pés, disparassem suasmetralhadoras qual máquinas fotográficas, acima da cabeça, sem sequermirar. No chão, as personalidades tentavam proteger-se com cadeiras, emmeio a quepes, medalhas, sabres e pedaços de carne.

Milagrosamente, o vice-presidente Mubarak escapou apenas com umferimento na mão esquerda. Foi ele quem comandou o resgate do presidenteferido, ajudando a carregá-lo ainda durante o tiroteio, até a porta dos fundosdo palanque, para embarcá-lo no desesperado vôo de helicóptero até o

hospital. É possível que o crescente orgulho pessoal de Sadat como Rais doEgito e seu aguçado sentido de um destino histórico expliquem por que elenão usava um colete à prova de balas. Seu guarda-roupa incluía pelo menosdois exemplares, um deles presenteado pelos russos antes da expulsão dos20.000 conselheiros militares e técnicos soviéticos em 1972, mas nunca sesoube que os tivesse usado.

ÚLTIMA PALAVRA - Os disparos, no total, não duraram mais que 1 minuto.Mas o pânico que tomou conta das tribunas certamente ajudou a aumentar onúmero de feridos e, possivelmente, de mortos. Além do presidentemorreram outras oito pessoas, inclusive um dos soldados atacantes, opresidente do Tribunal de Contas e um bispo da Igreja copta. Entre osquarenta feridos havia crianças pisoteadas no palanque e soldadosatropelados por veículos que abandonaram o desfile em revoada. Umaambulância conseguiu chegar até o palanque para recolher as vítimas.

Houve também, naturalmente, ironias do destino. O ministro da Defesa daIrlanda, Jim Tully, por exemplo, tinha ido passar em revista o batalhãoirlandês das forças da ONU no Sinai. Estava em trânsito pelo Cairo quandorecebeu um convite de última hora para assistir ao desfile. Sentiu-sehonrado ao receber um lugar na segunda fila, perto de Sadat. Foi lá que

recebeu um estilhaço que lhe atravessou a mandíbula, saindo pela boca."Lancei-me ao chão", contaria mais tarde, "mas não consegui ir longe porqueo corpo do presidente estava atrás de mim." Outro que se pode considerarmarcado pela sorte - ou pelo azar - é o boliviano Reynaldo Del Carpio: em1980, foi seqüestrado junto com outros quinze embaixadores por terroristascolombianos em Bogotá. Nada sofreu, além do trauma. Transferido para oCairo, acabou sendo ferido no atentado contra Sadat.

Ainda na noite do atentado, Mubarak foi à vila da família Sadat, no bairro deGiza, apresentar suas condolências à viúva Jihane e às três filhas do casal. A

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viúva do presidente havia presenciado boa parte da tragédia pois seencontrava num camarote envidraçado no alto da tribuna, junto com outrasmulheres de personalidades presentes. Segundo lhe contaram, a últimapalavra pronunciada por Sadat foi: "Não". Quanto ao único filho homem docasal, Gamal, de 25 anos, encontrava-se pescando no litoral da Flórida e sóconseguiu chegar no Cairo no dia seguinte ao atentado. Àquela altura, jáestavam prontos os planos para o solene funeral de sábado passado, ecomeçavam a surgir as primeiras pistas sobre a autoria do atentado.

GOVERNO TEMPORÁRIO  - Apesar de sua proclamada devoção religiosa,Sadat parece ter sido morto por ordem da confraria dos Irmãos Muçulmanos,uma organização islâmica fundada na década de 30 e que jamais aceitou aocidentalização do país e de seus costumes. A Irmandade Muçulmana não

chega a ser uma seita islâmica como os xiitas do Irã, mas é igualmenteradical e violenta. Tem a morte de pelo menos três chefes de governo emsua folha corrida e conta com comprovada solidariedade em setores dasForças Armadas.

Tudo indica que a ameaça do fundamentalismo islâmico, que custou a RezaPahlevi o trono e aos iranianos a desintegração de seu Estado, vinha sendoaté agora mal avaliada no Egito. O proselitismo em favor de um modelo devida de acordo com a chariat - a lei islâmica - expande-se com rapidez,sobretudo entre os jovens. Nas universidades é crescente o número derapazes que deixa crescer sintomáticas barbas de inspiração islâmica, aomesmo tempo que exige que o ensino de ginecologia seja exclusivamentededicado a estudantes do sexo feminino.

"Vejo o governo Mubarak como um governo temporário", diz Henry Jackson,professor de Ciência Política da Columbia University, em Nova York. Jacksoné o especialista em Oriente Médio e África que previu a saída de cena deSadat, por golpe ou assassinato, no penúltimo número da revista ForeignPolicy, em artigo que esta semana se transformou em leitura obrigatória noPentágono. "O perigo de fragmentação política e anarquia no Egito é real(...), o processo de paz de Camp David está morto (...) e os israelenses,

independentemente de suas declarações do momento, estão se preparandopara um período de caos no Egito", declarou ele a VEJA na semana passada,A seu ver, o Egito de Mubarak caminhará inexoravelmente em direção a umentrosamento maior com países árabes conservadores, e estritamentemuçulmanos, como a Arábia Saudita.

Apesar do empenho do governo egípcio em reduzir a autoria do atentado aum minúsculo núcleo de quatro fanáticos, o próprio relato oficial apresentadopelo ministro da Defesa Ghazali oferece luzes mais amplas. Segundo ogeneral, o comandante do grupo que atacou o palanque seria o tenente

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Khaled Istambuli, irmão de um conhecido militante muçulmano encarcerado nomês passado na operação arrastão desencadeada por Sadat contra a "sediçãoreligiosa". Istambuli morreu no ato e ninguém consegue explicar como ele vinhaescapando dos sucessivos expurgos empreendidos nas fileiras militares. O outromembro do comando era um tenente da reserva, que, junto com dois ex-recrutas, foi ferido e preso 2 minutos após o atentado, não por agentes dasegurança presidencial mas por policiais. Em outras palavras, apenas um dosatacantes seria militar de carreira e os demais, civis. Mas, como o Egito é o paísde onde originaram as versões oficiais mais fantasiosas sobre o atentado - omesmo Ghazali sugerira anteriormente que Sadat enfrentara seus assassinos depé, peito erguido, valentemente -, será prudente aguardar um histórico maissereno de todo o episódio. 

MODELO SOLITÁRIO - Satisfeito com seu modelo solitário de gerir o poder,apoiado numa estrutura estatal fortemente baseada no organograma das ForçasArmadas, o ex-presidente Anuar Sadat de certa forma colocou-se acima de umasociedade que só lhe dedicou genuína admiração pela decisão de atacar asforças de Israel que ocupavam o Sinai, em 1973. No mais, o amplo espectro daoposição egípcia é capaz de incluir de personalidades respeitáveis, como ogeneral Chazli, veterano da guerra do Yom Kippur, a tipos como o tenenteIstambuli e possivelmente oficiais mais graduados que o ajudaram. É possívelque a decretação do estado de emergência e a proibição de manifestaçõestenham impedido cenas de pranto por Sadat antes do funeral. De qualquerforma, o pesado silêncio, alternado por uma estranha normalidade nas ruas doCairo, dava a impressão de que o presidente não deixou tantos órfãos entre asemotivas massas egípcias.

Foi do exterior que chegaram as manifestações mais ostensivas de apreço. Natarde de sexta-feira, um avião da Força Aérea dos Estados Unidos despejou emsolo egípcio nada menos que três ex-presidentes (Jimmy Carter, Gerald Ford eRichard Nixon), além do secretário de Estado Alexander Haig e seu predecessorHenry Kissinger - que, assim, pode saborear um pouco suas glórias passadas.Todos vieram assistir ao enterro, junto com Menahem Begin, que violou asnormas mais elementares de segurança e as regras mais rígidas da religião

 judaica para estar no mausoléu de Anuar Sadat na manhã de shabbat.

Assim como a junta médica batalhou com valentia para manter vivo AnuarSadat, Begin lutará com igual vigor para conservar viva a política do Raisassassinado. Primeiro a chegar no Cairo, o líder israelense também foi oprimeiro chefe de Estado a conversar com Mubarak. Os dois se abraçaram eBegin perguntou como fora o atentado. "Aconteceu tão de repente...",murmurou Mubarak. Dos dois, era o israelense quem parecia mais órfão deSadat. Com razão: enquanto sua sobrevivência política está irremediavelmenteatrelada aos acordos de Camp David, a identidade política de Mubarak, para seafirmar, poderá exigir rumos novos. 

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A espada do profeta10 de março de 1993

Crescem a influência e a violênciafundamentalista no mundo muçulmano 

Entoado com fervor, o nome de Alá queima como fogo no norte daáfrica e se estende até rincões esquecidos no coração da ásia, ondenasceram nações dos destroços da extinta União Soviética. O clamorque acompanha a prece é um só: instaurar um regime islâmico,espelhado no governo tribal do profeta Maomé, no século VII, ecombater aqueles que não vivem pelo Corão. O movimento

fundamentalista, que nasceu no Egito nos anos 50, avança e só deixaduas opções aos governos em que se aninha - ceder à onda radical oureprimi-la brutalmente. Na maioria dos casos, vale a segundaalternativa.

Durante três décadas, regimes laicos, governando com mão de ferroquase todos os países de maioria muçulmana, prometeram a felicidadepor meio do desenvolvimento econômico. Como continuam pobres einfelizes, seus habitantes estão cada dia mais dispostos a ouvir os ecosde um passado dourado e abstêmio, em que se mutilavam os ladrões,

as mulheres jamais se descobriam e os governantes eram apenasexecutores dos preceitos ditados pelo deus islamita ao profeta. No anopassado, a Frente Islâmica de Salvação, FIS, saiu na dianteira noprimeiro turno das eleições parlamentares da Argélia. às vésperas dosegundo turno, a FIS foi banida por um golpe militar e caiu naclandestinidade. Desde fevereiro do ano passado, mais de 600 pessoasforam mortas em conflitos entre militantes da FIS e a polícia. 

Na Tunísia, o governo, assustado com a força do fundamentalismo,encarcerou 6.500 pessoas nos últimos meses. Até na Arábia Saudita,

onde o governo é muçulmano ortodoxo, o rei Fahd é fustigado porgrupos radicais que exigem um regime mais rigoroso ainda. Osfundamentalistas tomaram o poder no Sudão e estabeleceram aprimeira república islâmica da áfrica moderna. Com apoio militar doIrã, o governo sudanês desencadeou uma repressão feroz aos cristãose animistas que vivem no sul do país.

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MÁRTIRES -  Nos territórios ocupados por Israel, a militânciafundamentalista converteu-se ao mesmo tempo no pesadelo do

primeiro-ministro israelense, Yitzhak Rabin, e do presidente da OLP,Yasser Arafat. Em dezembro, Rabin expulsou 415 palestinos sob aacusação de pertencerem ao Hamas, o grupo fundamentalista queassassinou oito soldados israelenses no final do ano passado, mas oLíbano barrou-lhes a entrada, criando o impasse que já dura trêsmeses e cavou um lugar para o Hamas nas negociações de paz - inútil,pois os fundamentalistas pregam a destruição de Israel. Nos territóriosocupados, os palestinos expulsos transformaram-se em mártires e suainfluência não pára de crescer.

O estrondo radical dos aiatolás xiitas no Irã e no Líbano fez o Ocidenteacreditar que o fundamentalismo sunita - a vertente majoritária do islã- era um fenômeno benigno. O engano está cobrando seu preço.Houve um tempo em que Israel, na ânsia de enfraquecer a OLP, deudinheiro e apoio a grupos muçulmanos. A estratégia anti-OLP deu certo- tão certo que agora os israelenses se arrependem. Os EstadosUnidos, que amargam o gosto de um atentado patrocinadopossivelmente por grupos fundamentalistas sunitas, também seenfiaram no vespeiro religioso. Nos anos 80, em plena Guerra Fria,fizeram uma aliança com os fundamentalistas no Afeganistão contra o

Exército soviético e treinaram guerrilheiros. Mais tarde, oscombatentes afegãos espalharam-se pelo Egito, Argélia e até pelaBósnia conflagrada, devotados à Jihad fundamentalista. 

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Ataque covarde 12 de maio de 1993

Embaixatriz brasileiraé agredida em Riad 

A embaixatriz brasileira Maria Rosita Pedroso mora em Riad, capital da ArábiaSaudita, e só sai às ruas coberta da cabeça aos pés com a abaia, um pesadovestidão negro. Casada com o embaixador Luiz Villarinho Pedroso, Rosita, de 57anos, não se converteu ao islamismo. O traje negro é uma deferência aosrigidíssimos costumes locais, segundo os quais as mulheres não podem exibirnenhuma parte do corpo fora de casa - as estrangeiras são eximidas apenas do véuque cobre inteiramente os cabelos e o rosto. O uso da abaia poupa-lhesaborrecimentos com os mutauas, a polícia religiosa encarregada de observar ocumprimento da interpretação ultrapuritana das leis do Islã. No sábado, dia 1º demaio, a embaixatriz foi às compras trajando o manto negro, como de hábito. Dentrodo centro comercial Ryad Al Akharia, o mais luxuoso da cidade, Rosita descobriu acabeça e entrou numa farmácia. Foi abordada por três mutauas, que lheordenaram, em inglês, que cobrisse os cabelos. "Não cubro porque não soumuçulmana", explicou. Rosita deu as costas para os policiais e foi agredida. Osmutauas puxaram-lhe os cabelos, cuspiram-lhe no rosto e chutaram-na pelascostas.

"São covardes que atacam senhoras indefesas", indignou-se o embaixadorVillarinho. No mesmo dia, a embaixada brasileira enviou uma nota de protesto à

chancelaria saudita. "Espero que os agressores de minha esposa sejam identificadose punidos", exigiu o embaixador. Na terça-feira passada, o encarregado de negóciosda Arábia Saudita no Brasil, Mansour Saleh Alsafi, foi chamado ao Itamaraty paradar explicações. Pediu desculpas e garantiu que o episódio não passaria em branco- mas até a sexta-feira o governo saudita não se havia mexido. 

VARAS E SPRAY  - Os mutauas são agentes voluntários, com salários pagos peloEstado e poderes amplos e difusos. Suas armas são varas finas e tubos de spray,que usam para molestar as mulheres que saem às ruas sem a abaia. Entre suasatribuições estão a vistoria das lojas (os comerciantes devem fechar as portas cincovezes ao dia, para rezar voltados para a cidade sagrada de Meca) e a detenção de

cidadãos, sauditas ou estrangeiros, flagrados com bebidas alcoólicas ou materialpornográfico. As mulheres sauditas são o alvo mais vigiado: além de se cobririnteiramente, elas não podem sair sozinhas, dirigir ou conversar com homens quenão sejam parentes. 

Desde a Guerra do Golfo, quando se suspeitava de que a presença de meio milhãode soldados americanos - inclusive mulheres - pudesse subverter o rigor doscostumes sauditas, os policiais religiosos tornaram-se onipresentes. Invadem casasà procura de álcool e prendem estrangeiros que não se curvam às suas exigências.Os 400 brasileiros que vivem no país sofrem com o patrulhamento. "Já fomosimportunados várias vezes, mas nunca com violência", conta a embaixatriz Rosita. 

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Caçada aos cabelos 30 de junho de 1993 

No Irã, campanha moralizadora humilha 

e persegue mulheres que descumprem a lei islâmica fechando as portas à liberalização 

Nos últimos tempos, as mulheres do Irã vinham ensaiando uma revoluçãosilenciosa. Os véus negros com que se embrulhavam da cabeça aos pés iam sendosubstituídos aos poucos por casacões e lenços coloridos. As mais ousadas cobriam acabeça, mas deixavam à mostra algumas mechas de cabelo. O falecido aiatoláKhomeini, pai da revolução que defenestrou o xá Reza Pahlevi e fez do Irã umEstado teocrático, teria uma síncope se soubesse que as mulheres iranianas dosanos 90 pintam as unhas de vermelho, fazem ginástica aeróbica em academias evestem minissaias por baixo do vestidão preto. Na semana passada, foi deflagradauma blitz para reabilitar os "bons costumes" no país. Durante quatro dias, agentesda polícia e da Guarda Revolucionária iraniana prenderam 802 pessoas, entremulheres e alguns homens, acusadas de desrespeitar a lei islâmica. Na quarta-feira,o jornal Jomhuri Eslami, de Teerã, noticiou que várias mulheres foram condenadasao açoitamento, punição recomendada pelo Corão às fiéis que não se vestem demaneira "devota".

Segundo a interpretação xiita do Corão, as muçulmanas devotas devem cobrir oscabelos, orelhas e testa. Só ficam à mostra as mãos e o rosto. Nos países sunitasmais conservadores, não sobra nem o rosto. Ambas as correntes do islamismo,

religião nascida nas durezas do deserto numa época em que as mulheres eram alvoprivilegiado nos ataques das tribos rivais, dedicam especial pavor aos cabelosfemininos. "O cabelo das mulheres tem uma espécie de brilho que tenta oshomens", reforçou Abolhassan Bani-Sadr, o primeiro presidente iraniano após arevolução, então badalado nas esquerdas ocidentais como progressista eesclarecido. Aos homens, a lei islâmica prescreve apenas a modéstia no vestir. Asmulheres presas na semana passada estavam "mal cobertas", isto é, mostravamparcialmente o cabelo. O pecado dos senhores que foram parar na cadeia era usaróculos de sol ("Eles tinham aparência decadente", justificou um policial). A maioriafoi liberada rapidamente, depois de confessar arrependimento. As mulheres malcobertas eram listadas num computador, e receberiam penas mais severas se

reincidissem. "Será uma campanha decisiva", explicou o chefe de polícia de Teerã,general Abdollah Oqbaei. "Nossa missão é orientar aqueles que desrespeitam oCorão."

MADONNA E PRINCE - Entre os países que professam a fé muçulmana, o Irã édos que cumprem com mais rigor os preceitos da lei islâmica. A linha dura só écomparável à vigente na Arábia Saudita. As iranianas não podem caminhar pelasruas em companhia masculina - a não ser que o homem seja parente próximo. Sóviajam sozinhas se tiverem autorização do pai, marido ou outro parente do sexooposto. Uma decisão da Corte Suprema anunciada no ano passado proíbe asiranianas de pedir o divórcio, a não ser que o marido seja comprovadamente insano

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ou esteja desaparecido há mais de quatro anos. A guarda dos filhos cabe sempre aopai ou à sua família, porque, segundo o Corão, a mãe é capaz de "decisõesirracionais". "Isso tudo é terrível para as mulheres iranianas, muitas delas

profissionais de nível universitário ou com estudos no Ocidente", avalia a escritora efeminista italiana Elena Giannini Bellotti. "Para elas, é como uma condenação àIdade Média."

Com uma classe média informada e educada, inclusive por herança daocidentalização promovida durante o reinado do xá, as tentativas de liberalizaçãosempre procuram brechas na rigidez do regime. Madonna, Prince e Michael Jacksoncontinuam oficialmente proibidos no país. A diferença é que agora os adolescentesouvem suas músicas em casa - e os pais toleram. As meninas usam jeans emulheres mais ricas encomendam lenços Chanel para cobrir os cabelos. Um decretoreligioso recente autorizou o aborto como forma de controlar a natalidade. Muitas

mulheres estão saindo de casa para trabalhar e desfrutam de mais liberdade do quenos primeiros anos da revolução dos aiatolás. Clubes e escolas continuamsegregando os sexos, mas homens e mulheres já podem praticar juntos, àdistância, pelo menos um esporte - o esqui. É claro que a aprendiz de esquiadora semantém escondida debaixo dos véus negros e a vigilância religiosa é implacável. 

BOMBA NO ANO 2000  - A repressão às mulheres iranianas acompanha oshumores do regime. "São períodos sistemáticos, que vão e voltam", disse a VEJA aescritora francesa Claire Brière, autora do livro Irã - A Revolução em Nome deDeus. "Sempre que há uma crise no país, política ou econômica, o governo buscarecuperar o que se considera como a grande força da nação: o comportamento, acoesão moral. E as mulheres são peça-chave nesse processo." A caça às bruxas dasemana passada aconteceu dias depois de uma eleição desanimada, que estendeupor mais quatro anos o mandato do presidente Hashemi Rafsanjani. Consideradoum "moderado", Rafsanjani condenou como um exagero a blitz do início da semana,expondo os ultra-radicais com quem de vez em quando se desentende na disputapelo poder. No essencial, todos estão de acordo: o Irã, que saiu lucrando com asurra levada por seu eterno inimigo, o Iraque, desponta como a potência dominantena complicada região do Golfo Pérsico. Apesar da economia combalida, 4 bilhões dedólares do orçamento nacional foram dedicados ao rearmamento do país em 1991. 

Suspeita-se que, além da compra de mísseis e submarinos, o Irã estaria adquirindotambém tecnologia para montar sua própria bomba atômica. O governo americano

prevê para o ano 2000 a construção do primeiro artefato nuclear. "Estamos apenasrepondo as armas que perdemos durante a guerra contra o Iraque", justifica AliMohammad Besharati, um figurão da chancelaria iraniana. Para consumo público, ogoverno deixou vazar recentemente um relatório preparado pela inteligênciairaniana com os grandes perigos para a segurança nacional. São eles: as minoriasétnicas, a corrupção administrativa, a burocracia - e as mulheres. Por enquanto, arevolução vai ter de esperar. 

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Rushdie de saias27 de julho de 1994

Escritora condenada à morte pede socorro

"Estou em perigo. Os fundamentalistas querem me matar. Por favor, me ajudem."Desde o mês passado, um fax com esse apelo, assinado pela escritora Taslima Nasrin,de Bangladesh, tem chegado a endereços importantes da Europa e dos Estados Unidos.Foragida da Justiça de seu país e ameaçada de morte por extremistas muçulmanos, elavive na clandestinidade desde o início de junho. O perigo que corre é real. EmboraBangladesh não seja um Estado teocrático, como o Irã dos aiatolás, 87% da populaçãoé muçulmana - e a influência dos fundamentalistas cresce a cada dia. Aos 32 anos,

Taslima é o Salman Rushdie de saias. A exemplo do anglo-indiano que vive escondidona Inglaterra há cinco anos, condenado à morte pela autoria dos Versos Satânicos, aescritora bengalesa também foi alvo de uma fatwa, a sentença de morte por blasfêmiacontra o Islã. Com a cabeça a prêmio, ela se refugiou na casa de amigos, de onde vemlançando seus pedidos de socorro. Um deles alcançou o ministro das RelaçõesExteriores da Alemanha, Klaus Kinkel, que levou o assunto à reunião de chanceleres daUnião Européia. Na semana passada, os doze países membros da União Européiaofereceram asilo político à escritora e instruíram suas embaixadas a ajudá-la a sair deBangladesh. 

Pode não haver outro caminho para Taslima Nasrin. Formada em Medicina, elatrabalhou vários anos como ginecologista numa clínica estatal em Daca. Seus problemas

iniciaram-se em 1990, quando começou a se destacar por artigos, publicados em jornaisfeministas, nos quais denunciava a posição subalterna da mulher no mundomuçulmano. Algumas de suas posições eram surpreendentes. Taslima, que já foi casadatrês vezes, chegou a defender o direito de as bengalesas terem quatro maridossimultaneamente. Nada mais justo, argumentava, uma vez que o Corão autoriza oshomems a manter quatro esposas. Ela foi ainda a primeira escritora muçulmana a usara palavra "vagina" num poema erótico. Seu livro mais recente, Vergonha, do anopassado, denuncia a perseguição religiosa à minoria hindu em Bangladesh, um assuntotabu em seu país. O livro vendeu 60.000 exemplares antes de ser proibido pelogoverno.

RECOMPENSA - A gota d'água que desencadeou a fúria dos fundamentalistas foi umaentrevista que ela concedeu em maio a um jornal indiano em que teria proposto revisãoradical do Corão. Taslima negou (disse que pediu mudanças apenas na lei islâmica),mas o estrago estava feito. Pouco depois, dois líderes religiosos bengaleses anunciarama sentença de morte contra ela. A recompensa pela sua execução foi fixada em 4.000dólares, soma considerável no país, que é um dos mais miseráveis do planeta. Sobpressão dos fundamentalistas, que têm saído às ruas todos os dias para exigir oenforcamento da escritora, o governo desenterrou uma lei do Código Penal até entãoem desuso para condená-la a dois anos de prisão, por ter "ofendido deliberadamente ossentimentos dos muçulmanos". Ao tomar conhecimento da oferta de asilo da UniãoEuropéia, o governo bengalês saiu-se com uma pérola de cinismo: disse que, antes, elateria de se apresentar e cumprir a pena de prisão. 

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A escalada do Islã9 de fevereiro de 1994

Fundamentalistas conquistam multidões nos países muçulmanos, bagunçam a nova ordem mundial e desenham um dos confrontos de fim de século com o Ocidente 

Adeus foice-e-martelo, chegou a vez da cimitarra. Com o fim do comunismo,uma nova assombração veio perturbar o sono do Ocidente: ofundamentalismo islâmico. Há poucos meses, um editorial do The New YorkTimes, o porta-voz mais autorizado da imprensa ocidental, qualificava a

ascensão do islamismo militante como uma "ameaça à paz e segurança domundo, semelhante à do nazismo e do fascismo nos anos 30 e à docomunismo nos anos 50". O fundamentalismo prega um Estado regido únicae exclusivamente pelas leis do Corão, o livro transmitido há 1.400 anos,segundo a tradição, ao profeta Maomé. Em uma república islâmica, não hádistinção entre Estado e mesquita, religião e política. O Irã dos aiatolás, opaupérrimo Sudão e a monárquica Arábia Saudita são os três países maispróximos desse tipo de regime. Violentos ou pacíficos, os métodos dosfundamentalistas variam de país para país. Eles podem ser sunitas ou xiitas -os dois ramos da religião muçulmana. Só estão de acordo num ponto: a

necessidade de romper com a influência do Ocidente (o "Grande Satã") esubstituir a lei dos homens pela lei de Deus, ou Sharia, um conjunto deregras que abarca tópicos distintos como o vestuário, o casamento, apolítica, a alimentação, a justiça, os juros bancários, as relações sexuais e aeducação das crianças. 

Onde se instala, o integrismo muçulmano é sinônimo de turbulência. NaArgélia, uma vitória eleitoral dos fundamentalistas, há dois anos, provocouuma guerra civil que já matou 2.000 pessoas e colocou o país num impasseem que é difícil saber qual das duas opções é a pior: uma ditadura à laPinochet ou um Estado teocrático à la Khomeini. No Egito, o mais importante

e populoso dos países árabes, o confronto entre o terror islâmico e o governo já deixou mais de 200 mortos e espantou os turistas que lá iam andar acamelo e apreciar as pirâmides. Nos territórios palestinos ocupados, osintegristas do Hamas se transformaram no grande obstáculo ao acordo depaz entre a OLP e Israel. A influência dos guerreiros de Deus se estende alugares tão distantes como a França, onde a presença do fundamentalismoentre os milhões de imigrantes árabes alimenta a retórica apocalíptica daextrema direita racista, e os Estados Unidos, onde o terrorismo islâmicodesembarcou, há um ano, na forma do espantoso atentado ao World TradeCenter, em Nova York. Nas repúblicas asiáticas da extinta União Soviética,

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mesquitas nascem da noite para o dia, como cogumelos, erguidas comdinheiro do Irã e da Arábia Saudita. 

DESCAMISADOS -  O integrismo muçulmano ganha terreno em toda umafaixa do planeta que vai do norte da áfrica ao Sudeste Asiático, modificandoa vida cotidiana de milhões de pessoas, assustando governos instituídos edando calafrios de medo em países ocidentais, onde a vitóriafundamentalista no Irã, exatamente há quinze anos, mudou o panoramapolítico de todo um naco do planeta. "As forças islâmicas já venceram", diz oacadêmico francês Gilles Kepel, um especialista no assunto. "Estamosassistindo à reislamização de uma região inteira." Mesmo em países decostumes mais liberais, os governos fazem concessões aos rigores da leiislâmica na esperança de reduzir o ímpeto dos radicais. A Jordânia, por

exemplo, fechou as piscinas mistas e deixou de servir bebidas alcoólicas nosvôos da companhia aérea nacional. No Egito, o livro As Mil e Uma Noites, omaior clássico da literatura árabe, foi banido em 1985 como pornográfico. Hácasos de regimes autoritários que manipulam o Islã para conter a oposição.Na Indonésia, a maior concentração de muçulmanos do planeta, a ditadurade Suharto atendeu prontamente à exigência de manifestantes que, com oCorão aberto na página em que se condena a jogatina, pediam o fim daloteria - algo bem mais fácil de fazer do que promover eleições livres. 

O renascimento de uma vertente islâmica virulenta e radical não é novidade.A Fraternidade Muçulmana, o mais antigo grupo integrista em atividade, foifundada no Egito na década de 20. O que catapultou o fundamentalismo aoprimeiro plano foi o fracasso dos dirigentes laicos em atender às demandasde justiça e dignidade nos países onde agora viceja a semente radical. Osmovimentos que inspiraram as massas árabes no pós-guerra, como onacionalismo de Nasser, naufragaram num oceano de incompetência,autoritarismo e corrupção. O marxismo - ateu - nunca deu muito ibope e ocapitalismo só trouxe benefícios para uma pequena elite que passa as fériasna Europa e capta a televisão ocidental em suas antenas parabólicas. Para osdescamisados, a esmagadora maioria, a modernidade significou miséria edesemprego na periferia das metrópoles superpovoadas. É natural que, à

falta de alternativas, as multidões se voltem para os imãs barbudos que lhesprometem restaurar a vida simples, porém decente, de seus antepassados,acabar com a roubalheira e as injustiças sociais e, de quebra, garantir opassaporte para uma existência melhor depois da morte. "O Islã deu umarazão, um significado ao fato de que ser pobre não é uma falha do indivíduoe sim da sociedade corrupta", analisa o ex-diplomata egípcio Tahseen Bashir.Aonde o Estado não chega, o clero muçulmano finca sua rede de assistênciasocial, com escolas, hospitais, creches e escritórios de advocacia. É lá que osfundamentalistas recrutam seus militantes e seus profissionais, que matam

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em nome de Deus e condenam ao fogo de Satã tudo o que tenha a marca doOcidente. 

HEREGES NA FOGUEIRA - O confronto com o Ocidente é de longa data. Naverdade, já dura catorze séculos, pois começou com o próprio advento doIslã, seguido de uma extraordinária expansão, que implantou a palavra - e aespada - do profeta até na Sicília, na Espanha, em Portugal e numa parte daFrança. Do ponto de vista histórico, a calmaria dos últimos três séculos é quefoi excepcional. "Desde o fracasso do segundo cerco turco a Viena, em 1683,e a ascensão dos impérios coloniais europeus na ásia e na áfrica, o Islãpassou para a defensiva, enquanto a civilização cristã e pós-cristã colocoutodo o mundo sob sua órbita", observa o historiador Bernard Lewis. 

Com seu comportamento ensandecido, os terroristas de Deus ajudam aalimentar antigos preconceitos do Ocidente - como o que atribui aos árabesuma inclinação natural para praticar a violência em nome da fé. Em filmes deHollywood, nas histórias em quadrinhos, no folclore de inspiração cristã, omuçulmano é sempre o malvado, o agressor, um sujeito de faca na mão oubomba na mala, pronto para matar pela glória de Alá. Os muçulmanos nãopossuem, de forma alguma, esse monopólio da agressão de inspiraçãodivina. Durante muitos séculos, a civilização árabe foi um modelo detolerância religiosa, comparada a uma Europa onde se queimavam heregesna fogueira, se expulsavam judeus e se matavam os pagãos que recusassemo batismo. Mesmo hoje, é injusto atribuir aos muçulmanos,indiscriminadamente, a pecha de fanáticos ou de briguentos. Nas ruínas daex-Iugoslávia, são os sérvios - cristãos ortodoxos - que iniciaram acarnificina com sua "limpeza étnica" contra os muçulmanos bósnios,enxotados de suas terras em meio às mais terríveis atrocidades. Na índia, osmuçulmanos são perseguidos por fanáticos hinduístas que utilizam arivalidade religiosa como uma arma suja na disputa pelo poder. 

Ainda assim, a simples existência de um fundamentalismo muçulmano emascensão chama a atenção para uma das facetas mais desconcertantes danossa época: o fato de que, às portas do século XXI, os homens ainda se

matam uns aos outros porque cultuam deuses diferentes, ou o mesmo Deusde forma diversa. Não se trata, na opinião de muitos estudiosos, de umresíduo do passado, mas uma tendência fadada a dominar o panoramamundial no pós-Guerra Fria. Samuel Huntington, da Universidade Harvard,um dos mais renomados cientistas políticos americanos, acredita que "omundo está entrando numa nova fase, na qual a fonte essencial de conflitonão será ideológica nem econômica. O choque das civilizações vai dominar".Pelo figurino de Huntington, a humanidade se divide em sete ou oito grandescivilizações - a ocidental, a confuciana, a hinduísta, a islâmica e assim pordiante -, cada qual com opiniões diferentes sobre as relações entre Deus e o

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homem, o cidadão e o Estado, pais e filhos, liberdade e autoridade,igualdade e hierarquia. "Mudanças econômicas e sociais estão afastando aspessoas de identidades locais há muito existentes", argumenta Huntington."Em boa parte do mundo, a religião está preenchendo o vazio,freqüentemente sob a forma de movimentos rotulados de fundamentalistas." 

AVERSÃO AO NOVO - A teoria do "choque das civilizações" - que profetiza,como cenário mais provável, um conflito entre "o Ocidente e o resto" - écontestada por outros analistas e pode até não passar de uma provocaçãointelectual, como o "fim da História" do filósofo americano Francis Fukuyama.É descabido, sem dúvida, comparar o desafio do fundamentalismo à queda-de-braço nuclear dos tempos da Guerra Fria. Os imãs não têm bombasatômicas nem, muito menos, os meios de usá-las de modo eficaz contra o

Ocidente. Mas é também verdade que há traços no islamismo militante que justificam os calafrios no resto do planeta. Remando contra a História, osfundamentalistas sonham transplantar para o mundo de hoje as normas e oscostumes de uma sociedade arcaica, forjada na luta de vida ou morte contrao deserto, tal como a que descreveu Maomé no século VII, antes, muitoantes da Idade Média. Não há lugar, na legislação islâmica, para direitosindividuais tão elementares, hoje em dia, quanto o de escolher a própriareligião, o de se opor à autoridade, o de manifestar livremente o pensamento- sem falar na emancipação da mulher, considerada inferior. 

O medo do novo é uma marca registrada do islamismo ortodoxo. A palavrainovação (bid'a, em árabe) é o que existe de mais próximo da noçãoocidental de heresia. Uma das falas atribuídas a Maomé traça a seguinteidéia: "A verdadeira comunicação é o livro de Deus, a melhor orientação é ade Maomé e a pior de todas as coisas é a inovação. Toda inovação éherética, toda heresia é um erro e todo erro leva ao inferno". Não há mesmocomo existir democracia num quadro cultural de tamanha aversão àmudança, de intolerância perante as vozes discordantes. O escritoramericano Gore Vidal publicou recentemente o livro Ao Vivo do Calvário,recheado de provocações ao cristianismo, baixarias sobre os santos católicose blasfêmias em torno do nome de Jesus. Talvez o papa João Paulo II tenha

até sentido a tentação de condenar Vidal à fogueira. Mas não pode. Oescritor continua a viver em absoluta tranqüilidade na cidade italiana deRavello, num dos países mais católicos do mundo, que abriga o Vaticano. Oanglo-indiano Salman Rushdie fez algo muitíssimo menos agressivo, massimilar, com o profeta Maomé e vive escondido, cercado de guarda-costas,porque o Irã dos aiatolás e da justiça corânica o condenou à morte. Nadefinição, bem apropriada, de outro escritor, Albert Camus, um francêsnascido na Argélia: quando a política se mistura com a fé, o resultado é aInquisição. 

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O peso da lei de Alá 9 de outubro de 1996 

Milícia fundamentalista controla 

Cabul, executa adversários e 

decreta retorno à moral medieval 

Situado numa região montanhosa e inacessível do centro-oeste da Ásia, comtradição guerreira e orgulho de ter sido um dos poucos países do "quintal domundo" a jamais passar pela colonização das potências ocidentais, oAfeganistão certamente nunca foi um exemplo de modernidade. O salto parao passado que deu, no entanto, é surpreendente até pelos padrões locais.

Depois de tomar a capital, Cabul, a milícia Taliban - uma força guerrilheiranascida nos seminários islâmicos e que já se apoderou de 70% do país -começou imediatamente a reformar o cotidiano dos afegãos segundo umainterpretação fanática e primitiva do Corão. Desde a semana passada, asmulheres estão proibidas de trabalhar fora de casa e só podem sair à ruavestidas com o chaderi, o longo camisolão que as cobre inteiramente,incluindo o rosto. Sozinhas, nem pensar - só em companhia de algumhomem da família. Até as escolas para meninas foram fechadas.

No meio da semana, os novos mandachuvas foram obrigados a ceder, emalguns pontos, diante de outro tipo de estatística. Metade dos funcionários

públicos são mulheres e um terço delas viúvas de combatentes e arrimo defamília. Retê-las na cozinha das casas aumentaria ainda mais o caosadministrativo e social em que o país mergulhou em dezessete anos deguerra civil. As escolas e repartições públicas serão "adaptadas" - o quesignifica a mais estrita separação entre os sexos - e as funcionáriasreceberão salários enquanto aguardam em casa. O recuo, porém, não deveser confundido com perda de fôlego ideológico. Um decreto promulgado pelorecém-criado Ministério da Propagação da Virtude e de Combate ao Vício nãodeixa dúvidas sobre os rigores exigidos de uma população que, em geral, jásegue os costumes islâmicos mas agora terá de se enquadrar na linha mais

radical.A televisão, considerada máquina demoníaca, saiu do ar. Música, casasnoturnas, cinemas e bebidas alcoólicas estão banidos. Todos os homensreceberam um prazo de 45 dias para deixar crescer a barba, bem longa,segundo a tradição islâmica. Foi adotada a sharia, o severo código legalmuçulmano, que prevê a amputação de pés e mãos de ladrões, oapedrejamento até a morte de adúlteras e traficantes de drogas e o açoiteem praça pública dos consumidores de bebidas alcoólicas. "O Afeganistão

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será um Estado integralmente islâmico", anunciou o mulá MohammedRabbani, membro da junta que governa Cabul.

TIROS NA NUCA - Sob a batuta de regimes fundamentalistas, a sharia jáé aplicada no Irã, Sudão e Arábia Saudita. O que se prevê para oAfeganistão, contudo, é coisa mais pesada ainda. "Deve surgir aí o maisrígido regime islâmico da Terra, mais duro que o da Arábia Saudita ou o doSudão", acredita Tom Gouttiere, especialista em Afeganistão da Universidadede Nebraska. Explosão similar de fanatismo, embora com fundo políticototalmente diferente, só se viu quando o Khmer Vermelho entrou em PhnomPenh, capital do Camboja, em 1975. Dispostos a implantar um comunismototalmente "puro", os guerrilheiros esvaziaram a cidade e enviaram seushabitantes para centros de reeducação no campo. Ter qualquer tipo de

instrução, e até usar óculos, era anátema. Quando foram apeados do podertrês anos mais tarde, o furor revolucionário do Khmer Vermelho eraresponsável pelo extermínio de um terço da população cambojana.

A entrada da Taliban em Cabul foi igualmente marcada por cenassangrentas. Retirados de um prédio das Nações Unidas onde viviamrefugiados desde 1992, o ex-presidente Najibullah Ahmedzi e seu irmãoShahpur foram arrastados amarrados na traseira de um jipe, executadoscom tiros na nuca e pendurados pelo pescoço na praça central da cidade.Comunista colocado no poder pelas tropas soviéticas que ocuparam o paísem 1979, Najibullah cometeu sua cota de atrocidades - mas a crueza daexecução sinalizou que coisa pior ainda vem pela frente. Segundo a AnistiaInternacional, ocorreram execuções em massa e milhares de pessoas estãodesaparecidas. Ao longo da semana, as estradas se encheram com 250 000refugiados deixando Cabul.

ARREPENDIMENTO -  Transformado num ponto quente da Guerra Friaquando existia a União Soviética, que interferiu diretamente no país parasustentar um regime comunista e se deu mal, o Afeganistão converteu-senuma incubadeira de fanáticos armados. Os fanáticos internos só podemfazer mal a seu próprio país, hoje praticamente irrelevante. Os estrangeiros

é que são o problema. Quando se fala em radicais "afegãos", a expressãonão se refere aos nativos do país, mas aos combatentes recrutados empaíses muçulmanos e enviados para lutar contra o Exército Vermelho noAfeganistão. Armados e treinados com a ajuda dos Estados Unidos, que sóviram a oportunidade de humilhar Moscou e hoje têm amargos motivos paraarrependimento, esses veteranos espalharam-se pelo Oriente Médio, norteda África, Filipinas e até a Bósnia. Eram "afegãos" os sauditas queexplodiram o primeiro carro-bomba contra as forças americanas na ArábiaSaudita. Ramzi Ahmed Yousef, condenado nos Estados Unidos por planejar

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atentados contra aviões americanos, recebeu treinamento nos campos derefugiados afegãos no Paquistão.

Depois da retirada das tropas soviéticas, na era Gorbachev, o Afeganistãovoltou à sua insignificância geopolítica, um peão de interesses regionais. Asfacções guerrilheiras, marcadas por lealdades tribais, engalfinharam-senuma carnificina que ainda está longe de terminar. A milícia Talibanrepresenta a maioria étnica dos pashtuns e cresceu com a ajuda doPaquistão e uma mensagem que parecia estar acima do interesse doscaudilhos tribais.

ANARQUIA - Muitos habitantes de Cabul receberam os conquistadores comcerto alívio pela esperança do fim de quase duas décadas de guerra. A

conquista significou também o fim do cerco de 22 meses que deixou a capitalem ruínas e custou a vida de 30 000 pessoas. A perspectiva otimista é que avitória da Taliban acabe com a anarquia e instaure algum tipo de estabilidadepolítica para o Afeganistão - mesmo sob o chicote da sharia. "A vantagemé que surgiu uma facção que parece capaz de controlar um governo noAfeganistão", opina o senador americano Hank Brown, que em julho visitou opaís. "O preocupante é que não sabemos nada sobre as idéias políticas daTaliban."

Outro problema é que a guerra ainda não acabou. O presidente BurhanuddinRabbani conseguiu fugir da capital e junto com o chefe de seu Exército,Ahmed Shah Massoud, um caudilho da minoria tadjique, se preparava paraenfrentar o avanço da Taliban no norte. Outra frente de resistência estámontada pelo general Rashid Dostum entre os usbeques, grupo étnico quecontrola outra fatia do norte do país. Quando passar a surpresa causada noOcidente pelas medidas radicais, eles voltarão a se matar sem atrair maioresatenções.

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Ramadã sangrento29 de janeiro de 1997 

Numa espiral de violência, mais de 200 pessoas são mortas 

em duas semanas de atentados

Vítimas de uma guerra civil que já matou 60.000 pessoas nosúltimos cinco anos, os 30 milhões de argelinos suportam umasituação sintetizada por Elias Canetti: a vida tornou-se uma

sentença de morte suspensa, que pode ser aplicada a qualquermomento. Nas últimas duas semanas, num banho de sangueselvagem até para os padrões locais, mais de 200 argelinos forammortos em chacinas ou atentados com carros-bombas. A ondarenovada de violência insana é pendurada na conta do GrupoIslâmico Armado, GIA, o mais belicoso e bem organizadomovimento armado da oposição muçulmana. Mas a polícia e oExército também deixam um rastro de sangue. No último dia 18,catorze pessoas foram fuziladas num único confronto com

suspeitos nas ruas de Argel, a capital. 

As origens do conflito argelino repousam no golpe de Estadopreventivo para impedir que os fundamentalistas muçulmanos,vencedores das eleições parlamentares, assumissem o governoem 1992. Não há sombra de diálogo entre os fundamentalistas eo presidente Liamine Zeroual, que governa com o apoio dasForças Armadas. A matança das últimas semanas foi anunciadacom antecedência. No início do mês, o GIA avisou, com

manifestos afixados às portas das mesquitas, que tinha preparadoum arsenal de cinqüenta bombas para tornar inesquecível esteRamadã, o mês de jejum e orações do Islã. No dia 16, umabomba matou catorze pessoas no mercado da cidade de Boufarik,um bastião dos fundamentalistas. Entre 19 e 22, quatro bombas -duas delas artefatos sofisticados acionados por controle remoto -explodiram em Argel, matando mais de sessenta pessoas. Numdesses ataques, diante de um cinema, quarenta civis perderam avida.

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GARGANTAS CORTADAS - Além dos atentados com explosivos,os terroristas do GIA ampliaram a campanha de terror, que

consiste em degolar famílias inteiras nas aldeias e pequenascidades do interior: dezenove pessoas tiveram a garganta cortadano dia 12, em duas aldeias, e outras 49 no dia 18, dentro de umamesquita, na cidade de Medea. Em ambos os casos, a chacina nãopoupou mulheres, crianças nem bebês. As bombas e a degolaindiscriminada têm o objetivo de demonstrar que o GIA não sedobra à repressão policial e desestimular a adesão doscamponeses às milícias de autodefesa organizadas pelo governo -uma tática usada pelo Exército peruano no combate ao Sendero

Luminoso que redundou em violência maior ainda. São essesmilicianos, recompensados com bons salários, e os comandospoliciais que respondem pelas atrocidades em nome do governo.

A matança é tanta que muitas vezes não se distinguem mais osautores das sucessivas chacinas. Nas cidades maiores, osfundamentalistas islâmicos costumam adotar a estratégia deassassinar pessoas comuns acusadas de não seguir o Islã com odevido fervor, jornalistas e estrangeiros - mais de 100 já foram

mortos nos últimos cinco anos, a maioria franceses. Agora, oscarros-bombas começaram a explodir indiscriminadamente,inclusive em bairros pobres, onde o apoio aos radicais de Aláé grande. 

A Argélia sangra e não se vislumbra solução alguma. No fim doano passado, o governo comemorou o plebiscito que endossou areforma constitucional pela qual os partidos religiosos forambanidos e o presidente ganhou poderes ditatoriais. A resposta dos

fundamentalistas veio agora, escrita a sangue. A matançacontinua. 

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Ritual em chamas 23 de abril de 1997 

Incêndio e pânico provocam 

mais de 300 mortes na peregrinação 

anual dos muçulmanos a Meca 

O Corão, o livro sagrado do islamismo, manda que todo muçulmano com possese saúde faça pelo menos uma vez na vida uma peregrinação a Meca, a cidadeonde nasceu o profeta Maomé, na Arábia Saudita. Tudo é metodicamenteprevisto: a duração do ritual (seis dias), a data (o último mês do calendáriomuçulmano) e as orações que devem ser feitas (uma para cada dia deperegrinação). Mesmo esse meticuloso planejamento não conseguiu impedir atragédia de terça-feira passada, quando em pleno haj, como é chamada aperegrinação, um incêndio tomou conta de um acampamento com milhares detendas na Planície de Mina, pegada a Meca. Cinco horas de pandemônio depois,343 peregrinos estavam mortos e 1.290 lotavam doze hospitais da área.

A causa do incêndio parece ter sido um pequeno botijão de gás ou um ar-condicionado portátil que explodiu em uma das tendas - ambos equipamentosimprescindíveis na planície árida e desabitada, onde a temperatura nesta épocasobe a quase 40 graus. O vento forte do deserto alastrou o fogo em minutos,causando novas explosões. "As pessoas entraram em pânico e puseram-se acorrer em todas as direções", contou uma testemunha. Muitos morreramqueimados, outros sufocados pela fumaça e outros ainda pisoteados na correria.O socorro não demorou a chegar - polícia e bombeiros sauditas permanecem emalerta máximo durante o haj. Helicópteros sobrevoaram o acampamento,

 jogando água, que também era lançada em enormes jatos dos caminhões debombeiro. Mesmo assim, 70.000 tendas queimaram-se, deixando um rastro deeletrodomésticos derretidos e roupas destruídas. Horas depois de contido oincêndio, uma enorme nuvem de fumaça negra era perfeitamente visível emMeca, a 11 quilômetros de distância. Outro princípio de incêndio, dois diasdepois, foi debelado rapidamente, sem vítimas.

A Planície de Mina é parada obrigatória na peregrinação anual de mais de 2milhões de muçulmanos, vindos de cerca de 100 países, uma das maioresconcentrações humanas eventuais do mundo. Aparecida, um dos principaissantuários religiosos do Brasil, recebeu no ano passado 215.000 católicos, e issoem um dia só - 12 de outubro, a data da padroeira. Pela multidão que acolhe,Mina é também um dos pontos de altíssimo risco de acidente no percurso dosperegrinos muçulmanos. Os grupos de tendas são separados por nacionalidadeem Mina, e os mais atingidos na tragédia da semana passada foram indianos epaquistaneses. Segundo o embaixador da Índia, Mohammad Ansari, pelo menos100 vítimas eram peregrinos desse país. Parentes e governos enfrentavamgrande dificuldade para identificar os mortos. A única identificação dos

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peregrinos, que, além de muito queimados, não tinham bolsos nem carregavamcarteira, era uma espécie de pulseira com seu nome e nacionalidade - acessórioprecário, que também foi consumido pelas chamas.

No ano passado, um incêndio chegou a destruir várias tendas em Mina, semferidos. Em 1990, em um dos túneis para pedestres que ligam Meca a Mina -construídos para facilitar o tráfego na estrada e evitar acidentes -, aconteceu apior tragédia até hoje: sete pessoas caíram de uma passarela interna, amultidão disparou e 1.426 peregrinos morreram pisoteados. A lista de desastresno haj inclui ainda 270 pessoas mortas em outra correria, em 1994, e mais 402vítimas, na maioria iranianos, num confronto com a polícia saudita durante umamanifestação anti-Estados Unidos em 1987. De lá para cá, todo ano osperegrinos do Irã desafiam a proibição de atividade política e promovem umprotesto durante o haj, geralmente nos últimos dias do ritual.

REFORMA BILIONÁRIA  - O haj começa na grande mesquita de Meca, ondefica a Caaba, um enorme bloco de pedra preta que teria sido erguidooriginalmente por Abraão, o patriarca bíblico dos povos árabe e judeu. Látambém é venerada a Pedra Preta, que teria sido dada a Abraão pelo anjoGabriel. Os peregrinos - os homens enrolados em dois cortes de tecido brancosem costura, as mulheres de vestido branco ou preto até os pés e véu - dãosete voltas ao redor da Caaba. No dia seguinte, vão para Mina, onde sepreparam para o ponto alto da peregrinação: a reza no Monte Arafat, ondeMaomé teria feito seu último sermão. Depois a multidão visita os três pilaresrepresentando o demônio, que são apedrejados com sete pedrinhas "dotamanho de feijões" recolhidas, de preferência, no Monte Arafat. Segue-se, nomesmo dia, o ritual do sacrifício: um carneiro por pessoa ou uma vaca oucamelo para cada grupo de seis. Neste ano, segundo a imprensa saudita,sacrificaram-se 500.000 carneiros e 15.000 camelos e vacas, e a carne foidoada a pobres em 27 países. Nos três dias seguintes, os peregrinos preparam-se para a volta: compram mantimentos, os homens raspam a cabeça e todosrepetem o ritual em volta da Caaba.

A Arábia Saudita, orgulhosa "guardiã das duas mesquitas sagradas" - a outraé em Medina, onde está o túmulo de Maomé -, gastou quase 20 bilhões dedólares nos últimos anos para receber e acomodar os milhões de fiéis dasegunda maior religião do mundo (a primeira é o cristianismo) e a que crescemais rapidamente. Entre outras coisas, ampliou a mesquita de Meca de menosde 30.000 para 160.000 metros quadrados, com capacidade para acomodar300.000 pessoas ao mesmo tempo. A polícia cuida de evitar superlotações - aprópria Planície de Mina acabava de ser cercada e fechada a novos peregrinosquando o incêndio começou. Nenhuma providência, porém, foi capaz até hoje deevitar a ocorrência de tragédias como a da semana passada. Como queconfirmando o inevitável, o rei Fahd, dirigindo-se aos parentes das vítimas doincêndio de terça-feira, disse que pedia a Deus "que lhes dê paciência" paraenfrentar o desastre.

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Blasfêmia fatal09 de julho de 1997

Ameaça contra israelense que ofendeu Maomé

Numa cidade com os nervos à flor da pele e uma história de tragédiassangrentas, não é complicado imaginar provocações capazes de atear novosconflitos. Na semana passada, Hebron, a cidade palestina onde soldadosisraelenses defendem de arma em punho um enclave habitado por umpunhado de judeus ultra-religiosos, explodiu em batalhas de rua causadaspor um desafio deliberado: cartazes com insultos à religião islâmica,produzidos e afixados nas paredes de Hebron por uma militanteultranacionalista israelense, Tatiana Susskind. Os desenhos mostravam umporco -- animal considerado impuro e impróprio como alimento pormuçulmanos e judeus -- com o turbante árabe na cabeça e a palavra Maoméescrita em árabe e inglês. O animal tinha uma pata sobre o Corão, o livrosagrado do Islã, e uma caneta na outra, como se estivesse escrevendo otexto.

Susskind, uma imigrante russa de 25 anos que vive em Jerusalém e estudouartes plásticas, foi presa pela polícia israelense no sábado 28, quandoapedrejava um ônibus árabe. Será agora processada por ofensas religiosas eagressão, crimes que teoricamente podem mantê-la por vinte anos na

cadeia. Não é a primeira provocação de fanáticos judeus, ansiosos por umconfronto tão sangrento que ponha a perder os acordos de paz entre Israel ea OLP -- mas desta vez as conseqüências foram inesperadas. Na quinta-feirapassada, o aiatolá iraniano Yousef Sanei ordenou a morte de Susskind numafatwa, decreto religioso similar à sentença contra o escritor anglo-indianoSalman Rushdie, acusado de blasfêmia oito anos atrás.

Recompensa -- Exortações à destruição de Israel fazem parte da rotina noIrã, mas a condenação de um israelense individualmente é inédita. E deveser levada a sério. Yousef Sanei é irmão do aiatolá Hassan Sanei,mandachuva da fundação que oferece 2,5 milhões de dólares pela cabeça de

Rushdie. Os conflitos em Hebron e, em menor escala, em torno das colônias judaicas na Faixa de Gaza começaram há três semanas em protesto contra oreconhecimento de Jerusalém como capital israelense pelo Congressoamericano e dão a dimensão da deterioração das relações entre Israel e ospalestinos. Com as negociações de paz interrompidas desde março, quando ogoverno israelense deu luz verde para a construção de um bairro judeu nosetor árabe de Jerusalém, gestos de alucinados como Susskind funcionamcom a eficiência de uma faísca num paiol. 

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Levantando o véu17 de dezembro de 1997

Presidente moderado avançamais um pouco na guerra dos aiatolás

Dois aiatolás, duas barbas grisalhas, dois discursos divergentes. Naterça-feira, o velho Irã radical e sua face mais aberta, que começacuidadosamente a emergir, se defrontaram na abertura da reunião decúpula da Organização da Conferência Islâmica, o encontro de chefesde Estado de 55 países muçulmanos que tirou o regime dos aiatolás doisolamento internacional quase total em que vive desde a revolução defevereiro de 1979. Primeiro, como manda a hierarquia, falou oultraconservador aiatolá Ali Khamenei, "líder supremo" e últimapalavra nos assuntos iranianos. Mostrou-se linha-dura como sempre evociferou contra os inimigos habituais: Israel, Estados Unidos e a"civilização ocidental materialista, onde dinheiro, glutonice e desejoscarnais são a aspiração máxima". Na sua vez, o presidente e tambémaiatolá Mohammed Khatami, um moderado entre os enfezadosturbantes da cúpula iraniana, tratou de oferecer aos presentes outraversão do Irã, pregando entendimento e moderação. "Só avançaremos

se aprendermos a utilizar as conquistas científicas, tecnológicas esociais do ocidente, um estágio inevitável no nosso caminho para ofuturo", disse.

Nos últimos seis meses, desde que Khatami ganhou de lavada aeleição para presidente, derrotando o candidato dos religiosos maisortodoxos e do próprio Khamenei, o Irã tem convivido com discursosantagônicos no poder. Não houve ainda nenhuma reviravolta nosprincípios fundamentalistas em vigor desde a revolução islâmica,dezoito anos atrás mas Khatami tem-se mostrado melhor do que a

encomenda e o país vive clima mais leve, com o sentimento de quepequenas ousadias são permitidas. No sábado 6, Teerã viveu aprimeira experiência de manifestação popular espontânea de grandesproporções em quase duas décadas. Em lugar do slogan oficial "Margbar Amrika" (Morte à América), dezenas de milhares de iranianosgritavam "Viva Badu". Badu é o apelido de Valdeir Vieira, o técnicobrasileiro da seleção iraniana, classificada para a Copa do Mundo. Osaiatolás se reuniram às pressas para decidir o que fazer e acabaramaceitando o carnaval. Mais espantoso: não reagiram quando 5.000

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mulheres, de chador e tudo, se misturaram à multidão, de 70.000torcedores, no Estádio Azadi, para dar boas-vindas ao time.

Dissidente O episódio mexeu com um dos sinais mais flagrantes dorigor revolucionário o tratamento dado às mulheres. Elas sãoobrigadas a cobrir os cabelos em público, não podem ter contato comhomens estranhos e estão proibidas de assistir a esportes masculinos.Se os aiatolás aceitaram tudo isso, foi porque, realmente, a ortodoxiaenfrenta resistências sérias, nascidas dentro do próprio regime. Ummês atrás, num gesto ousado, o presidente Khatami concedeu vistopara o principal dissidente do país, o filósofo Abdul-Karim Surush,viajar para uma conferência em Chipre. Uma pequena revolução, pois

Surush vivia numa espécie de prisão domiciliar. No início do mês, outroaiatolá importante, Ali Montazeri, que chegou a ser indicado sucessorpelo pai da revolução, Khomeini, colocou em dúvida o direito deKhamenei ter a palavra final em todos os assuntos iranianos ou seja,desafiou a pedra fundamental do regime teocrático. Khamenei reagiuenviando a Guarda Revolucionária para cercar a casa de Montazeri eameaça julgá-lo por traição.

A Guarda Revolucionária continua ativa e baderneira, mas falta-lhe oapoio popular dos primeiros tempos da revolução. Recentemente,

invadiram uma festa de casamento na cidade santa de Mashhad eaçoitaram os noivos e todos os convidados sob a acusação de queouviam músicas ilegais. Antenas parabólicas e aparelhos devideocassete continuam sendo destruídos sempre que encontrados. Aadministração do país, feudalizada em baronatos religiosos, continuacaótica. Mas, na semana passada, a face humana da revoluçãoislâmica ganhou pontos na guerra dos aiatolás.

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O país das cabeças cortadas07 de janeiro de 1998

Com espantosa seqüência de massacres de civis indefesos, a Argéliamergulha no martírio sem fim

Em todo o mundo islâmico, o mês do Ramadã é o período no qual os fiéisse dedicam às orações, ao jejum e às ações piedosas. Na Argélia, ondegoverno e fundamentalistas muçulmanos travam há seis anos umasangrenta guerra civil com mais de 80.000 mortos, o mês santo tornou-sesinônimo de matança, medo e cabeças cortadas. As chacinas de civis,com inacreditáveis requintes de crueldade, ocorrem com feroz

regularidade desde 1996. Nesta época do ano, porém, assumem umaprogressão ensandecida que culmina no Ramadã. Durante o mês dedezembro, bandos terroristas massacraram entre 600 e 1.000 pessoas,na maioria habitantes de vilarejos pobres e poeirentos, sobretudo na áreaapelidada de Triângulo da Morte, que vai da periferia de Argel, a capital,até a cidade de Medéia, a 70 quilômetros de distância. Na noite de terça-feira passada, a primeira do Ramadã, pelo menos oitenta pessoas forammortas em três chacinas na província de Relizane, a 250 quilômetros dacapital. Repetiu-se, em todos esses lugares, a orgia de crueldade. Osassaltantes chegam nas primeiras horas da madrugada, em caminhões eperuas, dinamitam casas e degolam os moradores, sem discriminarhomens, mulheres e crianças.

O morticínio obedece a um padrão: a degola das vítimas, gesto quelembra o sacrifício ritual de cordeiros, uma prática milenar que subsisteentre os muçulmanos. A evisceração e outras mutilações também sãocomuns. As vítimas, na maioria, são mulheres, crianças e idosos, maisfracos para resistir e mais lentos na fuga. Em algumas regiões, osassassinos circulam com uma guilhotina instalada na caçamba de umapicape, de modo a dar eficiência quase industrial à decapitação. Asvítimas são amarradas e têm a boca tapada com pedaços de jornal, paraimpedir que gritem. Em Zouabria, a 225 quilômetros a sudoeste de Argel,27 civis foram chacinados na véspera do Natal, entre eles um recém-nascido de 12 dias degolado no colo da mãe. Na aldeia vizinha de Shari,dois dias antes, os assassinos decapitaram um velho de 88 anos e cincomulheres e rasgaram a faca o peito de um bebê de 6 meses. O horror étamanho que ninguém consegue entender por que os radicais integristas,que começaram atacando alvos "compreensíveis" militares, policiais,funcionários públicos, jornalistas e intelectuais considerados anti-religiosos , agora se dedicam à matança de gente comum. Numa rara

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entrevista a um jornal francês, um líder da organização fundamentalistamais ativa, o Grupo Islâmico Armado, GIA, esboçou uma justificativa de

arrepiar: não há razão para se preocupar com a seleção das vítimas,afirmou, pois "Alá conhece a identidade do inocente e o transformaimediatamente em anjo".

Tática maoísta Em parte por causa dos atentados em Israel, ofundamentalismo islâmico tornou-se sinônimo de terrorismo selvagemcontra civis desarmados. A violência indiscriminada na Argélia, contudo,escapa às explicações convencionais. Se há uma lógica política e umaestratégia definidas por trás dos ataques palestinos em Israel (tumultuaro capenga processo de paz, que não aceitam), é difícil encontrar sentidona selvageria dos radicais argelinos contra seu próprio povo. É como se oHamas, guardadas as diferenças, detonasse seus homens-bombas naFaixa de Gaza e não nas ruas de Tel Aviv. Uma possibilidade é a de que aguerrilha islâmica esteja tentando amedrontar os moradores dos bairros ealdeias pobres para mantê-los distantes dos grupos de autodefesaformados pelo governo, tática similar à posta em prática pelos militantesmaoístas do Sendero Luminoso no Peru. Os grupos de autodefesa, quehoje reúnem 57.000 membros em todo o país, começaram a serformados em 1996 para proteger suas casas e famílias com armas velhase algum treinamento oferecidos pelo Exército. Mas, se o objetivo dosmassacres é sabotar o programa militar do governo, por que tantasmatanças ocorrem em tradicionais redutos eleitorais dos partidosislâmicos?

A Argélia sangra desde o Ramadã de 1992, quando as Forças Armadas,num golpe preventivo, cancelaram o segundo turno das eleiçõesparlamentares e colocaram fora da lei a Frente Islâmica de Salvação, FIS,o braço político do fundamentalismo islâmico, sob o argumento de queera a única maneira de evitar uma ditadura teocrática. Nascido nosbairros e aldeias mais pobres, em torno de mesquitas e instituições deassistência social mantidas pelo movimento islâmico, a FIS tinha vencido

no primeiro turno e estava a um passo da maioria parlamentar. Ofundamentalismo islâmico se reorganizou na clandestinidade e uma sériede grupos armados, entre eles o GIA, partiu para a violência. O regimemilitarizado respondeu na mesma linguagem, cometendo sua própria cotade barbaridades. Numa fase posterior, no entanto, passou a procurarinterlocutores comparativamente moderados entre os fundamentalistas epromoveu eleições. Radicais de ambos os lados não gostaram. Da mesmaforma que o cessar-fogo decretado pela FIS no ano passado é ignoradopelos combatentes islâmicos na linha de frente, militares linha-dura não

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engolem uma solução negociada. Talvez as chacinas estejam servindo aosinteresses dos dois extremos, ocupados em levar o conflito às últimas

conseqüências. Seria a explicação para a facilidade com que têm ocorridomassacres nas barbas de guarnições militares, que só atendem aospedidos de socorro depois que os assassinos terminam o serviço.

O turbante e a espada – É uma ironia histórica que no fim do século aArgélia agonize numa luta mortal entre militares linha-dura efundamentalistas religiosos. Quarenta anos atrás, recém-saída de seteanos de guerra anticolonialista, a Argélia galvanizou a simpatia daesquerda mundial. Colônia francesa durante 132 anos, o país chegou àindependência em 1962 com um regime de partido único, a Frente deLibertação Nacional, líderes com aura de austeridade e bandeiras terceiro-mundistas. Com uma economia de comando, como era obrigatório entre aesquerda na época, e uma renda razoável proporcionada pelo petróleobom e farto, o país embarcou num ambicioso programa deindustrialização. No fim dos anos 70, um ministro da Indústria fez umaprevisão que se tornou famosa pela vacuidade: a Argélia se transformariaem um segundo Japão.

A fragilidade da economia semi-estatizada, já agravada pelo desempregocrônico e pelos pesados subsídios aos produtos de consumo popular,tornou-se evidente quando o preço do barril de petróleo desabou pelametade em 1986. Dois anos depois, uma revolta popular tomou as ruas,com centenas de mortos. Para acalmar os ânimos no país traumatizadopela matança, o presidente da época, Chadli Bendjedid, partiu para aabertura política, com liberdades democráticas e a legalização de mais desessenta partidos. O que emergiu das sombras do regime autoritário foiuma oposição democrática fragmentada e um movimento fundamentalistabem organizado. A primeira reação do governo ao crescimento dosintegristas religiosos foi deixar o barco correr, imaginando que apopulação ficaria assustada com as medidas medievais adotadas nasprefeituras dominadas desde 1990 pelos fundamentalistas, nas quais a

FIS tinha imposto a charia, o severo código de conduta muçulmano,proibindo música e obrigando as mulheres a cobrir os cabelos. Umestupendo erro de cálculo, pois, sem esperança de progresso econômico ecom escassa experiência democrática, os eleitores votaram nos turbantesdos religiosos.

Encostados nos muros Hoje, grande parte dos argelinos vive no pior dosmundos. O pouco de paternalismo social do passado, herança do períodosocialista, acabou-se. O aumento de atividade em certos setores daeconomia, promovido pelas medidas liberalizantes impostas quando o

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governo se viu obrigado a cumprir o ritual dos falidos e passar o chapéu noFMI, tem produzido poucos benefícios para a maioria da população. Foraalguns oásis de relativa prosperidade, onde é possível fazer compras noshopping de Riad-El-Feth, na Baía de Argel, ou dançar o raï, o popular ritmodo norte da África, no Triângulo, a discoteca da moda, sem temor de serdegolado na saída, a realidade argelina é a de um país apenas algunsdegraus acima dos mais pobres do planeta, agravada pelo clima de terror.Desde 1994, quando o governo começou a cortar despesas, investimentos esubsídios para fazer o ajuste econômico, o preço dos alimentos subiu semcontrapartida salarial. O PIB per capita (1.200 dólares) caiu para a metadedo que foi há cinco anos. O desemprego, na faixa dos 30%, está emascensão. Sem perspectivas, os jovens passam os dias sem fazer nada – seuapelido é hittistas,  literalmente "os que ficam encostados nos muros". Na

família do funcionário público Rachid (sobrenome omitido a pedido), quemora em Bab-el-Oued, um bairro popular no coração de Argel, a rotina diáriaé marcada pelo medo dos atentados e pelo desencanto com o futuro. Hakim,de 18 anos, um dos filhos, foi reprovado no colégio, mas não se preocupa."Com ou sem diploma, sei que não vou mesmo conseguir emprego", disse aVEJA. Yasmina e Hayat, as duas filhas adolescentes, nunca saem à noite, ede dia, por segurança, só vão para a rua com o hidjab, o lenço que cobre oscabelos das muçulmanas devotas – nos bairros mais pobres, as "patrulhasislâmicas" perseguem e espancam as mulheres flagradas de cabeçadescoberta. Houve caso de garotas mortas por mostrar os cabelos.

Severíssima em assuntos de moralidade, a guerrilha muçulmana adotou aprática do estupro sistemático, uma abominação aos olhos da religiãorevelada a Maomé, mas permitida por uma perversa interpretação dospreceitos islâmicos. Nas chacinas, os atacantes costumam separar da filados que vão morrer as jovens entre 17 e 28 anos de idade. Seqüestradaspara os esconderijos na condição de "esposas temporárias", são forçadas aprestar serviços domésticos e regularmente violentadas. Ao cabo de algunsmeses, geralmente quando ficam grávidas, têm a garganta cortada. Yamila,de 23 anos, que no mês passado conseguiu escapar de um campo, contoucomo era tratada, na condição de butim de guerra. "O que você merece é o

inferno", dizia-lhe o seu seqüestrador. "É o que eles chamam de Zawadj-el-Moutaa, casamento temporário por prazer, prática desconhecida pelo Islãmagrebino que os integristas importaram dos mulás iranianos", disse a VEJAZazi Sadou, líder da União Argelina das Mulheres Democratas. "A mulherque resiste é terrivelmente mutilada antes de ser degolada." No país dascabeças cortadas, cerca de 1.600 jovens argelinas tiveram esse destino nosúltimos dois anos.

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Cotidiano de medo e bombas

Areski Aït-Larbi, de Sidi-Iousef  

No vilarejo de Sidi-Iousef, as crianças não vão à escola e os adultos não trabalham. Aqui, oempenho de todos, 24 horas por dia, é conseguir sobreviver. Em setembro passado, umbando armado invadiu o lugar de casas pobres e ruas de terra e matou mais de setentapessoas, muitas mulheres e crianças, bebês inclusive, a maioria degolada. Uns dizem queforam terroristas do famigerado Grupo Islâmico Armado, GIA, que tem como tática deguerra chacinar civis. Outros, que foram soldados do Exército disfarçados, numa incursãodestinada a aumentar a conta de barbáries do terror islâmico. Dos habitantes de Sidi-Iousef,um quase subúrbio de Argel, a capital da Argélia, quem pôde foi morar em outro lugar. Osque ficaram vivem com medo, pois o pesadelo está longe de acabar - Sidi-Iousef fica bemao lado de um bosque ocupado há dois anos pelo bando do emir Athmane Khélifi, umchefete terrorista. Hamid, 32 anos, rosto cansado, funcionário público que, por segurança,

omite o sobrenome, conta: "Há um mês, seis homens armados, com uniforme de guardas-florestais, entraram na minha casa e degolaram minha mãe, meu irmão e meu sobrinho.Depois, seqüestraram minha irmã de 15 anos". Compreensivelmente, os sobreviventes nãoconfiam em ninguém e mantêm vigilância contínua. Cada noite agrupam as mulheres ecrianças em um lugar diferente e montam guarda em guaritas improvisadas sobre casas emconstrução, armados com umas poucas espingardas de caça cedidas pelo Exército.

A vida em Sidi-Iousef está no extremo da precariedade e do terror, mas, de um modo geral,vive-se hoje no medo e no sobressalto constante em boa parte da Argélia. Em outra aldeia,Aït-Méraou, situada na região de Kabylie, os terroristas não se aventuram há meses, depoisde rechaçados a bala pela população reunida em comitês de autodefesa. Mesmo assim,Tahar, morador de uma casa isolada, esteve à beira da morte em julho do ano passado.

Capturado, mãos atadas, jogado no chão, ouviu sua condenação à morte e a convocação deFarid, o degolador oficial do grupo, para cumprir a sentença. "Fiz minhas preces em silêncioe implorei a ajuda de Deus. Fui atendido: Farid tinha sido morto no ataque". Os atacantesacabaram fugindo, deixando Tahar para trás. "Não podemos nunca baixar a guarda", alertaDjaffar, sociólogo que atualmente, de arma na mão, protege a casa da família.

Perfume e pólvora - Em Argel, os períodos agitados e tensos, com medo de atentados,alternam-se com fases tranqüilas. Janeiro do ano passado começou com bombas, tiroteios emortos, mas depois sobreveio a calma. No verão, as praias encheram e a populaçãoredescobriu as delícias da vida noturna, lotando bares e casas de shows, para ouvir o raï .Em setembro, contudo, quando o GIA invadiu um balneário encostado em Argel e chacinoudezenas de pessoas em férias, a população da capital voltou a se assustar. Entre as vítimas,quase todas degoladas, foi achado o corpo carbonizado de um bebê de 4 meses no forno de

um fogão.

No início da década, quando os fundamentalistas muçulmanos estavam por cima, Bab-el-Oued, um dos bairros mais populosos de Argel, era sua "capital espiritual". Vestidos decombatentes afegãos (o integrismo floresceu com os voluntários na luta contra os russosque ocupavam o Afeganistão), os militantes marchavam pelas ruelas proibindo músicaocidental e obrigando as mulheres a cobrir a cabeça. Mais tarde, o bairro foi tomado pelosninjas das forças especiais, encarregadas de caçar os extremistas islâmicos. Hoje reina umacerta normalidade no bairro. Mas ninguém se deixa enganar. Dois meses atrás, o perfumede especiarias e de coentro que caracteriza o mercado de Nelson, em Bab-el-Oued, foisubstituído pelo cheiro de pólvora - a explosão de uma bomba caseira deixou dezenas deferidos. Viver é sempre perigoso na Argélia.

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Torcida unida22 de abril de 1998

Futebol e mulheres reforçam o movimentopela abertura política no país dos aiatolás

Enquanto estudantes reformistas e militantes conservadores se enfrentavamnas ruas de Teerã por causa da prisão do prefeito da cidade, Gholam-HosseinKarbaschi, o jornal Iran,  editado pela agência oficial Irna, publicou umanotícia aparentemente irrelevante: as iranianas poderão ser autorizadas a jogar futebol. A novidade tem mais importância do que parece. Mulheres efutebol são dois elementos que estão na origem do movimento pela aberturado fechado regime dos aiatolás. A classificação da seleção do Irã para a Copado Mundo, em dezembro, provocou irreprimível onda de euforia impossívelno país. As comemorações do empate contra a Austrália, que garantiu avaga na França, levaram às ruas milhares de pessoas, numa manifestaçãode massa inédita desde os tempos da revolução islâmica que derrubou o xáReza Pahlevi, em 1979. Um considerável contingente dos manifestantes eraconstituído por mulheres, que pela primeira vez em vinte anos ignoraram aproibição de participar de atos públicos lado a lado com homens. "Ascomemorações pela classificação do Irã têm dimensão muito maior do que aalegria por uma vitória esportiva", diz o veterano comentarista políticoamericano James Reston, que esteve recentemente visitando o país. "A

reação das mulheres provocou um impacto notável, que deverá levar aoutras conseqüências sociais."

As manifestações foram tão amplas que não permitiram a intervenção dosguardas da revolução, sempre prontos a reprimir qualquer transgressão àsnormas do Islã. Uma das características mais marcantes dosfundamentalistas muçulmanos, em qualquer país, é sempre a obsessão porcontrolar o comportamento da mulher, em todas as esferas. É por isso quecada "transgressão", por menor que seja — um lenço colorido no cabelo emlugar do preto regulamentar, um toque de batom nos lábios —, ganhadimensão política. Assim, para as iranianas, tradicionalmente maisindependentes do que as mulheres dos países árabes, foi uma considerávelvitória obter autorização para freqüentar estádios (por enquanto apenas debasquete, em recinto fechado e em arquibancadas isoladas dos homens).Além da promessa de jogar futebol, já se começa a admitir mulheres noscursos para árbitro e técnico da modalidade. A federação iraniana estápromovendo aulas especiais para elas, separadas dos homens.

Até a revolução dos aiatolás, o Irã era um dos países líderes do futebol noOriente Médio. Campeã por três vezes da Copa da Ásia, a seleçãopraticamente fez sua despedida dos campos internacionais na Copa da

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Argentina, em 1978, sua única participação em um Mundial de futebol atéagora. Um ano depois, com o regime dos aiatolás no poder, o futebol foiproibido. A exemplo de outros valores culturais introduzidos peloscolonizadores ingleses no início do século, o futebol passou a ser consideradoatividade fútil e sinal de decadência ocidental. Em matéria de esporte, osfundamentalistas permitiam apenas a luta clássica.

Só dez anos mais tarde, coincidindo com a morte do aiatolá Khomeini, ofutebol voltou a ser tolerado. A transmissão de jogos pela televisão, porém,continua proibida e até bem pouco tempo só era permitida a publicação em jornais e revistas de fotos dos jogadores de meio corpo, sem mostrar aspernas. O futebol é uma das raras formas de lazer permitidas aos jovens,que não podem dançar nem ouvir música profana, pelo menos em público. O

interesse e a paixão pelo futebol cresceram no mesmo ritmo da insatisfaçãopopular com o regime e o movimento aberturista. A eleição do candidatoreformista Mohammed Khatami, com o apoio de intelectuais, dos estudantese das mulheres, ocorreu na época em que os jogos da seleção pelaseliminatórias da Copa eram acompanhados com enorme entusiasmo.Jogadores como o atacante Bagheri viraram ídolos da noite para o dia. O queacontecia em campo repercutia na política. Uma derrota para o Catar levouum grupo de deputados a exigir a demissão do ministro da Educação e doEsporte. Em três meses, a seleção teve quatro técnicos, entre eles obrasileiro Badu Vieira, substituído pelo croata Tomislav Ivic. A idéia de que oesporte praticado por Edmundo possa ter finalidade política nobre estáficando cada vez mais intrigante. 

De volta às ruas

Se fosse uma partida de futebol, poderia ser definida como uma vitória suada. Pelaprimeira vez, os rigorosos aiatolás que controlam o poder no Irã cederam espaço naqueda-de-braço com a vertente mais moderada. Na quarta-feira passada, o aiatolá AliKhamenei mandou libertar o prefeito de Teerã, Gholam-Hossein Karbaschi, símbolo deuma versão menos severa da revolução islâmica. Na noite anterior, centenas deestudantes tinham saído às ruas da capital para protestar contra a prisão e Khamenei,

líder espiritual e autoridade máxima do regime, temendo a eclosão de distúrbios maisgraves, mandou soltar o prefeito.

A tensão foi aliviada por pouco tempo: Karbaschi deve ir a julgamento público, comdireito a transmissão pela rádio estatal, no início de maio. A acusação formal écorrupção, mas por trás disso está sendo travada uma disputa de poder entre o cleroultraconservador e o presidente Mohammed Khatami, um moderado que venceu aseleições no ano passado com a promessa implícita de abrir o regime. A maioria dosiranianos quer mudanças. Mas até arrebatar o controle da bola dos conservadores,muita coisa ainda vai rolar nesse campo 

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Prazer extirpado10 de junho de 1998

Em nome da honra e da tradição, milhõesde mulheres têm os genitais mutilados

Às vésperas do século XXI, o ritual se repete diariamente: a menina éimobilizada por quatro mulheres, que mantêm suas pernas bem abertas. Amais velha, munida de uma lâmina de barbear, executa a cirurgia, semanestesia. Com gestos rápidos, corta fora o clitóris, os pequenos e grandeslábios da vagina, e no fim costura tudo, deixando um pequeno orifício para apassagem de urina e sangue da menstruação. A menina faz o possível paranão urrar de dor. Agüentar tudo em silêncio é prova de coragem, de que seorgulhará depois. Assunto encerrado, a garota é enfaixada até os joelhos,com as pernas fechadas, e nessa posição ficará, de quarentena, sangrando epenando até cicatrizar — ou morrer. Não se trata de um caso isolado debarbarismo primitivo. A mutilação genital é praticada em 28 países da Áfricae dois do Oriente Médio (veja mapa abaixo), atingindo milhões de mulherestodo ano. O objetivo é exercer a mais total forma de controle do desejosexual feminino, de forma a garantir esposas dóceis e fiéis.

Alvo de campanhas esporádicas por parte de organizações de mulheres, amutilação genital voltou a ser lembrada com a publicação, nos EstadosUnidos, do livro Do They Hear You When You Cry   ("Eles Escutam QuandoVocê Chora"), escrito a quatro mãos por Fauziya Kassindja, 20 anos, quefugiu há três do Togo para não ser mutilada, e sua advogada americana,Layli Miller Bashir. Fauziya entrou nos Estados Unidos com passaporte falso e

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amargou quase um ano e meio de cadeia, até se tornar a primeira mulher aobter asilo político no país sob a alegação de que mutilação genital é umaforma de perseguição. Seu caso despertou atenção, levando o Congressoamericano a aprovar um antigo projeto de lei banindo a prática nos EstadosUnidos, onde, devido ao crescente número de imigrantes do norte da África,em 1996 o Centro para Controle e Prevenção de Doenças calculava que maisde 150.000 meninas corriam o risco de ser mutiladas. "Fico feliz se contribuirpara conscientizar gente no mundo inteiro para esse grande drama africano",disse Fauziya a VEJA.

Fauziya Kassindja: fuga e asilo político nos Estados Unidos

Segundo a ONU, 110 milhões de mulheres em todo o mundo já foramsubmetidas ao ritual da mutilação. Pelo mesmo cálculo, cerca de 2 milhõesde meninas são mutiladas a cada ano. Em lugares como Somália e Djibuti,

estima-se que praticamente todas as mulheres são extirpadas. Alguns paísescoíbem a prática, medida inócua que não arranha a convicção arraigadaentre homens e mulheres de que remover os genitais femininos externos équestão de respeito e honra. No Egito, onde se calcula que pelo menos 55%das mulheres muçulmanas e cristãs coptas ainda sejam submetidas àmutilação, o governo proibiu a operação em hospitais públicos e particularesem 1996. Houve uma chuva de protestos de líderes religiosos maisortodoxos, sobretudo os fundamentalistas muçulmanos, empenhados em"proteger as mulheres das conseqüências do excessivo desejo sexual". Asegípcias, em geral, são submetidas à excisão, ou circuncisão feminina, como

é erroneamente chamada a remoção do clitóris e dos pequenos lábios —versão um pouco menos radical da infibulação, em que também os grandeslábios são cortados e costurados.

Presentes e festas — A prática é antiqüíssima, anterior ao cristianismo eao islamismo. Acredita-se que tenha começado no Egito ou no chamadoChifre da África (extremo leste do continente) há mais de 2.000 anos. Aidade em que é feita varia de acordo com a tribo e a região de cada país —vai desde uns poucos meses de vida até as vésperas do casamento, entre 15e 17 anos. Embora a prática também se verifique em cidades grandes, como

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o Cairo, é muito mais disseminada no interior. Lá, com freqüência, devido aopeso da tradição, as jovens criadas apenas no ambiente tribal acham aobrigação natural e até desejam ser cortadas, para receber todos ospresentes e festas a que têm direito. Condenadas a uma vida sem nenhumaesperança de prazer sexual, só descobrem do que foram vítimas quando têmacesso a informações sobre um mundo onde a mutilação não existe. Nasúltimas semanas, com a febre mundial em torno do Viagra, egípcias queouviram falar do efeito do remédio contra a impotência também paramulheres têm procurado a pílula no mercado negro. Buscam o orgasmo quelhes foi negado para sempre. 

"Sangrei durante meses"Aos 5 anos, vagando com sua tribo nômade pela Somália, a modeloWaris Dirie foi infibulada. "A mulher que me cortou era uma velhacigana. Ela usou uma navalha suja de sangue. Abri minhas pernas,fechei os olhos e bloqueei minha mente. Fiz isso porque minha mãepediu. A mulher não cortou só o clitóris, cortou tudo e depois mecosturou com agulha, bem apertado. Eu só sentia dor. Fiquei deitadano chão, agonizando. Sangrei durante dois ou três meses. O tempotodo, sentia vontade de morrer." Waris sobreviveu e, aos 13 anos,fugiu. Acabou em Londres, como empregada doméstica. Cozinhou efez faxina até ser descoberta na rua por um fotógrafo e estrear, aos18 anos, como modelo. Dez anos depois, encheu-se de coragem econtou sua história — a primeira mulher a fazê-lo na primeirapessoa, em um depoimento arrepiante.

Waris levou muito tempo para começar a namorar. "Os homensperguntam se não gosto de sexo", diz. "Não conto a eles o que meaconteceu." Ao contrário da maioria das mulheres mutiladas, que acada parto têm a costura estraçalhada e depois são costuradas

novamente, Waris teve os genitais reabertos em um hospital, pormédicos habilitados, mas nenhuma cirurgia pôde reconstituir seuclitóris. Mesmo assim, acha que escapou de destino pior. "Tive muitasorte. Não quero que sintam pena de mim", diz.

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Guerra santa às mulheres05 de agosto de 1998

Com o fim das últimas escolas para meninas, o regimefanático do Afeganistão volta aos costumes medievais

Às vésperas do século XXI e com o mundo todo mergulhado no abraçoda globalização, o Afeganistão é um lugar com a desesperadorapeculiaridade de ter dado um salto para trás. Desde que tomou acapital, Cabul, menos de dois anos atrás, a milícia Taliban — uma forçaguerrilheira nascida nos seminários islâmicos e que controla dois terçosdo país — transformou em lei uma versão severa, tacanha e radical da

sharia, o conjunto de leis e regras de comportamento prescritos paraos muçulmanos. Impôs um rígido código de vestuário, proibiu raspar abarba, música, cinema, televisão, antenas parabólicas, jogos de cartas,criar pássaros e soltar pipa. Nada, contudo, é mais sufocante que asituação das mulheres.

A partir da adolescência, elas não podem nem falar com homens,exceto parentes próximos. São impedidas de trabalhar e estudar. Sósaem à rua por motivo justificado, assim mesmo acompanhadas de umparente e cobertas da cabeça aos pés pelo burqa, o manto que envolve

o corpo todo — um pequeno círculo, à altura dos olhos e do nariz,permite a visão através de uma tela, protegida por tecido mais fino.Patrulhas do Ministério da Propagação da Virtude e de Combate aoVício percorrem as ruas, de chicote em punho, atrás de umpecaminoso pé sem meia dentro da sandália. Os talibans lutam emduas frentes — contra milícias rivais no norte e contra o pecado norestante do país. A islamização do país, contudo, parece mais umaguerra às mulheres.

Um país atrasadíssimo numa região montanhosa do Centro-Oeste da

Ásia, o Afeganistão nunca foi uma sociedade igualitária para os sexos.Apenas 1% das meninas chegava à universidade em 1979, quando aUnião Soviética invadiu o país para ajudar um presidente comunista eo transformou num ponto de tensão da Guerra Fria. O Taliban vê otrabalho feminino como uma arma na conspiração ocidental contra oIslã e, duas semanas atrás, fechou as últimas dez escolas parameninas (eram, na realidade, classes improvisadas em casasparticulares). Só as médicas continuam em atividade, pois um homemnão poderia atender pacientes do sexo oposto. Os princípios da sharia

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são aplicados em outros países, como a Arábia Saudita e o Irã, mas origor primitivo dos afegãos escandaliza até os aiatolás de Teerã. Depois

de dezessete anos de guerra civil, a milícia fanática trouxe certa ordeme paz para Cabul, mas o preço tem sido terrível. Três semanas atrás,com a expulsão das agências humanitárias internacionais, fechou-se aúltima porta ao exterior. Vestidas em seus burqas, só resta às afegãsolhar o mundo por uma fresta de luz.

O direito de ser devota

No mundo muçulmano, onde a regra é impor àsmulheres severos códigos de conduta, a Turquia vivena contramão. Lá, o governo está às voltas commanifestações semanais, que chegam a reunir 3000universitárias diante da Universidade de Istambul,pelo direito de cobrir os cabelos segundo o figurinodas muçulmanas devotas. A liberdade devestimentas está longe de ser um assunto banal nopaís. Quando fundou a atual Turquia nos escombrosdo Império Otomano, em 1923, Mustafa Kemal, oAtaturk, separou radicalmente a mesquita doEstado. Entre as medidas que impôs para tentarcriar um país moderno e laico estão as roupasocidentais e o alfabeto latino. O véu, compulsório noregime teocrático dos sultões, foi banido do serviçopúblico e das escolas. O Exército e o governoquerem manter essas inovações a todo custo, mas amaioria da população prefere viver segundocostumes tradicionais. O uso do véu ressurgiu com

toda força na última década, acompanhando aefervescência islâmica no Oriente Médio. Em 1995,um partido fundamentalista chegou a ganhar aseleições e governou por mais de um ano, até sercassado pela Suprema Corte. O dilema tem certaironia: liberdade para as turcas inclui o direito decobrir a cabeça.

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Abaixo o hambúrguer04 de novembro de 1998

Os curiosos caminhos dos regimes islâmicosque tentam combater a cultura ocidental

Quem quiser conhecer em detalhes as providências tomadas pelos fundamentalistasislâmicos para impor costumes medievais ao Afeganistão deve consultarwww.taliban.com. No site eletrônico, o movimento fundamentalista resenhava, nasemana passada, como a polícia religiosa combate a influência estrangeira destruindotelevisores, videocassetes e antenas parabólicas. Uma recente ofensiva contra"elementos anti-sociais" resultou na apreensão de 240 cassetes com música ocidental.O fato de o movimento Taliban, notório por proibir a educação das meninas e aparar àforça cabeleiras masculinas, ter recorrido ao símbolo da informação sem fronteiras para

apregoar a idade das trevas ilustra bem um paradoxo moderno: a quase impossibilidadede manter um povo isolado da cultura globalizada.

Nenhum país mais bem talhado que o Afeganistão, paupérrimo, arruinado por décadasde guerra civil e perdido num canto obscuro da Ásia, para bater a porta na cara domundo moderno. Nem para eles é assim tão fácil. Chega a ser surreal a força da culturade massa ocidental (bem, reconheçamos, americana) em países onde as mulheres nãopodem mostrar o rosto. Arquiinimigo dos Estados Unidos, o Irã dos aiatolás demonstrao mesmíssimo apetite do resto do mundo por Titanic, um megassucesso no país, com aparticularidade de só poder ser visto em fitas contrabandeadas.

Apesar de proibidas, as antenas parabólicas são visíveis por toda Teerã, e as

autoridades não dão conta da inundação de fitas, videocassetes e CDs contrabandeadosdo exterior. A resistência à cultura ocidental foi um dos pilares da revolução islâmica de1979. No ano passado, o presidente Mohammed Khatami elegeu-se prometendo liberar,moderadamente, o contato com o resto do mundo. O que está ocorrendo no Irã mostraa futilidade de tentar conter a globalização cultural. A proliferação dos meios modernosde comunicação e o colapso dos regimes totalitários criaram um fluxo de informaçõessem paralelo na História. A exportação de cultura ocidental — livros, filmes, música,programas de computador — atingiu dimensão igualmente incomparável. 

A preocupação com a preservação da identidade cultural não é, evidentemente, umaexcentricidade islâmica. O presidente francês, Jacques Chirac, preocupa-se com o danoque o inglês usado na Internet pode ter sobre o amado idioma francês. Na Índia, paranão ofender a maioria hinduísta, que venera a vaca, o McDonald's vende somentehambúrguer de cordeiro. Complicado é estabelecer o limite entre a invasão cultural, quepode ser deletéria, e o livre intercâmbio de informações e mercadorias, essa belaconquista do mundo moderno. Só quem sonha com um mundo primitivo é capaz de pôrtudo no mesmo saco. Exemplo disso se viu na semana passada, com milhares demuçulmanos ortodoxos marchando por Islamabad para exortar os paquistaneses aboicotar os símbolos nefastos da influência ocidental. São eles, imagine-se,hambúrgueres e refrigerantes.

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Cada vez melhor17 de março de 1999 

Khatami vê o papa e se firmacomo o Gorbachev de turbante 

Quem hoje anda pelas ruas de Teerã vê cenas inimagináveis até poucos anos atrás:casais de namorados de mãos dadas, antenas parabólicas e gente de gravata. Setanta coisa banida pela revolução islâmica em 1979 voltou ao cotidiano da capitaliraniana, é porque o presidente Mohammed Khatami vem bancando uma queda-de-braço, lenta e gradual, contra os aiatolás de linha dura. Há dois anos, Khatami, umclérigo apenas moderado, catalisou a insatisfação dos iranianos com o fanatismo doregime e se elegeu presidente, com 70% dos votos. A preferência popular por umasociedade mais arejada foi confirmada três semanas atrás, com a vitóriaesmagadora dos candidatos moderados na disputa pelas Câmaras Municipais. Nasemana passada, o presidente deu um novo passo em direção à luz, tornando-se amais alta autoridade iraniana a visitar a Europa desde a queda do xá Reza Pahlevi.

A viagem à Itália foi muito mais que um simples gesto diplomático. Significou areabertura do diálogo com o Ocidente, encerrado, havia vinte anos, com umadeclaração de guerra santa. Uma das bases ideológicas do fundamentalismomuçulmano era varrer do Oriente Médio qualquer resquício de influência dos"cruzados" e "adoradores da cruz", termos usados para os ocidentais cristãos. Aimportância do encontro de Khatami com o papa João Paulo II, na quinta-feira, e desua proposta de um "diálogo entre civilizações" deve ser entendida contra esse

pano de fundo. Representa uma guinada fenomenal, comparável à dada por MikhailGorbachev quando começou a sacudir as bases dogmáticas e esclerosadas docomunismo. Mais do que Gorbachev, o presidente iraniano precisa se mover comcautela redobrada. Ele não tem cacife institucional para escancarar o regime.Apesar do peso político conquistado com o apoio da opinião pública, as ForçasArmadas, a polícia e as leis estão nas mãos do aiatolá conservador Ali Khamenei,líder espiritual da república islâmica.

A política externa está igualmente nas mãos do clero inimigo das reformas. É porisso que o passo em direção ao diálogo internacional tem significado notável. Apopularidade de Khatami deve-se à promessa de instaurar o estado de direito no

Irã, uma nação onde os dogmas do clero xiita dão as cartas. Respira-se melhor nopaís. A imprensa já pode discutir mais livremente certos assuntos, e mesmo asantenas parabólicas — porta de entrada da influência estrangeira — são toleradas.Nada garante, por enquanto, o sucesso. A linha dura islâmica anda cada dia maisagressiva. Milícias espancam até líderes religiosos se estes discordam de seusermão. O maior esforço de Khatami tem sido convencer o alto clero de que asobrevivência do regime depende de ampliar a abertura, tanto interna quantoexterna. Foi com esse argumento que conseguiu que o serviço secreto, controladopela linha dura, responsabilizasse os próprios arapongas por uma série recente deassassinatos de intelectuais liberais. Tudo ainda pode dar errado, mas o Irã nuncaesteve tão perto de se tornar um país decente. 

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No jardim de Alá21 de setembro de 1999

V.S. Naipaul lança um olhar penetrantesobre o fundamentalismo muçulmano

No final dos anos 70, "renascimento islâmico" erauma expressão comum no noticiário internacional.Países orientais cujas instituições pareciam abertas àinfluência do Ocidente voltavam a seguir preceitosmuçulmanos em diferentes esferas. Restauravam-se

leis ditadas pela religião, tais como o uso de véupara as mulheres ou a punição do furto com o cortedas mãos. Logo ficou claro que "renascimento" eraum jeito brando de falar. O que estava a caminhoera um novo fundamentalismo, para horror demuitos observadores ocidentais. Um desses

observadores é o escritor anglo-caribenho V.S. Naipaul. Por duasvezes, nas últimas décadas, ele percorreu o Irã, o Paquistão, a Malásiae a Indonésia. Das viagens resultaram dois livros, lançados agora noBrasil: En t r e o s Fiéis  (tradução de Cid Knipel Moreira; Companhia das

Letras; 544 páginas; 37 reais) e A lém d a Fé (tradução de RubensFigueiredo; Companhia das Letras; 549 páginas; 37 reais). Trabalhosde ourives como literatura, as obras são ásperas em outros aspectos.O retrato que Naipaul faz dos países islâmicos é cortante o suficientepara deixar em desalinho as barbas do Profeta.

Ao partir em sua primeira jornada, em 1979, Naipaul não sabia quasenada sobre o islamismo. Desejava investigá-lo, observar a fé em ação.Embora os países visitados guardassem profundas diferenças, Naipaulidentificou neles traços comuns –  e quase que exclusivamentenegativos. Entre os Fiéis mostra sociedades movidas pela raiva e peloressentimento, mergulhadas em profunda confusão, obcecadas com oideal da pureza religiosa. Nelas, a desconfiança com relação aoOcidente era imensa. Ao mesmo tempo, porém, o islã não deixava deparasitar as conquistas materiais e tecnológicas ocidentais.

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"Islamofóbico"  –  No relato de sua segunda viagem, realizada em1995, Naipaul retoma alguns desses temas. Mas, agora, sua

curiosidade tem um fio condutor. Ele parte do pressuposto de que Irã,Paquistão, Malásia e Indonésia não eram países islâmicos na origem.Sofreram a invasão de uma fé cuja lógica é imperialista. Nos territóriosconquistados pelo islã, crenças ancestrais devem ser erradicadas e éfeita tábula rasa da História local. "O convertido tem de recusar tudo oque é seu", escreve Naipaul. "A perturbação para as sociedades éimensa e, mesmo após 1.000 anos, pode permanecer sem solução."Na única passagem pessoal do livro, Naipaul lembra de sua infância emTrinidad, colônia do império britânico, onde nasceu. Seus pais eramimigrantes indianos. Vivendo naquela pequena ilha caribenha, privado

do contato com as raízes de sua etnia, Naipaul teve de encontrar seucaminho partindo de um "vazio espiritual". Um vazio, diz ele,semelhante àquele imposto aos convertidos do islamismo.

Quem se lembra do que aconteceu com o escritorSalman Rushdie sabe que há algo de temerário emmexer com o brio dos religiosos fundamentalistas. Em1989, Rushdie, também britânico de origem indiana,publicou o romance Os Versos Satânicos. Nele, cometia

imprudências como batizar prostitutas com os nomesdas esposas de Maomé. O aiatolá Khomeini, do Irã,considerou o livro blasfemo e decretou uma sentençade morte contra seu autor, que até hoje vive sobproteção do serviço secreto inglês. Os livros de Naipaultambém provocaram respostas iradas. Um críticodenunciou  Além da Fé  como um amontoado depreconceitos, um panfleto "islamofóbico" para oconsumo de liberais brancos. Resenhistas menosagressivos observaram que o retrato do islã como um

imperialismo avassalador é falso, pois é feito sem levar em contasutilezas históricas. Mas Naipaul não chegou a sofrer ameaças. Omotivo provavelmente é um só: seus livros não criticam a religião, masapenas apontam seus efeitos sociais nefastos.

Ainda que se tenha pouco interesse pelos países islâmicos, vale a penaler Naipaul. Numa época em que os escritores são desleixados com aspalavras, ele é de um rigor obstinado. Na preparação de Entre os Fiéis e Além da Fé, seu método foi o mesmo (embora só atinja a perfeição

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no segundo livro): a cada viagem ele entrevistava pessoas e recolhiasuas histórias. Ao escrever, deixava que cada personagem falasse com

a própria voz. Seu papel era o de "administrador da narrativa", o debuscar o termo preciso, que não falsificasse a realidade observada ou odepoimento colhido. Além disso, Naipaul lutou para suspender ospróprios julgamentos. "Este é um livro sobre gente", escreve ele noprefácio de  Além da Fé. "Não é um livro de opinião." É uma tarefadifícil. Muitos duvidam de que seja possível. Em seu esforço, porém,Naipaul certamente obteve uma conquista literária. Seus dois livrosnão se encaixam em nenhuma descrição usual. Não são jornalismopolítico nem narrativas tradicionais de viagem. Formam um gênero àparte, ainda sem nome – reconhecível apenas pela marca inconfundível

do autor.

Imperialismo intransigente

"A crueldade do fundamentalismo islâmico consiste empermitir a apenas um povo – os árabes, o povo originaldo Profeta –  ter um passado, lugares sagrados, locaisde peregrinação e cultos à terra. Esses lugaressagrados árabes têm de ser necessariamente oslugares sagrados de todos os povos convertidos. Ospovos convertidos precisam se despojar de seupassado; nada se exige dos povos convertidos, senão afé mais pura (se é que algo assim possa seralcançado), o islã, a submissão. É o imperialismo maisintransigente que existe."

Extraído de Além da Fé

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Cerco ao pária24 de novembro de 1999

ONU impõe sanções contraos fanáticos do Taliban

Um lugar isolado e evitado por todo mundo desde 1996, quandoos guerrilheiros fundamentalistas do Taliban derrubaram ogoverno, o Afeganistão recebeu o carimbo final em sua condiçãode país proscrito na segunda-feira passada. A Organização dasNações Unidas pôs em prática sanções econômicas decretadas

como punição pelo acobertamento do terrorista Osama bin Laden.Trata-se de um milionário saudita com dinheiro suficiente parafinanciar sua guerra santa particular. Laden não só é peça-chaveno combate que permitiu ao Taliban controlar 90% do territórioafegão como também estendeu seus tentáculos muito além domundo muçulmano. Passou ao topo da lista dos homens maisprocurados do mundo, acusado de ser o mentor dos atentadosque mataram 224 pessoas em duas embaixadas americanas naÁfrica, no ano passado. Dificilmente as sanções trarão efeito

imediato num país que retomou práticas medievais, como proibiro acesso das mulheres à educação e banir a televisão e oscomputadores. Quem ainda tinha alguma coisa a perderengrossou o fluxo de refugiados para o Paquistão.

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Punição: ácido no rosto08 de dezembro de 1999

Muçulmanas que ousam se rebelarcontra as tradições têm as feições desfiguradas

Com apenas 28 anos de vida independente, Bangladesh colecionauma impressionante série de tragédias. Sua própria criação foiprecedida de uma guerra entre Índia e Paquistão. Nasceumiserável, e as mazelas se multiplicam periodicamente pelo efeitode enchentes e ciclones. Como de hábito, a pobreza propicia

terreno fértil para o fanatismo religioso, neste caso o dos gruposmuçulmanos que fazem uma leitura primitiva do Corão. A misturaviciosa se estampa no rosto das mulheres atacadas com jatos deácido, um crime cada vez mais comum em Bangladesh. Asvítimas são quase sempre garotas pobres que recusaramcasamentos arranjados, investidas sexuais ou a clausura que lhesquerem impor os pais ou maridos.

Pelo equivalente a 60 centavos de dólar, qualquer homem

contrariado em seu machismo ou em sua visão tacanha de mundopode comprar ácido sulfúrico. A substância corrói a pele e osmúsculos das vítimas. As queimaduras causam a morte dealgumas. Muitas ficam cegas ou surdas. E quase todas acabamrejeitadas pelas próprias famílias – desfiguradas, dificilmente secasarão. Calcula-se que entre um terço e a metade dos 127milhões de habitantes de Bangladesh faz apenas uma refeição pordia. Dote e herança da família do noivo habitam os sonhos damaioria dos pais de meninas, sobretudo nas áreas rurais. As

mulheres são, nesses meios, vistas como mercadoria, com poucasperspectivas de trabalho ou estudo. O índice de analfabetismo,que entre os homens já é grande, 50%, chega a 74% entre asmulheres.

Plástica no exterior – Não bastasse o trauma psicológico e ador física, o destino mais provável das vítimas do ácido é amendicância e o ocultamento do rosto pelo resto da vida. Avergonha e o medo de represália inibem muitas dessas mulheres

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de prestar queixa à polícia ou buscar ajuda. Com isso, a barbárietende a crescer. No ano passado, houve mais de 200 ataques

registrados, setenta a mais do que em 1997. A impunidadecontribui para que a prática se perpetue. Mesmo com a adoção,há quatro anos, de uma lei mais rigorosa, apenas dez criminososforam presos. Ignorado durante muito tempo, o problema sóagora começa a ser conhecido no exterior. Em maio, aOrganização das Nações Unidas, ONU, criou um programa emBangladesh com o fim específico de socorrer as mulheresdesfiguradas por ácido. Hospitais americanos e europeus tambémlhes vêm dando assistência gratuita. Em julho, um grupo de seis

moças retornou ao país depois de nove meses de tratamentointensivo na Espanha com cirurgias plásticas que, se não lhespuderam devolver as feições, pelo menos mitigaram seusofrimento.

Ao contrário de países como o Afeganistão ou o Irã, Bangladeshnão adota o islamismo como ideário político. Se o sexo feminino éoficialmente marginalizado naqueles países, em Bangladeshmulheres ocupam o cargo de primeiro-ministro e o posto de líder

da oposição. Os sucessivos governos, no entanto, não têmconseguido melhorar a qualidade de vida da imensa maioria dapopulação. Somem-se a isso as recorrentes suspeitas decorrupção e fica explicada a desconfiança crescente com que ospolíticos são vistos. Paralelamente, o fundamentalismomuçulmano retira sua força das raízes da sociedade,principalmente as mais atrasadas. Graças a programas dedesenvolvimento criados pelo governo e apoiados pororganizações humanitárias estrangeiras, nos últimos anos as

mulheres vêm conquistando mais empregos e uma pequenaparcela já não tem no casamento a única chance de sobrevivênciaeconômica. Esse avanço provoca a fúria dos homens que teimamem vê-las como servas. Sinal de que as mudanças precisamcomeçar do berço. 

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O rei democrata05 de janeiro de 2000

Herdeiro do trono põe fim à repressãoe manda libertar os presos políticos

Enquanto reinou, Hassan II, do Marrocos, reprimiu com mão de ferrotodas as tentativas de insurreição contra seu governo e manteve noexílio ou atrás das grades seus mais destacados colaboradores. Elemorreu em julho do ano passado, vítima de um ataque do coração, edesde então o país testemunhou uma reviravolta impressionante. Seufilho e herdeiro do trono, Mohamed VI, demonstrou até agora

disposição para surpreender mesmo o mais otimista dos democratasmarroquinos. Com seu primeiro decreto, assinado uma semana depoisda posse, o rei libertou quase 8.000 prisioneiros e comutou a pena demais de 38.000. Foi a estréia de um estilo que pode ter influênciadireta sobre o futuro político de todo o norte da África, uma regiãogeograficamente vizinha e politicamente distante da Europademocrática.

Mohamed deu os primeiros sinais de mudança em relação ao governode seu pai logo no discurso de posse. Nele, prometeu honrar as leis

internacionais de direitos humanos e embicar o país na rota dademocracia. A disposição foi elogiada pelo primeiro-ministro francês,Lionel Jospin. A França, que dominou o norte da África até os anos 50,é o país mais interessado numa mudança profunda da orientaçãopolítica do Marrocos. Durante o reinado de Hassan II, procuraramabrigo em território francês milhares de marroquinos em busca demelhores condições de vida ou simplesmente fugindo das perseguiçõespolíticas. Atualmente, pelo menos uma das causas dos problemasparece haver desaparecido.

Discreto e de poucas palavras, Mohamed VI não fez alarde algum aotomar a mais importante de suas decisões até agora. Em novembro,sem discutir o assunto nem mesmo com o primeiro-ministro, o reidemitiu o até então todo-poderoso ministro do Interior, Driss Basri.Braço direito de Hassan II, Basri era o chefe da repressão política. Eraele quem ordenava prisões sem justificativa e mandava a políciareprimir manifestações. O ex-ministro foi mantido preso em sua casa.Sua família e três dezenas de aliados foram proibidos de deixar o país.

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As condições de vida no Marrocos são precárias. A pobreza é visível emcada esquina de cidades como Marrakesh e Fès, onde turistas se

encantam com os labirintos das medinas (bairros antigos) e sãoachacados por desocupados que se fazem passar por guias. Quasemetade da população não tem acesso a água tratada e 54% sãoanalfabetos. Esses são alguns dos problemas que o novo rei terá deenfrentar caso queira consolidar a simpatia que mereceu nos primeirosmeses de governo. As reformas prometidas terão momentosespinhosos. Mohamed, por exemplo, deverá abrir mão do SaaraOcidental, ocupado indevidamente pelo Marrocos. Por enquanto, osmarroquinos acreditam que não precisam mais temer seu rei. 

Ultimato ao islã na Argélia

A Argélia é o maior exemplo do desejo de mudança quedomina o norte da África. Poucos países no mundo têmmotivos tão fortes para tentar esquecer o passado recente.Para os argelinos, a década de 90 foi marcada por umconflito que matou 100.000 pessoas. Há dois anos, o mundofoi tomado pelas imagens de mulheres e crianças degoladas

por extremistas islâmicos, que usavam o terror contra civispara tentar desestabilizar o governo.

No próximo dia 13, vence o ultimato dado pelo presidenteAbdelaziz Bouteflika para que os fundamentalistas aceitemseu projeto de anistia, já aprovado em plebiscito. O recenteassassinato de Abdelkader Hachani, principal interlocutorpolítico dos extremistas, lançou dúvidas a respeito doincipiente processo de paz. Em novembro, novos massacresde civis deixaram 150 mortos. O governo prometedesfechar uma perseguição implacável aos grupos armadosque não se entregarem, o que lança ainda maisintranqüilidade sobre o país. 

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À sombra do islã02 de fevereiro de 2000

A literatura nos países muçulmanos continuaviva, apesar da opressão político-religiosa

No começo do século XVIII, um livro incendiou a imaginação dosocidentais. Ele se chamava  As Mil e Uma Noites. Quem primeiro otraduziu do árabe foi o estudioso francês Antoine Galland, que retornoude uma viagem a Istambul trazendo na mala um exemplar do texto.Publicados entre 1707 e 1717, os doze volumes dessa tradução

conquistaram desde cedo legiões de admiradores. O mundo árabe eadjacências se transformaram na terra das maravilhas. Hoje, passadostrês séculos, pouco resta dessa imagem. Gênios e odaliscas foramsubstituídos, no pensamento ocidental, por xeques do petróleo,mulheres de véu negro e fanáticos religiosos que aparecem natelevisão. Curiosamente, no entanto, as histórias narradas porSherazade continuaram sendo as únicas, de toda a literatura árabe oumuçulmana, conhecidas na Europa e nas Américas. Tudo se passacomo se não houvesse escritores por lá. Mas eles existem. E vêm

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produzindo obras de grande valor, mesmo quando precisam desafiar aopressão política, a censura religiosa ou a pobreza.

Recentemente, alguns ficcionistas chegaram ao mercado brasileiro como selo da editora Record. Do libanês Amin Maalouf temos  Jardins deLuz,  que fala sobre o fundador da religião maniqueísta. Já omarroquino Tahar Ben Jelloun, em Os Frutos da Dor,  descreve asituação dos imigrantes islâmicos na França, escolhendo comonarradora uma jovem que precisa enfrentar tanto o racismo doseuropeus quanto as superstições de seu próprio povo. Por fim, opaquistanês Tariq Ali reconstitui de maneira empolgante, em O Livrode Saladino, a época das cruzadas sob o ponto de vista muçulmano.

São três ótimos romances, diferentes entre si, que "desafiam ospreconceitos do leitor ocidental" – para usar as palavras de Ali.Nenhum desses autores, porém, vive em seu país de origem. Os doisprimeiros moram na França e publicam em francês, enquanto o últimomora na Inglaterra e publica em inglês. Por causa disso, nãorepresentam à perfeição a atual cultura da região. É preciso ir àsfontes.

Uma primeira surpresa, para quem começa a investigar o assunto, édescobrir que a literatura dessa parte do mundo vive num feliz estado

de efervescência. Inaugurada na semana passada, a Feira do Livro doCairo, no Egito, dá uma idéia da agitação. Um total de 79 paísesparticipa do evento e 25.000 títulos estão em exibição. "Nossaliteratura não tem do que se envergonhar, seja em quantidade, sejaem qualidade", afirma o contista egípcio Bahaa Taher (que traduziu O

 Alquimista, de Paulo Coelho, para o árabe). "Mesmo no romance, umaforma literária que só chegou por aqui há 100 anos, quase todos ospaíses contam com grandes nomes. Azar do Ocidente, que ainda nãoos descobriu." A julgar pelos dois autores árabes de maior renomeinternacional, Taher tem mesmo razão. O egípcio Naguib Mahfouz,ganhador do Prêmio Nobel de 1988, é um genial retratista do Cairo. Jáo saudita Abdelrahman Munif é responsável pela monumental trilogiaCidades de Sal, que fala sobre os dilemas de um país que se modernizadepois de descobrir petróleo.

"Sexo e álcool" – A falta de divulgação, entretanto, está longe de sero maior problema desses escritores. Um levantamento realizado em1999 pela PEN International, entidade que congrega literatos domundo todo, mostra que setenta intelectuais foram mortos,

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encarcerados ou desapareceram nos últimos anos em países demaioria islâmica. Por certo, existem diferenças entre essas nações no

que diz respeito à liberdade de expressão. No Marrocos, onde umregime democrático lançou raízes nos últimos dez anos, a censura veioao chão. Em outro extremo acha-se o Irã, dominado pelofundamentalismo. "Romances iranianos não podem ter cenas de sexoou mencionar bebidas alcoólicas", diz a iraniana Azar Nafisi, professorade estudos culturais da Universidade Johns Hopkins, nos EstadosUnidos. "A repressão é tão intensa que os escritores se autocensuram,temendo represálias das autoridades." Azar conta que todos os mesesrecebe uns dez livros clandestinos de jovens compatriotas que nãoconseguem ser ouvidos em seu próprio país. "O assombroso é que eles

são muçulmanos sinceros, que não desejam ofender sua religião." Porfim, há os casos intermediários. O próprio Egito, um grande centro dedifusão cultural, não vive em regime de liberdade plena. Um governoautoritário controla a imprensa e as editoras. Como se não bastasse,grupos fundamentalistas perseguem os escritores. Até Naguib Mahfouzfoi vítima de um atentado. Em 1994, um fanático o esfaqueou nopescoço, por achar que seus livros ofendem o islã.

Por que, então, muitos outros autores não seguem os passos daquelesque se mudaram para o Ocidente? Por que Mahfouz, apesar das

ameaças e da fama que desfruta, continua vivendo no mesmo bairroonde sempre morou? "Ao contrário do que se pensa, ofundamentalismo e o autoritarismo não são traços imanentes de nossacultura", acredita o filósofo Mohammed Abed al-Jabri. "Ambos sãoproduto de uma distorção." Considerado o mais importante pensadormarroquino da atualidade, Al-Jabri é autor de um best-seller noOriente, Introdução à Crítica da Razão Árabe,  lançado no Brasil pelaeditora Unesp. Seu principal objetivo é reviver o que chama devertentes racionalistas da cultura árabe. "O pensamento árabe

contemporâneo pode recuperar e reutilizar os ensinamentos racionais eliberais de sua própria tradição – a luta contra o feudalismo e omisticismo, a vontade de instaurar uma Cidade da razão e da justiça",escreve ele. Esse projeto está inscrito nas obras que acabam de sair noBrasil. Vale a pena conferir.

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Desafio aos mulás23 de fevereiro de 2000

Reformistas enfrentam seu maior teste numaeleição com jeito de plebiscito

A História mostra que turbante não combina com democracia. Ainda maisquando se trata do Irã, a terra dos aiatolás e das mulheres cobertas depreto. Mas há certas nuances. A república islâmica costuma realizar eleiçõesrazoavelmente limpas (sobretudo se comparadas às da maioria de seusvizinhos) e respeita a vontade das urnas de modo inusitado para um Estadoteocrático. Na sexta-feira passada, os iranianos depositaram seus votosnuma eleição com feições plebiscitárias. Escolhiam-se os deputados doMajlis, o Parlamento, mas o pano de fundo era a definição do sentido dopêndulo na disputa entre reformistas e o clero linha-dura sobre o destino darevolução islâmica. A questão está na ordem do dia desde a espetacularvitória do reformista Mohammed Khatami, em 1997. Quando se tinha comocerta a eleição de um presidente alinhado com o conservadorismo oficial, osiranianos, sobretudo os jovens e as mulheres, viraram a mesa e elegeramKhatami, cuja promessa era aliviar o peso do fanatismo xiita no dia-a-dia dapopulação. Só nesta semana, quando forem contados os votos das provínciasmais remotas e feitas as complexas contas da representação proporcional, éque se saberá o tamanho da bancada reformista. Todas as estimativas eram,

às vésperas do pleito, de uma grande manifestação popular por mudanças.

No sistema teológico criado pelo falecido aiatolá Khomeini, o poder realrepousa nas mãos do líder supremo — o próprio Khomeini, enquanto viveu, ehoje o aiatolá Ali Khamenei. Ele controla as Forças Armadas, a polícia, oJudiciário e tem a última palavra sobre todos os assuntos internos einternacionais de alguma importância. Às vésperas das eleições, o alto clerofez valer suas prerrogativas e vetou a candidatura de centenas de pessoas,quase todas das fileiras reformistas. Ainda assim, respira-se mais livrementeno Irã desde a vitória de Khatami. Já é possível ver casais de namorados emTeerã, antenas parabólicas nos telhados e até críticas nos jornais. Tudo isso,contudo, continua oficialmente proibido. Se os reformistas confirmarem avitória prevista para sexta-feira passada, talvez o país possa dar o passomais ousado: iniciar as reformas institucionais. Há coisas básicas a serinstituídas, como a entrega do poder a candidatos eleitos, um Judiciárioindependente e a separação entre mesquita e Estado.

O clero vai permitir tudo isso? O certo é que os turbantes negros já nãorepresentam a verdadeira cara do país. Dois terços da população têm menosde 30 anos e pouco se lembram do movimento revolucionário que, em 1979,apeou o xá Reza Pahlevi e colocou o país de costas para o mundo. Mesmo

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sem conhecer outra realidade, os jovens estão ansiosos por uma vida demaior liberdade e abertura para o exterior. Nas universidades e nas ruas, oregime islâmico tem sido enfrentado com pequenas transgressões, como ouso de batom e unhas pintadas — e também ruidosas manifestações. Em julho, depois que a polícia religiosa invadiu a universidade de Teerã eespancou os alunos, os protestos estudantis chegaram perto de setransformar num levante popular. Às sextas-feiras, dia de folga no Irã,centenas de pessoas saem de Teerã em direção às montanhas, onde podemusufruir um pouco mais de liberdade. Algo como andar de mãos dadas comalguém do sexo oposto, ouvir música americana e dançar — necessidadesbásicas de um jovem em qualquer país.

Para as mulheres, condenadas a viver de acordo com códigos de conduta

medievais, o momento é ainda mais decisivo. O número de candidatas, 513de um total de 6.083, foi excepcionalmente alto. Temas antes proibidos,como a equivalência salarial ou o fim dos casamentos forçados, foramescancarados durante a campanha. O regime iraniano não chegou aextremos como proibir o trabalho feminino, a exemplo do que faz o governoislâmico do Afeganistão, mas as mulheres são consideradas legalmenteinferiores aos homens. Uma mulher quer ir à Justiça? Seu testemunho valeráa metade do de um homem. Ficou viúva? Não adianta chiar: os bens serãoherdados pelo sogro. Contra as adversidades, as mulheres do paísconseguem ter um bom nível educacional e são maioria nas universidades. Oque necessitam agora é se livrar do xador, o pano preto que lhes esconde oscabelos.

Sob o aiatolá Ali Khamenei, um líder sem carisma, as rédeas começaram ase soltar, mas a linha dura xiita está longe de ter entregue os pontos. Umavitória esmagadora dos candidatos reformistas e moderados ajudaria opresidente Khatami a conter as forças conservadoras e levar adiante suaproposta de liberalização gradual do regime. Desde que tomou posse, elevem se debatendo contra um Parlamento dominado por conservadores, quenão quer nem ouvir falar de novidades. Um de seus principais ministros foidemitido pelos parlamentares. Outro aliado importante, o prefeito de Teerã,

Gholam-Hossein Karbaschi, passou dois anos na prisão e levou sessentachibatadas, acusado de corrupção. A relativa liberdade de imprensa, um dosprincipais feitos do presidente, vive sob constante ameaça. O resultado dasurnas pode tornar a teocracia iraniana menos sufocante. 

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Turbantes em fúria03 de maio de 2000

Derrotados nas eleições, aiatolás fecham dezesseis jornaisalinhados com as reformas

Cabelo feminino à mostra emanifestação conservadora:embate entre o novo e ovelho 

Dois meses atrás, os eleitores deram aos candidatos reformistas uma

espetacular vitória no Irã. Na semana passada, os aiatolás de linhadura, que detêm o poder real no país, foram à forra: proibiram acirculação de dezesseis jornais alinhados com o reformismo moderadodo presidente Mohammed Khatami. O recado é claro e violento. Opessoal de turbante, que há duas décadas tenta enquadrar iranianosnos usos e costumes do século VII, quando o profeta Maomé orientavapessoalmente seus fiéis, não vai aceitar pacificamente o resultado dasurnas. Será que ainda dá tempo para segurar a vida moderna queteima em sobreviver num país onde as mulheres são obrigadas a secobrir da cabeça aos pés com vestes disformes? Os dois Irãs, de umlado os reformistas, mais abertos ao Ocidente e ao bem-estar geradopelo desenvolvimento, e do outro os conservadores, apegados aoobscurantismo fundamentalista, empenham-se agora numa espécie deduelo fatal. Na quinta-feira, estudantes enfrentavam a polícia nas ruasde Teerã, em desafio aberto aos aiatolás. "O Irã chegou a um ponto deabertura em que não há mais retorno", acredita Nader Entessar,diretor do departamento de ciência política da Spring Hill College, noAlabama, Estados Unidos.

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A dicotomia entre o novo e o velho pode ser notada no dia-a-dia daspessoas. É como se houvesse um país público, em que tudo é proibido,

e um privado, onde se pode quase tudo. Em Teerã, é possível observarmulheres vestidas com lenços coloridos em vez do preto tradicional,com as unhas pintadas, o rosto maquiado e com mechas de cabeloaparecendo por baixo do véu. Casais de namorados andam de mãosdadas, apesar da ameaça da polícia religiosa armada de metralhadorae chibata. A música popular e a dança, banidas após a revolução,renascem às claras. Tudo na mais absoluta e tolerada ilegalidade. Atéas antenas parabólicas, mesmo proibidas, começam a proliferar,muitas delas camufladas dentro de casinhas de cachorro. A florescenteindústria cinematográfica do país retrata o processo de mudança

cultural. Grandes nomes, como o diretor Mohsen Makhmalbaf, antesum fiel seguidor do regime dos aiatolás, hoje produzem filmes comconteúdo crítico. "É uma questão de tempo para que os iranianosestejam vivendo como qualquer ocidental", avalia Neeguin Yavari,professora do Instituto do Oriente Médio da Universidade Colúmbia, emNova York.

Em parte, os aiatolás estão colhendo agora o resultado de uma políticadesequilibrada. Antes da revolução islâmica de 1979, apenas 54% dapopulação sabia ler e escrever. Hoje, 72% dela está alfabetizada. As

mulheres foram as que mais aproveitaram a oportunidade. Quase ametade dos universitários do país pertence ao sexo feminino. Paratodos os efeitos, o Irã ainda é um país miserável, com mais de 50% dapopulação vivendo abaixo da linha de pobreza. A economia, capenga,continua dependente das exportações de petróleo. Bem-educados, os

 jovens, que são dois terços da população e não vivenciaram aderrubada do xá, cobram agora as mudanças prometidas nas eleições.Sem o apoio deles, é pouco provável que os aiatolás consigam brecaras reformas. É bem possível, aliás, que os jornais fechados reabram

com outro nome, como muitos têm feito desde 1997. A abertura lentae gradual preconizada por Khatami deve continuar, mas nada impedeque outros percalços apareçam pelo caminho.

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O reino proibido31 de maio de 2000

País fechado aos não-muçulmanos, a ArábiaSaudita já aceita visitantes selecionados

A Arábia Saudita sempre manteve as portas completamente fechadas aoturismo convencional, embora receba de braços abertos os muçulmanos quecumprem o dever da peregrinação a Meca. A situação está mudando aos poucosno berço do islamismo. O reino quer expor seus tesouros naturais e históricos avisitantes estrangeiros para diversificar a economia, até agora quase queinteiramente atrelada à venda de petróleo. A peregrinação à cidade sagrada deMeca e a visita a Medina, que a cada ano atraem 2 milhões de fiéis, deixariam

assim de ser a única forma de turismo existente no país. Desde o ano passado ogoverno saudita vem, de maneira discreta, concedendo vistos em conta-gotas auns poucos afortunados da Europa, dos Estados Unidos e do Japão. Estima-seque 1.000 pessoas tenham visitado a Arábia Saudita como turistas em 1999,sempre em pequenos grupos organizados por agências escolhidas a dedo. Entreelas, as americanas Smithsonian Study Tours (www.si.edu/tsa/sst) e a LindbladExpeditions (www.expeditions.com). O preço de uma viagem de duas semanas éde cerca de 7.000 dólares, incluindo refeições e passagens aéreas.

O acesso às cidades sagradas continua restrito aos seguidores do Corão, mas ossauditas permitem aos turistas passeios a lugares magníficos e pouco

explorados. Sítios arqueológicos do período pré-islâmico, cidades parcialmenteenterradas pelas areias do Deserto de Rub'al Khali, antigos fortes otomanos,fontes de águas termais, mergulhos no Mar Vermelho e visitas aos mercados deouro, tecidos e produtos típicos são algumas das atrações do reino. O queatrapalha o turismo são as severas leis islâmicas, que podem colocar em apurosum estrangeiro desavisado. Não há cinemas nem teatros no país – consideradosimorais –, e o consumo de álcool é terminantemente proibido. As mulheres nãopodem dirigir carros e devem sempre andar acompanhadas de homens. Noslugares públicos elas usam véus e abayas, aquelas pesadas túnicas pretas quelhes cobrem até os pés. Quem desobedece a alguma das regras decomportamento, mesmo sendo turista ou diplomata, corre o risco de enfrentar a

polícia da moralidade, que pode chegar a agredir o transgressor.

Mesmo com todas as restrições, visitar a Arábia Saudita é o sonho de muitagente. As excursões até agora organizadas pelas agências americanasautorizadas saem lotadas. No Brasil, a Embaixada da Arábia Saudita aguardaapenas o recebimento de instruções da recém-criada Suprema Comissão deTurismo – órgão que responde diretamente ao Conselho de Ministros da ArábiaSaudita – para conceder os primeiros vistos a grupos de turistas brasileiros. 

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Atrasado e drogado21 de junho de 2000

Um lugar distante da vida moderna, ondese vive para seqüestrar e usar uma droga, o qat

O diplomata norueguês Gudbrand Stuve,44 anos, deixou-se atrair pelo fascinanteambiente de mil e uma noites queenvolve o Iêmen, país parado no tempo.Em viagem de retorno de seu posto naZâmbia, desembarcou com a família em

Sanaa, capital iemenita, para alguns diasde lazer. Como acontece com freqüênciaaos turistas que visitam o país, Stuve eseu filho de 9 anos foram seqüestrados.Até aí nada de mais, pois passar algunsdias como refém em uma aldeiaencarapitada numa montanha faz parte do passeio e, muitas vezes,está incluído no pacote turístico. Desafortunadamente o passeioterminou em tragédia. Os seqüestradores foram surpreendidos poruma patrulha militar nos arredores da capital, e Stuve morreu baleadono sábado 10. O menino escapou ileso. Nos últimos dois anos, este foio quinto assassinato em circunstâncias parecidas.

O que atrai os turistas europeus a esse país é a fascinante combinaçãode hábitos medievais e telefones celulares – junto com os jipões LandRover, os únicos indícios de vida moderna por lá. A indústria doseqüestro é conseqüência da belicosidade dos clãs e da precária infra-estrutura do interior. Os reféns servem como meio de pressão paraexigir serviços básicos do governo. Dois anos atrás, o presidente do

país decretou a pena de morte para os casos de seqüestro. De nadaadiantou. De 1991 até o ano passado foram quase 150 casosenvolvendo estrangeiros, pelo menos catorze após a nova lei. Amaioria dos seqüestros termina sem vítimas, apesar do colossalarsenal doméstico existente. Em média, cada habitante do país temtrês armas de fogo. São 50 milhões de gatilhos para pouco mais de 17milhões de habitantes. O fuzil de assalto AK-47 faz parte daindumentária masculina, tanto quanto a tradicional adaga e ocamisolão que chega ao tornozelo.

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O governo não se faz obedecer porque a prisão de um criminoso podelevar sua tribo à sublevação. O Iêmen é uma terra de contradições.

Localizado na Península Arábica, ao lado dos abastados reinos dopetróleo, não dispõe da mesma abundância de óleo em seu subsolo.Sobra-lhe terra fértil, mas ela é desperdiçada com plantações de qat,planta narcótica que é a paixão nacional. Como oito em cada dezadultos são viciados na droga, vendida em folhas, praticamentenenhuma outra cultura vale a pena. A religião oficial é o islamismo,mas numa versão cheia de anjos e fantasmas. As mulheres vivem emsemiconfinamento, como na Idade Média. Cobrem-se com vesteslargas e escuras, não trabalham fora de casa e nem pensam em dirigirum carro. Tal é o isolamento que desenvolveram um dialeto próprio,

falado apenas entre elas. Politicamente o país é peculiar. Até umadécada atrás estava dividido entre o norte capitalista (se é que se podefalar assim de uma sociedade tribal) e o sul islâmico-comunista (se éque isso pode existir). A reunificação foi pacífica, mas degenerou emguerra civil vencida pelo norte, mais desenvolvido. O país é um dospoucos no mundo árabe que elegem diretamente o presidente. Masgoverno, Exército e partidos políticos fazem pouco sentido no Iêmen. Oque define a lealdade e as responsabilidades de cada habitante é seuclã. Vale mais a palavra do xeque – misto de autoridade tribal, líderespiritual e juiz – que tudo aquilo que está escrito na Constituição.

O verdadeiro denominador de identidade cultural no Iêmen é o qat.Trata-se de uma planta de sabor amargo que contém substânciasanfetamínicas. Quando mascado ou fumado, produz um efeito de leveeuforia. Para os iemenitas, o mundo não existe sem a planta, e suaproibição seria o suicídio político e a ruína econômica do país. Estima-se que ela seja responsável por 25% do produto nacional bruto. Ocultivo de 250 000 toneladas por ano de qat ocupa metade das terrasaráveis do país e emprega meio milhão de pessoas. Os iemenitas

passam a manhã no telefone combinando onde vão reunir-se paramascar qat. A tarde é dedicada à droga e ao papo furado. Drogas eseqüestros – isso é o que move o Iêmen.

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A última do Taliban26 de julho de 2000

O regime da repressão total em nome de Deus,no Afeganistão, chega ao cúmulo de raspar acabeça de jogadores pelo pecadode jogar futebol de calção

A principal utilidade dos estádios no Afeganistão é serem usados como local

de execução de sentenças. É neles que o Taliban, a milícia islâmica queimpôs um regime medieval ao país, chicoteia as mulheres que falam comhomens estranhos, corta a mão dos ladrões e apedreja até a morte o casalde adúlteros. Nem quando serve de palco para jogos de futebol o estádioestá livre dos horrores do fanatismo religioso. Que o digam os jogadores deuma equipe da cidade paquistanesa de Chaman, convidada na semanapassada para um amistoso em Kandahar, a segunda maior cidade doAfeganistão e quartel-general da milícia. Na metade do jogo apareceu apolícia religiosa, armada de metralhadoras, que prendeu doze dos dezessetevisitantes. Cinco jogadores conseguiram escapar e se refugiaram no

consulado de seu país. Os demais tiveram a cabeça raspada como puniçãopor usar calções – desses shorts comuns, até os joelhos, uniforme universaldas equipes de futebol, mas considerados indecentes pelos padrões moraisdo Taliban. No mundo absurdo criado pelo fanatismo afegão, os homens sópodem vestir-se segundo o figurino estabelecido pelos religiosos: camisolãocom calças folgadas por baixo. É ruim? Pior é para as mulheres, que vivemcobertas da cabeça ao dedão do pé por um manto disforme, o burqa, quenão deixa à mostra nem mesmo os olhos.

Time de futebol castigado:cabeças raspadas pormostrar as pernas

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Depois de horas de medo e incerteza, os doze jogadores foram libertados no dia seguinte, com aintervenção do ministro dos Esportes, que achou aatitude excessiva, visto que os paquistaneses eramconvidados. Apesar das desculpas do ministro, oincidente no estádio de futebol é sintomático deuma situação inusitada: a de um país cujo objetivoé viver segundo uma interpretação tão estrita da leiislâmica que horroriza até mesmo os aiatolás dovizinho Irã. Desde 1998, quando consolidou seudomínio sobre 90% do território do Afeganistão(uma milícia rival, menos furiosa do ponto de vista

religioso, controla a porção restante), o Taliban mergulhou o país nas trevas

do obscurantismo mais atroz. Em nome da fiel observância da sharia, a leiislâmica, tenta-se eliminar os sinais de vida moderna. Música, cinema,televisão, revistas, jogos de carta são proibidos como futilidades que afastamo fiel do caminho de Alá. Imagens de homens ou animais são igualmenteproibidas. Fotografia, nem pensar: não é permitido fotografar nem guardarfotos de outras pessoas, mesmo de parentes próximos. Por quê? Porque sóse pode adorar a Deus, e a foto é uma espécie de idolatria do fotografado.Assim como têm de usar calça comprida para jogar futebol, os atletasafegãos não podem lutar boxe, porque estão proibidos de fazer a barba.Homem de cara raspada pode pegar até dez dias de prisão, tempo suficientepara sair da cadeia devidamente barbado.

O regime é especialmente severo com as mulheres. Só as mãos ficam àmostra, mas unhas pintadas, dependendo do humor da polícia damoralidade, podem custar as próprias unhas. Braços ou rosto à vista emlocal público autorizam qualquer cavalheiro a castigá-las com umasbordoadas. Ao atingir a puberdade, não mais podem conversar ousimplesmente permanecer na presença de homem que não seja da família.Só saem à rua com autorização do marido ou do pai. Foram proibidas deestudar e de exercer qualquer profissão, exceto as de médica e enfermeira.O resultado é que a maioria das mulheres vive hoje da mendicância. É

natural que seja assim, pois, após de duas décadas de guerra civil, é enormea quantidade de viúvas e órfãs que agora não podem ganhar honestamenteo pão. Um repórter americano que conhece muito bem o país e lá esteverecentemente ficou chocado com a quantidade de crianças e mulheresmendigando por toda parte. Os agentes do Ministério para a Propagação daVirtude e da Prevenção do Vício estão atentos ao menor deslize. Uma mulhersurpreendida levantando o véu (elas fazem isso por razões práticas, comocontar dinheiro, pois a visão é prejudicada pelo burqa) é açoitada. A surradeixa-a de cama por semanas e pode até causar a morte.

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Como a população consegue suportar tudo isso sem se revoltar? OAfeganistão sempre foi um país instável, dividido por rixas tribais ediferenças étnicas. Nos anos 70, um grupo de esquerdistas assumiu o podere resolveu impor o comunismo às tribos. Para proteger esses alucinados, aUnião Soviética invadiu o país em 1979. Foi o início de uma guerrasangrenta, em que os Estados Unidos armaram a resistência afegã, quecombatia em nome do islã. Desmoralizados, os russos retiraram-se em 1989e as facções ficaram livres para lutar umas contra as outras. A novidadesurgiu em 1994 – os talibans, originalmente estudantes religiosos. Elesganharam prestígio combatendo a criminalidade e desarmando a população.A favor deles é sempre lembrado que nunca tiveram por hábito estuprar asmulheres, como faziam outras milícias e a soldadesca russa. A populaçãotem para com eles a gratidão pelo fim da guerra e do banditismo

desenfreado das milícias rivais. A maioria jamais havia vivido em período depaz e segurança como agora. Os costumes medievais, bem, são parecidoscom os praticados há séculos nas aldeias afegãs.

O preço a pagar é alto. Em nome de Alá, os talibans fazem o que querem,sem se preocupar com leis, advogados ou juízes. Como toda diversão estáproibida, o lazer é assistir a execuções públicas. A pena para quem rouba,ainda que seja um prato de comida, é a amputação da mão direita. Oreincidente perde a perna esquerda. Consumir bebida alcoólica em qualquerquantidade vale algumas chicotadas. Adultério é punido com a morte porapedrejamento. O casal é amarrado numa cama, o juiz joga a primeira pedrae o povo depois continua. O espetáculo costuma prolongar-se por duas horasde sofrimentos atrozes e não faltam espectadores nem pedras. OAfeganistão nunca foi rico e a guerra terminou por arruiná-lo. Sançõesinternacionais ajudam a piorar a situação. A população vive do contrabando,da esmola e da agricultura rudimentar. O Taliban socorre-se no narcotráfico,apesar de o consumo de drogas ser proibido pela lei islâmica. Relatório daOrganização das Nações Unidas mostra que a fabricação de ópio no país jásupera a soma de todo o restante da produção mundial. Foram 4.600toneladas de ópio produzidas em 1999, contra 2.600 em 1998. O sistemabancário, controlado pela milícia, financia os plantadores de papoula, a

matéria-prima do ópio e da heroína. O Taliban cobra pedágio de 20% detodo carregamento de drogas que deixa o país. Cada vez mais a cobrança deretidão e de rigor só se aplica à população que ousa transgredir alguma dasinúmeras regras de comportamento.

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O site do aiatolá09 de agosto de 2000

Líder religioso iraniano preso por subversãose comunica com o mundo pela internet

O aiatolá Montazeri faz discursos políticos pela internet, no sitewww.montazeri.com, mas dribla a censura graças a uma esperteza: evitacríticas diretas ao governo 

O aiatolá Hussein Ali Montazeri é um dos dissidentes mais populares doIrã e se encontra em prisão domiciliar desde 1997. Não pode mais pôros pés na rua. Sua casa é vigiada dia e noite por soldados. Visitas, sóde parentes próximos. Mesmo diante de tantos cuidados, arranjou um

 jeito de driblar o cerco dos turbantes negros. Criou uma página nainternet na qual expõe em persa suas idéias sobre política e religião.

De quebra, coloca-se à disposição dos fiéis que desejam fazerconsultas por e-mail. As questões são catalogadas de acordo com ostemas. As respostas são depois divulgadas na rede. A história deMontazeri, o aiatolá cibernético, representa um bom exemplo de comoa censura à internet é difícil de ser realizada na prática. Os regimesfechados bem que tentam controlar o acesso a informações quecirculam pela rede. Num relatório recente, a ONG internacionalRepórteres sem Fronteiras listou vinte países que movem mundos efundos para censurar websites e e-mails. Estão na relação nações

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como China, Cuba, Serra Leoa, Iraque e, obviamente, Irã. O vizinho –e igualmente uma ditadura – Iraque tem um mecanismo bem eficiente

de vigilância, pois o único provedor existente no país pertence aogoverno.

No Irã, o Estado apenas monitora,por meio de filtros, algumaspalavras-chave para identificarsites considerados subversivos oupornográficos. Para os padrõesislâmicos, é sempre bom lembrar,até uma página de anatomia

destinada a estudantes demedicina pode ser enquadradacomo erótica – e, portanto,proibida. Até um ano atrás, oacesso à internet era restrito a

estudantes e professores de universidades de Teerã, a capital do Irã, ea membros da elite do país. Essa barreira caiu por terra e a rede tem-se popularizado entre várias outras camadas da população. Uma provavisível desse fenômeno é a multiplicação dos chamados cibercafés nacapital. Apesar dos progressos, a internet ainda engatinha por lá

quando comparada a seu estágio de avanço nas democracias.Estimativas do número de internautas iranianos variam entre 30.000 e60.000, quase nada diante da população de 67 milhões. Há aindalimitações técnicas: o acesso é lento e existem poucas linhastelefônicas (apenas 9 milhões no país inteiro). Quem ousa navegarpelos sites proibidos perde o precioso direito de acessar a internet.

Mesmo assim, a repressão à rede não se compara à exercida sobre aimprensa. Só em abril deste ano, dezesseis jornais foram fechados porse aliarem com o presidente Mohammed Khatami, o clérigo reformistaque se elegeu prometendo aliviar a mão pesada do fundamentalismoreligioso no cotidiano da população. Ele chegou ao cargo em 1997,arrebatando 70% dos votos. Foi apoiado principalmente por mulherese estudantes, ávidos por recuperar o direito de namorar em público ouse vestir com roupas normais. As iranianas são obrigadas a cobrir oscabelos e a usar batas disformes. Homens e mulheres não podemandar juntos, exceto se forem parentes próximos. Desde a eleição deKhatami, o país é convulsionado por uma queda-de-braço entrereformistas e a linha dura. O poder do presidente é reduzido, pois a

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última palavra é privilégio do líder espiritual do país, o aiatolá AliKhamenei, que fica de cabelos arrepiados a cada passo em direção ao

mundo moderno. A linha dura controla as Forças Armadas, a polícia e oJudiciário. Também pode contar com a fidelidade dos 125.000 homensda Guarda Revolucionária e com o apoio da população das pequenascidades e aldeias, disposta a sair às ruas para protestar contraKhatami.

É nesse contexto perigoso que o aiatolá Montazeri, um venerando líderreligioso de 78 anos, se mostra um mestre no manejo da comunicaçãoeletrônica. Para não melindrar a turma do turbante negro e evitar quesua página saia do ar, deixa de fazer qualquer crítica direta aos

conservadores e recorre a sutilezas. Ele incluiu no site mençõeselogiosas a alguns dos líderes que o adulavam no tempo em que eracotado para suceder ao aiatolá Khomeini, o fundador da repúblicaislâmica, e que mais tarde seriam os responsáveis por seu ostracismo.Sobre o ultraconservador Ali Khamenei, o aiatolá Montazeri é sóconfete: "Tenho orgulho por esta pessoa existir na república islâmica".

O aiatolá cibernético tornou-se um ícone entre os reformistas. Sua tesemais subversiva é que o comando do país deve ser entregue a alguémescolhido pelo povo e não pelos turbantes negros. Essa idéia, porém,

em nome da prudência, ele ainda não divulga na internet. A regraatual, instituída pelo aiatolá Khomeini, entrega a uma assembléia declérigos a responsabilidade pela escolha. Esse organismo é dominadopelos fundamentalistas, que se julgam eleitos por Deus para realizaressa tarefa e ditar os outros dogmas do islã. A criação da página deMontazeri na internet casa perfeitamente com sua biografia, pontuadade dribles às autoridades. Encarcerado repetidas vezes pelo xá RezaPahlevi, que a revolução islâmica mandou para o exílio em 1979,Montazeri sempre conseguia que estudantes de teologia editassemboletins clandestinos com os escritos produzidos no cárcere. Aestratégia é a mesma. Com a diferença de que agora a rede mundialexerce a função dos panfletos mal impressos no passado.

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Receita de aiatolá30 de agosto de 2000

Religiosos na Turquia e na Espanha aconselham ouso da violência para manter as esposas submissas

O marido pode bater na mulher? A pergunta soa absurda e a respostaé óbvia para a maioria das pessoas. Para os muçulmanos, no entanto,a questão ainda se coloca. Na Turquia e na Espanha acabam de ser

publicados dois livretos com a assinatura de respeitáveis religiososislâmicos, nos quais o "espancamento coercivo" das mulheres éexplicitamente recomendado. Se saíssem à luz apenas em países ondeo islã domina também o aparelho de Estado, as publicações passariamdespercebidas. Como circularam em países democráticos e maismodernos, os guias para amansar mulher despertaram forte reação.Mesmo na Turquia, um país onde 99% da população é muçulmana,mas Estado e religião estão oficialmente separados, os conselhos dosaiatolás foram recebidos com indignação. "O livro dá umainterpretação equivocada das palavras do profeta Maomé", disse SemaPiskinsut, deputada que preside a comissão de direitos humanos doParlamento. "É ultrajante que tal livro tenha sido publicado comdinheiro público originário de impostos pagos também pelas mulheres",esbravejou Zuhal Kilic, que preside uma ONG feminista.

O livreto turco, intitulado Guia do Muçulmano,  foi publicado por umafundação ligada ao governo. Na publicação, o clérigo Kemal Guranorienta os maridos a bater nas mulheres quando elas forem teimosas,contanto que não o façam com muita força e que evitem machucá-las.

Mulher na Turquia: conflito entre oEstado moderno e a lei islâmica 

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Não se deve atingir os seios, o estômago ou o rosto, ensina a obra. Emcaso de doença da mulher, quando ela não puder cumprir com suas

obrigações domésticas, o homem pode arrumar uma segunda esposase não tiver dinheiro suficiente para pagar uma empregada. Guranfundamenta o direito masculino à pancada com a afirmação de que "oshomens são naturalmente superiores às mulheres".

Os conselhos de Guran chegam num momentoem que a Turquia se esforça para adotar umainterpretação moderna do islã. O maisdemocrático país muçulmano, com boa parte deseu território no oeste asiático e 3% dele no

sudeste europeu, vem pleiteando sua entrada naUnião Européia para aproveitar a maré deprosperidade que já trouxe benefícios à vizinhaGrécia. Uma das exigências para aderir ao pactoeuropeu é o estrito respeito aos direitoshumanos. As denúncias freqüentes de tortura nasprisões turcas, a perseguição aos curdos e a

discriminação contra as mulheres são entraves sérios à pretensãoturca. Fundador da Turquia moderna, Mustafa Kemal, o Ataturk, em1923, separou radicalmente a mesquita do Estado. Entre as medidas

impostas por ele para tentar arrancar o país da servidão religiosaestava o incentivo ao uso de roupas ocidentais e do alfabeto latino. Oatual governo quer manter essas inovações a todo o custo, emboraboa parte da população prefira seguir os costumes tradicionais. O usodo véu pelas mulheres ressurgiu com força na última década.

O hábito da exclusão das mulheres é tão arraigado que intérpretesradicais do Corão  estão se sentindo à vontade para pregar seuobscurantismo mesmo em países onde os muçulmanos são minoria.Livreto semelhante ao do clérigo turco foi publicado pelo imã MohamedKamal Mostafa, que dirige a mesquita da cidade de Fuengirola, no sulda Espanha. Nele, o imã recomenda a greve de sexo para castigarmulheres malcomportadas e ensina a bater sem deixar marcas nocorpo da vítima. O livro lhe rendeu um processo por incitação àviolência. No mundo civilizado é assim, na Justiça, que se tentaresolver problemas desse tipo. 

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Cimitarra afiada27 de junho de 2001

Egito pode obrigar escritorafeminista a se divorciar

O mundo islâmico já esteve na vanguarda da civilização, masameaça passar cada vez mais para a lanterninha, graças à açãodos fundamentalistas religiosos. Por causa de sua visibilidade, osintelectuais se acham entre os alvos favoritos. Segundoorganizações especializadas no assunto, aqueles mortos ou

encarcerados por esses regimes já se contam às dezenas. Mesmoem Estados como o Egito, que se apresentam como liberais, apressão dos fundamentalistas é cada vez mais forte. O romancistae ganhador do Prêmio Nobel Naguib Mahfouz, por exemplo, jáhavia sido esfaqueado no pescoço, em 1994, por um louco que o julgava apóstata. Agora, sofre ameaças novamente, por terpermitido que obras suas fossem traduzidas para o hebraico elançadas em Israel. Nas próximas semanas, a perseguição podeatingir uma das mais influentes figuras femininas do mundo

árabe. A escritora e feminista egípcia Nawal el-Saadawi, de 70anos, pode ser não só presa como obrigada a se divorciar domarido por decisão de um tribunal. Isso porque numa entrevistaconcedida no início deste ano Nawal disse que o ritual daperegrinação a Meca guarda vestígios pagãos. A afirmaçãodespertou a ira de um advogado conservador, para quem Nawal"renunciou ao Islã" e por isso não deve continuar casada com umfiel: está sujeita à punição do divórcio. A decisão deve sair no dia9 de julho – e nem a repercussão negativa do caso no Ocidente

permite prever qual será seu desfecho. 

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Gays no tribunal25 de julho de 2001

Governo egípcio usa lei deemergência para julgar 52acusados de homossexualismo

Vexame público: acusados de ser gays são levados para julgamento 

Uma das formas de aferir o grau de democracia de um país é ver comosão tratadas as minorias. Os homossexuais, em especial, são um bomtermômetro, visto que o tema envolve complexas considerações deordem moral, religiosa e tabus sexuais. A regra nos Estados modernosé aceitar o direito individual de seguir sem constrangimentos umaorientação sexual que não é a da maioria. Tomado por essa medida, oEgito está no rol dos países mais primitivos do planeta. Na quarta-feirapassada, começou no Cairo o julgamento de 52 homens acusados dehomossexualismo. A maioria foi presa em maio numa boate gayinstalada num barco no Rio Nilo. Todos dizem ter sido torturados pelapolícia. Como o homossexualismo não é proibido pelas leis egípcias,eles estão sendo processados por "ofensa à moral pública", que poderender até cinco anos de prisão. O governo transformou o caso numaquestão de segurança nacional. Por isso, o julgamento passou a serrealizado sob a mesma lei de emergência – que não dá direito aapelação – usada para julgar fundamentalistas islâmicos empenhadosem derrubar o regime.

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Desde o final do ano passado, a polícia egípciaestá em campanha contra o homossexualismo,

sobretudo na internet. Alguns gays foram presosao responder a anúncios sexuais publicados pelaprópria polícia. É difícil saber por que o governoquer condenar os homossexuais. "É típico desseregime criar casos para distrair a opinião públicade problemas mais sérios, como corrupção edesemprego", diz Maha Youssef, porta-voz deum centro de direitos humanos do Egito. Mesmo

os militantes dos direitos humanos, contudo, evitam manifestar apoioaos gays. Isso porque o islamismo pune o homossexualismo com a

morte, e a opinião pública acha justa a punição.

A força da religião e a persistência de costumes medievais tambémexplicam a atual controvérsia sobre a virgindade na Turquia, tambémde maioria islâmica. Na semana passada, o ministro da Saúde, OsmanDurmus, autorizou exames ginecológicos para as estudantes deenfermagem. O objetivo era expulsar das escolas públicas aquelas quenão fossem virgens. A reclamação das feministas fez o governo recuar.A virgindade ainda é um valor fundamental na Turquia, onde até 1999os homens tinham direito de exigir testes de virgindade antes do

casamento. A lei foi abolida depois da tentativa de suicídio de cincoórfãs, entre 12 e 16 anos, que tomaram veneno de rato e pularamnum poço quando souberam que seriam submetidas aos exames. Omistério é saber por que o governo só quer enfermeiras virgens. 

Controvérsia na Turquia:governo só aceitaenfermeiras virgens

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Assassinato em

nome de Alá19 de setembro de 2001

Miséria e falta de democracia,aliadas ao nacionalismo, fazemo caldo no qual nasce o radicalismoislâmico – uma minoria na religião 

Com o surgimento dos primeiros indícios de que a onda de terror nosEstados Unidos foi obra de radicais islâmicos, uma questão tornou-se

inevitável: quem é essa gente que se suicida jogando aviões contraedifícios? Que se veste de bombas e se explode em supermercados epizzarias de Israel? Que estoura carros recheados de explosivos contramuros de quartéis? Quem é, enfim, essa gente que se mata em nomede Alá? Atualmente, calcula-se que exista em torno de 1,3 bilhão demuçulmanos no mundo, divididos em diversas correntes religiosas – eapenas uma parcela pequena está disposta a entregar a vida pelacausa. São muçulmanos que integram ramificações extremistas dareligião, como os sunitas do Afeganistão e os xiitas do Líbano, para osquais o suicídio em nome de Alá, normalmente cometido aos gritos de"Deus é grande", é uma forma suprema de entrega ao amor divino. Amaioria dos muçulmanos, no entanto, repudia os ataques suicidas e osconsidera pecado extremo, uma ofensa contra Alá, na medida em queatenta contra o dom da vida – um dom divino. "O primeiro equívococomum entre ocidentais e cristãos é considerar todo islâmico umextremista suicida e, por extensão, um terrorista em potencial",adverte a historiadora Maria Aparecida de Aquino, da Universidade deSão Paulo. O segundo equívoco, e até mais freqüente que o primeiro, é

 julgar que todos os muçulmanos são árabes, quando a maioria, na

verdade, é formada por povos não-árabes. Somando-se um erro aooutro, produz-se uma generalização tão deformada quanto a dealguém que supõe que todos os católicos são irlandeses e, portanto,todos são radicais. 

Há quarenta anos, 15% da população mundial era devota de Alá. Hoje,são quase 20%, e estima-se que, por volta de 2020, de cada quatrohabitantes do planeta um será muçulmano. Essa explosão demográfica– em parte provocada pela proibição religiosa do uso de métodoscontraceptivos – está devolvendo ao islamismo uma força

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considerável. Com o liberalismo religioso da maior parte do Ocidente,os muçulmanos também se espalham com alguma facilidade. Só na

Europa, berço da civilização cristã, existem 20 milhões demuçulmanos, e quase metade deles está instalada na EuropaOcidental. Há mesquitas até na Roma dos papas. Outro fator queemprestou maior visibilidade aos países islâmicos está em sua imensariqueza estratégica: eles são donos das mais generosas reservas depetróleo do mundo. Entre os cinco maiores produtores de óleo doOriente Médio (Irã, Iraque, Arábia Saudita, Emirados Árabes e Kuwait),o PIB conjunto quadruplicou nos últimos trinta anos – enquanto o PIBmundial apenas dobrou de tamanho.

O crescimento do rebanho e a fartura do petróleo, no entanto,produziram um barril de pólvora. Em geral, os regimes dos paísesislâmicos são ditaduras teocráticas e a riqueza não é distribuída,deixando a maior parte da população relegada à miséria. É dentrodesse caldeirão paradoxal que ressurgiu a força da religião, emespecial depois da Revolução Islâmica no Irã, em 1979. "Numambiente de carência social e autoritarismo político, a religião funcionacomo uma poderosíssima válvula de escape", define a historiadoraMaria Aparecida de Aquino, da USP. Mas isso não é tudo. Até poucotempo atrás, a América Latina também convivia simultaneamente com

miséria e ditadura – e, no entanto, nunca se viram grupos extremistasde latino-americanos promovendo atos de terrorismo pelo mundo aforaem nome de sua libertação econômica e política. Por que então algunsgrupos de fanáticos islâmicos chocam o mundo com espetáculosinimagináveis de terror? A explicação sobre o que move essesextremistas, segundo alguns especialistas, talvez esteja num dadomais sutil: o choque de civilizações.

"Os Estados nacionais permanecerão como os atores mais poderososno cenário mundial, mas os principais conflitos globais ocorrerão entrenações e grupos de diferentes civilizações", aposta o professor SamuelP. Huntington, especialista em estudos internacionais da UniversidadeHarvard e autor de um livro dedicado ao assunto. "O choque decivilizações será a linha divisória das batalhas do futuro." Nem todos osestudiosos do assunto concordam com a tese de Huntington, mas nãohá como negar que, num mundo cada vez menor, cada vez maispróximo, a religião também funciona como um instrumento deafirmação da identidade nacional. E a globalização crescente é umprocesso que se desenrola sob o comando inequívoco do mundo

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ocidental – em especial, do império americano. As potências ocidentaisnão trilham sua trajetória segundo parâmetros da Bíblia, da fé cristã,

dos ensinamentos de Jesus, mas, mesmo assim, elas acabam por secontrapor, culturalmente, aos países muçulmanos, muitos dos quais sepautam pelo Corão, pela fé islâmica, pelos ensinamentos de Maomé.

Com 1 400 anos de rivalidade, o cristianismo e o islamismo vêmalternando auges e colapsos. Fundado em 622 pelo profeta Maomé, oislamismo logo se lançou, com sucesso, à conquista de terras e almas.Por volta de 1 500, no entanto, os europeus cristãos partiram para aconquista do Oceano Atlântico, com os portugueses à frente, eacharam a rota marítima para as cobiçadas riquezas da Ásia – e aí

começou o declínio da civilização islâmica. Hoje, as potênciasocidentais encontram-se no auge do poder. Os Estados Unidos, comsua incomparável pujança econômica, seu formidável poderio militar esua vigorosa influência política e cultural sobre os destinos do mundo,representam o triunfo dos valores ocidentais – pelo menos aos olhosde fundamentalistas islâmicos, que, é sempre bom lembrar, são umaminoria entre os muçulmanos. Daí por que o terror da terça-feira nãose esgotou na destruição de arranha-céus e na morte de inocentes.Pretendeu, sobretudo, cravar uma cimitarra no coração e no orgulhoda maior potência ocidental.

Os extremistas, que enxergam o mundo pela oposição entre Jesus eMaomé, se ressentem da avassaladora influência ocidental sobre oplaneta – nos costumes, nos hábitos de consumo, no modo de vida.Tanto que, em países dominados por radicais islâmicos, especialmenteos talibans do Afeganistão, tudo o que lembra a cultura ocidental éproibido e severamente punido. Mas, de novo, isso não é uma regra.No Irã, há grandes anúncios de produtos ocidentais pelas ruas deTeerã, existem mulheres procurando cirurgiões plásticos, num sinal devaidade antes inadmissível, e é muito expressivo o contingentefeminino que freqüenta a universidade – uma raridade em algumasnações islâmicas que confinam a mulher aos limites do lar. "Háaspectos do capitalismo ocidental que são plenamente aceitos pelaspopulações muçulmanas", diz um diplomata brasileiro que serviu poroito anos no Líbano. "As cadeias de fast food, como o McDonald's,fazem sucesso do Marrocos ao Líbano," diz ele.

"Sem dúvida, o extremismo religioso está ligado às frustrações,principalmente entre os mais jovens, pois os países árabes têm

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economia fraca, analfabetismo e desemprego crescente", afirma SharifShuja, professor de relações internacionais da Universidade Bond, na

Austrália. "Mas, além disso, o massacre de muçulmanos na Bósnia, naChechênia, na Palestina e na Caxemira faz o mundo árabe imaginarque o Ocidente está contra ele", completa o especialista. A melhormaneira de reduzir o crescimento do extremismo talvez esteja naexpansão democrática dos países islâmicos – tema ao qual aspotências ocidentais têm dedicado pouca atenção. A riqueza econômicado petróleo, por si só, não foi capaz de melhorar esse cenário. "Naverdade, ocorreu o contrário", analisa o professor Michael Hudson, daUniversidade Georgetown. "Jordânia, Líbano, Marrocos e Palestina, quenão têm reservas petrolíferas, hoje são países muito mais abertos que

os ricos em petróleo, como Arábia Saudita, Iraque e Líbia." A exceçãoé o Irã, único islâmico rico que vive um acelerado processo dedemocratização.

A dificuldade de criar regimes democráticos em países árabes decorrede fatores históricos e culturais, mas se agrava hoje em dia em razãode dois aspectos. De um lado, existe um estado permanente debeligerância, pela vizinhança com Israel, o que tende a concentrar opoder nas mãos de um líder ou de um grupo. O constante clima deguerra, além disso, torna prioridade o fortalecimento do Exército, do

serviço de inteligência, da polícia secreta, da guarda nacional,instituições que também servem para conter aspirações popularesmalvistas pelos dirigentes. De outro lado, a comunidade árabe édividida pela glória e pela desgraça do petróleo. Quem tem senta-sesobre ele. Quem não tem usa sua influência junto aos países ricos empetróleo para garantir investimentos e ajuda externa. Assim, tanto oscom-petróleo quanto os sem-petróleo, excessivamente amarrados àdependência de capital externo, tendem a ignorar as demandasinternas por maior participação política.

Enquanto os nós não forem desfeitos, é possível que o extremismo e ofanatismo, embora restritos a grupos minoritários, sigam achandoespaço para ensangüentar a história humana. Alertas contra isso é oque não falta. Quatro séculos antes de Cristo e dez séculos antes deMaomé, o grego Eurípedes já se insurgia contra o fundamentalismo,contra a prática de invocar os deuses para justificar guerras ecarnificinas. Suas peças são um libelo de desmistificação dossacerdotes, dos generais, dos políticos – enfim, dos poderosos de seutempo. E investem contra o uso que essa elite fazia da adoração aos

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deuses como razão para praticar seus desmandos. Na peça Electra, Eurípedes denuncia o abuso que os homens fazem do culto a Apolo

para cometer seus pequenos atos de terror. Em outra peça, Mulheresde Tróia, desmantela moralmente os políticos por promoverem guerrasem nome dos deuses. Quem sabe a lição do grego ainda triunfe – e osradicais islâmicos deixem de voar contra edifícios. 

A cara das guerras 

Confira como mudou a natureza dos conflitos nos últimos 500 anos, período em que seconsolidou o domínio da civilização cristã e ocidental no mundo 

ENTRE MONARQUIAS 

Quando, a partir de 1500, a cultura ocidental começa a se impor no mundo,os conflitos se dão, basicamente, entre príncipes, imperadores e monarcasque tentam expandir seu poder, seu comércio, suas fronteiras. Essa situaçãoperdurará até a Revolução Francesa, em 1789 

ENTRE NAÇÕES 

A partir da Revolução Francesa, consolida-se a idéia de Estado-nação e asguerras passam a adquirir caráter nacional, de expansão territorial de uma

nação e seu povo. Essa característica se manterá até a Revolução Russa, em1917 

ENTRE IDEOLOGIAS 

Com a criação da União Soviética, surge uma superpotência comunista, querivalizará com o mundo capitalista, liderado pelos EUA. A disputa ideológicapassa a ser o fio condutor dos conflitos - uma situação que só mudará com aqueda do Muro de Berlim, em 1989 

ENTRE CIVILIZAÇÕES 

Com o fim da Guerra Fria e o triunfo do império americano, os conflitosperdem sua matriz ideológica e ganham tons cultural e religioso, derivalidade entre Ocidente e Oriente, entre cristãos e islâmicos. Para algunsestudiosos, é a fase do conflito entre civilizações 

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O que querem os fundamentalistas10 de outubro de 2001

Osama bin Laden e sua corte de fanáticos vivem na clandestinidade,enfurnados em cavernas do Afeganistão, envoltos numa aura de mistério,mas seus objetivos são bem claros. Basta consultar os escritos do milionárioque virou o mais exaltado dos radicais islâmicos. Primeiro, ele pretendeexpulsar os militares americanos das bases que eles mantêm na ArábiaSaudita, onde a mera presença denão-muçulmanos é vista pelos fanáticos como uma profanação do solo santoonde nasceu o Islã. "Todos os esforços devem ser concentrados emcombater, destruir e matar o inimigo até que, pela graça de Alá, estejacompletamente aniquilado", esclarece Laden, em documento datado de1996. Realizada a primeira missão divina, ele pretende partir para asegunda, de alcance mais amplo: unir todos os muçulmanos numa mesmacomunidade, governada de acordo com a interpretação mais literal e estritados preceitos do Corão. Para isso, os governos dos países muçulmanosconsiderados corrompidos pela influência ocidental – ou seja, todos, comexceção do Afeganistão, onde já reina o fundamentalismo mais radical –devem ser varridos do mapa. Sem fronteiras nacionais, unificados sob essegoverno ideal, chamado califado, os verdadeiros crentes se lançariam entãorumo à etapa final – arrebatar o resto do planeta. "Chegará o tempo em quevocês desempenharão papel decisivo no mundo, de forma que a palavra de

Alá seja suprema e as palavras dos infiéis sejam subjugadas", prometeu elea seus seguidores. Em qualquer uma dessas etapas, o dever dosmuçulmanos é empregar todas as armas possíveis para atacar os inimigos deAlá. O título do documento em que faz essa afirmação diz tudo: "A BombaNuclear do Islã".

Parece coisa de uma mente delirante, dos gênios do mal caricaturados nocinema ou nas histórias em quadrinhos. A forma aberrante de fanatismoreligioso pregada por Laden, porém, tem raízes bem fincadas na história dareligião muçulmana, constantemente marcada por esse desejo de mergulharna fonte original, de beber da palavra mais pura do Corão,  de reviver umpassado mítico. Esse movimento é chamado, genericamente, defundamentalismo e está entranhado no próprio código genético do Islã,religião que tem uma visão totalizante do mundo e apresenta um modelopara tudo o que se faz em qualquer das esferas da vida, públicas ouprivadas. Na ótica fundamentalista, a união da religião e do Estado é umideal ordenado por Deus – e sua separação, uma invenção ocidental queprovocou o declínio do mundo muçulmano. Para retornar ao "verdadeiroIslã", todas as sociedades muçulmanas devem se unir numa comunidadeúnica, chamada ummah. Tudo isso sob o signo da charia, a lei corânica talcomo foi estabelecida há quase 1.400 anos, com castigos coerentes com a

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sociedade tribal da época: amputação de membros para os ladrões,decapitação para assassinos ou hereges, apedrejamento para as adúlteras.

O modelo a ser seguido é o que vigorou no tempo dos quatro califas, comosão chamados os primeiros sucessores diretos do profeta Maomé. Essepassado idílico, um ideal comum às correntes messiânicas de várias religiões,obviamente está mais na imaginação dos fundamentalistas. Na verdade, trêsdos quatro califas foram assassinados nas violentas disputas sucessórias – amorte do último deles, Ali, produziu a mais conhecida corrente minoritária dareligião muçulmana, os xiitas. "Eles dizem que houve um momento naHistória em que a comunidade social e seus líderes foram perfeitos. Tudo,evidentemente, é uma interpretação muito pessoal do que apresentam comouma verdade eterna", explica o estudioso das religiões Martin E. Marty, da

Universidade de Chicago. "No fundo, todas as religiões querem serabsolutamente puras e se consideram o único instrumento de Deus. Nesseanseio, os fundamentalistas se isolam, erguem barreiras psicológicas para semanter a distância. Dessa forma, o mundo fica dividido em dois: os seusseguidores e seus inimigos."

Uma comparação que ajuda a entender a mentalidade fundamentalista écom a Igreja Católica na fase em que se encontrava quando tinha a mesma"idade" do Islã hoje. Naquela época, os padres da Santa Inquisiçãoqueimavam pessoas que não acreditassem em dogmas católicos. Torturavame matavam suspeitos de crimes como bruxaria. Qualquer idéia inovadora eracondenada, mesmo que fosse uma idéia científica defendida porpesquisadores de talento, como Galileu Galilei, que sofreu perseguição noséculo XVII por ter afirmado que a Terra girava em torno do Sol. Oshistoriadores também coincidem ao apontar as razões desse movimento derefluxo: em comparação com seu passado glorioso, os países islâmicosvivem hoje um período de decadência. O Ocidente cristão, com o qualconviveram e combateram ao longo dos séculos em pé de igualdade, àsvezes até de superioridade, superou-os vastamente em matéria de progressomaterial, científico, administrativo e tecnológico. A primeira organizaçãofundamentalista moderna, a Fraternidade Muçulmana, foi criada em 1928

pelo xeque Hasan al-Banna num Egito humilhado pelo colonialismo britânico.Também ganharam contornos de males a ser combatidos as liberdadesindividuais, a emancipação das mulheres, as mudanças nos padrõesfamiliares e outras transformações que se sucederam nas sociedadesocidentais. "Aterrorizados por sua visão do mundo contemporâneo, osintegristas procuram abrigo e proteção num passado que nunca existiu daforma como imaginam hoje", analisou o iraniano Amir Taheri, autor de doislivros sobre o "terror sagrado".

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Chegamos, assim, àquilo que distingue o fundamentalismo em sua vertentemais extremada: o recurso à violência como meio não só legítimo comoobrigatório. Ancorados em textos do Corão  ou ensinamentos do profeta eseus seguidores, evidentemente interpretados da maneira mais literal, osfundamentalistas aperfeiçoam há séculos uma teoria da violência total."Aqueles que ignoram tudo do Islã pretendem que ele recomende não fazera guerra. São insensatos. O Islã diz: 'Matem todos os infiéis da mesmamaneira que eles os matariam'", escreveu um dos aiatolás que lançaram asbases da revolução fundamentalista que derrotou o regime do xá RezaPahlevi no Irã. O aiatolá complementa: "Aqueles que estudam a guerra santaislâmica compreendem por que o Islã quer conquistar o mundo inteiro. Todosos países subjugados pelo Islã receberão a marca da salvação eterna. Poiseles viverão sob a luz da lei celestial". Quando Osama bin Laden diz que

"matar americanos e seus aliados, civis e militares, é um dever individual detodo muçulmano que tenha condições de fazer isso, em qualquer lugar ondeseja possível fazer isso", ele está seguindo exatamente o mesmo raciocínio.

É interessante notar que Laden estabeleceu como objetivo número 1 o seupróprio país, a Arábia Saudita. Quer livrar o território saudita da presençacontaminadora de militares americanos. A ironia é que na Arábia Saudita jávigora o mais severo fundamentalismo. É um dos poucos países islâmicosonde o Corão  é a Constituição e as normas punitivas islâmicas ocupam olugar do Código Penal. O Irã xiita, que tem relações gélidas com as demaisnações muçulmanas, e o Sudão também formam nesse grupo. A unificação ea independência da Arábia Saudita aconteceram sob a bandeira de uma seitachamada wahabita, cujo radicalismo é reproduzido agora no Afeganistão doTalibã. Além de cobrir as mulheres de panos dos pés à cabeça, sem deixaruma única nesga de pele à mostra, os wahabitas têm horror a tudo quelembre remotamente diversão – música, cinema, teatro, até vasos de floresa certa altura foram proibidos. O rei Faisal foi assassinado em 1975 por umsobrinho por ter tomado uma medida muito liberal: depois de um longodebate teológico, liberou a televisão. Bebidas alcoólicas rendem chicotadasem praça pública, a polícia religiosa anda pela rua controlando qualquerdesvio. Até uma princesa da família reinante foi executada, por adultério.

Pois todo esse rigor, para Laden, não vale nada. Ao permitir que militaresamericanos se instalassem no país (para proteger os sauditas, e todo seupetróleo, da sanha de Saddam Hussein), a monarquia wahabita setransformou em traidora da fé e merecedora de todos os castigos. É paraarrancar os americanos do solo saudita, reverenciado como o berço doprofeta Maomé e da revelação divina, que Laden iniciou a campanha deataques terroristas que culminou com o massacre de Manhattan. O que podevir em seguida?

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Operações espetaculares como os atentados contra os Estados Unidos,estarrecedores tanto por sua magnitude quanto pelas conseqüências emtodo o planeta, podem criar a impressão de que o mundo está à beira de serengolfado pelo fundamentalismo mais ensandecido, com massas deseguidores do profeta tomando o poder de assalto. Na verdade, as duasgrandes ondas de apoio popular aconteceram em 1979, com a revoluçãoiraniana, e 1991, quando os integristas ganharam, mas não levaram, aseleições na Argélia. Nos outros países muçulmanos onde existe algum tipo deteste das urnas, os partidos fundamentalistas costumam ter em torno de20% dos votos. Inseridos no jogo político, acabam envolvidos em projetosnacionais. Isso é exatamente o oposto do que prega o fundamentalismo, que"rejeita violentamente não só o nacionalismo, mas a própria idéia deconstruir um Estado islâmico num só país", segundo analisa o pesquisador

francês Olivier Roy, estudioso do tema.

Na visão de Roy, o fundamentalismo "clássico" está em refluxo. Desde 1997,quando aconteceu o massacre dos turistas estrangeiros em Luxor, nãoacontecem atentados de grande impacto no Egito. A situação acalmou-se naArgélia, a violência brutal dos atentados palestinos contra israelensesacontece contra o pano de fundo de uma luta nacional. E, ironia das ironias,o Irã dos aiatolás tem agora uma convergência de interesses com os EstadosUnidos no combate aos talibãs e seu aliado saudita. Para o pesquisador,Laden é uma aberração até mesmo no contexto do fundamentalismo. Seusseguidores, arrancados do grupo familiar e da sociedade de origem,desenraizados e aculturados, "fazem um retorno individual a um Islãabstrato e desligado da realidade social". Reside aí, justamente, seu pontofraco. Como se diria no jargão de uma outra doutrina fundamentalista, jáextinta, eles se afastaram das bases – e por isso estão condenados aofracasso. Queira Alá que seja verdade. 

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Tortura cotidiana10 de outubro de 2001 

A lista de horrores já soa, a esta altura, familiar. Meninas proibidas de ir àescola e condenadas ao analfabetismo. Mulheres impedidas de trabalhar e deandar pelas ruas sozinhas. Milhares de viúvas que, sem poder ganhar seusustento, dependem de esmolas ou simplesmente passam fome. Mulheres comos dedos decepados por pintar as unhas. Casadas, solteiras, velhas ou moçasque sejam suspeitas de transgressões – e tudo o que compõe a vida normal évisto como transgressão – são espancadas ou executadas. E por toda parteaquelas imagens que já se tornaram um símbolo: grupos de figuras idênticas,sem forma e sem rosto, cobertas da cabeça aos pés nas suas túnicas – asburqas. Quando o Afeganistão entrou no noticiário por aninhar os terroristas que

bombardearam o World Trade Center e o Pentágono, essas cenas de mulherestratadas como animais voltaram a espantar o Ocidente. Elas vivem em regimede submissão absoluta há muito tempo, mas a situação ficou ainda pior desdeque a milícia Talibã tomou o poder no país, em 1996.

O cenário de Idade Média não é uma prerrogativa afegã. Trata-se de umaavenida permanentemente aberta aos regimes islâmicos que desejeminterpretar os ensinamentos do Corão a ferro e fogo. A isso se dá o nome defundamentalismo. Há países de islamismo mais flexível, como o Egito, e outrosde um rigor extremo, como a Arábia Saudita e, principalmente, o Afeganistão.Para o pensamento ortodoxo muçulmano, a mulher vale menos do que o

homem, explica Leila Ahmed, especialista em estudos da mulher e do OrientePróximo da Universidade de Massachusetts, nos Estados Unidos. "Um 'infiel'pode se converter e se livrar da inferioridade que o separa dos 'fiéis'. Já ainferioridade da mulher é imutável", escreveu Leila num ensaio sobre o tema,em 1992.

Por trás dessa situação há uma ironia trágica. A exclusão feminina não estápresente nas fundações do islamismo, mas apenas no edifício que se erigiusobre elas. O Corão,  livro sagrado dos muçulmanos, contém versículosdedicados a deixar claro que, aos olhos de Alá, homens e mulheres são iguais. Omais importante deles é o que está reproduzido nesta página. Ele mostra que

Deus espera a mesma fidelidade de ambos os sexos, e que a premiará de formaidêntica. Segundo o dogma islâmico, o Corão é o conjunto de revelações que oprofeta Maomé recebeu diretamente de Deus, no século VII. É o mandamentodivino, e não uma interpretação qualquer de Sua vontade. Como se explica,então, que idéias tão avançadas tenham se perdido, para dar lugar a Estadosreligiosos em que as mulheres têm de viver trancafiadas e cobertas por véus,em pleno século XXI? As respostas têm de ser buscadas muito longe, no próprionascimento do Islã.

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Quando tinha 25 anos, Maomé se casou com Khadidja, uma viúva rica que oempregara para supervisionar sua caravana de comércio entre a cidade deMeca, na atual Arábia Saudita, e a Síria. A própria Khadidja, de 40 anos, propôsas núpcias, num arranjo que não era assim tão incomum. Naquela época, aArábia era uma das poucas regiões do Oriente Médio em que o casamentocomandado pelo marido ainda convivia com outros tipos de união. Acredita-seque havia até mulheres que tinham vários maridos – e muitas viviam comconsiderável autonomia pessoal e financeira. Era o caso de Khadidja, umanegociante experiente. Alguns anos depois de seu casamento, Maomé começoua receber o que seriam revelações de Deus. Julgando-se louco, procurou oconselho da esposa. Ela dispersou suas dúvidas e, para provar sua confiança nomarido, converteu-se à nova religião. O primeiro muçulmano foi, assim, umamulher. Quando Khadidja morreu, Maomé entrou em vários casamentossimultâneos. A mais célebre de suas esposas é Aisha, que tinha 9 anos naocasião das bodas. Segundo alguns relatos, ela brincava no quintal quando foichamada para dentro de casa. Lá, encontrou o noivo e foi posta sobre seus

 joelhos. Os pais da menina se retiraram, e o casamento teria se consumado ali,na casa paterna.

Aisha é uma figura central nesses primeiros anos do Islã (cujo calendáriocomeça a ser contado no ano 622 da era cristã). Inteligente, articulada e donade uma memória prodigiosa, ela foi a mais querida e respeitada das mulheresdo profeta – embora todas partilhassem de seus ensinamentos e apoiassemativamente sua causa. Eram, aliás, tão assediadas por pessoas em busca defavores e influência que talvez por isso tenham sido as primeiras muçulmanas(e, por algum tempo, as únicas) a usar véu e ficar recolhidas em casa – e, aindaassim, só nos últimos anos da vida de Maomé. Aisha tinha 18 anos quandoMaomé morreu. Nas quase cinco décadas seguintes de sua vida, ela foiinúmeras vezes consultada em pontos importantes da religião, da política etambém da conduta do profeta. Isso porque Maomé legou aos muçulmanos oCorão,  que é quase um tratado ético, mas não teve tempo de regulamentartodos os princípios que deveriam reger o cotidiano dos convertidos. Quandovivo, podia ser consultado a qualquer momento. Depois de sua morte, tornou-setarefa de seus seguidores próximos transferir da memória para a escrita aspalavras e ações do profeta. A intenção era que o conjunto servisse de guia aosfiéis. Esses "ditados" são os Hadith. Juntos, eles compõem a tradição maior, aSunna. Com as complicações surgidas por causa da sucessão de Maomé, osHadith tornaram-se uma ferramenta crucial. Não era difícil que alguém sacasseum deles para resolver um impasse. E, é claro, não demorou para que muitosfossem forjados. Cerca de 200 anos depois da morte do profeta, um respeitadohistoriador do islamismo, al-Bukhari, contou 7 275 Hadith  genuínos, contraquase 600.000 inventados. Mesmo os tidos como verdadeiros merecem algumescrutínio, argumentam estudiosos como a marroquina Fatima Mernissi.

Fatima investigou a origem dos Hadith  que são as pedras angulares para justificar a inferioridade feminina no Islã. Um deles é o que compara as

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mulheres aos cães e jumentos na sua capacidade de perturbar a oração. Fatimaconcluiu que o narrador desse Hadith, Abu Hurayra, era um homem com sériosproblemas de identidade sexual e um feroz opositor de Aisha, que amiúde orepreendia em público por sua mania de inventar Hadith. Nessa ocasião, elacorrigiu Hurayra, dizendo que o profeta costumava rezar perto de suas mulheressem nenhum medo de que elas o atrapalhassem. Mas sua versão não passou àhistória. Outro Hadith que todo muçulmano sabe de cor é o que diz que "aquelesque confiam seus negócios a uma mulher nunca conhecerão a prosperidade".Segundo Fatima Mernissi, o surgimento desse Hadith é ainda mais misterioso.Abu Bakra, seu narrador, lembrou dessa frase do profeta (e pela primeira vez)mais de vinte anos depois de supostamente ela ter sido dita. Curiosamente,veio-lhe à memória (assim ele afirmou) no momento em que Aisha sofreu suagrande derrocada. A viúva do profeta virou o centro de uma crise quando, aosuspeitar de um golpe, pegou em armas para intervir numa das etapas dasucessão de Maomé. Na batalha que se seguiu, perdeu 13.000 de seus soldadose saiu derrotada, em vários sentidos. Foi, primeiro, criticada por ter se expostode uma maneira inconveniente a uma mulher. E, com a perda de prestígio, tevemuitos de seus comentários e correções sobre importantes Hadith suprimidos ouignorados – como no caso daquele que fala dos cães e jumentos. Esses são sóalguns exemplos de como a voz feminina, tão valorizada nos primórdios do Islã,começou a se silenciar.

A pesquisadora Leila Ahmed tem mais explicações para a opressão das mulheresno Islã. Os muçulmanos, diz ela, costumavam manter os hábitos das regiõesonde se firmavam, desde que esses estivessem em sintonia com seupensamento. O restante era descartado. Na Arábia, por exemplo, eliminaram asoutras formas de casamento para que prevalecesse apenas o patriarcal. Quandoconquistaram a região que hoje abarca o Irã e o Iraque, assimilaram a práticade formar haréns, o uso disseminado do véu para as mulheres e,principalmente, os mecanismos de repressão feminina que eram umacaracterística marcante dos povos locais. Foi nesse ambiente altamentemisógino que, nos séculos seguintes, o direito islâmico foi elaborado. Separadoem escolas que diferem em vários pontos, mas se apresentam como sendotimbres diversos de uma só voz, esse direito é dado como absoluto e imutável.Seus princípios não podem ser questionados nem relativizados à luz de traçosculturais. Por isso são, até hoje, um instrumento útil para calar as mulheres empaíses nos quais vigora o regime teocrático. Um dado complicador é que asmuçulmanas têm até hoje um conhecimento muito vago da lei divina. Aderemao fundamentalismo atraídas pelos ideais de pureza da religião e, quando ele éinstaurado, são surpreendidas por seus rigores – a exemplo do que ocorreu noIrã dos aiatolás.

Não é pequena a importância de estudos históricos como os de Leila Ahmed eFatima Mernissi. Eles ajudam a demonstrar que a liberdade feminina nãoequivale à ocidentalização e à aculturação – ou, em outras palavras, à traição doIslã. Pelo contrário: é possível ser, ao mesmo tempo, uma muçulmana livre e

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uma muçulmana fiel. Se a democracia chegou para as mulheres que vivem soba égide da civilização judaico-cristã, que também não é lá muito célebre por suavisão feminista do mundo, não há por que ela não possa ser almejada pelasmuçulmanas que se orgulham de sua religião. Em tempo: um dia, um seguidorde Maomé lhe indagou qual a pessoa que ele mais amava no mundo. "Aisha,minha mulher", respondeu o profeta. Irritado com uma resposta assim, nofeminino, o curioso insistiu: "E qual o homem que o senhor mais ama?". Maoménão hesitou. "Abu Bakr. Porque ele é o pai de Aisha." 

A ig u a l d a d e n o Corão 

"Os submissos e as submissas, os crentes e as crentes, os homens obedientes e as mulheres

obedientes, os homens leais e as mulheres leais, os homens perseverantes e as mulheres perseverantes, os homens humildes e as mulheres humildes, os homens caridosos e asmulheres caridosas, os homens que jejuam e as mulheres que jejuam, os homens castos eas mulheres castas, os homens que invocam a Deus com freqüência e as mulheres queinvocam a Deus com freqüência – para todos eles, Deus preparou a indulgência e grandesrecompensas." (Sura 33:35) 

DEVERES E PUNIÇÕES 

Como a lei limitou a vida das muçulmanas no Irã, país quase "liberal" perto do Afeganistãodominado pelo Talibã

Em público, as mulheres devem cobrir-se dos pés à cabeça, sob pena de chibata ou prisão.O rosto pode ficar à mostra 

Não podem participar de atividades sociais com homens solteiros ou que não sejamparentes 

Em edifícios públicos, usam entradas separadas das dos homens 

Só podem viajar com autorização expressa do marido 

Precisam de permissão do pai ou de outro homem responsável para se casar 

Podem praticar alguns esportes, como futebol ou tênis, desde que vestidas com o xador, enunca na presença de homens 

Estão sujeitas ao apedrejamento em caso de adultério 

Se doentes, têm de ser atendidas por outras mulheres 

Mulheres divorciadas raramente ficam com os filhos 

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Do lado errado, de novo17 de outubro de 2001

MASSA DE MANOBRA Hordas de pobres proclamam fé em Laden, e não estão sozinhos: ricos e instruídos domundo islâmico também apóiam 

Adivinhe de onde partiram as frases abaixo, ditas nos últimos dias porpessoas consultadas por jornalistas estrangeiros:

"Osama bin Laden já foi chamado de consciência do Islã. Ele diz e faz o que

muitos muçulmanos gostariam de dizer e fazer, mas não podem. Nósgostamos disso, concordamos com ele".

"Tem gente que acha que ele é um herói, o muçulmano ideal, o epítome doque um árabe deve ser".

"Ele se tornou um símbolo de desafio em face da arrogância americana".

Pelos termos empregados, é evidente que não se trata das massas que têmprotestado diariamente nas ruas empoeiradas das cidades paquistanesas,pisoteando bandeiras americanas com suas sandálias gastas. Esses pobrespés-sujos, gente ignorante e fanatizada por seus líderes religiosos,identificados pela proximidade territorial e pela etnia com os vizinhosafegãos do Talibã, não usam esse tipo de vocabulário. As declarações acimaforam feitas por cidadãos instruídos da Arábia Saudita – respectivamente,um advogado de multinacional com dez anos de estudos nos Estados Unidos,um professor universitário e um jornalista, homens que provavelmente sedariam muito mal se Osama bin Laden implantasse a versão de autoritarismoteocrático que prega para seu país natal, mais fundamentalista ainda do queo sistema em vigor. São opiniões de apenas três pessoas – mas elasrefletem o pensamento de milhões e milhões de muçulmanos. "A

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esmagadora maioria da sociedade saudita apóia Laden", disse a VEJA Saadal-Fagih, dirigente do Movimento por uma Reforma Islâmica na Arábia, umgrupo de oposição à família real saudita com sede em Londres. Osama binLaden nasceu na Arábia Saudita e está rompido com as autoridades locaisporque se opõe à presença de americanos numa base militar que os EUAinstalaram no país desde os tempos da Guerra do Golfo.

Os sauditas são apenas parte da platéia do terrorista. Do Oriente Médio ouda Ásia Central até a periferia do mundo muçulmano, como a distanteIndonésia, chovem as manifestações de apoio a Laden. Essa adesão ao terroré muitas vezes justificada com a ajuda de teorias conspiracionistasensandecidas. Ora os atentados contra Nova York e Washington forampraticados pelo Mossad, o serviço secreto de Israel, para lançar os Estados

Unidos contra o Islã. Ora tudo foi feito com a conivência dos americanos, demaneira a criar um pretexto que lhes permita se apossar do petróleo e dogás natural da Ásia Central. Os ricos sauditas teriam perdido suas fortunas,seu estilo de vida e até seu país caso os Estados Unidos não os salvassem dagula territorial do iraquiano Saddam Hussein. No entanto, eles seesqueceram disso. Vêem Osama bin Laden como defensor da causa árabecontra os americanos maus, que se instalaram na Arábia Saudita,profanando com sua simples presença o santo solo onde nasceu o Islã. Masnão foi Saddam quem começou tudo há dez anos, quando invadiu o Kuwait eacabou provocando a vinda dos militares "infiéis"? Que nada, respondem, asério, os sauditas. Foi tudo um plano maligno: os americanos incentivaram oditador do Iraque a praticar suas perfídias para se infiltrar na Arábia Sauditae, claro, passar a mão no petróleo, sempre o petróleo.

TERRENO FÉRTIL Rodeados de símbolos americanos, policiais e manifestante paquistanês: ódio aos EUA dita escolhasirracionais 

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Não é de estranhar que, com uma opinião pública assim, mesmo num regimeautocrático como o saudita, os poderosos tenham receio de apoiar muitoabertamente os Estados Unidos. "Numa democracia ocidental, quem perde ocontato com o povo perde a eleição. Numa monarquia, perde a cabeça",filosofou o príncipe Bandar bin Sultan, o eterno embaixador saudita nos EUA.Na Palestina, o semblante lívido de Yasser Arafat é um retrato da apostaarriscadíssima que fez: mesmo ao preço de atrair a antipatia das massaspalestinas, ele tem procurado distanciar-se ao máximo de Laden. Arafat, umex-chefe terrorista que durante algum tempo não pôde pisar em soloamericano, chegou a mandar a polícia palestina baixar o cassetete nosmanifestantes que saíram às ruas de Gaza para dar apoio a Laden. Arafat,mesmo com seu passado ultra-radical, é um homem experiente e flexível.Tem bom trânsito entre as autoridades do Ocidente e parece entender

perfeitamente o que significaria para a causa palestina ter suas aspiraçõesconfundidas com as do grupo terrorista de Osama bin Laden. Por isso, querdistância do saudita.

No Egito, onde o governo controla tudo e a posição oficial é decautelosíssimo apoio aos Estados Unidos, as manifestações a favor de Ladensão confinadas. Já ocorreu, porém, uma mudança perceptível nos ventos daopinião pública. Laden não era nada popular no país até recentemente, poisseu número 2, o fundamentalista egípcio Aiman al-Zawahiri, comandou aonda de atentados contra turistas estrangeiros que fez encolher uma fontede renda vital para o Egito. "Agora, as pessoas começam a dizer que ele nãoé tão ruim assim, é até simpático, tem cara boa", descreve a jornalistaRanda Achmawi. Na avaliação dela, a repercussão do vídeo divulgado pela AlJazira foi simplesmente arrasadora – e o que pesou mais foi a referência àcausa palestina, um tema que mobiliza maciçamente os egípcios.

BATALHA DA PROPAGANDA A agitação na Indonésia e o protesto, bem controlado, no Egito:"Laden não é tão ruim, tem cara boa" 

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Entra aí outro golpe de astúcia de Laden. Após enviar seus seqüestradoressuicidas aos massacres em território americano, ele próprio seqüestrou acausa palestina. Depois de sair vitorioso em sua causa inicial – a luta contraos soviéticos que haviam invadido o Afeganistão –, Laden passou a sededicar, de maneira cada vez mais radical, a outra bandeira: expulsar osamericanos instalados em território saudita desde a guerra contra SaddamHussein. Os documentos, as declarações de guerra santa e os própriosataques terroristas praticados pela Al Qaeda tinham todos, basicamente,esse objetivo. A questão palestina era mencionada de passagem, no meio deuma lista de queixas abrangente. De repente, no vídeo divulgado há umasemana, logo depois de iniciados os bombardeios no Afeganistão, lá estavaLaden, transformado em paladino dos palestinos e das criancinhas iraquianasvitimadas pelo embargo americano, outra causa para a qual nunca deu

importância.

Trata-se de oportunismo evidente, mas há terreno favorável para isso nomundo muçulmano. Nesse universo de turbantes, instalou-se uma síndromedepressiva, provocada pelo atrito entre um passado de glórias e um presentede fracassos. Os regimes laicos, que prometiam a modernização, terminaramem ditaduras cruéis ou, no mínimo, ineficientes. Os regimes tradicionais,mesmo quando abençoados pelas benesses do petróleo, não conseguirampromover a guinada que traria progresso de verdade. A criação de Israelabriu uma chaga permanente e dolorosa. A esperança de cicatrizá-la com umacordo de paz que dê aos palestinos uma saída pelo menos parcialmente justa sofre um revés atrás do outro – e nenhum regime árabe jamais abriumão de manipular a causa palestina para desviar as frustrações da massa. Oapoio americano a Israel alimenta há décadas a fornalha onde crepita o ódioaos Estados Unidos, um sentimento que comanda escolhas irracionais, emque o inimigo do nosso inimigo é sempre nosso amigo não importam oshorrores que faça. A onda pró-Laden que varre os países islâmicos énovidade apenas quanto ao personagem. Há dez anos, quando SaddamHussein invadiu o Kuwait, houve manifestações similares a favor do tirano doIraque. Essa simpatia não mudou o rumo dos acontecimentos. Saddam foiderrotado pelos americanos. Agora, de novo, muita gente nos países

muçulmanos está ficando do lado errado. Do lado, inevitavelmente, doperdedor. 

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Nada pode. Nem música24 de outubro de 2001

Wali Jan, chefe da tribo Nurzai, é um dos homens mais importantes dacidade de Kandahar, quartel-general do Talibã. Dono do mercadopúblico, com 1 200 barracas e três séculos de existência, ele é tambémum dos comerciantes mais infelizes do planeta. Isso porque asrestrições impostas pela milícia fundamentalista são tantas que ocomércio se vê privado das mercadorias mais valiosas. "Os mulás nãoparam de proibir: televisão, vídeos, pinturas e até mesmo relógios comfotografias", queixou-se Wali Jan a um repórter europeu que visitou acidade em agosto, pouco antes de o Afeganistão se transformar no

campo de batalha da guerra ao terrorismo islâmico. "Não podemosmais vender fitas nem CDs, a não ser as Dez Mais do Talibã, que sãoterríveis." Desolado, o comerciante procurou o mulá Mohamed Omar, ochefe do Talibã, e perguntou-lhe como, com tantas proibições, o povopodia divertir-se. "Olhem as flores", aconselhou Omar, responsável poralgumas das mais bizarras proibições religiosas.

O regime do Talibã proíbe soltar pipa e criar passarinho, por exemplo.Em nome de Alá, evidentemente. Há uma explicação mais comezinhapara tal absurdo: na opinião de Omar, caçar passarinho ou empinarpipa poderia ser um pretexto para espiar mulheres sem véu no quintaldo vizinho. O Ministério para a Propagação da Virtude e Prevenção doVício, cujo trabalho é erradicar o pecado da forma como é definido peloTalibã, dedica especial aversão à música e aos instrumentos musicais.Não é permitido ouvir canções no rádio, em aparelho de som em casaou no toca-fitas do carro nem tocar instrumentos. A posse de fitas eCDs é punida com chibatadas e prisão. A única exceção são os cânticosreligiosos sem acompanhamento de instrumentos e as marchaspatrióticas transmitidas pela rádio estatal. O mulá Omar sustenta que a

música "corrompe a todos, distraindo as pessoas de suas verdadeirasobrigações, que são reverenciar e rezar para Alá".

Antes de o Talibã conquistar a maior parte do território do Afeganistão,em 1996, a melosa música romântica dos vizinhos Irã e Índia eram aspreferidas dos afegãos. As canções ocidentais também eram popularesdepois que Cabul foi cenário de um festival internacional patrocinadopor uma fábrica de cigarros, nos anos 70. Antes do Talibã, a músicaestava presente em toda atividade da população, com exceção dosfunerais. Com o mesmo fanatismo com que dinamitou imagens

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milenares de Buda, o Talibã destruiu os arquivos de música folclóricada rádio Cabul. A ojeriza à música não é uma excentricidade exclusiva

dos fanáticos afegãos. Outros regimes fundamentalistas islâmicosacreditam que Alá prefere o silêncio. A atividade musical é restrita naArábia Saudita. No Sudão, os músicos não podem tocar à noite. Osaiatolás do Irã baniram a música ocidental e proibiram as mulheres decantar. Não é de espantar que, diante da proibição, as músicas deMadonna, Whitney Houston e Britney Spears sejam as maisrequisitadas no próspero mercado negro de CDs de Teerã.

Boa parte dessa mania de proibir o entretenimento tem raízes naArábia Saudita, reino fundado e governado por seguidores de uma

seita purista, a Wahabi. Lá, por exemplo, mulheres não podem dirigirautomóvel, coisa que fanáticos de outros países procuram imitar.Como se explica tal proibição, visto que o Profeta viveu 1.300 anosantes da invenção desse veículo? "Essa é uma questão da cultura localsem nenhuma relação com o islamismo", explicou a VEJA umdiplomata saudita. O modo com que cada fanático interpreta os textossagrados é motivo de discórdia entre os regimes fundamentalistas. É ocaso da lei talibã que obriga os homens a usar barba longa, como a doProfeta, e não é imposta em outros países fundamentalistas. Ou daproibição do cinema, que ocorre na Arábia Saudita e no Afeganistão,

mas não no Irã. Há 300 salas de exibição no país dos aiatolás xiitas, eos filmes iranianos são a nova coqueluche entre os cinéfilosdescolados. Nesse caso, contudo, trata-se realmente de uma sériaquestão teológica. Como Alá proibiu ídolos à semelhança do homem,um fanático pode ver sacrilégio em qualquer representação, mesmoem fotografias. Isso nos leva de volta ao infeliz Wali Jan, o chefe tribalde Kandahar. Recentemente, ele importou grande quantidade de sabãoda Malásia. Logo que o produto foi colocado à venda, a polícia religiosatalibã percebeu a existência de uma pequena silhueta de mulher num

canto da embalagem. O resultado: todo o estoque foi incinerado empraça pública. 

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A teologia da fanatização24 de outubro de 2001

As madraçais, escolas islâmicas do Paquistão, são diferentes das outrasformadoras de religiosos muçulmanos que se espalham pelo mundo árabee em algumas partes do Ocidente. São internatos para homens de 5 a 30anos, todos muito pobres, que permanecem isolados de suas famílias edas notícias do mundo, mergulhados apenas no estudo do Corão  e dasleis islâmicas. Essas escolas tornaram-se um problemão político noPaquistão e na Índia. É de suas fileiras que saem os mais fanáticosmilitantes muçulmanos. Acredita-se que muitos dos terroristas do grupoAl Qaeda, de Osama bin Laden, tenham estudado nessas escolas. As

madraçais são uma criação do século XI, quando a religião de Maomé játinha sólidos quatro séculos de existência e era hegemônica numa regiãoenorme do planeta que ia da Ásia Menor ao leste da África. Elas nascerampara formar juízes, professores, matemáticos e astrônomos. Sua funçãopuramente doutrinária era secundária.

As madraçais hoje nem de longe lembram suas sisudas ancestrais. NoPaquistão há cerca de 7.000 madraçais, que atendem 600.000 alunos.Metade delas ainda consegue manter certa tradição de ensino. A outrametade caiu na teologia da fanatização. Infiltradas por partidos e grupos

clandestinos, passaram a formar militantes radicais. Durante a infância ea puberdade eles ouvem todos os dias que o Ocidente é a fonte de todomal e que a maior glória é morrer por Alá. A politização das madraçaiscomeçou em 1979, ano da revolução iraniana e da invasão do Afeganistãopelos soviéticos. Foram dois eventos cruciais. A revolução iranianamarcou a chegada do clero islâmico ao poder político num país de peso. Ainvasão do Afeganistão pelos soviéticos criou uma resistência armada aoinvasor que foi servir-se de combatentes entre os estudantes religiosos. OTalibã, termo que pode ser traduzido por "estudante", nasceu nasmadraçais. A multiplicação dessas escolas no Paquistão é também um

subproduto da invasão soviética. Milhões de refugiados afegãos cruzarama fronteira. Isso obrigou o Paquistão a autorizar a criação em massa deescolas religiosas para dar-lhes algum tipo de educação. Essa educaçãoacabou sendo baseada no ódio aos soviéticos – que mais tardedegeneraria em aversão ao Ocidente. "Os jovens saem de nossasmadraçais com uma visão de mundo que inclui um compromisso com aslutas islâmicas, armadas ou não", diz Gulzar Khan, ex-comissário pararefugiados da fronteira noroeste do Paquistão. "Agora que os EstadosUnidos e a Inglaterra declararam guerra a nossos irmãos talibãs, nóstodos estamos em guerra", completa Abdul Rashid Ghazi, mulá da famosa

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Mesquita Vermelha, de Islamabad, um dos líderes radicais islâmicos doPaquistão. "As madraçais precisam preparar gente para essa guerra."

Antes dos atentados terroristas de 11 de setembro, Pervez Musharraf,presidente do Paquistão, dizia que as madraçais eram apenas parte do"sistema de assistência social aos pobres". Depois dos atentados, apressão internacional forçou-o a uma revisão. Musharraf colocou muitasdas escolas islâmicas sob vigilância. "Há influências de extremistaspolíticos e religiosos em nossas madraçais, por isso temos de mudarnossa estratégia de educação. Estamos propondo às escolas que ensinemoutros assuntos, além da religião, a seus alunos, para que os rapazespossam integrar-se à vida do país. Vamos agir para que nossas madraçaisnão sejam escolas de terrorismo ou de militância política", disse.

Estão sob investigação especialmente as escolas de Quetta, cidadevizinha do Afeganistão. "Os moderados da região da fronteira estãopreocupados com a reputação das escolas. Nem todas elas, afinal, sãoformadoras de fanáticos", diz Mansoor Akbar Kundi, professor de ciênciapolítica da Universidade do Baluquistão, em Quetta. Segundo o professorKundi, existem mais de 100 madraçais na cidade e nos arredores. Destas,umas dez são escolas dominadas por "maulanas", ou mestres,comprometidos com a liderança talibã do vizinho Afeganistão. Mesmoassim, nem todos os alunos formados atendem ao apelo para se alistaremnas milícias. Kundi calcula que essas escolas tenham, em média, 250alunos entre 16 e 22 anos. Apenas duas dezenas deles confessam quevão juntar-se aos guerreiros de Alá. A maioria dos alunos pobresformados em Quetta, embora submetidos a um sistema de lavagemcerebral para livrá-los de "todas as más influências ocidentais", sai dasescolas para disputar empregos comuns no governo do Paquistão. "Elesestudam as leis islâmicas, medicina e até administração pública", dizKundi.

As madraçais têm denominações pomposas. Uma delas, encravada na

beira do deserto na fronteira noroeste do Paquistão, é famosa por terformado ou servido de abrigo a diversos líderes do Talibã, entre eles omulá Omar, chefe supremo do Afeganistão. Ela se chama Jamia DarulUloom Haqqania. Em árabe, isso significa Universidade do ConhecimentoJusto. Só o nome tem pompa, diga-se. A Haqqania mantémpermanentemente cerca de duas centenas de alunos. Eles ocupam meiadúzia de dormitórios e se ajeitam em ralos cobertores de lã espalhadossobre o chão de concreto. O currículo é quase totalmente islâmico: oCorão, gramática árabe para ler o Corão e história do Islã e, para variar,matemática. Os alunos das madraçais do Paquistão formam entre os

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 jovens mais pobres do país. Pais ricos, de classe média ou remediadosnão mandam os filhos para as madraçais. Como o presidente paquistanês

Pervez Musharraf sustentava, elas são mesmo o último recurso de um jovem depauperado de um país islâmico. Muitos se internam apenas pelacomida, que é frugal mas nunca falta. Os alunos passam de oito a noveanos vivendo em suas instalações.

O Talibã encontrou nesses internatos um terreno fértil de doutrinação. Nopróprio Afeganistão cerca de trinta dessas escolas se declararam "jihad-madraçais" – ou seja, escolas da guerra santa. "Elas formam um tipoespecial de muçulmano, um homem altamente comprometido com a fé",descreve Rehmatullah Kakazada, cônsul-geral do Afeganistão em Karachi,no Paquistão. Elas têm entre 1.000 e 2.000 alunos cada uma. Para muitagente essas jihad-madraçais não passam de campos de treinamento deguerrilheiros e terroristas. Parece uma aposta óbvia. As únicas atividadesconhecidas dessas escolas são a leitura do Corão e o intenso treinamentofísico e militar. Os americanos as conhecem bem. "Nos tempos daocupação soviética do Afeganistão eles incentivavam os estudantesreligiosos a fazer treinamento militar", diz Hameed Gul, ex-comandantedo ISI, o serviço de espionagem do Paquistão. Os governos da regiãodescobriram – ou foram obrigados a descobrir – tarde demais o poder dasmadraçais. A maior dificuldade em controlá-las está no fato de que asescolas são independentes. Não podem ser vendidas, porque foramconstruídas e são mantidas com dinheiro doado a título de caridade.Como formam os fiscais do cumprimento da "charia", o código deprincípios morais e legais do Islã, são muito poderosas. Na semanapassada, o presidente Musharraf, numa tentativa de torná-las maisecléticas, ofereceu nomear professores de química, matemática egeografia para as 7.000 escolas. Só 700 aceitaram a oferta. 

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A China e seus talibãs31 de outubro de 2001

O ISLÃ NA CHINA Uigures em Xinjiang: a China pode contar com o silêncioamericano na repressão ao separatismo muçulmano naprovíncia 

A guerra contra o terrorismo está fazendo a felicidade de um governoinesperado – o da China. Desde que o fundamentalismo islâmico se revelouum cruel inimigo da civilização, o governo de Pequim percebeu que podetratar com mão pesada as aspirações separatistas de seus própriosmuçulmanos, sem que os Estados Unidos reclamem de violação dos direitoshumanos. O problema chinês está concentrado na província de Xinjiang, nonoroeste do país. A região faz fronteira com oito países da Ásia Central –dois deles, o Paquistão e o Tadjiquistão, diretamente envolvidos no conflitodo Afeganistão. Xinjiang é habitada por 8 milhões de uigures, povomuçulmano de língua turca incorporado à China no século XIX. O medo

chinês aos uigures é ancestral – barrar o avanço desse povo das estepes foiuma das razões para erguer a Grande Muralha, a construção de 7.300quilômetros de comprimento que corta o país de leste a oeste e é tão grandeque pode ser vista do espaço como uma fita estendida no solo chinês. Nomomento, o motivo de temor é mais moderno. A China teme que ocrescimento do movimento separatista uigur ponha fogo no delicadorelacionamento da etnia han (que representa 92% do 1,3 bilhão de chineses)com as muitas minorias existentes no país.

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O Partido Comunista chinês sempre viveu às turras com as minorias. Damesma forma que fez no Tibete, ocupado nos anos 50, a China impôs aXinjiang um regime cruel, de formato colonialista. Em ambos, tentousuplantar numericamente a população local com a instalação de milhões decolonos chineses. Há cinqüenta anos, os chineses eram 5% da população daprovíncia e hoje já são 40%. Também tentou incentivar a miscigenaçãooferecendo o equivalente a 250 dólares ao uigur que se casar com umachinesa – mas os casamentos mistos são raros. A religião também ésuspeita. Crianças são proibidas de freqüentar a mesquita, e as mulherescom o tradicional véu islâmico não são atendidas em repartições públicas.

A província é uma das mais pobres da China, mas passa por um período deacelerado desenvolvimento com a extração de petróleo e o cultivo do

algodão. No entanto os chineses ficam com os melhores empregos e osuigures estão cada vez mais pobres. Xinjiang é um lugar estratégico devido asuas riquezas. Corresponde a 15% do território e concentra um terço dasreservas de petróleo da China. O dia em que o Uzbequistão, o Turcomenistãoe o Casaquistão decidirem exportar petróleo para a China, a província será ocorredor natural para os dutos. O resultado da opressão foi que o movimentoseparatista ganhou impulso na última década. Muitos separatistas entraramem contato com grupos extremistas muçulmanos nos países vizinhos. Outrosforam lutar contra os russos na Chechênia. Uns 200 ou 300 acabaram noscampos de treinamento da Al Qaeda, a organização terrorista de Osama binLaden. Na semana passada, pelo menos quinze deles foram mortos pelosbombardeios americanos nas trincheiras do Talibã perto de Kandahar.

Os separatistas se puseram a atacar tropas chinesas e a colocar bombas emônibus e estações ferroviárias. Pequim reagiu com brutalidade. Cerca de 200uigures foram fuzilados entre 1997 e 1999. Cinco foram condenados à morteneste mês, um dia antes de o presidente George W. Bush conversar emXangai com o presidente Jiang Zemin e obter seu apoio para a luta contra oterrorismo. Habitualmente, os Estados Unidos protestam contra os abusos dedireitos humanos no Tibete e em Xinjiang. Desta vez, contudo, osamericanos contornaram o assunto. O raciocínio é simples: como precisa da

ajuda chinesa para combater os fundamentalistas islâmicos, Washington nãopode mais reclamar da repressão chinesa aos uigures. A lógica vale tambémpara a Rússia e os separatistas muçulmanos da Chechênia. Todos podem sertratados sem piedade, como expressões regionais do fanatismo talibã. 

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A guerra real ao fanatismo31 de outubro de 2001

MISÉRIA EM MASSA As nações islâmicas tiveram nas duas últimas décadasas mais altas taxas de natalidade do mundo. Em algunspaíses, a maioria da população é miserável e tem entre16 e 30 anos: terreno fértil para o fanatismo

No dia 11 de setembro, o mundo assimilou horrorizado os atentadosterroristas nos Estados Unidos. Seis semanas depois, já se estabeleceu aconvicção de que o episódio está longe de se restringir a meros ataquesdo terror muçulmano, por mais hediondos que tenham sido. Vive-se nadamenos que uma mudança histórica. Enquanto no Afeganistão os militaresda aliança ocidental marcham para Cabul, a capital corroída de um dosmais miseráveis países do mundo, o resto do planeta trata de se adaptarmentalmente a um novo panorama internacional no qual não apenas adiplomacia, a economia e a esfera militar sofreram mudanças. Houvetambém, e principalmente, uma alteração de conceitos. A partir de 11 de

setembro, o mundo pensa de forma diferente.

"A história voltou das férias", como expressou o articulista George F. Will,da revista semanal americana Newsweek.  Nunca, até onde a memóriaalcança, uma civilização foi tão escrutinada como a muçulmana estásendo nos dias atuais. Uma cultura e uma fé que viviam relegadas àperiferia do mundo dito civilizado despertam agora um interesse voraz empessoas que até outro dia dispunham de pouquíssimas referências sobre ouniverso islâmico. Os governos das nações poderosas também estãoávidos por entender e agir de forma a evitar uma explosão nas

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sociedades dos turbantes que elegeram como seu herói o terroristaOsama bin Laden e como bandeira a guerra santa aos valores ocidentais.

Na semana passada, o presidente americano George Bush visitou a Chinae obteve do rival asiático um inédito "apoio irrestrito" à luta contra oterrorismo. Pela primeira vez, o governo de Israel cedeu às pressõesinternacionais lideradas pelos americanos e começou a retirar seustanques da Cisjordânia, que ocupara para vingar o assassinato de umministro por militantes palestinos. A idéia de criar um Estado palestinosaiu em poucos dias da classificação de inaceitável para a de inevitável.Alegando que sua luta perdeu apoio internacional depois dos atentadosaos Estados Unidos, o grupo terrorista IRA, movimento revolucionário daIrlanda do Norte, começou, na semana passada, a depor suas armas. Édisso que se trata: as engrenagens da História estão se movendo diantedos olhos de uma geração.

"As rivalidades locais estão rapidamente perdendo a razão de ser diantedas fabulosas mudanças de alcance mundial", disse o pesquisadoramericano Edward Luttwak, que foi estrategista do Pentágono durante ogoverno Reagan. A apreciação que Luttwak faz do momento atual é aclássica definição das reviravoltas históricas – acontecimentos deproporções planetárias que empalidecem e magnetizam os eventosmenores e os fazem girar em torno do novo centro de atraçãogravitacional. São momentos transformadores. Um dos mais estudados éo fim do domínio colonialista britânico nos anos 40. O mundo emergiumudado ao término da II Guerra Mundial. A ordem natural das coisas –que, segundo o ditado popular, incluía "o Sol, as estrelas e o ImpérioBritânico" – era outra. Uma a uma, as colônias inglesas foram setornando independentes até que, em 1947, os ingleses saíram da Índia,onde estiveram pelos 300 anos precedentes. Desde então, a idéia daocupação pela força de um país por uma potência estrangeira passou aser condenada universalmente. O que parecia natural antes passou depoisa ser considerado repulsivo.

A Guerra Fria foi outro desses momentos definidores. Russos eamericanos puseram e depuseram governos, escolheram quem seriaherói ou vilão nos países de sua área de influência direta. Com o fim daGuerra Fria, o mundo deu outra guinada. A muitos parecia definitiva. Numartigo quase lendário entre os acadêmicos, o pesquisador americanoFrancis Fukuyama escreveu que o "fim da História" havia chegado, com aderrota do comunismo real pela queda do Muro de Berlim. O mundo,segundo Fukuyama, nunca mais se debateria com eventos políticos comforça sísmica suficiente para mudar completamente sua estrutura. A

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democracia liberal e sua base material de sustentação, a economia demercado, tinham vencido definitivamente. Na semana passada, Fukuyama

escreveu ao Wall Street Journal para sustentar com brilhantismo que suatese permanece de pé, "pois o islamismo radical jamais será umaalternativa viável de sociedade para o Ocidente". No mesmo artigo, elereconhece, no entanto, que não se pode classificar o atual momento emque vivemos senão de "histórico".

Os analistas começam agora a se perguntar que tipo de mundo vaiemergir do pós-guerra ao terror. Não existem respostas simples. Atéporque se está no epicentro do turbilhão transformador. É quaseimpossível enxergar os eventos com imparcialidade e distanciamento. Masalgumas tendências muito fortes estão emergindo de forma distinta. Amais interessante delas é a constatação de que pode estar para começara mais justa de todas as guerras, aquela que, pela primeira vez, vaicuidar da distribuição mais eqüitativa da renda, da saúde, da educação eda democracia. "A vitória contra Laden, se e quando vier, não será o fimda ameaça terrorista aos Estados Unidos. Essa ameaça só vai ceder se forbem-sucedido um esforço profundo por parte dos americanos e doOcidente para aliviar a miséria no mundo em desenvolvimento", escreveuAnthony Lewis no jornal americano The New York Times. O presidenteFernando Henrique Cardoso definiu esse esforço como uma atitudeimprescindível. Ele o chamou de "globalização solidária". Anteriormente a11 de setembro essa pregação seria considerada utópica, inalcançável.Agora, a ordem entre os países poderosos parece ser agir antes que opior aconteça. Até 11 de setembro prevalecia a idéia de que, cedo outarde, os países pobres seriam bafejados pela brisa modernizante dademocracia e da economia de mercado. Essa concepção está liquidada."Estávamos tentando ensinar os países a correr, quando muitos deles malpodiam caminhar", disse James Wolfensohn, presidente do BancoMundial.

Não se trata da adesão repentina a uma visão caridosa dos países e dos

povos que foram deixados para trás na corrida da modernização e dobem-estar. Tampouco se está diante da rendição à idéia de que oterrorismo é produto direto da miséria dos países islâmicos. O ódio aoOcidente, a seus liberalismos e ao esbanjamento material é, sem dúvida,um ingrediente da insatisfação popular no mundo islâmico. Mas o atoterrorista em si é um crime complexo, frio e calculista. É o resultado deuma ideologia fascista, em geral amparada logisticamente por governoscriminosos. Fossem a miséria e a opressão o alvo do terrorismo islâmico,o mais razoável seria que ele se tivesse abatido sobre Saddam Hussein, o

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ditador do Iraque, ou a família real da Arábia Saudita. Saddam já matoumais muçulmanos dissidentes que a intervenção americana no Oriente. A

monarquia saudita concentra entre seus familiares 40% do PIB do paísque governa com poderes ditatoriais, uma apropriação de riquezaindecente que se repete em vários países muçulmanos, como nosultanato asiático de Brunei, onde tudo o que se produz pertence à casagovernante. A mudança de mentalidade que parece estar em curso naslideranças dos países ricos visa a aliviar as tensões que não justificam oterrorismo diretamente, mas acabam por insuflá-lo. "É urgente começar aouvir os países pobres, os não-ocidentais. É preciso evitar um novoapartheid a todo custo", disse Samuel Huntington, o famoso professor deHarvard e autor da tese do "choque das civilizações".

Nenhum país islâmico fez a transição do Terceiro para o Primeiro Mundo.Poucos países africanos fizeram a transição do Quarto para o TerceiroMundo. Essa ascensão não é impossível. Taiwan, Hong Kong, Coréia doSul e Cingapura a realizaram. Imaginava-se que cedo ou tarde tambémas nações africanas e islâmicas radicais tenderiam a se modernizar e,nesse processo, seriam naturalmente apaziguadas. Essa idéia tambémmorreu. Em parte porque as sociedades islâmicas são resistentes àmudança. As africanas também. "Ambas as regiões não podemmodernizar-se sem perder sua identidade. Esse é o problema central", dizHuntington. O que fazer, então? Não há opção a não ser pela ajudadesinteressada, sem impor a condição de que o país beneficiado abrasuas portas para a cultura e a economia do mundo globalizado. OsEstados Unidos reservam apenas 0,1% de seu PIB para a assistência aospaíses pobres. Os ricos europeus e asiáticos não fazem coisa diferente. Dodiscurso à prática já houve avanços. O Banco Mundial está preconizandoum aumento substancial na ajuda às nações carentes. Está-se armandouma ofensiva internacional para combater a Aids na África. Ganha forçaaté mesmo a proposta de que a dívida externa dos países miseráveis teráde ser perdoada em sua totalidade. O governo americano parece sensívelà idéia já arraigada na opinião pública de que da sorte da centena demilhares de refugiados afegãos vai depender o rumo da guerra ao terror.Se os americanos fracassarem na ajuda humanitária imediata, estarãomandando um péssimo sinal ao resto do mundo. Na nova ordem isso éintolerável. 

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Reino da fantasia14 de novembro de 2001

Os Estados Unidos estão em guerra com a rede terrorista comandada porOsama bin Laden, mas a monarquia saudita, a maior interessada em cortar asasas desse ex-compatriota que lhe devota ódio assassino, tem concentradoforças sobre um outro inimigo: a imprensa americana. A fúria é tamanha quepôs em campo no início da semana passada o próprio príncipe herdeiroAbdullah, na prática a autoridade máxima do país em razão da semi-aposentadoria de seu irmão, o rei Fahd, eternamente doente e mais interessadoem contemplar os peixes que nadam atrás do vidro do gigantesco aquáriosubterrâneo montado em seu palácio de 3 bilhões de dólares. Recorrendo aovocabulário consagrado pelos regimes autoritários, Abdullah acusou a imprensa

de mover uma campanha de difamação contra a Arábia Saudita – e, paracomplicar uma questão já complexa, meteu a religião no meio. "A campanhaferoz da mídia ocidental contra o reino não passa de uma manifestação de seuódio pelo sistema islâmico", acusou o príncipe.

A diatribe de Abdullah, um homem de 77 anos e cabeça em geral tão fria quantoseus olhos azuis, foi desencadeada por um artigo do Wall Street Journalpropondo que os Estados Unidos simplesmente rompam o relacionamentoestratégico com a Arábia Saudita e abandonem os xeques do petróleo à própriasorte, nem que seja ao preço de vê-los trocados por um regime hostil e maisfundamentalista ainda. O artigo reproduz a exasperação de uma corrente do

pensamento político americano ante a ambigüidade dos sauditas, aliadosrelutantes dos Estados Unidos. Com uma mão, os governantes da ArábiaSaudita empenham toda a cooperação no combate ao terrorismo. Com a outra,não conseguem, ou não querem, desenredar a tortuosa teia de interesses queos mantém conectados aos islamitas mais radicais, inclusive a Al Qaeda deOsama bin Laden, o homem que gostaria de exibir as cabeças da família realenfileiradas como quibes numa bandeja. Romper com os sauditas e largar mãode todo aquele petróleo? "Eles estão cheios de dívidas e precisam dospetrodólares tanto quanto os países ocidentais precisam do petróleo. Umembargo por motivos políticos pode jogar o mundo desenvolvido na recessão,mas os países ocidentais se sairiam melhor que as nações do Golfo", provocou o

Wall Street (o tom de valentia fica até amenizado diante de gente maisexaltada, como o jornal New York Post, que, num surto de talibanismo, tambémpropôs a ruptura com os sauditas, mas acompanhada de uma ocupação doscampos petrolíferos, equivalente a uma declaração de guerra).

O nó no relacionamento entre os dois países, tão mutuamente crucial, aindamais neste momento, retrata as contradições que estão na própria gênesenacional do reino saudita, unificado no início do século XX sob a espada deAbdul Aziz ibn Saud, o fundador da dinastia no poder, e a bandeira verde-Islã deuma seita fundamentalista nascida nos rigores do deserto, os wahabitas. Desde

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então, o clã Al Saud oscila em constante movimento pendular. De um lado,deriva sua legitimidade da condição de guardião dos lugares santos, Meca eMedina, e do compromisso, que está na origem do wahabismo, de propagar suapuritaníssima versão do islamismo. Para cumprir esse compromisso, e comprara boa vontade dos ultrafundamentalistas que vivem rosnando em seuscalcanhares, a família reinante sempre foi a maior fornecedora de dinheiro àsassociações beneficentes que servem de fachada para os islamitas em todo omundo muçulmano. Quando os soviéticos invadiram o Afeganistão, na viradados anos 80, os Estados Unidos recorreram à dinheirama saudita para rachar oscustos da campanha de resistência aos infiéis comunistas. Além dospetrodólares, a Arábia Saudita também mandou batalhões de jovens idealistas,dispostos a se sacrificar na Jihad, entre eles um certo Osama bin Laden – e oresto da história já é sobejamente conhecido.

O outro movimento do pêndulo empurra a Arábia Saudita para a modernização,nem que seja a versão trôpega que lhe valeu o apelido de "reino da fantasia".Também a empurra para o alinhamento com os países ocidentais que lhecompram o petróleo e em direção ao regaço seguro da superpotênciaamericana. A dependência ficou clara quando Saddam Hussein deglutiu o Kuwaite, encostadinho na fronteira saudita, já se preparava para traçar os miraculososcampos onde jaz um quarto das reservas mundiais de petróleo. Sem osamericanos e a surra que aplicaram nas tropas de Saddam, toda a fulguranteriqueza dos sauditas iria para o fundo do ralo, junto com a família real, ospalácios de mármore, as fontes onde Exércitos inteiros poderiam se banhar empleno deserto, os fabulosos shopping centers onde mulheres cobertas da cabeçaaos pés torram milhões, as faraônicas obras em Meca e Medina (17 bilhões dedólares até agora, em grande parte destinados a um certo Binladin Group, aempresa da família do próprio). Dez anos depois, no entanto, é praticamenteimpossível achar o mais remoto resquício, se não de gratidão, pelo menos dealgum reconhecimento. Ao contrário, em todas as esferas da vida nacional, dospríncipes Al Saud à imprensa oficial, dos ulemás aos professores universitários,grassa o mais indisfarçado antiamericanismo. Pouco antes dos atentados desetembro, o príncipe Abdullah mandou uma carta a George W. Bush na qualdizia que as relações bilaterais se encontravam numa "encruzilhada" e estava nahora de cada um dos países cuidar dos próprios interesses. Foi essa ameaça deruptura branca que propiciou o artigo desaforado do Wall Street Journal  propondo ao governo americano aceitar o desafio e mandar os sauditas passear.Bush, obviamente, não vai fazer nada disso – ao contrário, telefonou paraafagar o ego de Abdullah. A Arábia Saudita é mais um dos aliados fundamentaisna campanha contra os loucos de Alá que querem incendiar o mundo nafogueira integrista. Nessa condição, os sauditas podem abusar. Por enquanto. 

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Era como na Idade Média28 de novembro de 2001

LUZ DO SOL Centenas de mulheres sem a burca se reuniramem Cabul, na terça-feira passada, e exigiram odireito de trabalhar. Muitas delas ousaram exibirunhas pintadas

O mundo sombrio criado pelo Talibã estava reduzido, na sexta-feirapassada, a uma nesga de território no sul do Afeganistão e a uma últimafortaleza no norte, Kondoz, cercada e negociando a rendição. Em algumgrotão continuava escondido o terrorista Osama bin Laden, com suasquatro mulheres. No restante do país, a população começavarapidamente a tirar vantagem da libertação. Televisores e videocassetesreapareceram nas prateleiras das lojas, homens fizeram fila nasbarbearias para raspar a barba, a primeira sessão de cinema em Cabulatraiu uma multidão. Como se fosse celebração, viram-se pipas – umpassatempo popular proibido por anos – voar alto sobre as casas. Nos

bazares e táxis de Cabul, ouve-se música alta pela primeira vez desde1996. O pesadelo do obscurantismo medieval, contudo, ainda paira comouma advertência sobre o Afeganistão. A lembrança do cotidiano de terrorestá bem viva. O futuro é incerto e depende de chefes tribaisacostumados a fazer as próprias leis.  Não há no Afeganistão umarevolução feminista queimando burcas. Mas se a esperança de um futurocivilizado pode ser personalizada, reside no rosto de centenas demulheres que, na terça-feira da semana passada, se reuniram em Cabulpara exigir o direito de trabalhar. O Talibã as tinha proibido de exercerqualquer profissão, exceto a medicina. Também as obrigava a andar

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cobertas dos pés à cabeça. Num cenário desses, a simples exibição à luzdo sol de rostos femininos já é um progresso considerável. O fato é que

as mudanças nas cidades liberadas pelo avanço da Aliança do Norte têmsido rápidas em várias facetas. Não se trata, contudo, de fazer asociedade afegã funcionar da noite para o dia de acordo com os padrõesmodernos de democracia e liberdade. Liberdade no Afeganistão é, paracitar um exemplo banal, o direito de expor a foto do vovô na parede. Sóagora, com jornalistas estrangeiros podendo circular pelas cidades afegãs,se conhece com detalhes mais vívidos como foi assustador o cotidiano sobo regime dos mulás no Afeganistão. 

Amy Waldman, repórter do jornal The New York

Times,  examinou na semana passada os registrosda prisão mantida em Herat pelo Ministério para aPropagação da Virtude e Prevenção do Vício. Aliencontrou burocraticamente anotadas 3.183prisões de sapateiros, engraxates, vendedores deóleo de cozinha e alfaiates, surpreendidos fazendonegócios no horário das orações de sexta-feira. Hátambém o registro de homens punidos com algunsdias de detenção por usar a barba curta demais ouexibir um penteado "à beatle" (estes tiveram a

cabeça raspada). A burocracia do Talibã, escreveuWaldman, foi inepta em todas as áreas daadministração, exceto numa: a aplicação sempiedade do código penal imposto pelo líder damilícia, o mulá Mohamed Omar. A leitura dessecódigo é, pode-se dizer, um passeio revelador porsua mente perturbada. Por razões que Freudexplicaria melhor, o mulá se preocupava acima detudo com o confinamento das mulheres.

O primeiro artigo do código trata exatamente do uso do véu. Se dil;ão,exceto numa: a aplicação sem piedade do código penal imposto pelo líderda milícia, o mulá Mohamed Omar. A leitura desse código é, pode-sedizer, um passeio revelador por sua mente perturbada. Por razões queFreud explicaria melhor, o mulá se preocupava acima de tudo com oconfinamento das mulheres.

O primeiro artigo do código trata exatamente do uso do véu. Se algumamulher mostrasse o rosto em público, "sua casa seria marcada  e seumarido punido". Mulheres não podiam ser tratadas por médicos do sexo

O LEÃO DE CABUL Marjan, o leão solitário dozoológico de Cabul, matou umtalibã que invadira sua jaula parademonstrar bravura. O irmão domorto vingou-se com umagranada, que tirou um olho edeformou o focinho do animal 

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masculino e, por causa disso, muitas pacientes morriam por falta deatendimento mesmo quando conseguiam chegar a um dos raros postos

de saúde. Todas estavam proibidas de falar com homens que não fossemda família. Não podiam rir alto, aparecer em manifestações públicas, usarcores fortes, praticar esportes nem estudar. Todos os nomes de lugarespúblicos que tinham a palavra "mulher" foram trocados. Exemplo: OJardim das Mulheres foi rebatizado de O Jardim da Primavera. Espancarmulheres por razões disciplinares era um fenômeno rotineiro no regimeTalibã. A polícia religiosa usava o chicote se visse algum tornozelo pelarua. Mulher que usasse salto alto e barulhento, ou meias finas demais,também entrava na chibata. O Unicef, órgão das Nações Unidas para ainfância, organizou uma conferência sobre o direito da criança em Cabul,em 1999. Quando os agentes do Ministério para a Propagação da Virtudee da Prevenção do Vício chegaram, momentos antes do início do evento,acharam que o lençol que separava homens e mulheres era insuficiente.Às pressas, os organizadores tiveram de realizar a reunião em duas salas."Os conferencistas ficaram correndo entre o 1º e o 2º andar", contou aVEJA a americana Paula Claycomb, que foi coordenadora de comunicaçãodo projeto do Unicef no Afeganistão.

Com furor fanático, os clérigos talibãs se voltaram contra 2.750 peças doacervo do Museu Nacional de Cabul no ano passado. As esculturas foramdestruídas a pedradas e machadadas, numa operação comandadapessoalmente pelo ministro da Cultura e o das Finanças. As obras antigasretratavam seres vivos – o que, de acordo com a interpretação do Talibã,é uma forma de idolatria. Um arqueólogo e um historiador do museuforam obrigados, com dor no coração, a acompanhar a destruição. Mesesdepois, em março deste ano, o Talibã destruiu com dinamite duasimagens gigantescas de Buda, cavadas em pedra entre os séculos III e V,que constituíam o principal patrimônio arqueológico do Afeganistão. Nadaera deixado ao acaso ou à imaginação dos afegãos. A embalagem deprodutos importados era examinada e todas a imagens precisavam sercobertas com tinta ou rasgadas, sobretudo as femininas.

O código penal do mulá Omar inclui uma impressionante lista de "coisasimpuras", entre elas música e esmalte de unha. Todas as pessoas comnome considerado não islâmico tiveram de trocá-lo. Aqueles que criavampombos iam para a cadeia até que os "pombos sumissem de sua casa".Quem vendesse uma pipa era condenado a três dias de cadeia. A curiosaexplicação para a proibição das pipas, um passatempo popular noAfeganistão, era o temor de que alguém se aproveitasse para subir nomuro ou no telhado e, assim, espiar as mulheres no quintal do vizinho.

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A maior parte dos dirigentes afegãos era formada por homens criados emaldeias, sem instrução formal. Em Herat, a repórter americana Amy

Waldman foi informada de que a única preocupação do governador-geralda província era se os funcionários tinham a cabeça raspada, usavambarba longa e turbante e faziam as orações na hora certa. Não à toa, aadministração do país virou um caos. O comportamento dos milicianos,fanáticos e analfabetos, era imprevisível. Para demonstrar bravura, umdeles pulou dentro da jaula de "Marjan", o solitário leão do Zoológico deCabul, que, faminto, comeu o invasor. Fiel ao código de honra afegão, oirmão do morto vingou-se jogando uma granada no animal, que perdeuum olho na explosão. A população aprendeu a dissimular. Esmalte deunha, instrumentos musicais, gravadores, CD-players, fitas, televisores etudo o mais que apareceu de repente nas lojas afegãs depois daderrocada talibã já estavam por lá, só que ocultados. "As pessoasfreqüentavam salões de beleza clandestinos e faziam festas, ouviammúsica e tocavam instrumentos às escondidas. Mas tomavam o cuidadode colocar colchões na porta para abafar o som", contou a VEJA opaquistanês Ahmed Rashid, autor de um respeitado livro sobre o Talibã.

Muitas famílias não aceitavam pacificamente a decisão de proibir asmulheres de ensinar e estudar. Sobretudo no norte do Afeganistão,tradicionalmente os pais se orgulhavam de mandar as filhas para aescola. Estima-se que 30.000 meninas estudavam em 600 escolasclandestinas só na região fronteiriça com o Paquistão. Em algumasregiões, os governantes muitas vezes faziam vista grossa. "O Talibãsabia que dávamos apoio material a escolas informais em Cabul", dissea VEJA o alemão Rudy von Bernuth, vice-presidente da organizaçãonão-governamental Save the Children. É irreal imaginar que asociedade afegã possa ser modernizada da noite para o dia. Na quarta-feira da semana passada, o fétido Rio Cabul, que corta a capital,estava cheio de mulheres lavando roupa em público – coisa que oTalibã proibia expressamente. Diante da surpresa dos jornalistas, uma

delas apressou-se em explicar, por trás da burca: "Estou aqui porquenão tenho água em casa". A vida no Afeganistão está mais leve, mascontinua um pesadelo. 

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PRIMEIRA SESSÃO Depois de cinco anos sem irem ao cinema, moradores deCabul disputaram um lugar na primeira sessão. O programafoi duplo: um filme de guerra afegão e um novelão indiano

MERCADORIAS O comércio afegão ganha nova vida sem asrestrições do Talibã. Em Herat, perto da fronteiracom o Irã, comerciante reabriu loja de televisores

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Censura eletrônica28 de novembro de 2001

Como tudo o que representa uma revolução, a internet também teminimigos. Um deles é a Arábia Saudita, que acaba de abrir concorrência parasubstituir seus programas de vigilância da rede mundial. Os sauditas têm umcomputador central por onde passam todas as conexões à web feitas no país.A idéia é modernizar um sistema que impede que determinados endereçossejam acessados. 

Esse bloqueio visa a evitar a exibição de mulheres nuas, debates sobre o Islãe críticas à família real. É censura. É também um negócio que atraiufabricantes de software de todo o mundo, alguns se oferecendo paratrabalhar de graça. A empresa vencedora deverá faturar 8 milhões dedólares por ano. O dinheiro é o de menos. O ganhador da concorrênciaconquistará uma vitrine para se exibir a dezenas de outros países e amilhares de entidades que desejam controlar, em níveis variados, o que aspessoas podem ou não acessar.

A censura eletrônica também é praticada em Cuba. Na ilha de Fidel Castro, ainternet é restrita a sites escolhidos pelo governo, como uma espécie de redelocal, acessível a quem tem autorização especial. Na China, a restrição éfeita por fiscais que monitoram os cibercafés. Usuários domésticos, vigiados

eletronicamente, acabam presos se flagrados navegando em páginasproibidas. A um custo entre 5 e 15 dólares por usuário a ser reprimido,qualquer ditadura poderá contratar os serviços de quem vencer aconcorrência. Esses sistemas vasculham cada página colocada na rede.Palavras-chave e a origem de determinadas páginas levam ao bloqueio.Como guerrilheiros virtuais, dezenas de sites tentam furar essas barreirasmudando de locação, de nome e de apresentação. Na Somália, eram tantosdesses sites que na semana passada os Estados Unidos cortaram o acesso dopaís à rede, desconectando um cabo de transmissão.

A tecnologia de controle pode ter um bom uso, aplicada, por exemplo, comofiltro para material criminoso. O Exército americano já usa esquemaparecido. Na Alemanha, há mercado para qualquer coisa que controlepropaganda nazista. "Esse é um ramo excelente de negócios", define GeoffHaggart, vice-presidente da Websense, uma das empresas de softwaresdesse tipo. 

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A derrota do terror12 de dezembro de 2001

TALIBÃ HUMILHADO Derrotados na batalha de Mazar-e-Sharif, no norte doAfeganistão, 3 350 talibãs se amontoam num presídio daAliança do Norte: anistia não beneficiará estrangeirosrecrutados por Laden

O mulá Mohamed Omar, chefe do Talibã, convocou seus seguidores a

lutar até a morte em Kandahar, capital espiritual e última fortaleza damilícia afegã. Pessoalmente, o Comandante dos Fiéis, como o barbudo deum só olho é chamado, adotou outra estratégia. Negociou com o inimigoa rendição e fugiu da cidade no meio da noite, para evitar a inevitávelpunição pelo barbarismo do regime que comandou. Ninguém sabequantos homens o acompanharam nessa jornada final – mas isso nãopreocupa ninguém, pois Omar é um personagem cuja importância seesvai junto com seu regime. O que se viu foram bandos talibãsaproveitando para saquear a cidade e escapar carregados de mercadoriasroubadas. Terminou assim, sem os propalados atos de martírio ou

heroísmo, o reinado da milícia que durante cinco anos impôs um regimede pesadelo fanático à maioria dos afegãos. A derrota do Talibã, agorareduzido a uns poucos bolsões recalcitrantes, não é o fim da guerra noAfeganistão, que continua dilacerado pelas rixas entre tribos e facçõesguerreiras. Mas, no que diz respeito à campanha movida naquele paíspelos Estados Unidos, na sexta-feira passada só restava completar umobjetivo essencial: a captura ou morte de Osama bin Laden, o homemque orquestrou os atentados contra Nova York e Washington emsetembro.

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Sem a proteção do Talibã, Laden via-se, na sexta-feira passada, nacondição miserável de ser um fugitivo em meio à neve que cai nas

montanhas do sudeste do Afeganistão. No dia anterior, a soldadesca daAliança do Norte vasculhou Tora Bora, a fortaleza encravada nas rochas, etomou a principal base usada pelo terrorista saudita e sua organização, aAl Qaeda. Esse complexo de cavernas a 56 quilômetros da cidade deJalalabad foi construído com a ajuda dos Estados Unidos, quando osafegãos combatiam as tropas soviéticas nos anos 80. O conhecimentodaquela época foi de grande ajuda, pois permitiu nas últimas semanasque os bombardeiros B-52 acertassem com grande precisão bombaspoderosas no interior das cavernas. Os bombardeios mataram o braçodireito de Laden, o egípcio Aiman al-Zawahiri, e, suspeita-se, outroscaciques importantes do terror. Mulheres e crianças, provavelmentefamiliares deixados para trás pelos terroristas árabes, foram aprisionadas– mas não se viu sinal do terrorista-chefe. A suspeita, até a sexta-feira ànoite, era que ele tenha fugido em direção ao sul, tentando alcançar afronteira com o Paquistão. Ou, como fizeram muitos combatentesestrangeiros, árabes e paquistaneses na maioria, tivesse seentrincheirado em algum lugar alto, esperando por uma oportunidade deescapar ao cerco. O terrorista não tem de se preocupar apenas com ossoldados das forças especiais americanas. Dois chefes tribais competiampara ver qual deles iria capturar ou matar Laden e reivindicar arecompensa de 25 milhões de dólares oferecida pelo governo dos EstadosUnidos. 

FIM DO SONHO Voluntários estrangeiros que lutarampelo Talibã detidos no norte afegão:abandonados à própria sorte

VITÓRIA RÁPIDA Fuzileiros em trincheirasperto de Kandahar: apoiologístico às milícias anti-Talibã e poucas baixas noAfeganistão

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A derrocada do Talibã ocorreu apenas três meses depois que os atentadosnos Estados Unidos iniciaram a guerra e dois meses após começarem os

bombardeios americanos no Afeganistão. É igualmente boa notícia acomprovação de que o fanatismo do regime e de seus hóspedesestrangeiros tornou-se tremendamente impopular entre os afegãos. OTalibã foi um governante brutal. Seus mulás tomaram ao pé da letra omemorável pronunciamento do aiatolá Khomeini – "Não há diversão noIslã". Eles baniram as pipas, a música, a televisão e proibiram asmulheres de estudar ou trabalhar. Os ladrões tinham as mãos amputadas,adúlteras eram apedrejadas até a morte e assassinos eram executadospessoalmente por familiares da vítima. A guerra no Afeganistão foi cheiade surpresas. Até um legítimo americano foi encontrado lutando ao ladodos talibãs. Nascido em Washington, John Philip Walker Lindh, de 20anos, que se converteu ao islamismo aos 16, foi um dos oitentasobreviventes da rebelião talibã numa prisão perto de Mazar-e-Sharif, aprincipal cidade na região norte do Afeganistão.

A vida pós-Talibã também já começou a ser organizada. A maior dor decabeça é como pacificar o país de modo que deixe de ser um terreno fértilpara o surgimento e o treinamento de terroristas. A dificuldade não residena geografia difícil ou na pobreza massacrante da maioria da populaçãodepois de duas décadas de guerras. O problema real é a fragmentação dopaís em tribos, clãs e facções rivais, todos querendo tirar proveito dasituação. Hamid Karzai, o homem que negociou a rendição do mulá Omar,foi escolhido numa assembléia de líderes afegãos na Alemanha comochefe de um governo provisório. Sua missão é convocar dentro de seismeses uma assembléia de líderes tribais, a Loya Jirga. Como chefe dopoderoso clã Popalzai, que por séculos esteve ligado à realeza afegã,Karzai tem o pedigree certo para o cargo. Bem à moda afegã, o acerto foilogo rejeitado por dois dos mais poderosos chefes de milícia, cada umdeles entrincheirado em seu próprio feudo. Mal o Talibã depôs armas,guerreiros de dois líderes tribais vitoriosos começaram a trocar tiros nasruas de Kandahar. Os Estados Unidos têm agora uma substancialpresença militar em solo, com dois milhares de soldados no país. Mas elesdevem manter-se distantes da anarquia afegã e se concentrar no querealmente interessa: Osama bin Laden.

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 O TALIBÃ AMERICANO Walker, ao ser preso ( à es q .) , e com o pai antes de entrar para o Talibã: convertido e fanático

Nunca antes uma personalidade foi apresentada ao mundo com tamanho

estrondo quanto Laden. Em poucos dias, o rosto moreno desse saudita setornou conhecido no mundo inteiro. Da infância de menino rico na ArábiaSaudita ao comando de uma rede terrorista de dimensões globais, a trajetóriade Laden desperta a curiosidade geral. Poucos ocidentais o conhecem tão bemquanto o jornalista americano Peter Bergen. Produtor da rede de televisão CNN,ele encontrou o milionário saudita no início de 1997, para uma entrevista feitapelo premiado repórter Peter Arnett. Desde então, Bergen conduziu uma grandeinvestigação sobre os bastidores da Al Qaeda e a vida do homem maisprocurado do mundo. Em sua edição de dezembro, a revista americana VanityFair  publicou trechos de um livro sobre o assunto escrito por Bergen que estaráem breve nas livrarias. No texto, ele conta detalhes do encontro que teve com

Laden nas montanhas do Afeganistão. Ao desembarcar no aeroporto deIslamabad, a equipe de TV entrou numa van para atravessar a fronteira com oAfeganistão. Três homens armados fecharam as cortinas do carro onde estavamos jornalistas e perguntaram se estavam usando um rastreador. Disseram quese estivessem com o aparelho e contassem a verdade não haveria problemas.Caso contrário, seriam executados. Depois de passar por um terrenomontanhoso, a equipe chegou a um pequeno platô.

AMIGO DO REI Hamid Karzai, chefe de clã e ligado ao rei exilado: no comando de um governo provisório

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Osama bin Laden apareceu por volta da meia-noite, acompanhado de umtradutor e vários guarda-costas. Entrou apoiado numa bengala e usava umturbante. Sobre a túnica, vestia uma jaqueta camuflada. Sentou-se próximode um rifle Kalashnikov. "Ele pertencia a um russo que matei", disse Laden.Como era de esperar, começou a discursar sobre as injustiças cometidascontra os muçulmanos e sobre como seu país, a Arábia Saudita, prejudicavao islamismo por ser leal aos Estados Unidos. Com uma tosse fraca eintermitente, falava enquanto tomava chá. Disse que os Estados Unidoseram responsáveis pela morte de palestinos, libaneses e iraquianos, entreoutros cidadãos do mundo árabe. Por isso, declarara guerra santa aosamericanos. A seguir, veio a descrição de seu ideal de globalização: arestauração de um grande califado do porte do que fora, um dia, o ImpérioOtomano, desfeito depois da I Guerra.

Bergen conta que Laden surpreendeu a todos quando admitiu que árabesligados a seu grupo terrorista estavam envolvidos na morte de tropasamericanas na Somália, em 1993. Com a graça de Alá, Laden disse,muçulmanos na Somália cooperaram com alguns guerreiros árabes nocombate que matou dezoito soldados americanos. Depois da entrevista, olíder saudita serviu gentilmente à equipe uma xícara de chá e posou deforma muito simpática para fotos. Tendo herdado do pai empreiteiro umafortuna apreciável, Laden resolveu abandonar a vida de ricaço na ArábiaSaudita e aos 22 anos foi para o Afeganistão lutar contra os soviéticos queinvadiram o país em 1979. A notícia de que ele estava na região e os relatosa seu respeito provocaram uma avalanche de jovens entusiasmados com acausa. Ele era descrito como um herói que abandonou os palácios e o estilode vida luxuoso de Jidá para juntar-se aos miseráveis afegãos. Foi daí quesurgiu a Al Qaeda, que depois se ramificou por dezenas de países. Logo apósa guerra no Afeganistão contra a União Soviética, Laden disse: "Essa guerraacabou com o mito de que as superpotências eram invencíveis. Issoaconteceu não só na minha cabeça como na de todos os muçulmanos". Econtinuou: "Nós achamos que os Estados Unidos são ainda mais fracos que aUnião Soviética". Deve ter mudado de idéia. 

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Pobres, fracos e ignorantes31 de julho de 2002

Assim são os muçulmanos,na visão de Bernard Lewis

Pobres, fracos e ignorantes. É como o historiador inglês Bernard Lewisdefine os muçulmanos em O Qu e Deu Er r a d o n o O r i e n t e Méd i o ?   

(tradução de Maria Luiza Borges; Jorge Zahar; 204 páginas; 24 reais).Pobres: só produzem combustíveis fósseis, extraídos com tecnologiaocidental. Fracos: perdem todas as guerras em que se metem.Ignorantes: confundem-se até mesmo para datar um documento oumedir uma propriedade.

Nem sempre foi assim, claro. Lewis traça a história do Oriente Médiodemonstrando que, por cerca de 1.000 anos, os muçulmanosmantiveram a supremacia econômica, militar, científica e cultural sobreo resto da humanidade. Daí a pergunta: O que deu errado? Como o

Ocidente conseguiu alcançá-los e deixá-los para trás? Onde elesfalharam? Lewis aponta para a incapacidade do mundo muçulmano deseparar religião e Estado. Faltou-lhes algo como a Reforma Protestanteou a Revolução Francesa. A promiscuidade entre religião e Estadogerou um sistema monolítico, avesso às contraposições, que osimpediu de desenvolver conceitos como democracia, emancipaçãofeminina, liberdade de imprensa ou música sinfônica, em que cadainstrumento segue a própria partitura para estabelecer uma harmoniade conjunto.

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Não que o Ocidente não tenha tido culpas. O colonialismo europeu e,mais tarde, o imperialismo americano e o soviético provocaram uma

infinidade de desastres entre os muçulmanos. Mas Lewis prefereinverter a questão, observando que eles só foram conquistados peloOcidente porque já haviam entrado em decadência. A cultura ocidentalfoi mal assimilada pelo mundo islâmico. Uma idéia como onacionalismo, por exemplo, só produziu aberrações como monarquiasabsolutistas e ditaduras militares. A frustração e o ressentimentocausados pelo fracasso das idéias ocidentais insuflou ofundamentalismo religioso, com sua falsa promessa de um retorno aum passado glorioso em que os muçulmanos dominavam o mundo. Éexatamente o que pretendiam fazer os talibãs no Afeganistão: imitar a

vida dos tempos do profeta Maomé. Mais ou menos como se nós,brasileiros, reintroduzíssemos os costumes dos tupinambás.

O Ocidente reagiu aos atentados de 11 de setembro com julgamentosde valor preconceituosos e ignorantes sobre o islamismo. Lewis,professor emérito da Universidade Princeton, autor de mais de vintelivros sobre o assunto, ajuda a trazer a discussão para o terreno daanálise. Não significa que sua análise seja neutra. Pelo contrário: Lewistem posições extremas. Tempos atrás, um tribunal francês o condenoupor uma entrevista em que minimizava o genocídio dos armênios por

parte dos turcos, em 1915. Mais recentemente, afirmou que Israelerrou ao permitir que Arafat voltasse de seu exílio. O maior oponentede Lewis no universo acadêmico americano é Edward Said, autor deOrientalismo. Não por acaso, o primeiro é judeu, e o segundo,palestino. Para se ter uma visão mais clara do Oriente Médio, convémler os dois, deixando-os soltos para guerrear dentro de sua casa. Coma esperança de que não apareça nenhum homem-bomba, e de que umF-16 não venha retaliar explodindo seus filhos.

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Por que o Islã nãosente remorso11 de setembro de 2002

Os dezenove terroristas responsáveis pela carnificina no World TradeCenter e no Pentágono eram árabes e muçulmanos. Eles atacaramem nome de uma versão fundamentalista do Islã minoritária entre o1,3 bilhão de muçulmanos. Um ano depois do atentado, a reação damaioria islâmica ao desafio da minoria fanática ainda é uma questãosem resposta 

Um efeito notável dos atentados de 11 de setembro foi o de revelar para a

maioria das pessoas a existência de um mundo obscuro, agressivamenteprimitivo e vingativo, o do fundamentalismo islâmico. Tão logo se soube quea carnificina fora cometida em nome de Alá, levantou-se um coro de vozessensatas – entre elas a do presidente americano George W. Bush – paragarantir que Osama bin Laden e os dezenove seqüestradores não podiam servistos como a verdadeira face do islamismo, religião com 1.400 anos deexistência e 1,3 bilhão de fiéis. Um ano depois, ainda está em aberto aquestão de como o mundo muçulmano reagirá ao desafio da minoria fanáticae sedenta de sangue. O que se viu até agora é pouco animador. Do Marrocosà Indonésia, as ruas foram tomadas por manifestações a favor de Osama binLaden. No Paquistão, os mulás emitiram decretos religiosos, as chamadasfatwas,  convocando os fiéis à guerra santa contra os americanos noAfeganistão, e milhares de voluntários atenderam ao chamado. 

O historiador americano Daniel Pipes estimou, em entrevista a VEJA, que aversão extremista atrai a simpatia de menos de 15% dos muçulmanos. Issotorna mais intrigante a escassez de oposição pública ao terrorismo nouniverso desses países. No início dos anos 90, Samuel Huntington, daUniversidade Harvard, defendeu a tese de que, encerrada a disputaideológica entre capitalismo e comunismo, o confronto global mais iminenteseria o choque de civilizações entre o Ocidente e o Islã. Na prática, as coisas

são um pouco mais complexas, pois o mundo islâmico é muito diversificado.O historiador americano-palestino Edward Said acredita que, na realidade, osatentados são conseqüência de uma disputa por corações e almas entrediferentes correntes islâmicas no mundo árabe. Essa disputa se alimenta dofracasso político, cultural e econômico acumulado pelos países muçulmanosapós o fim do colonialismo europeu. O sentimento de frustração dessespovos é intensificado por uma infecção cultural típica do Oriente Médio: aarraigada convicção de que todos os acontecimentos significativos têmorigem numa conspiração externa.

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GUERRA SANTA Militantes de partido islâmicopaquistanês manifestam apoio aOsama bin Laden nas ruas deKarachi: dificuldades de convivercom a tolerância religiosa

O mundo moderno é repleto de promessas – mas a maioria dos muçulmanos épobre demais para usufruir delas. Muito mais presente é a desorientaçãocultural produzida pela própria modernidade. Os regimes árabes são,praticamente todos, arremedos ditatoriais de modelos políticos ocidentais, compouco a oferecer a seus cidadãos. Os fundamentalistas, em contrapartida,

prometem um mundo de regras bem definidas, com destaque para a guerramaniqueísta entre os crentes e os infiéis. Francis Fukuyama, professor depolítica econômica internacional da Universidade Johns Hopkins, diz que osamericanos tendem a acreditar que seus valores e instituições – democracia,direitos individuais e liberdade econômica – são aspirações universais.Infelizmente não é assim. Enquanto a maioria dos povos da América Latina, daÁsia e da África inveja a riqueza das nações desenvolvidas, os fanáticosfundamentalistas só vêem provas de consumismo decadente no mundoocidental. As massas do mundo árabe tenderam a comemorar os atentados de11 de setembro porque essa tragédia, segundo a visão de muitos dos queaprovaram o ataque, humilhou os Estados Unidos, país que eles consideram

corrompido e infiel. "A corrupção não se expressa na permissividade ou nosdireitos da mulher, mas na sociedade leiga. O que detestam é que o Estadopromova o pluralismo religioso e a tolerância, em vez de ser um servo daverdade religiosa", diz Fukuyama. A ofensiva militar contra a Al Qaeda é umaboa forma de neutralizar o terrorismo islâmico. Mas haverá sempre umproblema de grande envergadura se os próprios países islâmicos não derem suacontribuição no combate ao terrorismo. O desafio para a comunidademuçulmana está na convivência com o princípio do Estado leigo e da tolerânciareligiosa. "Ela precisa decidir se quer fazer as pazes com a modernidade", afirmaFukuyama. 

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Nem no Irã25 de setembro de 2002

Autor francês é julgadopor criticar o islamismo

Em setembro de 2001, a revista francesa Lire publicou umaentrevista com Michel Houellebecq. Escritor popularíssimo em seupaís, especialista em causar polêmica, ele discutiu, a certa altura,as religiões monoteístas. Disse que acreditar num Deus único eraum ato cretino. E arrematou: "A religião mais idiota é o

islamismo. Ela é perigosa desde o seu surgimento". Dias depois, oWorld Trade Center foi atacado e as declarações, é claro,ganharam enorme ressonância. Quatro organizações islâmicasdecidiram processar o autor por injúria racial e incitação ao ódio.A primeira audiência ocorreu na terça-feira passada, durou maisde cinco horas e mobilizou os franceses. Vários intelectuaislançaram um manifesto de apoio a Houellebecq e seapresentaram para depor em seu favor. O escritor Philippe Sollersargumentou, exoticamente, que seria preciso ser tolerante com o

humor que, segundo ele, está no centro das declarações deHouellebecq. Outros insistiram no princípio, auto-evidente, daliberdade de expressão – o que fez com que as organizaçõesislâmicas declarassem que a audiência se transformou numaocasião para reafirmar esse princípio de maneira arrogante e,suprema ofensa, "neocolonialista". Houellebecq disse que jamaisnutriu desprezo pelos muçulmanos, mas reafirmou sua falta deapreço pelo islamismo. O autor poderia ser condenado a passarum ano na cadeia e a pagar multa de 45.000 euros. A sentença

sai no dia 22 de outubro, mas os próprios promotores já seanteciparam e pediram que essa insanidade seja simplesmentearquivada. 

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Turbante vitorioso13 de novembro de 2002

Partido islâmico vence as eleiçõesna Turquia, a única democraciado mundo muçulmano

Contrastes turcos: modelo em desfile de moda, na semana passada, e mulheres religiosas em Istambul

A Turquia é uma exceção entre as nações muçulmanas. Primeiro, é umademocracia. Segundo, é um país que separa com rigidez a mesquita doEstado. Na semana passada, o cenário foi revirado pela avassaladora vitóriaeleitoral de um partido islâmico, o AKP. O homem do momento é RecepTayyip Erdogan, líder dos vencedores. Ex-prefeito de Istambul, ele não podeconcorrer pessoalmente por causa de uma condenação por incitar o ódioreligioso, mas deve governar por meio de um primeiro-ministro fantoche.Erdogan está longe de ser um aiatolá. Só usa ternos bem cortados e marcousua campanha com um discurso moderado, na linha "paz e amor". Seudesafio é provar que é possível conciliar o Islã com a democracia.  

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 Há sete anos, um partido fundamentalista islâmicochegou pela primeira vez ao poder na Turquia. Osmilitares, guardiães do Estado laico fundado namarra por Mustafa Kemal, o Ataturk (pai dosturcos), nos anos 20, pressionaram o primeiro-ministro muçulmano até seu governo cair, um anodepois. Desta vez, os islâmicos prometem respeitaro caráter laico do país, e os militares, o resultadodas urnas. Ao fundar a Turquia sobre as ruínas doImpério Otomano, Ataturk impôs roupas ocidentais,proibiu o uso do véu feminino em repartições eescolas públicas e substituiu o alfabeto árabe pelo

latino no prazo recorde de seis meses. O Estadosupervisiona a educação religiosa, nomeia os 80000 clérigos do país e paga seus salários. Mesmoassim, o islamismo continua forte. De cada dezturcos, nove fazem o jejum no mês do Ramadã e metade reza cinco vezespor dia para Alá. A Turquia quer entrar para a União Européia, mas para issoprecisa provar que seus muçulmanos são civilizados e pôr fim à sangrentarepressão ao movimento separatista da minoria curda.

A vitória do AKP deve-se mais à crise econômica que às convicções religiosasda população, 97% muçulmana. O partido do veterano primeiro-ministroBulent Ecevit, que ocupava pela quinta vez o cargo, recebeu apenas 1% dosvotos. Seu governo fracassou no combate à inflação (45% ao ano) e aodesemprego, que castiga três em cada dez turcos. A vitória islâmica é umproblema para os Estadoor="#000000"> A vitória do AKP deve-se mais àcrise econômica que às convicções religiosas da população, 97% muçulmana.O partido do veterano primeiro-ministro Bulent Ecevit, que ocupava pelaquinta vez o cargo, recebeu apenas 1% dos votos. Seu governo fracassou nocombate à inflação (45% ao ano) e ao desemprego, que castiga três emcada dez turcos. A vitória islâmica é um problema para os Estados Unidos,aliados da Turquia desde a Guerra Fria. Situado entre o Ocidente e o Oriente,

o país abriga bases militares da Otan que os americanos planejavam usarpara um ataque militar ao vizinho Iraque. A dúvida é se o novo governomuçulmano vai concordar em participar dessa guerra.

AP

Erdogan: ternos bemcortados e campanhade "paz e amor"

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A hora dos radicais 02 de abril de 2003

FÉ E VIOLÊNCIA Ativistas do grupo terrorista Hamas em manifestação naFaixa de Gaza: só os moderados podem segurar os radicais

Com os olhos azuis faiscantes sob o sol do deserto, Peter O'Toole (Lawrence)vira-se para Ali (Omar Sharif) e diz: "Enquanto o povo árabe continuar

lutando tribo contra tribo, será sempre um povo tolo, ganancioso, bárbaro ecruel". A fala é do filme Lawrence da Arábia, de 1962, quando ainda se podiafazer abordagens romanceadas da história dos conflitos no Oriente Médio.Agora, o que existe são o rancor e o desencanto dos árabes com amodernidade do Ocidente e o medo do terrorismo nas capitais ocidentais.Graças à influência do Ocidente, as tribos árabes não mais se dizimam emlutas fratricidas no meio do deserto, genocídios particulares cujas dimensõesnunca foram esclarecidas mas que ainda sobrevivem na tradição oral dosárabes. Atualmente, as tribos vivem sob bandeiras das nações criadas pelaFrança e pela Inglaterra, potências emergentes ao final da I Guerra Mundial(1914-1918). Vivem, sobretudo, sob o manto religioso do islamismo. Nos

últimos anos, assistiu-se nessa região à chegada ao poder das vertentesfundamentalistas do islamismo. Para essas correntes radicais, não existemgovernos nem fronteiras. O desenrolar da guerra no Iraque e o que vaiocorrer depois no país de Saddam Hussein serão pontos decisivos para ofrágil equilíbrio em que vivem hoje dezenas de países de populaçãomuçulmana.

O mundo islâmico se concentra numa faixa quase contínua que vai da Áfricaaos confins da Ásia. Ao todo, os muçulmanos são 1,2 bilhão de pessoas erepresentam 20% da humanidade. A diversidade religiosa, étnica e política

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nesses países é gigantesca. Mas em todos observa-se um padrãopreocupante. O número de pessoas que desconfiam das intenções doOcidente, em especial dos Estados Unidos, cresce ano a ano. "De modogeral, há uma lenta mas inexorável migração de corações e mentes dospovos islâmicos para posições de rancor contra o Ocidente", diz Daniel Pipes,em seu livro Militant Islam Reaches America  (O Islã Militante Chega àAmérica). De acordo com Pipes, atualmente um de cada dez muçulmanosaderiu a alguma vertente fanática em seu país. Os terroristas, como se sabe,são recrutados entre os fanáticos. Conclui-se que o exército potencial doterror no mundo islâmico teria, com base na avaliação de Pipes, 120 milhõesde cabeças. Obviamente, esse cálculo não deve ser tomado pelo seu ladomatemático, mas apenas como termômetro do sentimento antiocidental quese pode colher hoje nas ruas dos principais países islâmicos. Pelo que se vê,

a febre é alta. Na Síria, no Paquistão, na Faixa de Gaza, a ação militarocidental americana dos últimos dias produziu violentas manifestações derua. Mas os analistas concordam que não há perigo imediato de erupçõesrevolucionárias com força suficiente para mudar o equilíbrio de forças naregião. O que existe é o aumento da má vontade contra os Estados Unidos. 

NÃO À GUERRA Partido religioso do Paquistão reúne 100 000 emprotesto: um Iraque moderado no pós-guerra podepôr água na fervura dos fundamentalistas

A diversidade da vida nos países islâmicos é um fator de estabilidade, e nãoo contrário. Algumas nações com governo totalmente contrário ao"imperialismo ianque", como o Irã, têm grande parte da população comsimpatias pelo modo de vida americano. As vanguardas intelectuais e osestudantes iranianos, ainda bafejados pelos ventos ocidentais dos tempos doxá Reza Pahlevi, aproveitam todas as brechas do regime dos aiatolás parapedir modernização à moda do Ocidente. Por outro lado, em países com

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regimes abertamente alinhados com Washington, as ruas sãofervorosamente antiamericanas. É o caso da Jordânia e do Egito.

São dois países de governos autoritários. A Jordânia é uma monarquiaparlamentarista e o Egito, uma república com um presidente vitalício. Aspessoas nesses países desfrutam relativa liberdade de expressão – maisrelativa do que absoluta, diga-se. Apesar de pobre, com seus 1 750 dólaresde renda per capita e mais de 50% da população de origem palestina, aJordânia parece bem segura nas mãos do rei Abdullah. No Egito, a história éoutra. O homem forte do país, Hosni Mubarak, há vinte anos proíbemanifestações públicas nas ruas do Cairo e de Alexandria, embora as tolerenas cidades menores. Com seus 70 milhões de habitantes, o Egito é talvez ador de cabeça potencial mais preocupante do Oriente Médio. A ditadura de

Mubarak vem se segurando no governo pelo uso cada vez mais intenso daconcentração de poder. É verdade que o governo egípcio conseguiu um feitomemorável ao negociar com os terroristas islâmicos em ação no país,obtendo uma trégua em troca de maior liberdade de ação dosfundamentalistas nas universidades e nas mesquitas. "A universidade, aimprensa e o clero no Egito são dominados pelos radicais islâmicos. Quantotempo um governo, mesmo o mais duro, se sustenta no poder numasituação assim?", pergunta Thomas Friedman, o articulista do New YorkTimes que acaba de fazer sua estréia como documentarista no canalDiscovery. Seu filme tem o título Procurando pelas Raízes de 11 de Setembro e faz uma análise do ódio aos Estados Unidos no Oriente Médio.

REVOLTA Sírios queimam bandeira britânica: raiva e caos nospaíses vizinhos ao Iraque preocupam líderes doOriente

Nos demais países islâmicos, a guerra dos americanos no Iraque vemservindo a um propósito político. Como os países não podem tolerarmanifestações de rua contra seus governos, eles admitem que as pessoas se

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reúnam e gritem slogans contra os Estados Unidos. O ódio aos americanosfunciona como uma válvula de escape. "Há vinte anos, um líder árabe que seapresentasse como amigo dos Estados Unidos seria admirado pelo seu povo.Dez anos atrás, ele seria visto com desconfiança. Hoje é visto com ódio",disse Tariq Aziz, vice-primeiro-ministro do Iraque e um dos homens deconfiança de Saddam Hussein. A frase é reproduzida no livro Iraque: aGuerra Permanente, do jornalista francês Patrick Denaud, que acaba de serpublicado no Brasil. Tariq, em que pesem os crimes de seu regime, é umafonte relativamente confiável sobre o que vai pela mente dos líderes árabes."Os americanos não têm amigos entre os árabes. Têm agentes e altosfuncionários com interesses comerciais com os Estados Unidos", ataca TariqAziz. Depois da invasão do Iraque, líderes notoriamente aliados dos EstadosUnidos, como o ministro do Exterior da Arábia Saudita, Saud al-Faisal,

apressaram-se em veicular mensagens de repúdio à guerra e pediram ocessar-fogo ao presidente George W. Bush. "Todo esse esforço em mostrar-se contra a guerra é uma atitude desesperada para manter o controle internode seus países, que estão tomados de caos e ódio", disse a VEJA JonAlterman, chefe de Estudos do Oriente Médio do Centro de EstudosEstratégicos e Internacionais de Washington.

O destino do Iraque depois da queda de Bagdá será decisivo para o futuropolítico dos países islâmicos, especialmente os do Oriente Médio. As naçõesislâmicas da Ásia, como a Indonésia, com seus 200 milhões de muçulmanos,e a Malásia, têm tradições culturais ainda mais fortes que a religiosidade dopovo, o que se torna uma garantia de estabilidade a longo prazo. Um Iraqueestável pode mesmo, como esperam os americanos, ser a água na fervurana região. Caso o Iraque se transforme numa democracia adaptada aoislamismo, o país poderá ser usado como um modelo por líderes moderadosdo Oriente Médio. Seria uma vitória dos reformistas contra osfundamentalistas. Uma pesquisa de opinião pública feita no início do mêspela Zogby International em seis países árabes – Arábia Saudita, Egito,Jordânia, Marrocos, Emirados Árabes e Líbano – constatou um avanço doideário fundamentalista. A maioria dos entrevistados preferiria ter um cleroislâmico que desempenhasse papéis mais decisivos nos governos árabes.

Encomendada pelo professor Shibley Telhami, da Universidade de Maryland,a pesquisa mostrou também que só 6% do total de pessoas ouvidas acreditaque haverá democracia no Oriente Médio após a guerra. A maioria aindaacha que o terrorismo vai aumentar, e não diminuir. Como toda pesquisa deopinião, a do professor Telhami é pesadamente influenciada pelo atualestágio da guerra no Iraque. Como o próprio Telhami admite, a opiniãopública muda de direção tão facilmente quanto o vento, mesmo no OrienteMédio.

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Em todas as análises sobre o Oriente Médio feitas por especialistas ocidentaisficam claras duas coisas. A primeira é que, com toda a interpenetração entreOriente e Ocidente, o entendimento da cultura e das sociedades islâmicas éainda precário. A outra se trata de uma constatação histórica: não se podemimpor modelos de governança aos países do Oriente Médio. Os árabesadaptam qualquer influência estrangeira a seus padrões milenares deconduta. A tradição e a resistência às mudanças já derrotaramconquistadores bem mais decididos que George W. Bush. O confucionismoatravessou incólume meio século do regime de Mao Tsé-tung e mantém-secomo a força cultural predominante na China atual. Três gerações de russosviveram sob o jugo do comunismo ateu, mas o cristianismo bizantino ficouintacto e continua sendo um fosso a separar a Rússia do resto da Europa. Oconfucionismo tem 2 500 anos de existência, enquanto a vertente bizantina

do catolicismo, 1 700 anos. A história é cheia de provas de que as potênciasmilitares e políticas conseguiram mudar apenas de modo superficial emomentâneo a natureza de povos com raízes culturais fincadas tãoprofundamente no tempo. O Oriente Médio constitui a prova mais viva dessarealidade. É prudente, portanto, não alimentar esperanças de que, depois devencido o Iraque, as barreiras à cultura ocidental no Oriente Médio vão cairuma depois da outra como "um dominó modernizante", na descrição de PaulWolfowitz, subsecretário de Defesa do governo George W. Bush. 

UM RESUMO DO ISLà

ECONOMIA Apenas oito das 48 nações islâmicas têm renda per capita superior à brasileira (3 400 dólares)

DEMOCRACIA Com exceção da Turquia, nenhum governo islâmico seria reconhecido como democrata pelos padrõesocidentais. Eles são governados por teocracias, monarquias absolutas, ditaduras de partido único epresidentes perpétuos

PETRÓLEO Dois terços das reservas mundiais de petróleo estão situados em países islâmicos, a maioria no GolfoPérsico

 ÁRABES Apenas 15% dos muçulmanos são árabes. A Indonésia, na Ásia, é o maior entre os países islâmicos eresponde por 17% da população muçulmana

 AS DUAS CORRENTES O ramo principal do Islã é o sunita, com 1 bilhão de fiéis e dividido em várias vertentes. Os xiitas, umadissidência do século VII, têm 120 milhões de seguidores. São maioria no Irã, Iraque e Barein

SHARIA É a lei sagrada do Islã datada do século VII que contém regras para o sistema judiciário, para a guerra esobre como devem ser as relações entre homens e mulheres 

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Os moderados sãoa chave da paz 16 de abril de 2003

As vésperas da invasão do Iraque, o presidente egípcio, Hosni Mubarak, fezum alerta aos Estados Unidos: "A guerra vai produzir uma centena de BinLadens", disse o mandatário do Egito, referindo-se ao terrorista sauditaOsama bin Laden, chefe da rede Al Qaeda, responsável pelo ataque às torresgêmeas de Nova York e ao Pentágono no fatídico 11 de setembro de 2001.Três semanas depois, com a invasão do Iraque chegando ao fim de suaetapa militar, os Estados Unidos têm como gigantesco desafio políticoimpedir que a previsão de Mubarak

se confirme e, ao mesmo tempo, incentivar a proliferação no Oriente Médiode outro tipo de militante, o muçulmano moderado. São estudiosos dareligião, alguns são clérigos, mas a maioria dos moderados islâmicos éformada por profissionais liberais e intelectuais das universidades. Essesnovos personagens não oferecem perigo ao Ocidente. Eles são, no entanto,uma ameaça para os regimes totalitários da região, em especial para aquelescomo o do egípcio Mubarak, cuja existência e cujos exageros repressivossempre foram tolerados no Ocidente por ser vistos como uma barreira aoavanço dos radicais. "Mubarak só se manteve no poder sem ser seriamenteincomodado por tantos anos porque, a pretexto de combater o radicalismoislâmico, colocou na cadeia todos os que discordam dele", disse a VEJA oegípcio Saad Eddin Ibrahim, 64 anos, um dos mais respeitados intelectuaisárabes, que, não por acaso, acaba de sair de uma prisão no Cairo.

A esperança de democracia no Oriente Médio se assenta principalmente namultiplicação dos Ibrahims. Serão necessárias centenas de milhares delesem dezenas de países para que a química explosiva da região encontre ummínimo de equilíbrio. Para muitos analistas ocidentais, essa possibilidade nãopassa de uma utopia. Mas todos concordam que a única barreira real delongo prazo para deter o terrorismo religioso são os moderados islâmicos. A

eficiência dos serviços de contenção dos radicais prestados por regimestotalitários pró-ocidentais na região está se exaurindo. Essa tendência deveacentuar-se com a presença dos Estados Unidos no Iraque, na exata medidaem que os americanos sejam bem-sucedidos na instalação de um governominimamente representativo no país que já foi de Saddam Hussein e seusasseclas. "Os americanos serão sábios se conseguirem afastar qualquerconotação colonial no empreendimento de reerguer o Iraque. Eles precisamdeixar as próprias vítimas de Saddam contarem aos árabes tudo o quesofreram sob o antigo regime", aconselha o professor Ibrahim. "Os árabestêm desconfiança e mágoa dos americanos. Isso não vai se dissipar tão

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cedo, mas esse sentimento não precisa ser traduzido para sempre na formade agressão, hostilidade e até terrorismo contra o Ocidente."

Outro pregador da moderação no Oriente Médio é Abdulwahab Alkebsi,diretor executivo do Centro para Estudos do Islã e a Democracia, entidadebaseada em Washington. Alkebsi montou uma vasta rede de analistas queabastecem diariamente, via internet, seus arquivos sobre o Oriente Médio.Na semana passada, algumas horas depois que as estátuas de SaddamHussein começaram a ser derrubadas em Bagdá, Alkebsi montou um fórumon-line em que perguntava a seus informantes no mundo árabe como elesenxergavam a promessa americana de incentivar os avanços institucionaisno Oriente Médio. "A elite intelectual nos países árabes não vê diferençaentre os valores da democracia ocidental e os prescritos nos livros sagrados

do Islã", disse Alkebsi. "Dignidade humana, império da lei e a limitação dopoder do Estado estão claramente expostos no Corão."   Alkebsi reconheceque passar da teoria à prática exigirá um esforço gigantesco, sem garantiasde sucesso. Mas ele acha tolice não tentar e "loucura não aproveitar a quedade Saddam e a possibilidade de surgimento de um Iraque democrático paradar uma chance aos moderados islâmicos". O instituto que Alkebsi dirige emWashington listou na semana passada avanços institucionais recentes,alguns anunciados depois da queda de Bagdá em mãos dos soldadosamericanos. Os exemplos abaixo são gotas de esperança no deserto deinsatisfação do mundo islâmico, mas ajudam a demonstrar a existência desaídas democráticas realistas no Oriente Médio e que elas não conflitam coma cultura árabe.

• Horas depois da queda da capital iraquiana, o presidente do Egito, Hosni Mubarak,anunciou sua desistência de fazer o filho, Gamal, seu sucessor no poder. O Egitoestá submetido a variações de estado de sítio desde 1931 e seus principais órgãosde imprensa são estatais. Portanto, o gesto de Mubarak tem um peso.

• O príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Abdullah bin Abdul Aziz, anunciourecentemente o desencadeamento de um plano de "aprimoramento econômico epolítico" que, segundo Alkebsi, prevê a eleição de um Parlamento. Monarquiareligiosa, a Arábia Saudita é o país formalmente mais alinhado com o Ocidente na

região. Mas existem evidências desconcertantes de que, nos bastidores, a dinastiasaudita dá sustentação a grupos terroristas. O aceno com a possibilidade de elegerum Parlamento é a melhor notícia ventilada daquele lado do deserto há dezenas deanos.

• Em setembro do ano passado, o Marrocos promoveu as primeiras eleições livresde sua história. A ida às urnas foi fiscalizada por monitores internacionais. Umpartido ligado ao clero islâmico ganhou um bom número de cadeiras no Parlamento,e o governo reconheceu oficialmente o resultado.

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• Também no fim do ano passado, o Barein, um pequeno país do Golfo com menosde 1 milhão de habitantes, convocou eleições gerais em que, pela primeira vez, asmulheres também puderam votar e se candidatar a cargos eletivos. 

"Os Estados Unidos não podem perder a chance aberta com o sucesso dacampanha militar no Iraque. É preciso deixar claro que a invasão foi um casoúnico. Se os países vizinhos se sentirem ameaçados, a pequena chama dosmoderados pode se apagar e o incêndio radical dominar a cena", disse a VEJAAbdulwahab Alkebsi. Os defensores da idéia de que vale a pena semeardemocracia no deserto alertam para os perigos. O mais evidente deles é o fatode que naturalmente os políticos com ligações com o clero islâmico serão, pelomenos no primeiro momento, os mais populares. Há possibilidade também deque os radicais sejam os mais votados e até que cheguem ao poder pelo voto.

Na Argélia, em 1992, os militares deram um golpe preventivo assim que aspesquisas não deixavam mais dúvidas de que os fundamentalistas chegariam aopoder nas eleições gerais daquele ano. O que fazer nesses casos? Esse é umponto crucial, pois, se os eleitores dos países árabes suspeitarem que ademocracia só vale quando forem eleitos políticos com simpatia pelo Ocidente,todo o processo ficará desmoralizado. Especialistas como Alkebsi e EddinIbrahim acreditam que esses riscos precisam ser enfrentados. "A democracia éum fenômeno novo até mesmo no Ocidente e nunca atingiu a perfeição. NoOriente Médio é preciso ir pelo método da tentativa e erro, e, nesse caso, quemtem de exercitar mais a paciência são os Estados Unidos. É provável que elesvejam seus adversários serem os primeiros a se eleger nos países que seliberalizarem", alerta Ibrahim. 

ENTRE DOIS MUNDOS A rainha Noor, da Jordânia, americana de nascimento, diz em seu novo livro, Espír i t o d a

Pa z ,  que o Islã e a democracia podem conviver muito bem

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No campo prático imediato será preciso encaminhar uma solução para oconflito entre Israel e os palestinos. "A Palestina é um microcosmo de todasas injustiças das quais os árabes se sentem vítimas", diz o professor EddinIbrahim. Na semana passada, no encontro que teve com Tony Blair,primeiro-ministro britânico, na Irlanda do Norte, o presidente George W.Bush se adiantou à questão. "A existência de um Estado Palestinoconvivendo em paz lado a lado com Israel é uma etapa fundamental", disseBush. A questão palestina, no entanto, é tão complexa que os moderadosislâmicos sustentam que será necessário perseguir as reformas nos demaispaíses mesmo sem muitos avanços na luta entre Israel e seu vizinho. Sobreas possibilidades de mudança no Oriente Médio pesa também o manto doempuxo histórico negativo. Os estudiosos como Alkebsi e o professorIbrahim lembram que a civilização árabe teve seu momento clássico que, a

exemplo dos gregos, primava pela democracia e pelo igualitarismo. Éverdade. Mas outros historiadores acreditam que a herança culturalpredominante nos dias de hoje no Oriente Médio vem de outra vertente, oImpério Otomano, cuja influência atual entre os árabes ainda é quase tãogrande quanto o confucionismo na China e o catolicismo ortodoxo na Rússia.

"A tarefa de modernizar o Oriente Médio vai encontrar resistência muitoforte", disse a VEJA Richard Pipes, historiador americano da UniversidadeHarvard. Ele lembra que a primazia da religião sobre todos os outrosaspectos da vida, e em especial sobre a política, no Oriente Médio é umaherança do Império Otomano, e não do islamismo. Esse império se estendeuda Turquia, seu centro, até o sul da Ásia, e do norte da África ao sul daEuropa. Durou do fim do século XIII até pouco depois da I Guerra Mundial. Ahistória desse vasto reino é a chave para entender os enigmas que o OrienteMédio oferece. São charadas complicadas. Os historiadores apostam queserão fatores complicadores da bem-sucedida invasão do Iraque pelosamericanos. A idéia de usar a religião para regular a vida em sociedade noOriente foi o mecanismo de dominação imaginado pelo sultão Osman I,fundador do Império Otomano (referência à denominação da tribo a quepertencia Osman I). Os sultões do império, descendentes do fundador, sedeclararam califas, ou seja, sacerdotes do islamismo. Por séculos eles

esmagaram facilmente quase todas as revoltas em nome de Alá. "Poder ereligião andam juntos há séculos no Oriente Médio", diz David Fromkin,professor da Universidade de Boston e autor do livro A Paz para Acabar coma Paz, em que relata os momentos finais do Império Otomano e a invençãodo Oriente Médio como o conhecemos hoje. O título do livro do professorFromkin é talvez o melhor resumo dos desafios que os americanos terão pelafrente depois de sua vitória militar no Iraque. 

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O que eles têm em comum?23 de abril de 2003

LÍBIA Muamar Kadafi

PALESTINA Yasser Arafat

IRAQUE Saddam Hussein 

EGITO Hosni Mubarak

JORDÂNIA Rei Abdullah 

SÍRIA Bashar Assad

Os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 aos Estados Unidos e asguerras que se seguiram, a do Afeganistão e a do Iraque, trouxeram para oOcidente de forma violenta e crua a realidade do Oriente Médio. A opiniãopública ocidental passou a devorar informações na tentativa de entender essepedaço do mundo, que, embora tenha freqüentado o noticiário por suas guerraslocais e pelo eterno cabo-de-guerra com Israel, sempre se moveu num ritmopeculiar. Agora que os Estados Unidos estão se preparando para reconstruir oIraque, depois de uma guerra fulminante de três semanas de duração, sabercomo funciona a sociedade dos povos árabes tornou-se um exercício vital. Nãopor acaso, o general da reserva americano Jay Garner, encarregado de montarum país onde antes existiu o regime de Saddam Hussein, revelou aos jornalistasque tem estudado os trabalhos da pessoa que mergulhou mais profundamentena mente árabe, a exploradora inglesa Gertrude Bell. "No dia em que as tropasamericanas entraram em Bagdá, eu não estava assistindo à CNN, mas a umdocumentário sobre a senhora Bell", disse Garner.

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A senhora Bell a que se refere o general morreu em 1926, quando ocupava ocargo de diretora de antiguidades do Iraque. Antes ela servira como secretáriado Alto Comissariado Britânico na região. Respeitada pelos chefes árabes,Gertrude Bell foi a responsável direta pelo traçado das fronteiras no mapa doOriente Médio ao fim da I Guerra Mundial, o que ela fez, segundo seu biógrafoVictor Winstone, "com um frio na espinha". O biógrafo reproduz uma cartaenviada por um missionário americano à senhora Bell, que ela guardou até o fimda vida. A carta contém um alerta que pode ser muito útil ao general Garner emsua tarefa de montar uma administração estável no Iraque. "Esses povos nuncaformaram uma unidade independente. Não basta desenhar uma fronteira emtorno deles e chamá-los de país. Eles não têm noção de nacionalidade."Dependendo de como essa realidade é encarada, ela pode até mesmo facilitar otrabalho do general Garner. Fruto da criação de estrategistas ocidentais, ospaíses árabes devotaram boa parte do esforço político despendido no séculopassado a construir uma identidade nacional.

Por outra característica típica do Oriente Médio, porém, a unidade que osmaiores líderes árabes perseguiram ultrapassava as fronteiras dos países evisava à montagem de uma grande pátria árabe. Sob o comando do presidenteegípcio Gamal Abdel Nasser, Egito e Síria chegaram a fundir seus países emuma unidade política batizada de República Árabe Unida (RAU). Seria o primeiropasso para a criação da grande nação árabe. O arranjo funcionou durante trêsanos, entre 1958 e 1961, e desmoronou, como sempre ocorre no Oriente Médio,pelo impacto de choques externos, no caso a Guerra Fria. A RAU passou a atuarcomo força auxiliar dos soviéticos na região. Os Estados Unidos e a Inglaterrareagiram, patrocinando líderes e partidos com plataformas identificadas com oOcidente. Saddam Hussein e seu partido chegaram a ser vistos, a princípio,como a esperança de conter os radicais islâmicos com simpatias pelocomunismo. Em sua guerra contra o Irã nos anos 80, Saddam foi ajudado pelainteligência americana. Ele só foi considerado um estorvo depois da queda daUnião Soviética, quando passou a agir como uma força independente que se

 julgava capaz de unir os árabes em torno do Iraque.

O que têm em comum o líder egípcio Hosni Mubarak e o líbio Muamar Kadafi?Que traços unem Saddam Hussein ao presidente sírio, Bashar Assad, ou ao reiAbdullah, da Jordânia? São todos árabes. Falam a mesma língua, têm umaorigem étnica igual. São todos também fruto de intervenções estrangeiras naregião. Seus países foram criados por potências ocidentais ou seus regimesforam sustentados por algum interesse externo. Todos eles, em algummomento, alimentaram o desejo de unir todos os árabes sob uma mesmabandeira. Esse foi o sonho que acabou sendo a desgraça de Saddam. Aoescolher os Estados Unidos como inimigo, o regime de Saddam Husseinesperava unir todos os árabes em torno de Bagdá. Agora a etapa militar estáconcluída no Iraque. A Síria aparece no horizonte como a próxima grandeencrenca na região. Os analistas dizem que, nem de longe, os sírios oferecem omesmo perigo que Saddam. A razão é simples. Damasco não levantou a

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bandeira expansionista, além de sua influência histórica no Líbano, e tampoucoé vista como uma capital capaz de unir os árabes numa cruzada popular contrao Ocidente. Além disso, seu presidente, Bashar Assad, um médico comaparência de treinador de futebol do interior do Brasil, não encarna o perfil dolíder carismático, com poder de arrastar as massas árabes.

Mas existe um único povo árabe? Atualmente cerca de 350 milhões de pessoasfalam o idioma árabe. Elas se espalham desde o Oceano Atlântico até o Iraque.Em comum têm o idioma, que, fora alguns dialetos locais, é mais ou menos omesmo. Qualquer cidadão nessa extensa faixa de terra entende sem muitoesforço as gravações de Osama bin Laden levadas ao ar pela televisão Al Jazira.Um jornal líbio pode ser lido sem maior esforço no Egito, na Jordânia e na Síria.Do ponto de vista étnico, os povos que falam árabe são descendentes de umamesma pequena população que habitou a Península Arábica há milhares deanos. São os chamados povos semitas, dos quais descende também boa partedos judeus israelenses. Uma pesquisa comparativa de DNA feita pelo americanoLuigi Luca Cavalli-Sforza, da Universidade Stanford, determinou que a unidadegenética entre os povos semitas, judeus e árabes é marcante, confirmando atese de que eles têm antepassados comuns.

Unidos pela origem genética, os árabes nunca souberam transformar essa raizcomum em algum tipo de organização supranacional. Nos quase seis séculos emque estiveram submetidos ao Império Otomano, eles viveram em tribos. Essaexistência nômade, de povo perseguido, apagou nos árabes os vestígios daexuberância de seu próprio império. A religião islâmica, que é um forte fator deunião, ainda não conseguiu superar suas divergências internas. "Se for o caso,um xiita do sul do Iraque se alia facilmente com um xiita do Irã ou da Jordâniacontra um sunita de Bagdá", diz o professor Manolo Florentino, historiador daUniversidade Federal do Rio de Janeiro. Os analistas ocidentais dizem que, se forpreciso classificar as variáveis da sociedade árabe por seu poder agregador, areligião seria a força principal. Em seguida viriam as lealdades tribais e, emterceiro, o arabismo, a identidade árabe acima das fronteiras nacionais. "Paramontar seu quebra-cabeça no Iraque, o general Garner terá de criar em todosos iraquianos um sentimento nacional", disse na semana passada o estudiosoinglês Bernard Lewis. Vai ser um desafio e tanto. Egito, Marrocos, Argélia e Líbiaconseguiram despertar em seus cidadãos uma identidade nacional forte. Sãopaíses que foram unificados por regimes populistas autoritários e queproduziram líderes carismáticos, como Gamal Abdel Nasser, no Egito. Nos paísesda Península Arábica e do Oriente Médio as raízes tribais têm mais força que anacionalidade. "Nesses países, os líderes locais só conseguiram firmar-se sobreo tribalismo usando o arabismo internacional como plataforma", escreveu oprofessor Albert Hourani, morto em 1993, que deixou uma obra formidável,Uma História dos Povos Árabes. Certamente essa não será uma opção para ogeneral Garner.

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Fanatismo marcado a fogo 

25 de junho de 2003

Exilados iranianos recorrem àauto-imolação em série comoforma de protesto na Europa

Atear fogo ao próprio corpo é uma formaextrema de protesto político e, por isso, poucocomum. Não se trata de um suicídio, pois amorte nem sempre é o desfecho de quem partepara a auto-imolação. E as marcas para os quesobrevivem são terríveis e permanentes. Emapenas dois dias da semana passada, oitoexilados iranianos transformaram-se em tochashumanas durante manifestações em Paris,Londres, Roma e Berna. Um deles, uma mulher,morreu em Paris. A auto-imolação em série nocoração da Europa foi a resposta desses exiladosa uma megaoperação da polícia francesa paradesarticular o Mujahidin do Povo, grupo armadoque luta contra o regime teocrático do Irã e é

considerado organização terrorista pelos Estados Unidos e pela UniãoEuropéia. Desde o início da década de 60, quando um monge budistavietnamita inaugurou esse tipo de protesto político, não se viam tantos casosseguidos. Na realidade, foi a primeira vez que se viu uma demonstração comtal quantidade de homens-tocha.

O objetivo das auto-imolações foi pedir a libertação imediata de MaryamRajavi, que eles chamam de "presidente do Irã". Mulher do líder dosmujahidin, Massoud Rajavi, que foi expulso da França em 1986 e instalouseu quartel-general no Iraque, ela é a mais importante entre os 165militantes presos pela polícia nos arredores de Paris. Quase todos foramlibertados depois de prestar depoimento, mas Maryam e outros vintecontinuam detidos. Na noite de quinta-feira passada, ela divulgou umcomunicado pedindo a seus seguidores o fim do sacrifício, que a estavadeixando "triste e atormentada". Disciplinados, eles pararam de se encharcarde gasolina e atear fogo ao próprio corpo. Mas deixaram o alerta de que ademonstração de fanatismo pode recomeçar a qualquer momento, se a"presidente" continuar atrás das grades. O Mujahidin do Povo atua nosmoldes de uma seita. Sua linha política, uma estranha mistura de conceitosmarxistas com islamismo, é marcada pelo fanatismo e por exacerbado cultoà personalidade em torno do casal Rajavi. Chama a atenção a forte presença

Aiatolá Ali Khamenei, líder supremo doIrã: dono da palavra final

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feminina entre seus combatentes. As mulheres representam um terço dobraço militar da organização – entre os oito incendiários, dois erammulheres. 

uters  uters 

PARIS  BERNA  LONDRES 

AP 

ROMA  PARIS 

Seqüência de auto-imolações de iranianos em cidades européias:

oito exilados, ligados a grupo de oposição ao regime do Irã,atearam fogo ao corpo em protesto contra a prisão da líder e deoutros ativistas na França

Quando eram mais comunistas e menos islâmicos, os mujahidin lutavampara derrubar o xá Reza Pahlevi, do Irã. Embora defenda a adoção de umgoverno secular, o grupo participou da Revolução Islâmica de 1979, aliando-se ao aiatolá Khomeini. Nessa condição foi co-participante nos horroresiniciais do regime. A lua-de-mel com os turbantes negros durou menos dedois anos. Em 1981, os mujahidin mataram num atentado o presidente, oprimeiro-ministro e setenta altos funcionários do Irã. O governo contra-

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atacou sem dó e varreu a organização do território iraniano – estima-se queo número de militantes mortos ultrapasse 100.000. Os que escaparam darepressão partiram para o exílio, sobretudo na França. Na guerra entre o Irãe o Iraque, o casal Rajavi ficou com Saddam Hussein, que lhe deu armas ebases para treinamento. Em troca, ajudaram o ditador a massacrar asrebeliões curdas e xiitas em 1991. Durante a invasão do Iraque, o governoamericano primeiro flertou com o Mujahidin e usou o grupo para evitar que oIrã se metesse no conflito. Depois, tirou-lhe todos os tanques e a artilharia,mas permitiu que continuasse nos acampamentos e fizesse exercícios deordem unida com armas leves. 

Apesar de serem o mais bem organizado movimento oposicionista iraniano,os mujahidin não são uma alternativa que interesse a Washington. São

alucinados demais para merecer confiança. Além disso, por causa da aliançacom Saddam, o casal Rajavi é tremendamente impopular entre os iranianos.As prisões foram um aceno de boa vontade feito pelo governo francês aosdirigentes do Irã – um modo de a França voltar a ter a mínima influência noOriente Médio, hoje sob hegemonia dos Estados Unidos. É uma rara notíciaanimadora para os aiatolás de Teerã. O governo islâmico passou as duasúltimas semanas às voltas com a maior onda de protestos internos já vistosde dois anos para cá. As manifestações, os buzinaços e os comícioscomandados por estudantes universitários começaram de forma espontâneana capital e acabaram se alastrando para várias cidades do interior. Oregime teocrático rapidamente responsabilizou os Estados Unidos de incitaros jovens e prendeu dezenas de estudantes. Mas foi forçado a amenizar arepressão depois que os protestos passaram a contar, pela primeira vez, como apoio de trabalhadores e intelectuais. 

Milicianos do Mujahidin do Povo mostramfotos de parentes mortos ( a c i m a ) , e oprotesto dos jovens em Teerã ( a o l a d o ) :   aiatolás em apuros

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A crise interna se resume a uma contradição aparentementeinsolúvel. De um lado, a insistência dos aiatolás que detêm o

poder de fato no Irã em manter intacto o rígido código decostumes, em vigor desde a Revolução Islâmica. De outro, ainsatisfação dos jovens iranianos com a falta de liberdade. Doisterços da população têm menos de 25 anos e estão cansados dainterferência dos líderes religiosos nos mínimos detalhes docotidiano. Tudo é proibido pelo regime teocrático, da música a umsimples aperto de mão em público entre um homem e umamulher. Para driblar a vigilância das milícias religiosas, os jovensorganizam bailes clandestinos e alimentam o lucrativo

contrabando de CDs e livros ocidentais. Os iranianos já tentaramde tudo. Nas duas últimas eleições, deram vitória folgada aosreformistas liderados pelo presidente Khatami. Mas toda medidaliberalizante elaborada no Parlamento é vetada pelo aiatolá AliKhamenei, o supremo líder espiritual, que controla do Judiciárioàs Forças Armadas e dá a última palavra em qualquer assunto. OIrã só não entra em convulsão porque não existe uma oposiçãoorganizada. Mas a irritação é tão grande que até Khatami, oreformista que não reforma, passou a ser vaiado nas passeatas.

Não bastasse a efervescência popular, o governo americanovoltou a ameaçar com punições caso fique comprovado o objetivomilitar do programa nuclear iraniano. O regime teocrático aindaestá no controle, mas começa a balançar. Se prosseguir nesseritmo, só Alá poderá salvá-lo.

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A riqueza dos aiatolás 

03 de setembro de 2003

Clero xiita se aproveitou do podertotal para enriquecer no Irã 

Os aiatolás do Irã derrubaram o xá Reza Pahleviem 1979 com a promessa de instaurar um regimede pureza islâmica e alto padrão de moralidadepública. Para atingir tais objetivos, o clero xiitaassumiu total controle do aparelho de Estado, dasinstituições nacionais e também de boa parte da

economia. Duas décadas depois, o resultado daislamização é impressionante: os iranianos estão

mais pobres e os aiatolás, muito mais ricos. O surgimento de umacasta de milionários de turbante era previsível. Não há decisão políticaou econômica importante no Irã sem a bênção dos mulás. E eles usamessa influência para controlar os melhores negócios, principalmente osque envolvem moeda forte. Não se tem notícia de que o falecidoaiatolá Khomeini, fundador da República Islâmica, tenha tiradoproveito financeiro do poder ilimitado de que dispunha. Já seu filhomais velho, Ahmed, clérigo sem fortuna que passou a controlar aagenda do pai, tinha se tornado o homem mais rico do Irã quandomorreu, em 1995. Com base em cálculos do economista iranianoSaeed Laylaz, a revista americana Forbes diz que o clero xiita desvioude 3 bilhões a 5 bilhões de dólares por ano na última década só comsubsídios concedidos aos religiosos na compra de moeda estrangeira.O Irã detém 9% das reservas mundiais de petróleo e também é ricoem gás natural – só se pode supor quanto dessa riqueza tem sidorapinada pela turma de turbante.

O aiatolá Ali Akbar Hashemi Rafsanjani pode ser considerado o maiorexemplo do enriquecimento fácil em nome de Alá. Filho de uma famíliahumilde de agricultores, Rafsanjani foi um dos principais assessores deKhomeini. Presidiu o Parlamento nos anos 80 e, após a morte do imã,foi nomeado seu sucessor. Entre 1989 e 1997, Rafsanjani ocupou aPresidência – período no qual começou a erguer seu impériorecorrendo ao nepotismo. Nomeou um irmão para dirigir a maior minade cobre do Irã e outro para cuidar da rede estatal de rádio e TV. Paraassegurar o controle da produção de petróleo, Rafsanjani indicou um

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dos filhos e um sobrinho para postos estratégicos no ministério dosetor e não sossegou até que um cunhado assumisse o governo de

uma região coalhada de poços. Paralelamente, Rafsanjani colocou emmarcha um processo de abertura econômica que recebeu elogios noOcidente – mas que se caracterizou pela venda de estatais a preço debanana para aliados e parentes.

Rafsanjani foi derrotado nas eleições de 1997 peloatual presidente, o reformista MohammedKhatami. A maioria dos parentes que havianomeado foi afastada e alguns aliados acabaram

formalmente acusados de corrupção. Mesmoassim, um de seus filhos continuou à frente daconstrução do metrô de Teerã, obra de 700milhões de dólares e repleta de denúncias deirregularidades. Sua família, porém, já amealhouo suficiente para tocar por conta própria umimpério econômico de interesses diversos,incluindo uma companhia aérea, uma montadorade carros e resorts no exterior (veja quadro aolado). Hoje, Rafsanjani mantém sua influência

política dirigindo um dos vários órgãos consultivosdo Parlamento.

A fortuna acumulada pelos líderes religiosos éassunto tabu no Irã por várias razões. A primeira, óbvia, pelo fato deos iranianos viverem sob uma ditadura – não há partidos de oposiçãolegalizados, Judiciário independente nem liberdade de imprensa paradenunciar os desmandos dos mulás. "Quando o assunto é dinheiro,somem as divergências entre conservadores e reformistas, quecostumam dividir esses líderes religiosos em correntes políticas bemdefinidas", disse a VEJA o cientista político iraniano Shaul Bakhash, doInstituto Brookings, nos Estados Unidos. A estrutura de poder no Irãtambém facilita a roubalheira. Cerca de 60% da economia está nasmãos do Estado. Outros 20% são controlados pelas bayads  – asfundações de caridade religiosa que, na prática, funcionam comoestatais gigantes. As bayads foram criadas após a Revolução Islâmicacom o patrimônio confiscado da família do xá e das multinacionaisnacionalizadas. Sua função era atender às camadas pobres dapopulação, mas acabaram se convertendo rapidamente em

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instrumento de clientelismo político e fonte incontrolável de corrupção.Até recentemente, essas fundações eram isentas de impostos, podiam

pegar emprestado dinheiro de bancos estatais a juros subsidiados eainda tinham acesso a taxas de câmbio especiais. De quebra, nãoprecisavam prestar contas ao governo – apenas a Alá.

Com tantos benefícios, essas fundações religiosas criaram impérioseconômicos. Um exemplo é a Fundação dos Oprimidos, dirigida porMoshen Rafiqdoost, ex-chefe da segurança pessoal de Khomeini.Apesar do nome, a fundação tem 400 000 funcionários e bensavaliados em 12 bilhões de dólares – entre eles, redes de hotéis cinco-estrelas e uma fábrica da Pepsi nacionalizada, sem contar setores da

indústria petrolífera, têxtil e de construção civil. Além de encherem osbolsos dos mulás e servirem de cabides de emprego, as bayads financiam grupos terroristas no exterior, como o Hezbollah, no Líbano,e são apontadas como fonte de recursos para o programa nuclearsecreto do governo. Foi uma dessas fundações que, em 1989, ofereceu2 milhões de dólares pela cabeça do escritor anglo-indiano SalmanRushdie, acusado de blasfemar contra o Islã no romance Os VersosSatânicos.

Khatami, o presidente reformista, conseguiu aprovar algumas leis que

cortaram vários dos benefícios fiscais das bayads e tomou medidaspara coibir a corrupção. Mas parece improvável uma caça aos mulásmilionários. Um filho do aiatolá Vaez Tabasi, Naser, que dirigia umazona de livre comércio na região do Golfo, chegou a ser acusado defraude e evasão de divisas. Mas acabou absolvido por um tribunal háquatro meses sob a justificativa de que não sabia que estavacometendo um crime. Resta saber se será perdoado por Alá.

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Carnificina na mesquita de Ali

O atentado foi devastador: o carro-bomba que explodiu ao lado da mesquita de Ali, o localmais sagrado dos muçulmanos xiitas, na sexta-feira passada, matou pelo menos oitentapessoas e feriu 100. Entre os mortos está o aiatolá Mohammed Bakir Al-Hakim, líder doConselho Supremo para a Revolução Islâmica no Iraque, a maior organização política dosxiitas, que representam 60% da população daquele país. Centenas de pessoas estavam nocomplexo, que abriga a tumba de Ali, sobrinho do profeta Maomé e fundador do ramo xiitado Islã, na cidade de Najaf. A bomba foi acionada por controle remoto e danificou a entradaprincipal da mesquita. A pergunta óbvia nessas ocasiões é: a quem interessa a morte de Al-Hakim? Exilado no vizinho Irã, durante duas décadas, ele liderou uma guerra de guerrilhascontra o regime de Saddam Hussein. Voltou ao Iraque depois da queda do ditador e semostrava moderado e disposto a negociar com os americanos. Os mulás xiitas estão emguerra aberta uns com os outros e vários já foram mortos. Mas é difícil imaginar que algumdeles tivesse a ousadia de dinamitar a mesquita de Ali.

É por isso que os principais suspeitos são os remanescentes do regimede Saddam, que representava a vertente sunita do islamismo. Oataque aos aiatolás combina com a estratégia de estabelecer o caos noIraque para tornar insuportável a vida das tropas de ocupação. Diasantes, outro aiatolá, tio de Hakim, escapou de um atentado em quemorreram alguns de seus guarda-costas. É a complicação que faltavapara os americanos: agora também precisam garantir a vida dos

aiatolás. Como fazer isso se as tropas de ocupação costumam serrecebidas por multidões furiosas quando se aproximam dos locaissantos dos xiitas? Na semana passada, soube-se que aumenta ainfiltração através da Arábia Saudita e da Síria de estrangeiros ansiosospara combater os americanos. A situação está tão complicada queWashington começou a pensar o impensável: pedir a ajuda da ONUpara patrulhar o Iraque. Até agora, o governo Bush relutava, visto queo Conselho de Segurança da organização não endossou a invasão doIraque. Na última semana, o Departamento de Estado mudou de tom.As tropas de paz da ONU são bem-vindas, desde que sob comando americano. 

Resgate dos feridos em Najaf: um ataque num localsanto para os xiitas

O aiatolá Al-Hakim,morto no ataque:diálogo comamericanos

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FOTOGRAFIAS

A fé e as tradições

RESTRIÇÕES: muçulmanos barrados em mesquita de Jerusalém 

VIGIADOS: policial israelense em mesquita de Jerusalém 

RITUAL: seguidores da seita Kaznazani em Bagdá, Iraque 

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CANTO E DANÇA: muçulmanos sunitas no Ramadã iraquiano 

SOB RISCO: na Caxemira, oração e perseguição religiosa 

NO OCIDENTE: muçulmanos em mesquita de Chicago, nos EUA 

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 DEVOÇÃO: o afegão Muhammad Ali faz oração em Cabul 

RAMADÃ: orações na mesquita de Meca VÉUS: muçulmanas oram na primeira noite do Ramadã

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LOCAL HISTÓRICO: o templo de Hazrat Alli, no Afeganistão 

LIVRO SAGRADO: meninas com um Corão em Jacarta, Indonésia 

NA PALESTINA: menino lê o Corão na Faixa de Gaza  

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 PEDRA SAGRADA: no centro da mesquita de Meca, a Caaba 

PEREGRINAÇÃO: à noite, centenas de milhares em Meca 

XIITAS NO IRAQUE: muçulmanas na Tumba de Ali (Najaf) 

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NAZARÉ, ISRAEL: local de construção de nova mesquita 

BANGLADESH: devotos em trem na Conferência Islâmica 

JERUSALÉM: orações diante da cúpula dourada de Al Aqsa 

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O radicalismo no islã

SÍMBOLO: Osama bin Laden estampa calendário na Malásia 

INTOLERÂNCIA: policiais cercam homossexuais no Egito 

'HERÓI': pôster do líder da Al Qaeda à venda no Paquistão  

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ESCOLA ISLÂMICA: famílias homenageiam alunos das madraçais 

PELA FÉ: paquistanês protege exemplares do Corão em cavernas 

UZBEQUISTÃO: oração contra ataque dos EUA ao vizinho Afeganistão 

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 ARMAS E ROSAS: iranianas desfilam com fuzis AK-47 em Teerã 

GUERRA SANTA: 'Jihad é o nosso caminho', diz paquistanês 

VÍTIMA DO TALIBÃ: afegãos oram em memória do líder Ahmed Massud 

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AUTOFLAGELAÇÃO: xiitas batem em seus próprios corpos 

SACRIFÍCIO: autoflagelação dos xiitas em Najaf, Iraque 

PROIBIÇÕES: garrafas de bebida são destruídas na Indonésia 

FANATISMO ENTRE OS JOVENS: meninosiraquianos se golpeiam 

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Festas e costumes

MECA: fiéis chegam a mesquita para orações de sexta-feira 

JACARTA: dançarinos se apresentam em festa no Ramadã 

COMPRAS: paquistanês escolhe chapéu usado durante orações 

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 DESPERTAR NO RAMADÃ: iraquiano acorda os fiéis para oração

SOBREMESA: mulher egípcia espera nova fornada de kunafeh 

SOB O VÉU: iraquianas compram tecidos em mercado de Bagdá 

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ADEREÇOS: paquistanesas escolhem contas e brilhos em loja 

PARA QUEBRAR O JEJUM: muçulmano vende fainis na rua 

FESTIVAL: iemenita compra frutas e nozes para o Eid-al-Fitr 

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 CARIDADE: vendedores turcos distribuem pão durante o Ramadã 

DOCES: paquistaneses preparam o prato conhecido como jilebi 

AFEGÃOS EM NOVA YORK:muçulmanos dividem arroz comcarneiro 

BUBOR LAMBUK: prato com arroz, leitede côco, carne e anchovas 

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 PESHAWAR: um refugiado afegão compra pão no Paquistão 

XADOR: iranianas usam a veste negra que cobre o corpo todo  

CORÃO FEITO DE CHOCOLATE: chef indonésio apresenta criação 

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NOVA DÉLI: indiano vende feni, alimento popular no Ramadã 

NA PALESTINA: primeiro-ministro Qorei no desjejum no Ramadã 

BANGLADESH: vendedor seca porções de shemai, doce típico 

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A mulher mulçumana

MODA: modelo malaia exibe vestido decostureira saudita 

VÉU EM QUADRA: egípcia disputa Copa do Mundo de Vôlei 

PENA DE MORTE: nigeriana AminaLawal, acusada de adultério 

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SEM A BURCA: mulher afegã nosexames da Universidade deCabul 

CONDENADA E PERDOADA: SafiyaHussaini escapou da morte 

CHICOTEADAS: iranianas punidas por ferir lei islâmica 

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 BARBIES DO ISLÃ: iraniana observa as bonecas Dara e Sara  

REABERTURA: Fakria Sarwar faz teste para trabalhar em rádio afegã 

100 CHIBATADAS: Magazu, condenada por adultério na Nigéria 

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DOS PÉS À CABEÇA: afegã usa burca emvilarejo do Afeganistão 

70 CHIBATADAS: condenada por comemorar fim de ano comhomens

XADOR: veste que cobre o corpo e partedo rosto, típico do Irã 

SARA MUSTAFÁ: morta pelo paiporque namorava um não-muçulmano 

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