urbanizaÇÃo brasileira e a segregaÇÃo das...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
CENTRO DE TECNOLOGIA
ENGENHARIA CIVIL
URBANIZAÇÃO BRASILEIRA E A SEGREGAÇÃO DAS INFRAESTRUTURAS
PÚBLICAS: SUSCITANDO NOVOS OLHARES NA ENGENHARIA CIVIL
TRABALHO DE CONCLUSÃO DO CURSO
Geisiane Kessler Burmann
Santa Maria – RS, Brasil
Dezembro, 2017
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Geisiane Kessler Burmann
URBANIZAÇÃO BRASILEIRA E A SEGREGAÇÃO DAS INFRAESTRUTURAS
PÚBLICAS: SUSCITANDO NOVOS OLHARES NA ENGENHARIA CIVIL
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao
Curso de Engenharia Civil, da Universidade Federal
de Santa Maria (UFSM, RS), como requisito parcial
da obtenção do grau de Engenheira Civil.
Orientador: Prof. Dr. Marcos Alberto Oss Vaghetti
Santa Maria, RS, Brasil
Dezembro, 2017
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Geisiane Kessler Burmann
URBANIZAÇÃO BRASILEIRA E A SEGREGAÇÃO DAS INFRAESTRUTURAS
PÚBLICAS: SUSCITANDO NOVOS OLHARES NA ENGENHARIA CIVIL
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao
Curso de Engenharia Civil, da Universidade Federal
de Santa Maria (UFSM, RS), como requisito parcial
da obtenção do grau de Engenheira Civil.
Aprovado em 22 de Dezembro de 2017.
__________________________________________
Marcos Alberto Oss Vaghetti, Dr. (UFSM)
(Presidente/Orientador)
__________________________________________
Juliana Pippi Antoniazzi, Ma. (UFSM)
__________________________________________
Thiana Dias Herrmann, Ma. (UFSM)
Santa Maria, RS, Brasil
Dezembro, 2017
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Vila Vintém
Quantas vilas vinténs
Dos grandes centros urbanos
Enormes prédios desocupados, terrenos baldios, casarões inutilizados
E a Vila Vintém resiste
Mas não pode ocupar
É pobre
Não pode ocupar não é graduado
Não pode ocupar não tem cultura pra morar nos grandes centros
E eu digo: resiste Vila Vintém!
Resiste Vila Vintém, ocupa,
É teu!
Tu construiu!
Todas as vilas vinténs de todas as cidades
Todos os terrenos invalidados e reutilizados, humanizados,
Resiste! Ocupa!
Vila Vintém,
Resiste!
Cacau de Sá, Vila Vintém
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RESUMO
Trabalho de Conclusão de Curso
Engenharia Civil – Centro de Tecnologia
Universidade Federal de Santa Maria
URBANIZAÇÃO BRASILEIZA E A SEGREGAÇÃO DAS INFRAESTRUTURAS
PÚBLICAS: SUSCITANDO NOVOS OLHARES NA ENGENHARIA CIVIL
AUTORA: GEISIANE KESSLER BURMANN
ORIENTADOR: MARCOS ALBERTO OSS VAGHETTI
Santa Maria, Dezembro de 2017.
Este trabalho visa debater o histórico descaso social para com as infraestruturas dispostas no
território brasileiro através da urbanização, aproximando três áreas da ciência (a Política, o
Direito e a Economia) para debater a produção de Engenharia Civil ao longo desse processo.
Esse debate tem fundamental importância na condução de inclusão social visto que o processo
de urbanização no contexto histórico e socioeconômico do país foi responsável pelo
agravamento do problema habitacional, refletindo na conformação atual das cidades brasileiras.
O objetivo primário deste trabalho, é demonstrar que apesar do direito à moradia, à luz da
constitucionalização, se colocar como um direito social indispensável para uma vida digna e de
competência do Estado garanti-la, as políticas habitacionais implantadas apenas mascaram o
problema e acabam beneficiando o setor privado na geração de riquezas do país. Um processo
que prevalece há muito tempo e que deve ser colocado de lado. Para isso é preciso desenvolver
novas técnicas de engenharia desassociadas da especulação financeira e da inovação
tecnológica empresarial. Uma engenharia civil engajada com o enfoque social e articulada com
a participação da sociedade civil e de suas entidades representativas. O presente estudo foi
construído a partir de análises bibliográficas e documentais, de modo basicamente qualitativo
e explicativo, tomando como base a necessidade de um novo tipo de abrangência da
aplicabilidade dos serviços de engenharia e uma nova concepção no desenvolvimento
acadêmico da tecnologia.
Palavras-chave: Urbanização. Reforma urbana. Direito à moradia. Segregação urbana.
Desenvolvimento tecnológico. Engenharia social.
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ABSTRACT
Conclusion Work Graduation
Civil Engineering - Technology Center
Federal University of Santa Maria
BRAZILIAN URBANIZATION AND THE SEGREGATION OF PUBLIC
INFRASTRUCTURES: ELICITING NEW VIEWS IN CIVIL ENGINEERING
AUTHOR: GEISIANE KESSLER BURMANN
SUPERVISOR: MARCOS ALBERTO OSS VAGHETTI
Santa Maria, December, 2017.
This work aims to discuss social historic neglect for with the arranged of the infrastructures in
the brazilian territory along the urbanization, approaching three areas of science (Politics, Law
and Economics) to discuss the production of Civil Engineering throughout this process. This
debate has fundamental importance in the conduct of social inclusion since the process of
urbanization in the socioeconomic and historical context of the country was responsible for the
deterioration of the housing problem reflecting the current conformation of Brazilian cities. The
primary objective is to demonstrate that despite the right to dwelling in the light of
constitutionalization, to constitute a indispensable social right for a dignified living, and a
competency of the state guarantee it, the housing policies implemented only mask the problem
and end up benefiting the private sector in wealth generation of the country. A process that
prevails long and must be set aside. To this end, it is necessary to develop new engineering
techniques that are not associated with financial speculation and business technological
innovation. A civil engineering committed to the social approach and articulated with the
participation of civil society and its representative entities. The present study was accomplished
from bibliographical and documental analysis, in a qualitative and explanatory way, based on
the need for a new type of comprehensiveness of the applicability of engineering services and
a new conception in the academic development of technology.
Keywords: Urbanization. Urban Reform. Right to dwelling. Urban segregation. Technological
development. Social engineering.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Prédio do Exército Brasileiro e Morro da Favela (atual Morro da Previdência)
no ano de 1900..................................................................................................18
Figura 2 - Cortiço Cabeça de Porco, segunda metade do século XIX. Na época abrigava
cerca de 4 mil moradores...................................................................................19
Figura 3 - Região portuária e comercial do Rio de Janeiro em 1902.................................21
Figura 4 - Mapeamento das Áreas Urbanas do Brasil, 2015..............................................41
Figura 5 - Estudantes no EREDS – SUL Santa Maria, 2016.............................................59
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LISTA DE QUADROS
Quadro 1 - Crescimento da taxa de urbanização brasileira a partir do ano de 1872...........23
Quadro 2 - Número de habitantes nas dez maiores cidades do Brasil no ano 1872, com
levantamentos periódicos até a data 1991.........................................................23
Quadro 3 - Avanços da legislação urbana após a Constituição de 88.................................32
Quadro 4 - Atribuições a moradia, Comitê das Nações Unidas de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais.......................................................................34
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO...........................................................................................................10
1.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS.....................................................................................10
1.2 OBJETIVOS..................................................................................................................12
1.2.1 Objetivo Geral .............................................................................................................12
1.2.2 Objetivos Especificos...................................................................................................12
1.3 JUSTIFICATIVA .........................................................................................................12
2 ASPECTOS POLÍTICO-SOCIAIS DA URBANIZAÇÃO BRASILEIRA...........13
3 LEGISLAÇÃO URBANA E O DIREITO SOCIAL À MORADIA.......................30
4 CENTROS URBANOS DO SÉCULO XXI: ESPAÇOS DE SEGREGAÇÃO......40
5 POR UMA ENGENHARIA ABRANGENTE E SOCIAL.......................................51
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................61
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................64
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1 INTRODUÇÃO
1.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
As cidades, como forma organizacional, existem pelo território brasileiro há séculos,
datam do período do Brasil Colônia. Porém, é a partir do século passado que um modelo
desenvolvimentista tomou o país, principalmente após a década de 60, trazendo um movimento
exponencial de êxodo rural e urbanização, que promoveu a transformação de uma sociedade
essencialmente rural e agrícola, em uma sociedade brasileira essencialmente urbana.
Considerando que a população urbana passa de 45,1% em 1960 para quase 70% em 1980, e
hoje corresponde a 84,4% da população brasileira (SANTOS, 2013).
Esse movimento de urbanização veio ligado a mudanças no modelo produtivo,
econômico e político, e com uma capitalização do território que, entre outros fatores, ocorreu
através da atribuição de valor ao e da privatização das terras, juntamente ao crescimento da
industrialização e de uma demanda de mão de obra assalariada como força de trabalho.
(SANTOS, 2013). Também houve o desenvolvimento maciço de infraestruturas urbanas e
tecnologias construtivas e estruturais. Porém o modelo de desenvolvimento possibilitou que
houvesse uma ocupação acompanhada de desigualdades territoriais, em um sistema
hierarquizado conforme as condições socioeconômicas de cada população, qual hoje, provoca
devastadoras consequências sociais, culturais e ambientais (DEL NEGRI, 2012).
Alocadas em locais de risco ambiental (esse definido por motivos naturais, tal qual é
apresentado por imperativos referentes ao próprio movimento urbano, como a violência, a
insalubridade, e o desemprego), grande parcela da população não possui acesso à gama de
serviços e infraestruturas básicas necessárias a vida, ainda que a Constituição Federal de 1988
garanta o direito à moradia e o direito à cidade como fundamentais. Esse cenário acompanha
uma violenta segregação, visto os atendidos pelas regalias do desenvolvimento, que usufruem
de todas as estruturas urbanas disponíveis, e os habitantes das áreas de risco, com construções
que geralmente sem amparo técnico algum (NALINI, 2011).
No Brasil sob comando militar, pós 1964, “conjugam-se, como a mão e a luva, as
exigências de inserção em uma nova ordem econômica mundial que se desenha [...]”
(SANTOS, 2013, p.109). Dessa forma o direcionamento financeiro fundamental do Estado,
após a década de 60, se dá em função de infraestruturas que atendam às demandas do mercado
e, por conseguinte, passa a desenvolver uma dependência pública ao corporativismo
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empresarial, em todos os aspectos, desde as infraestruturas desenvolvidas aos sistemas de
educação tecnológica. (DEL NEGRI, 2012).
Observa-se esse movimento também no âmbito das instituições de ensino superior no
país. No período militar, as universidades passaram por uma ampla reforma estrutural, político
e pedagógica, advinda do acordo firmado entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos.
Tal medida impôs às universidades a adoção de pacotes tecnológicos nas esferas do ensino e da
pesquisa, mas sobretudo, no caráter do modelo de extensão. Desde então, este tripé no qual
configuram-se as universidades, direciona as suas áreas de abrangência ao desenvolvimento
técnico desarticulado dos aspectos sociais em sua maioria. Isso proporciona domínio sobre a
produção tecnológica, onde se aproveita de toda a estrutura e força de trabalho da Universidade,
para a realização do desenvolvimento tecnológico com uma racionalidade privada, mesmo
dentro de um espaço público, quando têm como finalidade inovações tecnológicas que atendem
a iniciativa empresarial e corporativista. (OLOKAUSA, 2008).
Assim, apesar do intenso investimento realizado pelo governo e por setores do capital
privado, referentes ao desenvolvimento de tecnologias no país, e também desenvolvimento
imobiliário, concomitante ao crescimento urbano, os problemas referentes à falta de moradia
não foram resolvidos. Principalmente quando nos deparamos com uma falta de moradia que
chega a 7,7 milhões, e ainda, uma falta de infraestruturas básicas, quando 83 milhões de
brasileiros não possuem esgotamento sanitário adequado e 45 milhões de pessoas não tem
acesso à água potável encanada. (DEL NEGRI, 2012).
No contexto das infraestruturas desenvolvidas, é importantíssimo que haja
conhecimento das áreas tecnológicas, das engenharias, sobre os fatores sociais pertencentes ao
espaço urbano, para que possam ser desenvolvidas estruturas que atendam de forma mais direta
a necessidade social, com uma abrangência lucida sobre sua concepção. O educador Paulo
Freire (1985) fala que a ação de implementação tecnológica, sem a reflexão sobre as pessoas
interferidas por ela, decorre em uma ação esvaziada de sentido. E defende a educação como
ação política, por isso é necessária a reflexão sobre a engenharia consolidada nas instituições
de ensino e suas implicações sociais, ambientais, econômicas e políticas. (FREIRE, 1996).
Estruturado em seis capítulos, contando a presente introdução, esse estudo abordará, em
seu segundo capítulo, o processo social da formação do espaço urbano, ligando às diretrizes
políticas e econômicas que proporcionaram uma ocupação e uma valorização desigual das
áreas, tanto em acesso às infraestruturas quanto à qualidade de moradia. No terceiro, o estudo
faz uma análise da legislação urbana, no que diz respeito ao direito à moradia e o direito ao
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espaço urbano. No quarto, serão apresentados os aspectos urbanos atuais, a sua problemática
quanto a organização do espaço e os quantitativos das últimas pesquisas do IBGE (Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística) sobre infraestrutura e moradia. Chegando ao quinto, será
apresentado o viés desenvolvimentista do ensino tecnológico de graduação e, em contrapartida,
uma proposta de formação de uma engenharia com uma reflexão mais social e abrangente. E
por último, após a reflexão bibliográfica, as conclusões finais sobre o tema abordado.
Assim, considera-se a tomada de consciência sobre os problemas urbanos, suas origens
e condicionamentos, a primeira iniciativa para reverter o quadro de segregação urbana
brasileira, com o intuito de desenvolver uma sociedade mais igualitária (DÉAK,2004). A
própria colocação da questão instrumenta, inclusive, tomadas práticas de políticas diárias de
forma a fortalecer as forças sociais que caminham pela transformação dessa realidade.
1.2 OBJETIVOS
1.2.1 Objetivo Geral
Estre trabalho tem como principal objetivo analisar o desenvolvimento das
infraestruturas no território urbano, afim de promover um debate social sobre a produção e o
conhecimento acerca da implementação da Engenharia.
1.2.2 Objetivos Específicos
Promover uma análise interdisciplinar acerca das infraestruturas desenvolvidas no
espaço urbano afim de suscitar novas compreensões da tecnologia produzida;
Estudar o alcance da engenharia desenvolvida na zona urbana atualmente, trazendo uma
reflexão sobre sua suficiência, adequabilidade e efetividade frente as necessidades sociais;
Suscitar o comprometimento da Engenharia frente às questões populares, buscando
novos olhares para essa problemática, que abrange diversos aspectos, do econômico ao social
1.3 JUSTIFICATIVA
Ao observar a desigual infraestrutura pública apresentada nas diferentes zonas do
território urbano, com áreas valorizadas e áreas em situação calamitosa, é importante analisar
os Direitos sociais urbanos frente à engenharia produzida. É preciso uma percepção menos
segmentada entre as áreas tecnológicas e humanas, tomando a necessidade de alertar a classe
da Engenheira Civil em relação à demanda e urgência por ação fora do espaço universitário.
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2 ASPECTOS POLÍTICO-SOCIAIS DA URBANIZAÇÃO BRASILEIRA
Por uma série de diretrizes político-econômicas ocorridas no Brasil, tomadas já a partir
do século XX, presencia-se uma mudança expressiva na organização da população, tanto social
quanto territorialmente. Nesse movimento, é observado a passagem de um país
primordialmente rural e agrário para um país majoritariamente urbano, com o desenvolvimento
maçante da economia e do setor industrial. Assim Lefebvre, em seu estudo sobre a cidade,
indica que:
Para apresentar e expor a ‘problemática urbana’, impõe-se um ponto de partida: o
processo de industrialização. Sem possibilidade de contestação, esse processo é, há
um século, e meio o motor das transformações na sociedade. Se distinguirmos o
indutor e o induzido, pode-se dizer que o processo de industrialização é indutor e que
se pode contar entre os induzidos os problemas relativos ao crescimento e à
planificação, as questões referentes à cidade e ao desenvolvimento da realidade
urbana. (Lefebvre, H., 2004, p.3).
Forma-se então no Brasil, um espaço urbano o qual Lefebvre (2004) define como
“cidade do capital”, onde sobre suas características estão a ação predominante do capitalismo
sobre o território. Nelas a estrutura de mercado passa a ser condicionante frente às ações do
Estado, onde os serviços de infraestrutura urbana são voltados a atender uma demanda
econômica, do sistema produtivo e industrial, não uma demanda social. E mesmo quando as
infraestruturas desenvolvidas são em torno de serviços básicos como moradia, o sistema regente
abre também a possibilidade de lucro envolvido na concepção desses serviços, o que acaba não
o direcionando a seu viés social.
Dessa forma, encontramos hoje a cidade com estridentes problemas de infraestrutura e
moradia, tal qual apresenta como imagem uma sociedade segregada e um sistema urbano com
diversos problemas estruturais. Santos (2013, p.20) implica que “sua evolução vai depender da
conjunção de fatores políticos e econômicos” desenvolvidos no país. Nessa concepção
compreender esses fatores sobre a dinâmica da formação urbana é fundamental para o
entendimento da realidade e dos graves problemas sociais atrelados a ela, de forma que nossa
ação na produção de engenharias seja mais condizente com as necessidades sociais de
infraestrutura urbana. Inclusive, Deák (2004, p.17) em seu estudo sobre o território urbano nos
traz a concepção de que “descrever, entender ou interpretar o processo de urbanização do Brasil
implica, na verdade, descrever, entender, interpretar a natureza de sua própria sociedade”.
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As primeiras cidades brasileiras surgem já a partir de 1530, durante a colonização,
porém, é a partir da independência do Brasil (1822) que as cidades ganham nova lógica e
começam a se difundir pelo país e ainda, somente na segunda metade do século passado, o
processo de urbanização começa a compor um cenário urbano de possível comparação com a
organização urbana que vivemos atualmente. Ao longo do processo, esse cenário acompanha
um grande movimento de capitalização do território, industrialização, concentração da
propriedade e êxodo rural, ao passo que a ocupação e uso do território, assim como as
infraestruturas desenvolvidas, são direcionadas a atender as mudanças econômicas em
desenvolvimento no país e assim, acabam acometidas por um histórico descaso social.
(SANTOS, 2013; DEL NEGRI, 2012).
No período colonial, Del Negri (2012, p.39-40) evidencia um Brasil essencialmente
agrícola, onde “a preocupação com a ocupação do território, aberto pelas rotas dos bandeirantes
que partiam [...] em busca de índios e de ouro no interior do continente, fez com que surgissem
vilas e povoados”. Assim, as primeiras cidades surgem a partir da exploração do território (com
a busca dos bandeirastes por riquezas) e do genocídio indígena, uma vez que esses, quando não
escravizados, foram mortos, o que no caso, propiciou o mesmo resultado. Milton Santos (2013),
ao fazer um estudo sobre a época, evidencia que as cidades eram poucas, pequenas e localizadas
inicialmente no litoral sudeste e nordeste do território, que cumpriam além de função de
colonizar e habitar o território, função mercantil. Também salienta que esse quadro se mantém
por séculos, visto que já ao fim de 1720, o Brasil possuía apenas oito cidades.
Já por volta de 1800, ocorre uma revolução técnica no país tanto do território, com novos
cultivos (chegada do café) e novas terras cultivadas (expansão agrícola no Sudeste), quanto do
processamento da cana, onde os engenhos são substituídos por máquinas a vapor. Essa nova
funcionalidade impulsiona as cidades, antes privilégio do litoral, a se espalharem pelo interior
do território, porém, não houve nessa época um crescimento dos conglomerados urbanos, “
tratava-se muito mais da geração de cidades, que mesmo de um processo de urbanização ”
(SANTOS, 2013, p.22). Nesse período a casa da cidade torna-se a principal residência do
fazendeiro ou senhor de engenho, mas, apesar do avanço tecnológico, a estrutura da sociedade
não se modifica, continua patriarcal, baseada na produção rural, no latifúndio, na monocultura
e no trabalho escravo como força de produção (SANTOS, 2013, apud BASTIDE, 1978).
O primeiro crescimento dos centros urbanos observado no Brasil ocorre a partir da
segunda metade do século XIX. Apesar do censo no Brasil não diferenciar a população rural e
urbana até o ano de 1940, existem dados para as capitais dos estados e para o distrito federal
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que permitem aos teóricos estimar a porcentagem da parcela da pulação urbana anterior à data.
Dessa forma Milton Santos (2013, p.25) expõe um crescimento da taxa de população urbana de
5,9% para 10,7% entre os anos de 1872 e 1920. É importante ressaltar esse período pois esse
primeiro crescimento quantitativo considerado dos centros urbanos, como será abordado a
seguir, não acontece por acaso, ele se apresenta junto a uma nova concepção econômica e social.
O Brasil até então, “ao cabo do século XIX, era um país essencialmente agrário, voltado
para produção quase exclusiva de café e cana-de-açúcar, com mão de obra completamente
escrava” (DEL NEGRI, 2012, p.50). Por conseguinte, houveram fatores que determinaram o
desenvolvimento dessa nova conjuntura organizacional, dentre eles Deák (2004) apresenta a
institucionalização do trabalho assalariado como meio produtivo, através da promulgação da
Lei de Terras em 1850 e da Abolição da escravatura em 1888.
A Lei de Terras promove a privatização das terras produtivas, não pertencentes no
momento às oligarquias, em torno da posse do Estado. Dessa forma, o trabalhador “livre”, não
possuía acesso livre à terra para produzir seu sustento e moradia, então é obrigado a vender sua
força de trabalho, para com o salário recebido, comprar provisões no mercado, gerando uma
demanda de serviços e produtos em torno de sua sobrevivência. Assim, a relação de produção
através do trabalho assalariado, a qual é definida por Deák (2004, p.30) como “o próprio
fundamento da produção capitalista”, ao mesmo tempo interessava às indústrias, que
necessitavam de mão de obra nos centros urbanos, portanto às quais interessava a migração dos
trabalhadores campesinos às cidades, pois além de aumentar a oferta de mão de obra, geravam
também um mercado de consumo. (DEÁK, 2004; FERNANDES, 2008).
Florestan Fernandes (2008) descreve que apesar da promessa modernização
representada pela consolidação da nova nação-Estado, através da instituição da República em
1889, que, como cita, de certa forma realizada para conter as mobilizações sociais (separatistas,
republicanas e/ou abolicionistas) que estouravam de sul à norte, não houveram medidas
complementares que promovessem a inserção democrática da população no novo sistema,
como reforma agrária, educação e inserção no mercado de trabalho, acesso à moradia, saúde
etc. Nas palavras de Fernandes (2008, p.71): “A desagregação do regime escravocrata e
senhorial se operou, no Brasil, sem que se cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho
escravo”. Ainda, vale pontuar que, não houve orientação destinada a integrar os trabalhadores
negros à nova forma de organização social além disso “nada, definitivamente nada, vinculava
axiológica e congruentemente o negro a sua herança sociocultural” (2008, p. 113).
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Além disso, através de incentivos ideológicos e financeiros estimulados pelo Estado,
nessa época muitos trabalhadores rurais, principalmente europeus, imigraram ao país para
servirem de mão de obra, nas lavouras no nordeste e sudeste e, no caso do Sul, para ocuparem
a terra de forma a colonizar o território. Deste modo “os ex-cativos [...] expostos ao interesse
da classe dominante, tiveram que concorrer com os imigrantes europeus que absorveram as
melhores oportunidades de trabalho livre independente. O grande proprietário dava preferência
ao imigrante” (DEL NEGRI, 2012, p.51). Vale pontuar que tal conjuntura desencadeou
posteriormente, principalmente a partir dos anos 60, com um alto crescimento econômico do
país, a formação de uma classe média majoritariamente branca (FERNANDES, 2008).
Fernandes (2008) constata que essa vinda dos trabalhadores imigrantes ao país, se deu
em um número maior que o trabalho disposto nas lavouras, de forma que os trabalhadores,
imigrantes e negros, desprovidos de seus meios de subsistência afluíam as cidades. O que
interessava também a nova lógica capitalista, industrial de mercado as quais o pais desenvolvia,
pois mantinha a oferta de braços num nível elevado, de maneira a condicionar o trabalhador,
em busca de meios de subsistir, a trabalhar por valores irrisórios, mantendo o custo da mão-de-
obra baixo e o lucro, para os grandes donos, elevado.
Nesse sentido, Lefebvre (2004, p.7) descreve as cidades antigas como:
Mercados, fontes de capitais disponíveis, locais onde esses capitais são gerados,
residência dos dirigentes econômicos e políticos, reservas de mão-de-obra (isto é,
locais onde pode subsistir ‘o exército de reserva do proletariado’, como diz Marx, que
pesa sobre os salários e permite o crescimento da mais-valia). Além do mais, a cidade,
tal como a fábrica, permite a concentração dos meios de produção num pequeno
espaço: ferramentas, matérias-primas, mão-de-obra.
Percebe-se assim os protagonistas desse crescimento urbano: trabalhadores rurais que
migram do campo para cidade para servir de mão de obra nas indústrias e nos mais diversos
serviços e, apesar do avanço vendido em torno das cidades, as pessoas que promoviam seu
crescimento não eram acostumadas ao território urbano e acabavam em ocupações precárias e
periféricas, de modo que as áreas comtempladas pela infraestrutura desenvolvida nos centros
urbanos com o crescimento, continuam restritas as elites já residentes. (FERNANDES, 2008).
Com essa nova lógica, as cidades, ainda raras, vale lembrar, mais expressivas da época
se constituem como cidades polos dos subespaços existentes. No caso de São Paulo, por
exemplo, através da produção e exportação de café, entre 1874 e 1920, apresenta um
crescimento correspondente a passagem deum vilarejo de 20 mil habitantes à um complexo de
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500 mil moradores. Ainda em 1920, Porto Alegre abrigava 179 263 habitantes e Rio de Janeiro,
capital do país na época, 1 157 873 (SANTOS, 2013).
O desenvolvimento populacional dessas cidades, ocorreu ligado também a mudanças
nos sistemas de engenharia, onde houve a expansão dos portos e das estradas de ferro, e
implantação de meios de comunicação, que permitiam uma maior fluidez no território. Uma
característica comum a todas as cidades expressivas da época é a localização geográfica, qual
se dá próxima ao litoral, o que através das estruturas desenvolvidas propiciavam a promoção
de relações de mercado, externo e interno. Isso promoveu avanços nos sistemas de engenharia,
direcionadas a implementação de estruturas afim de comtemplar a nova relação de mercado,
porém, sem o desenvolvimento de infraestruturas e políticas públicas que atendessem as
demandas básicas da nova população urbana. (SANTOS, 2013).
Essa dicotomia da engenharia implementada nos setores urbanos, apresentada no início
do século XX, e que segue no desenvolvimento das infraestruturas no país, é apresentada por
Del Negri (2012) no que descreve o seguinte trecho:
Entusiasmados por essa ‘nova era’, alguns atores sociais ignoraram a extrema
precariedade urbana e se empenharam em construir arquiteturas exuberantes
utilizando as mais sofisticadas técnicas de construção da época (torres, colunas,
esculturas, esquadrias adornadas...) com o intuito de provocar o fascínio nas pessoas
e ligar o momento a prosperidade [...]. Ao lado dessa prosperidade de interessante
patrimônio arquitetônico formava-se uma sociedade empobrecida. (p.41-42).
Também é possível observar a contradição explanada pelo autor anteriormente, na
Figura 1 apresentada a seguir. Discordância facilmente constatada entre as estruturas de
edificação, nas infraestruturas desenvolvidas e na divisão do espaço urbano, onde à frente se
apresenta um prédio robusto, adornado, com visível amparo técnico em sua concepção, escolha
dos materiais e execução, também com vias bem pavimentadas e transporte público imediato.
Porém, se observarmos logo ao fundo, a realidade é diferente, encontra-se um conjunto de
habitações, firmando-se contra as regras gerais da natureza, apinhadas na encosta do morro e
dividindo o espaço possível para coexistirem. Aliás, esta é a primeira favela construída no
Brasil, o Morro da Favela localizada, atual Morro da Providência no Rio de Janeiro, quando os
migrantes que chegavam a cidade encontraram no morro alternativa para alcançar a moradia
(COSTA; AZEVEDO, 2016).
18
Figura 1- Prédio do Exército Brasileiro e Morro da Favela (atual Morro da Providência) no
ano de 1900.
Fonte: G1 Rio, 2015.
Isto posto, além de ocupações periféricas mais distantes, onde não havia sequer
infraestrutura disposta (como os morros no caso de São Paulo e Rio de Janeiro, vide Costa,
DB.; Azevedo, UC., 2016) também datarem dessa época, uma grande parcela da população
mais pobre que chegava aos centros urbanos, já desde a segunda metade do século XIX,
encontrava os cortiços como habitações destinadas as classes populares, os quais
predominantemente acompanhavam péssimas condições estruturais e de salubridade. Uma
característica marcante, é que os cortiços eram divididos por um grande número de pessoas,
que com separações internas, feitas mesmo no improviso, separavam o prédio ocupado em
aposentos individuais. Como é o caso do cortiço Cabeça de Porco, maior cortiço do Rio de
Janeiro que, até perto do fim do século XIX, abrigava cerca de 4 mil pessoas em um mesmo
casarão reformulado (Figura 2).
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Figura 2- Cortiço Cabeça de Porco, segunda metade do século XIX. Na época abrigava cerca
de 4 mil moradores.
Fonte: G1 Rio, 2015.
Nessa época, muitos casarões localizados no centro das cidades, até então considerado
a zona mais nobre do território urbano, foram abandonados por seus antigos donos, de modo
que os investidores financeiros aproveitaram essas casas como uma grande oportunidade de
ganhar dinheiro. Os cortiços então, foram provenientes da divisão desses casarões em diversos
espaços individuais. (DEL NEGRI, 2012). Deste modo as habitações populares da época eram
proporcionadas através de iniciativas privadas que, por meio de aluguéis, usufruíam da
necessidade dos trabalhadores, referente à moradia nos centros das cidades, de forma mercantil.
Tais habitações eram o destino de grande parte dos trabalhadores, que, desprovidos de
capital financeiro para constituir moradia própria, procuravam essas habitações também em
função de serem próximas aos postos de trabalho. Vale lembrar que os cortiços eram localizados
no centro das cidades, zonas nobres urbanas, o que não combinava nenhum pouco com as
atribuições estigmatizadas que rondavam suas estruturas e assim, também não agradavam a
elite residente nas suas imediações. Então, como descreve Del Negri (2012), no início do século
XX uma série de ações higienistas por parte do Estado, acabaram com os cortiços, despejando
a população residente para longe da vista dos centros urbanos, ou seja, para os territórios
periféricos. Tal fato faz com que o autor também considere o cortiço, o espaço anterior à favela.
O caos na ocupação urbana que a época já apresentava e a falta de infraestruturas básicas
dispostas, principalmente às camadas populares, chagavam a tornar a cidade insalubre,
20
favorecendo a disseminação de doenças. Esse cenário também refletia no setor econômico das
cidades e, consequentemente, do país, onde inclusive o Rio de Janeiro, então Capital do Estado,
chegava a ser reconhecida por ‘Porto Sujo’ ou ‘Cidade da Morte’ e assim era evitada por
viajantes e comerciantes, fato que pode ser observado na Figura 3. Com a justificativa de pôr
fim a esse quadro epidemiológico e incluir o país e as cidades no comércio internacional, essa
nova política sanitária foi implementada pelo Estado. Contudo, as ações foram realizadas
através de um caráter autoritário e impositivo, sobretudo direcionado à população mais pobre,
expulsa dos centros com a demolição de diversas casas residenciais, em nome da higiene e do
embelezamento urbano. (SUPPIA; SCARABELLO, 2014).
Figura 3 - Região portuária e comercial do Rio de Janeiro em 1902.
Fonte: Revista Pré-Univesp, n.61, Dez./Jan., 2017.
Uma boa analogia pode ser feita em relação às políticas de saúde pública do Brasil entre
1902 e 1906 que, também como medida sanitária, tornaram obrigatória a vacinação contra a
varíola. Elas foram conduzidas no Rio de Janeiro pelo então ministro da saúde, o médico
sanitarista Osvaldo Cruz, e acabaram desencadeando a Revolta da Vacina, em 1904. Mais que
um levante contra as medidas sanitárias, “a revolta representou o protesto ampliado contra o
projeto de modernização excludente que estava em marcha naquele momento, uma reação
legítima frente ao tratamento autoritário que o governo dispensava ao povo” (SUPPIA;
SCARABELLO, 2014, p.4), mostrando o descontentamento popular frente às ações do Estado.
21
Mesmo assim, tais medidas foram vistas de forma positiva sendo que “a iniciativa
realizou uma modernização necessária naquele momento, combatendo a insalubridade e
realizando a adequação funcional e formal do centro da cidade” (SUPPIA; SCARABELLO,
2014, p.4). Porém, como citado, foi restrita aos centros das cidades, com destaque às áreas
portuárias, e com o intuito econômico e financeiro de inserir o país no mercado internacional.
Além disso, a modernização representava os interesses das elites dominantes, de forma que
parte da população não enquadrada entre os eleitos acabou expulsa dos centros reformados.
Assim se observa a discriminação das políticas do Estado frente ao povo, segregando os
trabalhadores pobres das zonas favorecidas pelas infraestruturas e os colocando à margem dos
territórios desenvolvidos, assim como quem não deveria aparecer no cartão postal da cidade.
As primeiras iniciativas de planejamentos de infraestruturas básicas e habitação, direcionados
a população e com disposição por parte do Estado, próximo ao chamado de planejamento
urbano hoje em dia, só ocorrerão a partir da segunda metade do século XX, quando cidades
como São Paulo e Rio de Janeiro já alcançavam mais de dois milhões de habitantes e Porto
Alegre possuía quase 400 mil moradores (SANTOS, 2013).
É importante analisarmos os fatores que influenciaram esse período pois foram
essenciais para entendermos o modelo de urbanização que o país desenvolveu ao longo dos
anos e para que hoje tenhamos um desenho urbano com as características sociais e espaciais
atuais. Também para percebermos que a urbanização, as políticas de Estado, e o
desenvolvimento de infraestruturas, desde suas primeiras manifestações de organização,
sempre estiveram ligadas ao interesse financeiro de mercado, da capitalização do território,
seguidas por políticas excludentes e segregacionistas, que atingem como foco principal, os
trabalhadores pobres. Assim, podemos dizer que a cidade se constituiu, ao longo dos anos, na
apropriação do capital sobre o território e sua, consequente, expropriação social.
Em sequência aos fatos, se em 1920 a população urbana apresenta cerca de 10% da
população brasileira em 1940 ela apresenta 26,35%, havendo o crescimento urbano também de
cidades no interior do território (SANTOS, 2013). Segundo Santos, tal crescimento foi
impulsionado pelo movimento do capital mercantil, no desenvolvimento de setores como
energia, telefonia, transportes, ensino, bancário, assim como a instalação de mercados diretos,
o que promoveu o aumento de serviços nas cidades. Ele segue trazendo a reflexão sobre a
ocupação da população economicamente ativa no Brasil, onde um país essencialmente agrícola,
constata um aumento constante nas atividades do setor terciário a partir de 1920. Tal fenômeno
apresenta a ampliação do trabalho relacionado aos serviços e atividades mercantis ao ponto que
22
a urbanização se expande, de tal forma a depender de maior número de mão de obra e assim
gerando um maior consumo e a ampliação do mercado e do capital financeiro privado.
Inclusive, Del Negri (2012) traz que o fenômeno da migração das lavouras (devido a
mecanização do campo) para trabalhar na construção civil (devido ao crescimento imobiliário
e a busca de mão de obra barata), foi fator decisivo para essa mudança.
Porém, apesar da taxa da população urbana crescer significativamente até 1940, não se
considera um processo de urbanização, pois além do Brasil ainda ser um país essencialmente
rural (quase 80% da população), o crescimento individual das cidades apresentava oscilações.
Concomitantemente, também não é considerado um processo de industrialização propriamente
dito implementado no Brasil. É a partir do término da Segunda Guerra mundial (1945), que a
industrialização encontra uma nova impulsão vinda do poder público e do crescente mercado
interno, e assim, agregado a ela, um grande crescimento urbano.
É dessa forma que Deák (2004, p.16) aponta que: “O trabalho assalariado – vale dizer,
o desenvolvimento do capitalismo -, a industrialização e a urbanização não são apenas
inseparáveis ou inter-relacionados: são um só processo”. De fato, como já observamos
anteriormente, esses três fatores foram fundamentais ao longo da apresentação do crescimento
dos centros urbanos e agora, pós-guerra e com um desenvolvimento econômico acelerado,
encontram nova lógica e dimensão.
Tal fenômeno também é explicitado por Milton Santos (2013, p.30) onde se refere a
industrialização, não isoladamente como a criação de indústrias, mas como um “processo social
complexo, que tanto inclui a formação de um mercado nacional, quanto os esforços de
equipamentos do território para torná-lo integrado” . Então, conjuntamente empreende-se um
forte programa de investimentos em infraestruturas, com o intuito de atribuir fluidez ao
território, com a interligação das estradas de ferro, até então desconectadas, e a construção de
estradas de rodagem, ligando as regiões do interior entre elas e com as regiões portuárias mais
desenvolvidas. Esse forte incentivo às infraestruturas, é direcionado principalmente em obras
ligadas ao desenvolvimento da produção e industrialização, o qual vem explicado pelo desejo
de modernização do território nacional, afim de atingir os níveis de desenvolvimento e produção
necessários então, para que o país possa se integrar nas relações com o mercado externo, global.
Todos esses fatores ligados ao desenvolvimento provocaram uma multiplicação
exponencial do espaço urbano, sendo que além de haver um crescimento quantitativo da
população brasileira, “entre 1940 e 1980, dá-se a verdadeira inversão quanto ao lugar de
residência da população brasileira” (SANTOS, 2013, p.31). De fato, em 1940 a taxa da
23
população urbana representava 26,35% da população do país, alcançando a taxa de 68,86% em
1980. Assim, pode-se perceber a dimensão que as mudanças ocorridas no país, principalmente
sobre seus meios produtivos e relação de mercado, tiveram sobre a concepção do desenho do
território urbano nacional, já que em 40 anos a população rural passa de cerca de 75% da
população para apenas 30%, e os centros urbanos presenciam uma gigantesca expansão, como
pode ser observado nos quadros presentes a seguir.
Quadro 1 - Crescimento da taxa de urbanização brasileira a partir do ano de 1872.
ANO População Urbana (%) População Rural (%)
1872 5,9 94,1
1920 10,7 89,3
1940 26,4 73,3
1950 36,2 63,8
1960 45,1 54,9
1970 56,0 44,0
1980 68,9 31,1
1991 75,5 24,5
2000 81,2 18,8
2010 84,4 15,6
Fonte: Milton Santos, A Urbanização Brasileira, 2013; IBGE, 2010.
Quadro 2 - Número de habitantes nas dez maiores cidades do Brasil no ano 1872, com
levantamentos periódicos até a data 1991.
Município 1872 1900 1920 1940 1950 1960 1970 1980 1991
Rio de Janeiro 274972 811443 1157873 1764141 2377451 3281908 4251918 5090700 5336179
Salvador 129109 205813 283422 290443 417235 649453 1007195 1493685 2056013
Recife 116671 113106 238843 348424 524682 789336 1060701 1200378 1290149
Belém 61997 96560 236402 206331 254949 399222 633374 — —
Niterói 47548 53433 85238 142407 186309 — — — —
Porto Alegre 43988 73647 179263 272232 394151 635125 885545 1125477 1262631
Fortaleza 42458 48369 78536 180185 270169 507108 857980 1307611 1758334
Cuiabá 355987 — — — — — — — —
São Luís 31604 — — — — — — — —
São Paulo 31385 239820 579033 132261 2198096 3781446 5924615 8493226 9480427
Fonte: Milton Santos, A Urbanização Brasileira, 2013.
24
É de se observar que o crescimento urbano se deu aos saltos durante o último século,
principalmente em seus últimos 50 anos. Além disso, cidades já citadas aqui como Rio de
Janeiro e São Paulo, presenciam, respectivamente, suas populações se multiplicaram pela cifra
de 3 e 6,5 vezes, entre as décadas de 40 e 80, assim como o caso de Porto Alegre onde sua
população quadriplica de tamanho no período. O quadro acima se constata em uma ferramenta
importante, pois além do período citado, também nos possibilita observar o movimento urbano
e o volume populacional nas principais cidades já partir da segunda metade do século XIX,
trazendo dimensão ao crescimento urbano seus fatores relacionados. E como será observado a
seguir, é somente a partir da década de 50, mais expressivamente de 60, que o governo começa
a esboçar primeiras manifestações acerca de um planejamento urbano, época em que as
principais cidades do Brasil, presentes no Quadro 2, já expressavam grande população.
Nos anos seguintes aos anos 50, período pós Segunda Guerra Mundial, mais
precisamente em 1964, houve a imposição do governo militar que, entre outros fatores, mexeu
com a estrutura política e econômica do país, atingindo diretamente a vida da população. Nesse
sentido, Milton Santos (2013) aborda um intenso desenvolvimento tecnológico, na produção
industrial e agrícola, assim como na relação de mercado, onde esses setores se beneficiam da
expansão da classe média e do consequente aumento do consumo popular. Novamente, para
atender a demanda produtiva e mercantil, desenvolvem-se muitos sistemas de infraestruturas,
como dos transportes, de telecomunicações, da produção de energia, mas sem priorizar as
demandas básicas sociais do território. Dessa forma,
Enquanto o crescimento econômico se manteve acelerado o modelo ‘funcionou’
criando uma nova classe média urbana, mas mantendo grandes contingentes sem
acesso a direitos sociais e civis básicos: legislação trabalhista, previdência social,
moradia e saneamento, entre outros. (NALINI, 2011, p.18).
Frente a crescente taxa de urbanização ocorrida a partir da época, pode-se constatar que
a população rural foi amplamente atingida pelo novo sistema econômico implementado. De
fato, foi instaurado um novo modelo com base em modernas tecnologias, evidenciado o meio
rural, com o propósito de aumentar a produtividade agrícola, através então de novos cultivos,
variedades de sementes, trazendo assim, a necessidade de uso dos implementos e maquinários
ligados a nova tecnologia. Esse cenário também aumenta as atividades industriais, na produção
dos insumos e equipamentos ligados aos novos cultivos, e também a relação de mercado, com
a comercialização dos mesmos.
25
Assim, é possível frisar, mais uma vez a apropriação do capital sobre o território, visto
que, além do incentivo gerado às atividades industriais e comerciais envolvidas, as novas
tecnologias atingiram o campo de maneira favorável ao grande proprietário e as produções
hegemônicas, que possuíam capital financeiro condizente com o investimento necessário para
adequar sua propriedade às novas tecnologias. Porém aniquilou o pequeno produtor, que sem
poder adotar as novas possibilidades técnicas, não conseguiu se sustentar frente à
competitividade da produção agrícola das grandes propriedades, que contavam com maiores
rendimentos e flexibilidade financeira, frente as oscilações do mercado. (SANTOS, 2013).
Todo esse modelo resultou na concentração da produção do campo em torno das grandes
propriedades, o que por hora também causou a diminuição no número de trabalhadores no
campo, ao ponto que os pequenos produtores, não conseguindo competir com as novas
exigências de mercado, acabam abandonando suas propriedades e migram aos centros urbanos
em busca de melhorias de vida e atraídos pela oferta de emprego e pelas estruturas físicas que
os centros urbanos ofereciam em seu prometido progresso. Para noção de dimensão Del Negri
(2012, p.49) nos traz que: “em 1985, os latifundiários (3% dos proprietários) possuíam em torno
de 70 a 80% de todas as terras ocupadas no Brasil”. Assim, o Brasil presenciou uma urbanização
baseada no êxodo rural, onde novamente exacerbou o latifúndio como meio produtivo.
O movimento de ocupação urbana pelos migrantes em meio a todo deslumbramento do
período em torno do impulso da economia, com o chamado milagre econômico, se dava
apartado frente aos avanços do desenvolvimento de infraestruturas nos centros urbanos. Del
Negri (2012) conceitua essa nova conjuntura urbana como uma adaptação do espaço junto a
correlação “espaço-poder” onde os empresários, donos de fábricas, latifundiários, que
enriqueciam com o capitalismo, além da nova classe média que conhecia então uma nova
possibilidade econômica, usufruíam e esbanjavam de estruturas arquitetônicas grandiosas,
enquanto um grande número da população, se alocava em áreas negligenciadas pelo Estado e
pela elite, áreas periféricas em condições precárias de vida e trabalho.
Diante de toda a alarmante taxa de urbanização que o país já presenciava, e dos
problemas apresentados decorrentes da falta de infraestruturas básicas e de planejamento do
espaço, é somente no período após a Segunda Guerra Mundial, e principalmente após o golpe
e instituição do governo militar em 1964, que o Estado começa a desenvolver iniciativas de
planejamento urbano. Dessa forma, Deák (2004) aborda que, em meio ao desejo de progresso
e reconstrução pós-guerra que rondava o país na época, nas primeiras manifestações, era
considerado parte do planejamento urbano todas as ações referentes ao desenvolvimento do
26
território urbano, que não podendo ser realizadas pela iniciativa privada, tinham de ser
assumidas pelo governo, em sua concepção, assim como em sua implementação.
Fomentados por essas diretrizes, no período de governo militar os planos urbanísticos
chegam a seu auge, mais precisamente na virada da década de 60 para 70, como cita Deák
(2004, p.13), onde, “em sua época de ouro foram elaborados grandes, e às vezes grandiosos,
‘planos integrados de desenvolvimento’ (os PDI)”, os quais abrangiam todos os aspectos do
desenho urbano das cidades nacionais, assim desde obras de infraestrutura até diretrizes para a
disposição de serviços e de uso e ocupação do solo. Nessa época, dentre as iniciativas
grandiosas, além dos PDI, surgiram outros planos também a nível nacional, como o Plano
Nacional de Saneamento (Planasa) e o Serviço Federal da Habitação e Urbanismo (Serfhau).
Porém, seguindo a questão elitista e econômica em torno das infraestruturas
desenvolvidas, todo entusiasmo em torno dos planos urbanísticos era raso em embasamento, no
que segue a descrição de Deák (2004, p.14): “vistosos em sua concepção, pouco deles era
efetivamente ‘implantado’ e o crivo entre ‘teoria’ e ‘prática’ de planejamento tornava-se tão
gritante já que não podia ser ignorado”. Além disso, discorre Del Negri (2012), no que o Brasil,
como possuía natureza esplêndida, os planos seguiam esse deslumbramento que cercava a elite
sobre o território, já os descreve como planos de melhoramento e embelezamento, direcionados
esteticamente para as zonas centrais e assim nem de perto tangenciavam as necessidades das
classes populares, residentes das áreas periféricas. Assim, os projetos se concretizavam muito
mais no plano das ideias do que acompanhando a realidade urbana.
De encontro as concepções, Santos (2013), também atribui fatores a falta de efetividade
dos Planos criados na época. Dentre eles, destaca que apesar da abrangência idealizada, os
estudos em torno do planejamento eram restritos em obter uma apresentação muito mais formal
que mesmo material. Ainda, foram definidas referentes a tais planejamentos, questões tópicas
de infraestruturas como moradia, transporte, as quais foram pesadamente influenciadas pelos
interesses de agências privadas, nacionais e estrangeiras, que aproveitaram o momento para
direcionar as obras estruturais públicas aos interesses do financiamento privado, e assim, a
proveito do jogo de valorização territorial e do mercado imobiliário.
Então, como a existência de um plano diretor urbano também não era obrigatório até a
Constituição Federal de 1988, não haviam incentivos financeiros suficientes, privados e/ou
públicos, para executar as obras planejadas à população, principalmente quando essas não
atraiam os interesses das agências financiadoras. Por consequência “virou lugar comum os
planos ‘ficarem na prateleira’ e os meados dos anos de 1970 presenciaram a extinção dos planos
27
integrados” (DEÁK, 2004, p.14). Dessa forma, além de não serem totalmente efetivos em sua
concepção, muito dos planos acabaram abandonados sem nenhuma realização.
Isso vem alinhado a ideologia desenvolvimentista e de crescimento econômico, qual
encontrou impulsão do governo instalado após 64. Com um governo militar autoritário, houve
a centralização dos recursos públicos nos domínios do governo federal, qual permitiu que estes
fossem destinados a implementação de infraestruturas voltadas ao desenvolvimento do
mercado, na justificativa do crescimento econômico, enquanto legitimava a orientação do gasto
público em benefício de grandes empresas em uma apropriação do capitalismo monopolista
sobre o território urbano. Por essa ideologia econômica,
De um lado, é preciso dotar as cidades de infraestruturas custosas, indispensáveis ao
processo produtivo e à circulação interna dos agentes e dos produtos. De outro, para
atingir o mercado nacional, é exigida uma rede de transportes que assegure a
circulação externa.
Esse raciocínio também conduziu a dar prioridade aos investimentos em capital geral
do interesse de umas poucas empresas, em lugar de canalizar os dinheiros obtidos para
dar respostas aos reclamos sociais. O regime autoritário, mediante rígido controle das
manifestações de uma opinião pública já por si deformada, contribuiu, fortemente,
para a manutenção desse esquema” (SANTOS, 2013, p.113).
Dessa forma, ferramentas sociais importantes, através de imposição governamental,
giravam em torno do capitalismo econômico, sendo elas as políticas públicas e a independência
ideológica da população, no que diz respeito as diretrizes tomadas com os recursos nacionais.
Ainda, Santos conclui: “Daí, em pouco tempo, resultados concomitantes: a extraordinária
geração de riquezas, cada vez mais concentradas, não é contraditória com a enorme produção
de pobreza, cada vez mais difundida, enquanto surgem novas classes médias” (SANTOS, 2013,
p.114-115). Fato qual pode ser observado também nitidamente no espaço atual.
As políticas públicas direcionadas a questão de moradia urbana na época, também
possuíam influência direta do mercado financeiro onde os investimentos em habitação
apareceram como instrumentos de capitalização desprovidos de interesse social. Como o caso
do programa do Banco Nacional de Habitação (BNH), criado a partir de Lei Federal em 1964,
que financiou com dinheiro público a construção de diversos conjuntos habitacionais, até acabar
extinto no ano de 1986 (DEL NEGRI, 2012; SANTOS, 2013).
A promessa da criação do BNH dava-o como instrumento de melhoria das condições
de moradia dos habitantes urbanos, criando novas condições para a aquisição da casa própria.
Na realidade, o Banco utilizava de recursos públicos, arrecadados junto a renda mensal de todos
os trabalhadores, através de uma parcela recolhida do salário dada pelo Fundo de Garantia por
28
Tempo de Serviço (FGTS) e os utilizava primordialmente a favor da modernização da
economia. O restante ainda era utilizado para o equipamento das cidades e o financiamento da
construção de moradias, que eram então executadas com dinheiro público, porém
confeccionadas por empresas privadas que lucravam com as obras. Além disso, com a
justificativa de preços mais baixos dos terrenos, os conjuntos habitacionais eram construídos,
quase que por regra, nas periferias urbanas, terrenos até então desvalorizados aos quais, com os
mesmos recursos públicos, eram realizadas obras de adequação (como iluminação, saneamento,
transporte e vias de acesso). Assim, o BNH contribuiu para agravar a o espraiamento das
cidades além de fomentar as diretrizes da especulação imobiliária (SANTOS, 2013).
Assim os conjuntos habitacionais, construídos através do Banco e, não salvo, bem longe
disso, também o caso dos condomínios residenciais fechados, que crescem em grande número
a partir da época, atribuem valor ao território anteriormente periférico e desvalorizado, por
consequência das infraestruturas decorrentes desenvolvidas no local. Desta forma, os terrenos
circundantes das áreas habitacionais, também se apropriam dessa valorização territorial, de
maneira que seus proprietários usufruem do aumento do capital atribuído ao território, no
incessante jogo do mercado imobiliário. Em decorrência, a população que necessitava de
habitação, sem poder pagar pelo seu preço nas áreas mais equipadas, acaba se deslocando para
áreas mais periféricas, longe dos centros urbanizados. Assim, mais uma vez, essa população
mais periférica, não é atendida com habitação, tampouco pelas infraestruturas desenvolvidas.
É importante elucidar que o objetivo aqui não é criticar os moradores de condomínios
realizados por meio de financiamento público, como o caso explicitado do BNH ou, no caso
atual, das moradias financiadas pela Caixa Econômica Federal (banco sucessor), muito pelo
contrário, muitas pessoas alcançaram o direito de possuir moradia através desses programas. O
que se pretende enaltecer, é a crítica ao oportunismo financeiro das empresas privadas sobre as
políticas e os programas nacionais de habitação, além de frisar o direcionamento das
infraestruturas aos interesses do mercado financeiro, onde assim, a problemática do déficit de
moradia acaba sendo encarada e encaminhada através de soluções elitistas e/ou paliativas.
Muito menos o de desqualificar as infraestruturas urbanas desenvolvidas até os dias de
hoje, sendo de suma importância para o mínimo desenvolvimento social e organizacional dos
cidadãos em qualquer esfera, dos municípios ao território nacional. Porém, não houve a
erradicação da pobreza. Ainda, vale ressaltar que a urbanização do território, com devido
planejamento de uso do solo e infraestruturas adequadas, ocorreu de maneira desigual, de forma
que “a cidade urbana na modernização tecnológica organiza um espaço que se divide entre
29
aqueles que têm moradia com qualidade e aqueles que, embora tendo as mesmas necessidades
de moradia com qualidade, têm apenas um teto” (DEL NEGRI, 2012, p.71-72), constituindo
em uma segregação estrutural e, até mesmo social e econômica.
Dessa forma, delinear novas formas de desenvolver o espaço, de pensar a instalação,
acesso e investimento em infraestruturas, de conceber e engenhar as estruturas dispostas à
população de acordo com suas necessidades básicas e culturais, são precisas e são urgentes. Tal
que,
A experiência prática mostra que pode haver crescimento sem desenvolvimento
social. Nessas condições, as transformações na sociedade são mais aparentes do que
reais. O fetichismo e a ideologia da transformação ocultam a estagnação das relações
sociais essenciais. O desenvolvimento da sociedade só pode ser concebido na vida
urbana, pela realização da sociedade urbana. (LEFEBVRE, 2004, p.77).
Assim apresenta-se a formação da sociedade brasileira, uma sociedade urbana em um
espaço não urbanizado, e ainda, muitos dividindo um espaço mínimo de infraestruturas,
enquanto poucos esbanjam de todo conforto do desenvolvimento.
30
3 LEGISLAÇÃO URBANA: O DIREITO SOCIAL À MORADIA
Um grande marco jurídico nacional, símbolo dos direitos civis universais brasileiros, é
a Constituição da República Federativa do Brasil, fundamentada em 1988,
Há bons motivos para tanto [...]. Na esteira de Estados nação liberados do
autoritarismo, o Brasil produziu uma Constituição Cidadã em que o tema foi objeto
de tratamento prioritário e adequado aos novos ares democráticos. Além da alteração
topográfica, alocados logo após os princípios fundamentais, a asserção foi pródiga
[...], enuncia os cinco direitos básicos: vida, liberdade, igualdade, segurança e
propriedade. (NALINI, 2011, p.15).
Com um capítulo exclusivo sobre política urbana é através da Constituição que o
planejamento urbano passa a ser obrigatório, como um direito garantido a todo cidadão
brasileiro. Sincronicamente houve o aprimoramento do conceito de função social da
propriedade, o que compôs, junto ao planejamento um avanço importante sobre a questão de
moradia urbana no Brasil (DEL NEGRI, 2012). Além disso, como define Nalini, “o teto é
imprescindível à garantia da maior parte de todos os demais direitos pertinentes ao ser pensante”
(2011, p.39), de forma que, a habitação constitui um elemento fundamental para que sejam
cumpridos os demais direitos proclamados na constituição, inclusive os direitos básicos.
Um pouco anterior à Constituição, vista lembrar, a Lei Federal de Parcelamento do Solo,
instaurada em 1979, foi a primeira Lei Federal no sentido de regularizar o território urbano, que
dentre suas diretrizes prevê a divisão das áreas pertencente às glebas urbanas em lotes
destinados à edificação, como função destinada a ordenar as questões habitacionais. A Lei
define que o parcelamento do solo urbano poderá ser feito na maneira de loteamento ou
desmembramento (no que difere essa, é o aproveitamento do sistema viário existente), onde,
por encargo do loteador seja servido de infraestrutura básica. Esta deve ser composta pelos
equipamentos urbanos de escoamento das águas pluviais, iluminação pública, abastecimento de
água potável, energia elétrica pública e domiciliar, vias de circulação e solução adequada para
o esgotamento sanitário (DEL NEGRI, 2012). Dessa forma, a Lei favorece a urbanização de
territórios urbanos ociosos para dar lugar a habitações.
Por um outro viés, a Lei também favorece a construção de condomínios fechados, onde
diferentemente dos loteamentos convencionais, as áreas de lazer e infraestruturas desenvolvidas
no conjunto são de propriedade privada aos condôminos residentes e não de domínio público.
A partir dos anos 70, com intuito de atender a demanda de moradias da classe alta, era habitual
os acordos de parceria do governo com a iniciativa privada, auxiliando como pudesse. E assim,
31
a Lei nº6.766/79, ao constituir uma normatização do uso do solo para fins urbanísticos, justifica
a concepção atribuída a esse tipo de moradia, visto o parcelamento de uma gleba urbana para
fins habitacionais, porém, o caráter privativo do loteamento estimula a segregação do espaço.
(DEL NEGRI, 2012).
Nesse jogo, empresas privadas se oportunizam das diretrizes governativas e da falta de
planejamento e habitação urbana, para lucrarem com o sistema orquestrado pelo mercado
financeiro imobiliário, criando espaços fechados onde são desenvolvidas estruturas para
satisfazer os habitantes, mas salve somente àqueles que possuem o poder financeiro para pagar
por elas. Apesar disso, não podemos deixar de ver o caráter positivo da Lei de Parcelamento do
Solo e o avanço jurídico-urbanista por traz de seu significado, sendo que legisla a favor da
divisão do território urbano e da reestruturação do mesmo, com o requerimento que seja devida
a infraestrutura instalada aos espaços. É tamanha sua relevância que, salve algumas
modificações e melhorias, ainda continua efetiva.
Outro marco jurídico-urbanístico, deu-se através da Constituição de 88, essencialmente
no que se refere à função social da propriedade e à política urbana. Passa a ser obrigatório cada
Município desenvolver um Plano Diretor nos quais constem as demandas de interesse local, de
acordo com à especificidade de cada um. Referente ao Plano, devem ser consideradas,
planejadas e estruturadas as infraestruturas básicas de rede, de uso comum, afim de atender toda
população municipal, sendo direito comum o acesso a elas e dever do sistema governativo sua
implementação universal (NALINI, 2011).
Nesse momento, a população urbana atingia o montante de mais de 70% da população
nacional e as cidades, com suas crises, presenciavam um cenário de problemas urbanos,
proporcionados pelo seu crescimento explosivo e acompanhado constantemente de falta de
planejamento (SANTOS, 2013). Então é instituído o planejamento urbano como forma de
garantir os direitos básicos proclamados pela Constituição e, ao mesmo tempo, tentar mudar a
realidade frente aos problemas alusivos as aglomerações urbanas, através de um conjunto
objetivo de ações relativos à segurança pública, infraestrutura, saúde, educação, ciência,
tecnologia e política de moradia (DEL NEGRI, 2012). Salvo a não efetividade aparente desses
objetivos, a partir da Constituição até os dias atuais, muitos avanços no que diz respeito à direito
constitucional urbano foram consagrados, sendo aprimoradas e incrementadas várias diretrizes
referentes a moradia e espaço social urbano. Tais quais podem ser observados no Quadro 3.
32
Quadro 3 - Avanços da legislação urbana após a Constituição de 88.
Fonte: Caderno JU, Direito à Moradia. Regularização Urbana no Brasil. Jornal da Universidade: julho de 2015.
Atribuído à essa configuração, o país possui uma Constituição Brasileira que garante a
moradia como Direito Social, além do que, prevê o parcelamento do solo urbano com interesse
em atender à esse direito e ainda, que todo Município com mais de 20 mil habitantes tenha um
Plano Diretor que regulamente o uso do território, atrelado as diretrizes do Estatuto da Cidade,
contendo delimitações físicas (como em caso de áreas de reserva ou risco ambiental, previsão
de recuos e áreas de lazer e de uso comum) e deveres estruturais (com a obrigatoriedade de
disposição de infraestrutura básica a essas moradias). Esse Plano Municipal deve ser revisto a
cada dez anos e estar ligado às regras federais e estaduais de ocupação do território (DEL
NEGRI, 2012).
33
Apesar do fracasso na implementação dos planejamentos urbanos nacionais de décadas
anteriores, no que Del Negri (2012) refere-se como “planos não planejados”, a regulamentação
e dever constitucional sobre a obrigatoriedade de termos um Plano Diretor Municipal é uma
importante ferramenta no âmbito social, porque “o planejamento realmente é uma forma de
intervenção estatal na atividade econômica com o objetivo de tentar promover a inclusão de
todos os cidadãos na base da igualdade de direitos” (DEL NEGRI., 2012, p.135). Nele, podem
ser tomadas diretrizes sobre os gastos e necessidades públicas municipais, com o planejamento
da ocupação e infraestrutura física, social e espacial do território urbano. Dessa forma:
Pela Constituição Federal está visto que a função social da cidade deve ser pensada
junto a um plano urbanístico, de responsabilidade dos Municípios, a fim de atender o
desenvolvimento urbano (art. 182, CF/88), na figura do instrumento básico da política
urbana que é o plano diretor, o que se encontra disciplinado no Estatuto da Cidade
(Lei nº 10.257/01). (DEL NEGRI, 2012, p.156-157).
Outro fator importante, abordado anteriormente de maneira breve, são os avanços na
definição referente à função social da propriedade. Sobre esse quesito, no que garante as
diretrizes da Constituição, Del Negri, define que para cumprir sua função social “a propriedade
tem que ser pró-sociedade”, alinhadas ao que pressupõe a Constituição Federal, o Estatuto da
Cidade e o Plano Diretor Municipal. “Não é apenas utilizar a propriedade, não é simplesmente
edificá-la. É necessário que nela se desenvolvam atividades lícitas e úteis a atingir o equilíbrio
socioambiental” (2012, p.120-121). Dessa forma, somente a posse de uma área já não garante
mais seu direito de propriedade, ela precisa ter valor de uso. Pressupondo um terreno ocioso,
frente a pessoas sem moradia, pode-se considerar a perda de sua função social, já que não
ocupado de forma efetiva, não estabelece enlaces positivos com sua relação urbana.
Com a elaboração do Estatuto da Cidade, 2001, obteve-se também muitos avanços
legislativos referentes a legislação urbana, uso e ocupação do solo e moradia. Dentre esses
fatores, o Estatuto reforça o conceito de função social da propriedade e, da mesma forma, expõe
novos mecanismos de ação e finalidades para garantir que haja seu cumprimento. “Uma delas
é o instituto jurídico da desapropriação para fins sociais, à medida que se entenda
desapropriação como uma sanção pelo fato de a propriedade não cumprir com a sua função
social, não apresentando a devida utilização” (DEL NEGRI, 2012, p.121). Outras formas de
regulamentação de uso do território então, se dão através dos domínios da usucapião
constitucional, da especial coletiva de imóveis, da regularização fundiária e da concessão de
uso especial para fins de moradia (DEL NEGRI, 2012).
34
Uma situação recorrente nos municípios brasileiros e decursiva do descaso recorrente
com a questão de habitação e planejamento do uso do território no país, à qual discorre Del
Negri (2012), é o caso dos assentamentos urbanos irregulares, onde geralmente se apresentam
como ponto latente na falta de acesso às infraestruturas urbanas. Todavia, esse acesso é um
direito do cidadão e dever do
Município, sob pena de omissão, dentro de sua competência constitucional, atendendo
a suas características, organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou
permissão, os serviços públicos de interesse local, bem como promover, no que
couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso,
do parcelamento e da ocupação do solo urbano (art. 30,VIII, CF/88). (DEL NEGRI,
2012, p.158)
Visto também que esse território está sendo ocupado com o objetivo de moradia, ou
seja, passando cumprir sua função social, ele deve dispor minimente de acesso as redes de
infraestrutura básica para que os moradores dessas regiões possam se integrar nas relações da
sociedade urbana e usufruírem de alguns dos seus direitos.
Aliás, a Emenda Constitucional nº 26 de 2000, define moradia como um direito social
constitucional. Isto posto, pertinentemente Del Negri (2012, p.39) traz o conceito de “moradia
como direito do indivíduo para elevar sua qualidade de vida e alcançar a dignidade), não se
confunde com direito à propriedade (‘direito real que recai sobre um bem’) ”, sendo assim,
caráter do Estado, um dever público da sociedade, garantir e oferecer condições espaciais,
ambientais e sociais de moradia aos indivíduos.
Para contextualizar melhor o conceito de moradia, em 2000, o Comitê das Nações
Unidas de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, definiu os elementos básicos que devem
pertencer aos âmbitos da moradia, quais podem ser observados no quadro 4 a seguir:
Quadro 4: Atribuições a moradia, Comitê das Nações Unidas de Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais.
Disponibilidade de serviços
e infraestrutura
Acesso ao fornecimento de água potável, fornecimento de energia, serviço
de saneamento e tratamento de resíduos; transporte, iluminação pública...
Habitabilidade A moradia deve ser habitável, tendo condições de saúde física e salubridade.
Acessibilidade Construir políticas habitacionais que comtemple os grupos vulneráveis como
a sociedade empobrecida, vítimas de desastres naturais, conflitos armados...
Localização A moradia deve estar em lugares que permitam o acesso às opções de
emprego, transporte público eficiente, saúde, escola, cultura e lazer.
Adequação cultural Respeito a produção social do habitat, à diversidade cultural, aos padrões
habitacionais oriundos dos costumes e usos das comunidades e grupos sociais.
Fonte: NALINI, 2011, p.39-40 apud COHRE, 2000, p.84.
35
O documento prevê que tais garantias devem ser protegidas pelos governos públicos e,
além destas expostas no quadro 4, prevê mais duas adequações de dever público aos moradores,
sendo elas segurança jurídica da posse e custo de moradia acessível, onde o salário mínimo
deve ser suficiente para que qualquer cidadão tenha acesso à moradia e também, o Estado deve
controlar o aumento excessivo das taxas de aluguéis, oferecer proteção contra despejos forçados
e deslocamentos, e outras ferramentas que garantam a estabilidade dos moradores. O que é
evidente é que essa compreensão está longe de ser realidade, Nalini (2011, p.39) já cita que a
“categoria de direito fundamental da moradia é reconhecida em inúmeros tratados e
instrumentos internacionais. A humanidade é pródiga em previsões normativas e incompetente
em concretiza-las”, uma infeliz e verdadeira denotação sobre o processo.
Entretanto, continuando nas diretrizes constitucionais, um trecho da obra de Lígia Melo
(2010), explicitada por Del Negri (2012), sinaliza referente à concepção de moradia que:
‘Não se trata somente de ter acesso a um local para morar, é preciso que ele esteja em
condições de ser habitado’, exatamente porque morar não é apenas ter um ‘teto’. É de
incomparável relevância que, para os estudos do Ditreito, na configuração
constitucional brasileira, atualmente em vigor, haja condições como água,
saneamento, eletricidade, creches, coleta de lixo, escolas, locais onde exista o acesso
ao emprego, espaços de recreação. Por isso, para a citada autora, ‘moradia adequada’
é aquela que tenha segurança da posse, disponibilidade de serviços, infraestrutura,
condições físicas e salubres para moradia e transporte público (DEL NEGRI, 2012, p.
105-106 apud MELO, 2010, p.154).
Pode-se perceber que diversas esferas relacionadas aos direitos constitucionais urbanos
estão dentro das atribuições designadas à engenharia civil. Na medição topográfica para
regulamentação fundiária, na instalação de água potável, rede de esgoto, sistema e rede de
drenagem de águas pluviais, iluminação, pavimentação, acessibilidade e vias, rotas de
transporte público abrangentes, na edificação de áreas de lazer, de prédios escolares, centros de
saúde, na concepção e construção de habitações destinadas a própria moradia. Logo, é
importante enfatizar essa abordagem, de forma a classe de Engenheiros portarem consciência
sobre sua responsabilidade em promover estruturas que se adequem às normas estabelecidas e
atendam a população de maneira universal, como consagra a legislação.
Dentro das incumbências proclamadas pela Constituição aos deveres governamentais,
pode-se dizer que a estrutura do Estado se modifica pós 88, uma nova organização define maior
independência e poder decisivo aos governos das, então, entidades federadas, às quais fazem
parte os Estados, Distrito Federal e Municípios. Isso quebra com o caráter centro-autoritário e
impositivo do governo federal, qual o Brasil presenciava nas décadas anteriores, distribuindo
36
atribuições nas diferentes esferas governamentais. A partir disso, ao “espaço federativo supõe
promover o equilíbrio da equação encargos/rendas, mediante uma repartição de competências
e técnicas tributárias que assegurem às entidades federadas recursos suficientes para o
desempenho de suas tarefas”, nos âmbitos locais e regionais (DEL NEGRI, 2012, p.151).
Além disso, a Constituição em vigor fez “a competência da União para instituir
diretrizes para o desenvolvimento urbano [...] tratar-se de garantias institucionais” (DEL
NEGRI, 2012, p.100). Assim, o governo federal deve estimular à nível nacional, planos de
implementação de infraestruturas ligadas ao desenvolvimento urbano, tendo como objeto o
espaço urbano nacional, além disso, deve fazer a distribuição de orçamento suficiente às
unidades para que além dos planejamentos nacionais, seus próprios planos, estaduais e
municipais, possam ser executados.
Dessa forma, assuntos (matérias) relativos ao planejamento e a promoção da defesa
permanente contra calamidades públicas, especialmente secas e inundações (art. 21,
XVIII), bem como as diretrizes para o desenvolvimento urbano como habitação,
saneamento básico e transportes urbanos, dizem respeito às diretrizes, objetivos e
metas da administração pública federal (DEL NEGRI, 2012, p.153).
Como já observado anteriormente, é papel do Município elaborar um Plano Diretor
Municipal que regulamente o uso do solo e garanta a implementação de infraestruturas
adequadas nos mesmos, “além do que ninguém ‘mora’ na União ou no Estado-membro, mas
sim nos Municípios” (DEL NEGRI, 2012, p.159). Dessa forma, o papel do município se
constitui em valorizar a administração governativa através da ação em uma área territorial
menor, alertando assim para os aspectos de interesse local, com a valorização das
particularidades do espaço ao qual abrangem os seus limites. O governo municipal deve
apresentar em seu plano as demandas específicas e latentes que se encontram dentro de seu
domínio, para que conjuntamente com os demais poderes executivos, possam ser abordados de
forma mais direta e efetiva.
Nessa perspectiva, dentro do município há uma política habitacional que é verdadeira
ação integrada, ou melhor, um conjunto de medidas asseguradas em lei (Plano Diretor
e diretrizes do Estatuto da Cidade – Lei nº 10.257/01) que, entre tantos assuntos, visam
interromper os sobressaltos sociais no campo da moradia, afim de organizar o espaço
urbano por meio do devido planejamento (DEL NEGRI, 2012, p.123).
Uma incumbência também constituinte é a proximidade governamental entre as três
unidades administrativas, sendo que é dever de todas estabelecer providencias para que os
37
direitos proclamados sejam atendidos. Assim, as ações e planejamentos tomados em cada esfera
devem ser harmônico às diretrizes definidas pelas demais, para que o conjunto se realize de
forma congruente. Por definição legislativa,
São regras que deverão constituir preocupação comum nos três níveis de governo
(competência concorrente – art.23), como é o caso do combate às causas da pobreza
e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos desfavorecidos
(inciso X) e a promoção de programas de construção de moradias e a melhoria das
condições habitacionais e de saneamento básico (DEL NEGRI, 2012, p.155).
Também constitui uma atribuição comum à todos os níveis governamentais, a
necessidade de concepção e planejamentos em situações características, como no caso dos
planos urbanísticos especiais, destinados a setores específicos como áreas de interesse turístico,
vias de comunicação, vias de transportes interurbanos, saneamento básico de relevância
supranacional, de modo que, nesses casos, os governos federais e estaduais podem atuar
diretamente nas decisões e planejamentos sobre o território municipal (DEL NEGRI, 2012).
Isso não significa que hajam sobre uma mesma questão, atribuições idênticas destinadas
a cada unidade executiva. O que ocorre, é a soma de encargos diferentes sobre o mesmo assunto
a ser resolvido, onde cada unidade deve atuar de maneira complementar as diretrizes e ações
assumidas umas pelas outras. Cabendo assim, quando houverem lacunas deixadas pelas
diretrizes correspondentes à União, os Estados Federativos atuar de maneira a suprimi-las por
meio de sua competência suplementar e, se ainda necessário, cabe aos municípios
complementar o planejamento e a legislação de uso do território no âmbito que for preciso,
referente aos interesses locais (DEL NEGRI, 2012).
Nessa normativa, a União atende aos interesses nacionais, o governo dos Estados aos
interesses regionais e os Municípios, então, devem atender aos interesses locais. Como um
primeiro parâmetro para elucidar o que se define como interesse local, podemos tomar que
existem Municípios com características essencialmente rurais, com baixa taxa de população
urbana, existem municípios essencialmente urbanos, com um grande desenvolvimento do
comércio e existem municípios metropolitanos, com uma população que chega a casa dos
milhões. Além do que, as cidades possuem características econômicas diversas no território
brasileiro como cidades agrárias, político administrativas, portuárias, turísticas, industriais,
comerciais e prestadoras de serviços, etc.
Assim, o Brasil possui uma estruturação legislativa que garante direitos ao espaço
urbano e seus habitantes, de forma que
38
No Estado Democrático de Direito (...) quando há a recomendação de que os direitos
e garantias expressos na Constituição não excluam outros princípios por ela adotados,
comparece a função social da cidade, a qual deve ser pensada em conjunto a um plano
urbanístico, de responsabilidade dos Municípios, a fim de atender o desenvolvimento
urbano (art. 185, CF/88), na figura do instrumento básico da política urbana que é o
plano diretor, o qual se encontra disciplinado no Estatuto da Cidade (Lei nº
10.257/01), outro instrumento importante de fortalecimento social. (DEL NEGRI,
2012, p.107).
Salientando dessa forma, que a administração pública deve possuir como propósito
“neutralizar ou eliminar as desigualdades sociais por meio de diretrizes contidas na
Constituição, a qual orienta o gestor público em seu dever funcional de planejar sociedades
integradas [...] com comandos de ordem social de inclusão” (DEL NEGRI, 2012, p.103). E
ainda, “ a regulação sobre os serviços públicos, de maneira geral, tem como objetivo manter o
seu caráter público, qualquer que seja a forma de sua prestação” (DEÁK, 2004, p.266), sendo
direito comum o acesso aos espaços e infraestruturas desenvolvidas pelo poder governamental,
quais devem ser instalados e alocados de maneira abrangente.
Apesar de todo desenvolvimento social legislativo em torno do espaço urbano, pode-se
perceber, empiricamente, observando o espaço ao redor e a cidade como um todo, que as ações
políticas e urbanísticas realizadas sobre o território estão longe de serem efetivas no
cumprimento dos direitos definidos através da Constituição. “Não é necessário adquirir
consistente erudição para verificar o fosso intransponível entre o discurso pretensioso dos
juristas e a efetivação no mundo real. O brasil se caracteriza por proclamações edificantes e por
uma pífia prática dos direitos” (Nalini, 2011, p.9). Como, por exemplo, no
Caso da EC nº 26, de 2000, a qual modificou a redação do art. 6º da CF/88
acrescentando o direito à moradia. O legislador acrescentou o direito à moradia por
meio da citada emenda e agora se pergunta: como atendê-la? O que ela representa?
Resolveu o problema por completo? Todos agora têm onde morar? É claro que não!
O povo continua com dificuldades no quesito moradia, e, o pior: a Constituição a
prevê. (DEL NEGRI, 2012, p.101).
Obviamente não se pode colocar a responsabilidade da problemática urbana baseada no
não cumprimento efetivo dos direitos constitucionais, pelo contrário, reconhecemos
anteriormente os avanços sociais e habitacionais provenientes a partir de tal marco legislativo.
Também, foi abordado durante o trabalho uma problemática urbana histórica, desenvolvida
através de um sistema estrutural capitalista, que, através de diretrizes políticas e econômicas,
direcionou as infraestruturas e a ocupação do solo urbano ao alinhamento dos interesses
39
mercantis e do desenvolvimento da industrialização. Isso trouxe uma forte mecanização do
território tanto urbano quanto rural, a concentração da propriedade, um grande movimento de
êxodo rural e um crítico crescimento urbano, o que provocou condições contrastantes e
lamentáveis de uso e infraestrutura aos habitantes das cidades.
Também pode-se inferir, que, apenas a definição legislativa, decretando Direitos e
deveres, de longe não é suficiente para que tenhamos uma sociedade mais igualitária em suas
condições de vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade.
Nos dias atuais,
o fenômeno da urbanização acentua a gravidade do desrespeito contínuo e crescente
ao capítulo dos mais comezinhos dentre os direitos ditos ‘fundamentais’ [...]. O Brasil
do discurso não corresponde ao Brasil da verdade. Poucas vozes têm a coragem de
reconhece-lo. E para isso, basta caminhar pelas ruas das grandes cidades. Ou mesmo
das pequenas comunidades, que a injustiça não é privilégio da metrópole (NALINI,
2011, p.9).
Um problema que todo mundo vê e finge não ver.
40
4 CENTROS URBANOS DO SÉCULO XXI: ESPAÇOS DE SEGREGAÇÃO
O processo de urbanização do Brasil se deu aos saltos e sucede principalmente a partir
da segunda metade do século XX, tendo em vista que a população urbana correspondia a 36%
da população total do Brasil em 1950 (SANTOS, 2013) e hoje, segundo o Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística, ela corresponde a 84,4% do total nacional (IBGE, Censo 2010).
Acompanhada pela capitalização do território, a urbanização ocorre de maneira concomitante à
um grande movimento de êxodo rural, ao movimento industrial, e a um histórico descaso com
as demandas sociais de planejamento, ocupação do espaço e infraestruturas.
Com diferença de intensidade, todas as cidades brasileiras apresentam problemáticas
quanto a falta de planejamento do uso do território, a falta de infraestruturas básicas e de
moradia, a inacessibilidade ao lazer e ao transporte, a violência, o desemprego, a segregação.
Para perceber isto, basta caminhar pelas ruas da cidade, mesmo das pequenas, visto que
desigualdade social não é privilégio das metrópoles. A urbanização corporativa, direcionada
pelos interesses das empresas privadas, provocam uma expansão capitalista voraz aos gastos
dos recursos públicos, onde esses são direcionados a expansão econômica, em detrimento dos
gastos sociais. Assim, atualmente os centros urbanos apresentam o montante de mais de 167
milhões de pessoas. Desse contingente populacional urbano, 8,59 milhões de pessoas vivem
abaixo da linha da miséria¹, onde encontram menos oportunidade de acesso à habitação com
dignidade e infraestrutura disponível (DEL NEGRI, 2012).
Em um estudo promovido pela Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa e
Agropecuária), neste ano de 2017, foram analisadas imagens de satélite do território nacional,
anteriormente levantadas pelo IBGE em 2015, as quais possuíam destaque e objetivo de aferir
um mapa visual nacional dos territórios urbanos (Figura 4). O estudo então utilizou mecanismos
para medir essas áreas destacadas, obtendo como resultado um território urbano correspondente
apenas a 0,63% do todo território habitável nacional. Nessa concepção, estudos para o Atlas da
Terra Brasil 2015, realizados pelo CNPq/USP, apontam que os latifúndios ocupam 43,7% das
áreas produtivas do país, correspondente à 37,3% do território total nacional, com um número
de proprietários que não chega a 0,1% da população e ainda, dessa área, 22%, correspondente
a 175 milhões de hectares, encontram-se ociosos.
1 - A linha da miséria foi definida pelo governo federal, alusiva a população subsistida por uma renda mensal
máxima referente à 1/8 do salário mínimo nacional, o que em valores atuais significam 110 reais mensais por
pessoa. (DEL NEGRI, 2012).
41
Figura 4: Mapeamento das Áreas Urbanas do Brasil, 2015
Fonte: IBGE, 2015.
Pode-se observar na Figura 4, que a taxa da população urbana, correspondente a 84,4%
da população nacional, se organizam dividindo um espaço ínfimo em comparação com a
vastidão territorial do país. É de se observar que em um país com 175 milhões de hectares de
territórios ociosos, o que os torna sem função social, o que inclusive “abre via para a intervenção
do Estado a fim de pôr em ordem a sua utilização, na sua forma mais drástica, que é a
desapropriação” (DEL NEGRI, 2012, p.119), possuímos um déficit de 7,7 milhões de moradia,
sem contar os moradores e trabalhadores rurais que não possuem acesso à terra para produzir
seu sustento. Assim, é relevante explicitar que:
42
A renda da terra, e da terra urbana, constitui entre nós, em nossas cidades, um dos
graves fatores econômicos da deterioração das condições de moradia. A maior parte
do que se gasta na compra de uma casa nada tem a ver com a moradia, é apenas tributo
pago ao proprietário da terra que vive parasitariamente da especulação imobiliária.
Ganha sem produzir e sem trabalhar. (NALINI, 2011, p. 40-41 apud MARTINS,
2009, p.49).
Ainda pode-se considerar um outro agravante: grande parte da população que possui o
acesso à moradia, não as possui em plenas condições de infraestrutura e localização. Isso se
consagra uma extrema violência ao cidadão brasileiro, ser humano, e infringe diretamente o
Direito à vida, proclamado pela Constituição. Nessa concepção, Nalini (2011, p.28) fala que
“ao lado de um excluído que se utiliza de todas as estratégias para uma pretensa inclusão
coexiste um alarmante nível de violência”. Sem contar a violência contida na indiferença frente
toda essa concepção de injustiça das oportunidades de vida, trabalho, moradia e condições
básicas para se ter uma vida saudável em comunidade, onde acaba por vivar uma corrida egoísta
entre os favorecidos pelo modelo urbano desenvolvido, que sempre estão à frente, sem se
importar com o quadro que se desdobra para que isso seja possível.
A verdade é que essas pessoas não contempladas pelo elitizado sistema de
infraestruturas, que são milhões, estão em desvantagem extremamente significativa frente as
oportunidades dispostas a uma parcela da população que usufrui das vantagens promovidas pela
modernização, e aí, procuram constantemente maneiras de se adequar ao mínimo possível para
sobreviver. Certamente os problemas de divisão territorial e falta de infraestruturas não se
apresentam somente no território urbano. No campo, muitas pessoas também vivem em situação
precária de infraestruturas e acessibilidade, ainda sofrem a grande pressão capitalista dos
grandes produtores e latifundiários, qual acaba no êxodo rural, trazendo os problemas de
moradia, falta de oportunidade de vida e trabalho à cidade. Dessa forma, uma citação de Nalini
(2011, p.19) explicita que “a zona rural é palco das carnificinas em torno da ocupação da terra,
mas o drama citadino é diuturno. Ocorre a conta-gotas, mas com precisão e constância”.
De fato, a formação do território urbano acompanha problemas quanto à habitação ao
longo de toda sua história, além disso, as ações políticas sobre o território seguiram caráteres
higienistas e excludentes, através de planos grandiosos e desenvolvimentistas, mas segregados
das camadas populares, e ainda mais anteriormente com a Lei de Terras e o caráter qual ocorreu
a abolição, com o impulso à vinda de mão de obra europeia criando um extenso mercado de
mão de obra de reserva, com a expulsão dos moradores dos cortiços, moradores pobres, dos
centros urbanos. Ou seja, ao longo da história “o Brasil não se preocupou em ter a habitação
43
como eixo fundamental” (NALINI, 2011, p.138). Houve o financiamento público maçante para
infraestruturas direcionadas ao desenvolvimento econômico-financeiro, porém, as soluções
frente as questões de moradia da população pobre foram traçadas de maneira paliativa e
ineficiente, onde nunca objetivaram a solução do problema.
Assim, formaram-se aglomerados urbanos característicos do que o professor Milton
Santos denomina ‘cidade coorporativa’, onde as infraestruturas são desenvolvidas pelo governo
de maneira a atender o desenvolvimento do mercado, do capital, sem preocupação social com
a qualidade de vida da população. Tais características são descritas por Santos nos trechos que
seguem:
Legitimada pela ideologia do crescimento, a prática da modernização a que vimos
assistindo no Brasil, desde o chamado ‘milagre econômico’, conduziu o país a
enormes mudanças econômicas, sociais, políticas e culturais, apoiadas no
equipamento moderno de parte do território e na produção de uma psicoesfera
tendente a aceitar essas mudanças como um sinal de modernidade. Tal conjunto,
formado pelas novas condições materiais e pelas novas relações sociais, cria as
condições de operações de grandes empresas, nacionais e estrangeiras, que agem na
esfera da produção, da circulação e do consumo, e cujo papel, direto ou por intermédio
do poder público, no processo de urbanização e na reformulação das estruturas
urbanas, sobretudo das grandes cidades, permite falar de urbanização corporativa e de
cidades corporativas (2013, p.117).
Na cidade corporativa, o essencial do esforço de equipamento é primordialmente feito
para o serviço das empresas hegemônicas; o que porventura interessa às demais
empresas e ao grosso da população é praticamente o residual na elaboração dos
orçamentos públicos. Isso obedece à mais estrita racionalidade capitalista, em nome
do aumento do produto nacional, da capacidade de exportação etc (2013, p.122).
Ainda assim, como foi abordado no capítulo anterior, a Constituição de 1988 apresenta
um grande avanço na questão social, trazendo a moradia como direito fundamental e de caráter
do Estado concede-la, assim como o acesso universal às infraestruturas urbanas básicas (água,
iluminação, vias de circulação, transporte, saneamento, praças e áreas de lazer) que devem ser
garantidas através do Plano Diretor Municipal. Porém, como foi visto, frente à sua execução,
permanecem restritas a iniciativas isoladas, que não possuem prioridade dentro do orçamento
governativo, e ainda, muitas vezes, proporcionam um ciclo vicioso de dependência e lucro às
iniciativas de financiamento privado. Então, acabam tomando soluções paliativas referentes a
moradia que mascaram o foco principal de sua falta adequabilidade, social, “promovendo
problemas falsos (como conservação da natureza), inatingíveis (como qualidade de vida) ou
inócuos (como impacto ambiental) ” (DÈAK, 2004, p.14).
44
Além disso, um outro problema é destacado por Nalini, no que segue sobre os Planos
de hoje não passarem de “programas de governo”, os quais dificilmente uma equipe siga
executando os planos traçados no governo anterior, então passados os 4 anos de poder executivo
de um mandato governamental. Isso provoca uma pífia ação destes, de modo que, mesmo
quando efetivados, com o curto prazo instituído, as pessoas dependentes desses programas, não
possuem tempo suficiente para se estabilizar em outra realidade sem os recursos provenientes
do Estado, então voltam a seu estado original de vida e necessidades assim que interrompidos
os programas e planejamentos de cada governo.
Novamente, ó notável que somente a constituição não assegura que o capitalismo prive
e omita a maioria da população daquilo que é um direito fundamental: a habitação com
dignidade. Consequentemente, hoje vivenciamos no Brasil um déficit habitacional que chega a
marca de 7,7 milhões de moradias. Além disso, o último Censo levantado em 2015, constatou-
se a falta de infraestruturas básicas dispostas a um grande número de domicílios brasileiros.
Dentre esses, 14,6% não possuem ligação à rede de abastecimento de água potável, 10,2% não
possuem coleta de lixo, o que no caso, uma abordagem também válida é a acessibilidade desses
domicílios, pois muitos dos lugares onde não há a coleta de lixo se deve à falta de
trafegabilidade das vias para que os caminhões de recolhimento cheguem aos locais. Além
disso, mais de 25 mil pessoas vivem sem luz elétrica e 34,6% não dos domicílios não possuem
rede de esgoto, ou seja, um terço da população brasileira não possui tratamento e esgotamento
adequado de seus rejeitos.
Talvez, pensando em território nacional, os números não pareçam tão condizentes com
a realidade mais próxima, mas os números apresentados para o Rio Grande do Sul não são
muito diferentes dos nacionais (vejam só!): 35,8% dos domicílios não possuem esgotamento
sanitário adequado, 11,6% não possuem acesso a rede de água potável e a 6,2% dos domicílios
não é feita a coleta de lixo.
Ainda, o IBGE, conforme os resultados do Censo 2010, divulgou o resultado de um
trabalho chamado Aglomerados Subnormais - Informações Territoriais, onde aponta mais de
6% dos brasileiros, ou seja, 11,42 milhões de pessoas, vivendo em moradias irregulares. O que
denomina moradia “subnormal”, são habitações carentes de serviços públicos básicos, fixadas
em terrenos de propriedade pública ou particular, geralmente de forma densa e/ou desordenada,
sem espaço livre entre as edificações e sem áreas verdes e/ou destinadas ao lazer. Além disso,
regra geral, tais habitações são construídas sem orientação técnica adequada e muitas
encontram-se em áreas diretas de risco, como em encostas íngremes, aterros sanitários, lixões
45
e áreas contaminadas, imediações de linhas de trem, linhas de alta tensão, gasodutos e
oleodutos, etc. E mais, com raro acesso a vias adequadas e transporte público, também ficam
longe do alcance saúde, trabalho e educação.
Isso proporciona um quadro de segregação onde, a situação precária dessas moradias,
em muitos casos a falta de licença municipal, título de domínio da habitação e do terreno, a
falta de infraestrutura física e a recorrente falta de acesso também a serviços básicos como saúde
e educação, proporcionam uma crítica exclusão social, qual acaba por colocar as pessoas às
margens da vida em sociedade. Nesse quadro, os habitantes, que sobrevivem como podem no
corporativismo urbano, em áreas negligenciadas pelo governo e muitas vezes periféricas,
afastadas das zonas desenvolvidas de infraestruturas, ainda tem de pagar caro pelo precário
transporte público existente, pelos serviços que não acessam a realidade onde vivem e por
mantimentos de mercado, como comida e material de higiene, para que consigam um mínimo
de integração com a vida na sociedade urbana.
É relevante entoar que a existência desses nichos habitacionais, precários de
infraestrutura interessa à cidade corporativa (capitalista), pois servem as empresas com um
grande exército de reserva de trabalho a baixo custo, visto que “possuem uma mão de obra
numerosa, regra geral pouco capacitada [...]. Isso acaba gerando um processo de fomento de
desigualdades locais e uma funda desigualdade social” (DEL NEGRI, 2012, p.93). Além disso,
a promoção de desigualdades territoriais atende diretamente ao mercado financeiro de imóveis,
pois é graças aos territórios desvalorizados, segregados e sem estruturas, que existem os
territórios valorizados, as fontes da lucrativa especulação financeira imobiliária.
Além disso, o próprio poder público é gerador de desigualdades territoriais, de forma
direta e indireta, na geração de problemas urbanos, mesmo prometendo resolve-los. Santos
(2013) traz que uma das formas de atuação nesse sentido é o caso dos condomínios financiados
pelo Estado, que são na maioria das vezes alocados em áreas afastadas dos centros urbanos,
com a desculpa de preço mais acessível dos terrenos, mas sem levar em conta as infraestruturas
necessárias para adequabilidade dessas áreas, como a existência de transporte público
adequado, vias suficientes, redes de água, esgoto, iluminação. Assim, a construção de um
conjunto residencial, e a consecutiva dotação as infraestruturas, valoriza os terrenos ao
derredor, estimulando os proprietários a uma espera especulativa, qual condenam terrenos que
poderiam ser utilizados como princípio básico de moradia a décadas de ociosidade, esperando
o melhor momento de valorização e o maior lucro possível agregado.
46
A especulação gera uma mercantilização da terra, com valorização baseada no jogo da
procura e oferta, que acentua o problema de acesso à terra, habitação e uma grande periferização
da população pobre. Nesse esquema, a própria falta de moradia também impulsiona a
especulação imobiliária onde a carência de moradia em locais com infraestrutura adequada,
proporcionam uma ótima oportunidade de lucro aos investidores privados. Baseado na
valorização desigual das áreas urbanas, o jogo imobiliário que condena milhares a não acessar
moradia, fortalece inclusive o próprio transporte público urbano, ao qual as pessoas que moram
em áreas periféricas tornam-se dependentes para acessar uma gama de serviços, trabalho,
educação, o que fortalece o autoritarismo dos centros e zonas nobres frente aos territórios
afastados, em um consolidado ciclo vicioso.
Outra forma de ação, são as “operações de renovação empreendidas nos centros urbanos,
cujo resultado é, também, o de ativar a especulação imobiliária expulsando parcela da
população preexistente e impondo nova lógica à cidade como um todo” (SANTOS, 2013,
p125). Assim, áreas esquecidas e negligenciadas pelo governo por anos, regiões até então
desvalorizadas e sem estrutura, ressignificam-se, em uma forma de movimento de
gentrificação, também promovendo a periferização da cidade, já que a população residente nos
territórios reformulados e, então, valorizados, acabam por procurar novas áreas onde a
habitação esteja ao alcance de seus condicionamentos financeiros. De tal forma que, “todo
melhoramento numa área pobre faz dela o teatro de interesses com as classes médias em
expansão, para não falar das classes altas” (SANTOS, 2013, p.125), assim é relevante observar
que os problemas urbanos não podem ser resolvidos sem a resolução dos problemas sociais.
Essas ações de revitalização da cidade, da mesma força que os condomínios públicos,
além de fomentar a especulação imobiliária, fortalecem o corporativismo mais uma vez, quando
suas obras públicas são executadas por empresas privadas, as quais também são privilegiadas
por estas ações. Assim, da mesma forma que o Estado proporciona espaços esquecidos,
desvalorizados, sem a mínima infraestrutura, ele também valoriza áreas as quais lhes
interessam, embelezando a cidade e equipando o território com toda a infraestrutura necessária,
áreas de lazer, cultura, turismo, transporte eficientes e ruas bem pavimentadas. Porém, o alcance
a esse equipamento disponível difere em função do poder social e econômico de cada cidadão,
dessa forma, a modernização do território favorece o corporativismo das grandes empresas
privadas e a classe alta qual possui poder financeiro para pagar pelo desenvolvimento do
território em direção a “modernidade” (SANTOS, 2013).
47
É aí então que crescem os condomínios residenciais fechados, como forma de mascarar
a dura realidade urbana, tanto pelo governo, quanto pelos próprios moradores urbanos que
preferem não se deparar com a realidade. Dentro da lógica capitalista, os financiadores do
mercado imobiliário, aproveitam a falta de infraestrutura adequada, áreas de lazer e o estigma
de violência que rondam os centros urbanos, para lucrarem através da construção de residenciais
exclusivos. Equiparados com toda infraestrutura disponível e necessária, lazer e urbanização a
quem possa pagar por elas, criam-se nichos fechados de convivência onde o intuito é manter a
pobreza do lado de fora, longe do convívio dos condôminos. Dessa forma, a “cidade murada”
agrava os problemas de segregação urbana, pois institui, além de uma separação ideológica,
carregada por estigmas dos mais variados relacionados a pobreza e a violência, uma separação
física e privada bem determinada, qual proporciona a fragmentação dos espaços públicos.
Tem-se assim uma espoliação de segregação generalizada nas condições de moradias
urbanas, a qual, como cita Nalini (2011, p.49), “impede o despossuído de possuir”. Vale
lembrar, que as infraestruturas desenvolvidas dentro dos condomínios privados não são de uso
universal, público, são restringidos ao uso e de propriedade dos condôminos. Dessa forma,
qualquer pessoa com condições financeiras favoráveis adquire uma residência em condomínio
fechado onde a vida “segura” e bem equipada de instalações de estruturas de lazer, é atrativo
comum entre os moradores. Assim, exacerba-se a segregação do espaço urbano, com a criação
de um espaço com infraestruturas bem desenvolvidas, localizados dentro das cidades, mas
espiritualmente fora delas. Esses espaços garantem seu isolamento ao espaço público
deteriorado, através de fortes equipamentos de segurança, onde o intuito é manter o outro do
lado de fora.
É algo ostensivo, e até evidente, que são os próprios modelos da construção civil que
também garantem esse isolamento e segregação, com muros altos, grades, e dentro delas
construções com todas as tecnologias disponíveis e materiais de última ponta à elite, os eleitos
a possuírem condições financeiras para tal, porém, não ocorre doutro lado dos muros. Para
funcionamento de tal conjetura existem redes de condicionamento global,
A exemplo do capital financeiro, que opera como núcleo decisório e enxerga os
imóveis como ativos de investimento, jamais como bens sociais. Assim, o setor de
construção civil, [...] promove múltiplas interações entre os territórios e novas formas
de dimensão do espaço, sempre (é claro) com a ajuda de ocupantes de cargos públicos
decididos a associar os seus mandatos a obras de extraordinária visibilidade que
agraciam e satisfazem os agentes privados que viabilizaram as suas campanhas
eleitorais. (DEL NEGRI, 2012, p.162).
48
Nesse esquema, Del Negri analisa a obra de Elza Canuto (2010), qual aborda habitação
urbana e, como ele cita, considera “o direito à moradia como um dos pilares do princípio da
dignidade da pessoa humana, dessa forma a exclusão social e a segregação espacial do ser
humano violam a sua dignidade”. (DEL NEGRI, 2012, p.107). Assim, nesse jogo
contemporâneo, dignidade urbana também é regalia de alguns, de forma onde os territórios são
formados por redes movidas pelo capital financeiro e pela sociedade de consumo. “O que se vê,
portanto, são relações muito complexas de fragmentação dos territórios, e as cidades atuais (as
metrópoles, sobretudo, por serem corporativas) prestam-se à recriação ininterrupta desse tipo
de segmentação” (DEL NEGRI, 2012, p.93).
Então, pode-se dizer que a crise urbana também se consagra a crise do capitalismo, do
corporativismo financeiro, que dominam as ações do Estado e criam um sistema de dependência
público-privada, qual acaba por aniquilar o caráter universal das instituições públicas. À vista
disso, afirma-se que “não é o Estado, e sim um grupo ou classe de pessoas que impõe a
construção de poder. Mais ainda, esse grupo pode usurpar o espaço público que acaba
construído fora da originalidade popular (demonstrando sua vocação antissocial)” (DEL
NEGRI, 2012, p.113). As grandes empresas, grandes proprietárias, orquestram os rumos do
mercado de habitação e, assim, sua aplicabilidade ao território. Não à toa, passaram pelas
gestões do poder público governos com características diversas, passaram-se anos de
planejamentos urbanos e o problema urbano não foi solucionado, pelo contrário, a falta de
moradia e o risco de adequabilidade ambiental das cidades nunca encontraram dimensão de
tamanha proporção.
Uma breve consideração para que além de priorizar, dentro do orçamento
governamental, políticas de inclusão social, as políticas habitacionais assim como as ações de
inserção de infraestruturas, devem agir paralelamente às questões culturais atreladas ao
território, assim como suas demandas prioritárias, antes de introduzir projetos especulativos às
condições das comunidades atendidas. Então assim, “identificado os problemas, devemos lidar
com eles maduramente. Contudo, a questão não se apresenta fácil. Aliás, resultado para lá de
previsível, em se tratando de política socioeconômica brasileira” (DEL NEGRI, 2012, p.66).
Devemos nos atentar ao fato de que não é somente ocupando o território e construindo moradia
que o problema de desigualdade desaparecerá. Isso só será possível de solução se o Estado
priorizar o equipamento desses territórios com alternativas que garantam a permanência dos
habitantes no mesmo, com um projeto popular que garanta o emprego e que ultrapasse a linha
do estômago, que vise a inclusão social acima de tudo.
49
Além disso, “acontece que firmar projetos de moradia é garantir a mistura social na
cidade, mantendo pessoas de menor renda em imóveis de utilidade pública situados em áreas
que sofrem com a cobiça do mercado imobiliário” (DEL NEGRI, 2012, p.164). O sistema
urbano é comandado pelas relações de poder e segregação, as quais não interessam a inserção
popular em áreas valorizadas. Tal fato pode ser observado cruamente nas políticas higienistas
historicamente direcionadas aos centros urbanos, nas ações de renovação e melhoramento
fomentadas pela especulação, pelo espraiamento do território e pela massiva proteção estrutural
dada as áreas nobres de convívio das elites.
Dessa forma, vale trazer a reflexão de Pierrer Bordieu sobre a conjuntura organizacional
urbana qual, pelas palavras de Del Negri (2012, p.74),
considerou a estrutura social um sistema hierarquizado (poder/privilégio) que se
organiza de formas sincréticas, constituindo-se, portanto, não apenas pelo capital
econômico (imóveis/dinheiro – maneiras clássicas de exibis poder social), mas
também pelas relações culturais (escolarização) e simbólicas (status).
Evidenciado através dessa concepção, os estigmas relacionados a população promove a
divisão territorial de acordo com seu status social, acesso à educação, cultura, bens materiais.
Assim, a mesma população pobre que é abstida de moradia adequada, de possuir produtos e
serviços de qualidade, é explorada como fonte numerosa de consumo e mão de obra. Como isso
interessa ao corporativismo urbano, não existem mecanismos de igualdade em inserção social,
as condições proporcionadas a cada um diferem de acordo com o padrão e classe social a qual
pertencem. Efetivamente, “a afirmação de que existe uma ‘cultura da pobreza’, é também algo
que precisa ser refutado, porque o indivíduo pobre não está condenado a viver pobre (aliás, uma
mentira da colonização que existiu durante muitos anos) ” (DEL NEGRI, 2012, p.69 apud
SANTOS, 2009).
A reversão desse quadro é inadiável. O espaço precisa passar a ser visualizado como um
todo, nos seus mais variados segmentos e com suas mais variadas demandas. Considerá-lo
como um organismo vivo, onde o bem-estar de cada célula é necessário para o bom
funcionamento do conjunto, para que não se exacerbe conflitos violentos entre as condições de
vida de cada um. Então, “levar a sério os direitos proclamados e abandonar as vias oblíquas da
sofisticação, do exacerbado formalismo, das construções complexas que dificultam o que
poderia ser o propósito de conferir dignidade humana” (Nalini, 2011, p.9). Dessa forma a
implementar um programa de medidas que quebrem com o ciclo de exclusão e produzam, além
de moradia, condições de permanência aos membros da comunidade
50
A par da natureza específica do processo urbano brasileiro, uma outra questão aberta,
[...] é qual a perspectiva de continuidade do processo urbano e que práticas a sociedade
estará prestes a gestar para a organização da sociedade inteiramente urbanizada. A
resposta a essa questão, como também àquela referente à natureza do processo urbano,
reside no âmbito mais amplo da própria organização social: as perspectivas de
evolução das atuais crises, impasses ou dilemas da gestão urbana dependem
inteiramente das perspectivas de evolução dos atuais processos de transformação da
sociedade, ora em estado de ebulição. (DÉAK, 2004, p.19).
Leia-se aqui sociedade inteiramente urbanizada como o espaço urbano participante em
sua plenitude das áreas comtempladas pelas infraestruturas urbanas. Dentre elas, saneamento
adequado, transporte coletivo rápido, abrangente e de boa qualidade, cobertura das redes de
telefonia e informação, áreas públicas e de lazer mais generosas e equipadas, serviços públicos
acessíveis. Isso ocorrerá quando “a sociedade brasileira se livrar do lastro patrimonialista e dos
entraves a seu desenvolvimento” (DÉAK, 2004, p.17). Sobre as áreas de risco, negligenciadas
pelo Estado e pela sociedade, “transformá-las em bairros, com ruas niveladas e pavimentadas,
com contenção geológica onde necessário, córregos canalizados, redes de água e esgoto, é o
que sustenta o sucesso da inclusão” (DEL NEGRI, 2012, p.164).
Considerando ainda que, a grande maioria da população brasileira não tem habitação
com dignidade, observa-se que a engenharia produzida no Brasil, por uma série de interesses e
influência do capitalismo, não acessa e não atende a maioria da população, não se direciona e
não se aplica a ela. A engenharia produzida é então estética e econômica, nenhum pouco social.
Mas então “quem deve condicionar o sujeito a atuar num determinado sentido? A moral? A
legislação? A tomada de consciência? No fundo, as dúvidas sobressaem” (DEL NEGRI, 2012,
p.78).
O certo é que “novos instrumentos de ‘gestão’ – práticas de organização espacial de
âmbito local – deverão nascer das novas condições técnicas e das novas políticas
correspondentes ao novo estágio” (DÉAK, 2004, p.17). Melhores condições de ambiente e vida
urbana são possíveis e são urgentes. É necessário compreender o espaço, suas características
culturais e sociais, e o conjunto de todos os espaços urbanos, a cidade. Assim pensar novas
gestões de engenharia e urbanismo social, focando em soluções eficazes e desassociadas do
populismo político e da manutenção de regalias e especulações a qualquer custo.
51
5 POR UMA ENGENHARIA ABRANGENTE E SOCIAL
A exclusão urbana promove uma sociedade segregada, onde grande parte da população
não tem sequer oportunidade de acessar outra realidade urbana e outra grande massa permanece
apática, vivendo dos benefícios proporcionados pelo desenvolvimento urbano, trancafiadas
atrás de grades e muros, querendo não ver as outras realidades ao seu redor. Então:
Para confortar mentes sensíveis ou disfarçar a calamitosa situação de milhões de
moradores em áreas de risco – área aqui num sentido não totalmente territorial -,
alimenta uma ilusória presunção: a irregularidade é provisória. Um dia, a cidade
acordará com a qualidade de vida ideal, com o saneamento básico compatível com
sua importância [...], com o mínimo de verde assegurado, com os rios límpidos e
piscosos e com as represas recuperadas para a higidez do consumo de água e para o
deleite de todos. Essa ficção auxilia a legitimar a inércia e o convívio com situação
intolerável, segundo os padrões mínimos impostos pela observância do princípio da
dignidade humana. (NALINI, 2011, p.43).
Uma grande sátira de má índole à população que enfrenta as mais diversas dificuldades
no seu dia-a-dia, por falta de infraestruturas dispostas a seu território habitacional e falta de
acesso à serviços básicos, assim luta por espaço e inclusão para garantir sua dignidade enquanto
cidadão. De acordo com a Constituição Federal de 1988 todo brasileiro tem direito ao acesso
universal de um meio ambiente equilibrado, disposto de infraestruturas adequadas ao
desenvolvimento de uma vida saudável (DEL NEGRI, 2012).
Porém, o que encontramos é um “grave percentual de moradias brasileiras que vivem
na ilegalidade e o paradoxo estabelecido na geografia urbana por meio da interferência do
capital na exploração de preços e no traçado das cidades” (DEL NEGRI, 2012, p.96). Assim,
milhões de pessoas vivem em habitações sem devida estrutura técnica, em terrenos de risco
ambiental, risco social, sem acesso a infraestruturas básicas como abastecimento de água
potável encanada, redes de iluminação, esgotamento sanitário adequado, drenagem e rede de
escoamento de águas pluviais, transporte público abrangente, acesso a vias bem pavimentadas
e áreas de lazer, etc.
Se um grande número de pessoas não possui acesso a infraestruturas básicas e muito
menos respaldo técnico e estrutural de moradia, mesmo a Constituição o definindo como Direito
e dever do Estado promove-lo, é importantíssimo analisar o modelo de engenharia produzida
no Brasil. Considerando uma volumosa parcela da população que não possui acesso aos
territórios onde as técnicas de engenharia são desenvolvidas é possível ponderar uma
52
engenharia carente em abranger as demandas sociais básicas de infraestrutura. Mas então, a
quem é direcionada a tecnologia desenvolvida na engenharia? Para que meios?
Como ponto de partida para tal reflexão, pode-se considerar a intensa capitalização do
território brasileiro, tanto rural, quanto urbano. A industrialização, o desenvolvimento
tecnológico autoritário dos anos da ditadura militar, a revolução técnica no campo pós anos 60
e o intenso movimento de êxodo rural, provocaram a formação de uma engenharia que atuou
no setor produtivo respondendo às contínuas mudanças do ambiente econômico, mas
socialmente segregada e elitizada. Todas as diretrizes governamentais, econômicas e políticas,
tomadas desde a independência do Estado, passando pelo “milagre econômico”, tomadas sobre
a formação do espaço urbano, deixaram milhares de pessoas sem acesso à terra para produzir
seu sustento e também sem acesso à habitação com estruturas adequadas, abstidas, então, dos
avanços ostentados pela urbanização.
Portanto a busca por construir uma sociedade preocupada em avançar na inclusão
social ainda é um desafio. [...] Para erradicar a miséria e a pobreza do país há de haver
uma preocupação com as consequências ambientais e sociais, [...] além de repensar o
conhecimento técnico científico. (DEL NEGRI, 2012, p.163).
Assim, além de pensar novas abrangências de políticas públicas e priorizar a/s demandas
sociais como foco para um desenvolvimento humanitário, para a qualidade de vida da
população é necessário analisar o desenvolvimento do conhecimento técnico no país, quais as
políticas ligadas a ele, quais as ciências desenvolvidas na engenharia. Como afirma o professor
Santos (2013, p.139), “o futuro não é feito apenas de tendências, mas de tendências e de
vontade”, portanto, desenvolver tecnologias, engenharias, desligadas dos oligopólios urbanos e
dos interesses privados é tarefa urgente.
Ao lado dessas reflexões acrescentem-se outras: “por qual motivo as políticas de
moradia não contemplam a família como núcleo das decisões? Por que não lhe garantem o
crédito para que possa escolher onde e como morar? ” (DEL NEGRI, 2012, p.140). As
habitações promovidas pelo governo, realizadas em escala, não consideram as particularidades
de cada família, muito menos a localização geográfica do loteamento em função das
características da população residente, que geralmente se dá em função do jogo da valorização
do território, e aí, em áreas periféricas com restrita acessibilidade a vias bem pavimentadas e
ao transporte público. Em contrapartida, as moradias de alto padrão dispostas de infraestruturas
adequadas e bem estruturadas, possuem planejamento técnico exclusivo, adaptado a família
atendida, onde são amparadas por uma gama de produtos e técnicas de engenharia, que
53
garantem, inclusive, sua separação da sociedade inferiorizada pelos julgamentos de valor
(capital e social), através dos muros dos condomínios privativos.
Para repensar esse modelo de produção técnica de habitação, deve-se primordialmente
repensar a formação dos sujeitos profissionais da Engenharia, e aí entra o papel das instituições
de ensino superior. No caso da formação acadêmica, apresenta-se uma educação e
desenvolvimento de tecnologias herdadas de uma modernização conservadora, do tempo de
governo militar, que importou um modelo de ensino dos Estados Unidos e aplicou diretamente
às instituições educacionais, nos diferentes níveis. Parte da estratégia norte-americana para
constituir contato com países emergentes em plena guerra fria, o acordo servia também para
difundir a teoria do país através de tecnologia, onde, entre outras coisas, previa junto de um
pacote tecnológico, diversos assessoramentos (financeiro, técnico e militar) afim de garantir o
desenvolvimento proposto pelo pacto (OLOKAUSA, 2008).
Definido pelo acordo MEC-USAID², o modelo ampliou a natureza tecnicista da
estrutura física e pedagógica instituições de ensino superior, e dividiu o conhecimento aplicado
aos âmbitos de três categorias: o ensino, a pesquisa e a extensão. Além disso, previa a
introdução e desenvolvimento dos pacotes tecnológicos importados, que atendiam ao
corporativismo privado, qual acabou como destino “reduzir a universidade à condição de
agência formadora de mão-de-obra submissa a serviço da empresa capitalista” (OLOKAUSA,
2008, p.37 apud COELHO, I., 1993, p. 64). Convergente a isso, o ensino superior tecnológico
no país, acabou por promover a formação de egressos, profissionais, com uma lógica de
trabalho produtivista, que serviu para manter a ordem de poder estabelecida pelas elites.
O novo sistema também trouxe mudanças nas estruturas administrativas da
universidade, visando maior eficiência da produtividade acadêmica. Dessa forma, fragmentou
as grandes áreas do conhecimento em departamentos especializados, que vieram a pulverizar o
poder de autonomia e auto-organização dos cursos, que nesse movimento tornaram-se
dependentes das decisões departamentais, em um aumento burocrático das práticas
educacionais. Há de se observar que tal caso atende a lógica tecnicista produtivista, qual
setorizou as funções e encargos, dividiu as técnicas e campos teóricos, para torna-los mais
eficiente, não que os resultados acompanhem a prática, visto que, não raro os professores de
2 – Acordo MEC – USAID, consiste em um acordo entre o Ministério da Educação do Brasil (MEC) e a
United States Agency for International Development (USAID), que criou uma reforma na educação pública.
54
mesmo curso acadêmico, não possuem conhecimento tecnológico abrangente das outras áreas,
abrangidas pelo curso, mas fora de seu departamento.
Com isso, dificilmente consegue-se ir além de repassar informações isoladas aos
estudantes, treiná-los em determinadas habilidades ou adestrá-los como mão de
obra. E não ensinar a pensar, duvidar, questionar, refletir, à filosofia, sem os quais
não se faz ciência, (OLOKAUSA, 2008, p.24)
Compreendendo todo o pacote, esse desenho também passa a afirmar a instituição de
ensino como aparelho ideológico do Estado. E relevantemente, quando todo embasamento
teórico, vivencia e prática, por traz da formação profissional, encontram-se nas universidades.
A educação é, sobretudo, dar exemplos através de ações. Deve ser um instrumento de
libertação dos sujeitos e não opressão. Essa é ideia principal da educação libertadora,
fundamentada essencialmente nas ideias do educador Paulo Freire, qual traz o paradigma de
uma concepção de ser humano e sociedade. A educação para libertação vem para contestar a
estrutura capitalista e fomentar a transformação da sociedade. “Daí a sua politicidade, qualidade
que tem prática educativa de ser política, de não ser neutra, ou seja, toda a ação pedagógica
sempre será ação política” (FREIRE, 1996, p.28).
De acordo com Casagrande (2014), ao encontrarmos a educação intrínseca ao projeto
histórico capitalista, qual os estudantes tornam-se alvos de um processo onde o objetivo passa
a ser puramente reproduzir conceitos e práticas, é preciso termos compreensão sobre as técnicas
pedagógicas, o tipo de sociedade, que transformação nós queremos e os meios para colocar as
ações em prática, para não cair numa visão simplista de como de se inserir no mercado de
trabalho. Neste sentido as universidades têm grande papel social a cumprir, compromisso esse
que vale a pena ser questionado, ressaltando a responsabilidade das universidades para com as
problemáticas sociais, ainda mais no caso das universidades públicas.
A partir disso, é possível analisar o curso de Engenharia Civil sediado em Santa Maria
pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), universidade totalmente pública. Durante
a formação acadêmica, os alunos, graduandos do curso, não encontram absolutamente nenhuma
disciplina que aborde as ciências sociais, ou que tenha enfoque ou proximidade com as
demandas populares e do território local. Hoje o curso possui uma grade curricular, atualizada
a última vez no ano de 2005, e um projeto político pedagógico, constados na plataforma do
curso, com abrangências totalmente técnica e também tecnicista, onde os conhecimentos
55
populares, práticos, de organização da sociedade, não encontram colocação frente às técnicas
empresariais.
Em contraponto a isso, em 2002 o Conselho Federal de Educação definiu a Resolução
CNE/CSE 11, a qual atribuía diretrizes para formação do currículo disciplinar da Engenharia,
qual é dividido em núcleos de conteúdos básicos, específicos e profissionalizantes com tópicos
particulares atribuídos a cada um. Nessa mesma linha, baseado nas definições curriculares,
define, que o resultado desse modelo deve se constituir em um egresso
Com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, capacitado a absorver e
desenvolver novas tecnologias, estimulando a sua atuação crítica e criativa na
identificação e resolução de problemas, considerando seus aspectos políticos,
econômicos, sociais, ambientais e culturais, com visão ética e humanística, em
atendimento às demandas da sociedade. (CNE/CES 11/2002, art.3º).
Assim, o curso de Engenharia Civil deveria oferecer em seu projeto pedagógico, dentre
outros temas, conteúdos básicos que abrangessem os tópicos das “Humanidades, Ciências
Sociais e Cidadania”, de forma a promover o debate sobre a formação da sociedade, os impactos
sociais, mas no curso oferecido pela UFSM, nenhuma disciplina é encontrada nesta proposta.
Além disso, a Resolução define que cada curso promova a construção de um projeto
pedagógico que organize as atividades previstas com ênfase à necessidade de se reduzir o tempo
em sala de aula, permitindo aos estudantes desenvolverem outras atividades de pesquisa, a
participação de grupos de estudos e o contato com outras práticas multidisciplinares promovidas
pelo ambiente acadêmico. Diferentemente, as engenharias sediadas pela UFSM, possuem uma
grade curricular carregada de conteúdo com uma carga horária pouco flexível, que muitas vezes
acaba por demandar inclusive do tempo livre dos estudantes, para que consigam vencer as
atividades acadêmicas em detrimento de focar e desenvolver outras habilidades importantes em
seu desenvolvimento enquanto profissional.
Ainda assim, como a universidade não tem no ensino e na pesquisa objetivos de buscar
soluções para mais que um nicho de grupos e pessoas, é necessário também a prática de
extensão. É preciso que o conhecimento acadêmico seja próximo da população, tomando
consciência dos diferentes espaços, da demanda e urgência por engenharia fora do nicho
universitário, elitizado e centro-urbano, produzindo tecnologias hábeis para atender à
necessidade básica de infraestrutura da população de forma direta. Além disso, a extensão
propõe que se quebre a estranheza do “outro”, capacitando o profissional a sensibilidade prática
56
de estar em um território diferente e saber trabalhar, compartilhar saberes e técnicas de forma
efetiva também nesses espaços.
A Política Nacional de Extensão Universitária, reformulada em 2012 pelo Fórum de
Pró-Reitores das Instituições Públicas de Educação Superior Brasileiras, FORPROEX, traz em
seu conteúdo o conceito de Extensão Universitária, qual se apresenta “sob o princípio
constitucional da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, é um processo
interdisciplinar, educativo, cultural, científico e político que promove a interação
transformadora entre Universidade e outros setores da sociedade” (2012, p.28).
O documento também defende a transformação da Extensão Universitária em um
instrumento de transformação da realidade social e acadêmica, em direção a uma sociedade
mais justa e democrática, devendo andar junto à comunidade no enfretamento desses desafios
e na busca por novas soluções. Desenvolvendo a habilidade dos estudantes em participar de
espaços construídos coletivamente, em contato com os sujeitos sociais que trabalham fora do
nicho universitário, fomentando assim, também o desenvolvimento crítico no âmbito da
contemplação das políticas públicas. Cabendo a instalação desse paradigma, à capacidade da
Universidade Pública em efetivar sua política de Extensão Universitária (FORPROEX, 2012).
Apesar de essa não ser a única linha de política de extensão produzida, na Engenharia
Civil, UFSM, as poucas linhas realizadas possuem diretrizes empreendedoras, de inserção no
mercado de trabalho capitalista empresarial. Tanto no caso do PET quando no caso da BASE
Jr., grupos de extensão da Eng. Civil, não existem trabalhos de território, que compartilhem,
troquem e tragam os conhecimentos sociais para dentro do Centro de Tecnologia. Basicamente
se trata da difusão de tecnologia, arcada e desenvolvida com recursos públicos, mas com fins
de suprir a demanda de empresas privadas. Assim,
Podemos inferir que a extensão, é muitas vezes praticada com fins de convencimento
da adoção de determinada tecnologia ou produto; como atividades de prestação de
serviços, o que justificaria o pagamento por estes; ou compensatórias,
assistencialistas, portanto, não prioritárias (OLOKAUSA, 2008, p.56).
Vale frisar que além de ações não prioritárias, em uma universidade pública, não existe
outros tipos de extensão na Engenharia, com outro enfoque, popular. Paulo Freire aborda que
“se sua ação extensionista se desse diretamente sobre o fenômeno ou sobre o desafio, [...] sem
considerar sempre a presença humana [...], o conceito de extensão, aplicado a sua ação, não
teria sentido” (1985, p.11). No curso da engenharia na UFSM não existe nada que efetivamente
ligue os estudantes aos ambientes sociais. Isso também explica uma questão levantada
57
anteriormente sobre o porquê das políticas de infraestruturas públicas e habitação popular não
possuírem o morador como principal interlocutor da obra. O que é muito preocupante pois
acaba se resumindo a formação, em ser treinado para executar os pacotes tecnológicos
importados, com no máximo pesquisas de inovação, que nada mais são que adaptar as
tecnologias existentes à necessidade presente.
Como em todo sistema social estruturado nos qual vive a sociedade, dentro da
Universidade Pública brasileira também encontramos limites. Entre eles, sobressaem o
financiamento instável e a consequente dependência das iniciativas privadas, que prejudica a
continuidade e a criatividade dos projetos; a burocracia jurídica autoritária, que emperra a
gestão universitária; o caráter rígido, conservador e, muitas vezes, elitista da academia, que
dificulta as mudanças nas direções demandadas pela sociedade brasileira. Para que a
Universidade Pública, cumpra com seu contexto social em suprir um desenvolvimento humano,
ético e sustentável, é imprescindível que sejam enfrentados estes entraves dentro da gestão
academista.
É urgente praticar uma concepção de extensão baseada na relação em que a população
assistida tecnicamente é o sujeito do processo, ela é a agente principal nas definições do que
será feito da área onde residem, inclusive dos métodos e técnicas. Paulo Freire defende que a
efetividade de “sua ação de extensão se dá no domínio do humano e não do natural, o que
equivale dizer que a extensão de seus conhecimentos e de suas técnicas se faz aos homens para
que possam transformar melhor o mundo em que estão” (FREIRE, 1985, p.11). Onde ocorra a
tomada de consciência dos estudantes sobre a diversidade e a complexidade das condições
sociais de vida e trabalho vigentes na sociedade, no que também Freire também relaciona a
extensão na forma de “ação reflexão”. Ai então,
É por meio da extensão que podemos fazer com que a universidade cumpra uma
função social para além das elites. ‘Ela nos permite ir além das salas de aula,
laboratórios e bibliotecas, proporciona que estudantes e professores estejam
inseridos na realidade concreta experimentando o fazer acadêmico junto ao fazer
profissional e tecendo relações sociais’ que poderão refletir nas políticas públicas
institucionais. A partir daí realizar o processo de trazer os movimentos populares
organizados para dentro, construir um processo de empoderamento deles para com
aquele espaço e assim disputar as políticas de ensino e pesquisa na universidade.
(OLOKAUSA, 2008, p.56 apud SOUZA, 2005).
Assim, é extremamente importante mobilizar ações de promoção da cidadania e de
espaços de encontros culturais de trocas, para que haja o desenvolvimento político e
sociotécnico, que estimule os participantes a atuarem e a realizarem atividades e projetos com
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enfoque do desenvolvimento social, com intuito do fortalecimento das ações locais e regionais.
Como levantado por Olokausa (2008), já no início da década de 1960, símbolo da força política
estudantil, a União Nacional dos Estudantes (UNE) evidenciava em seus documentos a
necessidade de “combater o caráter arcaico e elitista das instituições universitárias”,
enfatizando a democratização dos espaços de decisão da universidade, a ampliação de vagas
nas escolas públicas, e a flexibilização dos currículos.
Nesse sentido, é preciso de uma ação alternativa e concreta capaz de contribuir com a
formação profissional mais crítica em relação à realidade social, além de vinculação direta desta
com as parcelas marginalizadas pelo modelo econômico, em um enfoque de atuação articulado
com demandas sociais advindas dos movimentos sociais, das comunidades atendidas e da
própria universidade pública. Pensar em uma forma de engenharia pública, popular,
ambientalmente sustentável, que propague a integração social ao invés de produzir a retórica.
Ademais, a universidade pública, ao agir em prol da transformação social na engenharia, cria
espaços para sua própria transformação, o que implica em mais relevância para a atual proposta.
Para que exista uma visão nítida da realidade social e das consequências do agir perante
ela, primordialmente é necessário fundamentar-se em alguns princípios básicos. Dentre eles a
construção da prática interdisciplinar, como a transversalidade do conhecimento e a integração
das mais variadas ciências universitárias à tecnologia, entre elas as ciências humanas e sociais,
para que se possa abranger a realidade sob diversos enfoques, quebrando a pratica fragmentada
consolidada nas instituições de ensino superior. Só assim será plausível um debate real que
discuta a complexidade da infraestrutura pública e da engenharia acadêmica construída e
empregada na sociedade.
A partir daí um rumo ao menos inicial seria a construção de uma universidade em
consonância com o chamado projeto democrático e popular cujos princípios foram formulados
a partir da década de 80, dentre eles a garantia de financiamento estatal as universidades
públicas, democratização entre o poder de decisão das categorias presentes na instituição,
acesso garantido ao aluno concluinte do ensino médio público à universidade, uma forte política
de assistência estudantil que garanta a permanência dos estudantes de baixa renda, e uma
profunda reestruturação político-pedagógica das universidades, com uma orientação do ensino,
da pesquisa e da extensão, principalmente na área tecnológica, voltados a atender as demandas
populares, da classe trabalhadora, da ampla maioria da sociedade. (OLOKAUSA, 2008).
Este processo envolve muitas disputas, embates, disposição e ousadia, pois além do
confronto ideológico, encontram-se entraves financeiros, visto que esse tipo de política não é
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prioridade nos recursos destinados aos centros de tecnologia, frente à projetos de
desenvolvimento técnico, que acabam tendo como primazia beneficiar as empresas privadas.
Mesmo assim, existem algumas iniciativas dentro da engenharia, que, de forma
autônoma e autogestionada, trazem os debates sociais para dentro da tecnologia e fortalecem
uma rede política dentro da engenharia. Nesse caso apresenta-se a REPOS (Rede de Engenharia
Popular Oswaldo Sevá) que surgiu, como os dados documentais da instituição, por um grupo
de engenheiros que “atuando através da educação popular junto aos movimentos sociais, grupos
de agricultura familiar e do trabalho associado, percebiam a incompatibilidade daquilo que a
engenharia oferecia para atender às demandas desses grupos”. Dessa forma, incomodados com
a incompatibilidade da engenharia para com as demandas populares, esses engenheiros
começaram a construir encontros nacionais a partir de 2004, inicialmente sediados no Rio de
Janeiro, surgindo assim o Encontro Nacional de Engenharia e Desenvolvimento Social
(ENEDS), com “uma proposta de debater temas que vinculem engenharia e desenvolvimento
social, de sensibilizar estudantes de engenharia para suas possibilidades de atuação para além
do trabalho empresarial” e de fortalecer uma rede de engenheiros que caminhem juntos com a
mesma visão.
A partir dos anos, o encontro passou a sediado em diferentes regiões do país, mesmo
assim, a partir de 2011 fomentou-se que além de um encontro nacional, construir-se-ia
encontros anuais regionais, para abrir um debate com enfoque aos interesses locais, surgindo
assim os Encontros Regionais de Engenharia e Desenvolvimento Social (EREDS). Nesse caso,
inclusive, em 2016, o EREDS – SUL foi sediado em Santa Maria pela UFSM, quando uma
turma de estudantes corajosos encarou o desafio de organizar o debate de uma engenharia
popular e solidária dentro do Centro de Tecnologia. Mesmo sendo um encontro regional,
pessoas de diversas regiões do país estiveram presente e através do tema “Que engenharia
estamos construindo? ”, conseguiu-se construir coletivamente uma reflexão sobre uma nova
engenharia, mais popular, solidária e igualitária, suprindo a carência de quem enxerga e
engenharia além da técnica.
Além disso, protagonizaram o evento sujeitos que comumente são pouco vistos,
esquecidos ou desvalorizados dentro dos Centros de Tecnologia, sendo eles as mulheres, os
negros e negras, as LGBTs, e onde, através de uma integração horizontal e abrangente, a
periferia também ganhou voz dentro da tecnologia. Por conseguinte, um grito constantemente
ouvido, que ecoava pelo silêncio dos corredores do CT nos dias do encontro, bravejava: “Vai
avançar, vai avançar, a frente de engenharia popular!!”. Na figura 5 estão presentes alguns dos
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Engenheiros e acadêmicos da tecnologia que participaram efetivamente do EREDS-SUL,
realizado em Santa Maria, 2016, com uma faixa estendida que diz: “POR UMA
ENGENHARIA POPULAR E SOLIDÁRIA”. Lema que concretiza a vontade de construir uma
nova engenharia, nessa concepção, são válidas as palavras de Santos (2008, p.160): “O mundo
é formado não apenas pelo que já existe, mas pelo que pode efetivamente existir”.
Figura 5: Estudantes no EREDS – SUL Santa Maria, 2016.
Fonte: Arquivos cedidos pela Comissão Organizadora do evento.
Outra iniciativa, dentro das diretrizes da Rede de Engenharia Popular, que também
acontece em Santa Maria, no CT – UFSM, é a criação do projeto de ensino Estuda CT. De
acordo com o site do projeto, o coletivo idealizador da ideia formou-se durante a conjuntura
política-econômica de 2016 – enquanto intensos programas de transformações se davam na
sociedade e universidade pública. Assim, preocupados com as consequências de tais
modificações, em 2017, o grupo formou o projeto de ensino do Curso de Formação em
Engenharia Popular. Com um encontro semanal no segundo semestre do ano, o curso vem
visando compreender as consequências das políticas públicas na ciência e tecnologia na
universidade pública, na produção tecnológica, nas profissões e no mercado de trabalho, e abrir
o debate sobre a produção dos conhecimentos acerca da engenharia consolidada nas instituições
de ensino, com suas implicações sociais, ambientais, econômicas e políticas.
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Colocar a realidade social na posição de maior relevância dentro da proposta de
formação estudantil, é entendida dentro de um contexto amplo de relacionamento entre a
universidade e a sociedade, a qual vem se mostrando historicamente frágil, pontual e
fragmentada. Do lado da universidade são muitas propostas de formação profissional que não
prestam a devida atenção às demandas e carências dos grupos sociais, especialmente aqueles
que se situam em posição subalterna e marginal.
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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Poder dormir, poder morar
Poder sair, poder chegar
Poder viver bem devagar
E depois de partir poder voltar
E dizer esse aqui é o meu lugar
E poder assistir ao entardecer
E saber que vai ver o sol raiar”
A Terra Prometida, Toquinho e Vinicius de Moraes
O processo de urbanização do Brasil acompanhou grande descaso público para com as
demandas sociais da população, principalmente em termos de viabilização de aspectos
econômicos e estruturais, de moradia e trabalho, para que houvesse uma integração igualitária
da sociedade e do território. A questão da moradia no Brasil sempre esteve atrelada à
dependência de políticas públicas, as quais negligenciaram ao atendimento efetivo da causa, e
em contrapartida, incentivaram fortemente o desenvolvimento de estruturas e tecnologias
ligadas às necessidades do mercado econômico. Isso produziu uma urbanização com
infraestruturas doutrinadas pelas diretrizes capitalistas e centro autoritárias, e por traz disso,
uma engenharia elitizada.
Já desde o início do crescimento dos centros urbanos, no século XIX, com a
capitalização do território, determinadas populações foram abstidas de possuir acesso à terra ou
moradia, e, além disso, alvo de muitas políticas higienistas que as coibiram de viver nas áreas
desenvolvidas de infraestruturas. Nos anos 60, com o chamado “milagre econômico”, a
capitalização se expande em maior escala, os sistemas de engenharia e infraestruturas se
desenvolvem aos saltos, porém direcionados a atender as demandas do desenvolvimento
econômico, criando uma correlação de dependência governamental ao corporativismo privado
das cidades. Então hoje, também se apresentam as infraestruturas territoriais, da construção
civil e das políticas públicas habitacionais, fortemente doutrinadas pelo movimento mercantil
da especulação imobiliária, o que atinge ainda mais, sempre, a mesma população estigmatizada
por anos.
O Estatuto da Cidade apresenta normas a respeito do cumprimento das carências
habitacionais, mas se visualizam Planos Diretores e práticas que não contemplam as
necessidades mínimas da moradia como os aspectos do saneamento básico, da acessibilidade e
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mobilidade, da adaptabilidade sociocultural e ambiental, entre outros. Assim, somente a
constituição, assim como somente a ação do Estado, não são efetivas quando se trata de
habitação. Para que o problema habitacional brasileiro seja amenizado, junto aos instrumentos
existentes, deverão surgir também novas formas na produção da Engenharia Civil, com enfoque
social das demandas populares.
Pois de nada adianta também somente ter um teto para morar, é preciso que haja
qualidade de habitação, respeito as necessidades culturais e espaciais da comunidade, acesso à
transporte público de qualidade (porque o transito também se constitui um instrumento
segregatício), áreas de lazer, estruturas que permitam que o morador acessse também trabalho,
saúde, educação. Se diferentemente disso milhões de pessoas vivem no Brasil com
infraestruturas deficientes e sem acesso técnico para concepção e execução de suas moradias,
será que o desenvolvimento da engenharia está correto? Será que os métodos e análises já não
estão defasados? Ela é produzida para que? Para quem?
Deve-se reconhecer que o campo de atuação da Engenharia Civil no território é limitado
e no quesito de habitação, elitizado e controlado pelo mercado imobiliário, com sua
consequente segregação social. Tendo a Universidade como espaço de formação dos
profissionais engenheiros não se pode deixar de destacar sua parte nesse processo. E de fato, o
ensino tecnológico também tem suas referências da década de 60, do plano MEC-USAID
importado pelo governo militar, então um ensino tecnológico formatado totalmente ao
desenvolvimento produtivista e econômico, desassociado de qualquer olhar social e humano
sobra sua produção.
Não há dentro do Centro de Tecnologia, disciplinas de ensino que abordem as temáticas
sociais minimamente para que os profissionais da engenharia possam a avaliar os impactos
sociais sobre sua produção. Além disso não há nenhum projeto de extensão nas engenharias
que aborde a temática na forma de “ação reflexão”, que faça serviços de território afim de
observar a demanda social da área, planejar a execução técnica e retomar à universidade com
os conhecimentos obtidos no campo. A concepção que existe vem sempre no sentido das
consultorias privadas, funcionando como mão de obra barata às empresas enquanto se justifica
um desenvolvimento empreendedor, ou com um viés assistencialista (o que também não adianta
de nada), onde são feitas doações, geralmente de mantimento, às áreas em que,
primordialmente, necessitam de infraestruturas básicas, de amparo técnico oferecido.
É preciso uma nova educação e novo olhar sobre a engenharia produzida com o intuito
de aumentar e consolidar a abrangência dos estudos construindo consciência crítica e de
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instigando ao questionamento quanto às ações da Universidade, a formação recebida e a
estrutura da sociedade. Além disso, focar em práticas de conhecimento horizontal,
interdisciplinar, com extensão popular, que agregam em muito o debate sobre a temática e
abrem muitas portas para novas ações. Um primeiro passo para mudarmos a realidade é
reconhece-la.
É urgentemente necessário a composição de um quadro curricular na Engenharia que
aborde o desenvolvimento do pensar, nas novas formas de produção e abrangência, com uma
formação conjunta das ciências tecnológicas e sociais. Para isso precisamos perceber os espaços
que nos cercam e percebê-los como elementos que compõem um todo, a sociedade e assim
pensar novas gestões de engenharia, focando em soluções eficazes, de interesse da sociedade e
desassociadas do populismo político, capitalismo, manutenção de regalias e especulações a
qualquer custo.
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