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Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Psicologia Programa de pós-graduação em teoria psicanalítica Dissertação de Mestrado O estranho e seus destinos Patrícia Saceanu Orientadora: Maria Teresa da Silveira Pinheiro Rio de Janeiro 2001

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Universidade Federal do Rio de JaneiroInstituto de PsicologiaPrograma de pós-graduação em teoria psicanalíticaDissertação de Mestrado

O estranho e seus destinos

Patrícia Saceanu

Orientadora: Maria Teresa da Silveira Pinheiro

Rio de Janeiro2001

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II

O estranho e seus destinos

Patrícia Saceanu

Dissertação submetida ao corpo docente do Programa de pós-graduação em

teoria psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do

Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do

grau de Mestre.

Aprovada por:

____________________________Maria Teresa da Silveira Pinheiro (Orientadora)

____________________________Ines Rosa Bianca Loureiro

(Doutora)

____________________________Marcus André Vieira (Doutor)

Rio de Janeiro

2001

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III

FICHA CATALOGRÁFICA

Saceanu, Patrícia.O estranho e seus destinos / Patrícia Saceanu. Rio de Janeiro: UFRJ / Instituto de Psicologia / Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, 2001.VIII, 124 fls.Dissertação: Mestrado em Teoria Psicanalítica.1.Estranho 2.Narcisismo 3.Duplo 4.Psicanálise 5.Dissertação (Mestrado - Instituto de Psicologia/ Pós-graduação em Teoria Psicanalítica). I. O estranho e seus destinos.

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IV

Agradecimentos

A Teresa Pinheiro, minha Orientadora, cuja presença tem sido decisiva no meu

caminho, desde o início, em todos os momentos, naqueles que passamos e nos que ainda

virão. Obrigada pelo carinho, pela atenção e pelo respeito, e por ter acreditado em mim,

antes de mim.

A Capes, pela bolsa de pesquisa

A meus pais, por todo amor e apoio desde sempre

A meus irmãos, pelo carinho e pela paciência

A Sonia Eva, que me ajuda a fazer de um estranho caminho o meu caminho

A Angela Pequeno, por ter me acompanhado numa parte importante desse percurso, e a

Regina Herzog, pela leitura atenciosa

A todos os amigos, especialmente a Flavinha, Bia e Carla, obrigada!

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V

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo discutir o tema da inquietante estranheza,

proposto por Freud em 1919, no texto intitulado "O Estranho" - Das Unheimliche - que

mostra a estreita articulação entre o mais estranho e o mais familiar a um sujeito. O

aspecto de íntima familiaridade da estranheza aqui em questão nos remete ao tema do

narcisismo, como condição desta familiaridade que vemos muitas vezes mostrar-se

estranha ao eu.

A partir das formulações de Lacan sobre o estádio do espelho observamos que a

imagem própria, que só pode ser apreendida numa exterioridade, pode tornar-se fonte de

estranheza, como ocorre no fenômeno do duplo, exemplo paradigmático do Unheimlich.

Recorrendo à literatura, procuramos mostrar alguns dos possíveis destinos desta

estranheza a partir de um fenômeno semelhante: a vacilação da própria imagem. Neste

sentido, observamos o tema da angústia, pensada por Freud e Lacan em estreita

articulação com o Unheimlich, e a agressividade dirigida ao estranho, tal como pode ser

verificada na atualidade.

Enfim, nos propomos a pensar o Unheimlich, a angústia e a agressividade que

aparecem freqüentemente associadas a este, tendo sempre como horizonte a clínica

psicanalítica, já que acreditamos que esta pode apontar uma outra possibilidade, ao

promover o encontro do sujeito com a sua própria estranheza.

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VI

RÉSUMÉ

Le but de ce travail est de discuter le thème de l'inquiétante étrangeté proposé

par Freud en 1919. Ce texte intitulé Das Unheimliche montre l'étroite articulation entre

ce qu'il y a de plus étrange et de plus familier pour le sujet. Le caractère familier et

intime de l'étrangeté en question nous renvoie au thème du narcissisme comme

condition de cette familiarité qui, à maintes reprises, se présente comme étrange au moi.

A partir des formulations de Lacan concernant l'état du miroir, nous remarquons

que la propre image ne peut être appréhendée que dans une extériorité, pouvant devenir

source d'étrangeté, comme l'illustre le phénomène du double, exemple paradigmatique

d'Unheimlich.

Faisant appel à la littérature, nous cherchons à montrer quelques-uns des destins

possibles de cette étrangeté face à un phénomène semblable: la vacillation de la propre

image. Ainsi, nous distinguerons l'angoisse, pensée par Freud et Lacan dans un étroit

rapport avec l'Unheimlich et l'agressivité dirigée vers l'étrange, tel que l'actualité nous

permet de le verifier.

Enfin, nous nous proposons de penser l'Unheimlich, ainsi que l'angoisse et

l'agressivité qui semblent fréquemment associées à ce terme, en gardant toujours

comme horizon la clinique psychanalytique, puisque nous croyons que cette dernière

peut nous indiquer une autre possibilité: la rencontre du sujet avec sa propre étrangeté.

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VII

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 1

CAPÍTULO I: O ESTRANHO-FAMILIAR ................................................................ 10

- O Heimlich e o Unheimlich ......................................................................... 11

- O estranho e a literatura .............................................................................. 15

- Sobre "O Homem da Areia", de Hoffmann.................................................. 19

- O estranho, o recalcado e a compulsão à repetição ..................................... 28

CAPÍTULO II: O ESTRANHO E O NARCISISMO ................................................... 35

- O duplo ........................................................................................................ 36

- O estranho na constituição do sujeito .......................................................... 44

- O estranho como contra-face do narcisismo ............................................... 48

- "O Espelho", de Machado de Assis ............................................................ 50

CAPÍTULO III: A ANGUSTIANTE ESTRANHEZA ................................................. 55

- "O Unheimlich é a dobradiça indispensável para a questão da angústia" ... 55

- A angústia, entre Freud e Lacan: alguns comentários ................................. 58

- Entre o Unheimlich e a angústia .................................................................. 67

- A angústia em "O Horla", de Maupassant ................................................... 70

- Sobre a função da angústia .......................................................................... 75

CAPÍTULO IV: ÓDIO AO PRÓXIMO: O ESTRANHO E A AGRESSIVIDADE .....78

- A agressividade como contra-face do narcisismo ........................................79

- Sobre "William Wilson", de Poe ................................................................. 85

- O ódio na constituição do eu e da alteridade ............................................... 90

- O estrangeiro, a violência, a guerra ............................................................. 97

- Sobre o racismo ......................................................................................... 103

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VIII

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 110

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 121

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Introdução

A partir do conceito freudiano de inconsciente, a noção de estranho passa a ser

concebida como um dos aspectos do psiquismo, perdendo seu caráter patológico para

integrar, no seio da unidade presumida pelo sujeito, uma alteridade. Somos divididos,

estrangeiros para nós mesmos, já que "o eu não é senhor em sua própria casa"1.

No texto dedicado à questão da inquietante estranheza - "O Estranho"2 ("Das

Unheimliche") - Freud retoma esta subversão, própria do pensamento psicanalítico,

mostrando que aquilo que sentimos como estranho não é nada novo, mas sim

intimamente familiar, "aquilo que deveria ter permanecido oculto mas veio à luz"3.

A partir de um cuidadoso estudo etimológico do termo alemão Heimlich - o

familiar - Freud nos mostra o encontro dos contrários, já que Heimlich é um termo que

comporta tanto o sentido de familiar quanto o de estranho - Unheimlich. Deste modo,

suas formulações, neste texto, são fiéis a esta constatação semântica.

Notamos que o empenho de Freud em "O Estranho" é em levantar questões a

partir de diversos recursos: além da etimologia, utiliza-se da literatura, da análise de

situações cotidianas, incluindo experiências próprias, e não parece pretender alcançar

qualquer definição relativa a alguma "essência" do Unheimlich. Neste mesmo sentido,

também não buscamos aqui alcançar uma definição inequívoca do termo, o que

implicaria em termos que optar se trata-se de um fenômeno, um mecanismo de defesa,

um afeto, uma sensação... Pelo contrário, escolhemos aproveitar as possibilidades de

deslizamento que o tema nos permite.

1 Freud, S., Uma dificuldade no caminho da psicanálise [1917], ESB, RJ, Ed. Imago, 3a edição, 1990, Vol. XVII, p.178.2 Freud, S., O Estranho [1919], Vol. XVII, op. cit.3 Ibid, p.301.

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Assim, podemos dispor de inúmeros recursos para abordar esta questão.

Escolhemos como direção uma articulação com o conceito de narcisismo, procurando

verificar se é possível afirmar que entre o estranho e o narcisismo, assim como entre o

Unheimlich e o Heimlich, haveria uma articulação moebiana, entendida como uma

relação de continuidade, para além de uma simples oposição.

Utilizamos a banda de Moebius neste sentido pois esta permite conceber um

modo de articulação que não se insere numa perspectiva dualista mas, para além disso,

evidencia que as dicotomias podem ser apenas pontuais4. Esta figura topológica nos

apresenta uma outra concepção, própria do pensamento psicanalítico, onde dois lados

podem estar contidos numa mesma superfície e nos permite pensar que algumas

aparentes contradições não devem ser superadas, mas podem coexistir, num conflito

produtivo, criativo.

O aspecto de íntima familiaridade da estranheza aqui em questão nos remete ao

tema da constituição do sujeito, do narcisismo como condição desta familiaridade que

vemos muitas vezes mostrar-se tão estranha ao eu. É a partir daí que pensamos o

estranho como tributário do narcisismo, já que só há estranheza, no sentido do

Unheimlich freudiano, onde há familiaridade.

A constituição de uma imagem própria, seu papel indispensável na constituição

do eu e, ao mesmo tempo, a fragilidade e o estatuto de ficção deste eu, assim como a

exterioridade desta imagem própria, já que "eu é um outro"5, foram algumas das

questões com as quais nos deparamos.

4 A banda de Moebius é uma figura topológica trabalhada por Lacan em diversos momentos importantes de sua obra. Cf. Granon-Lafont, J., A topologia de Jacques Lacan, RJ, JZE, 1990, ou ainda Darmon, M., Essais sur la topologie lacanienne, Paris, L'Association Freudienne, 1990.5 Frase do poeta Rimbaud que Lacan cita em alguns momentos como, por exemplo, no texto A agressividade em Psicanálise [1948] in Escritos, RJ, JZE, 1998, p.120.

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Percorrendo esta articulação entre o próprio e o estrangeiro, tanto na literatura

sobre o tema como em discussões a esse respeito, faz-se notar que a angústia e a

agressividade que podem advir de um encontro com o estranho são sempre lembradas

como possibilidades.

A angústia é apontada, tanto por Freud como por Lacan, como o afeto em

questão no fenômeno do Unheimlich. Em suas análises, Unheimlich e angústia

articulam-se de modo tão íntimo que chegam a parecer coincidentes, indissociáveis.

Já a agressividade dirigida ao estranho é facilmente verificável no contexto

social, e mostra uma tentativa de manter o estranho numa exterioridade, fixando esta

estranheza no outro, que então torna-se ameaçador, perseguidor. Trata-se de uma

questão central na atualidade, onde vemos comumente este tipo de reação diante da

estranheza.

A relação com o estrangeiro, onde a diferença pode mostrar-se de modo mais

radical, e o ódio que vemos surgir aí, são questões importantes e podem ser

consideradas como manifestações desta íntima articulação entre o estranho e o familiar.

Freud e Lacan nos mostram que a constituição de uma identidade funda-se na

exclusão, já que uma unidade mantém-se justamente pela expulsão da diferença, que é

colocada fora, no outro.

Acreditamos que a questão do estranho pode servir como ponto de partida para

uma reflexão que possa ir além das dicotomias onde a diferença permanece como um

resto a ser expulso ou temido, fonte de ódio ou angústia.

Nas simples oposições - dentro ou fora, eu ou outro, estranho ou familiar - o

mesmo é sempre mantido, mesmo que seja pela negativa. Não há lugar para a

alteridade.

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A partir do instante em que o Heimlich se apresenta como Unheimlich, afetando

o sujeito ao fazê-lo vacilar, acreditamos que alguns diferentes destinos são possíveis.

Apesar de reconhecermos a prevalência das reações de angústia e agressividade frente

ao estranho, pensamos que seria importante verificar se há também outros caminhos

possíveis. Neste sentido, a psicanálise parece apontar uma outra direção, mesmo que

neste caminho seja necessário passar pelo ódio e pela angústia.

Nesta dissertação nos propomos a pensar o Unheimlich, assim como a angústia e

a agressividade que aparecem freqüentemente associadas a este, tendo sempre como

horizonte a clínica psicanalítica, pois acreditamos que esta pode nos apontar para uma

outra possibilidade diante do Unheimlich. Ao promover o encontro do sujeito com a sua

própria estranheza, uma análise torna evidente o fato de que o eu não é senhor em sua

própria casa, mostrando a condição de exilado do próprio sujeito.

Freud afirma, e é o que percebemos de fato ao percorrer a obra dos principais

autores que exploram o tema da estranheza, que a experiência do Unheimlich é algo tão

fugidio que a ficção o demonstra melhor, produzindo-o de modo mais estável e

articulado. Por isso, nos indica a importância da literatura para o estudo do estranho: "O

estranho, tal como é descrito na literatura (...) merece na verdade uma exposição em

separado. Acima de tudo, é um ramo muito mais fértil do que o estranho na vida

real..."6 Assim, nos mostra claramente que é possível encontrar algo do discurso

psicanalítico fora do seu dispositivo, principalmente na literatura.

Seguindo estas indicações de Freud, buscamos alguns textos literários como

contribuições para uma abordagem do estranho e, principalmente, de alguns de seus

possíveis destinos.

6 Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.310.

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Talvez não seja por acaso que o recurso a este outro discurso possa ser

esclarecedor justamente neste campo em que nos centramos aqui - o estranho, a

angústia - já que é justamente do indizível que se trata, do ponto onde parecem faltar as

palavras.

Neste sentido, a literatura possibilita justamente que se mostre o espaço vazio da

linguagem, provocando um vazio de sentido a partir do qual é possível um certo contato

com a ausência de sentido. Logo, não se trata de supor que haveria uma essência da

linguagem à qual o grande escritor teria acesso, já que isso nos parece oposto à

perspectiva psicanalítica que afasta a suposição de um "ser" da linguagem.

O que nos interessa ressaltar é que neste texto de Freud sobre o Unheimlich,

literatura e psicanálise caminham juntas, numa colaboração que permite elucidar e

aprofundar questões que estas apresentam em comum.

É com este intuito que pretendemos usar alguns contos, privilegiando um modo

de utilização da literatura enquanto possibilidade de enunciação daquilo que esta tem

em comum com o discurso psicanalítico, no caso, uma abordagem do tema do estranho.

Freud introduz seu estudo sobre o Unheimlich esclarecendo tratar-se de uma

incursão da psicanálise no campo da estética, entendida como "a teoria das qualidades

do sentir"7. Visa esclarecer de que forma uma obra literária é capaz de despertar em seu

leitor uma sensação de inquietante estranheza.

Porém, embora apresente assim sua proposta, como uma tentativa de utilizar a

psicanálise para esclarecer uma questão estética, suas análises com relação à lingüística

e à literatura do Unheimlich acabam por elucidar alguns aspectos do problema

psicanalítico da heterogeneidade do campo dos fenômenos ligados à angústia.

7 Ibid, p.275.

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Consideramos que "O Estranho" é um texto muito rico, que trata, por vezes de

modo não muito explícito, de questões fundamentais da psicanálise, incluindo sua teoria

e clínica. Apesar de ser um texto anterior ao "Além do princípio do prazer"8, onde a

segunda tópica seria "oficialmente inaugurada", "O Estranho" aponta claramente para as

principais formulações que fundamentam esta segunda tópica, que marca uma

importante virada no pensamento freudiano.

Assim, entendemos que este texto ultrapassa em muito aquilo a que se propõe -

pensar as questões estéticas e o efeito sobrenatural - mostrando-se uma verdadeira

pesquisa sobre a dinâmica do inconsciente e, mais especificamente, sobre a angústia.

Então, foi este o viés que escolhemos seguir aqui, privilegiando o texto "O

Estranho" como um ponto a partir do qual podemos discutir questões importantes da

teoria e da clínica psicanalítica.

Porém, compartilhamos da afirmativa de Freud, onde ele reconhece, já no final

deste texto: "É evidente, portanto, que devemos estar preparados para admitir existirem

outros elementos, além daqueles que estabelecemos até aqui, que determinam a criação

de sensações estranhas. Poderíamos dizer que esses resultados preliminares

satisfizeram o interesse psicanalítico pelo problema do estranho, e que aquilo que resta

pede provavelmente uma investigação estética"9.

Escolhemos alguns contos literários que abordam o tema do estranho e giram em

torno de uma situação semelhante: a estranheza de um sujeito com relação à própria

imagem diante do espelho10. Consideramos que esta situação mostra de modo

privilegiado a articulação que buscamos entre o estranho e o narcisismo. Desta maneira,

8 Freud, S., Além do princípio do prazer [1920], Vol. XVIII, op. cit.

9 Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.307. 10 Com exceção de "O Homem da Areia", conto que comentaremos no primeiro capítulo, por ter sido aquele mais trabalhado por Freud em "O Estranho".

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recorrendo à literatura, partimos de uma mesma situação para pensar os diferentes

destinos do estranho.

Veremos que a solução encontrada por cada um dos personagens para sair deste

impasse, de um estado de inquietante estranheza, não será a mesma. Em cada conto, ela

se diferencia num ponto que mostra os diferentes caminhos que podem ser tomados pelo

sujeito, quando se depara com o desvanecimento de sua imagem.

No primeiro capítulo pretendemos explorar o próprio texto freudiano sobre o

Unheimlich, acompanhando seu percurso, visando obter aí bases para futuras

articulações. Seguiremos os passos de Freud em seu cuidadoso estudo etimológico do

termo alemão, observando o desdobramento do Heimlich em Unheimlich.

Acompanharemos Freud em sua particular apropriação da literatura, no caso, do conto

"O Homem da Areia", de Hoffmann, já que concordamos com Freud em sua afirmativa

de que a literatura nos oferece exemplos mais ricos e bem articulados do estranho. Neste

primeiro capítulo observaremos ainda as articulações que Freud privilegia entre o

Unheimlich e o retorno do recalcado e a compulsão à repetição.

No segundo capítulo abordaremos a articulação entre o estranho e o narcisismo,

uma das idéias que permeiam todo este trabalho. Como ponto de partida para esta

articulação utilizaremos o próprio estudo etimológico de Freud acerca do Unheimlich,

abordado no primeiro capítulo, que nos mostra o encontro dos contrários, procurando

pensar se é deste mesmo modo que podemos entender a articulação entre o estranho e o

narcisismo.

A partir da observação do fenômeno do duplo, apontado por Freud como o

exemplo paradigmático do Unheimlich, discutiremos a questão da alteridade na

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constituição do eu. Nas contribuições de Lacan para o estudo do narcisismo,

principalmente em suas formulações acerca do estádio do espelho11, onde nos mostra

que "a imagem própria é ao mesmo tempo exterior"12, encontramos subsídios para

pensar a associação entre a inquietante estranheza e a imagem própria, como mostra o

fenômeno do duplo.

Neste capítulo, veremos ainda a questão do recobrimento por uma identidade

única como tentativa de afastar a estranheza, a partir do conto "O Espelho" de Machado

de Assis.

No terceiro capítulo partiremos do Seminário X de Lacan, onde ele se utiliza do

Unheimlich para pensar a questão da angústia, para tentarmos um caminho inverso,

utilizando algumas de suas formulações sobre a angústia para um estudo sobre o

Unheimlich. É importante notar que não temos a pretensão de realizar um estudo acerca

do vasto tema da angústia, mas apenas obter aí algumas contribuições para o

mapeamento do nosso tema.

Seguindo as formulações de Freud e Lacan, consideramos importante

observarmos a proximidade entre os temas da angústia e o Unheimlich. Porém,

entendemos que estes não se resumem a um mesmo. Para pensar esta articulação e

também uma distinção, retomaremos a questão do duplo, discutida no capítulo II,

observando um conto, "O Horla", de Maupassant, que mostra a angústia paralisante

como uma das possíveis conseqüências diante do estranho.

No quarto capítulo pretendemos mapear alguns pontos com relação ao tema da

agressividade a partir de sua articulação com o Unheimlich. A literatura mantém-se

como ponto de partida: em "William Wilson", de Poe, vemos a manifestação do duplo

11 Lacan, J. O estádio do espelho como formador da função do eu [1949] in Escritos, op. cit.12 Ibid, p.98.

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como perseguidor do sujeito, desencadeando uma agressividade mortal. A partir deste

conto pensamos a agressividade em questão como uma tentativa de afastar a íntima

familiaridade da estranheza. O estranho é depositado fora, como um outro externo que

seria passível, e merecedor, de ser exterminado.

Entendemos que a agressividade também pode ser pensada como uma contra-

face do narcisismo, assim como vimos no capítulo II com relação ao estranho. Para esta

reflexão sobre a agressividade consideramos importante ressaltar, em Freud, a questão

do narcisismo das pequenas diferenças e, em Lacan, a agressividade imaginária, que

está implicada na constituição do sujeito.

Capítulo I: O estranho - familiar

Neste primeiro capítulo sobre o tema da inquietante estranheza nos propomos a

trabalhar detalhadamente o principal texto onde Freud aborda este assunto. Trata-se de

uma publicação de 1919, cujo título é justamente "O Estranho", e que nos parece

merecer uma atenção maior do que aquela que lhe tem sido usualmente dispensada.

Freud inicia este texto afirmando que o estranho relaciona-se com aquilo que é

assustador, com o que provoca medo e horror, buscando definir "que núcleo comum é

esse que nos permite distinguir como 'estranhas' determinadas coisas que estão dentro

do campo do que é amedrontador"13, numa tentativa de delimitar qual a especificidade

do estranho.

13 Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.276.

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Neste sentido, afirma que "o estranho é aquela categoria do assustador que

remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar"14, mostrando é justamente

algo de mais intimamente familiar que pode tornar-se inquietantemente estranho.

Afirma que sua investigação começara a partir de uma série de casos individuais,

tendo sido mais tarde confirmada pelo exame do uso lingüístico. Porém, anuncia que

nesta exposição faria o caminho inverso, iniciando o artigo por um cuidadoso estudo

etimológico, onde examina cada nuance do termo alemão Unheimlich. É neste caminho

que o seguiremos agora, considerando que este estudo lingüístico pode nos fornecer

dados importantes para o mapeamento de nosso tema.

O Heimlich e o Unheimlich

Freud inicia sua análise etimológica do Unheimlich, adjetivo formado por Un,

prefixo de negação + Heim, casa, lar, doméstico, mostrando que Heimlich é um termo

que pode desenvolver-se num sentido ambíguo, até coincidir com seu contrário,

Unheimlich. Freud toma isto como uma confirmação, inscrita na própria língua, da

hipótese psicanalítica que relaciona o estranho àquilo que nos é mais intimamente

familiar.

Esta constatação da íntima correlação entre termos aparentemente contraditórios

não lhe pareceu de todo surpreendente. Em 1910, no texto "O sentido antitético das

palavras primitivas"15, Freud já mostrava-se muito interessado pela descoberta de alguns

filólogos, que afirmavam que seria comum encontrar, nas línguas primitivas, palavras

14 Ibid, p.277.15 É importante notar que este texto foi bastante criticado por lingüistas, que apontam a precariedade da teoria que Freud apresenta com relação ao desenvolvimento da linguagem. Porém, acreditamos que apesar das inúmeras críticas que são dirigidas a Freud, muitas das quais mostram-se de fato pertinentes em seus contextos, principalmente com relação a seus estudos da Bíblia, de História, antropologia, entre outros; estas mesmas obras mantêm-se como referências fundamentais, naquilo que nos permitem pensar certas questões do campo psicanalítico.

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comportando sentidos contraditórios. Seguindo estes estudos lingüísticos, afirma que

isto não se daria por acaso, mas sim pelo fato de que os conceitos seriam construídos a

partir de comparações. Neste sentido, exemplifica: "se sempre houvesse luz, não

seríamos capazes de distinguí-la da escuridão, nem de ter o conceito de luz"16. Assim,

todo conceito seria dependente de seu contrário e, inicialmente, só poderia ser

comunicado evidenciando este contraste.

Referindo-se ao modo de estruturação da linguagem, Freud afirma que só aos

poucos o homem teria sido capaz de separar dois lados de uma antítese e de pensar cada

um deles sem uma comparação consciente com o outro. Deste modo, a princípio

disporíamos de apenas uma palavra para descrever dois contrários, nos pontos extremos

de uma seqüência de qualidades ou atividades, como por exemplo: forte-fraco, longe-

perto.

O que nos interessa ressaltar é que não se trata aí de uma simples contradição,

mas de séries de associações, capazes de derivar um sentido inverso. É isso que

voltaremos a observar mais adiante, acerca do Unheimlich.

Ainda antes deste estudo sobre o funcionamento das línguas primitivas, em "A

interpretação dos sonhos", Freud abordara o modo como os sonhos tratam a categoria

dos contrários, como vemos na passagem a seguir:

"O modo pelo qual os sonhos tratam a categoria dos contrários é bastante singular. Ela é simplesmente desconsiderada. O não não parece existir no que diz respeito aos sonhos. Eles mostram preferência particular por combinar os contrários numa unidade (...) os sonhos se sentem livres para representar qualquer elemento por seu oposto (...)" 17

Anos depois, Freud articularia esta constatação acerca dos sonhos com o texto

"O sentido antitético das palavras primitivas", a que nos referimos acima, afirmando que 16 Cf. Freud, S., O sentido antitético das palavras primitivas [1910], op. cit., p.143.17 Freud, S., A interpretação dos sonhos [1900], op. cit., p.305.

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as línguas primitivas se comportariam de modo análogo aos sonhos18. Freud utilizou-se

destas descobertas como confirmações de suas idéias sobre a aproximação entre o modo

de funcionamento do inconsciente, dos sonhos e dos povos primitivos (e também das

crianças), como retomaria detalhadamente em "Totem e tabu"19, por exemplo.

Assim, podemos observar que a afirmação de Freud acerca do estreito vínculo

entre o estranho e familiar, nos mostrando aquilo que considera uma "prova

etimológica", que veremos a seguir, de como o Heimlich chega a coincidir com o

Unheimlich, tem por base toda uma idéia sobre o funcionamento do inconsciente. É

neste sentido que acreditamos que o texto "O Estranho" ultrapassa aquilo a que se

propõe, apresentando elementos importantes para uma pesquisa sobre a dinâmica do

inconsciente.

Mesmo não sendo nosso objetivo um estudo lingüístico aprofundado, não

poderíamos deixar de notar que este foi um ponto fundamental para Freud em suas

formulações sobre o estranho. Seguindo o percurso freudiano, podemos constatar que a

etimologia também pode nos ser de grande valia para abordar nosso objeto de estudo,

não como tentativa de definir de modo unívoco "o que é Das Unheimliche", mas nos

servindo de base para futuras articulações.

Pesquisando em diversos dicionários, Freud observa que várias línguas não têm

uma palavra exata para esta "particular nuance do que é assustador", antecipando

justamente todo o problema de tradução com o qual nos deparamos.

A tradução brasileira das obras de Freud (ESB) adotou o termo estranho para o

alemão Unheimlich, e este permaneceu como o termo mais comumente adotado em

18 Idem.19 Cf. Freud, S., Totem e tabu [1913], op. cit.

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artigos e publicações sobre o tema, porém, muitas vezes encontramos também termos

como sinistro, inquietante, assustador, entre outros.

Optamos por manter aqui o termo o estranho para das Unheimliche, porém, é

importante estarmos atentos para algumas alterações de significado que poderiam

ameaçar a riqueza que reside na ambigüidade do termo alemão. Em alguns momentos

utilizamos também traduções aproximadas como o estranho-familiar ou a inquietante

estranheza. Esta necessidade que surge em alguns momentos, de usar mais de uma

palavra para tentar traduzir o Unheimlich freudiano mostra a complexidade do termo

alemão e a imprecisão de sua tradução brasileira mais freqüente20.

Em seu estudo, Freud aponta que o que lhe interessa é mostrar que entre os

diferentes matizes de significados da palavra Heimlich - pertencente à casa, familiar,

doméstico, íntimo - há um que é idêntico ao seu oposto, Unheimlich. Verifica que a

palavra Heimlich é ambígua, comportando idéias, não contraditórias, mas muito

diferentes. Por um lado, refere-se ao que é familiar e agradável, por outro, tem como

conotação possível "algo escondido, por trás das costas de alguém, sem que os outros

saibam"21. Logo, é um termo que comporta sentidos distintos, que vão desde o familiar

e conhecido, passando por secreto e oculto até inquietante, estranho.

Hanns22 retoma o estudo lingüístico apresentado por Freud, mostrando o ponto

de torção onde Heimlich passa de familiar e conhecido para inquietante e estranho:

aquilo que é secreto e oculto pode ser familiar e conhecido para quem participa de um

20 Cf. Hanns, L. A., Dicionário comentado do alemão de Freud. RJ, Imago, 1996, p. 231-239. O autor contrasta o termo alemão das Unheimliche com o estranho, mostrando que o estranho pode evocar uma idéia de alteridade, de um outro externo, forasteiro, diferente e esquisito, o que afasta-se daquilo que Freud denomina Unheimlich. Além disso, ao traduzir-se Unheimlich como estranho, perde-se as conotações de uma sensação inquietante e fantasmagórica, de algo que cerca o sujeito sorrateiramente. Com o termo o estranho também não se transmite a idéia da íntima familiaridade desta estranheza, o que é algo fundamental em das Unheimliche.21 Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.280.22 Hanns, L. A., Dicionário comentado do alemão de Freud, op. cit., p.231.

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segredo, por exemplo. Por outro lado, pode ser algo inquietante e estranho para os

outros excluídos.

Já entre as conotações do adjetivo Unheimlich, Hanns ressalta aquela que refere-

se a algo de insidioso, sussurrado e secreto, como a sensação de algo grandioso que se

arma sorrateiramente, de modo súbito, em torno do sujeito. Há um conteúdo

fantasmagórico que torna-o inapreensível e inefável, dotado de uma certa irrealidade ou

de um realismo fantástico. O adjetivo mantém ainda uma acepção de estranhamento

indefinível e imprevisível, diferente do sentimento de pânico diante de um fenômeno

avassalador, catastrófico e bem definido.

Este estudo etimológico é apontado por Freud como um precioso recurso para a

apreensão do Unheimlich, por demonstrar sua íntima relação com o Heimlich. Porém,

sabemos que a apreensão deste tema não poderia pretender-se completa, sob pena de

perdermos a riqueza que reside justamente na possibilidade de deslizamento que o

Unheimlich nos permite.

Acreditamos que é neste sentido, como tentativa de abordar algo que beira o

inapreensível, o indizível, que Freud nos aponta a literatura como um recurso

fundamental para o estudo do estranho. Entendemos isso como uma indicação de que o

único modo de nos aproximarmos deste ponto onde as palavras parecem faltar, é

justamente pelas palavras.

O estranho e a literatura

Após este estudo lingüístico sobre o estranho, ao buscar exemplos de situações

que provoquem estranheza, Freud ressalta a importância da literatura como recurso para

o tema: "O estranho, tal como é descrito na literatura... merece na verdade uma

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exposição em separado. Acima de tudo, é um ramo muito mais fértil do que o estranho

na vida real..."23

Como afirma Freud, e é o que percebemos de fato ao percorrer a obra dos

principais autores que exploram o tema da estranheza, a experiência do Unheimlich é

algo tão fugidio que a ficção o demonstra melhor, produzindo-o de modo mais estável e

articulado. Freud afirma que isso deve-se ao fato de que, na ficção, o autor dispõe de

mais meios para criação de efeitos de estranheza, sem a necessidade de submetê-los ao

teste de realidade.

Neste ponto, nos encontramos no delicado terreno da interseção entre psicanálise

e literatura, ou ainda, no centro das relações ambivalentes de Freud com os grandes

escritores.

Freud atribui uma grande importância à literatura em seus estudos e permeia

toda sua obra com citações de seus escritores preferidos. Porém, podemos perceber que

seu uso da literatura apresenta-se de diferentes modos, exercendo funções variadas em

seu texto. Apesar de não pretendemos aqui um aprofundamento nestes modos de

apropriação da literatura por Freud, consideramos importante ao menos mostrar sua

complexidade.

Em artigo acerca das relações entre Freud e os escritores alemães, Rouanet

distingue três registros em que funcionaria a literatura na obra de Freud24:

O primeiro é o registro legitimatório, onde os escritores são convocados como

aliados e precursores, como "avalistas" de verdades controvertidas, afirmadas pela

psicanálise. Neste registro Freud cita Schiller, por exemplo, atribuindo a este a autoria

do dualismo psicanalítico fundamental - fome e amor. Deste modo, segundo Rouanet, a

23 Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.310.24 Rouanet, S. P., Filósofos e escritores alemães in Perestrello, M. (org.), A formação cultural de Freud, RJ, Imago, 1996, p.223.

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literatura transforma-se em aliada da psicanálise, ajudando-a a legitimar-se, mostrando

que, por mais estranhas que pareçam, as teses psicanalíticas podem ser confirmadas

pelos grandes escritores.

Já no registro hermenêutico a literatura aparece como um objeto a ser

interpretado. É desse modo que Freud faz uma exegese de várias obras literárias numa

perspectiva psicanalítica. Rouanet cita como exemplo a clássica interpretação freudiana

da Gradiva, de Wilhem Jensen, onde o delírio do jovem arqueólogo que imagina ver

uma patrícia romana perambulando pelas ruínas de Pompéia é interpretado como uma

fantasia resultante de reminiscências de sua infância, recalcadas.

Por último, Rouanet aponta o registro clínico: considerando a livre circulação

entre a literatura e os processos inconscientes, a literatura pode tornar-se parte do

material clínico com que o analista trabalha. Muitas vezes as obras literárias afloram nas

narrativas dos pacientes ou aparecem nos sonhos, lapsos ou chistes, inclusive do próprio

Freud.

Porém, observamos que esta divisão entre três registros, proposta por Rouanet,

nem sempre apresenta-se nitidamente demarcada no texto freudiano. Na utilização por

Freud do texto em que nos deteremos logo a seguir, "O Homem da Areia", podemos

observar o registro hermenêutico, na interpretação psicanalítica dos personagens, mas

também o registro legitimatório, já que Freud busca confirmar ali sua teoria acerca da

articulação entre o estranho e o recalcado.

Devemos observar ainda, sobre os modos de apropriação da literatura por Freud

que, em diversos momentos, ele inclinou-se sobre o texto literário buscando a origem do

gênio, a reconstrução fantasmática do autor e a função da arte para o sujeito. Neste

sentido, Gay afirma:

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" (...) deduzir de uma obra fáceis inferências sobre seu criador era uma tentação permanente para os críticos psicanalíticos. Suas análises dos criadores e dos públicos da arte e da literatura ameaçavam se tornar, mesmo em mãos habilidosas e delicadas, exercícios de reducionismo (...)" 25

Porém, em algumas passagens, Freud teve o cuidado de negar que a psicanálise

pudesse lançar alguma luz sobre os mistérios da criatividade e reconheceu os problemas

de se pretender fazer uma "psicanálise aplicada".

Em seu discurso preparado para a cerimônia de recebimento do Prêmio Goethe,

justamente onde Freud era reconhecido, ele mesmo, como um grande escritor, Freud

parece desculpar-se, em nome da psicanálise, respondendo às críticas que poderiam

advir "por termos ofendido o respeito que lhe é devido ao tentarmos aplicar a análise a

ele próprio (Goethe), por termos degradado o grande homem à posição de objeto de

investigação analítica."26

Assim, consideramos importante reconhecer a ambigüidade e a complexidade

nas relações de Freud com a literatura e os grandes escritores. Porém, escolhemos seguir

aqui apenas uma proposta, em certos momentos vislumbrada por Freud, de utilização do

texto literário enquanto possibilidade de enunciação daquilo que tem em comum com o

discurso psicanalítico.

Freud reconhece que os escritores exploram o mesmo terreno que o psicanalista

e assim podem chegar a conclusões semelhantes, mesmo que por caminhos diferentes.

Parece ser neste sentido, observando as estreitas afinidades que podem haver

entre a psicanálise e a literatura, que Freud escreve uma carta a Arthur Schnitzler27, na

qual deixa transparecer sua admiração e sua identificação com este escritor a quem

chega a considerar seu duplo, como mostra a passagem a seguir:

25 Gay, P., Freud: uma vida para nosso tempo, SP, Companhia das Letras, 1995, 7a ed., p.297.26 Freud, S., O prêmio Goethe [1930], op. cit., Vol. XXI, p.244.27 Sobre a proximidade entre Freud e Schnitzler, cf. Kon, N. M., Freud e seu duplo, SP, EDUSP, 1996.

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"Acho que evitei um contato com o senhor por uma espécie de medo do duplo (...) O seu determinismo, como o seu ceticismo - que as pessoas chamam de pessimismo - o seu estar possuído pelas verdades do inconsciente, pela natureza impulsiva do ser humano, o seu abalar das certezas culturais convencionais, a aderência de seus pensamentos à polaridade do amor e da morte, tudo isso me emocionava com uma secreta familiaridade (...) Assim cheguei à conclusão de que o senhor sabe por intuição - é verdade que devido a uma aguda observação de si mesmo - tudo o que descobri depois de fatigantes trabalhos com outros homens." 28

É a partir desta estreita afinidade que acreditamos que a literatura pode nos

servir como instrumento para enriquecer, problematizar, questionar ou mesmo elucidar

certos temas aos quais a psicanálise também se dedica.

Então, feitas as devidas ressalvas, longe de pretendermos esgotar esta discussão

acerca das relações entre psicanálise e literatura, procuramos apenas seguir aqui a pista

que Freud nos indica ao ressaltar a literatura como um campo privilegiado para a

observação do estranho. Sendo assim, passaremos agora ao conto literário privilegiado

por Freud em seu texto sobre o Unheimlich.

Sobre "O Homem da Areia"29

Freud escolhe "O Homem da Areia", de Hoffmann, a quem considera "um

escritor que, mais do que qualquer outro, teve êxito na criação de efeitos estranhos"30.

Apesar de utilizar ao longo de seu trabalho inúmeras referências a outros

exemplos da literatura, é neste conto de Hoffmann que Freud se detém. Ao observarmos

alguns elementos com relação a este conto e ao gênero literário em que se insere - o

fantástico - esta escolha de Freud nos parecerá ainda mais rica.

28 Jones, E., A vida e a obra de Sigmund Freud, Vol. 3, RJ, Imago, 1989, p.430-431, apud Kon, N. M.,Freud e seu duplo, op. cit., p.127.29 Hoffmann, E. T. A, O Homem da Areia [1815] in Contos Fantásticos, RJ, Ed. Imago, 1993.30 Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.284.

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Segundo Todorov31 o conto fantástico surge a partir de uma inclinação pelo

velado, o irracional e imprevisível, sustentando uma posição oposta às tendências

intelectuais que consideravam um mundo submetido a uma causalidade rigorosa,

convencido dos poderes da razão. Todorov considera esta expressão literária como "a

consciência intranqüila deste século XIX positivista".

Porém, é importante notar que este gênero também tem forte influência do

positivismo, incorporando elementos do discurso científico para afirmar a sua própria

semântica. Essa tentativa de mostrar uma "fundamentação científica" em suas

produções é observável nos textos de Hoffmann que, como veremos a seguir, usa temas

como a dupla personalidade, por exemplo, algo muito discutido pelos alienistas da

época.

Assim, o fantástico não efetua um rompimento absoluto com a realidade, mas

beira seus limites, e isso sim é fonte de horror. Os elementos cotidianos, imagens

"possíveis", são mais inquietantemente estranhos do que aquilo que é totalmente

sobrenatural, impossível.

Em "O Homem da Areia", como veremos, Hoffmann não refere-se a aparições

sobrenaturais ou demoníacas, mas usa imagens da vida cotidiana, jogando assim no

limite do recurso do desdobramento, com a multiplicação de duplos.

Deste modo, a essência do fantástico é resumida por Todorov: "Num mundo que

é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros,

produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo

familiar."32

31 Todorov, T., Introdução à literatura fantástica, SP, Ed. Perspectiva, 1992.32 Ibid, p. 30.

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Diante disso, aquele que percebe o fato deve optar: ou trata-se de uma ilusão dos

sentidos, de pura imaginação, e assim as leis do mundo permaneceriam as mesmas; ou o

acontecimento foi real, é parte integrante da realidade e, neste caso, esta realidade

estaria regida por leis desconhecidas. Ao escolher uma dessas opções passa-se do

fantástico para um de seus gêneros vizinhos, como o "maravilhoso" ou o "absurdo", por

exemplo.

O fantástico ocupa justamente o tempo desta incerteza, da vacilação

experimentada por um ser que só reconhece as leis naturais, frente a um acontecimento

aparentemente sobrenatural: "'Cheguei quase a acreditar': eis a fórmula que resume o

espírito do fantástico. A fé absoluta como a incredulidade total nos levam para fora do

fantástico; é a hesitação que lhe dá vida".33

Segundo Mon34, o estranhamento no fantástico é resultado de uma abertura,

como uma fenda na realidade, um vazio inesperado que se manifesta na falta de coesão

do relato no plano da causalidade. Segundo a autora, este tipo de literatura realça o

instante de ver, escamoteando o tempo de compreender, numa passagem direta ao

momento de concluir. Por isso o efeito é de vacilação e estranheza, pela supressão do

tempo de compreender35.

Assim, o fantástico trata freqüentemente de uma súbita aparição, insólita, como

um fenômeno de ruptura que introduz, por um breve lapso de instante, um "fora do

tempo", perturbando o campo fantasmático em que o sujeito se reconhece

habitualmente36.

33 Ibid, p.36.34 Mon, M., O Homem da Areia ou o espanto se introduziu em sua vida in Cosentino, J. C. (org.) O estranho na clínica psicanalítica. RJ, Contra Capa Livraria, 2001, p.75-86.35 Cf. Lacan, J., O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada in Escritos, op. cit.36 Cosentino, J. C., Angustia, fobia, despertar. Buenos Aires, Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1998 apud Mon, M. O Homem de Areia ou o espanto se introduziu em sua vida, op. cit., p.81.

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Hoffmann é considerado o "mestre do fantástico" e Freud submete seu conto "O

homem da areia" a uma análise cuidadosa, visando encontrar aí provas para sua hipótese

segundo a qual o estranho remeteria àquilo que nos é mais intimamente familiar. Este

conto foi bastante discutido por Freud e vários de seus comentadores, por tratar-se de

uma rica apresentação de elementos associados ao estranho, como por exemplo a figura

do autômato e as metáforas óticas.

Em linhas gerais, o conto tem início com as recordações de infância de Natanael,

um jovem que não consegue banir as lembranças ligadas à morte misteriosa de seu pai.

Ele relata os fatos estranhos que lhe aconteceram: uma súbita aparição lhe despertara

terríveis pressentimentos, fazendo-o lembrar-se da história do "Homem da Areia",

"aquele que joga areia e arranca os olhos das crianças desobedientes", figura que tanto

lhe apavorava quando era criança e ouvia as histórias contadas por sua mãe. Natanael

acredita reconhecer este fantasma de horror de sua infância na figura de um vendedor de

instrumentos óticos que lhe aparece de modo repentino. Associa ainda este personagem

com o advogado Coppelius, um homem que também lhe causava horror quando criança.

O jovem suspeitava que Coppelius, este homem assustador, teria alguma ligação com a

morte de seu pai.

Natanael narra suas terríveis lembranças de infância, quando teria presenciado as

experiências misteriosas de seu pai e do advogado Coppelius que, juntos, trabalhavam

no escritório manipulando um braseiro incandescente. Certa noite o menino teria sido

flagrado espionando-os e sofrera então terríveis ameaças por parte de Coppelius, que

gritava que arrancaria os olhos do garoto. Pouco tempo depois o pai de Natanael morreu

numa explosão neste mesmo escritório e o advogado Coppelius desapareceu da cidade.

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No conto, Natanael, já um estudante, depara-se com Coppola, um vendedor de

instrumentos óticos que lhe desperta horror pela semelhança com os fantasmas de sua

infância, mas também uma certa atração, pelos instrumentos óticos que lhe oferecia.

Natanael compra um pequeno binóculo de Coppola, através do qual passa o observar

Olímpia pela janela, apaixonando-se cegamente, sem perceber que tratava-se de uma

boneca.

Freud comenta sobre o caráter narcísico do amor de Natanael por Olímpia, mas

não se aprofunda no tema, que é mencionado apenas numa nota de rodapé37, onde

lembra uma passagem do conto onde o criador da boneca Olímpia afirma que os olhos

deste autômato são justamente os olhos de Natanael. Freud centra-se na questão da

castração, simbolizada pela perda da visão, e interpreta o personagem Natanael como

um jovem incapaz de amar uma mulher por causa de sua fixação no pai pelo seu

complexo de castração38.

Sendo um dos focos deste estudo a articulação do estranho com o narcisismo39,

como veremos adiante, penso que é importante ressaltar aqui as metáforas óticas que

permeiam todo este conto, assim como o amor narcísico de Natanael por Olímpia,

aquela que possui seus olhos, a quem ele olha sem ver aquilo que todos vêem - o fato de

37 Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.291, nota 1.38 Podemos verificar aqui tanto um uso legitimatório da literatura, pelo qual Freud procura mostrar que a relação entre a castração e o efeito de angústia e estranheza estaria presente no texto de Hoffmann, e também um uso hermenêutico, nas interpretações sobre a "fixação no complexo de castração" de Natanael, por exemplo. Além disso, em nota de rodapé Freud arrisca uma referência à biografia de Hoffmann: "Hoffmann foi filho de um casamento infeliz (...) a relação do escritor com o pai foi sempre assunto dos mais delicados para aquele." - Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.291, nota 1.39 Andrade, R.A.S, em sua tese de doutorado L'heritage romantique allemand dans la penseé freudienne, Paris VII, 1990; também ressalta o fato de que Freud centra-se apenas na articulação do estranho com o complexo de castração, deixando de lado toda a problemática narcísica em questão, tema que o autor considera fundamental nesta análise de "O homem da areia".

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tratar-se de uma boneca - já que só pode percebê-la como espelho de si, como perfeita

correspondência de seus anseios40.

Acerca do conto, Freud discorda de que o tema da boneca Olímpia seja o

principal elemento fonte de estranheza. Observa que o próprio autor aborda a questão da

boneca com um tom de sátira, ridicularizando a idealização que o jovem faz de sua

amante41. Para Freud, a questão central é mesmo o Homem da Areia, aquele que arranca

os olhos das crianças, imagem do pai castrador.

Voltando ao conto, após um acesso de loucura ao perceber Olímpia como uma

boneca de fato, a quem faltavam os olhos, Natanael parece recuperado e volta para sua

noiva, Clara. Porém, a última passagem do conto mostra que o horror continuava. Do

alto de uma torre, acompanhado de Clara, Natanael observa através de seu binóculo a

aproximação do terrível advogado Coppelius, o que lança o jovem novamente em um

ataque de loucura. Transtornado, tenta atirar a noiva do alto da torre, terminando por

lançar-se por sobre o parapeito, enquanto o Homem da Areia (Coppelius) desaparece na

multidão.

Sobre esta cena final, consideramos importante ressaltar alguns detalhes aos

quais Freud não se refere, mas que podem ser percebidos numa releitura do conto. A

descrição da cena final por Freud não é incorreta, mas é incompleta. Num primeiro

40 "Sentado ao lado de Olímpia, as mãos dela entre as suas, falava de seu amor com entusiasmo e vibração em termos inflamados que ninguém poderia compreender, nem ele mesmo, nem Olímpia. Bem, talvez ela entendesse, pois olhava-o fixamente, suspirando sem cessar: "Ah... ah... ah!' Ao que Natanael respondia: 'Ah, esplêndida mulher, exemplo do amor que nos prometem na outra vida, espírito profundo no qual se reflete todo o meu ser!', e outras coisas semelhantes, enquanto Olímpia apenas suspirava repetidamente: 'Ah... ah!'." Hoffmann, E.T.A., O Homem da Areia, op. cit., p.138.41 No final do artigo sobre o estranho Freud aponta o cômico como um dos recursos capazes de evitar a estranheza diante de um texto. Cf. Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.313. Sobre isso, ver ainda Kupermann, D., O humor e a dimensão estética da clínica psicanalítica. Inédito, Exame de qualificação para o doutorado, Programa de pós-graduação em teoria psicanalítica, UFRJ, março de 2000, onde o autor aponta o humor como um dos fatores que permitem que o estranho não seja apenas fonte uma angústia paralisante.

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momento, do alto da torre, são os olhos de Clara que Natanael mira através de seu

binóculo, como lemos na passagem a seguir:

"Automaticamente, Natanael pôs a mão no bolso; achou o binóculo de Coppola. Dirigiu-o para a planície... Clara estava diante das lentes! Um estremecimento convulsivo percorreu suas veias e seu pulso. Pálido como a morte, fitou-a fixamente... De repente os olhos dela, girando em suas órbitas, expeliram raios de fogo; ele começou a uivar terrivelmente como um animal acuado; começou então a saltar no ar e, entre gargalhadas aterradoras, gritou estridentemente: 'Bonequinha de madeira, gire', e com uma violência formidável pegou Clara para precipitá-la lá de cima, mas ela, com um medo desesperado da morte, agarrou-se com firmeza à balaustrada."42

Podemos notar que há, neste olhar, um excesso que o deixa tomado de horror e

desencadeia toda a cena43. No alto da torre, o jovem evoca o poema que escrevera para a

noiva, um poema sinistro, onde narra o aparecimento do terrível Coppelius, que surge

decidido a impedir seu casamento com Clara. O poema descreve os olhos da noiva que

saltam sangrando e, em brasa, são jogados numa roda de fogo, que gira de modo

terrível. Natanael descreve, neste poema, o terror de ver-se contemplado pela morte, nos

olhos da noiva44.

Este mesmo poema fora evocado por Natanael quando deparou-se com Olímpia

sem os olhos, como uma boneca sem vida. Nesta situação, enlouquecido, ele gritara:

"Roda de fogo! Gire, bonequinha de madeira, gire...", citando um trecho deste poema

assustador que escrevera para Clara.

No alto da torre, na cena final, podemos observar que há uma convergência

sinistra de várias cenas e personagens, diante do que, aniquilado, só resta a Natanael sair

de cena, precipitando-se no vazio. Natanael vê o olhar de Clara através dos binóculos

42 Hoffmann, E. T. A., O Homem da Areia, op. cit., p.145.43 Cf. Mon, M. O Homem da Areia ou o espanto se introduziu em sua vida. Op. cit.44 "Natanael olhou nos olhos da noiva; mas era a morte que o contemplava calmamente nos olhos de Clara." Hoffmann, E. T. A., O Homem da areia, op. cit., p.131.

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de Coppola, aqueles mesmos através dos quais via Olímpia. Há uma superposição de

Clara e Olímpia, como mostra a associação entre o terrível poema dedicado à Clara e as

frases desconexas que ele grita diante de Olímpia. A figura de Coppola, o vendedor de

instrumentos óticos e ladrão de olhos, faz-se presente através do próprio binóculo. A

visão, através deste mesmo instrumento, do temido advogado Coppelius, fecha o círculo

de horror onde o personagem se vê aniquilado, contemplado pela morte.

Diante destas cenas que coincidiram diante das lentes, o sujeito resta como puro

objeto diante do desejo do Outro. O sujeito "atravessa o espelho", passando da

identificação especular, de ver-se nos olhos da amada, para ser visto pela morte,

tornando-se objeto de gozo de um Outro absoluto45.

Freud não comenta, sobre esta cena, o fato de que a loucura do personagem é

desencadeada justamente a partir da visão do olhar da amada e, só num segundo

momento, a aparição de Coppelius faz com que Natanael se precipite do alto da torre. O

que interessa a Freud é apontar a estranheza que se liga diretamente à figura do Homem

da Areia, à idéia de ter os olhos roubados, em sua articulação com a castração.

Segundo Freud, a psicanálise mostra que o medo de ferir ou perder os olhos é

um dos maiores medos das crianças e isto é freqüentemente um substituto do medo da

castração. Então, com relação ao conto, sob este viés da castração, Freud afirma que

Natanael vive a angústia com relação à morte do pai, tendo o Homem da Areia

assumido o papel de substituir o pai temido, castrador. Deste modo, o Homem da Areia

atua como perturbador do amor e o suicídio de Natanael dá-se justamente quando este

recuperaria sua amada Clara.

45 Esta idéia da angústia diante do desejo do Outro será abordada adiante, no capítulo III. Podemos nos remeter aqui à idéia de ser olhado por um olhar que tudo vê, que traz uma ameaça de morte, como veremos a partir do apólogo do louva-deus, no capítulo sobre a angústia. É importante notar também que o olhar é apontado por Lacan como uma das quatro vestimentas imaginárias do objeto a.

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Neste sentido, Freud sugere que na infância de Natanael o pai e Coppelius

representariam dois pólos da figura paterna, evidenciando uma ambivalência. Um que

ameaça cegá-lo, castrá-lo, enquanto o outro o defende, intercedendo por sua visão.

Segundo Freud, o desejo de morte contra o pai mau acaba expressando-se na morte do

pai bom, pelo lado mau, Coppelius. Freud afirma ainda que Olímpia seria a

personificação da atitude feminina de Natanael, havendo uma identidade entre eles. O

amor de Natanael por Olímpia é narcísico e, deste modo, ele renuncia a Clara, seu

objeto de amor externo. Freud percebe aí uma descrição, recorrente na clínica, de um

jovem fixado no pai pelo complexo de castração, incapaz de amar uma mulher. Assim,

associa o estranho efeito do Homem da Areia à angústia ligada ao complexo de

castração.

Não discordamos de Freud acerca da articulação entre o Unheimlich e o retorno

do recalcado, mas acreditamos que podem ser trabalhadas ainda outras articulações,

como por exemplo a questão da compulsão à repetição, como Freud também o faz em

seu texto, e ainda a questão do narcisismo. Sendo um dos focos deste trabalho o

narcisismo, é este o viés que privilegiamos aqui ao pensar o Unheimlich. Porém, é

importante ressaltar que não vemos contradição no fato de que o Unheimlich possa ser

pensado tanto em relação ao recalcado, quanto ao narcisismo e a compulsão à repetição.

Isto só confirma a riqueza de possibilidades que o tema oferece.

Mas a seguir veremos as articulações que Freud privilegia ao abordar o estranho.

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O estranho, o recalcado e a compulsão à repetição

É a partir de sua análise acerca do conto "O Homem da areia" que Freud propõe

uma de suas afirmativas centrais - a articulação do estranho com o recalcado -

anunciando duas considerações que seriam a essência deste seu estudo sobre o estranho:

1) Se todo afeto transforma-se, se recalcado, em angústia, então46:

"entre os exemplos de coisas assustadoras, deve haver uma categoria em que o elemento que amedronta pode mostrar-se ser algo recalcado que retorna. Esta categoria de coisas assustadoras constituiria então o estranho; e deve ser indiferente a questão de saber se o que é estranho era, em si, originalmente assustador ou se trazia algum outro afeto." 47

2) Se é esta a natureza secreta do estranho, vemos porque o uso lingüístico

estendeu das Heimlich para seu oposto, das Unheimlich, "pois este estranho não é nada

novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito estabelecido na mente, e que

somente se alienou desta através do processo de recalque."48 É deste modo que Freud

compreende a definição de Schelling, do "estranho como algo que deveria ter

permanecido oculto mas veio à luz".49

46 A tradução da ESB traz "reprimido" no lugar de recalcado, e "ansiedade" no lugar de angústia. Decidimos substituir os termos aqui para que esta passagem se tornasse compreensível.47 Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.300. Retomaremos esta passagem mais adiante, no capítulo III, para comentar a articulação entre o estranho e o afeto da angústia.48Ibid, p.301. 49 Sobre esta apropriação da frase de Schelling por Freud ver Carvalho, B. O Unheimlich em Freud e Schelling. SP, Percurso Revista de Psicanálise, Departamento de psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, no3, 1989. Com detalhes, este autor mostra que a frase que Freud busca em Schelling, filósofo do romantismo alemão: "O estranho é aquilo que deveria ter permanecido oculto mas veio à luz", é interpretada por Freud como referente ao retorno do recalcado, mas, segundo Carvalho, no pensamento de Schelling esta frase teria um sentido bem diferente: seu projeto romântico visava justamente uma identificação entre sujeito e natureza, sem uma cisão entre eu e o outro. Se, para Freud, a estranheza viria da perda destes limites, em Schelling são justamente estes limites as fontes do mal-estar. Assim, segundo o filósofo romântico, o estranho só é possível num mundo já cindido, não mitológico. O estranho é resultado de uma cisão, característica do homem moderno, foco e condição da própria psicanálise.

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Assim, vemos que Freud articula de modo muito íntimo o estranho e o

recalcado, chegando a afirmar que o prefixo 'un', no termo Unheimlich, é justamente o

sinal do recalque50.

Porém, Freud problematiza esta afirmativa: "Pode ser verdade que o estranho

(unheimlich) seja algo que é secretamente familiar (heimlich - heimisch), que foi

submetido a repressão e depois voltou, e que tudo aquilo que é estranho satisfaz essa

condição". No entanto, reconhece: "Nem tudo o que preenche essa condição - nem tudo

o que evoca desejos reprimidos e modos superados de pensamento, que pertencem à

pré-história do indivíduo e da raça - é por causa disso estranho." 51

Para refletir acerca desta questão, Freud considera fundamental distinguir o

estranho que realmente experimentamos daquele que simplesmente visualizamos ou

lemos, isto é, o estranho da ficção, principalmente da literatura. Freud verifica que

aquilo que é experimentado como estranho é mais simplesmente condicionado à sua

tese central - de que o estranho é algo familiar que foi recalcado - mas compreende

menos exemplos.

Propõe então uma diferenciação em dois grupos, entre o estranho que provém do

"princípio de onipotência dos pensamentos" e o estranho que provém de complexos

infantis recalcados.

Superstições, crença em poderes secretos como a magia ou bruxaria, são os

principais exemplos citados por Freud no que se refere ao princípio de onipotência dos

pensamentos, que estaria relacionado à antiga concepção animista do mundo, um

estádio de irrestrito narcisismo: "...tudo aquilo que agora nos surpreende como

50 Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.305.51 Ibid, p.306.

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'estranho' satisfaz a condição de tocar aqueles resíduos de atividade mental animista

dentro de nós..." 52

Na estranheza relacionada ao princípio de onipotência dos pensamentos há uma

supervalorização narcísica, pelo sujeito, de seus próprios processos mentais, o que pode

ser entendido como um mecanismo de defesa, como um modo de evitar o confronto

com as limitações que a realidade impõe, a impotência, a castração.

Retomando o tema sugerido em “Totem e Tabu”, Freud propõe que cada sujeito

atravessaria uma fase correspondente ao estádio animista dos homens primitivos, que

acreditavam viver num mundo povoado de espíritos, como se fossem preservados

resíduos desta fase, ainda capazes de se manifestar.

Logo, segundo Freud, a condição da estranheza do que refere-se à onipotência

dos pensamentos é que nós, ou o homem primitivo, já acreditamos que estas

possibilidades eram reais. Se hoje já superamos este modo de pensamento animista,

ainda não nos sentimos seguros das novas crenças e as antigas permanecem em nós.

Então, quando acontece algo que parece confirmar estas antigas crenças, isso é sentido

como estranho. Freud ilustra isso com um exemplo de sensação de "pronta realização de

desejos": "Então, afinal de contas, é verdade que se pode matar uma pessoa com o

mero desejo da sua morte!" 53 Freud afirma que a estranheza do duplo, tema que

abordaremos no próximo capítulo, também refere-se a este tipo de funcionamento.

Já o segundo grupo refere-se ao estranho que provém de complexos infantis

recalcados, do complexo de castração. Freud afirma que estes exemplos seriam menos

freqüentes na vida real do que o estranho do primeiro grupo, isto é, aquele que se refere

ao princípio de onipotência dos pensamentos. Afirma que quando o estranho origina-se

52 Ibid, p.300.53 Ibid, p.308.

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de complexos infantis a questão da realidade material não surge, já que seu lugar é

ocupado pela realidade psíquica. Por isso o efeito estranho ligado ao material recalcado

é tão poderoso na ficção quanto na vida real.

Freud considera a distinção entre estes dois grupos - o estranho que provém do

princípio de onipotência dos pensamentos e o estranho que provém do recalcado - muito

importante teoricamente. Porém, reconhece que as duas categorias da experiência de

estranheza nem sempre são nitidamente distinguidas, já que as crenças primitivas têm

uma íntima relação com os complexos infantis, baseando-se neles.

Com isso, podemos observar que nos mesmos momentos em que propõe

categorias mais ou menos definidas, que pudessem dar conta do Unheimlich, Freud nos

deixa vislumbrar sempre um passo além.

Neste mesmo sentido, ao buscar comprovar a articulação entre o estranho e o

recalcado através de alguns exemplos, é acerca da estranheza com relação à morte que

reflete, afirmando:

"Dificilmente existe outra questão, no entanto, em que nossas idéias e sentimentos tenham mudado tão pouco desde os primórdios dos tempos, e na qual formas rejeitadas tenham sido tão completamente preservadas sob escasso disfarce, como a nossa relação com a morte."54

Segundo Freud, o medo da morte é ainda muito intenso em nós e "pronto para

vir à superfície por qualquer provocação". Também aí Freud vê a marca do recalque,

que seria a condição para um sentimento primitivo retornar como estranho.

Freud exemplifica aqui o retorno do recalcado justamente a partir da questão da

morte, porém, insiste em lembrar, em diversos momentos, que não há representação

possível para a própria morte no inconsciente.

54 Ibid, p.301.

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Entendemos que apesar de não abordar este tema explicitamente, parece que já

neste texto Freud percebe a necessidade de pensar para além, ou aquém, do recalque.

Assim, "O Estranho", de 1919, pode ser considerado como uma apresentação de

idéias que viriam a ser desenvolvidas em "Além do princípio do prazer", em 1920, onde

a segunda tópica seria explicitada, a partir da formulação do conceito de pulsão de

morte.

Freud destaca a compulsão à repetição como um dos principais fatores capazes

de transformar algo assustador em estranho. Assim, pensa o estranho ligado ao "retorno

constante do mesmo", como um retorno involuntário da mesma situação que gera um

estranhamento, que se remete ao desamparo. Há um dano narcísico sofrido pelo sujeito

que vê-se confrontado com o fato de que não possui o controle sobre uma determinada

situação, diante de uma "força demoníaca que nos impõe a idéia de algo fatídico,

inescapável"55, evidenciando o descentramento do eu.

Freud exemplifica a estranheza diante do retorno involuntário do mesmo

narrando uma experiência própria:

"Em certa tarde quente de verão, caminhava eu pelas ruas desertas de uma cidade provinciana na Itália, quando me encontrei num quarteirão sobre cujo caráter não poderia ficar em dúvida por muito tempo. Só se viam mulheres pintadas nas janelas das pequenas casas, e apressei-me a deixar a estreita rua na esquina seguinte. Mas, depois de haver vagado algum tempo sem perguntar o meu caminho, encontrei-me subitamente de volta à mesma rua, onde a minha presença começava agora a despertar atenção. Afastei-me apressadamente uma vez mais, apenas para chegar, por meio de outro détour, à mesma rua pela terceira vez. Agora, no entanto, sobreveio-me uma sensação que só posso descrever como estranha, e alegrei-me bastante por encontrar-me de volta à piazza que deixara pouco antes, sem quaisquer outras viagens de descoberta." 56

A partir desta passagem, Freud afirma que o fator de repetição involuntária torna

estranho algo que de outro modo poderia ser indiferente, mostrando que há no 55 Idem.56 Ibid, p.296.

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inconsciente a predominância de uma "compulsão à repetição", de origem pulsional,

"uma compulsão poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio do prazer,

emprestando a determinados aspectos da mente o seu caráter demoníaco (...) O que

quer que nos lembre esta íntima 'compulsão à repetição' é sentido como estranho".57

Mas se "O Estranho", de 1919, já define a compulsão à repetição, que viria a ser

pensada em 1920 em articulação com a pulsão de morte, para além do princípio do

prazer, neste texto de 1919 a idéia do estranho como efeito do retorno do recalcado,

mais especificamente, da ameaça de castração, é uma idéia muito cara a Freud. Assim,

apesar de considerarmos este um texto que estaria de acordo com a segunda tópica,

Freud não parece preocupado em desfazer algumas aparentes contradições teóricas.

Além disso, este texto se insere entre duas concepções distintas da angústia, um

conceito fundamental na abordagem freudiana do Unheimlich. Em 1919 Freud ainda

concebia a angústia como um sinal do retorno do recalcado, ao que ele vinculou o

estranho, porém, a partir de sua formulação posterior, da angústia como algo anterior ao

recalque, talvez fosse necessário repensar também sua articulação com o estranho, e é

isso o que tentaremos obter mais adiante, no capítulo III desta dissertação.

Assim, neste texto de 1919 Freud associa o estranho à compulsão à repetição, a

algo que se impõe como fatídico e inescapável, para além do princípio do prazer; mas

também o associa ao retorno do recalcado, ao desejo que retorna.

A partir daí, pensamos que há neste ponto uma questão que permanece: será que

podemos designar de um mesmo modo - Unheimlich - tanto o estranho que se articula

ao recalcado que retorna quanto o que aponta para mais além?

57 Ibid, p.298.

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Capítulo II: O estranho e o narcisismo

No capítulo anterior abordamos grande parte dos principais pontos teóricos

discutidos por Freud no texto "O Estranho". Porém, reservamos para este segundo

capítulo um tema também muito valorizado por Freud, mas que nos interessa

especialmente para a articulação que proporemos agora entre o estranho e o narcisismo.

Trata-se daquilo que é apontado por Freud como o exemplo paradigmático do

Unheimlich: o fenômeno do duplo. É a partir daí que pretendemos abordar a questão da

alteridade na constituição do sujeito, mostrando que a continuidade que pudemos

observar entre o Heimlich e o Unheimlich pode nos servir para questionar um enfoque

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dualista, que suporia uma simples oposição entre o estranho e o familiar, o próprio e o

estrangeiro, o eu e o outro, o interno e o externo.

O aspecto de íntima familiaridade da estranheza em questão nos remete ao tema

da constituição do sujeito, do narcisismo como condição desta familiaridade que vemos

muitas vezes mostrar-se tão estranha ao eu. Assim, podemos pensar o estranho como

tributário do narcisismo, já que só há estranheza, no sentido do Unheimlich freudiano,

onde há familiaridade.

Esta articulação entre o estranho e o narcisismo nos servirá como base ao longo

de toda esta dissertação e, sendo assim, será retomada ao longo dos próximos capítulos

a partir do duplo que, como veremos, constitui uma forma privilegiada para a

abordagem dos temas que proporemos.

O duplo

O duplo é o exemplo clássico da experiência da inquietante estranheza, e foi

muito desenvolvido pela literatura romântica do século XIX. Em sua apresentação sobre

o estranho Freud aponta o fenômeno do duplo como o tema de estranheza que mais se

destaca, dentre aqueles que poderiam ser atribuídos a causas infantis. Afirma que o

duplo pode apresentar-se sob diversas formas como, por exemplo, uma acentuada

semelhança entre personagens, fenômenos de telepatia ou inúmeros modos de

identificação. "Em outras palavras, há uma duplicação, divisão e intercâmbio do eu."58

Segundo Freud, no narcisismo primário, o duplo pode ser pensado como um

mecanismo ligado ao princípio de onipotência dos pensamentos, como uma tentativa de

negação da própria morte. Porém, num segundo momento - que entendemos como não

sendo cronológico - há uma inversão de seu aspecto e sua presença passa a evidenciar 58 Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.293.

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não só a morte, como também a castração, a impotência e a fragmentação da imagem

narcísica, podendo tornar-se fonte de angústia.

Assim, no fenômeno do duplo há o surgimento de um outro que se apresenta

como "o estranho anunciador da morte"59. A inquietante estranheza suscitada neste

fenômeno é própria do retorno do recalcado e nos assegura de que trata-se de algo

próprio a nós mesmos, da ordem da repetição, que se impõe como inescapável.

Podemos entender este fenômeno como uma tentativa de defesa de um eu

inconformado com as suas limitações, com a sua mortalidade, que coloca no exterior

todo o material estranho que causaria desprazer. Deste modo o eu busca proteção, mas

só pode fazê-lo substituindo a imagem do duplo benevolente, que antes bastava para

protegê-lo, por uma imagem de duplo malevolente para o qual expulsa a parte de

destruição que não pode conter.

Em "O Estranho", Freud reconhece que este tema do duplo fora desenvolvido de

modo bastante completo por Otto Rank, que explorara a ligação do duplo com reflexos

em espelhos, sombras, espíritos, crenças nas almas e o medo da morte. Assim,

consideramos importante uma leitura deste estudo de Rank60, visando as principais

idéias que teriam influenciado as formulações freudianas61.

Rank foi o precursor na exploração do tema do duplo, tendo se utilizado para

isso principalmente da literatura, da mitologia e de estudos antropológicos, dos quais

ressalta o folclore, as superstições e as crenças dos povos primitivos.

59 Ibid, p.294.60 O estudo de Otto Rank sobre o duplo utilizado por Freud foi originalmente publicado em 1914. A tradução francesa deste artigo, realizada em 1932, traz algumas referências adicionais e certas modificações como, por exemplo, a transformação dos cinco capítulos em sete. Neste trabalho, utilizamos esta edição francesa: Rank, O., Don Juan et le double. [1932] Éditions Payot, 1973.61 Nosso objetivo aqui não é um estudo aprofundado desta obra de Rank, mas apenas sublinhar alguns pontos que vieram a ser utilizados por Freud, principalmente com relação ao narcisismo. Para mais detalhes sobre o duplo em Rank ver Freire, C. S. O estranho: uma investigação na teoria freudiana, dissertação de mestrado, PUC, março de 2000.

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Nosso interesse sobre esta obra deve-se principalmente ao fato de que Rank

enfatiza a articulação do duplo com o narcisismo, através do temor do homem diante da

ameaça de morte, baseando seus estudos na teoria freudiana desenvolvida até então,

1914, principalmente no conceito de narcisismo.

Freud, em 1919, utilizou-se dos estudos de Rank mas foi além do que este

afirmara. Segundo Freud, o duplo, além de ser relacionado ao narcisismo, articula-se

com a estranheza pela via da compulsão à repetição, idéia que Rank não utiliza.

Com relação às manifestações do duplo, Rank ressalta algumas questões como a

divisão e a duplicação do eu, o não reconhecimento do próprio eu no duplo, as

dificuldades de relacionamento amoroso, o aspecto de perseguição pelo duplo e o temor

de envelhecer, entre outros. Segundo Rank, estes aspectos estariam ligados a uma

perturbação do eu a partir de uma ameaça ao narcisismo.

Deste modo, enfatiza a associação do duplo com uma perturbação da relação do

sujeito consigo mesmo, perturbação esta que se refere à imagem unitária ansiada pelo

eu. O duplo revela a divisão do eu que, diante deste duplo, percebido como um outro,

exterior, geralmente hostil e perseguidor no qual o sujeito não se reconhece, perde o

domínio que acreditara ter sobre si mesmo.

A partir de inúmeros exemplos extraídos da literatura Rank explora o aspecto

persecutório do duplo e a ameaça de despersonalização e aniquilamento do sujeito

diante deste duplo62.

Rank reflete acerca da questão do assassinato do duplo, que aparece

freqüentemente na literatura em articulação com o suicídio, assinalando o fato de que o

sujeito busca refugiar-se do medo da morte justamente pelo suicídio, o que seria uma

62 Veremos isso com mais detalhes nos próximos capítulos, onde abordaremos a angústia e a agressividade desencadeadas a partir de manifestações do duplo.

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contradição apenas aparente. O medo da morte pode justamente levar ao suicídio, já que

o que é temido não é a morte em si, mas seu caráter de inevitabilidade e surpresa, que

deixa o sujeito sem possibilidade de escolha, desamparado. Rank acredita que o que é

temido é a expectativa de um destino inevitável a ser vivido passivamente.

Para Rank, a idéia de que a morte é tão ameaçadora, a ponto disto por vezes

tornar-se um temor patológico que pode até levar ao suicídio, só poderia ser explicada

como uma questão narcísica, como uma ameaça ao eu. Deste modo, segundo Rank, o

horror do homem à morte não é o simples resultado de um "amor natural" à vida, mas é

fruto do apego libidinal à própria imagem e da ameaça à sua integridade representada

pela morte.

Este autor também ressalta a riqueza de elementos que a literatura oferece para o

estudo do duplo. A partir da observação deste tema na literatura como, por exemplo, em

"O retrato de Dorian Gray", de Oscar Wilde, Rank sublinha o fato de que as relações

amorosas dos personagens em questão mostram-se sempre catastróficas ou impedidas,

revelando uma estreita articulação com uma perturbação do funcionamento psíquico do

eu, logo, conclui que trata-se de um distúrbio narcísico, onde a impossibilidade de amar

é conseqüência do excesso de investimento no eu63.

Rank procura refletir ainda sobre o que levaria à constituição de um duplo.

Dentre as razões para o seu surgimento, indica a questão da não-responsabilização do

sujeito por suas próprias ações, projetando-as sobre um duplo, e também o papel do

sentimento de culpa. Deste modo, o sujeito atribui a um outro, ao duplo, a

responsabilidade por atos que seriam "censuráveis". Como até então, 1914, a noção de

63 Podemos notar que Rank atribui ao narcisismo muito daquilo que Freud atribuiria ao complexo de castração. Cf. Freud, em seu comentário sobre "O Homem da Areia", onde afirma que Natanael estaria incapacitado de amar por uma fixação no pai, pelo complexo de castração. Freud, S., O Estranho, op. cit., p.290.

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supereu não estava estabelecida, Rank aponta a ligação do duplo com uma consciência

moral - o que Freud confirmaria em 1919.

Freud utilizou-se de grande parte deste estudo de Rank sobre o duplo, mas foi

além das conclusões de seu discípulo, segundo o qual a ameaça ao narcisismo, que

desperta mecanismos de defesa, é o que explica a manifestação do duplo e as sensações

que este provoca. Freud relaciona o duplo não apenas a uma regressão ao narcisismo,

mas também inclui a questão da compulsão à repetição e do retorno do recalcado em

sua análise do fenômeno. Assim, concebe o duplo como algo diretamente ligado a uma

perturbação das funções do eu e à repetição. Freud concorda com a idéia de Rank de

que o duplo teria sido uma proteção contra a extinção, contra a morte, uma defesa do eu,

que não é totalmente eficaz, já que não evita a angústia.

Podemos entender que assim como o narcisismo, que é uma condição do eu e

não uma "etapa a ser ultrapassada", o duplo é uma possibilidade que se mantém, mas

que pode receber novos significados em diferentes momentos da história do sujeito.

Segundo Freud:

"A idéia do 'duplo' não desaparece necessariamente ao passar o narcisismo primário, pois pode receber novo significado dos estádios posteriores do desenvolvimento do ego. Forma-se ali, lentamente, uma atividade especial, que consegue resistir ao resto do ego, que tem a função de observar e de criticar o ego e de exercer uma censura dentro da mente, e da qual tomamos conhecimento como nossa 'consciência'." 64

Neste artigo, Freud denomina "consciência" a esta atividade especial, que em

textos posteriores será atribuída ao supereu. Assim, o próprio supereu pode ser pensado

como um duplo do eu, sendo uma diferenciação deste, que assume um caráter sádico,

podendo tornar-se um perseguidor deste eu.

64 Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.294.

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É comum a aparição do duplo como guardião da moral, crítico severo do sujeito,

muitas vezes seu perseguidor. Nisto nos servem de exemplo diversos contos da

literatura sobre o duplo, que mostram a projeção desta instância crítica, que assume vida

própria, como um duplo autônomo, estranho e terrorífico para o sujeito65.

Porém, Freud acredita que esta assunção pelo duplo das funções do supereu não

seria suficiente para explicar seu caráter de estranheza. Assim, afirma que "a qualidade

de estranheza só pode advir do fato de o 'duplo' ser uma criação que data de um

estádio mental muito primitivo, há muito superado (...) em que o 'duplo' tinha um

aspecto mais amistoso"66. Mas, escreve Freud, "quando esta etapa está superada, o

duplo inverte seu aspecto. Depois de haver sido uma garantia de imortalidade,

transforma-se em estranho anunciador da morte".67

Podemos perceber que o duplo tem íntima relação com o narcisismo e evidencia

uma divisão que se apoia na própria estrutura do eu. Embora o duplo surja no

narcisismo primário com um caráter amistoso, o eu, quando se diferencia do mundo

externo, pode projetar seu próprio aspecto atemorizante. Por mais que rejeite uma parte

de si, ainda assim o sujeito não pode ignorá-la quando a experimenta como

estranhamente-familiar.

Ao evidenciar a divisão do sujeito, o duplo faz sinal de uma possibilidade

ameaçadora de fragmentação do eu, logo, de perda de identidade, já que esta pressupõe

uma unidade.

Em seu estudo, Rank enfatiza, de certo modo, o duplo como algo ligado a

condições patológicas, apesar de defini-lo como um mecanismo de defesa. Já Freud, em

65 É o que veremos no capítulo IV, com relação ao conto de Poe "William Wilson".66 Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.295.67 Ibid, p.294.

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seu texto, ao abordar o tema do duplo justamente a partir de uma experiência pessoal,

cotidiana, favorece uma visão do duplo como algo constitutivo, um fenômeno ao qual

todos estamos sujeitos, ao menos momentaneamente.

Freud observa o fenômeno do duplo como o "efeito de defrontar-se com a

própria imagem, espontânea e inesperadamente." Como exemplo disso, narra uma

experiência própria, onde descreve sua estranheza diante da própria imagem refletida no

espelho de uma cabine de trem:

"Estava eu sentado sozinho no meu compartimento no carro-leito, quando um solavanco do trem, mais violento do que o habitual, fez girar a porta do toalete anexo, e um senhor de idade, de roupão e boné de viagem, entrou. Presumi que ao deixar o toalete, que ficava entre os dois compartimentos, houvesse tomado a direção errada e entrado no meu compartimento por engano. Levantando-me com a intenção de fazer-lhe ver o equívoco, compreendi imediatamente, para espanto meu, que o intruso não era senão o meu próprio reflexo no espelho da porta aberta. Recordo-me ainda que antipatizei totalmente com a sua aparência." 68

Ao invés de assustar-se com seu duplo, num primeiro momento, Freud

simplesmente deixou de reconhecê-lo, sentindo antipatia pela imagem que julgou ser

um outro. Freud se pergunta se a antipatia despertada por este duplo seria "um vestígio

da reação arcaica que sente o 'duplo' como algo estranho".

Entendemos que no fenômeno do duplo objetiva-se uma experiência do "eu é um

outro" - frase do poeta Rimbaud que Lacan cita em diversos momentos de sua obra, ao

referir-se ao jogo especular69. Por um momento, numa irrupção pontual70, o eu

apresenta-se de fato como um outro, autônomo, destacado do sujeito. Então, mostra-se

68 Ibid, p..309, nota 1.69 Cf., por exemplo, o texto A agressividade em Psicanálise [1948] in Escritos, op. cit., p.120.

70 É importante notarmos a temporalidade peculiar do Unheimlich - o instante - como expressa o comentário de Lacan: “‘De repente’, ‘subitamente’, vocês sempre encontrarão estes termos no momento da entrada do fenômeno do Unheimlich..." - Lacan, J., Seminário X, não publicado, lição de 19 de dezembro de 1962.

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evidente o fato de que o eu é uma imagem, o que é estranhamente familiar. Neste

instante é ultrapassado o jogo constitutivo da oscilação dentro-fora, e a imagem mostra-

se só fora, embora ainda ligada ao eu: "eu, um outro".

Consideramos importante ressaltar aqui a ambigüidade do duplo, que tem uma

função constitutiva para o sujeito, ao mesmo tempo em que pode adquirir um aspecto

inquietantemente estranho, ameaçador e mortal.

Em "Os complexos familiares", Lacan examina a função do irmão, o pequeno

outro com que nos deparamos, para refletir acerca do ciúme e da inveja constitutivos,

enfatizando a identificação como o aspecto determinante da rivalidade entre irmãos.

Sobre aquilo que denomina "complexo fraterno", afirma que o irmão funciona como um

duplo, que ameaça e desestabiliza a identidade imaginária da criança com relação a sua

imagem no espelho.

Nesse sentido, Lacan destaca a importância dessa "introdução temporária de

uma tendência estrangeira" para a formação do eu71. Introduzindo na organização

narcísica infantil a confrontação com a máxima semelhança e a inevitável diferença, o

irmão força o rompimento da prisão especular daquele que, até então, se veria como

idêntico a si mesmo.

Seguindo esta idéia, Lacan afirma que o ciúme entre irmãos não é apenas

fundado na rivalidade em torno do amor dos pais, mas na identificação do sujeito para

com o pequeno semelhante. O outro é rival, antes de mais nada, em relação à própria

imagem narcísica do sujeito: "cada parceiro confunde a parte do outro com a sua

própria e com ela se identifica" 72. Neste sentido, a imagem do duplo organiza a

71 Lacan, J. Os complexos familiares [1938], RJ, JZE, 1985, p.38.72 Ibid, p.32.

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imagem do próprio corpo: "O eu se constata ao mesmo tempo que o outro no drama do

ciúme."73

Assim, a presença do outro pode constituir uma luta da qual apenas um pode

sobreviver: "ou eu, ou ele". Porém, ao mesmo tempo, o outro é a esperança de que o eu

possa escapar do mergulho insuportável num jogo de espelhos sem fim. Então a

presença do outro também é solicitada como referência, como limite à onipotência

narcísica do eu.

O estranho na constituição do sujeito

O estranho é descrito por Freud como um fenômeno experimentado pelo sujeito,

que revela sobretudo um distúrbio no eu, uma desorganização momentânea. Sabemos

que o eu constitui-se precariamente como uma unidade cujo caráter ilusório é

notadamente pregnante. O eu é uma totalidade imaginária, sendo fragmentado em sua

própria constituição.

Em "O ego e o id" Freud concebe o eu como a instância que responde pela

unidade do indivíduo, composto de identificações a traços diversos. Constituído como

um "precipitado de identificações", o eu revela em sua própria estrutura uma

fragmentação. É formado por identificações que podem ser até mesmo conflitantes entre

si e sua desorganização é uma possibilidade sempre presente.

Podemos dizer que a experiência de estranheza aponta para a impossibilidade da

completude ambicionada pelo eu, revelando sua precariedade. O eu tem sempre uma

possibilidade de desorganização naqueles momentos em que sua posição de "pobre

73 Ibid, p.39.

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escravo submetido a três senhores"74, o mundo externo, o isso e o supereu, não se

sustenta de modo adequado.

Freud reconhece ainda a importância da imagem de unidade corporal, que

permite que se estabeleçam limites entre dentro e fora, sujeito e objeto.

Em "O Estranho", Freud afirma que o eu arcaico, do narcisismo primário, ainda

não delimitado pelo mundo externo, pode projetar aquilo que sente como perigoso ou

desagradável, fazendo disso um duplo inquietante. O caráter de estranheza de que se

reveste a imagem do duplo, num momento posterior, resulta de uma vacilação na

delimitação entre interior e exterior, o que nos remete à fase especular, ao narcisismo,

onde isso não tinha efeito de estranheza. Deste modo, entendemos que o estranhamento

só é possível a partir da constituição do eu, logo, também a partir da constituição de um

objeto externo.

No texto sobre o narcisismo, de 1914, Freud aponta a importância do

investimento através do olhar dos pais para a constituição do eu, que é precedido pelas

fantasias narcísicas reparadoras que estes construíram, ao atribuírem o estatuto de "Sua

majestade, o bebê" àquele ser prematuro, totalmente desamparado e dependente de seus

cuidados para sobreviver. Há uma projeção das fantasias dos pais sobre a criança, que é

então vista como alguém capaz de realizar tudo aquilo que teria sido impossível ou

negado aos pais:

"Se prestarmos atenção à atitude de pais afetuosos para com os filhos, temos de reconhecer que ela é uma revivescência e reprodução de seu próprio narcisismo, que de há muito abandonaram (...) eles se acham sob a compulsão de atribuir todas as perfeições ao filho (...) ela será mais uma vez realmente o centro e o âmago da criação - 'Sua majestade o Bebê ', como outrora nós mesmos nos imaginávamos." 75

74 Cf. Freud, S., O ego e o id [1923], op. cit.75 Freud, S., Sobre o narcisismo: uma introdução [1914], op. cit., p.108.

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Deste texto sobre o narcisismo podemos depreender a função primordial do

Outro na constituição do eu, este Outro que atribui um estatuto de onipotência ao bebê

desamparado, lhe dá um nome, um lugar e uma projeção no futuro. Entendemos que,

mesmo no auto-erotismo, há a dependência de um Outro que possa mapear o corpo da

criança, erogeneizando-o.

Em geral, associa-se o narcisismo ao amor de si mesmo, o que, levado a um

extremo, seria um estado de desconhecimento do outro e dos limites que este impõe.

Mas sabemos que o suposto enclausuramento narcísico, exige na verdade um Outro,

cujo desejo é o que dá consistência a "Sua majestade, o bebê".

Assim, consideramos importante enfatizar que uma reflexão acerca do

narcisismo é impossível sem que se leve em conta a função da alteridade. Neste ponto,

pode nos ajudar a formulação de Lacan acerca do estádio do espelho, que nos mostra

justamente como é fundamental a referência ao Outro, simbólico, responsável por

apontar para o espelho e anunciar para o bebê: "aquela imagem, é você".

Lacan descreve o estádio do espelho como uma identificação, a transformação

produzida no sujeito que assume uma imagem:

“A assunção jubilatória de sua imagem especular, por esse ser ainda mergulhado na impotência motora e na dependência da amamentação que é o filhote do homem nesse estágio de infans parecer-nos-á pois manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica em que o eu se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito”. 76

Assim, Lacan afirma que o eu se situa numa linha de ficção, irredutível, apesar

das "sínteses dialéticas pelas quais tenta resolver sua discordância de sua própria

realidade”77, e que a forma total do corpo, pela qual o sujeito antecipa, numa miragem,

sua maturação, só lhe é dada como gestalt numa exterioridade. Seguindo estas

76 Lacan, J., O estádio do espelho como formador da função do eu [1949] in Escritos, op. cit., p.97.

77 Ibid, p.98.

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formulações vemos que a imagem própria é ao mesmo tempo exterior, o que nos

fornece elementos para entender como esta imagem pode tornar-se fonte de estranheza.

Lacan descreve o estádio do espelho como uma precipitação, da insuficiência

para a antecipação, onde está em jogo uma identidade alienante que marcará todo o

desenvolvimento do sujeito. Lacan nos mostra a função da imago da forma humana na

formação do eu, através da captura, por parte da criança, da sua própria imagem no

espelho, ou da imagem de um adulto que lhe sirva de suporte. Para a criança pequena,

em função da descoordenação motora que decorre de sua prematuração, a imagem do

outro tem valor cativante, na medida em que antecipa uma imagem unitária do corpo,

percebida no espelho ou na realidade do semelhante.

É importante notar que esta concepção do estádio do espelho não deve ser

inserida numa perspectiva desenvolvimentista. A imagem de um corpo fragmentado não

é nenhuma fase inicial, mas é a partir da unificação determinada pelo espelho que é

considerada, por retroação, a possibilidade de uma eventual fragmentação corporal,

logo, apenas a assunção da imagem unificante pode dar conta da possibilidade da sua

perda. Neste mesmo sentido, o simbólico não se coloca "só depois" de um primeiro

momento que seria apenas imaginário, mas está posto para o sujeito desde sempre.

O estranho como contra-face do narcisismo

Ao longo de todo este trabalho notaremos o estreito vínculo do estranho com a

questão da imagem, algo constitutivo da identidade, do próprio eu. Como vimos acima,

a partir das formulações de Lacan sobre o estádio do espelho, esta imagem própria, ou

melhor, esta imagem da qual o sujeito se apropria, lhe é ao mesmo tempo exterior e

pode tornar-se estranha. Assim, entendemos a articulação entre o estranho e o

narcisismo, não como dois opostos, mas como "dois lados da mesma moeda".

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A partir destas colocações, retomamos a idéia de um Heimlich que se desdobra

em Unheimlich, como vimos no primeiro capítulo, pela análise etimológica do termo

alemão. Deste estudo, consideramos importante lembrar que a coincidência entre os

termos - estranho e familiar - não se resume a uma simples contradição, mas mostra

uma série de associações que resulta num sentido bem distinto do inicial.

Neste sentido, para evitar a tendência aos simples dualismos, podemos recorrer à

figura topológica da banda de Moebius78, que nos ajuda a pensar que dois lados podem

estar contidos numa mesma superfície, afastando assim uma ilusão de oposições. A

banda de Moebius pode ser construída a partir de uma semitorção numa faixa

retangular, colando-se suas extremidades. Esta é uma superfície paradoxal onde apenas

pontualmente, num momento, pode-se estabelecer o avesso e o direito, mas em sua

totalidade isso já não é possível, já que as duas faces da banda são postas em

continuidade pela semitorção. Neste sentido, a banda de Moebius pode nos servir como

um recurso para representar a subversão de aparentes dicotomias como, por exemplo,

interior e exterior. Para expressar a continuidade que se estabelece aí entre dentro e fora,

Lacan criou o termo "extimidade", que conjuga o que é mais exterior àquilo que é mais

íntimo ao sujeito.

Também o próprio narcisismo pode ser pensado numa dupla vertente, moebiana, entre auto-

suficiência e auto-aniquilação. O narcisismo é constitutivo e estruturante, mas também pode ser

concebido em sua relação com a morte, no sentido de que a não distribuição do investimento para o

mundo dos objetos conduz à morte - real ou da libido - já que assim a libido não se renova, se esteriliza.

Isso constitui um aparente paradoxo, se considerarmos que o sujeito deve abrir mão de parte de si para

sobreviver.

78 A banda de Moebius é uma figura topológica trabalhada por Lacan em diversos momentos importantes de sua obra. Cf. Granon-Lafont, J. A topologia de Jacques Lacan, RJ, JZE, 1990, ou ainda Darmon, M. Essais sur la topologie lacanienne, Paris, L'Association Freudienne, 1990.

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Seguindo a nossa proposta de articulação entre o narcisismo e o Unheimlich,

podemos notar que a ligação entre o estranho e o campo escópico é explícita em grande

parte dos contos fantásticos, apontados por Freud como fundamentais para o estudo do

tema em questão. A referência aos olhos, ao olhar e vários tipos de instrumentos óticos,

como óculos, lunetas e telescópios, permeiam muitos destes contos, como vimos em "O

Homem da Areia", por exemplo.

Em muitos outros contos literários que despertam estranheza semelhante,

encontramos o recurso a estes elementos que remetem à visão, como o espelho,

principalmente; onde o estranho aparece inevitavelmente associado a uma vacilação da

própria imagem.

Como exemplo podemos citar um conto de Machado de Assis, cujo título é

justamente "O Espelho", que mostra com precisão a importância do Outro na

constituição de uma identidade. Ao mesmo tempo, mostra o ponto extremo de uma

situação na qual pretende-se que uma imagem responda pela totalidade de um sujeito.

"O Espelho"79, de Machado de Assis

Na cena inicial deste conto, cujo subtítulo é "esboço de uma nova teoria da alma

humana", alguns cavalheiros discutem metafísica à luz de velas, quando um deles -

Jacobina - dispõe-se a falar acerca da alma humana, revelando sua constatação pessoal:

"Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas... Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro (...) A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação (...) Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem... Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira" .80

79 Assis, M. de, O Espelho [1882] in Contos / Uma antologia, Vol. I, SP, Companhia das letras, 1998.80 Ibid, p.402.

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Jacobina afirma ter chegado a esta conclusão a partir de um episódio pessoal,

que narra em seguida: "Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado

alferes da guarda nacional"81. Tal fato tornou-se o centro das atenções da modesta

família que, orgulhosa, desde então passou a chamá-lo apenas de "senhor alferes".

É neste contexto de entusiasmo que Jacobina aceita o convite de uma tia, que

morava num sítio "escuso e solitário", para uma estada em sua casa. A tia insistiu para

que ele levasse sua farda de alferes e o recebeu com todas as honras, tomando o hábito

de também chamá-lo "meu alferes": "Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho , como

dantes, e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o 'senhor alferes'."82 Era

assim que todos o chamavam também no sítio, reservando para o "senhor alferes"

sempre o melhor lugar à mesa, sendo o primeiro a ser servido. Foi quando a tia

concedeu a Jacobina a honra de pôr em seu quarto um valioso espelho:

" (...) um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa cuja mobília era modesta e simples... Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição."83

Jacobina conta que todas essas coisas, "carinhos, atenção, obséquios",

provocaram nele uma grande transformação a tal ponto que "o alferes eliminou o

homem (...) Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo,

os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa,

tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem." 84

81 Ibid, p.404.82 Idem.

83 Ibid, p.405.84 Idem.

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Foi assim que Jacobina passou algumas semanas: "era exclusivamente alferes".

Porém, sua situação transformou-se quando seus familiares tiveram que partir de

repente e Jacobina viu-se só. Logo começou a ter sensações estranhas, "inexplicáveis",

"era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico".85

O sono lhe dava alívio. Sonhava que se fardava e todos lhe chamavam

novamente "meu alferes". Isso lhe fazia sentir vivo, porém, quando acordava, voltava a

mergulhar em sua solidão absoluta, a angústia, o silêncio e aquilo que designou uma

"terrível situação moral".

Foi então que Jacobina deu-se conta de que, desde que ficara só, não olhara uma

só vez para o espelho: "Não era abstenção deliberada, não tinha motivo, era um

impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo (...)"86

Ao fim de oito dias de solidão, finalmente decide olhar o espelho: "Olhei e

recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a

figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra."87 Jacobina

perdeu a própria imagem diante do espelho e foi assim tomado por um pavor de

enlouquecer.

Porém, subitamente, por um impulso, lembrou-se de vestir sua farda de alferes e,

imediatamente, recuperou no espelho sua imagem integral: "Era eu mesmo, o alferes,

que achava, enfim, a alma exterior."88 Daí em diante, a cada dia, Jacobina vestia-se de

alferes e sentava-se diante do espelho por algumas horas. Assim pôde atravessar mais

seis dias de solidão.

85 Ibid, p.408.86 Ibid, p.409.87 Idem.88 Ibid, p.410.

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Neste conto, vemos que o sujeito se conduz a reforçar sua identificação a uma

imagem, o alferes, o que lhe confere identidade e reconhecimento, apaziguando sua

angústia - ao menos temporariamente - já que o estranhamento é recoberto pela colagem

a uma imagem unitária. Se por um lado isso lhe permite escapar da angustiante

despersonalização, fixa-o numa identidade alienante, restritiva por ser única.

Este conto nos mostra ainda que a vacilação da imagem própria aparece

freqüentemente associada a uma incerteza sobre a própria sanidade, a sensação de

aniquilamento do eu, o desfalecimento do sujeito, a ameaça de despersonalização ou de

"perda da certeza de si"89.

A partir do que discutimos até aqui, podemos observar que no estranhamento há

um efeito de fascinação, de captura pela imagem. Esta fascinação, que terminou por

destruir Narciso, é um primeiro momento no encontro com o semelhante, e o sujeito

sucumbe a ela se não for capaz de extrair daí a diferença que, para a constituição do eu,

é formadora.

Com relação ao mito de Narciso podemos observar que, capturado por uma

imagem, ele não é capaz de reconhecer a semelhança, marcando a diferença, tampouco

há um Outro que possa lhe apontar isso.

O lugar central da imagem no narcisismo, que talvez tenha permanecido

subestimado em proveito de um aspecto mais egoísta e autônomo, mostra-se claramente

na versão mais conhecida do mito de Narciso, a de Ovídio, como vemos na passagem a

seguir:

"Logo que procura saciar a sede, uma outra sede surge dentro dele [Narciso]. Enquanto bebe, arrebatado pela imagem de sua beleza que vê, apaixona-se por um reflexo sem substância, toma por corpo o que não passa de uma sombra

89 Sobre a questão da "certeza de si", cf. Ferenczi, S., Fé, incredulidade e convicção sob o ângulo da psicologia médica [1913] in Obras Completas, Vol.II, SP, Martins Fontes, 1993 e Pinheiro, M. T. et al A certeza de si e o ato de perdoar. Cadernos de psicanálise, SPCRJ.

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(...) Deseja a si mesmo, em sua ignorância (...) Não sabe o que vê, mas o que vê o inflama, e o mesmo erro que ilude seus olhos lhe excita o desejo (...) Nem os cuidados com a alimentação nem com o repouso, todavia, podem afastá-lo dali; estendido na espessa relva, contempla, insaciável, a imagem mentirosa, e perde-se devido aos próprios olhos." 90

Segundo Lambotte, quando lemos que Narciso amava uma imagem ignorando

sua natureza e a quem pertencia, podemos perceber que o reconhecimento dessa

imagem resultará de uma elaboração que envolve a necessidade de um juízo externo.

Sobre isso, a autora comenta:

"Fascinado por sua própria imagem, Narciso ilustra magistralmente o momento de captação do sujeito pelo reflexo especular que Lacan descreve em "O estádio do espelho... mas, diferentemente do que se passa quando dessa fase - em que o infans sofre de certo modo uma dupla identificação: por um lado com a imagem virtual e, sob ela, por outro lado, com a da espécie - o personagem de Narciso, na ignorância de toda referência externa, mergulha numa visão amorosa cujo colorido passional expressa uma total confusão entre o eu e seu modelo." 91

Assim, vemos que o narcisismo é indissociável da constituição da imagem de si

mesmo, e que isso só é possível a partir do Outro.

O fenômeno do júbilo, descrito por Lacan como a reação da criança que se

depara com a própria imagem unitária diante do espelho, é decorrente do recobrimento

de uma falta, já que o espelho não reflete o que falta - disso não há imagem. O

imaginário é um registro sem faltas, correspondente à onipotência do eu.

Então, como podemos observar, a inquietante estranheza diz respeito a uma

vacilação desta imagem unitária, o que pode ser ilustrado pelo fenômeno do duplo. A

seguir nos dedicaremos a pensar sobre o que se passa quando este duplo não mais

comparece e o que resta é um vazio, angustiante pela falta de forma.

90 Ovídio, As Metamorfoses, Coleção universidade de bolso, p.59. Grifo nosso.

91 Verbete "Narcisismo" in Kaufmann, P. (org.), Dicionário enciclopédico de psicanálise - O legado de Freud e Lacan, RJ, JZE, 1996, p.351.

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Capítulo III: A angustiante estranheza

Durante esta pesquisa acerca do Unheimlich na literatura sobre o tema, o afeto

da angústia era sempre apontado como tendo uma íntima relação com a inquietante

estranheza. Relação tão íntima que, muitas vezes, Unheimlich e angústia pareciam se

confundir, chegando a ser concebidos como indissociáveis.

É fato que a angústia é o afeto em questão no instante da inquietante estranheza,

porém, tendo em vista nosso objetivo de verificar a possibilidade de um encontro com a

estranheza que não seja apenas fonte de angústia, faz-se necessário delimitar estes dois

temas, esclarecendo seus pontos de articulação e ruptura.

Neste capítulo, privilegiaremos a abordagem lacaniana da angústia, partindo do

fato de que Lacan ressalta a importância fundamental do Unheimlich para o tema da

angústia, o afeto por excelência, ponto inevitável na clínica psicanalítica.

"O Unheimlich é a dobradiça indispensável para a questão da angústia"

Em seu seminário sobre a angústia92 Lacan anuncia, logo de início, que buscará explicá-la pelo

Unheimlich, assim como abordara o inconsciente pelos chistes. Sobre a importância do Unheimlich,

afirma: "É um artigo que jamais ouvi comentar e do qual ninguém parece mesmo perceber que é a

dobradiça absolutamente indispensável para abordar a questão da angústia." 93

92 Lacan, J., Seminário X [1962-1963]. Não publicado.

93 Ibid, lição de 28 de novembro de 62.

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A partir desta afirmativa de Lacan, buscamos abordar certos pontos com relação ao inesgotável tema

da angústia, principalmente com relação ao Seminário X, visando sempre aqueles que possam trazer

mais elementos para uma reflexão acerca do Unheimlich. O Seminário X, totalmente consagrado ao

afeto da angústia, toma o Unheimlich por referência para um estudo que tem por foco direto a clínica,

e por isso nos parece tão relevante.

Freud, em seu texto "O Estranho", já incluíra a inquietante estranheza no tema da angústia, como um

tipo particular do horror, que remonta àquilo que é há muito conhecido, ao mais familiar, como

observamos no primeiro capítulo desta dissertação.

Lacan sugere que haveria em "O Estranho" uma "teoria freudiana da angústia", sob esta modalidade particular - a do estranho -indicando que aquilo que entendemos como das Unheimliche deve ser incluído na órbita da angústia. Talvez a partir de sua singularidade, pudéssemos compreender a angústia em sua forma geral.

Como indicamos anteriormente, a dúvida e a vacilação não abarcam a totalidade

da experiência da inquietante estranheza, sendo indispensável a vivência de angústia

para que o fenômeno do Unheimlich possa ser definido como tal.

Em "O Estranho", podemos encontrar uma passagem em que Freud afirma haver

uma estreita articulação entre o estranho e a angústia:

" (...) todo afeto pertencente a um impulso emocional, qualquer que seja a sua espécie, transforma-se, se recalcado, em angústia94, então, entre os exemplos de coisas assustadoras, deve haver uma categoria em que o elemento que amedronta pode mostrar-se ser algo recalcado que retorna. Essa categoria de coisas assustadoras constituiria então o estranho; e deve ser indiferente a questão de saber se o que é estranho era, em si, originalmente assustador ou se trazia algum outro afeto."95

Acreditamos que este texto, "O Estranho", contém mais que uma abordagem das questões estéticas e do efeito sobrenatural, e pode nos fornecer muitos elementos para uma reflexão sobre a angústia e, mais ainda, sobre próprio funcionamento do inconsciente.

Segundo Lacan, o inconsciente se manifesta enquanto descontinuidade,

evidenciando sua fenda, sua ruptura. Ao pensar a dimensão do real, nos mostra que

“todo sentido carrega em si um não-senso”, a impossibilidade do saber pleno. Assim, o

simbólico seria portador de uma falta, já que não há significante último para nomear o

real, que é aquilo que subsiste a toda simbolização, o que sempre resta. O inconsciente é

94 Ver nota 46, sobre a tradução da ESB.95 Freud, S., O Estranho [1919], p.300. Comentamos esta mesma passagem no capítulo I desta dissertação.

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marcado por este real, exterior e íntimo, a quem estamos “mais ligados que a nós

mesmos”, ainda que nada queiramos saber disso.

Segundo Souza, “A experiência do estranho parece indicar um momento de ruptura no tecido do

mundo, essa teia de véus, imagens, sentidos e fantasmas, que constituem o pouco de realidade que

nos é dado provar"96. Mesmo sendo esta uma experiência de perda de forma e imagem, palavra e

sentido, o sujeito se vê constrangido, a posteriori, a organizá-la sob forma de palavras e imagens, e

sabemos o quanto isso é fundamental para se viver.

O que aparece como estranho, revelando a condição do sujeito afetado pelo inconsciente, ocorre numa irrupção pontual, não duradoura. Trata-se de uma experiência que, em um instante, arrebata o sujeito e o faz vacilar. Porém, segue-se a este momento uma urgência de nomear, simbolicamente, ou mesmo de tornar a fechar, imaginariamente, algum sentido em meio à inquietante estranheza.

A angústia, entre Freud e Lacan: alguns comentários

O enigma sobre a angústia está presente desde os primeiros textos de Freud. O foco de sua atenção, inicialmente, é sobre a origem da angústia, passando por uma investigação acerca das circunstâncias em que ela emerge, para então se perguntar acerca de sua função, o que será nosso foco privilegiado.

A "Conferência 25"97 é destacada por Freud como a sua mais completa abordagem da angústia até meados da década de 20. Em "O Estranho" Freud trabalha a angústia como concebida nesta conferência, apesar de já contar com algumas das novidades que viriam a ser desenvolvidas em 1920, como a compulsão à repetição, por exemplo, como vimos no primeiro capítulo desta dissertação. Na "Conferência 25" Freud refere-se a um fenômeno que nos interessa especialmente: o terror98 (Schreck), diferenciado da angústia (Angst) e do medo (Furcht). Freud afirma então que a angústia é justamente um meio através do qual o homem pode proteger-se do terror.

Apesar de não deter-se numa diferenciação precisa entre estes termos, Freud afirma que o terror "tem sentido especial", enfatizando o efeito produzido por um perigo com que o sujeito se defronta, sem nenhuma preparação. Haveria então uma "expectativa ansiosa", o antecedente da angústia sinal, que seria descrita em 1926, cuja falta introduz o terror.

Cosentino99 observa que é justamente no fenômeno do terror que o familiar, de repente, se torna Unheimlich. Neste instante de estranheza, ele considera necessária a pergunta acerca da função da angústia, tema que veremos adiante.

A questão do terror, abordada na Conferência 25, mantém sua importância em 1920, no texto "Além do princípio do prazer"100, tendo por condição a falta de uma preparação, que mais tarde será denominada sinal de angústia. Neste texto de 1920, Freud afirma que no trauma, que podemos fazer equivaler a este instante de terror, é quebrada a proteção contra os estímulos externos e, assim, o aparato psíquico é invadido por quantidades excessivas. Frente ao terror, este momento de surpresa, o sujeito nunca está preparado.

96 Souza, N.S. O estrangeiro: nossa condição in Koltai, C. (org) O estrangeiro. SP, Ed. Escuta, 1998, p.157.97 Freud, S., Conferência 25 - Conferências introdutórias sobre psicanálise: A ansiedade [1916], op. cit. 98 A Edição Standard Brasileira optou por traduzir Schreck como susto e Angst como ansiedade. Apesar de não pretendermos aqui uma discussão detalhada acerca da controversa questão da tradução do alemão dos termos utilizados por Freud, entendemos que os termos terror e angústia, conforme a tradução da Amorrortu, parecem mais fiéis ao texto freudiano.

99 Cosentino, J. C., Angustia, fobia, despertar. Buenos Aires, Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1998.100 Freud, S., Além do princípio do prazer [1920], op. cit.

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Freud concedeu um lugar cada vez maior à angústia em sua elaboração teórica. Em 1926101, reviu sua teoria da angústia, deixando de conceber este afeto como quantidade de energia desprendida da representação pelo recalque, para considerar a angústia como algo mais originário que o recalque.

Freud insiste na estreita relação entre perigo externo e perigo pulsional e diferencia angústia automática -traumática - e angústia sinal. A angústia automática é involuntária, determinada pela própria experiência de desamparo do eu frente ao acúmulo da excitação, que pode ser interna ou externa, enquanto a angústia sinal seria uma resposta do eu frente à ameaça de um novo trauma, perigos que envolvem separação ou perda de objetos amados e ativam a expectativa de desamparo.

Ainda neste texto de 1926, "Inibições, sintomas e angústia", Freud afirma que "toda angústia é diante de algo" ("Angst vor etwas"), afirmação que, como veremos adiante, Lacan retoma no Seminário X, ao insistir que "a angústia não é sem objeto". Freud relaciona este "algo" a um perigo, sempre exterior, mesmo que este seja um perigo libidinal, sentido como externo.

Na situação traumática de desamparo há uma indeterminação quanto ao objeto. O terror, antecipado em 1916 e definido em 1920, é uma perturbação econômica que indica a presença de um objeto cujo estatuto Freud não chega a articular. O vínculo com a expectativa indica que a angústia pode encontrar um objeto e, quando o encontra, o uso lingüístico lhe reserva outro nome: medo.

Podemos ver que na teoria freudiana permanece uma inquietação em determinar

o objeto causa da angústia. Freud aponta a relação da angústia com a expectativa, ela é

"angústia diante de algo", mas tem por característica a indeterminação quanto a seu

objeto, o que é diferente do medo. Porém, Freud insiste em determinar qual é o objeto

que causa a angústia, mesmo se este é desconhecido pelo eu. Este objeto seria, para toda

angústia, um perigo, no caso da angústia neurótica, um perigo pulsional.

Resta explicar, então, qual o "perigo fundamental e originário". Para Freud,

trata-se da angústia de castração, que deve ser relacionada com situações de perigo

anteriormente vividas, quando a criança teve que separar-se do objeto amado e, por sua

vez, estas situações de perigo devem ser relacionadas com a situação traumática

originária, o trauma do nascimento.

Assim, no desamparo do recém nascido, Freud vê uma reação de angústia

automática, sendo que, no nascimento, esta resposta teria sido fisiologicamente

apropriada, como uma descarga que teria servido para ativar os pulmões, por

exemplo102. Já na angústia neurótica, onde o perigo é a reivindicação pulsional, estas

manifestações já não seriam apropriadas e só se explicariam como repetição atenuada

do trauma, como sinal.

101 Freud, S., Inibições, sintomas e ansiedade [1926], op. cit.102 Freud, S., Inibições, sintomas e ansiedade [1926], op. cit.

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Porém, Freud mantém reservas quanto às idéias de Otto Rank sobre "O

traumatismo do nascimento". Por um lado, em sua lógica, Freud não pode conceber a

angústia sem causa objetiva determinante, por isso retoma sempre a idéia de uma

satisfação originária, cuja perda seria causa primeira da angústia. Por outro lado, seu

rigor o faz observar que, na vida intra-uterina, a mãe não era um objeto para o bebê.

Sendo assim, é inevitável perguntar: como a angústia poderia provir da separação, da

perda, de algo que nunca foi?

Recobrir a pura falta por um significante, segundo Lacan, é constituir um mito.

Assim, Lacan nos mostra que o objeto perdido, descrito por Freud, de fato nunca foi

tido. Porém, podemos perceber que Freud parece não se contentar de todo com os mitos

que ele mesmo constrói.

Freud não esclarece a indeterminação do afeto, afirmando que ele não é

atribuível propriamente nem ao fisiológico, nem ao psíquico. Lacan, assim como Freud,

não define a angústia, limitando-se a fazer referência a algo que, por experiência, é de se

supor, todos padecemos. Lacan critica um "método do catálogo", que propõe listas

arbitrárias de afetos, rejeitando qualquer classificação e definição a priori, como nos

mostra a passagem, onde afirma: "não segui o caminho dogmático de fazer preceder de

uma teoria geral dos afetos o que tenho a lhes dizer acerca da angústia. Por quê?

Porque aqui não somos psicólogos, somos psicanalistas".103

Neste Seminário X Lacan observa que Freud insiste em diferenciar medo e angústia104. Se diz que a angústia é "Angst vor etwas", "angústia diante de algo"105, não é para reduzi-la a outra forma de medo, já que enfatiza suas procedências distintas. A situação traumática de desamparo irrompe num instante e, neste breve momento, a angústia é diante de algo, "não é sem objeto". Este "algo", neste efêmero lapso de tempo, muda de estatuto. Não é ausência, é presença. Para Lacan, trata-se da presentificação do objeto a, aquele resto, resíduo, cujo estatuto é distinto daquele do objeto derivado da imagem especular: "É dele (o objeto a) que se trata em todo lugar onde Freud fala do objeto quando se trata da angústia".106

Assim, Lacan descreve a angústia como o que aparece quando, no enquadramento, surge aquilo que já estava muito mais perto, “em casa”, Heim, mas que nunca passou pelas peneiras do reconhecimento. "Este surgimento do heimlich no

103 Lacan, J., Seminário X, lição de 14 de novembro de 1962. 104 Ibid, lição de 13 de março de 1963.105 Freud, S., Inibições, sintomas e ansiedade [1926], op. cit.

106 Lacan, J., Seminário X, lição de 28 de novembro de 1962.

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quadro é que é o fenômeno da angústia, e é por isso que é falso dizer que a angústia é sem objeto. A angústia tem um outro tipo de objeto."107

Os dois principais aforismos de Lacan com relação à angústia: "a angústia não é sem objeto" e "a angústia emerge quando falta a falta", ambos se relacionam de modo indissociável ao "obscuro objeto do desejo" e nos fazem lembrar a frase de Schelling na qual Freud acredita encontrar a expressão daquilo que denomina Unheimlich: "o que deveria ter permanecido oculto mas veio à luz", isto é, aquilo que se tornou visível, despertando um sentimento de ameaça à integridade do eu, confrontado com a sua presença.

Se Lacan afirma que "a angústia não é sem objeto", isso não significa que a angústia tenha um objeto qualquer, no sentido de um objeto empírico visado por meio da rede significante. O objeto da angústia, afirma Lacan, não é um objeto qualquer - ele é o objeto a. Neste aforismo - "A angústia não é sem objeto" - as duas partículas não, sem, estruturam o aforismo de modo a dar conta da condição obscura, imprecisa, do objeto em questão.

Lacan aponta que a angústia faz sinal da presença de algo não simbolizável na

cena simbólica-imaginária. Assim, afirma que "a angústia é a única tradução subjetiva

do objeto a"108, que é, por definição, aquilo que, estando fora da cadeia significante, tem

por função orientá-la, conferindo ao desejo a característica de ser “sempre de outra

coisa”. O fato desse objeto situar-se numa anterioridade lógica em relação ao desejo,

isto é, como causa, significa que o que é buscado pelo sujeito é irredutível ao que pode

ser obtido.

Com relação ao segundo aforismo - "a angústia emerge quando falta a falta" -

Lacan afirma que, quando o lugar da falta não é preservado num sujeito, há um

destacamento da imagem especular, que dá lugar à imagem de um duplo autônomo,

fonte de angústia e estranhamento. Logo, acredita que a angústia não seria sinal de uma

falta, mas a manifestação, para o sujeito, de uma falha neste apoio indispensável para o

sujeito, que é a falta: "na obturação total de um certo vazio a preservar que nada tem a

ver com o conteúdo nem positivo nem negativo da demanda, é aí que surge a

perturbação onde se manifesta a angústia.”109

Como observamos no capítulo anterior, a angústia pode ser rechaçada em função da captura por uma imagem especular, o que Lacan denomina "captura narcísica". No Seminário X, Lacan afirma que a imagem é o que mais oculta a castração, por uma qualidade elementar: o espaço da visão é homogêneo, não havendo possibilidade de se esboçar um corte preciso.

Lacan considera que a experiência do duplo concerne àquilo que escapa à

imagem especular, um momento no qual esta imagem começa a se transformar,

107 Ibid, lição de 19 de dezembro de 1962.

108 Ibid, lição de 16 de janeiro de 1963.109 Ibid, lição de 12 de dezembro de 1962.

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deixando surgir a dimensão do olhar, uma assustadora presença de algo que nos olha.

Isso porque “no estado dito de vigília, há elisão do olhar..."110

Assim, podemos entender que o momento de estranheza articula-se com algo

que surge no lugar de a, “de alguma coisa que de modo algum se deixaria apreender,

como deixando em face dele o sujeito transparente a seu conhecimento. Diante do novo

o sujeito literalmente vacila e tudo é requestionado desta relação pelo que se supõe

primordial do sujeito a todo efeito de conhecimento.”111

Baas afirma que "O sujeito do desejo, que só é sujeito do desejo por estar

alienado no significante, por ser barrado (...) por só ser sujeito pelos significantes, só

pode, neste encontro com o nada de significante, eclipsar-se." 112

Segundo Baas, na angústia o sujeito toca naquilo que há de mais originário, de

mais íntimo em si e do que depende seu desejo, " (...) e isso, ao mesmo tempo, é fora-

significante, isto é, totalmente estrangeiro, totalmente exterior à ordem do significante

que é a morada habitual de seu desejo. E é por isso que, neste encontro, o sujeito

desfalece."113

Em apólogo citado nos Seminários IX e X, Lacan refere-se a uma "louva-deusa", como exemplar de um desejo voraz, em que o Outro seria um radicalmente Outro. Entre estes insetos, a fêmea devora o macho durante o acasalamento, após paralisá-lo com seus ocelos. O que está em questão aqui é um olhar que tudo vê, mas diante do qual o sujeito não é capaz de se ver refletido. Há um ponto de opacidade nos olhos da fêmea, diante do qual o macho se angustia, paralisado frente ao enigma do desejo dela.

O perigo que representa o desejo do Outro refere-se à ameaça angustiante proveniente do desejo de um Outro devorador, ameaça que não é outra senão a de aniquilamento do sujeito. Logo, se a angústia é sinal, é sinal do desejo do Outro. Mas por que o desejo do Outro angustia? Segundo Lacan, "o que o Outro busca é reencontrar-se em mim, para o que solicita a minha perda". O que angustia diante do Outro é a ameaça de que este pretende apoderar-se do sujeito, incorporando-o, devorando-o, enquanto o postula como aquilo que poderia vir a completá-lo.

Segundo Lacan, "a imagem especular torna-se a imagem do duplo com aquilo que ela traz de estranheza radical,(...) fazendo-nos aparecer como objeto ao revelar-nos a não autonomia do sujeito"114. Lacan descreve o momento da angústia traumática como o instante do Unheimlich, onde "meu desejo entra no Outro sob forma do objeto que sou, e me exila de minha própria subjetividade"115. Logo, no momento da inquietante estranheza o sujeito se encontra à mercê do desejo do Outro116.

110 Idem.111 Idem.112 Baas, B., A angústia e a verdade in Latusa, Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, RJ, No 4/5, 2000, p.273.113 Ibid., p.277.114 Lacan, J., Seminário X, lição de 5 de dezembro de 1962.115 Idem.

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Em "O Estranho", como vimos no primeiro capítulo desta dissertação, Freud comenta a cena em que Natanael, personagem do conto "O Homem da Areia", de Hoffmann, vê Coppelius do alto da torre. O simples sinal de que este Outro se aproxima leva-o a uma posição que Lacan chama "extraviada". Não lhe resta outra saída além de atirar-se da torre, no vazio.

Sobre isso, Cosentino comenta que "neste breve espaço de tempo o desejo do Outro funciona como um chamado. Invocação muda, já que não se formula um chamado audível"117. Afirma ainda que o que inquieta e angustia é o enigma do desejo do Outro, este "significante opaco"118.

Deste modo, vemos que a angústia manifesta-se no efêmero lapso que indica a maior proximidade do desejo do Outro, um atravessamento do fantasma, que é a última barreira que protege o sujeito desse desejo.

Segundo Rabinovich, Lacan afirma que o duplo pode ser uma forma particular

da aparição do objeto a na cena fantasmática. Este momento de aparição de a, que é

remetido ao Unheimlich, é justamente aquele em que o fantasma não tem mais a

dimensão de jogo, o lúdico, que é a possibilidade do sujeito continuar na cena (heim):

"O problema surge quando a encenação começa a funcionar sozinha, funcionamento

que seria já um modo de definir, de maneira bastante exata, o sinistro, o

inquietante."119

Entre o Unheimlich e a angústia

Neste ponto nos vemos diante da dificuldade de pensar uma articulação entre o

estranho e a angústia, porém, sem confundir estes dois temas que, apesar de muito

próximos, não nos parecem idênticos.

Trata-se de uma tentativa bastante delicada, já que na maior parte da literatura

sobre o tema do Unheimlich e, principalmente, nos textos de Freud e Lacan120 - que são

nossas principais referências aqui - o estranho e a angústia são apresentados de modo

tão articulado, que chegam a se confundir.

116 Podemos ver que neste momento, como em alguns outros, torna-se quase impossível, seguindo o texto de Lacan, uma distinção entre Unheimlich e angústia.117 Cosentino, J.C. Angustia, fobia, despertar. Op. cit., p.106.118 Ibid, p.107.119 Rabinovich, D., La angustia y el deseo del Otro. Buenos Aires, Manantial, 1993, p.94.120 Principalmente em "O Estranho", de Freud, e no "Seminário X", de Lacan.

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Então, recorremos à contribuição de Vieira121, que busca pensar justamente este

ponto de torção entre o Unheimlich e a angústia, apreender o modo como estes se

articulam, sem recorrer a uma delimitação precisa entre duas essências distintas, mas

pensando a natureza dos pontos de ruptura entre estes fenômenos.

Vimos anteriormente que o método utilizado por Lacan para abordar a angústia

ignora qualquer definição a priori do afeto. Isto se encontra de acordo com o fato de

que não há distinções per se no real, onde não há rupturas, sendo função do simbólico

"introduzir o corte em seu tecido sem fissuras". Por isso, afirma Vieira, é preciso afastar

a suposição de que o estranho e a angústia correspondam a entidades, de essências

distintas. Não existem "coisas" no real que, por isso, presentifica-se justamente quando

o mundo tende a desfalecer.

Segundo Vieira, é justamente a partir da premissa de que o estranhamento é a

angústia que Freud decidirá por sua articulação com o recalcado, como vemos em uma

de suas teses centrais - a estranheza é solidária da angústia ligada à castração.

Recalcada, a ameaça de castração adquire este caráter de estranheza, algo ao mesmo

tempo interno e estranho, que Lacan chamou "extimidade".

Porém, Vieira sugere que haveria uma distinção fundamental entre os dois

afetos: o Unheimlich estaria mais intrinsecamente vinculado ao recalque que a angústia.

Afirma que, ao percorrer o eixo que vai do Unheimlich, referido à castração e à imagem

do eu, até a angústia, situada aquém do recalque e articulada a a, Lacan introduz este

objeto impossível, o objeto a, e é neste ponto que a disjunção entre os afetos se

materializa.

121 Vieira, M. A., A inquietante estranheza: do fenômeno à estrutura in Latusa, Escola Brasileira de Psicanálise, RJ, no 4/5, 2000.

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Nesta tentativa de articular e distinguir a angústia e a inquietante estranheza,

podemos nos referir ao fenômeno do duplo, que observamos no capítulo anterior. Trata-

se de um estranhamento da própria imagem, que é percebida como um outro, como algo

externo. Mencionamos a experiência de Freud na cabine de trem, narrada por ele em "O

Estranho"122 onde, diante de um espelho, ele não reconhece a própria imagem, tomando-

a por um outro, por quem sente aversão. Podemos entender que se a imagem que

sustenta o eu torna-se visível como tal, vê-se também que o eu é só uma imagem, daí a

estranheza. Na experiência do duplo, podemos considerar que a estranheza emerge entre

o momento em que a imagem especular aparece como um outro, geralmente hostil, e o

reconhecimento de que a imagem não é senão seu próprio duplo.

Vieira considera fundamental, para uma distinção entre a angústia e outros

afetos, a distinção entre a e i(a). A angústia se situa aquém da imagem do eu, que se

estrutura especularmente a partir da imagem do outro. Enquanto o Unheimlich se refere

à Outra cena, a angústia se articula ao real, para além desta. "Esta idéia permite afastar

uma leitura apressada que identificaria, na leitura freudiana segundo a qual o

Unheimlich é angústia transformada, a concepção de um ser da angústia, primordial,

inefável, que se transformaria em estranho pela ação do recalque."123 Assim, Vieira

propõe que se ultrapasse uma distinção essencialista, fenomênica, entre Unheimlich e

angústia, para uma distinção estrutural entre a e i(a).

Então, enquanto o estranho articula-se a uma vacilação da imagem totalizante,

remetendo ao recalcado, à Outra cena, como ilustra o fenômeno do duplo, na angústia o

duplo não mais comparece, já que trata-se de algo que está para além da especularidade.

122 Freud, S., O Estranho, op. cit., p.309.

123 Vieira, M. A. A inquietante estranheza: do fenômeno à estrutura. Op. cit., p.131.

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Para compreender este ponto podemos lembrar o apólogo do "louva-deus", onde o que

angustia é o que não é possível de se ver refletido nos olhos da fêmea. Neste momento,

o "Che vuoi?", a pergunta acerca do desejo do Outro, apresenta-se como puro enigma,

diante do que o sujeito, paralisado, supõe que o gozo deste Outro é o seu aniquilamento.

Assim, o Unheimlich implica numa vacilação da própria imagem, engendrando a

sensação de despersonalização que lhe é característica. Esta vacilação consiste numa

vacilação do duplo, que pode ser pensado como "algo que deveria ter permanecido

oculto mas veio à luz", já que é a partir deste duplo que a imagem do eu se constitui. Já

na angústia o duplo não mais comparece, o que há é um desvanecimento da imagem,

como veremos a seguir, a partir do conto "O Horla", de Maupassant.

A angústia em "O Horla"124

Maupassant, assim como Hoffmann, é considerado um mestre no gênero do

fantástico do final do século XIX. Como vimos no primeiro capítulo com relação a

Hoffmann, os contos de Maupassant também podem ser incluídos neste gênero que se

caracteriza pela hesitação - contos avessos à fé absoluta, e à incredulidade absoluta125:

"Neste quase, lacuna e imprecisão, Maupassant constrói o seu fantástico particular: não criaturas impossíveis (duendes, gênios) em cenários exóticos, mas acontecimentos estranhos que se equilibram nessa tensão que se origina de um espírito incerto: o homem é um ser estranho para si mesmo..." 126

Maupassant escreveu duas versões de "O Horla", onde narra a história de uma

dissolução, de um sujeito que perde a própria imagem diante do espelho, sendo tomado

por uma angústia terrível. Na primeira versão, datada de 1886, examina o ocorrido

124 Maupassant, G. de, O Horla [1887 - segunda versão] in Contos Fantásticos - O Horla & outras histórias. Porto Alegre, Ed. L&PM, 1997. 125 Cf. Todorov, T., Introdução à literatura fantástica, op. cit. 126 Brum, J. T., Prefácio in Maupassant, G. de, Contos fantásticos - O Horla & outras histórias, op. cit., p.9.

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como a um caso clínico, num relato a posteriori, linear. Já na segunda, de 1887, o

acento é sobre a existência de um duplo que dissolve pouco a pouco o homem, um

relato na primeira pessoa, rico em detalhes, como o "diário íntimo" de um processo

angustiante, que nos pareceu mais interessante para a abordagem do fenômeno que

visamos aqui.

Nesta segunda versão de "O Horla" o narrador escreve o diário de sua angústia,

oscilando entre o simples registro "não houve nada, mas tenho medo", e a descrição

detalhada de percepções estranhas e inquietantes. Trata-se de um sujeito tomado por

esta estranheza, sentindo-se acossado por uma presença estranha, que denomina "O

Horla"127, que lhe "suga a vida por entre os lábios durante a noite". Descreve seu estado

estranho como "um medo do Invisível", a "horrível sensação de um perigo iminente",

"uma inquietação incompreensível", "um medo confuso e irresistível, o medo do

sono".128

Ao longo do conto, o narrador descreve com detalhes seus pesadelos terríveis,

onde sente-se sufocado por um ser estranho:

"Bem sei que estou deitado e que durmo... Eu o sinto e o vejo... e sinto também que alguém se aproxima de mim, me olha, me apalpa, sobe na minha cama, ajoelha-se sobre o meu peito, põe as mãos no meu pescoço e aperta... aperta... com toda força para me estrangular.Eu me debato, preso por esta impotência atroz que nos paralisa nos sonhos; quero gritar - não posso; - quero mover-me - não posso; - com um esforço terrível, arquejando, tento me virar, repelir este ser que me esmaga e sufoca -não posso!E, de súbito, acordo alucinado, coberto de suor. Acendo uma vela. Estou só." 129

127 "Horla", segundo nota do tradutor, é uma palavra inexistente na língua francesa, porém, há várias hipóteses sobre o termo usado por Maupassant: "uma criação fonética, mero fruto da imaginação do autor, ou um nome dado a um ser fantástico, o Hors-là, o do Além, o de Lá, o de fora?" - Ibid, p.139, nota 5.128 Ibid, p.88.129 Ibid, p.89.

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O personagem tenta, repetidas vezes, livrar-se destes pesadelos fazendo

pequenas viagens. Fora de sua propriedade, tudo é como antes. Porém, ao voltar para

casa sua angústia recomeça.

Atormentado, começa a duvidar da própria sanidade. Racionalmente, tenta

explicar para si mesmo que aquele ser que entra em seu quarto todas as noites, tenta lhe

sufocar e bebe de sua água, só pode ser ele mesmo, já que todas as entradas mantém-se

intactas:

"Tinham, então, bebido essa água? Quem? Eu? Sem dúvida! Só podia ter sido eu! Então, eu era sonâmbulo, vivia, sem saber, esta misteriosa vida dupla que leva a pensar se não há dois seres em nós, ou se um ser estranho, desconhecido e invisível, não anima, por momentos, quando a nossa alma está entorpecida, o nosso corpo cativo que obedece a este outro como a nós mesmos, mais do que a nós mesmos."130

Em outros momentos, tem certeza de que algo realmente acontece: "Desta vez,

eu não estou louco. Eu vi... eu vi... eu vi! Não posso mais duvidar..." Mas o que ele

vira? "Uma mão invisível", que dobrava o caule das rosas do canteiro. "Desvairado,

lancei-me sobre ela para agarrá-la! Nada encontrei, ela havia desaparecido."131

Transtornado, reconhece estar dominado por este ser: "Não tenho mais nenhuma força,

nenhuma coragem, nenhum domínio sobre mim, nenhum poder para pôr em movimento

a minha vontade. Não consigo mais querer; mas alguém quer por mim; e eu

obedeço."132

O narrador tenta loucamente entender, nomear, dominar de qualquer modo este

ser estranho que invade sua propriedade. Porém, quando finalmente consegue dar-lhe

um nome, "Horla", esta não se trata de uma invenção do narrador, mas apenas a

reprodução do grito que nele brota. Não é o sujeito que se aproxima da angústia,

130 Ibid, p.94.131 Ibid, p.104.132 Ibid, p.107.

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designando-a, mas sim a própria angústia se faz ouvir por sua voz: "Ele veio, o ...o ...

como se chama ... o ... parece que ele me grita o seu nome, e não o ouço... o ... sim, ele

grita ... eu escuto ... não posso, repete ... o ...Horla ... eu ouvi ... o Horla ... é ele ... o

Horla ... ele veio!" 133

Revoltado, decide: "É ele, ele, o Horla, que me habita, que me faz pensar essas

loucuras! Ele está em mim, ele se torna a minha alma; eu o matarei."134

Decidido a destruir seu perseguidor, monta uma armadilha para capturá-lo.

Porém, é a si próprio que aniquila, num jogo especular que podemos acompanhar na

passagem a seguir:

"Tinha acendido os meus dois candeeiros e as oito velas da minha lareira, como se pudesse descobri-lo nessa claridade. Diante de mim, a minha cama, uma velha cama de carvalho com colunas; à direita, a lareira; à esquerda, a porta cuidadosamente fechada, depois de a ter deixado por muito tempo aberta a fim de atraí-lo; atrás de mim, um armário muito alto com um espelho que me servia todos os dias para me barbear e mevestir, e onde eu tinha o hábito de me olhar, da cabeça as pés, sempre que passava pela sua frente.Fingia, então, estar escrevendo, para enganá-lo, pois ele também me espiava, e, de súbito, senti, tive a certeza de que ele lia por cima do meu ombro, de que ele estava ali, roçando a minha orelha.Levantei-me, com as mãos estendidas, virando-me tão depressa que quase caí. Pois bem! ... enxergava-se como em pleno dia, e eu não me vi no espelho!... Ele estava vazio, claro, profundo, cheio de luz! Minha imagem não estava lá.... e eu estava diante dele! Eu via de alto a baixo o grande vidro límpido. E olhava para aquilo com um olhar alucinado; e não ousava mais avançar, não ousava mais fazer qualquer movimento, sentindo, no entanto, que ele estava lá, mas que me escaparia de novo, ele, cujo corpo imperceptível havia devorado o meu reflexo.Como tive medo! Depois, eis que de repente comecei a avistar-me numa bruma no fundo do espelho, numa bruma como através de uma toalha d'água; e me parecia que esta água deslizava da esquerda para a direita, lentamente, tornando a minha imagem mais precisa a cada segundo. Era como o fim de um eclipse. O que me ocultava não parecia possuir contornos claramente definidos, mas uma espécie de transparência opaca que ia clareando pouco a pouco. Pude, enfim, distinguir-me completamente, assim como faço todos os dias ao me olhar.

133 Ibid, p.113.134 Ibid, p.115.

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Eu o tinha visto! Ficou-me o terror daquela visão que ainda me faz estremecer."135

"Eu o tinha visto", diz o narrador. Mas o que ele tinha visto? O "corpo

imperceptível", a "transparência opaca"; em outras palavras: nada. E este nada só

aparece no momento em que o sujeito se aniquila, deixando em seu lugar apenas um

espelho vazio, um "vidro límpido".

Por fim, após o horror de ver o próprio reflexo ser devorado, o narrador conta

que só lhe restou atear fogo na própria casa, "explodir a propriedade", esperando que

junto com ela se acabasse também "O Horla". Porém, na última passagem do conto,

reconhece a imortalidade deste Ser, em contraste com sua própria mortalidade:

"Não...não... sem dúvida alguma... ele não morreu... Então...então...vai ser preciso

agora que eu me mate!"136

Então, no breve eclipse em que acredita tê-lo visto, sua própria imagem

desaparecera do espelho, algo não visível impedira que a imagem do narrador fosse

refletida. Podemos entender isso de acordo com aquilo que afirmamos anteriormente: no

instante da angústia, há um desvanecimento da imagem, onde nem o duplo comparece.

Podemos notar que é justamente diante da insistência numa identidade única que

o duplo emerge como um perseguidor externo, fonte de horror, evidenciando uma não-

integração entre aspectos distintos de um mesmo sujeito. Tomado pela angústia, este

sujeito apresentado por Maupassant só pôde desfalecer, reduzindo-se a nada e, segundo

Baas, que em seu artigo também comenta este conto,

" (...) este nada só aparece no momento em que o sujeito se eclipsa. De fato, no surgimento da angústia, o sujeito se eclipsa, deixando em seu lugar apenas o

135 Ibid, p.115-117. Grifos nossos.

136 Ibid, p.120. Na primeira versão de "O Horla", após esta cena onde vê o próprio reflexo ser devorado, ao invés de atear fogo na própria casa o narrador interna-se voluntariamente num hospício.

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objeto causa de seu desejo, o objeto a, aqui figurado neste espelho vazio, na moldura vazia deste vidro inerte. É o olhar petrificado, o nada-de-significante em sua correlação com o nada de sujeito." 137

Sobre a função da angústia

Vimos então, a partir de "O Horla", a angústia em sua dimensão paralisante, capaz de aniquilar o

sujeito. Porém, a partir das contribuições de Lacan, podemos observar também uma função para a

angústia138. Trata-se de uma discussão fundamental se temos a clínica psicanalítica como referência,

já que a angústia - o afeto por excelência - é um ponto inevitável de toda análise.

Sabemos que a angústia, tanto em Freud como em Lacan, não se restringe a um

fenômeno psicopatológico, mas é algo inevitável e correlativo ao sinuoso e sempre

singular processo de engendramento do sujeito.

Ao introduzir o Seminário X, partindo da afirmação "a angústia é um afeto"139,

Lacan evoca as dificuldades de uma teoria dos afetos, deixando claro que não é a isso

que se propõe. O afeto permanece indeterminado, indefinível, mas a angústia como

afeto é a referência, como "aquilo que não engana".

A angústia surge no lugar central, cumprindo função média entre gozo e desejo.

Situa-se como sinal que aparece quando começa a se apagar a divisão entre aqueles com

os quais faz borda: "Desejo e gozo ameaçam confundir-se, e a angústia opera como

137 Baas, B., A angústia e a verdade. Op. cit., p.281.138 Sobre isso, ver Siqueira, K. B., Uma função para a angústia. Dissertação de mestrado, Programa de pós-graduação em teoria psicanalítica, UFRJ, 2001.139 Lacan, J., Seminário X, lição de 14 de novembro de 1962.

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alerta, é um sinal de algo que se acreditava suficientemente clivado, diferenciado na

vida psíquica, mas que em certo ponto tende a apagar seus limites..." 140

Lacan encerra o Seminário X com uma reflexão acerca da função da angústia -

questão que lhe permite abordar o desejo do analista. Se a angústia apresenta-se,

logicamente, com anterioridade ao momento do desejo, como ponto médio entre gozo e

desejo, mostra-se sua função fundamental na clínica. Segundo Cosentino, o tempo da

angústia - entre o gozo e o desejo - é o tempo do sujeito em vias de advir141.

Então, se a direção de toda análise é o advento do sujeito frente a seu desejo, é

no caminho de uma certa travessia da angústia que esse trabalho é possível. A angústia,

que se expressa no próprio limite da palavra, é condição do trabalho analítico, "um

trabalho de manejo da angústia"142. Mas se uma análise tem como recurso fundamental

as palavras, toda tentativa é de poder a elas ligar este afeto que por si só é indizível.

Assim, se para se chegar ao desejo deve-se passar pela angústia, na clínica não se trata de buscar extinguir a angústia, mas de seu manejo. A angústia serve para sinalizar o desejo, que requer uma diferença entre o que é buscado e o que é obtido, a fim de relançar o deslizamento que lhe é próprio.

Acerca da angústia, Vieira observa que esta tem uma função fundamental, por ser um ponto a partir do qual é possível uma abertura para o novo:

"Ela [a angústia] adquire assim todo seu valor ético como possibilidade, para o sujeito, de 'arrancar do real sua certeza' em um ato que não seja, como habitualmente, saturado pelos determinantes simbólicos de uma história, previsto e regrado desde sempre, e que, ao contrário, instaure retroativamente novos significantes..." 143

Porém, a importância da angústia na clínica traz uma questão: ao mesmo tempo que a sua emergência é condição do trabalho analítico, também pode paralisá-lo, invadindo e transbordando o sujeito, o que leva Freud a considerar que “em estados de crise aguda, a análise é, para todos os fins e intuitos, inutilizável”144.

140 Harari, R., O seminário A Angústia de Lacan - uma introdução. Porto Alegre, Ed. Artes e Ofícios, 1997, p.43.141 Cosentino, J. C., Angustia, fobia, despertar, op. cit., p.111.142 Cf. Soler, C., A angústia na cura in Artigos Clínicos, Salvador, Fator, 1991. 143 Vieira, M. A., A inquietante estranheza: do fenômeno à estrutura, op. cit., p.136-137.144 Freud, S., Análise terminável e interminável [1937], op. cit., p.265.

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Capítulo IV: Ódio ao próximo - o estranho e a agressividade

Neste capítulo pretendemos discutir o fato de que o encontro com o estranho

freqüentemente desperta a agressividade. A partir de Freud e Lacan, veremos que o ódio

ao estranho muitas vezes implica numa projeção, onde a estranheza é fixada numa

exterioridade, o que pode ser seguido de uma tentativa de eliminar a diferença.

Trata-se de uma discussão fundamental nos dias de hoje, onde vemos

repetidamente projetos que visam a abolição das diferenças, seja através de uma

pasteurização, procurando reduzir tudo a um mesmo, seja pela exclusão daquele que é

apontado como o estranho.

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Tais projetos, em geral, têm um certo ideal de pureza, onde o estranho é

equiparado àquilo que atrapalha a ordem. Sabemos como estas idéias podem servir

como tentativas de justificar barbáries, o que faz com que este seja um tema que não

podemos evitar.

Veremos que também este estranho, que pode tornar-se alvo de ódio, muitas

vezes é intimamente familiar. Sendo assim, retomamos o tema do narcisismo, que

mantém-se como ponto de partida ao longo de todo este trabalho, como base para esta

reflexão sobre a agressividade, buscando mostrar que esta pode ser pensada em

articulação com o narcisismo, como sua contra-face, de modo análogo à articulação

moebiana proposta anteriormente entre o estranho e o narcisismo.

A agressividade como contra-face do narcisismo

Recorrendo a Freud, encontramos em diversas passagens de sua obra a idéia de

que narcisismo e agressividade podem ser concebidos numa articulação. Em “Totem e

Tabu”145, por exemplo, esta idéia permeia sua descrição dos processos de identificação e

incorporação, onde Freud nos mostra que a fraternidade se funda na exclusão. É o que

narra o mito da horda primeva, segundo o qual "os irmãos se uniram, mataram e

devoraram o pai".

145 Freud, S., Totem e tabu [1913], op. cit., Vol. XIII.

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Freud segue a mesma idéia em “Luto e Melancolia”146, onde afirma que a

identificação narcísica é a primeira forma pela qual o eu escolhe um objeto, sempre de

modo ambivalente, já que a incorporação, que tem por imagem o canibalismo, inclui,

por definição, a destruição deste objeto. Fica evidente aqui a agressividade em questão,

na ligação entre a identificação narcísica e o aniquilamento do objeto.

Para refletir acerca desta articulação entre narcisismo e agressividade, pensados

por Freud muito mais em continuidade do que em oposição, consideramos importante

ressaltar a noção de "narcisismo das pequenas diferenças"147.

Em 1921, no texto “Psicologia das massas e análise do ego"148, Freud

desenvolve este tema, refletindo acerca da natureza das relações emocionais entre os

homens em geral e das principais características das formações grupais, visando

explicar as alterações na vida mental do sujeito num grupo. Afirma que em toda relação

emocional íntima haveria resquícios de sentimentos hostis, o que não se percebe pelo

fato destes serem recalcados. Verifica nestes sentimentos uma expressão do narcisismo,

fundamental para a auto-preservação:

“Nas antipatias e aversões indisfarçadas que as pessoas sentem por estranhos com quem têm de tratar, podemos identificar a expressão do amor a si mesmo, do narcisismo. Este amor a si mesmo trabalha para a preservação do indivíduo, e comporta-se como se a ocorrência de qualquer divergência de suas próprias linhas específicas de desenvolvimento envolvesse uma crítica delas e uma exigência de sua alteração." 149

146 Freud, S., Luto e melancolia [1917](1915), op. cit., Vol. XIV.147 Esta expressão foi mencionada por Freud em 1918, no texto “O Tabu da Virgindade”, de onde destacamos a seguinte passagem: “Crawley, numa linguagem que difere apenas ligeiramente da terminologia habitual da psicanálise, afirma que cada indivíduo é separado dos demais por um ‘tabu deisolamento pessoal’ e que constitui precisamente as pequenas diferenças em pessoas que, quanto ao resto, são semelhantes, que formam a base dos sentimentos de estranheza e hostilidade entre eles. Seria tentador desenvolver esta idéia e derivar deste ‘narcisismo das pequenas diferenças’ a hostilidade que em cada relação humana observamos lutar vitoriosamente contra os sentimentos de companheirismo e sobrepujar o mandamento de que todos os homens devem amar ao seu próximo.” - Freud, S., O Tabu da Virgindade [1918](1917), op. cit., Vol. XI, p.184.148 Freud, S., Psicologia das massas e análise do ego [1921], op. cit., Vol. XVIII. Neste texto, apesar de deter-se neste tema do narcisismo da pequenas diferenças, Freud não utiliza esta expressão, que só seria retomada em 1930, em "O mal-estar na civilização".149 Ibid, p.129.

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Assim, Freud observa os traços de hostilidade presentes nas relações, seja entre

duas pessoas ou em unidades maiores, como cidades vizinhas ou famílias. Pensa como

raças aparentadas mantêm distância umas das outras, que cidades rivais em geral são

vizinhas, enfim, como a aversão é facilmente dirigida contra alvos muito semelhantes,

porém, que contenham sempre pequenas diferenças. Verifica nesses fenômenos uma

expressão do narcisismo, que atua como se qualquer divergência envolvesse ameaça ao

sujeito.

Freud nos mostra como uma "mínima distância" é vital para que mantenham-se

duas unidades, sem que estas destruam-se mutuamente. Por outro lado, reconhece a

necessidade de aproximação entre os homens. Neste sentido, cita a parábola de

Schopenhauer, sobre os porcos-espinhos no inverno, que lembramos a seguir:

“Um grupo de porcos-espinhos apinhou-se apertadamente em certo dia frio de inverno, de maneira a aproveitarem o calor uns dos outros e assim salvarem-se da morte por congelamento. Logo, porém, sentiram os espinhos uns nos outros, coisa que os levou a se separarem novamente. E depois, quando a necessidade de aquecimento os aproximou mais uma vez, o segundo mal surgiu novamente. Dessa maneira foram impulsionados, para trás e para frente, de um problema para o outro, até descobrirem uma distância intermediária, na qual podiam mais toleravelmente coexistir” 150

Segundo Barros151, podemos depreender daí que uma fronteira não é dada de

antemão, mas é um efeito da própria tentativa de aproximação e afastamento. Uma

fronteira depende do movimento pelo qual dois lados buscam entrar em contato; logo,

só pode ser concebida de modo relativo.

150 Ibid, p. 128.151 Barros, R .R. A pequena diferença, entre pele e espinho in Revista Ágora, Programa de pós-graduação em teoria psicanalítica, UFRJ, no 1, RJ, 1998.

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Barros observa ainda que o narcisismo das pequenas diferenças refere-se a

unidades que mantêm-se justamente a partir dessas diferenças152. Assim, afirma que só

podemos pensar uma definição do limite imaginário do eu tendo por referência o desejo

do vizinho, ou seja, que a impressão de auto-suficiência narcísica exige na verdade um

outro. Assim, o narcisismo das pequenas diferenças é um narcisismo cujo suporte é,

paradoxalmente, a permanente exclusão daquilo que constitui a pequena diferença.

Neste sentido, não há uma busca por igualdade (“todos são iguais, não há diferença”),

mas sim por alcançar a unidade (“todos = 1”). Este é o lado totalitário do narcisismo das

pequenas diferenças, que tem por base a exclusão153.

Logo, o narcisismo das pequenas diferenças não diz respeito a um encontro de

duas unidades, mas sim à instauração de uma unidade imaginária cuja manutenção

depende de se supor, ou nomear, uma outra em face. Esta não deve ser de todo igual,

nem diferente, da primeira, mas deve mostrar-se como se tivesse, ou ameaçasse ter, a

posse de algo a mais. É em torno desse indefinível a mais, que consiste a pequena

diferença, que se instaura o narcisismo.

A partir daí, podemos pensar em questões que abrangem diversos patamares,

que vão desde a simples tensão entre vizinhos até os extremos da segregação, como

veremos mais adiante.

Refletindo ainda acerca das formações grupais, em "O mal-estar na civilização"

Freud ressalta que a possibilidade de descarga da agressividade em grupos rivais é um

fator fundamental para a sobrevivência “harmônica” de um grupo, para que esta

agressividade não seja descarregada em seu interior, gerando desagregação. Neste

sentido, tendo como referência o narcisismo das pequenas diferenças, afirma:

152 Ibid, "Talvez não ser espanhol faça um português", p.44.153 Idem.

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"É sempre possível unir um considerável número de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de sua agressividade. Em outra ocasião, examinei o fenômeno no qual são precisamente comunidades com territórios adjacentes, e mutuamente relacionadas também sob outros aspectos, que se empenham em rixas constantes (...) Dei a esse fenômeno o nome de 'narcisismo das pequenas diferenças' (...) Agora podemos ver que se trata de uma satisfação conveniente e relativamente inócua da inclinação para a agressão, através da qual a coesão entre os membros da comunidade é tornada mais fácil."154

Além da importância desta descarga da agressividade no exterior para a

manutenção de um grupo, Freud aponta em "Psicologia das massas..." um outro aspecto

que nos interessa ressaltar: a agressividade, que seria facilmente decorrente da

identificação narcísica entre os membros de um grupo, desencadeada pelo excesso de

proximidade, tem mais uma possibilidade de ser evitada - esta pode ser mediada pela

figura do líder, que seria colocado pelos membros do grupo no lugar de ideal do eu,

como um "terceiro":

"Após as discussões anteriores, estamos, no entanto, em perfeita posição de fornecer a fórmula para a constituição libidinal dos grupos, ou, pelo menos, de grupos como os que até aqui consideramos, ou seja, aqueles grupos que têm um líder (...) Um grupo primário desse tipo é um certo número de indivíduos que colocaram um só e mesmo objeto no lugar de seu ideal do ego e, conseqüentemente se identificaram uns com os outros em seu ego." 155

Neste ponto, podemos recorrer a algumas contribuições importantes de Lacan

que, assim como Freud, articula narcisismo e agressividade.

Em “A agressividade em psicanálise”, texto que apresenta muitos pontos em

comum com "O estádio do espelho", que comentamos anteriormente, Lacan afirma que

a agressividade é a tendência correlativa ao modo de identificação narcísica, que

154 Freud, S., O mal-estar na civilização [1930], op. cit., vol. XXI, p.136.155 Freud, S., Psicologia das massas e análise do ego [1921], op. cit., Vol. XVIII, p.147.

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determina a estrutura do eu. Afirma que a tensão induzida pela exterioridade e

estranheza da imagem especular contém os fundamentos da agressividade.

Isto está de acordo com aquilo que discutimos no capítulo II acerca do papel da

alteridade na constituição do eu e com a constatação de que "eu é um outro"156. Desde o

início o eu se afigura marcado por uma relatividade agressiva, tendência impressa nas

relações fundadas no imaginário.

Se partimos desta idéia para pensar acerca das relações entre os homens, como

vimos acima, podemos considerar que o mandamento cristão "ama ao próximo como a

ti mesmo", ao fundamentar-se na identificação imaginária, traz em si, inevitavelmente, a

agressividade.

Freud, em "O mal-estar na civilização", mostra sua perplexidade diante deste

preceito cristão, que se tornou uma das exigências ideais da sociedade civilizada,

considerando, surpreso: "Como isso pode ser possível? Meu amor, para mim, é algo de

valioso, que eu não devo jogar fora sem reflexão", e se pergunta: e se esse próximo for

um estranho para mim? "Não meramente esse estranho é, em geral, indigno do meu

amor; honestamente, tenho que confessar que ele possui mais direito a minha

hostilidade e, até mesmo, meu ódio." 157

Assim, Freud chega a fazer equivaler os enunciados "ame ao próximo como a ti

mesmo" e "ame teu inimigo", reafirmando que o próximo, naquilo que ele tem de

diferente e inassimilável, é facilmente objeto de ódio158.

Se seguimos com Lacan, em "A agressividade em psicanálise", podemos

entender que uma relação imaginária, dual, tende a esgotar-se num jogo especular no

156 Lacan, J., A agressividade em psicanálise [1948] in Escritos, op. cit., p.120.157 Freud, S., O mal-estar na civilização [1930], op. cit., p.131.158 Lacan, no Seminário 7, "A ética da psicanálise", retoma longamente a análise deste mandamento feita por Freud em "O mal-estar na civilização". Porém, Lacan inclui questões como o bem, o mal e o gozo, por exemplo, que não poderíamos abordar neste momento, por se afastarem de nosso recorte atual.

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qual o sujeito se perde ou se aliena. As formulações acerca do estádio do espelho nos

mostram que é o outro que está de posse de sua imagem, já que o sujeito só pode

perceber-se na imagem deste outro. Trata-se de uma identificação alienante e produtora

de tensão, que tem por conseqüência imediata a necessidade de destruir esse outro, fonte

da alienação. É deste modo que Lacan aponta neste texto o narcisismo e a agressividade

como contemporâneos.

De fato, "se meu eu está fora de mim", no outro, se meu desejo por conseqüência

é o desejo do outro, é preciso destruir este outro para que eu possa ter um lugar. Daí a

concomitância do narcisismo e da agressividade, já que toda relação dual, especular, é

uma relação tanto constitutiva quanto mortal e deste impasse só há saída possível a

partir do simbólico.

É nesse mesmo sentido que podemos retomar o tema do duplo, abordado no

capítulo II, como algo que pode ser tão constitutivo quanto mortal.

Veremos agora uma destas possibilidades, a partir da narrativa de Poe, onde o

outro não exerce sua função constitutiva, mas apenas ameaça o sujeito como um duplo

autônomo, sombra perseguidora, que torna-se alvo de uma agressividade mortal.

Sobre "William Wilson", de Poe159

Escolhemos abordar o tema da agressividade que pode ser desencadeada num

confronto com o duplo a partir da descrição, recorrente na literatura, de um embate

mortal onde o assassinato do duplo equivale ao suicídio do sujeito.

O conto "William Wilson", de Poe, nos fornece uma rica oportunidade de

observarmos esta agressividade dirigida ao duplo, como um estranho no qual o sujeito

159 Poe, E. A., William Wilson [1839] in Contos de terror, de mistério e de morte, J. Aguilar, RJ, 1975.

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insiste em não se reconhecer, projetando sua estranheza sobre este outro que se torna

alvo de ódio.

Em "William Wilson", conto narrado na primeira pessoa, Wilson descreve sua

própria trajetória de terror e ódio, a partir do confronto com seu duplo que lhe persegue

desde a infância, na escola, até seu final terrorífico.

Wilson começa relembrando seu período na escola, onde tem início seu

tormento. Afirma que era então um líder, que exercia seu poder sobre todos - menos

um: aquele que tinha seu mesmo nome e sobrenome. Esse xará competia em tudo com

Wilson, recusando submissão à sua vontade, o que despertava a ira do narrador.

Porém, Wilson reconhece, surpreso, sua ambivalência com relação ao rival:

"Pode parecer estranho que, a despeito da contínua ansiedade que me causavam a

rivalidade de Wilson e seu intolerável espírito de contradição, não pudesse eu ser

levado a odiá-lo totalmente". 160

Assim, se por um lado Wilson sentia ódio por seu rival, também não deixava de

constatar aquilo que chama de uma "presunção de patrocínio e proteção" por parte de

seu duplo, numa mistura que nos faz pensar no aspecto amistoso do duplo no narcisismo

primário, só depois revestido de terror161.

Wilson descobre em seu rival algo que lhe remete a "sombrias visões de minha

primeira infância", "recordações de um tempo em que a própria memória ainda não

nascera". Tinha uma "crença de haver conhecido aquele ser diante de mim em alguma

160 Ibid, p.84.161 Cf. o capítulo II desta dissertação, onde abordamos as formulações freudianas sobre o duplo, como um mecanismo ligado à onipotência narcísica, como uma tentativa de negação da morte, mas que num outro momento pode justamente evidenciar a castração, como "o estranho anunciador da morte".

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época muito longínqua, em algum ponto do passado, ainda que infinitamente

remoto".162

Nascidos no mesmo dia, freqüentavam a mesma escola, tinham altura e feições

semelhantes, e o mesmo nome. Logo que o xará chegou ao colégio, foi justamente com

seu nome que Wilson antipatizou, "porque o usava um estranho que seria causa de sua

dupla repetição". Repetição de seu nome, William Wilson, nome que lhe provocava

repugnância, por considerá-lo "vulgar". Um nome tão comum, que não era capaz de

marcar uma distinção.

Wilson reconhece no próprio nome seu "ponto fraco" e descobre também o

ponto fraco de seu rival - sua voz - que jamais passava de um sussurro. Porém, nem

assim ele é capaz de enfrentar seu duplo: "a despeito de seu defeito constitucional, até

mesmo minha voz não lhe escapava. Naturalmente, não alcançava ele meus tons mais

elevados, mas o timbre era idêntico e seu sussurro característico tornou-se o

verdadeiro eco do meu." 163

Pronunciando seu nome, o xará aproximava-se de Wilson sussurrando com sua

voz rouca "William Wilson", sempre que este se entregava a algum prazer proibido, seu

passatempo predileto.

Diante disso, Wilson reconhece: "Seu senso moral (...) era bem mais agudo que

o meu..." Considera que poderia ter sido "um homem melhor e, portanto, mais feliz", se

não tivesse rejeitado os conselhos de seu duplo164.

Podemos entender que, neste conto, o duplo aparece como guardião da moral,

crítico severo do sujeito e seu perseguidor. É como se a instância crítica assumisse vida

própria, como um duplo autônomo, estranho e fonte de terror para o sujeito165.

162 Poe, E. A., William Wilson, op. cit., p.87.163 Ibid, p.86.164 Idem.

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Numa tentativa de aproximar-se do rival, disso que o atormenta, uma noite

Wilson ilumina o rosto de seu duplo enquanto este dormia. Porém, ao invés de

conseguir lançar alguma luz sobre a situação, Wilson é tomado de terror diante do que

vê. Mantém-se na escuridão, incapaz de distinguir a semelhança e a diferença:

"Eram aquelas... aquelas as feições de William Wilson? Vi, de fato, que eram as dele, mas tremi como num acesso de febre, imaginando que não o eram. Que havia em torno delas para me perturbarem desse modo? Contemplei, enquanto meu cérebro girava com uma multidão de pensamentos incoerentes. Não era assim que ele aparecia - certamente não era assim - na vivacidade de suas horas despertas. O mesmo nome! Os mesmos traços pessoais! O mesmo dia de chegada ao colégio! E, depois, sua obstinada e incompreensível imitação de meu andar, de minha voz, de meus costumes, de meus gestos! Estaria, em verdade, dentro dos limites da possibilidade humana que o que eu então via fosse, simplesmente, o resultado da prática habitual dessa imitação sarcástica?"166

Horrorizado, com um tremor crescente, Wilson apaga a lâmpada e sai

silenciosamente do quarto, abandonando o velho colégio, para nunca mais voltar.

Durante anos Wilson consegue afastar-se deste episódio, tentando esquecê-lo.

Porém, num momento em que encontrava-se entregue ao vício do álcool, ao jogo e às

trapaças, seu rival reaparece, voltando a persegui-lo com seus conselhos morais,

denunciando seu caráter aos colegas.

Deste momento em diante, Wilson fugia em vão. Seu duplo perseguia-o aonde

fosse, por todo o mundo. Em Roma, Paris, Viena, Berlim, Moscou, por toda parte, lá

estava seu rival, sempre censurando seus atos, sua "ambição, avareza, vinganças e

paixões", despertando "angústia, horror e vergonha". Até que, numa resolução

desesperada, Wilson decide: "não me submeteria por mais tempo à escravidão".167

165 É interessante notar a epígrafe deste conto de Poe: "Que dirá ela? Que dirá a horrenda Consciência, aquele espectro no meu caminho?" Poe, E. A., William Wilson, op.cit.166 Ibid, p.88.167 Ibid, p.94.

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"Foi em Roma, durante o carnaval de 18... Assistia eu a um baile de máscaras,

no palácio do napolitano Duque Di Broglio". Entregue aos excessos do vinho, Wilson

procurava, "com indigna intenção", pela bela mulher do velho Di Broglio168.

Neste momento, sente uma mão pousar sobre seu ombro e ouve o sussurro do

rival. Tomado de cólera, agarra o rival pelo pescoço, arrastando-o para um duelo.

Trata-se da cena final do conto, onde desenrola-se o embate imaginário entre

Wilson e seu rival. Atormentado, o personagem de caráter vil, perseguido por seu duplo

idôneo, mergulha num duelo mortal.

Cego pelo ódio, Wilson enterra sua espada no peito do rival. Neste momento, ao

feri-lo, alguém bate à porta, mas tem sua entrada impedida por Wilson. Ao virar-se

novamente para o rival, é com um enorme espelho que ele se depara, aterrorizado diante

do próprio rosto manchado de sangue: "Mas que língua humana pode adequadamente

retratar aquele espanto, aquele horror, que de mim se apossou diante do espetáculo

que então se apresentou à minha vista?(...) minha própria imagem, mas com as feições

lívidas e manchadas de sangue, adiantava-se a meu encontro..."169

A última passagem do conto é uma frase ouvida, sem que se possa determinar

quem a diz. Wilson ou seu duplo? Já não há a menor diferença:

"Venceste e eu me rendo. Contudo, de agora por diante, tu também estás morto... morto para o Mundo, para o Céu e para a Esperança! Em mim tu vivias... e, na minha morte, vê por esta imagem, que é a tua própria imagem, quão completamente assassinaste a ti mesmo!"170

Esta passagem final nos remete ao aniquilamento do sujeito que se perde num

confronto imaginário, incapaz de escapar do embate direto, mortífero, com seu próprio

duplo. Não podendo reconhecê-lo como parte de si, tomado de ódio, o personagem

168 Idem.169 Ibid, p.95.170 Ibid, p.96.

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projeta o horror para fora buscando, cegamente, eliminá-lo. Porém, ao fazê-lo, aniquila-

se.

O ódio na constituição do eu e da alteridade

Como vimos a partir de "William Wilson" e também acompanhando as

formulações de Freud e Lacan acerca da agressividade, o ódio é o afeto sempre

ressaltado neste contexto, e muitas vezes vemos estes termos - ódio e agressividade -

alternarem-se quase como sinônimos.

Mantendo o narcisismo como nosso foco, veremos como Freud pensa sua

articulação com o ódio. Freud situa o ódio, assim como o amor, como um afeto que está

em jogo desde a constituição do sujeito. Em "As pulsões e seus destinos" Freud busca

traçar aquilo que se pode denominar como um "mito das origens", quanto à constituição

do sujeito. Se nos mantemos atentos para evitar uma leitura desenvolvimentista deste

texto, que suporia diversas etapas a serem ultrapassadas na constituição de um sujeito,

podemos encontrar algumas contribuições importantes.

Em primeiro lugar nos interessa ressaltar, deste texto, a afirmativa de Freud: "O

amor não admite apenas um, mas três opostos"171, a saber: a indiferença, o ódio, e ser

amado. Estas três possibilidades, como veremos adiante, podem ser pensadas numa

certa ordenação lógica, o que nos serve para discutir uma questão relevante para o nosso

tema: a passagem da indiferença ao ódio.

Freud supõe um "eu-real originário", que faz equivaler ao eu do narcisismo,

indiferente ao mundo externo. Afirma que este eu narcísico ama somente a si próprio, é

171 Freud, S., Os instintos e suas vicissitudes [1915], op. cit., p.154.

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auto-erótico, e corresponde ao que é agradável, numa situação que, para Freud, ilustra a

primeira oposição ao amor: a indiferença172.

Seguindo o caminho descrito por Freud, num segundo momento, já sob domínio

do princípio do prazer, um "eu-prazer" passa a introjetar o que, no exterior, lhe é fonte

de prazer e expulsa de si aquilo que, em seu interior, provoca desprazer.

Porém, é inevitável perguntarmos: o que é dentro e o que é fora neste momento?

Por enquanto, o que podemos perceber é que, se é possível determinar algum interior ou

exterior, isso se dá justamente nesse momento. É a partir da expulsão de algo de dentro

que se constitui um primeiro objeto, fora. Este objeto, é importante notar, já foi parte do

eu, e seria impreciso considerá-lo apenas externo. Sendo assim, podemos lembrar aqui a

expressão criada por Lacan para nomear esta condição de estranha intimidade deste

objeto externo: "extimidade".

Seguindo com Freud, este afirma: "Para o ego do prazer o mundo externo está

dividido numa parte que é agradável, que ele incorporou a si mesmo, e num

remanescente que lhe é estranho. Isolou uma parte do seu próprio eu, que projeta no

mundo externo e sente como hostil."173

Então completa, afirmando: "Quando, durante a fase do narcisismo primário, o

objeto faz a sua aparição, o segundo oposto ao amar, a saber, o odiar, atinge seu

desenvolvimento".174

Freud supõe ainda um terceiro momento, no qual não se detém muito, quando se

daria a passagem do eu-prazer ao eu-realidade, já sob o princípio de realidade, onde o

172 "Originalmente, no próprio começo da vida mental, o ego é investido pelas pulsões, sendo, até certo ponto, capaz de satisfazê-las em si mesmo. Denominamos essa condição de 'narcisismo', e essa forma de obter satisfação, de 'auto-erótica'". Freud, S., Os instintos e suas vicissitudes [1915], op. cit., p.156. Neste texto Freud não parece preocupado em diferenciar auto-erotismo, narcisismo primário e secundário.173 Ibid, p.158.174Idem.

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terceiro oposto ao amar, o ser amado, coloca-se em questão a partir da polaridade ativo-

passivo175.

O que consideramos importante ressaltar aqui, seguindo o pensamento

freudiano, é que na constituição do sujeito, quando surge o objeto, surge o ódio dirigido

a este objeto: "Logo no começo, ao que parece, o mundo externo, objetos e o que é

odiado são idênticos"176.

Assim, vemos que "O ódio surge quando a indiferença é negada e no lugar

antes ocupado pelo in-diferente emerge o diferente, o objeto"177. Logo, a constituição

do objeto se dá ao mesmo tempo que a emergência do ódio: "O ódio ao mesmo tempo

constitui o objeto e se dirige a ele".178

Apesar de Freud referir-se diversas vezes, em "As pulsões e seus destinos", à

questão da ambivalência fundamental entre amor e ódio e à constante possibilidade de

reversão entre estes, faz questão de enfatizar suas procedências distintas. Assim, afirma:

"(...) os verdadeiros protótipos da relação de ódio se originam não da vida sexual, mas

da luta do ego para preservar-se e manter-se." 179

Neste texto Freud trabalha ainda com o dualismo "pulsões de auto-conservação

do eu e pulsões sexuais", e enfatiza que o ódio não deriva da mesma fonte que a libido.

Assim, relaciona o ódio àquilo que atua como ameaça à preservação, ao narcisismo: "O

ódio, enquanto relação com objetos, é mais antigo que o amor. Provém do repúdio

primordial do ego narcisista ao mundo externo." 180

175 Em "A Negativa", de 1925, Freud retoma esta formulação de modo semelhante, porém, menciona apenas dois momentos - o eu-prazer e o eu-realidade.176 Freud, S., Os instintos e suas vicissitudes [1915], op. cit., p.158. 177 Pequeno, A., O ódio, paixão do ser in Latusa, Escola Brasileira de Psicanálise, RJ, no3, 1999, p.36.178 Idem.179 Freud, S., Os instintos e suas vicissitudes [1915], op. cit., p.160.180 Ibid, p.161.

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Porém, longe de manter-se confortavelmente nesta oposição dualista, apesar de

recorrer a uma certa "anterioridade mítica" para justificar a distinção entre amor e ódio,

Freud ressalta que o amor é ambivalente e comporta o ódio. Sobre isso, escreve em

"Reflexões para os tempos de guerra e morte":

"Realmente, é estranho tanto à nossa inteligência quanto a nossos sentimentos aliar assim o amor ao ódio; mas a Natureza, fazendo uso desse par de opostos, consegue manter o amor sempre vigilante e renovado, a fim de protegê-lo contra o ódio que jaz, à espreita, por detrás dele. Poder-se-ia dizer que devemos as mais belas florações de nosso amor à reação contra o impulso hostil que sentimos dentro de nós." 181

Sempre preocupado em enfatizar as procedências distintas do amor e do ódio, na

segunda tópica Freud recoloca esta questão, a partir da oposição entre pulsões de vida e

pulsões de morte. Deste modo, em "O ego e o id", afirma claramente: "Para a oposição

entre as duas classes de pulsões podemos colocar a polaridade do amor e do ódio"182.

Freud insiste na anterioridade do ódio com relação ao amor ao vinculá-lo à

pulsão de morte, que é, em termos míticos, a mais antiga das pulsões, anterior a Eros.

Deste modo, o movimento de expulsão passa a ser concebido como uma primeira fusão

pulsional onde, a serviço de Eros, a pulsão de morte é em parte desviada para o exterior,

passando a operar como pulsão de agressão.

No mesmo sentido da afirmação freudiana que situa o ódio em um ponto anterior

ao amor, Lacan aponta que o ódio é o que mais se refere ao ser183.

Com relação ao ódio, Vieira afirma que esta seria uma forma primária de

apresentação do real "(...) que por definição é ruptura, ponto cego, será em sua

irrupção sempre figurado como violência, desagregação e morte."184

181 Freud, S. Reflexões para os tempos de guerra e morte [1915], op. cit., p.338.182 Freud, S., O ego e o id [1923], op. cit., p.58.183 Segundo Freud, o ódio e o amor estão na origem do sujeito, de modo diferente do jogo de afetos que vem animar o eu já constituído. Lacan, nesse mesmo sentido, denomina o ódio, assim como o amor, de "paixões do ser", ao que acrescenta a ignorância.

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Lacan, desde o início, relaciona o ódio à agressividade, privilegiadamente

especular. Segundo Vieira:

" 'Eu' e 'outro' não somos naturalmente dois. É a presença do 'Outro' que nos separa e distingue. No caso do ódio, vela-se este Outro. A conseqüência é que eu e o outro tendemos a Um. No Amor esta tendência à fusão é vivida como plenitude. Inversamente, no ódio trata-se de sobreviver ao perigo da fusão, aqui imaginarizada como destruição: 'só pode haver Um' (...) 'Só pode haver Um' é, portanto, a raiz da agressividade, do ciúme e da inveja..." 185

Assim, o ódio oculta o Outro sob a figura do "inimigo". Já a agressividade marca

o ponto em que o Outro se esvanece, se "eclipsa", a partir da passagem ao ato:

" 'Ou eu ou ele, só pode haver Um', apenas se realiza como tal na agressão, único registro em que um instante fugaz institui o eixo imaginário como se ele realmente envolvesse apenas dois personagens, como se estivesse desconectado do simbólico, ilusão que está na origem da agressão como fato. É importante lembrar que o apagamento do Outro, apagamento da Lei, implica o apagamento do próprio sujeito, fundamento do ato, cujas conseqüências para o bem ou para o mal são impossíveis de prever." 186

Neste ponto, podemos nos referir ao conto de Poe, "William Wilson", cuja cena

final mostra justamente este ponto de eclipse, numa passagem ao ato onde o "ou eu ou

ele" mostra-se "nem eu, nem ele".

Lacan nos mostra, com o estádio do espelho, que tanto o amor como o ódio se

situam no eixo do narcisismo, onde a lógica especular permite qualquer inversão. Além

do amor e do ódio ressalta também, dentre os afetos ligados ao narcisismo, a rivalidade,

a inveja, a fascinação.

Com relação a esta última, o mito de Narciso ilustra este momento de captura

pela imagem especular de que nos fala Lacan em "O estádio do espelho", como vimos

184 Vieira, M. A., A ética da paixão, RJ, JZE, 2000, p.187.185 Ibid, p.188.186 Ibid, p.189.

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no capítulo II. Fascinado pela própria imagem, Narciso ignora qualquer referência

externa e mergulha na total confusão com a própria imagem.

No Seminário X Lacan fala acerca da "armadilha narcísica", onde o sujeito se

debate com sua própria agressividade, que se volta contra ele quanto mais ele mergulha,

como Narciso, na fascinação da própria imagem187. Esta fascinação, que terminou por

destruir Narciso, é um primeiro momento no encontro com o semelhante, e o sujeito

sucumbe a ela se não for capaz de extrair daí a diferença que, para a constituição do eu,

é formadora.

Podemos observar que "William Wilson" descreve uma situação de fascinação

semelhante, onde o sujeito sucumbe, aniquilado pela própria agressividade, sem um

Outro que pudesse reconhecer a semelhança e marcar a diferença188.

Já com relação à inveja, segundo Vieira, o Outro mantém-se em sua função189.

Encarnado, opera como uma sombra, um suposto terceiro que completaria o outro. Para

uma reflexão acerca da inveja, Lacan considera paradigmática a cena descrita por Santo

Agostinho - o olhar destrutivo da criança pequena diante do irmão, que parece gozar da

completude com o seio materno190. Esta completude de um, se instaura como falta do

lado do outro, no eixo especular, daí a inveja.

Na inveja, o sujeito vivencia o gozo do Outro como ligado à "intenção de me

privar". Logo, não se trata do simples ciúme competitivo, mas da invidia, da inveja que

nasce do olhar. Segundo Julien: "Vejo no Outro um gozo que, em contrapartida,

provoca o meu ódio, porque só consigo ver nele um privador, e não um semelhante com

187 Lacan, J., Seminário X, op. cit., lição de 14 de novembro de 1962.188 Além da cena final, onde alguém que bate à porta tem sua entrada impedida, ao longo de todo o conto o narrador afirma que ninguém notava ou comentava nada acerca da semelhança entre Wilson e seu duplo. Cf. Poe, E. A., William Wilson, op. cit., p.86.189 Vieira, M. A., A ética da paixão, op. cit., p.190.190 Cf. o comentário de Lacan em A agressividade em psicanálise [1948], op. cit., p.117.

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quem possa me identificar"191. Afirma ainda que o ódio social nasce desta suposição de

saber sobre o gozo do Outro. Assim, questiona: "como posso amar meu próximo na

posição de malvado, ele que me priva de um gozo que suponho nele..." 192

O estrangeiro, a violência, a guerra

O estrangeiro pode ser considerado como uma das figuras possíveis para uma

abordagem do estranho e do ódio por ele suscitado – ódio à diferença – questão sempre

presente ao longo da História.

O estrangeiro que provoca atração e repulsa, é muitas vezes perseguido como

um invasor ou tido como um perseguidor. Pode ser inicialmente desprezado, mas num

segundo momento temido ou odiado, isto é, promovido da categoria de indiferente ao

estatuto de perseguidor poderoso, contra o qual um “nós” se solidifica.

Neste ponto podemos nos remeter ao que discutimos acima acerca da passagem

da indiferença ao ódio, como Freud nos mostra em "As pulsões e seus destinos", onde

vimos que o surgimento do ódio e do objeto são concomitantes.

Neste mesmo sentido, é curioso notar que o bebê só manifesta as primeiras

reações de medo e recuo perante um rosto desconhecido por volta do oitavo mês de

vida. Estas reações não são inatas, mas só se manifestam a partir do narcisismo, da

constituição da própria imagem, que possibilita que se delimite um eu e um outro.

Freud e Lacan apontam que é justamente a rejeição do estrangeiro que une os

semelhantes, ou seja, a fraternidade se funda na exclusão.

191 Julien, P. O estranho gozo do próximo, RJ, JZE, 1996, p.45.192 Idem.

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Lacan parecia não ter dúvidas ao afirmar a tendência de acirramento dos

processos de segregação: estes seriam fenômenos inerentes ao discurso científico e ao

desenvolvimento tecnológico. Na "Proposição de 9 de outubro", Lacan afirma: "...nosso

futuro de mercados comuns seria necessariamente contrabalanceado por uma extensão

cada vez maior dos processos de segregação"193. Em "Televisão" prevê uma tendência

de ascensão do racismo. Diante da pergunta de Miller: "De onde lhe vem, aliás, a

segurança de profetizar a escalada do racismo?", Lacan afirma: "No descaminho de

nosso gozo só há o Outro para situá-lo... Deixar a esse Outro seu modo de gozo, eis o

que só se poderia fazer não impondo o nosso, não o considerando como um

subdesenvolvido." 194

Nesta reflexão acerca de temas como o estrangeiro e o racismo nos encontramos

no delicado terreno de interseção entre a psicanálise e o social. Porém, acreditamos que

esta dificuldade não deve representar um impedimento para mais um esforço nesse

sentido. Sabemos que o analista não pode se permitir nada querer saber do que se passa

à sua volta. Queira ou não, é interpelado pelos acontecimentos - violência, guerra,

discriminação - sinais do mal-estar na civilização, cujos efeitos também chegam aos

consultórios. Portanto, é importante que não se deixe de recolocar a questão: por que, ou

como, a psicanálise pode, ou deve, pensar o social?

Sobre isso, Freud adverte:

"Eu não diria que uma tentativa desse tipo, de transportar a psicanálise para a comunidade cultural, seja absurda ou que esteja fadada a ser infrutífera. Mas teríamos de ser muito cautelosos e não esquecer que, em suma, estamos lidando apenas com analogias e que é perigoso, não somente para os homens mas

193 Lacan, J., Proposição de 9 de outubro [1968], p.29 apud Koltai, C., Política e psicanálise. O estrangeiro, SP, Ed. Escuta, 2000, p.30.194 Lacan, J. Televisão [1974], RJ, JZE, 1993, p.58.

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também para os conceitos, arrancá-los da esfera em que se originaram e se desenvolveram."195

A este respeito Pontalis196 ressalta que o termo "análise" aponta justamente para

o desligamento daquilo que compõe uma massa. Evidencia a exceção, o resto, o

inconciliável, o que se opõe à meta de Eros: reunir, manter unido. Logo, no próprio

princípio de uma reflexão global sobre a civilização haveria algo estranho e até oposto

ao procedimento psicanalítico - daí o embaraço de Freud, que tendia a considerar

"idealistas" os discursos sobre a civilização.

Assim, segundo Pontalis, "a moral de Freud é silenciosa, não legisla nem prega.

Tal como sua ciência, não se instala no universal, mas o encontra como que por acaso,

na apreensão do mais particular."197

Ao finalizar a redação de "O mal-estar na civilização", principal texto em que

aborda temas ligados ao social, em carta a Lou Andreas-Salomé, sua "entendedora",

Freud afirma despretensiosamente: "Escrevi, e ao fazê-lo o tempo passou de modo

ameno. Ocupado nessa obra descobri as verdades mais banais".198

Freud se recusa a deduzir da psicanálise algum tipo de Weltanschauung, bem

como mostra seu desprezo pelos "construtores de sistemas"199. Como afirma Pontalis, "o

Welt, o mundo, não se deixa pensar como tal, principalmente quando o pensamento,

que é trabalho, que é movimento, pretende confundir-se com uma Schauung, com uma

visão." 200

Com relação a esta interseção da psicanálise com o social vemos que, por vezes,

a própria psicanálise pode ser usada como tentativa de isenção da responsabilidade por 195 Freud, S., O mal-estar na civilização, [1930], op. cit., p.169.196 Pontalis, J.-B. Atualidade do mal-estar in Perder de vista, RJ, JZE, 1991, p.17.197 Ibid, p.18.198 Freud, S., Correspondência de amor e outras cartas, RJ, Nova Fronteira, 1982, carta de 28 de julho de 1929.199 Cf. Freud, S., Conferência XXXV - A questão de uma Weltanschauung [1933] (1932), op. cit.200 Pontalis, J.-B. Atualidade do mal-estar, op. cit., p.23.

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barbáries. Muitas vezes encontramos tentativas perigosas de substituir um julgamento

moral e social por uma interpretação psicanalítica.

Assim, feitas as devidas ressalvas, podemos nos remeter a um texto onde Freud

se manifesta acerca de questões sociais, no caso, sobre a guerra201. Em 1931, o Instituto

Internacional para a Cooperação Intelectual promoveu uma troca de correspondências

entre intelectuais de renome, a respeito de "assuntos destinados a servir aos interesses

comuns à Liga das Nações e à vida intelectual". Einstein sugeriu o nome de Freud, e

assim lhe escreveu, formulando a pergunta mais fundamental daquele momento: "Por

que a guerra?". Deste modo, Freud, enquanto grande pensador, viu-se intimado a

responder não apenas às perguntas que seu trabalho lhe colocava e nos termos que lhe

eram próprios, mas àquelas que os "tempos atuais" supostamente formulavam, exigindo

resposta.

É sabido que Freud mostrou-se bastante cético com relação a esta proposta. Em

carta a Ferenczi, onde comenta esta troca de correspondências com Einstein, Freud

afirma com ironia: "Ele [Einstein] entende tanto de psicologia quanto eu entendo de

física, de modo que tivemos uma conversa muito agradável". 202

Porém, em sua carta a Einstein, Freud mostra que esta sua observação não seria

muito justa, já que reconhece que a carta do cientista antecipara muito daquilo que ele

próprio poderia lhe responder.

Mesmo avisados sobre seu ceticismo, Freud nos mostra que a psicanálise tem a

contribuir nesta reflexão acerca da guerra, mais especificamente sobre a questão da

violência, da agressividade e do ódio, que ele refere à pulsão de morte, força que

nenhuma ordem política seria capaz de erradicar.

201 Freud, S. Por que a guerra? [1933] (1932), op. cit., Vol. XXII.202 Jones, E., 1957, p.187, apud Strachey, J. Nota do editor inglês in Por que a guerra?, op. cit., p.192.

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Em sua carta a Freud, Einstein lhe pergunta: "Existe alguma forma de livrar a

humanidade da ameaça da guerra?" 203 E ainda: "É possível controlar a evolução da

mente do homem, de modo a torná-lo à prova (...) do ódio e da destrutividade?" 204

Em sua resposta, Freud relembra a horda primitiva, para afirmar o uso da

violência como um princípio geral nos conflitos entre os homens. Retoma ainda a

questão das identificações: " (...) uma comunidade se mantém unida por duas coisas: a

força coercitiva da violência e os vínculos emocionais (identificações) entre seus

membros".205

Freud reafirma a primazia da pulsão de morte, considerando a violência algo

inevitável ao longo de toda a história humana. Chamado a apontar um "remédio para a

humanidade", Freud só pode remeter ao conflito pulsional206. Assim, afirma que a

pulsão de morte é estreitamente relacionada com as motivações da guerra, mostrando-se

bastante reticente em apostar em alguma alternativa. Considera uma ilusão qualquer

tentativa de eliminar as inclinações agressivas dos homens: "Não há maneira de

eliminar totalmente os impulsos agressivos do homem." Porém, afirma: "pode-se tentar

desviá-los num grau tal que não necessitem encontrar expressão na guerra". 207

Assim, se a agressividade é inevitável, expressão da pulsão de morte, talvez as

suas manifestações extremas como a guerra e a violência não o sejam.

203 Freud, S. Por que a guerra? [1933] (1932), op. cit., p.193.204 Ibid, p.195.205 Ibid, p.201.206 Cf. a passagem de "O mal-estar na civilização", onde Freud afirma, decididamente, que a agressividade é algo próprio do humano: "O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão tão dispostas a repudiar, é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. Homo homini lupus." - Freud, S., O mal-estar na civilização [1930], op. cit., p.133.207Freud, S. Por que a guerra? [1933] (1932), op. cit., p.205.

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Em "Por que a guerra?", assim como em outros textos208, Freud refere-se à

questão da agressividade como algo constitutivo, insistindo na irredutibilidade dos

conflitos tanto psíquicos quanto sociais e na necessidade de fundamentá-los no

dualismo inultrapassável das pulsões de vida e de morte. Por isso, desconfia de todas as

doutrinas que prometem a obtenção de um estado sem conflitos, como a religião ou o

comunismo, por exemplo.

Freud emprega algumas vezes o termo "violência", primeiro associada à

agressividade pulsional. A violência teria como causa a satisfação de impulsos

destrutivos. Num segundo momento, ainda em "Por que a guerra?", Freud mostra a

violência como resultante de um "conflito de interesses". Assim, afirma que as guerras

só poderiam ser evitadas por uma "instância suprema", de direito e lei, que funcionaria a

serviço da preservação da comunidade e da vida cultural. Por último, ainda neste texto,

depois de definida repetidamente como inevitável, a violência aparece como

"domesticável" pela ação da civilização, a partir de um "fortalecimento do intelecto" e

da internalização dos impulsos agressivos209.

Assim, podemos entender a partir de Freud que a agressividade, esta sim é uma

força inevitável, própria do humano. Porém, sua descarga sob a forma de violência e

destruição, como ocorre na guerra, por exemplo, talvez possa ser evitada, mesmo que

seja através de frágeis meios.

Sobre o racismo

Seguindo a nossa proposta de pensar a agressividade como uma das reações

possíveis frente ao estranho e, para isso, observando os modos de relação com o

208 Cf., por exemplo, "Reflexões para os tempos de guerra e morte" (1915), "Além do princípio do prazer" (1920), "Psicologia das massas e análise do ego" (1921) e "O Mal-estar na civilização" (1930).209 Cabe notar que em "Por que a guerra?", Freud usa praticamente como sinônimos os termos violência, pulsão de morte, agressividade, ódio, pulsão de crueldade e pulsão de destruição.

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estrangeiro, o racismo se destaca como um fenômeno que não poderíamos deixar de

abordar.

Castoriadis define o racismo como uma exacerbação, uma transformação

especialmente violenta de uma característica quase universal das sociedades - a

incapacidade de se constituir como si mesmo sem excluir o outro e, em seguida, a

incapacidade de excluir este outro sem odiá-lo. Assim, o que vemos é um pensamento

do tipo: "Se eu afirmar o valor de A, devo também afirmar o não-valor de não-A".210

Castoriadis afirma que o racismo é algo mais específico que a pura exclusão da

alteridade, já que nem toda exclusão descamba no racismo. O racismo não só exclui,

mas atribui ao outro uma "essência má". Assim, o autor coloca a questão: por que o que

poderia se manifestar como uma simples afirmação da diferença, ou até mesmo da

superioridade de um diante do outro se torna discriminação, confinamento, ódio,

assassinato? 211

Como especificidade do racismo, este autor ressalta verifica o fato de que ele

não permite que os outros abjurem. O racista não visa a conversão do outro, mas a sua

morte, como se o outro fosse "inconvertível". Logo, vemos a quase necessidade de

escoramento do imaginário racista em características físicas constantes, irreversíveis.

Isto nos leva a pensar que o que o racista evita, a todo custo, é encontrar-se no objeto

excluído.

Como vemos no caso da constituição do "bode expiatório", por exemplo, trata-se

de constituir um estranho, por projeção, assegurando que este permaneça fora. Com

referência ao nazismo, por exemplo, fica claro que, para sua manutenção, era

210 Castoriadis, C. Reflexões sobre o racismo in O mundo fragmentado - As encruzilhadas do labirinto -3, RJ, Paz e Terra, 1992, p.37.211 Ibid, p.34.

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fundamental que os judeus não deixassem de sê-lo. Já uma simples rejeição, não racista,

poderia satisfazer-se com a derrota ou conversão do outro.

Segundo Koltai212 podemos observar que o racismo, como doutrina, surgiu

associado ao discurso da ciência. Apesar de suas pretensões anti-racistas e anti-

nacionalistas, em diversos momentos da história a ciência acabou servindo de

justificativa para aquilo que ela se propôs a combater como, por exemplo, no caso das

teorias acerca da "raça pura ariana". Segundo Koltai, neste sentido o racismo pode até

mesmo ser entendido como uma resposta do sujeito moderno frente à universalização

prescrita pela ciência. Quanto mais o discurso da ciência se exercita no sentido da

uniformização, mais o disforme tende a se manifestar, e o que há de mais disforme e

particular é o próprio gozo.

A partir da reflexão proposta por Julien213, podemos tentar responder à questão:

por que incomoda tanto o fato deste Outro estrangeiro gozar de modo diferente? Porque

ele surge como um "ladrão de gozo". Se ele goza em excesso, como se supõe, é porque

alguém goza de menos. O sujeito moderno está convencido de que o gozo existe e, se

ele não goza, é porque este gozo foi monopolizado por poucos.

Em "Perder de Vista", Pontalis apresenta uma entrevista com um geneticista,

Albert Jacquard, que traz alguns pontos interessantes sobre a questão do racismo e sua

articulação com o discurso científico214.

O cientista começa afirmando que acreditara na ciência como a melhor arma

para lutar contra o racismo. Graças a estudos de geneticistas e etnólogos, mostrava-se a

impossibilidade de definir-se uma raça humana sem arbítrio e ambigüidade. O cientista

212 Koltai, C. Política e psicanálise. O estrangeiro, RJ, Ed. Escuta, 2000, p.117.213 Julien, P. O estranho gozo do próximo, op. cit.214 Pontalis, J.-B. Uma cara que não agrada in Perder de vista, op.cit. Esta entrevista é também citada por Koltai, C. Política e psicanálise. O estrangeiro, op. cit.

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afirma ter pensado que este seria um argumento decisivo: "Vocês falam em raça, mas o

que vem a ser isso?" Assim, acreditou o geneticista, mostrando-se que o conceito de

"raça" não tem fundamento, o racismo deveria desaparecer. Porém, o cientista constata,

perplexo: "E, no entanto, se não existem 'raças', o racismo com certeza existe!" 215

Pontalis compartilha, em parte, da perplexidade do cientista: "O que me

perturba mais, e nisso me alio a você, é que conhecemos relativamente bem os

mecanismos do racismo e, não obstante, continuamos sem influência sobre ele..." As

paixões não cedem à argumentação, os saberes não têm razão frente a uma convicção.

Pontalis afirma que o que lhe parece essencial no racismo é a xenofobia. Porém,

enfatiza: "esse pavor é um fascínio, e portanto, também uma atração." 216 Logo, afirma

que o sentimento de estranheza depende de que este estranho seja também um

semelhante, o que faz pensar na angústia do bebê, por volta dos oito meses, diante de

um rosto que não seja o da mãe. Este rosto não é percebido em sua singularidade, mas

apenas como não sendo o da mãe.

Assim, Pontalis busca pensar onde, em cada um de nós, se inscreveria a origem

de um processo cujo produto final pode ser o racismo. Ressalta que isto não significa

dizer "somos todos racistas", mas sim que a relação com o outro, com o estranho, é

problemática para todos217. Neste sentido, considera importante uma distinção entre

xenofobia e racismo. Xenofobia é um sentimento, um movimento interno, que pode ou

não se traduzir num comportamento. Já o racismo é uma paixão, que se fundamenta

numa doutrina. Não há no racismo uma oscilação entre atração e medo, mas só resta a

convicção do ódio. "Daí haver, nesse sujeito (racista), uma espécie de amor por seu

ódio. O racista separa - 'cliva' - a atração e a rejeição que coexistem, bem ou mal, na

215 Ibid, p.34.216 Ibid, p.35.217 Ibid, p.38.

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xenofobia..." Além disso, afirma: "...o racismo é coisa de grupo, conclama

necessariamente uma violência maciça." 218

Podemos observar que há uma aparente contradição na atualidade, já que grupos

cada vez mais numerosos reivindicam sua identidade cultural, exacerbando as

diferenças, ao mesmo tempo que a tradição humanista visa a considerar nulas as

diferenças. Diante do cientista que lhe pergunta se o homem chegará a superar o medo

do estrangeiro, Pontalis manifesta sua desconfiança, afirmando que o preço a ser pago

por uma "reconciliação geral" poderia ser uma "redução ao homogêneo". A dificuldade,

afirma, é pensar em conjunto, sem apagar um dos termos da contradição: "de um lado, a

manutenção das diferenças, no que elas têm de irredutível... e de outro, a unidade do

gênero humano..." 219

Pontalis se pergunta: "Mas por que deveríamos, afinal de contas, ser todos

idealmente semelhantes, se todos somos, na realidade, diferentes?"220 Afirma que o

racismo, como fenômeno de massa, só poderia ter um fim com a possibilidade de

aceitação de identidades múltiplas, heterogêneas e móveis, e não o triunfo do Um, que é

necessariamente destrutivo.

Porém, este autor nos mostra como um excessivo "relativismo cultural" pode nos

levar mais a uma aceitação passiva de múltiplas identidades culturais do que a uma

verdadeira "experiência do estrangeiro" - que é fecunda no que faz vacilar a certeza, o

excesso de confiança no "próprio" e no "doméstico".

Deste modo, é importante estarmos atentos sobre a possível ingenuidade de um

discurso "politicamente correto" acerca da "igualdade", ou mesmo sobre um simples

"respeito à diferença". Nem todo conflito é destrutivo, mas pode ser também criativo.

218 Ibid, p.40.219 Ibid, p.46.220 Idem.

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Castoriadis221 faz uma crítica importante com relação à ingenuidade do discurso

dos "direitos humanos", afirmando que estes visam, ao mesmo tempo, os direitos iguais

e a diferença radical das culturas. Seguindo este pensamento, como poderíamos julgar

muito daquilo que nos parece inaceitável - ditaduras, genocídios... - já que trata-se de

estruturas históricas diferentes, incomparáveis?

Assim, o discurso dos direitos humanos se apoia na suposição de um "rolo

compressor do 'progresso' que levaria todos os povos à mesma cultura - de fato, a

nossa..."222 Porém, não foi o que ocorreu. Os "outros" assimilaram em parte certos

instrumentos da cultura ocidental, mas não as significações de liberdade, igualdade,

lei... Assim, uma questão que não se poderia deixar de colocar é "o que fazer com as

culturas que rejeitam explicitamente os direitos do homem?" Exemplos como a

extirpação do clitóris em meninas na África, entre outros, não nos deixam passar

indiferentes. Se não dizemos nada, lesamos os direitos do homem. Se dizemos, agride-

se uma cultura, transgredindo o princípio de incompatibilidade das culturas... 223

Bauman observa que atualmente, ao contrário de muitas apologias da "nova

tolerância pós-moderna", ou de seu suposto "amor à diferença", a tendência de exclusão

do estranho se mantém.

Segundo este autor, os tempos atuais estão marcados por uma concordância de

que a diferença não só é inevitável, como é boa, e deve ser cultivada. Porém, esse

discurso pode ser usado inclusive na defesa de ideais racistas, que afirmam que as

221 Castoriadis, C. Reflexões sobre o racismo in O mundo fragmentado - As encruzilhadas do labirinto -3, op. cit., p.39.222 Idem.223 Ibid, p.41.

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diferenças são produtos humanos, culturalmente produzidas, e não devem ser

misturadas, numa tentativa de legitimar a exclusão224.

A partir da questão do Unheimlich, da inquietante estranheza, do estranho mais

familiar, pretendemos discutir se é possível que um conflito seja também produtivo e

não só destrutivo, ao trazer a possibilidade de criação do novo, onde uma fronteira

possa ser mais uma passagem do que uma barreira.

Enfim, resta-nos pensar se é possível um reconhecimento da diferença que não desperte apenas ódio ou angústia mas que, para além de algum altruísmo narcísico ou da identificação imaginária com o semelhante, seja possível um respeito à diferença, viabilizado pela verificação de uma distância do eu a si mesmo e do eu ao outro.

Nosso intuito quanto a estes temas da agressividade, da violência e do racismo, foi apenas de mapear alguns pontos que consideramos importantes como bases para um trabalho futuro. As considerações apresentadas neste capítulo nos levam em direção ao caminho que pretendemos seguir nesta pesquisa, a qual, por ora, acreditamos ter apontado mais questões do que conclusões.

224 Bauman, Z., O mal-estar da pós-modernidade. RJ, JZE, 1998, p.44.

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Considerações finais

Na clínica psicanalítica, vemos que o Unheimlich pode manifestar-se como um

instante de terror, como uma surpresa angustiante, diante da abertura para o vazio que o

enigma aponta. Acreditamos que o estranho, este momento disruptivo que faz vacilar as

fixações imaginárias, também pode ser pensado como abertura para uma possibilidade

de mudança subjetiva.

A partir do instante em que o Heimlich se apresenta como Unheimlich, afetando

o sujeito ao fazê-lo vacilar, acreditamos que é possível, para além da angústia

paralisante, a emergência ou produção de novos significantes. Reconhecer que o

Unheimlich pode ter um aspecto positivo é vislumbrar uma possibilidade de construção

para além desta experiência, construção de novos sentidos para o familiar surgido tão

estranhamente para o sujeito.

Porém, sabemos que o Unheimlich, como fenômeno, não é algo tão freqüente ou bem articulado

na clínica ou em situações cotidianas. Neste sentido, acreditamos que o material que podemos obter com

este estudo não se restringe à compreensão de um fenômeno pontual.

Para além disso, pensamos que o ganho que podemos obter com estas reflexões refere-se a uma

questão ética fundamental: qual a direção de uma análise? Nos termos que trabalhamos aqui, podemos

nos perguntar ainda: qual o destino do estranho numa análise?

Nestes termos, uma análise pode ser concebida como um encontro com a própria

estranheza, onde o sujeito se percebe impelido por algo que lhe é estrangeiro225. Ao

evidenciar o descentramento do eu e seu estatuto de ficção, Freud nos mostra que o

225 Cf. Kristeva, J. Estrangeiros para Nós Mesmos, RJ, Ed. Rocco, 1994.

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sujeito da consciência, tão caro aos filósofos, “não é senhor em sua própria casa", sendo

sede das resistências e fonte de desconhecimento.

Assim, o “Wo es war, soll ich werden”226 pode nos servir como uma indicação

sobre a direção proposta pela psicanálise, se o entendermos como “se fazer sujeito ali

onde não se é”, o que inclui uma possibilidade de familiarização com o estranho mais

íntimo227.

Isto não significa afirmar uma proposta de "tornar consciente o inconsciente", ou

buscar um "fortalecimento do ego". É fato que há sempre algo que escapa, que insiste e

resiste a qualquer apreensão. Porém, é importante pensarmos se este algo que escapa

deve ser necessariamente fonte de horror ou angústia.

É claro que, em psicanálise, não trata-se de extinguir o real, ou esgotá-lo,

pretendendo traduzi-lo em imagens ou palavras, mas sim de abordá-lo a partir do

simbólico, fazendo deste real algo diferente de um inimigo a ser combatido.

Assim, concordamos com Vieira, que afirma que "com o sentimento de

estranheza, descobrimos que a rota para o real não implica nenhuma longa viagem,

pois esta porta se abre para o mais íntimo em nós."228 Vemos que o que retorna como

estranho é o mais intimamente familiar e que "a saída é uma porta que só se abre para

dentro", já que o novo saber que se produz "só se diz nas velhas palavras da língua."229

Com referência àquilo que é visado numa análise, podemos ressaltar a expressão

de Lacan, inspirada na Gaia Ciência de Nietzsche e na Gaia sciensa dos trovadores do

amor cortês. Em "Televisão", Lacan refere-se a um Gaio saber, uma paixão alegre,

226 Freud, S. Conferência XXXI - A Dissecção da Personalidade Psíquica in Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise [1933], op. cit., p.84.227 Além disso, numa análise, trata-se também de poder estranhar aquilo que é mais familiar, como as próprias definições de identidade, por exemplo.228 Vieira, M. A. A ética da paixão, op. cit., p.213. 229 Idem.

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definida como virtude, em oposição à tristeza: "A virtude, que designo por gaio saber

(...) não é compreender, morder no sentido, mas raspá-lo o máximo possível sem que

ele se torne um engodo para essa virtude, para tal, gozar do deciframento ..."230

O gaio saber é associado ao avesso do sentido, sendo oposto à compreensão.

Trata-se de algo próximo ao exercício lúdico do deciframento, correspondendo à alegria

que decorre de uma certa leveza no exercício do saber. Logo, significa a satisfação do

sujeito que encontra, graças ao seu dizer, um mapeamento da sua própria estrutura.

Segundo Vieira este gaio saber, proposto por Lacan, assim como o entusiasmo,

pode ser pensado com relação ao final de análise: "O entusiasmo é uma nova maneira

de responder ao real, que não se reduz à atribuição de sentido."231 "Entusiasmo de

perceber que há um fim e que este fim é abertura. Entusiasmo ligado ao vislumbre

desta abertura além dos limites imaginários, liberação, angústia e incomensurável

obrigação de circunscrevê-la a partir de um saber incessantemente inventado." 232

Segundo Souza:

“Pudesse este (o sujeito) acolher o efêmero, admitir a transitoriedade de todas as coisas, abraçar o nômade em sua transição fugaz, pudesse o sujeito dizer sim ao estrangeiro, esse passageiro da diferença, e o estranho haveria de se conjugar, não com a inquietude, desalento, dor e medo, paixões tristes, mas aliar-se com a alegria do novo, com a afirmação do múltiplo, afirmação trágica do plural, do diferente. Só assim o estranho viria a se definir como afirmação alegre da diferença (...)” 233

É neste sentido que acreditamos ser possível um encontro do sujeito com a sua

própria estranheza, para além do horror. A psicanálise nos permite pensar a estranheza

que há em nós mesmos, talvez como a única maneira de não acossá-la do lado de fora.

O estranho está em mim, portanto, somos todos estrangeiros.

230 Lacan, J. Televisão [1974], RJ, JZE, 1993, p.45.231 Vieira, M. A. A ética da paixão, op. cit., p.226. 232 Ibid, p.228.233 Souza, N. S. O Estrangeiro: nossa condição in C. Koltai (org), O Estrangeiro, SP, Ed. Escuta, 1998, p.163.

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A figura do estrangeiro pode nos servir ainda para pensar acerca do próprio lugar

do analista. Fédida, acerca do dispositivo analítico, descreve o "sítio do estrangeiro"234,

como aquilo que "abre para a fala". Se o analista é levado a se afastar deste sítio, se ele

responde, numa concessão à comunicação interpessoal, então aniquila-se a relação

necessária estranho/íntimo, e fala e escuta tornam-se familiares: "Toda familiarização

do representável no pensamento implica em re-simetrizar a situação analítica (e,

portanto, em aboli-la) na crença da 'relação interpessoal'." 235

Aulagnier lembra a importância de que seja possível, em análise, o "prazer do

novo" e para isso é fundamental que o analista não imponha ao sujeito "um

equacionamento pré-estabelecido, pré-conhecido, pré-dirigido, de seu próprio mundo

psíquico"236, como se isso fosse possível.

A autora critica um certo tipo de analista cuja "única tarefa consistirá em

demonstrar-lhe (ao analisando) que todo esse barulho não existia senão para ocultar

uma história conhecida desde sempre - aquela que Sófocles contava..."237. Afirma que

"não pode haver aí realização do projeto analítico", a não ser que analista e analisando

assumam o risco do novo, de que possa surgir algo que coloque em questão seus

conhecimentos mais seguros, e isso vale para ambos. Neste sentido, é fundamental que

haja uma certa aceitação do desamparo para que seja possível abrir espaço para o novo,

que é sempre imprevisível.

Neste ponto, seguindo o mesmo modo de articulação com a literatura que

mantivemos ao longo desta dissertação, podemos nos remeter a um conto que nos

parece mostrar uma possibilidade de abertura para o novo, de criação a partir de um

234 Cf. Fédida, P. O sítio do estrangeiro. SP, Ed. Escuta, 1996.235 Fédida, P. Clínica psicanalítica: estudos. SP, Ed. Escuta, 1988, p.81.236 Aulagnier, P. Um intérprete em busca de sentido - I. SP, Ed. Escuta, 1990, p.273.237 Ibid, p.274.

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estranhamento, onde este não permanece apenas como fonte de angústia ou

agressividade.

"O Espelho"238, de Guimarães Rosa, trata de um fenômeno de perda da própria

imagem diante do espelho semelhante àqueles que observamos nos capítulos anteriores,

principalmente em "O Horla", de Maupassant e em "O Espelho", de Machado de Assis.

Porém, acreditamos que este conto de Guimarães Rosa mostra um destino diferente a

partir de um mesmo impasse.

Este conto, narrado na primeira pessoa, inicia-se com um desafio ao suposto

saber da ciência: "O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha idéia

do que seja na verdade - um espelho?"239

Numa língua própria, de riqueza sem igual, o narrador nos apresenta seu

conhecimento acerca dos espelhos e da nossa dificuldade de perceber a sutileza dos

fenômenos a ele relacionados240.

"E os próprios olhos, de cada um de nós, padecem viciação de origem, defeitos com que cresceram e a que se afizeram, mais e mais. Por começo, a criancinha vê os objetos invertidos, daí seu desajeitado tactear; só a pouco e pouco é que consegue retificar, sobre a postura dos volumes externos, uma precária visão. Subsistem, porém, outras pechas, e mais graves. Os olhos, por enquanto, são a porta do engano; duvide deles, dos seus, não de mim. Ah, meu amigo, a espécie humana peleja para impor ao latejante mundo um pouco de rotina e lógica, mas algo ou alguém de tudo faz frincha para rir-se da gente..." 241

Conta que sempre, desde menino, temia os espelhos, "por instintiva suspeita".

Lembra os receios dos antigos, as superstições e as crenças daqueles que lhe cercavam

na sua infância, no interior. Porém, estes mesmos espelhos temidos não deixavam de

interessá-lo, despertando sua curiosidade: "Satisfazer-me com fantásticas não-

238 Rosa, J. G., O Espelho [1962] in Primeiras Estórias. RJ, Ed. Nova Fronteira, 1988.239 Ibid, p.65.240 Toda tentativa de recontar uma história contada por Guimarães Rosa traz uma perda inevitável da riqueza de suas palavras, de sua escrita particular, mas tentamos transcrevê-lo ao máximo. 241 Rosa, J. G. O Espelho. Op. cit., p.66.

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explicações? - jamais. Que amedrontadora visão seria então aquela? Quem o

monstro?" 242

Narra então um primeiro episódio de estranhamento da própria imagem, quando

era ainda "moço, comigo contente, vaidoso". "Descuidado", deparou-se com dois

espelhos que faziam jogo:

"E o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era - logo descobri... era eu, mesmo!" 243

A partir deste estranhamento da própria imagem, ao invés de recuar, o

personagem se lança numa longa experiência:

" Desde aí, comecei a procurar-me - ao eu por detrás de mim - à tona dos espelhos (...) Quem se olha em espelho, o faz partindo de preconceito afetivo (...) O que se busca, então, é verificar, acertar, trabalhar um modelo subjetivo, preexistente; enfim, ampliar o ilusório, mediante sucessivas novas capas de ilusão. Eu, porém, era um perquiridor imparcial, neutro absolutamente. O caçador de meu próprio aspecto formal (...) "244

Convencido de que isso seria possível, leva meses nessa busca, que denomina

"científica", tentando penetrar no "disfarce do rosto externo" para submetê-lo a um

"anulamento perceptivo" dos diversos componentes que o constituem, subtraindo da

imagem especular cada um de deus traços.

Sua técnica incluía "toda sorte de astúcias": "o rapidíssimo relance, os golpes

de esguelha, a longa obliqüidade apurada, as contra-surpresas, a finta de pálpebras, a

tocaia com a luz de-repente acesa os ângulos variados incessantemente".245

242 Ibid, p.67.243 Idem.244 Ibid, p.68.

245 Idem.

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Olhos contra os olhos, percebe que só estes paravam imutáveis, "no centro do

segredo". "Porque o resto, o rosto, mudava permanentemente".

Insiste em atravessar aquilo que denomina uma "máscara", acreditando que para

além desta, ao "devassar o núcleo dessa nebulosa", encontraria a sua "vera forma".

Com este intuito, tenta submeter cada um dos traços de seu rosto a um "bloqueio

visual", "aprender a não ver".

O primeiro destes traços por ele identificado e subtraído foi sua "semelhança

animal" com o que chamou de "sósia inferior" - a onça. O principal método utilizado

para subtrair estes traços, conta, era o "modus de focar, olhar não-vendo". Pouco a

pouco, sua figura começava a reproduzir-se lacunar.

Num segundo momento, subtrai o "elemento hereditário - as parecenças com os

pais e avós" e, em seguida, "o que se deveria ao contágio das paixões", "o que, em

nossas caras, materializa idéias e sugestões de outrem" e, ainda, "os efêmeros

interesses".

"À medida que trabalhava com maior mestria, no excluir, abstrair e abstrar,

meu esquema perceptivo clivava-se, em forma meândrica, a modos de couve-flor ou

bucho de boi, e em mosaicos, e francamente cavernoso, como uma esponja. E

escurecia-se"246. O resultado inquietou-o a tal ponto que abandonou suas investigações,

passando meses sem olhar-se em espelhos.

Quando afinal, um dia, voltou a mirar-se: "Simplesmente lhe digo que me olhei

num espelho e não me vi. Não vi nada. Só o campo, liso, às vácuas, aberto como o sol,

água limpíssima, à dispersão da luz, tapadamente tudo." 247

246 Ibid, p.70.247 Idem.

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Perplexo, conta aquilo que mais lhe estarreceu: não via os próprios olhos, "no

brilhante e polido nada, não se me espelhavam nem eles!" Despojara-se, "até a total

desfigura".

"E a terrível conclusão: não haveria em mim uma existência central, pessoal, autônoma? Seria eu um... des-almado? Então, o que se me fingia de um suposto eu, não era mais que, sobre a persistência do animal, um pouco de herança, de soltos instintos, energia passional estranha, um entrecruzar-se de influências, e tudo o mais que na impermanência se indefine?"248

Ao deparar-se com este nada o personagem se angustia, e empenha-se na busca

por alguma transcendência. Perseguindo esta idéia de que há algo por trás, oculto, a ser

descoberto, depara-se com o fato de que "no fundo", "por trás", não há nada. Ou melhor:

"há nada". Assim, conta que durante muito tempo nada via.

Porém, anos mais tarde, ao fim de uma ocasião de grandes sofrimentos, numa

época em que já amava, "já aprendendo, isto seja, a conformidade e a alegria", só

então, só depois: "o tênue começo de um quanto como uma luz, que se nublava, aos

poucos tentando-se em débil cintilação, radiância." E então pôde reencontrar, no

espelho:

"Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto - quase delineado, apenas -mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só." 249

Apesar de empenhar-se na busca por uma alma transcendente, para além da

imagem, o que encontra é o nada por trás do eu. Porém, diante desse nada, inventa,

nomeando-o.

248 Ibid, p.71. Neste ponto, lembramos a passagem onde Lacan afirma: "Quando o homem, buscando o vazio do pensamento, avança para o lampejo sem sombras do espaço imaginário, abstendo-se até mesmo de esperar o que daí irá surgir, um espelho sem brilho mostra-lhe uma superfície em que nada se reflete." - Lacan, J. Formulações sobre a causalidade psíquica [1946] in Escritos, op. cit., p.189.249 Rosa, J. G. O Espelho, op. cit., p.72.

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Assim, diferentes nomes são criados para designar aquilo de novo que vê

emergir na superfície do espelho. Mais adiante, o narrador observa o fato de

"precisarem de toque e timbre novos, as comuns expressões, amortecidas..."250

Neste sentido, podemos observar que a riqueza da linguagem de Guimarães

Rosa está justamente na criação, que inclui esta invenção de neologismos onde as

palavras recriadas ganham força e significados novos.

Por fim, a simples pergunta - "Você chegou a existir?" - é respondida

afirmativamente, porém mantendo seu ponto de interrogação - "Sim?"251

Assim, entendemos que a criação desses novos nomes permitiram a esse sujeito

uma nova existência, numa abertura que mostra a possibilidade de re-invenção

permanente de novos sentidos, já que sentido último não há. Não é por acaso que

termina por responder afirmativamente à questão - "Você chegou a existir?"

Retomando os contos que observamos ao longo deste trabalho, podemos notar

que os textos de Hoffmann, Machado de Assis, Maupassant, Poe e Guimarães Rosa

mostram diferentes vias seguidas pelo sujeito a partir de um impasse que inclui uma

estranha sensação de despersonalizarão.

Aquilo que chamamos de "diferentes destinos do estranho" - o recobrimento por

uma identidade, a angústia paralisante, a agressividade e a possibilidade de abertura

para o novo - podem não se apresentar claramente distintos, mas combinados, ou de

modo sucessivo. Observamos que, em geral, o primeiro momento de estranhamento

coincide com a angústia mas, a partir daí, alguns caminhos são possíveis.

250 Idem.251 Idem.

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Em "O Homem da Areia" vimos que Natanael, no alto da torre, é tomado por

uma angústia terrível que o leva a atirar-se no vazio. Em "O Horla", o sujeito também é

tomado pela angústia ao deparar-se com o desvanecimento de sua imagem diante do

espelho. Horrorizado, explode sua propriedade, apontando no fim para uma perspectiva

de pôr fim à própria vida, mostrando seu aniquilamento enquanto sujeito.

"O Horla", de Maupassant e "William Wilson", de Poe, tratam de manifestações

do duplo. Ambos referem-se a um sujeito acossado por uma presença estranha, incapaz

de reconhecê-la como parte de si. Em "O Horla", o duplo é assim designado por um

grito que vem de fora, algo que é exterior ao sujeito, incapaz de apropriar-se deste ser.

No conto de Poe a agressividade manifesta-se como uma tentativa de afastar a íntima

familiaridade da estranheza. O estranho é depositado fora, como um outro externo que

seria passível, e merecedor, de ser exterminado.

"O Espelho", de Machado de Assis, mostra um sujeito que se conduz a reforçar

sua identificação a uma imagem - o alferes - o que lhe confere identidade e

reconhecimento, apaziguando sua angústia, recobrindo a estranheza, temporariamente.

Este fechamento imaginário impede um deslizamento e mantém o sujeito preso a uma

só possibilidade de existir. Lembramos aqui da condição de um sujeito que chega em

análise, colado a uma identidade - "eu sou um fracassado", por exemplo - discurso que

uma análise fará vacilar.

Já "O Espelho" de Guimarães Rosa, apesar de ter o mesmo título do conto acima

mencionado, mostra uma saída diferente a partir da perda da própria imagem. Aqui

vemos o estranhamento funcionar como ponto de partida para uma abertura para o novo,

para a possibilidade de emergência e criação de novos sentidos, o que nos faz pensar no

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destino de uma análise, que faz vacilar as significações fechadas e completas para que o

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