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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO E MEIO AMBIENTE
NIVEL MESTRADO
MARY LOURDES SANTANA MARTINS
RIOS, ESTUARIOS E MANGUES: A MULHER NA PESCA ARTESANAL
SÃO CRISTÓVÃO / SE FEVEREIRO/ 2013
MARY LOURDES SANTANA MARTINS
RIOS, ESTUARIOS E MANGUES: A MULHER NA PESCA ARTESANAL
Dissertação apresentada por Mary Lourdes Santana Martins em 25 de fevereiro de 2013 à banca examinadora constituída pelos doutores: Prof. Dr. Ronaldo Gomes Alvim Universidade Federal de Sergipe - Orientador Prof. Dr. Cristiano Wellington Noberto Ramalho Universidade Federal de Sergipe – Coorientador Profa Dra. Lígia Albuquerque de Melo Fundação Joaquin Nabuco (FUNDAJ) – Examinadora externa Profa. Dra. Maria José Nascimento Soares Universidade Federal de Sergipe – Examinadora interna
SÃO CRISTÓVÃO/SE FEVEREIRO/ 2013
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
Martins, Mary Lourdes Santana
M386r Rios, estuários e mangues: a mulher na pesca artenasal / Mary Lourdes Santana Martins; orientador Ronaldo Gomes Alvim. –
São Cristóvão, 2013. 140 f. : il. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente)–Universidade Federal de Sergipe, 2013.
O 1. Pesca artesanal. 2. Mulheres – Condições sociais. 3.
Itaporanga D’Ajuda (SE). I. Alvim, Ronaldo Gomes, orient. II. Título.
CDU: 639.21-055.2(813.7)
A minha querida irmã Ana Karina Santana Martins, e ao meu amado pai William de Oliveira Martins
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus por me conceder a graça de conviver com pessoas/anjos cuja simples
presença em minha vida contribuiu direta ou indiretamente para a concretização deste
trabalho.
A painho pelo constante incentivo para percorrer e ultrapassar os meandros da vida
pessoal e acadêmica. A minha mãe pelo apoio durante esta empreitada.
A minha irmã Karina pela companhia, paciência, palavras de conforto durante os
inúmeros momentos de angústia, apreensão e insegurança, e por ter lido meu trabalho “500
vezes”!! rsrs.
A todos os meus sobrinhos, em especial Mellyssa por ter feito o levantamento dos pontos
de pesca para a elaboração do mapa, e Laryssa por compreender minhas ausências e meus
momentos de impaciência e stress.
Ao Prof. Orientador Ronaldo Gomes Alvim, por me acolher, pela confiança depositada e
pelas constantes palavras de incentivos.
Ao Prof. Coorientador Cristiano Ramalho pela partilha generosa de conhecimentos que
contribuíram para a compreensão da complexidade que envolve o universo da pesca.
A Profa. Maria José Nascimento Soares toda a minha gratidão por ter me proporcionado
a oportunidade de fazer ciência, quando lá em 2007, me aceitou como bolsista no Programa
de Iniciação Científica. Essa conquista é com certeza produto desses anos de trabalho, nos
quais partilhou de forma generosa o saber necessário à arte da ciência.
Aos colegas da Turma Prodema 2011, cujas conversas e risadas contribuíram para que o
mestrado se constituísse uma experiência mais leve e menos traumática.
Agradeço de modo especial às meninas do “quarteto fantástico” (Ana Bárbara, Mel,
Camila e Mariana) pelo companheirismo, atenção e carinho. E, ao nobre colega Roberto
Wagner a quem recorri tantas vezes para me socorrer durante os sufocos da informática,
sobretudo, agora na etapa final.
A Andrea e a Camilinha pela amizade, consideração e carinho de sempre, e pelo esforço
e preocupação em tentar recuperar o meu arquivo. Camilinha, a você sou muitíssimo grata
também por ter me emprestado a 4ª, 5ª e a 7ª temporadas da série Grey´s Anatomy, cujos
episódios constituíram-se em santo remédio para me livrar dos pesadelos com a dissertação
rsrsrs.
A Profa. Roseane Gomes por dedicar seu tempo para tirar minhas dúvidas, indicar
material e ouvir minhas angústias.
A minha amiga/irmã/psicóloga Roseli, a quem serei eternamente grata por se fazer
presente e paciente, ouvindo meus desabafos e anseios, pelas palavras de encorajamento e por
me ajudar a manter a sanidade rsrs.
As amigas Joelma, Juciara e Nayara pelo apoio de sempre. A Sérgio por ter recuperado
meu arquivo corrompido.
Aos motoristas Sr. José dos Anjos, Sr. Gilmar, Sr. Paulo Pita por me conduzirem com
segurança e tranquilidade nas viagens à Itaporanga. Agradeço de modo especial ao Sr.
Amaral, pois, além de me conduzir com segurança, também me proporcionou ótimos
momentos de descontração, diminuindo assim a tensão das primeiras visitas a campo.
A todo pessoal da secretaria Aline, D. Julieta e os bolsistas (Val, Wanderson, Luzia,
Amanda, Jenifer e Janiele) pela atenção e presteza.
As pescadoras da Comunidade Ilha do Beto, que com coragem e determinação lançam-se
rio adentro, e ao margearem os rios, estuários e mangues transformam o dificultoso e
desafiador cotidiano da pesca, numa experiência bela, alegre e sábia. Agradeço de modo
especial a D. Vera, por ter me acolhido com afeto, apresentando-me à comunidade
possibilitando o desenvolvimento deste trabalho. A D. Fátima, aos meninos Kiko e Marcos, e
aos pescadores Zé Neri e Flodoaldo por facilitar meu acesso a Ilha.
A CAPES, pela concessão da bolsa de estudo.
Minha profissão é muito importante, foi o serviço que aprendi.
Eu sinto prazer de ser pecadora! Eu acredito que trabalho nenhum envergonha a gente
Eu me sinto orgulhosa da minha profissão, sou digna daquilo que faço! (Pescadoras da Ilha do Beto. Itaporanga D´Ajuda/SE)
RESUMO
A pesca constitui uma das atividades produtivas mais antigas do mundo que ao longo do tempo foi realizada predominantemente por homens. A participação feminina neste setor ocorreu inicialmente de forma indireta, quando à mulher cabia a responsabilidade do beneficiamento e comercialização do pescado, a confecção e reparo dos instrumentos utilizados pelo homem para a realização da atividade. As dificuldades socioeconômicas que permeiam o cotidiano das comunidades que sobrevivem da exploração dos recursos pesqueiros constituem fatores determinantes para a inserção da mulher de forma direta na pesca. Assim, elas ocupam as margens de rios, estuários e mangues trabalhando diretamente na captura de peixes, moluscos e crustáceos para atender as necessidades de sobrevivência de suas famílias. Desta forma, a participação feminina na aludida atividade constitui uma alternativa de subsistência, fonte de trabalho e renda para inúmeras famílias em todo o país. Todavia, a atuação da mulher neste universo ocorre, com algumas exceções, num contexto de invisibilidade e desvalorização do seu trabalho, entendido como extensão das tarefas domésticas e não como pesca propriamente. Essa realidade suscitou o interesse em desenvolver um estudo, cujo objetivo principal foi analisar a importância e as atribuições da mulher na pesca artesanal, numa comunidade denominada Ilha do Beto situada município de Itaporanga D´Ajuda/SE. Além disso, a presente pesquisa buscou também investigar os significados que as pescadoras atribuem ao lugar de vida e trabalho, haja vista a íntima relação que o cotidiano da pesca proporciona. Para alcançar os objetivos propostos, a metodologia utilizada fundamentou-se na abordagem qualitativa, que se propõe não apenas descrever, mas, sobretudo analisar e compreender a realidade dos sujeitos pesquisados. Foram também adicionados à estrutura metodológica, pressupostos da história oral e aspectos da abordagem etnográfica. O desenvolvimento da pesquisa no campo empírico ocorreu mediante trabalho de campo com a realização de entrevistas semiestruturadas, conversas informais, observação direta, turnê guiada, registro fotográfico e georreferenciamento. A realização deste trabalho permitiu identificar quão importante e singular é a atuação da mulher nesta atividade, cujo envolvimento e participação não estão limitados simplesmente a uma “ajuda”. As pescadoras que compuseram a amostragem desta pesquisa reconhecem que o trabalho desempenhado na pesca, é tão essencial quanto àquele realizado por seu companheiro, contribuindo significativamente para a formação da renda familiar. Ademais, no que se refere à relação das pescadoras com o lugar, pôde-se constatar que a Ilha do Beto corresponde não somente ao local onde é possível atender as necessidades de trabalho e renda, mas também o lugar onde são estabelecidas importantes relações sociais e afetivas entre os indivíduos, e entre estes e o entorno. Palavras-Chave: Pesca artesanal, mulher, lugar.
ABSTRACT
Fishing is one of the oldest productive activities of the world over time was done mainly by men. Female participation in this sector was initially indirectly, when the woman fell to the responsibility of processing and marketing of fish, the manufacture and repair of instruments used by man for that activity. The socioeconomic difficulties that pervade the daily lives of communities that survive the exploitation of fishing resources are decisive factors for the inclusion of women directly in fishing. Thus, they occupy the margins of rivers, estuaries and mangroves working directly in the capture of fish and shellfish to meet the survival needs of their families. Thus, female participation in the activity provides an alternative livelihood source of employment and income for many families across the country. But the role of women in this universe occurs with some exceptions in the context of invisibility and devaluation of their work, understood as an extension of domestic chores and not as fishing itself. This reality has stimulated the development of this study, whose main objective was to analyze the importance and responsibilities of women in fishing, a community named Ilha do Beto municipality located Itaporanga D'Ajuda / SE. Furthermore, this study also sought to investigate the meanings that attach to the fisherwomen place of life and work, given the close relationship that provides daily fishing. The methodology used in the study is based on a qualitative approach, which aims not only to describe, but to analyze and understand the reality of the people surveyed. The methodological structure still relied on assumptions of oral history and ethnographic research. The development of empirical research in the field occurred with the realization of semi-structured interviews, informal conversations, direct observation, guided tours, photographic recording and georeferencing. This work identified the importance and uniqueness of female engagement in this activity, whose involvement and participation are not limited simply to a "help". The fishers who participated in this study recognize that the work performed in fishing, is as essential as the one held by her husband, contributing significantly to the formation of family income. Moreover, it was found that the Island Beto corresponds not only to the place where you can meet the needs of work and income, but also the place where important personal relationships are established between individuals, and between them and the environment.
Keywords: Small-scale fishing, woman, place.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Imagem 1 Vila de Pescadores 28
Imagem 2 Reunião para apresentação da pesquisa para a comunidade de pescadores
31
Imagem 3 Conversa informal com as pescadoras na comunidade 31
Imagem 4 Colônia de Pescadores 78
Imagem 5 Redinha utilizada para a captura de peixe e camarão. 90
Imagem 6 Espécie de peixe pequena capturada com petrecho de garrafa pet 91
Imagem 7 Instrumento fabricado com garrafa pet e arame 91
Imagem 8 Tarrafa 91
Imagem 9 Rede de cacear 91
Imagem 10 Grozeira 91
Imagem 11 Ratoeira 92
Imagem 12 Pescadora demonstrando utilização do facão. 92
Imagem 13 Planta Pneumatofita 92
Imagem 14 Captura do sururu. 93
Imagem 15 Captura do sururu. 93
Imagem 16 Estratégia para evitar que a água invada o barraco durante a maré grande
98
Imagem 17 Momento de pausa para descanso e refeição 100
Imagem 18 Maçunim após a coleta 101
Imagem 19 Maçunim após retirada do casco 101
Imagem 20 Posições para a coleta do Maçunim 101
Imagem 21 Posições para a coleta do Maçunim 101
Imagem 22 Posições para a coleta do Maçunim 101
Imagem 23 Pescadoras migrando para áreas secas 102
Imagem 24 Pescadoras capturando molusco com a maré enchendo 102
Imagem 25 Cozimento do maçunim 103
Imagem 26 Mulheres desmiolando pescado no quintal dos barracos 103
Imagem 27 Mulheres desmiolando pescado na frente dos barracos 103
Imagem 28 Armazenamento em isopor com gelo para conservação do pescado 104
Imagem 29 Demonstração da diversidade de pescado capturado 106
Imagem 30 Rio Vaza Barris 110
Imagem 31 Pescado a ser separado pelas pescadoras 110
Imagem 32 Separação do pescado 110
Imagem 33 Camarão após processo de separação 110
Imagem 34 Busca da lenha 112
Imagem 35 Mulheres separando e cortando a lenha 112
Imagem 36 Mulheres colocando a lenha no barco para retornar à Ilha 112
Imagem 37 Outros produtos encontrados durante a extração da lenha 113
Imagem 38 Ponto de captação de água. 113
Imagem 39 Demonstração do transporte da água. 113
Imagem 40 Imagens da Ilha do Beto 115
Imagem 41 Paisagens que circundam a Ilha do Beto 117
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 Demonstrativo dos povoados que tem relação com a pesca no município de Itaporanga D´Ajuda/SE.
77
Quadro 2 Demonstrativo das espécies de pescado, ambiente e instrumentos utilizados para a captura.
90
Quadro 3 Demonstrativo das Localidades do pescado na região 94
Quadro 4 Demonstrativo dos valores de pescado 105
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Mapa do Município de Itaporanga D´Ajuda 24
Figura 2 Mapa dos principais pontos de pesca 95
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 Distribuição das pescadoras por faixa etária 82
Gráfico 2 Pescados priorizados pelas mulheres 89
Gráfico 3 Destino do Pescado 104
SUMÁRIO
Introdução 21
Mulheres na pesca artesanal: primeiras notas 21
1 Um olhar sobre o surgimento da pesquisa 24 1.1 Construto Metodológico 29
1.2 Análise dos dados 33
2 Pescando conhecimentos: tecendo as bases teóricas 37
2.1 Origem e peculiaridades da atividade pesqueira 37
2.2 Aspectos Gerais da atividade pesqueira em Sergipe 41
2.3 Territórios da pesca: espaços de sobrevivência, conhecimentos e sociabilidade
44
2.4 As condições objetivas e subjetivas da pesca artesanal 46
2.5 Comunidades Pesqueiras e o universo da pesca: relações e desafios 50
2.6 Da terra ao mar: a dimensão espacial do trabalho feminino na pesca 53
2.7 O ingresso da mulher na pesca: diferentes razões 55
2.8 A mulher no universo da pesca: da invisibilidade ao protagonismo 59
2.9 A relação da mulher com o entorno socioambiental 63
2.10 A categoria de análise “lugar” e seu contributo para compreensão das interações com o ambiente
65
2.11 A concepção de lugar segundo a Geografia Humanista 69
3 A pesca artesanal na Ilha do Beto: capturando a essência do trabalho feminino
75
3.1 Aspectos históricos da pesca em Itaporanga D‟ Ajuda 76
3.2 A participação da mulher na pesca em Itaporanga 80
3.3 As pescadoras da Ilha do Beto: Quem são elas? 81
3.4 A pesca e seus significados: o que dizem as pescadoras da Ilha do Beto 86
3.5 Características da pesca na Ilha do Beto 89
3.6 Localização dos Pontos de Pesca 94
3.7 A Dinâmica de pesca na Ilha do Beto 96
3.8 Colheres, facão, baldes e cestos: rumo à coleta do maçunim 100
3.9 Redes na maré: os desafios da pesca noturna 106
3.10 Além da pesca, outras ocupações das mulheres: Água e Lenha 112
3.11 Entre rios, estuários e mangues: Um Lugar chamado Ilha do Beto 115
3.12 A história do lugar: com a palavra as pescadoras 117
3.13 Vivenciando a Ilha do Beto: conhecendo a realidade 120
4 Costurando e arrematando fios: as considerações da pesquisa 125
5 Referências 128
6 Apêndices 135
Os Barcos Nos barcos estavam aqueles (as)
que tinham a missão de manter a casa
de trazer o sustento e a comida
(Autor desconhecido)
21
INTRODUÇÃO
MULHERES NA PESCA ARTESANAL: PRIMEIRAS NOTAS
No Brasil, o reconhecimento das mulheres como trabalhadoras da pesca é considerado
um fenômeno relativamente novo. Uma das explicações reporta-se ao período histórico de
criação das colônias, no início do século passado, sob a organização da Marinha a qual “[...]
não admitia mulheres em seu quadro, não sendo concedido às pescadoras o direito de se
cadastrarem” (LEITÃO, at all, 2009, p. 2). A efetivação das mulheres como profissionais
neste setor, ocorreu somente duas décadas após a Constituição de 19881. Foi por meio da Lei
nº 11.959, que os direitos das pescadoras artesanais equipararam-se aos dos homens
(ALBUQUERQUE, 2012).
A inserção da mulher neste universo resulta de contextos socioeconômicos distintos,
como apontam os estudos de Ramalho (2006) e Woortmann (1992). Entretanto, observa-se
que as diferentes literaturas que discutem a atuação da mulher nesta atividade, abordam uma
diversidade de aspectos importantes para a análise e compreensão acerca das condições
profissionais de vida deste grupo social.
Maneschy e Álvares (2011), por exemplo, ao analisarem as comunidades pesqueiras
litorâneas das regiões Norte e Nordeste, identificaram que a participação feminina neste setor,
ocorre mediante precariedade, baixa renda e exclusão dos direitos previdenciários e sociais,
condições igualmente observadas por Lima (2003). A este respeito, Motta–Maués (1999)
acrescenta que comumente suas atividade não são reconhecidas como pesca, por passarem
mais tempo em terra, assim como o produtos que capturam não são considerados pescados.
Outro fator referente à realidade da identidade profissional das pescadoras é apresentado por
Martins (2005), ao verificar que as atividades femininas são vinculadas ao homem, nesta
perspectiva suas tarefas são vistas como auxiliares dos companheiros, associadas às tarefas
domésticas.
1 Com a promulgação da Constituição Federal do Brasil de 1988, artigo 195, a profissão de pescador artesanal é legitimada, incluindo essa categoria no sistema de seguridade social (ALBUQUERQUE, 2012).
22
Se por um lado as realidades aqui explicitadas apontam para uma fragilidade da
identidade profissional das pescadoras em razão do não reconhecimento e da invisibilidade de
suas funções, por outro, observa-se uma notável emergência da presença feminina neste setor.
Seja trabalhando diretamente na extração e captura do pescado, ou no beneficiamento e
comercialização destes produtos.
A inserção da mulher na pesca possibilita não somente a produção de alimento e
geração de renda para sua família. Mas, também a manutenção da própria atividade pesqueira
mediante manipulação dos recursos, introdução dos filhos e transmissão de conhecimentos,
apesar das condições adversas enfrentadas na profissão.
É neste contexto de participação e atuação da mulher na atividade pesqueira que se
insere a implementação da presente pesquisa, cujo objetivo consiste em analisar o papel das
pescadoras da cidade de Itaporanga D´Ajuda/SE, bem como os significados atribuídos ao
lugar de vivência e trabalho.
Neste sentido, a proposição deste estudo consiste não somente em investigar as
necessidades e os desafios advindos da atividade pesqueira para a mulher. Sua realização
busca também verificar os significados, as características e a importância que as pescadoras
atribuem ao lugar de vivência e trabalho. A abordagem do Lugar neste estudo é orientada pela
Corrente Geográfica Humanista, cujo Lugar constitui o conceito mais relevante, e por seus
fundamentos considerarem os aspectos da subjetividade e da afetividade humana para
apreensão desta categoria.
O universo deste estudo é a Ilha do Beto, uma comunidade de pescadores localizada
no Povoado Nova Descoberta, em Itaporanga D`Ajuda/SE. A Ilha constitui o espaço para
onde as pescadoras se deslocam para a realização da pesca artesanal, principal fonte de renda
e trabalho para as famílias que ali se encontram. O lugar aqui evidenciado, além de
possibilitar a realização da atividade pesqueira, constitui um local em que se processam
relações sociais e um modo de vida particular, caracterizado por ralações de parentesco,
amizade e vizinhança, fatores determinantes para o acesso e permanência de alguns
moradores neste local.
A realização do presente estudo se justifica em razão da carência de estudos científicos
acerca das mulheres no exercício da atividade pesqueira no Estado de Sergipe, bem como pela
necessidade de analisar seu papel na pesca artesanal. Sua implementação considera-se
23
pertinente, pois contribuirá para as discussões acerca da relação da mulher com o seu entorno
socioambiental.
24
CAPÍTULO - 1
1. UM OLHAR SOBRE O SURGIMENTO DA PESQUISA
A pesca constituiu-se uma atividade que ao longo do tempo foi desempenhada
exclusivamente por homens, todavia, esta característica há muito vem sendo modificado
graças à participação do gênero feminino neste setor. É cada vez maior o número de
mulheres que ocupam as margens de rios, estuários e mangues trabalhando diretamente na
captura de crustáceos e moluscos, além de atuarem no beneficiamento dos produtos e na
confecção e reparo dos apetrechos de pesca.
Todavia, apesar de sua importante atuação neste setor, a literatura consultada para a
fundamentação deste estudo, com algumas exceções aponta para a existência de atribuições
ocupacionais distintas entre homens e mulheres. Devido a esta divisão sexual do trabalho, em
algumas comunidades as tarefas incumbidas à mulher são entendidas como secundárias.
O expressivo número de mulheres que atuam na pesca artesanal é uma realidade
também encontrada em Sergipe. Nesta perspectiva, surge o interesse em realizar um estudo
com a finalidade de revelar o papel desempenhado pelas pescadoras do município de
Itaporanga D´Ajuda, situada no litoral sul do Estado, distante 30 km da capital (Figura 1).
Figura 1: Mapa do Município de Itaporanga D´Ajuda Fonte: Secretaria de Planejamento do Estado de Sergipe (SEPLAG).
25
O município encontra-se inserido entre três Bacias Hidrográficas, a saber: a do Rio
Vaza-Barris que corresponde a drenagem principal, e uma das mais importantes bacias do
território sergipano; a do Rio Sergipe e a do Rio Piauí (BONFIM et al, 2002). A região
caracteriza-se pela presença de ecossistemas2 como Mata Atlântica, restingas, manguezais,
campos alagados e a praia da Caueira.
Por abrigar este importante conjunto de ecossistemas, Itaporanga juntamente com mais
três municípios (Estância, Santa Luzia do Itanhy e Indiaroba) faz parte da Área de Proteção
Ambiental do Litoral Sul, criada através do Decreto nº 13.468. A região que abrange os
quatro municípios faz parte de um complexo estuarino, cuja delimitação compreende um dos
estuários mais ricos em termos de produção pesqueira no Estado.
A proposta de criação da APA do Litoral Sul de Sergipe constituiu-se a única
alternativa possível para conservação dos ecossistemas e demais atributos ambientais e
culturais da região, colaborando neste sentido, para a sobrevivência, desenvolvimento e
reconhecimento das populações tradicionais extrativistas de pescadores e catadores de
mangaba da região.
A motivação em realizar um trabalho desta natureza surgiu durante o
acompanhamento das atividades de campo realizadas pelo Prof. Dr, Ronaldo Gomes Alvim,
para atender aos propósitos da pesquisa intitulada “Plano de Intervenção socioambiental na
região da Área de Proteção Ambiental do Litoral Sul de Sergipe”, cujo objetivo consistiu em
desenvolver atividades sócio-educativas como alternativas de geração de emprego e renda
para a comunidade.
Nesta perspectiva, o trabalho de campo constituiu-se de visitas a quatro municípios
sergipanos (Itaporanga D´Ajuda, Estância, Santa Luzia do Itanhi e Indiaroba), com a
finalidade de verificar a relevância da pesca artesanal para as populações destas localidades.
As visitas periódicas às colônias de pescadores, das referidas localidades, permitiu identificar
que a exploração dos recursos pesqueiros, mostra-se significativamente importante para a
2 Ecossistema é qualquer unidade que inclui todos os organismos (a comunidade biótica) em cada área
interagindo com o ambiente físico ocorrendo um fluxo de energia entre as estruturas bióticas claramente definidas e a ciclagem de materiais entre compostos vivos e não vivos. Portanto, um ecossistema é mais que uma unidade geográfica, é uma unidade do sistema funcional com entradas e saídas que podem ser tanto naturais como arbitrárias (ODUM, 2007, p. 18).
26
obtenção de sustento e renda de diversas famílias nos quatro municípios. Entretanto, apenas
em Itaporanga D´Ajuda foi verificado uma significativa participação da mulher na pesca. Em
um levantamento prévio junto à colônia de pescadores Z-93, constatou-se que as mulheres
correspondem à maioria no percentual de cadastros. Muitas possuem seu próprio barco e saem
para pescar em companhia de outras mulheres ou de seus familiares. Desta maneira, elas
sustentam a casa com a comercialização do pescado, além de cuidarem dos afazeres
domésticos.
O estabelecimento deste contato inicial com os sujeitos da pesquisa foi extremamente
relevante, pois o conhecimento das situações, características e particularidades que envolviam
o contexto das pescadoras, suscitaram as primeiras inquietações e reflexões acerca daquela
realidade, orientando desta forma, os primeiros passos para a pesquisa que seria desenvolvida
posteriormente4.
Outro fator importante que instigou o interesse para realização deste estudo e que
merece ser aqui ressaltado, foi a minha participação no Seminário sobre Pesca Artesanal,
ocorrido no ano de 2010, em Recife/PE5. Este evento possibilitou uma aproximação com os
pescadores e pescadoras (principalmente), bem como o conhecimento de suas questões,
desafios e conquistas no setor pesqueiro. O evento contou com a participação de estudiosos
cujas produções são referências para a discussão e análise de distintas realidades que
envolvem esta temática, como Antonio Carlos Diegues, Lourdes Furtado, Cristiano Ramalho,
entre outros. Os referidos pesquisadores, por meio de suas falas, contribuíram para a
compreensão das características e especificidade que envolve a atividade, assim como o
aprofundamento das questões relacionadas a este universo. Mais que um evento científico, o
seminário constituiu-se um espaço em que o pescador artesanal foi objeto e sujeito das
discussões, mediante exposição e relatos de suas lutas, conflitos, desafios e conquistas.
Ao retomar as atividades de campo referentes à pesquisa desenvolvida pelo professor
Ronaldo Alvim, intensifiquei o contato com a colônia de pescadores para obter as primeiras
informações acerca das pescadoras: o que pescavam, como, onde e com quem realizavam a
3 Nomenclatura utilizada para designar as colônias ou associações dos pescadores e pescadoras. 4Os primeiros contatos com as pescadoras foram realizados durante o processo de elaboração do projeto de mestrado. 5 III Seminário Pesca Artesanal e Sustentabilidade Socioambiental: áreas protegidas e mudanças climáticas & IV Simpósio Pernambucanos sobre mulher e relação de gênero: a participação da mulher na pesca artesanal. Setembro de 2010, Recife – PE. Organização: Fundação Joaquim Nabuco.
27
atividade, o conhecimento sobre a ocorrência das espécies de pescado na região, e da
utilização dos artefatos e técnicas utilizadas para a captura.
Algumas pescadoras, segundo o observado, assumem a função de chefes da casa em
razão da ausência dos maridos, que migram para a capital ou para cidades circunvizinhas em
busca de trabalho melhor remunerado. Na maioria das vezes, estes retornam para casa mal
sucedidos, ficando para elas a responsabilidade pelo sustento da família. Diante deste
contexto, as mulheres encontram na pesca a alternativa para o provimento de sua família.
Ademais, quando desenvolvem a pesca com os seus companheiros não consideram seu
trabalho como auxiliar ou complementar, pelo contrário, reconhecem-no como sendo tão
importante quanto o trabalho realizado por seus maridos.
A constatação de uma realidade oposta àquela observada na literatura suscitou o
interesse em realizar esta pesquisa, a qual traz como peculiaridade o reconhecimento por parte
das pescadoras da importância do seu papel na atividade pesqueira cuja participação não se
restringe simplesmente a uma “ajuda”. Pelo contrário, o protagonismo e a autonomia com que
administram ou superam as dificuldades da profissão, constituem uma importante
característica deste grupo de pescadoras. Além disto, a intensa relação que estabelecem com
os ecossistemas naturais instigou um novo enfoque para a pesquisa, que seria o significado
atribuído por elas ao lugar de vida e trabalho.
Quando optei trabalhar com as pescadoras da Sede do Município, imaginava a
princípio que elas realizassem um deslocamento diário para o local apropriado ao
desenvolvimento da atividade (mangue, rio, maré, entre outros) e só retornassem ao final da
tarde com pescado capturado daquele dia de trabalho. Entretanto, ao iniciar o trabalho de
campo, consultou-se a presidente da colônia para fazer o levantamento dos principais bairros
a fim de encontrar um número significativo de pescadoras. Deste modo, descobriu-se que a
grande maioria das pescadoras, realiza a atividade em outra localidade, onde costumam passar
toda a semana, e só retorna no final da semana para comercializar o pescado, contrariando
deste modo, a expectativa inicial.
28
Imagem 01 – Vila de pescadores na Ilha do Beto Fonte: MARTINS/2012.
O lugar para onde as mulheres se
deslocam, situa-se no Povoado Nova Descoberta,
e é conhecido por seus moradores como “Ilha do
Beto” ou “Cubanacã” (Imagem 1). A localidade
é freqüentada por pescadores (homens e
mulheres) provenientes da Sede do Município
(maioria) e de povoados vizinhos (Povoado Duro
e Nova Descoberta).
Ao visitar a Ilha pela primeira vez,
acompanhada da presidente da colônia para
apresentar a proposta de pesquisa às pescadoras, encontrei um lugar e um grupo de pessoas
cujas condições de vida e trabalho assentavam-se sob um contexto de limitações
socioeconômicas. Em contrapartida, a Ilha constituiu-se efetivamente o local adequado para
realização do meu trabalho, pois se por um lado, aquele era o local da pobreza e precariedade
das condições de vida e trabalho daqueles sujeitos, por outro, era o local da subsistência, da
beleza cênica dos ecossistemas, do descanso e tranqüilidade para os seus moradores, da
amistosidade e solidariedade entre os mesmos.
O julgamento inicial que fiz da Ilha é resultante da primeira impressão acerca daquele
local, sobre o qual lancei o olhar de visitante carregado de estranheza, apreensão, apatia e
repulsa por não vivenciá-lo cotidianamente. A este respeito, Tuan (1980) faz a seguinte
consideração
São variadas as maneiras como as pessoas percebem e avaliam a superfície da terra. Duas pessoas não vêm a mesma realidade. Nem dois grupos sociais fazem exatamente a mesma avaliação do meio ambiente (TUAN, 1980, p. 6).
Nesta perspectiva, é que emergem pontos de vista e significados diferenciados sobre
determinados lugares e/ou realidades, “[...] é a antítese do gosto desenvolvido por certas
paisagens ou sentimento afetivos por lugares que se conhece bem” (TUAN, 1980, p.108). Por
esta razão, pesquisadora e nativo vêm a Ilha do Beto sob diferentes aspectos. Para a primeira,
em razão do olhar habituado a realidade circundante, a Ilha é o local das restrições impostas
pelo isolamento, pela precariedade de algumas habitações, pelas limitações estruturais, como
saneamento básico, água encanada e energia elétrica. Enquanto para o segundo, a Ilha
29
constitui o local de trabalho, descanso e tranquilidade, caracterizado pelo desenvolvimento de
ricas relações sociais entre os indivíduos.
A referida pesquisa objetivou analisar a importância do papel da mulher pescadora na
Comunidade Ilha do Beto/Itaporanga D´Ajuda, Sergipe. Seguindo dos objetivos específicos
que consistem em: demonstrar as atividades desenvolvidas pelas pescadoras; verificar os
significados atribuídos ao lugar; e relatar a história do lugar a partir das narrativas das
pescadoras. Os quais serão apresentados ao longo desta dissertação.
1.1 Construto Metodológico da Pesquisa
Esta é uma pesquisa do tipo qualitativa que se propõe não apenas descrever, mas,
sobretudo, analisar e compreender a realidade dos sujeitos pesquisados. A escolha por este
tipo de pesquisa se deu em razão da necessidade que o estudo requer de apreender o papel
desempenhado pela mulher na atividade pesqueira, bem como identificar as características e
significados atribuídos ao lugar, suscitando desta maneira, como afirmam Amorozo e Viertler
“[...] uma abordagem integrada que inclua não apenas os aspectos mais diretamente
observáveis, mas também, a compreensão do contexto onde ocorrem as interações dos grupos
humanos com o ambiente” (2010, p. 65).
Para identificar os elementos, características e significados que as pescadoras atribuem ao
lugar, foram agregados a esta pesquisa pressupostos da História Oral, propiciando assim
maior fidedignidade aos fatos ocorrente e a organização do cotidiano das pescadoras. Com
essa metodologia torna-se possível entender o olhar do grupo social em estudo,
decodificando-o por meio das suas narrativas o real sentido do lugar, de modo a estabelecer
um contato dialógico, ultrapassando desta maneira os simples olhares de pesquisador/objeto
(SILVA; MARTINS, 2011).
A utilização desta metodologia possibilitou ainda a apreensão e o registro das histórias
e experiências das pescadoras em relação ao seu lugar de vivência e trabalho. Optou-se por
essa estratégia metodológica como forma de privilegiar os sujeitos, ou seja, as pescadoras,
bem como o diálogo e a criação textual desse diálogo, adquirindo por meio das falas e relatos
um material de riqueza informativa e interpretativa. Por isso, as falas das pescadoras foram
evidenciadas ao longo desta dissertação.
30
Pode-se incluir também à estrutura metodológica da pesquisa, aspectos da abordagem
etnográfica, haja vista a necessidade de imersão no universo investigado, a fim de estabelecer
uma aproximação do vivido para descobrir os fatos e discuti-los com os sujeitos pesquisados.
Para tanto, foram utilizados alguns instrumentos e procedimentos para a execução da
referida pesquisa, que em seu caráter empírico se deu por meio da realização de um exaustivo
trabalho de campo, o qual permitiu a obtenção de informações e conhecimentos acerca da
realidade estudada.
Faz-se necessário mencionar que este momento foi fundamental para aproximação e
envolvimento com o grupo pesquisado. A conversa informal quase sempre acompanhada de
um suco ou uma fruta oferecida pelas pescadoras, ou a satisfação em me presentear com uma
corda de caranguejo ou um quilo de camarão sinalizava-me que havia conquistado a confiança
do grupo, o que certamente viabilizou a aplicação dos instrumentos de investigação. Assim, as
atividades de campo não se restringiram à realização das entrevistas, minhas visitas à Ilha
objetivaram também o estabelecimento e o estreitamento de relações com os sujeitos. Nesta
perspectiva, corroboro com Ramalho ao afirmar que “[...] ter objetividade não é o mesmo que
deixar de lado qualquer relação subjetiva com o tema, isto é, objetividade e subjetividade se
mesclam na construção do assunto” (2006, p. 32).
As atividades de campo tiveram início em 03/02/12 com uma visita à Colônia de
Pescadores, para verificar junto à Presidente o local apropriado para o desenvolvimento da
pesquisa. Foi durante esta visita que tomamos conhecimento da existência da Ilha do Beto, a
presidente da colônia também antecipou algumas particularidades inerentes à rotina de
trabalho das pescadoras, como o período que passam na Ilha e quando retornam à sede do
município para comercializar o pescado.
31
No dia 10/02/12 foi realizada a primeira
visita à Ilha para apresentar a proposta de pesquisa
às pescadoras (Imagem 02). Além disto, buscamos
neste encontro, verificar algumas informações
sobre a dinâmica da atividade pesqueira das
mulheres, como o horário que saem para pescar, as
principais espécies capturadas, quantos dias pescam
durante a semana, entre outras informações. Em
função das mulheres pescarem à noite, foi acordado
com o orientador a possibilidade de dormir na
localidade para acompanhar toda a rotina de trabalho das pescadoras.
De posse das informações, o trabalho de
campo fora organizado da seguinte forma: no
primeiro momento foram realizadas visitas para
conversas informais (Imagens 03) e realização de
entrevistas, a fim captar informações da rotina de
trabalho das pescadoras; no segundo momento
foram realizadas incursões para acompanhar o
trabalho da pescadora no ambiente de pesca (rio,
mangue, estuário, dentre outros), inclusive durante
a noite, sendo necessário para tanto, pernoitar na
Ilha para acompanhar a atividade das pescadoras
neste turno.
As visitas para observação e realização das entrevistas concentraram-se nos meses de
março a maio, sendo que neste mês ocorreu minha primeira visita para dormir na Ilha. No mês
de setembro, foi realizada mais uma visita à localidade, com o objetivo de marcar os
principais pontos de pesca para onde as mulheres se deslocam para desenvolverem a captura
do pescado.
32
O trabalho de campo ocorreu mediante utilização dos seguintes instrumentos e
técnicas: Observação Direta: Consiste da observação e registro livre dos fenômenos
observados em campo (ALBUQUERQUE et al, 2010). Esta técnica foi utilizada com a
finalidade de estabelecer os primeiros contatos com a comunidade a fim de captar as
peculiaridades do cotidiano mediante conversas informais. Foram registrados os seguintes
aspectos a partir desta técnica: descrição do local, destacando-se os fatores e característica
mais importantes do ambiente da pesquisa; as interações entre os sujeitos, ou entre estes e o
pesquisador; descrição das situações que chamaram atenção; descrição das atividades
realizada pelas pescadoras.
Entrevista semiestruturada: é considerada um dos principais meios para a coleta de
dados, permitindo a liberdade e a espontaneidade do informante, enriquecendo desta forma a
investigação. No presente estudo este instrumento foi utilizado para verificar as atribuições da
mulher na atividade pesqueira, bem como identificar as características, significados e
importância que as pescadoras atribuem ao seu lugar de vivência e trabalho. As perguntas
foram parcialmente formuladas antes de ir a campo, sem, contudo restringir a possibilidade de
novas indagações, que possibilitaram o aprofundamento dos questionamentos norteadores da
pesquisa.
A amostragem dos sujeitos que participaram da pesquisa foi intencional. As
informantes foram selecionadas por possuírem características que são do interesse da
pesquisa, levando-se em consideração fatores como idade, tempo que exerce a profissão,
procedência, tempo que reside no local entre outros aspectos. O contato com as pescadoras
entrevistadas ocorreu mediante utilização da técnica “Bola de Neve” na qual o próprio
informante indica uma pessoa para participar da pesquisa e assim sucessivamente. Na Ilha
residem 15 (quinze) pescadoras, foram realizadas 13 (treze) entrevistas, pois à medida que
avançava o número de entrevistadas, as repostas se repetiam.
Turnê Guiada: trata-se de uma técnica utilizada para trabalhar em campo que
normalmente, necessita de informante chave, ou seja, aquele indivíduo que tem um
conhecimento aprofundado da localidade estudada, (ALBUQUERQUE et all, 2010). Optou-se
trabalhar com esta metodologia, para verificar in locus as informações já fornecidas durante a
realização das entrevistas, bem como fornecer novas informações, permitindo o
acompanhamento da rotina de trabalho das pescadoras. Neste momento, elas demonstraram e
descreveram as características dos principais ambientes que utilizam para exercerem suas
33
atividades, as espécies que costumam pescar ou capturar, as técnicas utilizadas, entre outros
fatores relevantes. Esta técnica mostra-se significativamente importante, pois, possibilitou
observar e entrevistar as pessoas nas situações em que o conhecimento delas é posto em
prática, possibilitando, desta forma, a aquisição de resultados mais ricos do que a entrevista
fora do contexto de aplicação do conhecimento (CARDONA apud AMOROZO; VIERTLER,
2010).
Registro fotográfico: A fotografia é mais uma técnica para obtenção de dados
(SOUTO, 2010). Neste sentido, sua utilização se deu para registrar as peculiaridades do
cotidiano das pescadoras, orientando-se pelas informações obtidas durante as entrevistas.
Diário de campo: instrumento onde foram anotadas as informações resultantes das
observações e das conversas informais, bem como dos objetos, lugares, acontecimentos e
atividades, na possibilidade de registrar as impressões do pesquisador em relação aos fatos
observados na comunidade onde foi desenvolvido o estudo.
Georreferenciamento: técnica utilizada para demarcação por meio do uso de GPS, com
a finalidade de elaborar um mapa com os principais pontos de pesca utilizados para a captura
do pescado.
1.2 Análise dos dados coletados na Pesquisa
Os dados coletados mediante entrevistas foram transcritos, categorizados analisados e
interpretados.
Estas etapas envolveram processos distintos: na transcrição: foram apresentadas as
opiniões das informantes de maneira fiel como se os dados falassem por si só; na
categorização: foram reunidas as informações de acordo com a semelhança e divergência dos
relatos das pescadoras; para a análise, foi necessário ir além do que foi transcrito, fazendo
uma decomposição dos dados e suas relações, orientando-se mediante a fundamentação
teórica da dissertação; por fim, na interpretação buscou-se os sentidos das falas e das ações,
para se chegar a uma compreensão ou explicação dos dados (GOMES apud MINAYO, 2002).
34
Os elementos de reflexão teórica que ancoraram este estudo oportunizaram analisar a
importância do papel da mulher pescadora na Ilha do Beto em Itaporanga D´Ajuda/SE. Do
qual convido a todos para esse emaranhado de informações capturados pelo nosso olhar.
Este estudo está estruturado em quatro capítulos. O primeiro intitulado “Mulheres na
pesca artesanal: primeiras notas” visa apresentar uma contextualização do tema e sua
justificativa, destacando neste item a importância do estudo para o Estado de Sergipe. Tem-se
ainda neste momento a trajetória do surgimento do estudo, bem como a metodologia com os
procedimentos realizados e as técnicas empregadas para alcançar os objetivos propostos na
realização da pesquisa in locus.
O segundo capítulo “Pescando conhecimentos: tecendo as bases teóricas” traz o
referencial teórico o qual será abordado no primeiro momento um breve histórico da pesca
artesanal, sua definição bem como as especificidades e a relevância desta prática, a
caracterização dos sujeitos envolvidos nesta atividade os chamados pescadores artesanais,
uma explanação sobre comunidades tradicionais e os conhecimentos inerentes a estes grupos,
e por fim a caracterização das comunidades pesqueiras; o segundo momento reporta-se
inicialmente a uma sucinta discussão sobre gênero, retratando o período histórico em que esta
discussão ganha ressonância no Brasil. Em seguida, demonstra-se o processo de inserção da
mulher na atividade pesqueira, apresentando as causas, as dificuldades e os desafios
enfrentados; por último são feitas algumas considerações acerca da relação que a mulher
estabelece com o entorno socioambiental a partir da pesca, e neste ínterim são apresentadas as
ideias da corrente Geográfica Humanista, a qual apresenta importantes subsídios para o
desenvolvimento e análise da discussão acerca da relação que o indivíduo pode estabelecer
com o lugar. Faz-se necessário mencionar que neste capítulo teórico vão estar presentes
incursões do universo empírico a partir dos depoimentos e observações realizadas, mostrando
a conexão do debate teórico com o universo empírico.
O terceiro capítulo “A pesca artesanal na Ilha do Beto: capturando a essência do
trabalho feminino” será desenvolvido as atividades da pesquisa de campo fazendo uso dos
instrumentos metodológicos com base nos depoimentos das pescadoras bem como no registro
fotográfico a partir das observações e vivencias com as pescadoras de modo a apresentar aos
leitores o quão singular é essa atividade para a vida em comunidade, especialmente, as
pescadoras da Ilha do Beto.
35
O quarto capítulo “Costurando e arrematando fios: as considerações da pesquisa”
apresentamos as considerações finais relativas as nossas inquietações acerca do papel da
mulher pescadora trazendo elementos essenciais da sua atuação nesta atividade, destacando
ainda a forma como a pescadora se relaciona com o lugar de vivência e trabalho e quais são os
significados e sentidos que fundamentam esta relação.
Por fim, elencamos os referencias que nortearam o estudo para a produção do
conhecimento que resultou na elaboração de uma valiosa dissertação que sobremaneira
contribuirá para as reflexões sobre o papel da mulher no exército da profissão de pescadora.
36
37
CAPÍTULO 2
2. PESCANDO CONHECIMENTOS: TECENDO AS BASES TEÓRICAS
O significativo número de mulheres envolvidas na atividade pesqueira no município
de Itaporanga D‟Ajuda é fundamentalmente o fato que impulsiona e justifica a realização
desta pesquisa. Por esta razão, nesta seção é dedicada especial atenção a pesca artesanal,
atividade que constitui fonte de alimento e renda para as mulheres e para as famílias que elas
sustentam ou ajudam a sustentar. Como a pesca artesanal está intrinsecamente relacionada aos
aspectos sociais e ecológicos do meio onde estão inseridas, a categoria de análise “lugar” foi
eleita no sentido de melhor compreender a forma como as mulheres se relacionam entre si e
se apropriam do espaço.
2.1 Origem e peculiaridades da atividade pesqueira
A pesca é uma das atividades produtivas mais antigas da humanidade. Em períodos
anteriores ao aparecimento da agricultura, ela representou uma importante fonte de alimento
para as sociedades primitivas.
No Brasil, o desenvolvimento desse ofício antecede a chegada dos navegadores
portugueses. Os indígenas já capturavam peixes, moluscos e crustáceos, que constituíam parte
importante de sua dieta alimentar. Este trabalho continuou a se desenvolver no Brasil Colônia
e deu origem a inúmeras culturas litorâneas ligadas à pesca, entre as quais se destacam a dos
jangadeiros, em todo litoral nordestino, a dos caiçaras, no litoral entre Rio de Janeiro e São
Paulo, e a dos açorianos no litoral de Santa Catarina e Rio Grande do Sul (DIEGUES, 1999).
Tais grupos societários tiveram origem com a miscigenação entre índios, europeus e
negros, originando, assim, uma cultura6 particular que os diferenciam de outras comunidades
6 A cultura corresponde ao conjunto dos comportamentos, saberes e saber-fazer característico de um grupo humano ou de uma sociedade dada, sendo essas atividades adquiridas através de um processo de aprendizagem e
38
do interior e centros urbanos do país. Da cultura indígena, as populações litorâneas herdaram
o preparo do peixe para a alimentação, o feitio das canoas e jangadas, as flechas e os arpões;
da cultura portuguesa, herdaram os anzóis, pesos de metal, redes de arremessar e de arrastar; e
da cultura negra, herdaram a variedade de cestos e outros utensílios utilizados para a captura
dos peixes (DIEGUES, 1983).
Em Sergipe, as comunidades pré-históricas, denominadas de Cultura Canindé ou
Xingó, Tradição Aratu e Tradição Tupi-Guarani salvo as peculiaridades inerentes ao seu
modo de vida, compartilharam traços comuns, como, por exemplo, a forma de apropriação do
espaço e a realização da pesca como principal atividade. O primeiro grupo pertencente à
Cultura Canindé ou Xingó, ocupou áreas hoje identificadas como terraços e ilhas, atraídos
pela presença abundante de água. Desenvolveram caça, coleta e a pesca/catação de mariscos.
Já o segundo grupo (Tradição Aratu) encontrava-se por toda a faixa litorânea, suas aldeias
localizavam-se próximo a riachos afluentes e em área de floresta (mata atlântica), tendo como
principal trabalho a caça e a coleta. O terceiro agrupamento (Tradição Tupi-Guarani) também
localizado em áreas litorâneas próximo às bacias dos rios São Francisco, Japaratuba, Sergipe,
Vaza-Barris, Piauí e Real. Realizavam a pesca, a caça e a agricultura como principais
atividades. Acerca disso, cabe destacar que diferentemente dos anteriores, eram hábeis em
construir canoas para facilitar a locomoção (SANTOS, 2012).
Seja enquanto fruto da herança sociocultural desses povos indígenas, seja decorrentes
de suas identidades, outros grupos tiveram sua fonte de subsistência assentada na pesca, como
outras tribos indígenas, quilombolas e aqueles que eram exclusivamente pescadores, cujo
fazer cultural foi construído a partir de uma intrínseca relação com os recursos hidrográficos
sergipano. Por esta razão, fazem-se necessárias discorrer algumas considerações acerca destas
populações (SANTOS, 2012).
Os Xocós constituem a única etnia indígena remanescente do Estado7, localizada na
Ilha de São Pedro, município de Porto da Folha às margens do Rio São Francisco. A pesca era
praticada no Rio São Francisco e lagoas existentes na região, constituindo, além de fonte de
alimento, uma importante fonte de renda, pois o excedente do pescado era comercializado.
Atualmente, em razão da construção de hidrelétricas e de obras destinadas a contenção de
transmitida ao conjunto de seus membros (Kroeber apud Laplantine, 2007, p. 120). Esta constitui uma das cinqüenta definições do termo cultura elaboradas por Kroeber um dos mestres da antropologia americana. 7 Existiram em Sergipe mais de dez tribos indígenas, destas, muitas foram expulsas do território sergipano,
outras dizimadas pelos portugueses nas constantes disputas por terras (FUNAI, 2012).
39
enchentes, houve o desaparecimento de importantes espécies de peixe, fato que contribuiu
para uma diminuição significativa das pescarias. A pesca só não desapareceu por completo
graças à existência de uma complexa rede de lagoas e tanques que oferece a esta comunidade
indígena a possibilidade de exploração da piscicultura em cativeiro (FUNAI, 2012).
Já as comunidades quilombolas ocuparam (e ainda ocupam) áreas rurais do Estado
banhadas por rios e marés, obtendo da pesca artesanal e da agricultora suas principais formas
de sobrevivência, associadas em alguns casos, ao artesanato (SEMARH, 2010).
Mas são os pescadores que constituem o principal grupo que depende e que produziu
formas ricas de apropriação dos recursos pesqueiros. Essas populações se formaram ainda no
período colonial, desenvolvendo relações sociais e de subsistência, com modos de vida
particular, que garantiam o manejo sustentável dos recursos naturais, resultado do
conhecimento de várias gerações. A identidade com o lugar expressa e é a expressão dos laços
culturais. Os pescadores constituem um grupo que, também, na sua luta pela subsistência,
conjuga essa atividade com outras, como a agricultura e a produção de artesanato, em
algumas localidades. No estado de Sergipe, estas comunidades tradicionais de pesca são
representadas pelas 24 colônias de pescadores existentes tanto no litoral como no interior do
Estado (SEMARH, 2010).
Diante do exposto, depreende-se que a exploração dos recursos pesqueiros, assumiu
importância não somente econômica, mas também cultural e simbólica. Sociedades inteiras
em determinados períodos históricos dependeram quase que exclusivamente desta atividade
para a reprodução social de seus membros (Diegues, 2004). Esta dependência se deu não
apenas no passado, atualmente inúmeras populações das mais diversas regiões do mundo
encontram na pesca sua fonte de subsistência e renda.
No Brasil a atividade pesqueira assume formas diferenciadas, haja vista a combinações
dos fatores produtivos, das relações sociais que se estabelecem e as particularidades naturais
de cada ambiente pesqueiro. A esse respeito Diegues (1983), discute três categorias
essenciais, a saber: a pesca de autossubsistência ou primitiva, pesca de pequena produção
mercantil e a pesca capitalista.
A pesca de autossubsistência é desenvolvida por pequenos agrupamentos humanos,
onde a atividade é somente uma dentre outras de subsistência. Ela é realizada em sociedades
nas quais a produção de valores de uso é central, com reduzida mediação da moeda nas trocas
40
existentes. Já a pesca de pequena produção mercantil, o produto final, ou seja, o pescado é
uma mercadoria. Dentro desta forma de organização, encontram-se duas sub-formas: a
produção dos pescadores-lavradores8 e a produção dos pescadores artesanais9. Por fim, a
produção capitalista, caracteriza-se pela realização da pesca por empresas organizadas em
diversos setores (captura, industrialização e comercialização) visando somente à produção de
mercadorias em que há separação entre trabalho e capita (DIEGUES, 1983)
A pesca constitui uma atividade complexa. Além dos fatores socioculturais e
econômicos anteriormente mencionados, sua realização pode diversificar-se ainda em razão
das variedades de habitats, ecossistemas e espécies de pescado, inibindo uma forma
homogenia de expressar-se em todos os lugares e regiões. Tais aspectos contribuem para
utilização de uma multiplicidade de apetrechos de pesca, no sentido de melhor adaptar a
atividade aos tipos de habitats, de correntes e marés, tipos de fundo, comportamento dos
peixes, crustáceos e moluscos, além das peculiaridades inerentes ao modo de vida dos
pescadores (VASCONCELLOS, et al, 2007).
A exploração dos recursos pesqueiros é realizada nos mais diversos ecossistemas
aquáticos. A pesca marítima ou oceânica se caracteriza pela separação da terra com o mar.
Neste ambiente, a pesca é caracterizada pela mobilidade das espécies, sobretudo, o peixe,
razão que obriga os pescadores estarem sempre migrando de um ambiente para outro
(DIEGUES, 1995).
A pesca realizada em rios, estuários, mangues, praias, baías e lagos é denominada
estuarina, continental ou de águas interiores. Os recursos pesqueiros provenientes deste tipo
de pesca destacam-se em qualidade e em volume, devido à diversidade dos tipos de corpos
d´água existentes (RAMOS, 1999). Sobre esta modalidade, Ramalho (2006) acrescenta ainda
a forte dependência do meio natural, sua realização é orientada pelas fases lunares, pelo ritmo
das marés e a existência de cardumes. Isto significa dizer que o horário e a duração do
8 A produção dos pescadores-lavradores é uma atividade ocasional, a propriedade típica de produção é a
doméstica (familiar e/ou grupo de vizinhança), o pescado é tanto para o consumo quanto para a venda constituindo-se umas das principais fontes de dinheiro disponível para a compra de algumas mercadorias essenciais. Assim, a pesca corresponde a uma atividade complementar destinada a produzir valor de troca (DIEGUES, 1983, p. 161). 9 Aqui a pesca deixa de ser uma atividade complementar para tornar-se a principal fonte de produção de bens
destinados à venda. A atividade pesqueira passa a ser a principal fonte de renda, propiciando, em determinadas situações, uma maior produção de excedentes. Esse novo tipo de pesca caracteriza por explorar ambiente marinhos e costeiros, exige conhecimentos mais específicos que os utilizados pelo pescador-lavrador. É somente neste estágio que surge o pescador artesanal como tal, que passa a viver exclusivamente ou quase exclusivamente da sua profissão (DIEGUES, 1983, p. 155).
41
trabalho dos pescadores é determinado pelo ciclo das águas e das condições naturais de cada
habitat. Por esta razão, as pessoas que se ocupam do trabalho pesqueiro possuem um modo de
vida diferenciado dos demais grupos, como os agricultores, pois, de acordo com Ramalho
(2006) existem aspectos que fazem da pesca uma atividade singular, dentre eles, o
desenvolvimento de estratégias que permitem aos pescadores lidarem com a inconstância do
mar. A este respeito Skinner e Turekian teorizam que “[...] quando lançada ao mar, nunca se
sabe o que, nem o quanto ou a qualidade do produto que uma embarcação trará à terra, nem
tampouco em que espaço de tempo” (apud RODRIGUES; GIUDICE, 2011, p. 120).
2.2 Aspectos Gerais da atividade pesqueira em Sergipe
O Brasil produz mais de um milhão de toneladas de pescado por ano, segundo o
Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA), o setor gera cerca de 3,5 milhões de empregos
diretos e indiretos e ocupa, hoje, 800 mil profissionais entre pescadores e aquicultores (FAO,
2012). Trata-se de um setor intensivo em força de trabalho, ocupando a grande maioria dos
trabalhadores do mar. A pesca realizada em pequena escala artesanal e de subsistência
responde por mais de 50% do total mundial de capturas e emprega cerca de 98% dos 51
milhões de pessoas diretamente envolvidas com a coleta e processamento dos recursos
marinhos (BERKES et al apud REBOUÇAS, et all 2006). No Brasil são produzidos por ano 1
milhão e 240 mil toneladas de pescado, deste total, a pesca artesanal responde por cerca de
45% (MPA, 2011).
Em Sergipe as modalidades de pesca marítima e continental/estuarina caracterizam-se
da seguinte forma: na primeira, realizada em alto mar, o principal produto capturado é o
camarão (CEPENE, 2007). A pesca do peixe ocorre, em menor quantidade, em razão das
limitações estruturais das embarcações. A segunda modalidade é realizada em diferentes
ambientes como rios, estuários, lagos, açudes e mangues. Esta variedade de ambientes
contribui para uma diversificação do pescado em relação à primeira. As pescarias geralmente
são diárias e dependem das marés. Utilizam como principal equipamento de captura a rede de
emalhar (em diversas formas e comprimentos), arrastão de praia, tarrafa, linhas (linha de mão
e pequenos espinhes, denominados grozeira) e redinha (pequeno arrasto manual) (CEPENE,
2007). Segundo estudo de Ramos (1999) a pesca continental/estuarina de pesca apresenta uma
42
função social altamente relevante, pois constitui a fonte de existência de inúmeras famílias no
Estado envolvidas direta ou indiretamente nesta modalidade.
De acordo com o Ministério da Pesca (2012), além das referidas modalidades a
produção de pescado no Estado também é proveniente da Aquicultura10, muito presente e
desenvolvida na região Sul e Metropolitana, com o cultivo de camarão (principalmente) e
peixe.
Sergipe possui um total de 26. 104 pescadores ativos (homens e mulheres), dos quais
25.000 são regularmente filiados às colônias. Existem 23 colônias em funcionamento das
quais 06 são presididas por mulheres, a saber: Amparo do São Francisco, Barra dos
Coqueiros, Itaporanda D´Ajuda, Santa Luzia, Propriá e Aracaju (MPA, 2012).
O Estado sergipano possui a menor dimensão territorial do país, entretanto esta
característica não compromete a riqueza da biodiversidade local, a qual se apresenta de forma
heterogênea e com características distintas de acordo com cada região: litoral, agreste e semi-
árido.
A linha litorânea possui aproximadamente 163 km, apresentando em sua extensão os
estuários11 dos rios São Francisco, Japaratuba, Sergipe, Vaza-Barris e Piauí/Real (ESTUDOS
BIOLÓGICO E SOCIOECONÔMICO RESEX DO LITORAL SUL DE SERGIPE, 2007), além de outros
ecossistemas como manguezais12, praias e restingas13. Tais ambientes apresentam uma rica
biodiversidade com a presença de crustáceos (caranguejo (Carcinus maenas), siri (Callinectes
sapidus), aratu (Goniopsis cruentata), guaiamum (Cardisoma guanhumi) e camarão),
moluscos (sururu (Mytella falcata), ostra (Crassostrea rhizophorae), maçunim14 (Anomalocardia
brasiliana) e variedades de peixes). Espécies essas que apresentam importante valor para o
10 Cultivo de organismos cujo ciclo de vida em condições naturais se dá total oi parcialmente em meio aquático. Assim como o homem aprendeu a criar aves, suínos, bovinos, bem como a planta milho e trigo, também aprendeu a cultivar pescado. Desta forma, assegurou produtos para o consumo com mais controle e regularidade. Definição extraído do site do Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA), www..mpa.gov.br 11
Os estuários são ambientes de transição entre o oceano e o continente, ocorrendo nas desembocaduras dos rios, resultando na diluição da água salgada. Em condições naturais, são biologicamente mais produtivos por apresentarem altas concentrações de nutrientes, favorecendo a produção primária, podendo ter ou não manguezais em seus domínios (MIRANDA et al., 2002). 12
Ecossistema influenciado pelo regime da maré e descarga fluvial que apresenta formação arbustiva-arbórea de espécies adaptadas a alta salinidade e com fauna típica associada. (ESTUDOS BIOLÓGICO E SOCIOECONÔMICO RESEX DO LITORAL SUL DE SERGIPE, 2007) 13
Tipo de vegetação localizada nas áreas de terra firme que sofrem maior influência dos depósitos arenosos marinhos. Possui vegetação predominantemente rasteira, arbustiva e arbórea de pequeno porte (ESTUDOS BIOLÓGICO E SOCIOECONÔMICO RESEX DO LITORAL SUL DE SERGIPE, 2007) 14 É popularmente conhecido também como “berbigão”, “vôngole” e “chumbinho”.
43
consumo e comercialização contribuindo significativamente para o desenvolvimento da pesca
na região.
O litoral sul do Estado é compreendido por cinco municípios: São Cristóvão,
Itaporanga D´Ajuda, Estância, Santa Luzia do Itanhy e Indiaroba. Essa região é conhecida
historicamente como a principal fornecedora de peixe e do caranguejo uça para o estado
(ADEMA, 1984). Atualmente, a região vem sofrendo forte pressão sobre os recursos
pesqueiros, devido à sua sobrexploração, resultante principalmente da falta de oportunidade
de emprego para a comunidade local, que obtém da pesca ou coleta de mariscos a única fonte
de renda possível (ESTUDOS BIOLÓGICO E SOCIOECONÔMICO RESEX DO LITORAL SUL DE
SERGIPE, 2007).
Em razão da disposição do quadro natural e das limitações socioeconômicas, as
populações do litoral sergipano encontram no extrativismo uma das principais estratégias de
sobrevivência. Esses grupos populacionais compreendem os pescadores artesanais,
marisqueiras, apanhadores de caranguejo, catadoras de mangaba e outras frutas nativas,
artesãos, entre outros que encontram no extrativismo a forma de assegurar o sustento de sua
família ainda que tais atividades proporcionem um baixo rendimento (MOTA; PEREIRA,
2009).
Ao analisar as estratégias de sobrevivência realizadas pelas populações rurais do
Estuário do Rio Vaza-Barris, Takahashi; Pereira (1992) apud Mota; Pereira (2009), afirmam
ser a pesca a atividade que ocupa o maior número de pessoas, envolvendo homens, mulheres e
crianças.
Segundo informações do MPA, é importante ressaltar que Sergipe é único estado que
apresenta o número de pescadoras cadastradas (54,99%) maior que o número de pescadores
(45,01%) (CENSO 2009/2010). Estima-se que nos últimos dois anos tenham adentrado mais
mulheres que homens para este ramo de atividade (MINISTÉRIO DA PESCA, 2012).
O desemprego, a ausência dos maridos e a necessidade de aumento da renda familiar,
constituem os principais fatores que impulsionam as mulheres a adentrarem no universo da
pesca15. Assim, muitas assumem o papel de chefes da casa, encontrando na pesca a única
alternativa para o provimento da família. Outro aspecto importante que concorre para esta
realidade, diz respeito ao quadro físico natural do Estado, que conta com extensas áreas de
15 Realidade observada no Município de Itaporanga D´Ajuda/SE, a partir de levantamento junto às pescadoras da colônia Z-9, em junho de 2010.
44
manguezais, além de numerosos rios e estuários favoráveis à atividade pesqueira realizada por
mulheres, pois são nestes ambientes que se encontram as espécies de pescado comumente
capturadas por elas, como caranguejo, aratu, siri, peixe, camarão, sururu e maçunim.
2.3 Territórios da pesca: espaços de sobrevivência, conhecimentos e sociabilidade
De maneira geral, as regiões estuarinas caracterizam-se por serem áreas altamente
produtivas, utilizadas pelas comunidades pesqueiras que habitam seu entorno, sobrevivendo
da pesca de variadas espécies.
Mais que fonte de obtenção de sustento e renda para tantas famílias, os ambientes
aquáticos configuram-se em lugares que “[...] abriga e incentiva a existência de comunidades
pesqueiras coesas, distintas e independentes” (CORDELL, 2001, p. 139). A apropriação
destes espaços possibilita também o desenvolvimento de uma forma de organização assim
como a criação de um modo de vida específico inerente a estas populações.
A combinação de fatores naturais como a oscilação das marés e a ocorrência de
determinadas espécies acabam por influenciar no desenvolvimento de estratégias que
permitem aos pescadores identificarem os locais mais favoráveis à obtenção do pescado, o
conjunto destes fatores são determinantes para a apropriação destes ambientes. É o que os
autores Cordell (2001) e Silva (2006) denominam em seus estudos de territorialidade da pesca
pelo homem.
O território aqui evidenciado corresponde aos lugares habitados por espécies passíveis
de pesca, que por sua vez impõem uma organização quanto àquelas a serem pescadas, bem
como os apetrechos utilizados e áreas de coleta. Neste sentido, a apropriação dos territórios
pelo homem dar-se-á quando “[...] se conhece o ambiente natural para usar ferramentas por
ele elaboradas, mas determinadas por este ambiente” (SILVA, 2006, p. 32). Além disto, a
escolha pelos lugares mais favoráveis à obtenção do pescado deve levar em consideração
outros fatores, como facilidade de acesso, histórico de capturas anteriores e abundância da
espécie naquele local. Levando-se em consideração essas circunstância é que alguns grupos
de pescadores apropriam-se dos espaços marítimo e estuarinos, exercendo um controle sobre
os recursos, apesar desses espaços serem de livre acesso no Brasil.
45
Depreende-se a partir do exposto que a territorialidade, ou seja, a apropriação dos
lugares e/ou espaços para o desenvolvimento da atividade pesqueira é determinada pelos usos
dos recursos naturais (rios, estuários, mangues, entre outros) em consonância com os
instrumentos utilizados. Este processo emerge a partir das necessidades de sobrevivências de
grupos sociais que convivem num contexto de pobreza e marginalização social, como foi
observado por Cordell (2001).
Os territórios de pesca são também delineados pelas pescadoras que concentram suas
atividades nas regiões estuarinas, onde através da captura de crustáceos, moluscos e peixes
atendem suas necessidades de sobrevivência.
As mulheres utilizam ambientes diferenciados para realização da pesca, como rios,
mangues e estuários. O desenvolvimento da atividade ocorre preferencialmente nestes lugares
por geralmente estarem próximos às suas residências, uma vez que elas não podem se
ausentar por muitas horas ou dias devido às ocupações com a casa e com os filhos, e também
pelo fato destes locais não oferecerem os mesmos riscos enfrentados pelos pescadores em mar
aberto16.
O cotidiano da pesca proporciona o contato direto com as características e
especificidades de cada ambiente. É a partir do aludido contato, que as mulheres desenvolvem
um profundo conhecimento da biodiversidade17 local, bem como da utilização de artefatos e
técnicas apropriados para cada tipo de pescado e ambiente.
A intrínseca relação estabelecida entre a pescadora e o meio possibilita também o
surgimento de relações assentadas nos laços de parentesco e reciprocidade com o lugar onde
as relações construídas ultrapassam as necessidades de alimento, trabalho e renda,
desdobrando-se em relações subjetivas nas quais os sentimentos, os significados e as
experiências dos indivíduos para com o ambiente constituem-se elementos subjacentes.
Mota e Pereira reforçam tal ideia ao afirmarem que:
a interação dessas populações com o meio ambiente originou tipos diversos de relações entre as pessoas, com o lugar e com os recursos, em processos de trabalho
16
Já existem estudos que mencionam a participação da mulher também neste ambiente, dentre os quais destaca-se: BORGONHA, Mirtes Cristiane; BORGONHA, Maíra. Mulher-pescadora e mulher de pescador: A presença da mulher na pesca artesanal na Ilha de São Francisco do Sul, Santa Catarina. Florianópolis, 2008. Este trabalho descreve as atividades e os papéis desempenhados por pescadoras em espaços distintos, como as áreas estuarinas e as áreas em mar aberto. 17
Conjunto de todas as espécies de seres vivos existentes em determinada região ou época (HOUAISS; VILAR, 2008).
46
ricos em práticas e saberes sobre espécies nativas e introduzidas, que resultaram numa valorização proveitosa das diversidades ambientais naquilo que elas têm de potencialidades e adversidades (MOTA; PEREIRA, 2009, p. 72).
Diante do exposto, observa-se que as características naturais associadas às condições
socioeconômicas destas comunidades concorrem para o estabelecimento de uma relação de
intimidade com os recursos naturais. Por conseguinte, essas interações propiciam outras
formas diversas de relação.
2.4 As condições objetivas e subjetivas da pesca artesanal
Considerando-se que a pesca artesanal constitui o meio de trabalho do grupo social a
que esta pesquisa se direciona, faz-se necessária uma discussão acerca das características,
especificidades, bem como das condições sociais e culturais dos trabalhadores e trabalhadoras
envolvidos nesta modalidade.
A pesca artesanal é realizada em todo o litoral brasileiro, tal atividade pode representar
maior ou menor importância de acordo com as características do núcleo populacional onde é
realizada, como por exemplo, o nível de organização social e de trabalho do grupo, a demanda
pelo produto gerado, a tecnologia empregada entre outros aspectos (ANDREOLI, 2007).
Nesse sentido, pode-se inferir que a referida modalidade de pesca exerce significativa
importância em termos de produção pesqueira, geração de emprego e fornecimento de
alimentos, pois, ao longo de toda a costa ou em águas interiores encontram-se indivíduos ou
famílias, que a partir da realização da pesca artesanal articulam as condições objetivas de sua
reprodução, como o acesso à alimentação e renda, como também condições subjetivas, como
o conhecimento tradicional sobre o meio natural e o trabalho fortemente condicionado por
dinâmicas ambientais (PASQUOTTO; MIGUEL, 2004).
Deste modo, a pesca configura-se não somente como uma atividade econômica, mas
também como modo de vida. O cotidiano dos indivíduos envolvidos nesta prática mostra-se
repleto de ensinamentos e aprendizagens. Por participarem ativamente deste ofício, os
pescadores demonstram conhecimento sobre a biodiversidade local, assim como da utilização
de artefatos e técnicas para a captura do pescado. Este conhecimento chamado tradicional
47
garante a obtenção da renda e da subsistência das famílias ao mesmo tempo em que possibilita
a conservação dos ecossistemas. A realização destas estratégias de sobrevivência contribui
para a manutenção de suas comunidades (ALBUQUERQUE; FISCHER, 2011).
Para Diegues, a pesca encontra-se descrita no ramo da produção mercantil de caráter
familiar ou de vizinhança, ele define a pesca artesanal como sendo
aquela que os pescadores autônomos sozinhos ou em parcerias participam diretamente da captura, usando instrumentos relativamente simples. A remuneração é feita pelo sistema tradicional de divisão da produção em “partes” sendo o produto destinado preponderantemente ao mercado. Da pesca retiram a maior parte da sua renda, ainda que sazonalmente possam exercer atividades complementares (DIEGUES, 1983, p. 57).
Para sua realização utilizam-se embarcações de pequeno e médio porte, motorizada
ou não, algumas construídas pelos próprios pescadores por meio da utilização de matérias
primas-naturais. São simples os apetrechos e insumos utilizados, geralmente comprados nos
comércios locais (MALDONADO apud ANDREOLI, 2007). De um modo geral, utilizam
equipamentos básicos de navegação, sendo embarcações geralmente de madeira ou fibra de
vidro. A simplicidade dos instrumentos (apetrechos) utilizados contribui para minimizar os
efeitos dos impactos ambientais, possibilitando condições mais favoráveis de sustentabilidade
dos recursos pesqueiros.
Outro ponto característico diz respeito às relações de parentesco e de amizade que se
estabelecem. Os vínculos entre parentes e amigos possibilitam muitas vezes a introdução de
homens e mulheres na atividade garantindo desta forma e manutenção da pesca artesanal nas
comunidades. De fato, esse comportamento também pôde ser constatado na comunidade
investigada pela presente pesquisa. Em relato, as pescadoras revelaram a preferência pelo
trabalho com os familiares “Eu gosto de pescar com minha cunhada e meu marido, minha
parentela”.
Sobre este aspecto Ramalho observa que
Os laços de parentela e amizade constituem uma das mais representativas características da pesca artesanal. Neste sentido, ingressar no mundo da pescaria desenvolvida artesanalmente por um grupo de trabalho embarcado é entrar num terreno frequentado por pessoas próximas, por gente conhecida, que já compunha o cotidiano desses indivíduos, facilitando os acordos a serem construídos no processo de trabalho, principalmente quando se estar no ambiente aquático (RAMALHO, 2006, p.139).
48
Por todos os aspectos mencionados, a pesca artesanal representa uma valiosa fonte de
renda, alimentação, trabalho e conhecimento sobre as águas e os pescados, e por essa razão,
pescadores e pescadoras fazem dos rios, estuários e mar, lugares de trabalho para sua
sobrevivência.
Essa forma de exploração dos recursos pesqueiros não é apenas importante para os que
dela retiram seu sustento, representando também um relevante papel na produção de
alimentos, na conservação de ecossistemas, como os estuários e manguezais, e na proteção da
biodiversidade marinha e ribeirinha.
A modalidade de pesca supracitada é praticada pelos chamados pescadores artesanais,
definidos como aqueles que na captura e desembarque do pescado trabalham de forma
autônoma ou utilizam força de trabalho familiar, com meios de produção próprios ou
mediante contrato de parceria, utilizando diversas artes de pesca para a captura do pescado e
embarcações de pequeno porte. Consideram-se ainda como fases desta atividade os trabalhos
de confecção e reparos dos apetrechos de pesca, os reparos realizados em embarcações de
pequeno porte e o processamento do pescado.18
Para Diegues o pescador artesanal é aquele que vive exclusivamente ou quase
exclusivamente da sua profissão, ele passa a viver e a reproduzir suas condições de existência
na pesca, voltada fundamentalmente para o comércio. Segundo o autor “[...] o mercado é o
objetivo de sua atividade, ainda que o balaio ou cesto de peixe seja religiosamente separado
antes da partilha, constitua uma das bases de sua sobrevivência e de sua família” (1983, p.
155).
Ainda conforme o mencionado autor, o pescador artesanal não é somente aquele que
vive da pesca, mas que sabe dominar plenamente os meios de produção da pescaria, ou seja,
“[...] possuem controle de como pescar e do que pescar, em suma, o controle da arte de pesca”
(DIEGUES, 1983, p. 28). Saberes que são adquiridos através do aprendizado perceptivo e
contribuem para superação dos desafios encontrados pelos pescadores no cotidiano da
profissão.
O conhecimento aprofundado sobre os ciclos naturais e a oralidade na transmissão
desse conhecimento são características importantes na definição dessa cultura. Sobre estes
conhecimentos Andreoli e Silva (2008) definem como um conjunto de saberes simbólicos e 18 Definição extraída da Lei de Pesca, nº 11.959/2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br
49
práticos sobre o comportamento, a reprodução e os hábitos das espécies, bem como dos ciclos
naturais. Tais conhecimentos muitas vezes podem constituir uma rica fonte de informações,
de como manejar, conservar e utilizar os recursos naturais de uma maneira sustentável. Desse
modo, à medida que as populações se ambientaram em determinadas regiões, foram
consolidando os conhecimentos sobre o meio, seus limites e potencialidades, que implicaram
na elaboração de técnicas adaptadas, estruturação de dietas e sistemas produtivos
diversificados, relacionados à dinâmica dos ecossistemas.
Além de produzir conhecimento que garante o sustento da família, a relação do (a)
pescador (a) com ambiente constitui também uma expressão do modo de vida das
comunidades de pescadores (as). É o que revela o trabalho de pesquisa realizado por Nunes
(2010), que buscou analisar o modo como uma comunidade do Povoado Mosqueiro,
Aracaju/SE, que vive da pesca, tem se relacionado com a natureza (o mangue, o rio, o
estuário), dando sentido e significado ao Mosqueiro enquanto um povoado de pescadores, ao
mesmo tempo em que a cidade em processo de expansão impõe um modo de vida urbano e
novas necessidades. Diante do referido contexto, o estudo indica que a pesca viabiliza o
desenvolvimento de uma identidade que permite que os pescadores permaneçam na profissão
apesar das dificuldades que lhes são inerentes. Do mesmo modo, ao desenvolver a atividade
pesqueira aqueles sujeitos estão também determinando a identidade do local onde vivem.
Assim, o desenvolvimento da pesca possibilita a afirmação de um conjunto de saberes e
práticas que define a identidade não só dos pescadores, mas também dos locais onde vivem e
trabalham.
O agir da comunidade é característico de sua visão de mundo e se fundamenta na
leitura da natureza construída com o tempo em torno da intuição, percepção e vivência.
Conforma assim, uma maneira de apropriação dos espaços e recursos naturais que, segundo
Diegues (2002), resulta na proteção, conservação e potencialização da diversidade biológica.
Portanto, a pesca artesanal constitui uma prática circunscrita às comunidades
tradicionais. Segundo Diegues (2005), as comunidades tradicionais correspondem a grupos de
populações que sobrevivem da dependência direta com meio natural, de seus ciclos e de seus
produtos, o que se configura enquanto principal fator para a produção e reprodução de seu
modo de vida.
A relação das comunidades tradicionais com a natureza apresenta uma série de normas
e critérios de uso comum da terra, da água, das florestas, da extração e plantio desenvolvidos
50
no contexto sociocultural que tem como base a solidariedade e a partilha. Tais grupos sociais
apresentam uma organização econômica e social com reduzida acumulação de capital,
mediante desenvolvimento de uma produção de pequena escala mercantil em uma relação
direta com ambiente natural. Os meios de produção como a pesca, a agricultura, o artesanato,
o extrativismo, entre outros, são, em vários contextos, desenvolvidos concomitantemente,
traçando um perfil de diversificação das atividades econômicas vinculadas aos ciclos
ecológicos (CANDIDO, 1964; DIEGUES, 2000).
O extrativismo vegetal, a pesca, a agricultura itinerante, a pecuária extensiva estão
entre as atividades econômicas mais importantes de grande parte desses grupos que
mantiveram com a sociedade global e o mercado relações de maior ou menor intensidade,
quase sempre garantindo parte de sua alimentação com produtos de suas terras, rios e mares.
2.5 Comunidades Pesqueiras e o universo da pesca: relações e desafios
As comunidades de pescadores artesanais correspondem a grupos de indivíduos que se
ocupam do trabalho realizado nos mais diversos ecossistemas aquáticos, e detêm um modo de
vida distinto dos demais grupos, especificamente em razão de sua própria atividade, que é
completamente influenciada pelo meio natural. O uso direto destes ambientes se dá não só na
qualidade de lugar de trabalho e produtor de alimentos, mas também como gerador de práticas
socioculturais (RAMALHO, 2006). Essas práticas permitem aos pescadores se reproduzirem
como tais, principalmente através da ação prática, em que experimentam, contrastam,
atualizam e aprendem sempre novos saberes acerca do meio em que atuam. A internalização
destes conhecimentos geralmente inicia-se muito cedo quando as crianças começam a
acompanhar as atividades desenvolvidas pelos avós, pais e irmãos mais velhos (ANDREOLI;
SILVA, 2008).
A unidade familiar e/ou de vizinhança é também uma característica importante no
modo de vida dessas populações que produzem para sua subsistência e para o mercado.
Manesch (2000) atribui ainda às comunidades pesqueiras a responsabilidade pelo
abastecimento interno de produtos pesqueiros do norte ao sul do país, em contrapartida, as
lutas que empreendem esses grupos por sobrevivência e dignidade relacionam-se à
51
permanência de uma diversidade de modos de vida e de usos diferenciados dos espaços
costeiros e marinhos.
Por essa razão, a estrutura social e econômica destas comunidades apresenta-se dotada
de complexidade, haja vista os desafios impostos à sua sobrevivência. Muitos pescadores (as)
não possui documentação profissional, fato que impossibilita o acesso a direitos sociais como
previdência social que assegura direitos como aposentadoria por idade ou invalidez, auxílio
acidente, doença entre outros, além do seguro defeso e políticas públicas específicas. Diante
de tal situação, pode-se inferir que parte significativa dos trabalhadores da pesca ainda
desconhece os direitos fundamentais para efetivação da cidadania ou enfrentam dificuldades
para acessá-los (RODRIGUES, 2009).
A categoria ainda possui baixa escolaridade, enfrenta condições precárias de trabalho
e conta com pouca ou nenhuma infraestrutura para beneficiamento e venda do pescado
(CONSELHO PASTORAL DOS PESCADORES, 2009).
Para além dos desafios de ordem social, os trabalhadores deste setor convivem com
problemas decorrentes da expansão da pesca industrial, atividade que compromete a
reprodução das espécies de peixes e crustáceos, dificultando a sobrevivência de comunidades
pesqueiras artesanais. A substituição de uma modalidade de pesca por outra apresenta
repercussões socioeconômicas, as quais foram abordadas por Silva (1995), quando estudou os
efeitos do desenvolvimento da pesca industrial no município de Pirambu/SE. Com o
estabelecimento desta modalidade no município a pesca passou a ter importância não somente
como um meio de conseguir alimento, mas também como um sistema organizado capaz de
abastecer centros urbanos de maior expressão populacional. Assim, “[...] a pesca deixou de
estar basicamente voltada para a subsistência e, paulatinamente, foi sendo direcionada ao
mercado consumidor” (SILVA, 1995, p. 4). Por outro lado, esta mudança também trouxe
consequencias negativas para a comunidade, como geração de conflitos, perda de autonomia
do pescador sobre o encaminhamento da atividade, insatisfação dos pescadores por não terem
participação nos benefícios, imposição de um estilo de vida urbano na localidade, dentre
outros.
Outro problema que afeta a pesca artesanal diz respeito à expansão do processo de
especulação imobiliária, responsável pela expulsão das comunidades de seus territórios
tradicionais. Pois, além destes, há problemas de ordem cultural, engendrados quando as
52
culturas tradicionais não são consideradas, ou seja, suas relações com o meio ambiente e suas
formas de preservar a natureza (COLLOU, 2009).
Os fatores que limitam o desenvolvimento da pesca artesanal são múltiplos,
igualmente diversos são os efeitos deles decorrentes. Por esta razão a análise do processo de
transformação das comunidades pesqueiras tradicionais deve ocorrer sob a perspectiva
ecológica, econômica, social, política e cultural. Neste sentido, o trabalho realizado por
Aragão (2011), oferece importante contribuição, quando buscou investigar a dinâmica
socioambiental da comunidade pesqueira Mem de Sá, Itaporanga D´Ajuda/SE e os desafios
enfrentados por esta comunidade frente ao processo de transformação do litoral sul sergipano.
Considerando-se o cotidiano dos pescadores artesanais da referida localidade, o
desenvolvimento da comunidade não é analisado simplesmente como categoria econômica.
Mas, como um processo integrado aos elementos socioculturais.
Este contexto de limitações socioeconômicas é característico da pesca artesanal
brasileira, tal situação resulta da pouca importância, reconhecimento e visibilidade
dispensados pelos órgãos governamentais e pela sociedade ao setor, que por vezes, não
reconhece a eficiência e a produtividade do trabalho realizado por estes sujeitos. Certamente
por esta razão, pescadores e pescadoras encontram-se estigmatizados.
Em meio a este cenário de tantas adversidades que permeiam o cotidiano dos
indivíduos que realizam a pesca artesanal, destaca-se a importância do papel da mulher para a
sobrevivência das famílias que vivem dos recursos pesqueiros. A inserção feminina no
universo da pesca não se exime dos desafios apresentados e acaba acrescentando outros, pois
o estabelecimento de atribuições ocupacionais distintas entre homens e mulheres introduz um
alto grau de complexidade no que se refere às questões de gênero na atividade.
Segundo Colling (2004) por gênero entende-se o termo utilizado para teorizar a
questão da diferença sexual, questionando os papéis sociais das mulheres e dos homens. Essa
categoria permite entender a construção e a organização social da diferença sexual. Joan Scott
(1998) citada por Colling define gênero como sendo “[...] o discurso da diferença dos sexos.
Ele não se relaciona simplesmente às ideias, mas também às instituições, às estruturas, às
práticas cotidianas, como aos rituais, e tudo o que constitui as relações sociais” (COLLING,
2004, p. 29).
53
Em consonância, Strey et al (2004) salientam que a distinção entre sexo e gênero faz-
se necessário para realização de qualquer tipo de investigação científica. Para as autoras o
sexo corresponde à categoria biológica enquanto gênero é a categoria histórica e
culturalmente determinada da diferença sexual. Deste modo, o gênero, enquanto categoria
social analisa a organização desigual discriminatória da sociedade segundo o sexo, que por
sua vez está intrinsecamente relacionado às diferenças biológicas, sem estabelecer qualquer
relação com o social.
A discussão sobre gênero no universo da pesca é bastante pertinente, ainda mais no
contexto atual, no qual o papel da mulher passa a ser reconhecido, tendo inclusive se tornado
objeto de estudo, especialmente em regiões nas quais a pesca é importante economicamente.
A inserção da mulher numa atividade historicamente masculina está associada a
fatores como o aumento da pobreza e da exclusão social. De forma indireta ou direta o
trabalho desempenhado pela mulher nesta atividade revela-se imprescindível para obtenção de
sustento e renda de suas famílias. No entanto, cabe mencionar que o esforço empreendido,
assim como a valiosa contribuição da mulher na atividade pesqueira foi por muito tempo
despercebido, relegando para segundo plano o devido reconhecimento de sua importante
atuação.
2.6 Da terra ao mar: a dimensão espacial do trabalho feminino na pesca
De maneira geral, os estudos sobre as comunidades pesqueiras brasileiras eram
relativamente reduzidos até a década de 1950 do século passado. Entre 1950 e 1960 houve
uma significativa contribuição dos geógrafos humanos que descreveram vários aspectos da
distribuição e forma de vida dos pescadores entre o Rio de Janeiro e Santa Catarina.
No entanto, estes estudos constituíam em sua maioria trabalhos descritivos e
empíricos. Ainda na década de 1960 os trabalhos ganham densidade teórica e metodológica.
Porém, é na década seguinte que pesquisas e estudos desta natureza crescem
significativamente graças ao desenvolvimento de trabalhos e teses realizados por universidade
e institutos de pesquisa. Surge também neste período, um tímido interesse pelo papel das
mulheres nestas sociedades (DIEGUES, 1995).
54
As décadas de 1970 e 1980 do século XX retratam o surgimento, desenvolvimento e
as mudanças de rumo dos estudos sobre mulher e gênero no Brasil. Esta mudança se deu em
razão de um movimento amplamente difundido internacionalmente no final da década de
1960, denominado feminismo. Este movimento conforme observa Álvarez Gonzáles
propunha
a consciência da existência de uma experiência feminina comum, de uma identidade das mulheres ansiosas por conseguir autonomia, individualidade e, portanto, sua emancipação. Fazia-se necessário reescrever suas histórias para incluir nela essa nova categoria formada por metade da humanidade e da qual se começava a tomar consciência (GONZÁLES, 2010, p. 22).
É neste contexto de amplas discussões sobre gênero que Mota-Maués desenvolve uma
pesquisa (1998) cujo foco é voltado para análise e investigação de estudos realizados entre as
referidas décadas, em comunidades de pesca no Brasil, mais especificamente na Amazônia,
espaço historicamente marcado por essa atividade.
Sabe-se que, historicamente, a pesca constituiu-se uma atividade desempenhada
predominantemente por homens. Todavia, este aspecto há muito tempo vem sendo
modificado graças à participação feminina neste universo, por essa razão é cada vez maior o
número de mulheres que ocupam as margens de rios, estuários e mangues trabalhando
diretamente na captura de crustáceos e moluscos, além de atuarem no beneficiamento dos
produtos e na confecção e reparos dos apetrechos de pesca.
Não obstante, mesmo com a expressiva participação feminina neste setor, a pesquisa
realizada por Mota-Maués permitiu constatar a ideia de “invisibilização” da mulher nas
sociedades pesqueiras, depreendendo assim, que a questão da mulher e das relações de
gênero, com raras exceções, não eram contempladas como tema de estudo na produção de
dissertações e teses acerca destas comunidades. Dos estudos identificados e/ou consultados
pela autora apenas um apresentava como tema a situação social das mulheres em
comunidades pesqueiras.
Curiosamente a referida autora chama atenção para explicar tamanha discrepância, o
fato dos próprios pesquisadores não notarem o papel feminino nestas comunidades “[...] o que
dizer quando somos nós a invisibilizar, sem sequer nos darmos conta de que o estejamos
fazendo?” (MOTA-MAUÉS, 1999, p. 385). Reforça ainda o questionamento com o seguinte
argumento “[...] o que pode ser observado, no caso da crítica ao estrabismo dos que estudaram
55
comunidades pesqueiras e não viram as mulheres” (1999, p. 389). Ainda sob esse ponto de
vista Woortmann afirma que
de maneira geral, os estudos de comunidades “pesqueiras” tendem a privilegiar os atores sociais masculinos, e o ponto de vista do homem. O discurso do pesquisador como que replica o discurso público dessas comunidades, cuja identidade se constrói sobre a atividade da pesca, concebida como masculina. Relega-se assim, ao silêncio as atividades femininas mesmo quando estas contribuem substancialmente para a subsistência da comunidade. Isto significa que se ignora, por um lado, uma parte importante das atividades econômicas daquelas comunidades. E significa também que se deixa de lado uma parte do ambiente sobre o qual esses grupos atuam. Privilegiando-se o mar desconhece-se a terra (WOORTMANN, 1992, p. 31).
Diante do exposto pode-se inferir que a mulher pescadora esteve por longo período
distante de ser contemplada pelos estudos acadêmicos, porém esta realidade começa a se
modificar, ainda que timidamente, pois já existem estudos que abordam a questão do gênero
na pesca artesanal. A saber, o trabalho de pesquisa realizado por Santos (2012), o qual se
propôs a investigar a (re) produção social e a dinâmica ambiental no espaço da pesca sob a
ótica do trabalho feminino, tendo como foco a territorialidade reconstruída no cotidiano das
atividades das marisqueiras da Taiçoca de Fora/SE. A pesquisa aborda as formas de
organização, bem como as singularidades que permeiam o cotidiano das mulheres envolvidas
na referida atividade, com a perspectiva de contribuir para a formulação de políticas que
conduzam a uma maior equidade entre os gêneros e para a manutenção da atividade com a
elaboração de plano de manejo, haja vista as dificuldades observadas no setor.
Além deste estudo, outros trabalhos consultados indicam a existência de diferentes
razões ou causas que impulsionaram as mulheres a recorrerem à pesca como alternativa para o
provimento de suas famílias.
2.7 O ingresso da mulher na pesca: diferentes razões
As pescadoras aparecem como novos atores a partir das discussões sobre a
Constituinte da Pesca, movimento realizado em 1988, que contou com a participação de
representantes de colônias, principalmente das regiões norte e nordeste, cujo objetivo
56
consistiu em reivindicar seus direitos sociais a fim de que fossem assegurados pela nova
Constituição Federal (RAMALHO, 2012; RODRIGUES, 2012).
Quando se faz referência ao trabalho feminino na exploração dos recursos pesqueiros,
trata-se geralmente da confecção e reparo dos apetrechos de pesca, beneficiamento do
pescado, coleta de crustáceos e mariscos nas proximidades de casa tudo isso associado a
outras tarefas em terra (ÁLVARES; MANESCHY, 2011).
O ingresso da mulher na pesca pode assumir diferentes razões a depender do contexto
econômico e social no qual está inserida. Neste sentido, observa-se que não há uma
homogeneização de sua atuação neste setor uma vez que ela pode se mostrar mais expressiva
em um determinado segmento da atividade que em outro.
No norte e nordeste do país, por exemplo, algumas mulheres ingressam no setor
pesqueiro após a morte de seus maridos. A mariscagem19 é a atividade que mais emprega
mulheres, contribuindo para o aumento da renda familiar. Em muitos casos, além de
trabalharem no processamento primário do pescado, são responsáveis também pela venda da
produção na praia (VASCONCELLOS et al, 2007).
Ramalho (2006) explicita em seu estudo20 que o processo de inserção da mulher se deu
inicialmente de forma indireta, ou seja, a ela cabia a responsabilidade da comercialização dos
produtos capturados por seu companheiro, o reparo dos artefatos utilizados para a captura do
pescado e a introdução dos seus filhos na atividade pesqueira. Faz-se necessário observar, que
mesmo quando a mulher estava diretamente envolvida com a pesca, realizando a catação ou a
mariscagem, isto se dava, sobretudo, para complementar a alimentação da família.
Posteriormente, o aumento do desemprego e a queda do poder aquisitivo familiar atuaram
como fatores preponderantes para que o trabalho feminino assumisse outra conotação. As
mulheres tiveram que buscar novas alternativas de geração de renda, levando-as a adentrarem
no ramo da pesca, passando a assumir importante participação na formação da renda familiar.
19
Prática de captura e/ou coleta de mariscos e moluscos realizada em estuários, rios, mangues, entre outros ambientes a depender da região. 20 O trabalho de Ramalho não trata diretamente da questão de gênero na pesca artesanal, mas, das estratégias de reprodução social adotadas por pessoas que têm na pesca artesanal sua principal fonte de sobrevivência em duas comunidades no Estado de Pernambuco. Todavia, devido ao fato do autor tecer comentários sobre a razão pela qual a mulher adentrou na pesca artesanal na localidade estudada (Itapissuma/PE), fez-se, então, necessário fazer referência a sua obra.
57
Outra razão para a participação da mulher na pesca é apontada por Woortmann (1992),
que ao analisar a relação da mulher com a pesca artesanal no Rio Grande do Norte, discute
sua inserção neste setor a partir da perda de seu espaço/ambiente. Este processo ocasionou
transformações no espaço, alterando, por conseguinte, as formas de atuação da mulher nos
mesmos.
Para a autora o espaço admite formas diferenciadas de apropriação e utilização. Nessa
perspectiva, o mar corresponde ao domínio dos homens, enquanto a terra é domínio de
trabalho das mulheres. Assim, cabia a elas a responsabilidade com a casa, e com o sítio onde
cultivam frutas e criavam animais. Ainda sob sua incumbência inscreve-se a preparação de
insumos utilizados na atividade masculina da pesca, além disto, compete a ela o tratamento do
pescado, por meio da secagem e salga, para o consumo doméstico e/ou comercialização.
Somente nos períodos em que o mar não rendia o suficiente, é que sua participação na pesca
acontecia de forma direta, assim, recorria-se ao mangue e por meio da coleta de crustáceos e
moluscos conseguia-se o alimento destinado para o consumo familiar e em pequena escala à
venda. Era neste período que o trabalho da mulher era posto em evidência quanto à função de
suprir as necessidades da família (WOORTMANN, 1992).
Esse contexto, porém, foi significativamente modificado a partir dos anos 1950 do
século XX, quando foi instaurado o princípio de mercado, responsável pela alteração do
ambiente natural/social e da condição da mulher. A transformação social é acarretada
principalmente em razão da perda de espaço no qual as mulheres realizavam suas atividades.
As terras gradativamente vão se tornando privadas, restando-lhes apenas áreas de difícil
acesso ou pouco adequadas ao cultivo, diminuindo inicialmente e se extinguindo
posteriormente as possibilidades da mulher produzir alimentos e insumos.
Dessa forma, concretiza-se a transformação do espaço tradicional da mulher,
imprimindo assim uma brusca inversão de tarefas, pois se antes a terra era o espaço de
trabalho da mulher, agora se tornou espaço de trabalho do homem, ou seja, “[...] de espaço
autônomo voltado para a subsistência, a terra se tornou espaço de trabalho assalariado,
subordinado e voltado para o mercado” (WOORTMANN, 1992, p. 37).
O estudo implementado pela supracitada autora revela que o processo de alteração de
espaço promoveu também alterações nas relações de gênero no que confere ao grupo social
aqui referenciado. Se antes a mulher alimentava a família com os produtos da roça, assim
como ajudava na manutenção da atividade de pesca do seu companheiro, a partir dos
58
instrumentos que produziam para a coleta/captura do pescado, agora elas assumem um papel
de dependência do marido, seja do peixe que ele traz para casa, como alimento, seja do
dinheiro auferido pela venda do pescado.
Outra alteração que concerne ao processo de mudanças iniciados nos anos 1950 e
completado nas décadas posteriores, diz respeito à forma de utilização do ecossistema
manguezal, se antes os produtos coletados eram destinados à alimentação da família em
períodos de escassez, agora a captura de tais produtos tem como finalidade primordial a
comercialização, obrigando as mulheres a buscarem os mangues como alternativa de sustento
e renda.
Pode-se inferir que o processo inicial de atuação do gênero feminino na pesca é
marcado pela modificação de suas funções, pois, se antes conforme elucidam Maneschy e
Álvares (2010), sua participação estava restrita às fases pré e pós-captura, ligadas a confecção
dos instrumentos e a conservação do pescado, hoje sua atuação abrange os diversos
segmentos que envolvem esta atividade, seja trabalhando diretamente nas margens de rios,
estuários e manguezais na captura de crustáceos e moluscos (marisqueiras), na confecção e
reparo das redes (tecedeiras) e/ou outros apetrechos utilizados na captura do pescado, no
beneficiamento para a conservação dos produtos, assumindo papéis na diretoria, presidência
ou como membro de colônias ou associações, além de exercerem suas responsabilidades no
seio familiar com o cuidado com a casa, o marido e os filhos (SANTANA, 2009). Desta
forma, observa-se que de diferentes modos as mulheres desempenham papéis imprescindíveis
para a manutenção de suas comunidades e perpetuação da pesca artesanal.
Depreende-se a partir do exposto, que o processo de inserção da mulher no universo
da pesca não constituiu um processo fácil, haja vista as diferentes razões que as levaram a
adentrarem neste ramo, em decorrência da ausência dos seus companheiros como destaca
Vasconcellos et al (2007), do desemprego e do baixo rendimento familiar como bem coloca
Ramalho (2006), ou da perda de seu espaço de trabalho conforme esclarece Woortmann
(1992). O que se pode observar a partir dos estudos levantados, é que, de diferentes formas as
mulheres assumiram (e ainda assumem) importantes funções no universo da pesca, seja
trabalhando diretamente na captura do pescado, na confecção e reparo dos apetrechos, no
beneficiamento do pescado ou na comercialização deste. É desta forma que elas garantem não
somente a produção de alimento e geração de renda para sua família, mas também a
manutenção da própria atividade pesqueira mediante manipulação dos recursos, introdução
59
dos filhos e transmissão de conhecimentos, apesar das condições adversas enfrentadas na
profissão.
2.8 A mulher no universo da pesca: da invisibilidade ao protagonismo
Se adentrar na pesca artesanal como alternativa de sustento e renda para suas famílias
configurou-se um processo difícil, atualmente, permanecer neste universo significa uma
realidade ainda mais complicada.
O trabalho feminino na pesca artesanal é ainda bastante desvalorizado no Brasil, seja
por questões relacionadas ao gênero ou por questões de ordem estrutural, como a dificuldade
na conquista de benefícios ou o fato das próprias pescadoras não se reconhecerem como
trabalhadoras, mesmo que desenvolvam atividades nos diversos segmentos da atividade.
Sobre isto é importante destacar o relato de uma pescadora entrevistada durante o trabalho de
campo:
“A gente devia ter mais valor nas mão dos grande, devia dar mais valor a gente, não tô falando por parte da minha família, porque todo mundo é pescador. Aqui em Sergipe mesmo, os pescador tudo, homem e mulher é tudo escondido, não é como lá fora que eu vejo passar na televisão”
Em muitas comunidades que têm sua fonte se subsistência e renda na pesca é comum à
existência de práticas de submissão das mulheres aos homens21 uma vez que a referida
atividade apresenta uma divisão sexual do trabalho bem definida e intensamente centrada no
masculino. Geralmente, a divisão das tarefas se define entre o espaço do mar e o espaço da
terra. Cabe aos homens a pesca, enquanto as mulheres são responsáveis pela coleta de
mariscos, moluscos, algas, camarão, entre outros produtos coletados na beira de praias, lagos,
rios e mangues. É de sua inteira responsabilidade também o beneficiamento do pescado
capturado por seu companheiro ou por ela mesma, assim como também o reparo dos
instrumentos de pesca. A ocupação da mulher nas diversas atividades inerentes ao setor
pesqueiro não a isenta das suas obrigações domésticas, como o cuidado com os filhos, o
esposo e a casa, conferindo-lhe dupla jornada de trabalho.
21
Esta realidade fora observada nos estudos de: COLLOU et all Pescadoras artesanais e movimentos sociais: articulação das pescadoras de Pernambuco em Itapissuma-Pernambuco, 2008.
60
Por estas razões as atividades femininas tendem a ser multidirecionadas, pois
geralmente sua jornada de trabalho é mais longa, combinando tarefas domésticas e produtivas
(BEGUM, 2011), ao contrário das masculinas, geralmente centradas em uma ou duas
atividades principais, como por exemplo, pesca e lavoura. Esse fato reforça a invisibilidade de
seu trabalho e dificulta sua identificação como trabalhadoras. Nessa condição, ficam excluídas
dos correspondentes direitos sociais e previdenciários22 (MANESCH, 2000).
Por passarem mais tempo realizando tarefas em terra, os membros das comunidades
das quais fazem parte não consideram o trabalho que as mulheres realizam como pesca,
tampouco os organismos que coletam, do grupo dos moluscos e crustáceos, como pescados.
Logo, suas atividades não são tomadas como pesca (MOTTA-MAUÉS, 1999).
Ademais, muito do que fazem não se destina ao mercado e não é visto, portanto, como
trabalho, mesmo quando se trata de tarefas que permitem aos homens pescar. Entretanto,
Manesch salienta que
a produção das mulheres é tão importante quanto a dos homens, ainda que não seja reconhecida como tal. De fato, em um contexto de produção de mercadorias, as atividades voltadas ao mercado alcançam necessariamente maior visibilidade, obscurecendo-se as outras dimensões da divisão social do trabalho e, em particular, as conexões que se estabelecem entre a casa e o mundo do trabalho (MANESCH, 2000, p. 83).
Esta discussão sobre as atividades que a mulher realiza ser ou não considerada pesca
pode ser refutada se tomarmos como pressuposto a definição de pesca de acordo com o art. 36
da Lei 9.065 de 1998, a pesca corresponde a todo ato tendente a retirar, extrair, coletar,
apanhar, apreender ou capturar espécimes dos grupos dos peixes, crustáceos, moluscos e
vegetais hidróbios, suscetíveis ou não de aproveitamento econômico, ressalvadas as espécies
ameaçadas de extinção, constantes nas listas oficiais da fauna e da flora.
Neste sentido, pode-se inferir que a pesca abrange uma complexa cadeia produtiva não
se restringindo apenas ao ato de extrair das águas-costeiras, ribeirinhas ou lacustres, mas
também de transformar/beneficiar, e de distribuir/trocar/comercializar o pescado (SANTOS,
2012). Assim, a pesca contempla desde os processos iniciais como a preparação dos
22 Os principais direitos legalmente instituídos são: Previdência Social que regulamentam os direitos e os deveres dos pescadores frente ao Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS), assegurando aos trabalhadores (as) da Pesca, a aposentadoria por idade e invalidez, auxílio acidente, doença, reclusão; salário maternidade, pensão por morte etc; Seguro Defeso e políticas públicas específicas para as comunidades pesqueiras tradicionais (RODRIGUES, 2012).
61
instrumentos necessários para sua realização, até o beneficiamento e venda do pescado. Em
tal processo indiscutivelmente a mulher está inserida.
Lima (2003) adverte que a participação feminina neste setor é caracterizada também
pela precariedade, baixa renda e exclusão de direitos profissionais e sociais. Além disso, a
notoriedade das mulheres na pesca é por vezes ignorada pela sociedade e até mesmo por
membros da comunidade da qual fazem parte, que muitas vezes desvalorizam a importância
do seu trabalho.
Por outro lado, Mota-Maués (1999) considera que o aspecto da invisibilidade social e
profissional afeta a todos os pescadores (homens e mulheres), uma vez que ambos os gêneros
compartilham das mesmas dificuldades sociais, econômicas e políticas, por estas razões, não
raras vezes, a esta categoria social são atribuídos rótulos de “invisibilizada”, “esquecida”,
“ameaçada”, “subordinada”. Reforçando ainda essa questão da invisibilidade social que atinge
o grupo como um todo, Vasconcellos et al observa que “[...] quase sempre no passado e,
muitas vezes até hoje, os pescadores artesanais são considerados ineficientes e improdutivos,
e, consequentemente, deveriam ser considerados como objetos de „Programas de Assistência
Social‟ ou, mais diretamente, uma questão social” (2007, p. 17).
Todavia, mesmo que compartilhando de iguais dificuldades, a fragilidade da
identidade profissional das pescadoras é ainda acrescida pelo fato de suas atividades serem
amplamente vinculadas ao homem no interior da família e da comunidade. Suas tarefas são
vistas como auxiliares dos companheiros ou irmãos e atreladas às tarefas domésticas. O
trabalho do beneficiamento do pescado é visto como uma extensão das tarefas domésticas,
não computado à produção e à economia local. As mulheres que trabalham nessas atividades
são vistas como trabalhadoras mal remuneradas e pouco qualificadas (MARTINS, 2005).
A invisibilidade ou o não reconhecimento das funções que exercem as mulheres na
pesca artesanal não constitui por sua vez uma situação generalizada, haja vista, que em vários
lugares muitas pescadoras já conquistaram seus direitos enquanto cidadãs trabalhadoras.
Frente aos desafios do reconhecimento social e profissional, faz-se necessário mencionar que
as colônias ou associações têm um importante papel a desempenharem, devendo, pois assumir
essa demanda, possibilitando que as pescadoras também tenham lugar. Neste sentido,
Menesch considera que “assegurar às mulheres o estatuto de trabalhadoras da pesca, como
62
parceiras de terra ou das águas, é um passo na conquista de uma cidadania de qualidade, com
relações mais justas e igualitárias entre homens e mulheres” (2000, p. 88).
Para além dos problemas de ordem de gênero e sociais aqui explicitados, cabe ressaltar
que as dificuldades da profissão são também vivenciadas durante o cotidiano de trabalho das
pescadoras, que envolve riscos à saúde como dores de coluna devido às posições para extrair
o pescado, problemas de pele e dores de cabeças em razão da exposição ao sol, infecções
ginecológicas, vulnerabilidade a acidentes, ferimentos como pode ser observado nesta
passagem extraída do diário de campo
Na areia onde as mulheres coletam o maçunim há cascos de outros moluscos amolados como lâminas. Passados alguns minutos após o início do trabalho, uma das pescadoras leva um corte grande e profundo, ela estanca o sangue e continua a realizar o trabalho mesmo com dor (Diário de campo).
De fato, as dificuldades na execução da atividade também se fazem sentir na
comunidade investigada onde as mulheres, durante a coleta do pescado, buscam entre uma
posição e outra, encontrar aquela que lhes pareça menos desconfortável. Ao final do dia são
notórias as expressões de dores musculares. Durante período de acompanhamento do
cotidiano de pesca fora observado as posições que as mulheres ficam durante a coleta, é
comum a expressão de dor quando trocam de posição.
Outro fator que contribui para dificultar as condições de trabalho das pescadoras diz
respeito à violência. Quando saem para pescar, qualquer que seja o ambiente de trabalho
(mangue, rio, maré, entre outros) as mulheres estão sozinhas ou em companhia de outras
mulheres, ficando desta maneira, em alguns casos, suscetíveis a assédio sexual. Este receio foi
inclusive revelado por algumas pescadoras da Ilha do Beto, local onde foi realizada a presente
pesquisa.
Quando eu fico sozinha lá dentro do mangue, boto uma foice do meu lado, um facão, minha água, minha merenda. Eu fico lá tirando minhas ostras, tirando meu sururu quietinha, porque às vezes entra uns homens dentro do mangue descamisado, parecendo marginal, porque se você tá lá dentro e ver aquele negão todo melado de lama, você tem medo. Aí o que é que você tem que fazer? Não pode tossir ou conversar. Cê tá sozinha, você tem que se abaixar e ficar quietinha e fazer de conta que não tem ninguém ali, aquele homem passa e não lhe ver. Porque o homem ver a mulher ali sozinha dentro do mangue, vai puxar ideia ou vai na manha pra um estupro, vai confiar em homem? Você no mangue sozinha!
63
Alcançar um reconhecimento efetivo do trabalho empreendido pelas pescadoras se faz
necessário, pois, de diferentes modos elas desempenham papéis imprescindíveis para
manutenção de suas comunidades, quer seja por meio da manipulação dos recursos de
diferentes ecossistemas, quer seja gerando rendas complementares à da pesca, agregando
valor a produtos locais e participando de organizações coletivas (MENESCH, 2000).
Depreende-se que a importância do seu papel não se restringe apenas a uma ajuda
financeira para a complementação da renda de sua família, mas sim, de participação ativa não
exercendo um papel secundário ou complementar ao do marido, reconhecendo-se assim, a
essencialidade de sua atuação.
2.9 A relação da mulher com o entorno socioambiental
A presença feminina na pesca artesanal está longe de ser compreendida apenas como
uma ajuda ou mesmo desconsiderada, visto que esta atividade proporciona mais que
simplesmente sustento e renda. O cotidiano da pesca artesanal mostra-se repleto de
ensinamentos e aprendizagens. Por participarem ativamente deste ofício as mulheres
demonstram conhecimento sobre a biodiversidade local, assim como da utilização de artefatos
e técnicas para a captura do pescado, estabelecendo uma estreita relação, e, por conseguinte
uma experiência direta, intensa e íntima com o seu entorno socioambiental. Desta forma, a
relação da mulher com o ambiente implica na construção de conhecimento, o qual orienta a
escolha de técnicas e/ou práticas mais sustentáveis.
Sobre esta discussão Begum (2011) observa que as análises sobre mulher e o meio
ambiente devem levar em consideração aspectos socioeconômicos e culturais. Dentre estes
aspectos cabe mencionar o trabalho, que constitui uma forma de interação direta entre os seres
humanos e o mundo material, mediante exploração dos recursos naturais de forma mais
simples, como fazem as sociedades tradicionais ou de forma mais complexa, a exemplo das
sociedades contemporâneas. Sobre esse aspecto é mister salientar que o trabalho da mulher
revela-se importante no estabelecimento dessa conexão com o entorno, uma vez que este
possibilita o conhecimento sobre o seu ambiente, mediante o processo cotidiano de utilização
dos recursos que se dá de forma diferenciada para homens e mulheres.
64
Neste sentido, a atividade supracitada (pesca artesanal) constitui um fator
socioeconômico que proporciona uma interação dinâmica com os recursos naturais.
Historicamente, essa interação tem estado intimamente ligada aos entornos naturais dos quais
dependem inúmeras populações, a este respeito Vanninayakae considera que
Estas relações remontam o passado da humanidade quando teve início a divisão das responsabilidades entre os gêneros. Os cientistas têm descoberto que no princípio da Idade da Pedra (15.000 a 9.000 A.C.) as funções e tarefas da mulher nas comunidades estavam intrinsecamente relacionadas a diversidade biológica e suas condições de bem estar estavam determinadas pelas condições do meio ambiente natural (VANNINAYAKAE, 1999, p. 41).
Sobre este aspecto histórico Angelin (2006) acrescenta outro fator que contribuiu para
o estabelecimento de uma relação diferenciada da mulher em relação à natureza diz respeito à
sedentarização dos povos. Com este processo, as mulheres permaneceram mais ligadas ao lar
e aos filhos, enquanto os homens se ocupavam prioritariamente da caça. Assim, as mulheres
descobriram a agricultura e passaram a ter uma relação mais próxima com a natureza.
A incorporação da mulher no contexto dos debates sobre desenvolvimento e meio
ambiente tem início nos anos 1970 quando surgem as primeiras preocupações com as
condições das necessidades básicas, e o papel das mulheres nos temas de população e
segurança alimentar (HERNANDÉZ, 2010). As discussões acerca desta temática ganham
intensidade na década seguinte tendo em vista a preocupação de como a mulher estar ou não
inserida no processo de desenvolvimento do seu papel e suas funções (CASTRO;
ABRAMOVAY, 2005).
Gadotti (2005) considera que a abordagem de gênero na questão ambiental mostrou-se
significativamente importante, na medida em que, pode evidenciar elementos fundamentais
para a construção de um desenvolvimento sustentável com equidade, permitindo como
salienta Hernandéz (2010) a compreensão das relações que mulheres e homens estabelecem
com a natureza, vinculadas na realidade material, social e cultural, levando em conta que estes
vínculos são socialmente construídos e que variam segundo a raça, a etnia, a geração e o sexo
em diferentes cenários.
A abordagem sobre meio ambiente implica não somente fazer referências a fatores
puramente biológicos como à degradação dos ecossistemas em geral, devendo-se considerar
também a relação que homens e mulheres e suas distintas formas de organização estabelecem
com o seu entorno.
65
Neste sentido, entendeu-se como necessário, para esta pesquisa, apreender além das
situações e práticas cotidianas das pescadoras, também compreender as relações que
estabelecem com o ambiente, pois conforme esclarecem Mies e Shiva citado por Hernandéz
“[...] as mulheres, através de suas atividades cotidianas, estão mais perto da natureza que os
homens. Deste modo, elas têm um vínculo maior com o ambiente” (2010, p.33).
A ideia de que as mulheres podem estabelecer um vínculo especial com o ambiente,
compreendido também como lugar de moradia e trabalho permite-nos perceber que tanto elas
quanto os homens de diferentes grupos sociais podem olhar-lo e experimentar-lo de diversas
formas (HERNANDÉZ, 2010).
Deste modo, depreende-se que, implementar estudos que vislumbrem a apreensão do
lugar significa compreender as interações que ali ocorrem além das condições humanas e
naturais, uma vez que o lugar mostra-se repleto de relações históricas, permeadas por relações
de trabalho e de produção dos indivíduos e dos vínculos que estes estabelecem. Assim,
compreender o meio em que vive permite ao sujeito conhecer a sua história, bem como
entender os fatos que ali aconteceram (HASSLER, 2009).
2.10 A categoria de análise “lugar” e seu contributo para compreensão das interações
com o ambiente
O lugar, como conceito espacial de análise, ganha relevância no período contemporâneo, não como mero instrumento de localização ou uma base física, mas como uma construção socioespacial, edificada nas relações entre os indivíduos e a base territorial em que se vive e sobrevive (MOREIRA;HESPANHOL, 2007).
As interações que se estabelecem entre a natureza e a sociedade, entre o homem e o
ambiente constituem um amplo campo de investigação analisado por diversas áreas do
conhecimento científico. As discussões acerca das relações homem/meio configuram-se um
processo engendrado ao longo da história humana. Atualmente, o acentuado interesse
científico por esta temática surge em razão da emergência de problemas ambientais
decorrentes do avanço científico e tecnológico das últimas décadas, do excesso de consumo e
dos desastres ambientais.
66
Tais problemas sem dúvida demandam preocupações e, por conseguinte, novos
desafios teóricos e metodológicos a serem empreendidos a fim de elaborar soluções mais
abrangentes e integradas. A abordagem da relação sociedade/natureza não foi completamente
assimilada pela ciência contemporânea, já que a mesma, salvo experiências isoladas, ainda
encontra-se presa ao paradigma cartesiano que tudo fragmenta para melhor entender. Neste
contexto, as relações de causas e efeitos resultantes da interação entre o homem e a natureza
ainda não foram satisfatoriamente compreendidas (AGUIAR, 2010).
No âmbito desta discussão cabe mencionar o papel da ciência geográfica. De acordo
com Suertegaray (2001), desde sua autonomia, a Geografia expressa uma preocupação com a
compreensão da relação homem/meio, este entendido como entorno natural. Para tanto,
busca-se analisar as diferentes relações que se estabelecem a partir das diferentes formas que
os grupos se inserem, exploram e transformam o ambiente.
Para abranger este amplo campo de investigação, a geografia conta com cinco
categorias analíticas principais (paisagem, lugar, território, região e espaço), as quais
constituem instrumentos fundamentais para compreensão da realidade humana, bem como das
transformações resultantes da atuação de cada sociedade (MIYAZAKI, 2008).
Estas categorias, também entendidas como conceitos, emergem da necessidade de
compreensão das complexas interações que se processam entre o homem e o conjunto de
aspectos (naturais, sociais, econômicos, políticos e culturais) que o circunda.
Dentre as supracitadas categorias, elegeu-se o Lugar para discutir neste estudo, dada a
observação do modo como as pescadoras da “Ilha do Beto”, se relacionam entre si e com
ambiente de pesca e vivência. Conforme Gonzaga (2009) observa a categoria geográfica
“lugar” adéqua-se a estudos que buscam compreender o modo de vida, o cotidiano e a
essência das relações dos diferentes grupos sociais. É no lugar de vivência que podemos
encontrar esta resposta, pois tudo só adquire significado nele, o qual é produto das ações e
relações humanas.
De acordo com Moreira (2007), a apreensão do lugar requer uma contextualização
assentada nas acepções teóricas, haja vista a contribuição de tais fundamentos para o
desenvolvimento e o entendimento deste conceito conforme a realidade encontrada. Por essa
razão, neste estudo optou-se discutir a referida categoria dentro da perspectiva da Corrente
Geográfica Humanista, na qual o Lugar é o conceito mais relevante. Esta tendência se propõe
67
a investigar as diferentes maneiras que os indivíduos pensam e sentem suas interações com o
meio.
A discussão desta categoria assentada nas ideias da corrente humanista justifica-se
ainda em função da profunda relação que o grupo social pesquisado (pescadoras artesanais)
estabelece com o seu lugar de vivência e trabalho, cujas interações ultrapassam suas
necessidades imediatas de sustento e renda a partir da atividade pesqueira, desdobrando-se em
relações mais complexas e subjetivas das quais emergem as experiências, os sentimentos, a
afetividade dos sujeitos para com o lugar e o estabelecimento das relações de vizinhança e dos
laços e reciprocidade entre os indivíduos.
Tais características são comuns a outros grupos societários como os camponeses cuja
organização ocorre mediante intensas relações interpessoais, caracterizada pela solidariedade
entre os indivíduos, surgindo assim uma forma específica de interação àqueles e o meio
(QUEIROS, 1973).
Diante deste contexto, o lugar não poderia ser discutido de outra forma nesta pesquisa,
senão a partir desta vertente. No entanto, faz-se necessário esclarecer que o lugar possui
múltiplas concepções dentre as quais se destaca a da corrente geográfica crítica, que não
discute o lugar como categoria central e desenvolve uma abordagem baseada na perspectiva
da relação entre o local e o global, como bem discute Ana Fani Carlos e Milton Santos.
Para Ana Fani o Lugar é a porção do espaço apropriável pelo o corpo para a vida, é
onde se desenvolve a base da reprodução da vida, podendo ser analisado pela tríade habitante
– identidade – lugar. As relações que os indivíduos mantêm com os espaços habitados se
exprimem todos os dias nos modos de uso, nas condições mais banais, no secundário, no
acidental. Portanto, o lugar só pode ser apreendido a partir de um conjunto de sentidos
impressos pelo uso. É o espaço passível de ser sentido, pensado, apropriado e vivido por meio
do corpo. Mas também, é o espaço da produção e reprodução da vida, que se dá por meio das
relações de trabalho, que não são específicas de um lugar, mas encontram-se relacionadas
com o modo de produção, que acaba repercutindo nas atividades produtivas e nas relações de
trabalho desenvolvidas em cada lugar (CARLOS, 2007).
Cada lugar é fruto de uma história particular, que mesmo influenciado pelo mundial,
continua a manter suas particularidades, seja nas formas e significações, nas relações
cotidianas, enfim no modo de apropriar cada lugar. Mas o global ou mundial, interfere no
68
local redefinindo seu conteúdo sem a anular suas particularidades. Segundo Carlos (2007), o
global materializa-se concretamente no lugar, aqui se lê/percebe/entende o mundo moderno
em suas múltiplas dimensões, numa perspectiva mais ampla, o que significa dizer que no
lugar se vive, se realiza o cotidiano e é aí que ganha expressão o mundial.
Portanto, para a autora o lugar se apresenta como “[...] ponto de articulação entre a
mundialidade em constituição e o local enquanto especificidade concreta, enquanto momento”
(CARLOS, 2007, p. 14). Cada vez mais os lugares sofrem a influência externa devido,
sobretudo, ao desenvolvimento da técnica e das comunicações. Aparece como um fragmento
do espaço que têm sua identidade formada das relações sociais dentro de uma história
particular, local, fortemente influenciado pela história mundial por meio do modo de
produção, do consumo, da divisão do trabalho.
Para Milton Santos o conceito de lugar remete-nos a reflexão de nossa relação com o
mundo. Para o autor “os lugares são condições de suporte e relações globais [...] O planeta é
admitido como uma entidade material e humana, é uma totalidade [...] Hoje, certamente mais
importante que a consciência do lugar, é a consciência do mundo, obtida através do lugar”
(2008, p. 156/157).
Esta breve apresentação dos diferentes conceitos orientados por outra corrente
geográfica não teve a pretensão de aprofundar as discussões dos pontos de vistas dos autores
aqui referenciados, apenas demonstrar que não existe uma única forma para compreender e
definir o lugar. Desta forma, depreende-se a partir do exposto, que estas definições trazem
importantes elementos para a discussão e compreensão do lugar dentro da lógica global.
Todavia, nestas novas acepções, os aspectos da subjetividade também apreendidos como
necessários para a construção do conhecimento e, por conseguinte, para análise das ações
humanas com o entorno, estão num plano secundário. A abordagem humanista, por outro
lado, oferece subsídios para compreender as relações subjetivas do homem com o ambiente
considerando-se para tanto, os espaços vivenciados pelas pessoas em suas atividades
cotidianas ligadas à sobrevivência e às diversas relações estabelecidas pelos homens,
oferecendo assim, uma ampla gama de possibilidades para o estudo dos lugares.
69
2.11 A concepção de lugar segundo a Geografia Humanista
Os lugares configuram-se em centros aos quais atribuímos valores, significados e
importância. Para tanto, procura-se valorizar a experiência do indivíduo ou do seu grupo,
buscando compreender as maneiras de ser, de agir e de sentir das pessoas em relação aos
lugares. Desta maneira, depreende-se que o lugar tem mais substância do que sugere a palavra
localização. Este, por sua vez, corresponde a uma categoria de análise da Geografia,
trabalhada principalmente na Corrente Humanista.
Os estudos sobre lugar ganham notoriedade e importância a partir da implementação e
consolidação das ideias da Geografia Humanista nas décadas de 1960 e 1970 do século
passado. Antes deste período, o termo lugar não constituía um conceito científico, utilizado
somente como sinônimo de localização. Por esta razão, foi por muito tempo relegado para
segundo plano em relação a outros conceitos espaciais como paisagem, espaço e território
(HOLZER, 2003). A geografia enquanto disciplina acadêmica foi orientada pelas ideais
positivistas que influenciaram, sobretudo a Geografia Clássica ou Tradicional, cuja finalidade
restringia-se à explicação a realidade mediante apenas descrição e quantificação dos
fenômenos estudados (CORRÊA, 2000).
Desta maneira, a busca crescente da objetividade cujas análises priorizavam apenas
aspectos precisos e concretos, praticamente inviabilizou qualquer consideração que
ultrapassasse a definição do lugar de um sentido estritamente locacional, razão pela qual
durante um longo período excluíram-se dos estudos geográficos aspectos como laços de
vizinhança, experiências cotidianas bem como os vínculos que unem as pessoas ao ambiente
(MELLO, 2005).
Segundo Holzer (1999), Sauer23 foi um dos primeiro estudiosos a desvincular a
definição de lugar de um sentido estritamente locacional, introduzindo a esta categoria
aspectos da subjetividade para sua apreensão, suas ideias influenciaram a Corrente Humanista
na década de 1970, período em que os pressupostos teóricos desta abordagem foram
amplamente discutidos e consolidados. 23 Carl Sauer é considerado pai da Geografia Cultural. Na verdade a popularização desta área de conhecimento deve-se a este cientista. A geografia cultural de Carl Sauer era uma geografia que analisava a cultura sob seu aspecto mais material, eram os chamados – artefatos culturais. Estudavam-se os campos, as moradias, os animais utilizados, os instrumentos de trabalho. Focalizava principalmente as sociedades “tradicionais”, dando pouca ênfase as sociedades urbano-industriais (SILVA; MARTINS, 2011).
70
Esta nova tendência nasce a partir da renovação e revisão de conceitos e bases
filosóficas da geografia, e caracteriza-se por estar calcada nas filosofias do significado,
especialmente a fenomenologia24 e a percepção25, criticando desta forma a geografia de cunho
lógico e positivista26, que se propunha explicar a realidade mediante apenas descrição e
quantificação dos fenômenos estudados. Nesta perspectiva, configurar-se-ia esta abordagem
uma opção à ciência objetiva dotada de uma tarefa revolucionária: a investigação do vivido e
o cotidiano de toda gente (MELLO, 2005).
Defini-se então essa linha de pensamento por bases teóricas nas quais são ressaltadas e
valorizadas as experiências, os sentimentos, a intuição, a subjetividade e a compreensão das
pessoas sobre o meio ambiente que habitam, buscando compreender e valorizar esses aspectos
(ROCHA, 2007). Tal corrente destaca-se ainda por privilegiar o singular e não o particular ou
o universal, e ao invés da explicação, tem na compreensão a base de inteligibilidade do
mundo real (CORRÊA, 2000).
Para tanto, busca valorizar a experiência27 do indivíduo ou do grupo, visando
compreender o comportamento e as maneiras de sentir das pessoas em relação aos seus
lugares. Conforme elucidam os estudos de Christofoletti (1982), a geografia Humanista
procura valorizar a experiência do indivíduo ou do grupo, visando compreender o
comportamento e as maneiras de sentir das pessoas em relação aos seus lugares. Para cada
indivíduo, para cada grupo existe uma visão de mundo, que se expressa através de suas
atitudes e valores para com o quadro ambiente. É o contexto pelo qual a pessoa valoriza e
organiza o seu espaço e o seu mundo e nele se relaciona.
Assim, as noções de espaço e lugar surgem como muito importante para esta tendência
que se constitui em elementos do meio ambiente intimamente relacionados. Sob a perspectiva
humanista estes elementos assumem características semelhantes, um não pode ser definido
24 Movimento filosófico que analisa os aspectos essenciais da consciência, através da supressão de todos os preceitos que o indivíduo possa ter sobre a natureza dos objetos, como os provenientes das perspectivas científicas, naturalista e do senso comum. Preocupando-se em verificar a apreensão das essências pela percepção e intuição das pessoas, a fenomenologia utiliza como fundamental a experiência vivida e adquirida pelo indivíduo. Desta maneira, contrapõe-se às observações de base empírica, pois não se interessa pelo objeto nem pelo sujeito (CHRISTOFOLETTI, 1982). 25 A percepção é apreendida como uma resposta dos sentidos aos estímulos externos, como a atividade proposital, na qual certos fenômenos são registrados, enquanto outros são bloqueados (TUAN, 1980, p.4). 26
O Positivismo constituiu um movimento filosófico que influenciou diversas áreas do conhecimento, dentre as quais a Corrente Geográfica Tradicional que se propunha explicar a realidade mediante apenas descrição e quantificação dos fenômenos estudados (CORRÊA, 2000). 27
Entende-se por experiência as diferentes maneiras através das quais uma pessoa conhece e constrói a realidade. A experiência implica a capacidade de aprender a partir da própria vivência (TUAN,1983, p. 9-10).
71
sem o outro. Os lugares são centros aos quais atribuímos valor, no qual o indivíduo se
encontra ambientado, familiarizado no qual está integrado. Ele faz parte do seu mundo, dos
seus sentimentos e afeições, é o centro de significância ou um foco de ação emocional do
homem, o lugar não é toda e qualquer localidade, mas aquela que tem significância afetiva
para uma pessoa ou um grupo de pessoas (CHRISTOFOLETTI, 1982). Enquanto que o
espaço adquire o significado de “espaço vivido”, considerando para sua definição os
sentimentos e ideias de um grupo a partir de suas experiências (CORRÊA, 2000).
Neste ínterim, deve, portanto o lugar ser explicado e compreendido sob a perspectiva
das pessoas que lhes dão significados (TUAN, 1979 apud HOLZER, 1999). Valorizando
desta forma, os elementos subjetivos dos indivíduos. Segundo Martins e Silva (2011) esses
elementos devem ter relevância para análise e compreensão dos grupos sociais, pois no
espaço vivido, os sujeitos e as relações que estabelecem cotidianamente não devem ser
explicados levando-se em consideração simplesmente o racional, “[...] não podemos estudar
as espacialidade, de maneira verdadeiramente aprofundada, se considerarmos apenas o viés
objetivo” (2011, p. 9). Nesta perspectiva, a abordagem humanista mostra-se
significativamente importante, na medida em que abre espaço para o estudo dos elementos
mais subjetivos do ser humano.
Um dos maiores expoentes desta abordagem foi o geógrafo Yi-Fu Tuan cujo interesse
se direciona para o elo que as pessoas manifestam com a sua região de origem e à experiência
dos meios populares, priorizando os sentidos dos lugares e a importância do vivido para
aqueles que os habitam ou os frequentam (CLAVAL, 2001). De acordo com o autor a
Geografia estuda o lugar sob duas óticas: a do lugar como localização; e a do lugar como
artefato único. Para ele, o lugar tem mais substância do que nos sugere a palavra localização
Ele é uma entidade única, um conjunto especial que tem, história e significado. O lugar encarna as experiências e as aspirações das pessoas. O lugar não é só um fato a ser explicado na estrutura ampla do espaço, ele é a realidade a ser esclarecida e compreendida sob a perspectiva das pessoas que lhes dão significado (TUAN, 1979 apud HOLZER, 1999, p. 70).
Em seus estudos Tuan (1980) explora termos como percepção, atitudes e valores,
acreditando que estes elementos possibilitam a compreensão do homem e, consequentemente,
a compreensão dos problemas ambientais, pois estes constituem fundamentalmente problemas
humanos. Portanto, para a análise e entendimento daqueles deve-se levar em consideração a
diversidade e a subjetividade humanas.
72
Ao tentar estruturar o setor de estudos relacionados com a percepção, atitudes e
valores ambientais, o referido autor propôs o termo Topofilia, definindo-o como o elo afetivo
entre a pessoa e o lugar ou o quadro físico. Os sentimentos que os indivíduos têm em relação
ao lugar podem variar profundamente em intensidade, sutileza e modo de expressão, contudo,
enfatiza o autor que “[...] mais permanentes e mais difíceis de expressar, são os sentimentos
que temos para com o lugar, por ser o lar, o locus de reminiscência e o meio de se ganhar a
vida” (TUAN, 1980, p. 107).
O sentimento topofílico pode surgir por razões diversas, seja a partir da intimidade
física ou dependência material com o lugar; por familiaridade e afeição, ou seja, ser o local
onde o indivíduo nasceu cresceu e construiu família; pode paradoxalmente estar associado à
experiência do sujeito com a intransigência da natureza. Os que podem não suportar a
privações deixam a região, os que ficam, parecem desenvolver um estranho orgulho em sua
habilidade de levar a vida (TUAN, 1980).
No entanto, essa relação de afetividade que os indivíduos desenvolvem com o lugar
geralmente ocorre por interesses pré-determinados, ou seja, dotados de uma intencionalidade.
Sobre este aspecto, Leite (1998) afirma que os lugares só adquirem identidade e significado
através da intenção humana e da relação existente entre aquelas intenções e os atributos
objetivos do lugar, ou seja, o cenário físico e as atividades ali desenvolvidas.
Em consonância, Tuan reforça esta idéia citando como exemplo o caso do agricultor, o
qual estabelece uma relação de afetividade com a terra, porque é dela que depende sua
sobrevivência. Mas, o agricultor não é única exceção, todo homem para viver deve ver algum
valor em seu mundo. Deste modo, a vida está atrelada aos grandes ciclos da natureza; está
enraizada no nascimento, crescimento e morte das coisas vivas. Portanto, o êxito no
desenvolvimento das atividades humanas depende do conhecimento resultante do convívio e
interação com a natureza.
Para Hassler (2009), os vínculos afetivos com o lugar são historicamente construídos.
Nenhum lugar surge do nada, ele é o resultado da história das pessoas que ali viveram, ou
vivem, de como se estabeleceram, ou estabelecem suas relações de trabalho de produção,
enfim, de como se manter em sociedade.
73
Portanto, o estudo do lugar em geografia situa-se para além da compreensão das
condições humanas e naturais, busca compreender os aspectos históricos que permearam sua
criação e consolidação.
74
75
CAPÍTULO 3
3. A PESCA ARTESANAL NA ILHA DO BETO: CAPTURANDO A
ESSÊNCIA DO TRABALHO FEMININO
Este capítulo está estritamente relacionado à análise dos resultados obtidos por meio
das observações in locus e das entrevistas realizadas com 13 (treze) pescadoras residentes na
localidade Ilha do Beto, situada no Povoado Nova Descoberta em Itaporanga D´Ajuda/SE.
Durante as visitas à Ilha, buscou-se identificar as atribuições e competências da mulher na
pesca, de modo a compreender a importância do seu papel na atividade bem como as
características e significados atribuídos pelas mesmas ao seu lugar de vivência e trabalho.
A primeira sessão deste capítulo versa sobre uma breve retrospectiva histórica do
desenvolvimento da pesca artesanal no aludido município, como forma de verificar sua
relevância para os primeiros habitantes da cidade, como também para a população atual,
destacando-se, por um lado, os fatores responsáveis para a busca da atividade enquanto uma
fonte de subsistência e trabalho e, por outro, as características do quadro físico natural que são
favoráveis ao desenvolvimento da pesca.
A segunda sessão refere-se à discussão sobre a expressiva e importante participação da
mulher neste ramo de produção no município, enfatizando as principais razões para sua
inserção neste setor, bem como as particularidades e curiosidades de sua atuação no trabalho
pesqueiro.
No que diz respeito à terceira sessão, ela se reporta a descrição do papel exercido pela
pescadora. Esta discussão foi cuidadosamente elaborada com base nas informações, relatos
oriundos das próprias mulheres e das observações in locus do cotidiano de pesca. Neste
sentido, neste tópico serão apresentadas a dinâmica de pesca feminina, destacando-se os
ambientes, as espécies, os instrumentos utilizados no trabalho e o papel desempenhado por
elas em cada segmento que envolve a atividade pesqueira (captura, beneficiamento e
comercialização do pescado).
76
Por fim, a quarta e última sessão almeja destacar e refletir sobre as particularidades e
significados atribuídos pelas pescadoras ao seu lugar de vivência e trabalho, haja vista a
intrínseca relação que estabelecem com o mesmo.
3.1 Aspectos Históricos da Pesca em Itaporanga D’ Ajuda
Itaporanga D´Ajuda é um dos cinco municípios do litoral sul sergipano, cuja pesca
artesanal constitui uma importante trabalho para a obtenção de sustento e renda de inúmeras
famílias28.
A atividade faz parte da história da cidade. Grupos sociais como os indígenas e os
escravos encontravam na pesca sua principal fonte de sobrevivência. Realizavam seu trabalho
em lagos, rios e lagoas da região, utilizando-se de uma diversidade de instrumentos
elaborados de forma artesanal como vara, espeto, vara com linha, mensuar, jiquir, gereré,
tipóia, anzol, redinha e outros. O produto resultante dessa prática produtiva, ou seja, o
pescado era também apreciado por portugueses e holandeses que colonizaram a região.
Segundo a atual presidente da Colônia de Pescadores do município, a pesca por muito
tempo constituiu-se a única alternativa de trabalho para a população menos favorecida social e
economicamente, situação constatada por estudiosos em várias localidades pelo Brasil
(Maldonado, 1994; Diegues, 1983).
Aqueles que não quisessem trabalhar neste ramo tinham que se deslocar para Aracaju
ou outras cidades. Tal situação perdurou até a chegada das primeiras fábricas na cidade: a
Curtimbra (couro), a Azaléia (calçados) e a fábrica de papel, cuja instalação gerou novas
possibilidades de emprego. Esta era a realidade do município há aproximadamente 40 anos,
como nos disse a presidente da colônia de pescadores
Aqui em Itaporanga o único meio que tinha pra sobreviver era só a pesca, quem não quisesse viver da pesca ia trabalhar em Aracaju ou fora daqui. Aí o que aconteceu, veio uma fábrica pra cá, aí foi que empregou muita gente em Itaporanga, aí muita gente saiu da área da pesca e foi pra essa fábrica.
28
Durante o levantamento bibliográfico não foi encontrada nenhuma informação acerca da importância desta atividade para o Município. As informações referentes à economia da cidade referem-se apenas a agropecuária, indústria e comércio. Faz-se necessário mencionar também que as dificuldades de acesso aos dados sobre a referida atividade foram encontradas no próprio município.
77
Depois essa fábrica fechou e no lugar ficou a Azaléia. Depois chegou a fábrica de papel que foi gerando mais emprego. Hoje é que Itaporanga tem onde a pessoa trabalhar. Mas aqui em Itaporanga a pessoa vivia só da pesca, o povo aqui vivia disso, pesca e agricultura. E até hoje vive da pesca.
Atualmente a pesca é realizada por centenas de pescadores (homens e mulheres) em
todo o município. As transformações no quadro econômico da cidade impulsionadas pelo
desenvolvimento dos setores agropecuário, industrial e de bens e serviços, não atende toda a
demanda populacional. Por esta razão, muitos ainda recorrem à pesca como meio de trabalho
para o provimento familiar. Assim, a atividade constitui o caminho possível para o
atendimento das necessidades de sobrevivência.
A disposição do quadro físico natural, com a presença de rios, lagos, mangues,
estuários e praia - como já frisamos - é um fator favorável para o desenvolvimento da pesca
na região. Dos povoados existentes, vinte tem relação direta com a pesca. Deste total, onze
povoados são cadastrados na colônia, os quais sobrevivem exclusivamente da exploração dos
recursos pesqueiros, os demais povoados praticam essencialmente agricultura, mas encontram
na pesca uma fonte complementar de renda. O quadro abaixo apresenta os povoados do
município de Itaporanga D‟Ajuda que possuem relação direta com a pesca, distinguindo a
Quadro1- Demonstrativo dos povoados que tem relação com a pesca no município de Itaporanga D´Ajuda/SE. Fonte: MARTINS, 2012
POVOADOS Povoados cadastrados na colônia, cuja pesca constitui a principal fonte de alimento e renda para as famílias.
Duro Nova Descoberta Costa Várzea Grande Ilha de Mé de Sá Água Boa Paruí Caueira Lagoa Redonda Pari-Poré Povoado Rio Fundo do Abaís Salvadorzinho Água Bonita Povoado Tapera Saco Povoado Campos Povoado Ipanema Mata do Ipanema Povoado Chã Povoado Sapé
Povoados não cadastrados na colônia, cuja pesca é realizada associada a outras atividades.
78
O significativo número de povoados que dependem direta ou indiretamente da pesca,
reforça o contexto de dificuldades socioeconômicas do município em outros ramos
produtivos, impossibilitando, neste sentido, o acesso da população a outros setores. Assim, a
carência de emprego, constitui a principal razão para a inserção na atividade.
As condições de vida e trabalho dos
profissionais da pesca em Itaporanga não diferem da
realidade que acomete a maioria dos pescadores em
todo o país, cujas condições socioeconômicas
conjugam-se num contexto de dificuldades e
limitações29. Por muito tempo, o pescador
sobreviveu da atividade sem ao menos ter
conhecimento ou acesso aos direitos inerentes à
profissão, pois não eram reconhecidos como
profissionais. Esta situação é modificada em
Itaporanga D‟ Ajuda somente no ano 2000, com a
criação da Colônia de Pescadores Z-9 (Imagem 04).
A partir do seu funcionamento os pescadores tiveram acesso a benefícios e direitos
como seguro defeso30, auxílio doença, salário maternidade, aposentadoria, entre outros.
Ademais, a colônia atua no sentido de esclarecer e orientar o pescador sobre seus direitos e
deveres enquanto profissionais do setor. Como explica a presidente da colônia
Antes da colônia o pescador não conhecia os seus direitos e também os seus deveres para com a natureza, pescavam de qualquer jeito e hoje eles estão esclarecidos e cientes do seu papel e obrigações. Hoje nós sabemos que temos que explorar o meio ambiente. Ao mesmo tempo, temos que preservar para que a nossa natureza não morra e que o nosso pão de cada dia não falte. Então, eu digo que a colônia veio para trazer para essas pessoas vida nova, e uma realidade que eles não conheciam, porque eles não tinham nem noção o que era uma colônia de pescadores e para que servia. Agora temos uma
29 As condições socioeconômicas dos trabalhadores da pesca no Brasil foram discutidas no item 2.5 intitulado Comunidades Pesqueiras e o universo da pesca: relações e desafios. 30 O seguro Defeso é uma política de estratégia que protege as espécies e garante renda aos pescadores. Todo pescador profissional que exerce suas atividades de forma individual ou em regime de economia familiar fica impedido de pescar durante a reprodução das espécies. Nesse período em que o tempo de proibição é definido por lei, os pescadores profissionais recebem o Seguro mensalmente, na quantia de um salário mínimo (MINISTÉRIO DA PESCA E AQUICULTURA, Disponível em: www.mpa.gov.br).
79
colônia para nos defender e procurar nossos direitos através dela (Presidente da Colônia de Pescadores Z9, Itaporanga D´Ajuda/SE).
Além de possibilitar a conquista dos benefícios aqui explicitados, a efetivação do
cadastro na colônia promoveu melhorias das condições de vida e trabalho do pescador.
Alcançar tais avanços dependendo exclusivamente da atividade era impossível, pois o
dinheiro obtido com a venda do pescado era destinado para complementação alimentar da
família. Desta maneira, conquistar melhorias de ordem pessoal e profissional não se constituía
uma possibilidade, realidade modificada somente a partir do acesso aos benefícios mediante
credenciamento à colônia, segundo a presidente da Colônia:
Depois que foi criada esta entidade os pescadores têm vida melhor, porque antes eles moravam em casa de taipa coberta com palha, outros em casa que são conhecidas como tempera, não tinham um local adequado para fazer as refeições, dormiam em cama de vara, sentavam em topos de coqueiro, traziam seus pescados para vender e às vezes perdiam porque não tinham como conservar, hoje eles tem isopor, frízer, geladeira para fazer o gelo e conservar o pescado. Hoje você chega na nossa comunidade e no local de pesca ver os pescadores alegres porque tem barcos, canoas, barco a motor, rede de malhar, tarrafa, tarrafa para camarão, cerco, balde para lavar o pescado para vender, carro de mão, carroça, enfim tem seu material completo para a sua pescaria.
Outro avanço alcançado após a fundação da Colônia foi o reconhecimento do pescador
artesanal do município junto aos órgãos e secretarias responsáveis pela exploração dos
recursos pesqueiros a nível local e nacional, como a Federação de Pescadores do Estado de
Sergipe, a Confederação Nacional dos Pescadores e a Secretaria Especial de Aquicultura e
Pesca.
As ações empreendidas a partir da institucionalização da Colônia Z-9 contribuíram
para modificar a situação de marginalização em que viviam os profissionais da pesca em
Itaporanga, concretizando-se, desta forma, o que Maneschi (2008) observa a respeito da
importância do papel desempenhado por estas entidades, cuja implantação e atuação
possibilitam a conquista de direitos, contribuindo deste modo para o reconhecimento dos
pescadores e pescadoras enquanto cidadãos e profissionais no país especialmente nas últimas
décadas.
80
3.2 A participação da mulher na pesca em Itaporanga
Do total de indivíduos envolvidos com a pesca no município, chama a atenção o
expressivo número de mulheres. Verificou-se junto à Colônia que as mulheres são maioria no
percentual de cadastros. Sobre este aspecto, a presidente da Colônia Z9 faz a seguinte
consideração “[...] a mulher trabalha aqui, é tanto que na colônia tem mais mulher cadastrada
que homem”.
Em 2011 foram realizados 112 (cento e doze) novos cadastros. Deste total, 69
(sessenta e nove) cadastros foram realizados pelas mulheres, enquanto 43 (quarenta e três)
pelos homens (ALVIM, 2011)31. A partir deste dado é possível ter noção de quão significativo
é o número das mulheres cadastradas, particularmente se considerarmos que há regiões do
país em que as mulheres não são sequer reconhecidas como pescadoras, como observam
Menesch (2000) e Mota-Maués (1999) em seus estudos.
A partir dos depoimentos e das observações diretas feitas, tal situação é resultante do
envolvimento do homem em outras atividades, ou da migração deles para outras cidades à
procura de outras possibilidades de emprego, ficando para as mulheres a responsabilidade da
manutenção da família.
Diante disso, as mulheres adentraram no universo da pesca como forma de participar e
contribuir para a formação da renda familiar ou para assegurar concretamente o provimento
de suas famílias em razão da ausência32 dos seus companheiros.
A presente realidade configura uma nova forma de inserção e participação da mulher,
cuja atuação não está mais subjugada ao homem no interior da família. O papel da pescadora
evidenciado neste estudo não está mais restrito a uma ajuda financeira para a complementação
alimentar de sua família, tão pouco é visto como secundário ou como uma extensão das
atividades doméstica, como assinalou Martins (2005), mas, sim de participação ativa, onde
elas não exercem mais um papel secundário ou complementar ao do marido. Não há distinção
entre as tarefas realizadas pelas mulheres e aquelas realizadas por seus companheiros.
31 Os dados acerca da participação feminina na pesca no Estado de Sergipe foram sinalizados no item 2.2 Aspectos Gerais da atividade pesqueira no Estado de Sergipe, conforme levantamento no Ministério da Pesca e Aquicultura do Estado. 32 Este termo assume aqui um sentido oposto ao apontado por Vasconcellos et al, 2007, em seu estudo, no qual menciona a inserção da mulher na pesca após a morte do marido.
81
A atividade pesqueira para o grupo de pescadoras investigado constitui não somente
um meio para a sobrevivência, mas, sobretudo, a possibilidade de independência financeira,
como pode ser observado no fragmento extraído da transcrição do relato abaixo de uma
pescadora:
Pra mim foi bom entrar nessa profissão porque hoje eu tenho algum dinheiro pra mim entendeu! Hoje, todos os dias, eu vejo dinheiro no meu bolso, e antes eu não tinha. Eu tinha que tá pedindo a meu marido, hoje não preciso tá pedindo, hoje eu tenho meu dinheiro e ele tem o dele entendeu! Eu ajudo ele a pagar as contas dele, e ele ajuda a pagar as minhas! (P. V33. 45 anos).
Dessa forma, depreende-se que o contexto de atuação das pescadoras em Itaporanga
opõe-se às práticas de submissão das mulheres em relação ao homem, pois, além de atuar em
diversos seguimentos que envolvem a atividade (captura/coleta, beneficiamento,
comercialização, reparo dos instrumentos, entre outros), as mulheres em questão se
reconhecem como pescadoras, além de atribuírem ao trabalho realizado na atividade a devida
importância, contrariando, assim, a invisibilidade e a secundariedade do trabalho feminino na
pesca, perspectivas discutidas e questionadas por Collou et al, 2008; Manesch, 2000.
A mencionada situação ocorre com algumas exceções em comunidades que obtém da
exploração dos recursos pesqueiros o meio para subsistência, renda e trabalho. Eis o caso da
comunidade pesquisada, cabe agora aprofundar a discussão, conhecendo quem são estas
pescadoras, desvendando os aspectos que lhes são peculiares.
3.3 As pescadoras da Ilha do Beto: Quem são elas?
As pescadoras envolvidas na pesquisa são residentes da sede de Itaporanga ou de
povoados próximos. Durante a semana elas se deslocam para um local denominado Ilha do
Beto, onde pescam de forma artesanal, retornando somente no final da semana para entregar
(aos atravessadores) ou comercializar (em feiras livres ou domicílios) o pescado. É por meio
da aludida dinâmica que elas asseguram a obtenção de renda para a manutenção da família e
delas mesmo.
33 Com a finalidade de salvaguardar a identidade das pescadoras, serão utilizadas siglas, em que a letra P refere-se à profissão (pescadora) e a segunda letra corresponde a inicial dos nomes das entrevistadas, seguida de suas respectivas idades.
82
Na Ilha residem quinze pescadoras, desse total, treze foram entrevistadas. A faixa
etária das entrevistadas é de 40 a 69 anos de idade, conforme ilustração no gráfico 01.
Gráfico nº 01 – Distribuição das pescadoras por faixa etária Fonte: MARTINS, 2012
Todas as informantes reconhecem-se como pescadoras, tendo iniciado na profissão
ainda na infância (maioria), acompanhando os pais. Apenas duas entrevistadas declararam ter
tido o contato com a profissão com outras pessoas, mas, ainda assim, o aprendizado da
profissão ocorreu na infância e/ou no máximo, na adolescência, de acordo com as
entrevistadas
Eu ia pro rio mais meu pai, eu acompanhava meu pai em pescaria, ele não era pescador assim pra vender, ele pescava pra comer (P. V. 45 anos).
Aprendi a pescar com minha mãe ela foi ensinando e eu fui aprendendo e até hoje tô aqui! (P. C. 43 anos).
Aprendi a pescar vendo as mulher indo pra maré, aí ía também, na época eu tinha 11 anos. Assim comecei, não aprendi com minha mãe não, eu ia com o povo (P. S. 44 anos).
Vim começar a pescar depois de casada, com 16 anos foi quando eu virei pescadora! (P. JO, 54 anos, pescadora).
O significativo número de mulheres que teve o primeiro contato com a atividade
durante a infância indica semelhança entre a comunidade investigada e a comunidades
tradicionais, nas quais os conhecimentos referentes aos ciclos naturais, hábitos das espécies e
os instrumentos apropriados à captura são ministrados e absorvidos muito cedo, como
83
afirmam Andreoli e Silva (2008). Tal processo se mostra significativamente importante, na
medida em que proporciona transmissão de conhecimentos entre as gerações.
O diálogo entre as gerações sobre os fatores naturais que influenciam no
desenvolvimento da pesca constitui uma importante estratégia para a preservação/conservação
dos conhecimentos tradicionais, assim como para a manutenção da própria atividade.
Todavia, é importante observar que este processo admite um sentido diferenciado entre as
pescadoras da Ilha do Beto. Para algumas, o ensino da atividade ao filho significa um modo
de oferecer-lhes uma profissão e, nesse sentido, o papel da transmissão dos ensinamentos é
assumido, inclusive como uma responsabilidade ou como uma forma de garantir que os filhos
tenham uma profissão, como pode ser observado nos fragmentos abaixo transcritos
Ensinei meus filhos a pescar, porque é dever da mãe passar esse modo de trabalho pra ir acostumando a família naquela profissão. Se é de deixar o filho em casa, é melhor trazer pra profissão (P. JU. 57 anos).
Eu ensinei meus filhos a pescar porque acho bom, é divertido, é uma profissão boa, caso não arranjasse emprego (P.A. 48 anos).
Para outras, a aprendizagem da atividade é importante para auxiliar na sobrevivência
da família, como destaca o relato “[...] eles me acompanhavam e eu dizia: vamos dá uma
pescadinha pra comer? e eles vinham” (P. AL. 69 anos). Ademais, as falas mostram um
trabalho geracional, ancestral, que é esculpido no seio da família.
Entretanto, o empenho das mulheres no processo de ensino da profissão muitas vezes
não é suficiente para a permanência dos filhos na atividade, uma vez que os empregos
externos a comunidade parecem mais atrativos aos jovens. Então, ao conquistarem um espaço
no mercado de trabalho, os jovens abdicam da profissão dos pais, fato esse que emergiu nos
relatos
Meus filhos não me ajudam na pesca, porque agora já tão emancipados. Estão trabalhando nas firmas. Eles só vem pra cá no feriado (P. N. 54 anos).
Eles andavam muito mais eu, mas se empregaram, de vez em quando é que eles vem, mas de dizer que tão aqui sempre.... não! Não querem mais não depois que cresceram, e agora cada um já tem seu emprego (P.A. 48 anos).
Meus filhos até gostam de pescar, mas não querem deixar de tá empregado (P. V, 53 anos).
84
A evasão dos jovens é, muitas vezes, motivada pelas próprias mães, que transmitem os
conhecimentos referentes à pesca, mas não desejam que os filhos continuem neste trabalho,
em razão das dificuldades enfrentadas diariamente. Por isso, foram recorrentes os seguintes
fragmentos extraídos das entrevistas
Hoje com a graça de Deus meus filhos já tão tudo trabalhando, ninguém vai precisar ficar mais na lama! (P. A. 48 anos)
Eu não queria que meus filhos fossem pescadores é critério deles, não tem futuro, hoje trabalha ganha um dinheirinho, amanhã já é outra coisa, a maré é assim, semana dá semana não, se for sobreviver da pesca mesmo fica com fome (P. S. 44 anos). Não quero que eles tenham essa vida porque é uma vida dura, quero que eles estudem (P. G. 44 anos)
Eu não queria que eles fossem pescador, o meu destino foi esse mesmo, mas eles eu quis foi que estudasse para conseguir outra coisa! (P. JO. 54 anos).
Contrastando com os depoimentos anteriores, apenas uma pescadora manifestou o
interesse na permanência do filho na atividade. Argumento que é sustentado em função da
instabilidade dos empregos temporários.
Filho quando fica de maior a gente passa a não decidir mais nada, eu achava melhor que eles fossem pescador, porque a maré é pra vida toda e na firma passa 4 meses e depois fica desempregado! (P.N. 54 anos).
Por outro lado, observa-se que ainda que não constitua a opção de trabalho preferida
pelos jovens da comunidade, quando não são absorvidos em outros setores produtivos, a
pesca constitui algo permanente para a obtenção de alguma renda.
Às vezes tem um filho que vem pra cá pegar caranguejo quando tá desempregado (P. G. 44 anos).
Meus filhos ajudavam na pesca. Quando eu comecei logo todos eles vinham, depois que cresceram não querem vir mais, só vêm quando tão desempregado (P. V. 53 anos).
Assim, diante das dificuldades de acesso ao mercado de trabalho, ou da instabilidade
deste, a pesca ainda representa uma alternativa segura de trabalho para uma parte da
população, quando a situação assim exige. Pois, apesar das dificuldades que permeiam o
cotidiano da profissão, razão pela qual, muitos jovens rejeitam a inserção ou a permanência na
85
atividade, chama a atenção o fato de que todas as pescadoras revelaram preferir estar inseridas
neste ramo a realizar qualquer outra atividade. Das pescadoras entrevistadas apenas 03 (três)
já realizaram outras funções, como empregadas domésticas em casa de família.
O exercício de outras atividades poderia parecer mais atrativo para as mulheres,
principalmente se for considerado o esforço e a jornada de trabalho exigido na pesca.
Entretanto, de acordo com o que fora observado, pode-se inferir que a maioria das mulheres
prefere a pesca a qualquer outra atividade, e mesmo aquelas que já exerceram serviços
domésticos, não gostariam de reviver a experiência, como bem atestam os seguintes
fragmentos
Depois que comecei a pescar preferi a maré, porque a maré é a firma que não precisa de licença pra entrar, só não consegue se não tiver coragem! (P. A. 48 anos/Diário de campo).
Já trabalhei em casa de família, dois anos e cinco meses, tomando conta de uma velha, mas não tive paciência, voltei pra pesca! (P.C. 43 anos).
Fui empregada doméstica, mas vou dizer uma coisa: entre cozinha dos outros e redinha, eu sou mais a minha redinha, porque aqui ninguém manda na gente! (P. JO. 54 anos).
Os relatos acima deixam transparecer que a pesca constitui não somente o meio de
trabalho para estas mulheres, cuja realização assegura a geração da renda ou o alimento
propriamente, atendendo neste sentido, às necessidades da família, mas, sobretudo, o caminho
para uma maior autonomia e independência financeira, se comparadas a outras profissões,
onde as condições de trabalho oferecidas não garantiam ou acenavam melhores perspectivas
de vida. Assim, a pesca representa mais uma possibilidade do que uma limitação. Fato
importante a ser ressaltado, é expresso nesse ultimo relato, ao destacar o fator da liberdade
conquistada, pois o exercício da atividade pesqueira não admite a existência do patrão e do
empregado, como bem coloca D. Joana “[...] aqui ninguém manda na gente”!
86
3.4 A pesca e seus significados: o que dizem as pescadoras da Ilha do Beto
O exercício da pesca para as mulheres da Ilha do Beto constitui não somente uma
alternativa de ganhar a vida, pois o envolvimento na profissão admite múltiplas conotações
simbólicas, inclusive, como o de liberdade. Por esta razão, ser pescadora para estas mulheres
apresenta definições e significados diversificados, os quais perpassam desde ao atendimento
das necessidades imediatas de sobrevivência, constituindo-se em alguns casos, o único
rendimento para assegurar o provimento da família, como afirmam as falas a seguir
Pra mim ser pescadora é tudo na vida, não conseguir arranjar um emprego melhor, o pescado é tudo na vida da gente. Eu sustentei meus filhos com a pesca nunca tive outra atividade! (P. AL. 69 anos)
Vejo meu trabalho como importante pro sustento da minha família, porque não tenho pessoas que me ajude, a ajuda é só minha mesmo e de Deus pro sustento da casa! (P. JU. 57 anos).
Ser pescadora pra mim é uma profissão pra sobrevivência, meio de vida porque não tenho estudo! (P. JO. 54 anos).
Ademais, outro significado atribuído à profissão foi expresso mediante associação da
mesma ao sentimento de orgulho e satisfação. Tais sentimentos emergem pelo fato deste ter
sido o único ofício ao qual teve acesso durante a vida, e pelo mesmo despertar sentimento de
prazer
Minha profissão é muito importante, foi o serviço que aprendi, nunca trabalhei em firma, eu sinto prazer em ser pescadora! (P. N. 54 anos).
Ou ainda, se tomarmos como pressuposto o fato de que mesmo convivendo com os
empecilhos da atividade, há também uma moral no ato de trabalhar na pesca, o que leva a
profissão a ser reconhecida com orgulho, como bem esclarece o importante relato que segue
Eu acredito que trabalho nenhum envergonha a gente, pelo contrário, eu me sinto orgulhosa da minha profissão, sou digna daquilo que faço! (P. V. 53 anos)
Não obstante, a definição de ser pescadora admite também um significado de
independência financeira, conquistada graças ao dinheiro auferido com a comercialização do
pescado. Sua atuação na atividade contribui para a formação da renda familiar ou, em alguns
casos, constitui a única fonte de sustento. Esta realidade proporciona-lhe de certo modo uma
87
condição confortável no ambiente familiar, haja vista o reconhecimento de sua autonomia,
contrapondo a ideia de submissão e dependência em relação ao homem no interior da família.
No relato de duas pescadoras, esta questão foi explicitada da seguinte forma
Pra mim ser pescadora é uma benção! E digo com sinceridade, porque apesar de tá na lama ou dentro d´água, no sol, nos mosquitos, de ter dia de pescaria boa ou rui, bem ou mau eu tenho meu dinheiro. Não tenho que tá pedindo a marido não! E outra coisa, hoje em dia eu pago INSS e tenho carteira assinada, pra quando chegar o tempo se Deus quiser, eu vou poder me aposentar e continuar ganhando meu dinheirinho que é de direito, porque eu trabalhei! (P. M., 48 anos).
Vejo meu trabalho como importante, porque meus filhos me ajudam, mas não gosto de depender de ninguém! (P. N. 54 anos).
Entretanto, é importante observar que mesmo entre os depoimentos positivos acerca da
atividade algumas pescadoras não esquecem de mencionar as dificuldades enfrentadas na
rotina diária da profissão. Pois, nunca é demais frisar o caráter de classe desfavorecida das
comunidades pesqueiras historicamente. Isto é, ser pescadora é fazer parte dos setores
subalternos em termos socioeconômico e político. Sobre isso foram elencadas as seguintes
questões: insatisfação com o retorno financeiro, assinalada na expressão “Trabalha muito e
ganha pouco” (P. G. 44 anos), intensidade da jornada diária de trabalho “Muitas horas de
trabalho” (P. C. 43 anos), austeridade do ambiente de trabalho “Mosquito, sol quente e muita
lama” (D. JU. 57 anos). Somado a isto, foram declaradas outras dificuldades decorrentes da
profissão
Pra mim ser pescadora é uma coisa muito sofrida porque é muito cansativo. Eu só tô pescando ainda porque não tenho outro recurso pra sobreviver, mas já tô sem agüentar! (P. JU. 57 anos)
Uma dificuldade da profissão pra mim é a falta de tempo pra gente. Porque a gente não tem tempo pra se cuidar, de ir pro médico, por exemplo, porque quando vou pro médico perco um dia de trabalho, aí deixo pra ir só quando preciso mesmo, quando tô doente, porque pra tá caminhado direitinho pra médico pra saber como a gente tá (P. C. 43 anos)
Não dá! Pro descanso também eu só tenho o domingo, porque na semana eu tô aqui na Ilha e no sábado tô vendendo meu pescado! (P. S. 44 anos).
O trabalho feminino no universo da pesca alcança todos os seguimentos que envolvem
o setor, seja trabalhando diretamente na captura do pescado, na confecção e reparo dos
88
apetrechos, seja no beneficiamento do pescado ou na sua comercialização. Assim, elas
garantem não somente a produção de alimento e geração de renda para a família, mas também
a manutenção da própria atividade pesqueira mediante manipulação dos recursos, introdução
dos filhos e transmissão de conhecimentos.
Todavia, apesar da importante atuação, o trabalho da mulher no setor, em algumas
comunidades, é tido como secundário ou auxiliar ao do marido. Suas tarefas são vistas como
extensão das atividades domésticas não sendo reconhecidas como pesca propriamente, pois,
neste ofício as mulheres geralmente são encarregadas de coletar as espécies em ambientes
como rios, estuários, mangues, entre outros, cujo manejo não requer a força física exigida em
mar aberto, ou oferecem os mesmos riscos enfrentados pelos pescadores, o que fez com que
os méritos de seu trabalho fossem diminuídos, quando comparado ao dos homens que pescam
em alto-mar ou em rios e estuários
Além da realização da captura do pescado em ambientes predominantemente
estuarinos, outros fatores concorrem para o não reconhecimento do trabalho feminino, como
exemplo, a dificuldade que algumas pescadoras têm de se assumir como trabalhadora, a
participação nas fases pré e pós captura, bem como na confecção e reparo dos instrumentos
utilizados para a captura do pescado. A configuração dos elementos assinalados em
determinadas realidades, concorre para que a atuação da mulher neste universo, com algumas
exceções, ocorra num contexto de invisibilidade.
O papel secundário atribuído ao trabalho feminino não constitui uma realidade
circunscrita a todas as comunidades que obtém dos recursos pesqueiros sua forma de
sobrevivência. O grupo de pescadoras da Comunidade Ilha do Beto constitui um notável
exemplo de oposição a esta realidade. As pescadoras que compuseram a amostragem da
presente pesquisa reconhecem que o trabalho desempenhado na pesca é tão importante quanto
àquele realizado por seu companheiro. Desta maneira, o que se observa é que sua participação
na atividade ultrapassa o sentido das expressões “ajuda” ou “complementação”, já que seu
trabalho contribui significativamente para a formação da renda familiar ou, em alguns casos,
constitui-se no único rendimento domiciliar.
Além da contribuição no orçamento doméstico, o envolvimento da mulher na pesca na
Ilha do Beto assume outras finalidades. Em algumas situações, sua participação é
imprescindível para desenvolvimento e êxito do trabalho do cônjuge. Presente na embarcação
do companheiro, ela assume funções como o controle do barco, e o auxilia a puxar a rede.
89
Estas e outras surpreendentes realidades verificadas a partir do trabalho de campo junto à
comunidade acerca da atuação feminina no universo da pesca serão a seguir descritas e
analisadas, de modo mais detalhado.
3.5 Características da pesca na Ilha do Beto
As mulheres realizam a atividade em ambientes distintos como mangue, rio, mar, maré
e crôa34. Nestes espaços elas coletam uma diversidade de pescado como camarão, peixe,
caranguejo, siri, ostra, sururu, maçunim, arraia. Todavia, faz-se necessário observar que
algumas mulheres concentram a atividade em espécies específicas como camarão, sururu,
peixe e caranguejo, como bem apresenta o gráfico a seguir:
Gráfico 2 - Pescados priorizados pelas mulheres Fonte: MARTINS, 2012 – Pesquisa Direta.
De acordo com as pescadoras, isso ocorre por considerarem que tais espécies têm mais
“saída” que as demais, o que pode ser constatado nas seguintes falas “[...] Meu forte mesmo é
o camarão, porque já tenho meus cliente certo” (P. V. 53 anos); “[...] Todos os dias tem que
sair pra pescar o peixe porque é o mais vendável, eu preciso mais do peixe porque a gente tem
ponto em Itaporanga, já tenho minha freguesia de peixe” (D. VH. 45 anos); “[...] Eu pego de
tudo, mas meu principal pescado é o caranguejo” (D. JU. 57 anos).
34 Banco de areia que fica emerso quando a maré está baixa.
90
A diversidade de ambientes, bem como das espécies capturadas, implica na
multiplicidade de instrumentos utilizados para facilitar a realização da atividade de acordo
com cada ambiente, como bem salienta Vasconcelos et all (2007). Nesta perspectiva são
variados os apetrechos utilizados pelas pescadoras, tais como: ratoeira, redinha, rede de
cacear, rede de malhar, colher, facão, gereré de botada e grozeira. O emprego de cada
instrumento e seu respectivo pescado pode ser visualizado no quadro a seguir:
PESCADO AMBIENTE INSTRUMENTO PEIXE Rio e Mar
Redinha
Armadilha de garrafa pet Rede de Cacear
Tarrafa Grozeira
CARANGUEJO Mangue Ratoeira SIRI Rio Gereré
Redinha OSTRA Mangue Facão MAÇUNIM Crôa Colher
Cutelo Facão
ARRAIA Mar Grozeira CAMARÃO Rio Redinha
Tarrafa Quadro 2 - Demonstrativo das espécies de pescado, ambiente e instrumentos utilizados para a captura. Fonte: MARTINS, 2012.
O quadro acima apresenta uma diversidade
de instrumentos, cuja utilização é influenciada
pelas características do ambiente de pesca. A
redinha (Imagem 05), por exemplo, é uma
ferramenta utilizada em águas rasas (margens do
rio), cada pescadora se posiciona em cada
extremidade da rede, se deslocando repetidas
vezes com a água na altura do peito, e uma bacia
amarrada à cintura para colocar o pescado
capturado.
Outro utensílio interessante utilizado nas margens do rio para a captura de uma espécie
de peixe muito pequena (Imagem 06). O peixe é atraído através de um pedaço de pão
colocado dentro da garrafa (imagem 07). Feito isto, a armadilha é lançada na água e retirada
somente quando está cheia de peixe.
91
A captura do peixe em águas de maior profundidade, em rio ou em mar, exige o uso de
equipamentos mais resistentes como a tarrafa (Imagens 08) e a rede de cacear (Imagem 09),
apropriados para captura de espécies maiores.
A grozeira (Figura 10), corda com 250 a
300 anzóis, utilizada na “boca do oceano”
(termo utilizado pelas pescadoras para se referir
ao ambiente marítimo) para pescar peixe e
arraia.
Imagem 10 - Objeto de pesca Grozeira. Fonte: MARTINS/2012
92
O mangue é um ambiente que pede um
instrumento especifico que foi desenvolvido pelas
pescadoras ao longo de suas experiências cotidianas.
Hoje as mulheres utilizam a ratoeira (Imagem 11), que é
um instrumento que facilita o trabalho de captura do
caranguejo. Com este objeto não é mais necessário
passar horas a fio, em posições incômodas à procura do
crustáceo. Com o auxílio deste apetrecho construído de
forma artesanal com garrafas pet, as pescadoras se
deslocam para o mangue para colocar a armadilha; e enquanto aguardam o horário de
mariscar35 desenvolvem outras tarefas como a coleta do sururu ou do maçunim, ou retornam
para os barracos para se dedicarem aos afazeres domésticos.
Além da ratoeira, as pecadoras utilizam ainda neste ambiente o facão (Imagem 12),
para a coleta de ostras, molusco encontrado nas raízes de plantas pneumatófitas, espécie
nativa do ecossistema manguezal, que durante a maré baixa deixam suas raízes expostas,
facilitando assim, a visualização e a coleta do molusco (Imagem 13).
35 Expressão usada pelas pescadoras para designar o processo em que se deslocam para o mangue para verificar se as ratoeiras já estão com caranguejo.
93
Outro molusco coletado no ecossistema manguezal é o sururu. Segundo as pescadoras,
a extração deste molusco é uma das pescarias mais difíceis de realizar. Para tanto, faz-se
necessário entrar no mangue, onde há alguns pontos em que as pescadoras chegam a ficar
com lama até a cintura à procura do sururu que é localizado por meio de pequenos buracos no
solo do mangue, nos quais as pescadoras colocam o dedo e o retiram (Imagem 14 e 15). A
captura deste pescado é realizada sem o auxílio de instrumento para facilitar o processo.
O exercício da prática pesqueira no mangue é caracterizado por algumas dificuldades
impostas pelo ambiente. Além da lama, que dificulta a locomoção, a presença de mosquitos é
outro empecilho vivenciado pelas pescadoras, não somente na extração do sururu, mas
também na catação do caranguejo e demais pescados encontrados no mangue, fator que
muitas vezes inviabiliza o sucesso da pescaria, haja vista a impossibilidade de permanecer por
muito tempo no local. Para suportar o ataque de mosquitos, as pescadoras utilizam hidratante
com gás de candeeiro, óleo de coco produzido por elas mesmas para uso de repelente.
Todavia, ainda que tomando estas precauções, há dias em que permanecer no mangue torna-se
mesmo impraticável, como explica esta passagem
Quando é maré de lançamento mesmo a gente veste casaco, usa óleo, repelente pra espantar os mosquitos, coloca um pano no rosto, fica parecendo um ninja. E assim mesmo a gente vai, mas tem vez que gente também não guenta ficar não! Já teve dia da gente sair correndo! (P. N. 54 anos).
Os diferentes fatores e elementos aqui mencionados (diversidade de ambientes,
multiplicidade de instrumentos adaptados às condições naturais de cada ecossistema e
espécies de pescado), além das dificuldades enfrentadas durante a exploração dos recursos
Imagem 14 - Captura do sururu. Fonte: MARTINS/2012.
Imagem 15 - Captura do sururu. Fonte: MARTINS/2012
94
pesqueiros, concorrem para que a pesca se constitua uma atividade complexa, exigindo dos
sujeitos que a praticam, o domínio de conhecimento e habilidades imprescindíveis para o
êxito da atividade.
De acordo com Cordell (1989) e Silva (2006), a combinação dos elementos naturais
já aqui abordados e a ocorrência de espécies influenciam decisivamente na escolha dos locais
adequados para desenvolvimento da prática pesqueira. Tal dinâmica de identificação,
apropriação e uso dos espaços favoráveis à obtenção de pescado é denominada pelos referidos
autores como territorialidade da pesca. Processo esse que também observamos na
Comunidade Ilha do Beto, cujo desenvolvimento será detalhado no próximo item.
3.6 Localização dos Pontos de Pesca
Ao longo do dia e a depender das condições naturais, as pescadoras optam por
diferentes pontos de pesca na Ilha do Beto, este fato suscitou a necessidade de fazer um
levantamento dos principais pontos, como forma de compreender o deslocamento realizado
cotidianamente pelas pescadoras. Desse modo, com o auxílio do GPS percorremos os
principais pesqueiros36 registrando-se nove pontos de pesca importantes para a comunidade,
nos quais é possível capturar todos os tipos de pescado: camarão, ostra, sururu, peixe (tainha e
robalo), maçunim, caranguejo, siri, aratu. Porém, segundo relato das pescadoras, cada
ambiente oferece potencialmente um determinado tipo de pescado, conforme esclarece o
quadro abaixo
LOCALIDADE PRINCIPAL PESCADO
Crôa das Cabras Maçunim Mangue do Cantador, Mangue Sabacu, Mangue Donana, Porto Grande
Diversos
Rio do Limo, Mangue Três Bocas Camarão Mangue Sarafina, Ilha do Boi Camarão e peixe
Quadro 03 – Demonstrativo das Localidades do pescado na região Fonte: MARTINS/2012
36 São unidades básicas de apropriação social do espaço marítimo; contudo, cada uma deles comporta o uso de uma variedade de métodos de pesca (linhas de mão, redes de lanço, armadilhas, etc.). São divididos sem laços ou nos menores espaços aquáticos determinados pelas mudanças naturais e diurna da maré, visibilidade durante as várias fases da lua, posição do lanço em relação ao relevo de fundo, interação dos ventos e das correntes de forma a que os pescadores usando diferentes técnicas não se atrapalhem em suas atividades (CORDELL, 2001, p. 147).
95
Os locais situam-se nas imediações da Ilha, conforme pode ser observado no Mapa
abaixo. O Mangue do Cantador é o ponto mais próximo, distante precisamente vinte minutos,
enquanto que o ponto mais distante, a Ilha do Boi, fica a aproximadamente 2:00h/2:40 (duas
horas a duas horas e quarenta minutos), dependendo da capacidade do motor e da habilidade
do pescador.
Figura: Mapa dos principais pontos de pesca, elaborado em atividade de campo Fonte: PACHECO; MARTINS/201237.
Faz-se necessário salientar que esses locais não constituem espaços de uso exclusivo
dos moradores da Ilha, sendo também utilizados por pessoas de outros povoados do município
de Itaporanga, ou até de municípios vizinhos como São Cristóvão. Sendo assim, depreende-se
37 Mapa elaborado pelo Prof. Dr. José Antônio Pacheco de Almeida (NUGEO/UFS) e pela discente Mellyssa R.S. Martins do Curso de Geologia/UFS.
96
que não há um controle dos espaços de pesca pelos pescadores tão pouco do local onde são
construídos os barracos, pois conforme elucida o relato da moradora mais antiga da Ilha “[...]
a única coisa que uma pessoa precisa se quiser morar aqui, é dinheiro pra construir seu
barraco” (P. AL. 69 anos). Vale destacar que o principal meio de produção da pesca (os
recursos naturais) é de acesso livre, o que permite seu não controle comunitário, em muitos
casos, com exceção de algumas comunidades baseadas em direitos constitucionais.
3.7 A Dinâmica de pesca na Ilha do Beto
Conforme esclarece Ramalho (2006), o horário e a duração do trabalho dos
pescadores são orientados pelas condições do meio natural. Pode-se assim afirmar que a
dinâmica dos elementos naturais constitui o principal fator responsável pelo ritmo de trabalho
dos sujeitos envolvidos na pesca artesanal. Tais elementos foram também observados na Ilha
do Beto. Dentre eles cabe mencionar a importância das marés, cujas oscilações definem o
horário e a permanência das pescadoras no ambiente de trabalho.
Acerca disso, identificou-se que as pescadoras demonstram domínio e precisão da
leitura das marés, o que contribui para definição do horário adequado para realização da
atividade bem como das espécies passíveis de captura, como menciona uma pescadora “[...]
Tem gente que pesca na maré de reponte, porque dá mais camarão. Agora a melhor mesmo é
quando tá seca, porque a gente pesca de tudo”! (P. JO. 54 anos). O conhecimento sobre a
dinâmica socioambiental constitui algo imprescindível para exploração dos recursos
pesqueiros, sob risco de comprometer a produtividade daquele dia de trabalho, como
esclarece os fragmentos abaixo
O pescador sabe quando a maré tá boa, na realidade o que identifica é a precisão, porque a gente não sabe onde o pescado tá, só quem sabe é Deus, tá dentro d´agua mas a gente não sabe. Então, é uma aventura que a gente vamos. Tem local que a gente vai aí tá fraquinho, aí pega o barco e vai pra outro que já dá melhor (P. S. 44 anos)
A gente sabe a maré pela lua e pelo horário, porque se eu for pra maré hoje, vamos supor eu vou hoje aí não vai dá mais certo aí volto pra casa. Aí já tenho noção de como a maré vai correr a semana todinha, até eu voltar lá de novo! (P. F. 46 anos)
97
Pra gente sair pra pescar tem que ver o horário da maré, porque cada dia ela dá um horário diferente. Por exemplo, ela hoje secou 05:00h, amanhã já vai ser 06:00h. Cada dia ela vai prolongando uma hora a mais. Então a gente só vai no horário correto pra entrar dentro do mangue. Porque se o mangue tiver cheio? Eu vou sair daqui com a maré alta pra fazer o quê? Então aí tem que ficar sentada no barco esperando a maré secar pra entrar no mangue. Aí é por isso que a gente só sai de acordo com horário da maré, quando ela já tá no ponto da gente pegar o peixe (P. VH. 45 anos).
A dinâmica das marés é uma questão que merece ser discutida, pois chama atenção a
diversidade de denominações e aspectos atribuídos pelas pescadoras aos ciclos das marés.
Durante a realização do trabalho de campo foram identificadas as seguintes designações sobre
o fenômeno de oscilação das águas: Maré Morta, Maré de Lançamento, Maré de Reponte,
Maré Grande, Maré de Vazante e Maré Igual.
As variações conferidas ao ciclo das marés apresentam certo grau de dificuldade de
compreensão, sendo difícil distinguir um ciclo do outro. Por esta razão este foi um assunto
recorrente durante as entrevistas, a fim de elucidar as dúvidas suscitadas sobre este assunto.
Pode-se, acima de tudo, dizer, que o ritmo de vida e de trabalho no lugar faz-se refaz-se
através de um metabolismo constante com o ritmo das águas.
De acordo com as pescadoras foram levantadas as seguintes variações e características
acerca das marés:
Maré Morta é quando não seca ou quando não seca o suficiente para viabilizar a
realização da atividade, conforme esclarece os relatos de Aninha e D. Verinha
respectivamente, “ela não seca e nem enche”; “maré morta é uma maré que ela fica
empanturrada ela não seca, ela seca, mas fica sempre cheia aí não presta pra gente mergulhar,
não presta pra pegar peixe, porque os peixes tão tudo no fundo”. Além disso, esta maré
também inviabiliza a captura ou extração de crustáceos e moluscos a exemplo do maçunim,
ostra, sururu caranguejo. Por esta razão uma pescadora enfatiza “não é boa pra marisco” (P.
V. 53 anos), pois a captura destas espécies prescinde que a maré esteja seca. Nesse período, as
mulheres não costumam ir para Ilha, devido às pequenas variações dos níveis de água,
dificultando desta forma a captura do pescado.
Maré de Lançamento é quando está começando a crescer. Também conhecida como
“maré de mosquito”. Tal denominação se dá porque as pescadoras associam esta maré à forte
incidência de mosquitos na Ilha e no mangue. Isto ocorre porque à medida que ela vai
98
crescendo, a água adentra o mangue incitando os mosquitos, conforme subentende-se a partir
da explicação abaixo
Se a maré lançou ontem hoje ela não dá (mosquito), amanhã ela dá, porque em tudo que ela vai entrando dentro do mangue, vai expulsando os mosquitos, a maré vai lavando o mangue, porque maré é assim: vai lavando tudo que é ruim, aí mosquito é ruim eles voam! (P. F. 46 anos).
Sua característica marcante é a permanência das águas no nível baixo, por isso é
apropriada para pescar todos os tipos de pescado, principalmente camarão e peixe.
Maré de Reponte expressão usada para designar a maré quando está começando a
encher38. Este tipo é adequado para a pesca de camarão com redinha.
Maré Grande o termo “grande” é utilizado no
sentido de extensão. A diferença entre esta e a maré de
lançamento pode ser esclarecida a partir deste
argumento “maré grande não é maré cheia, é quando
ela toma todo o mangue, é grande porque é comprida”!
(P.A. 48 anos). Neste período, a água chega a atingir os
quintais dos barracos, relata a P. N. “a maré grande
toma isso aqui tudinho, até no quintal ela bota”! Para
evitar que a água invada os barracos as pescadoras
utilizam cascos de maçunim na frente e nos quintais dos
barracos (Figura 16).
A Maré de Vazante ocorre quando as águas estão secando, viabilizando, assim, a
realização da atividade. Quanto a Maré Igual, se dá quando as águas não aumentam nem
diminuem de nível ou extensão.
As denominações atribuídas às marés aqui explicitadas trazem em suas definições
características bastante sutis, o que mostra e anuncia o sofisticado conhecimento das
pescadoras. Além disto, por vezes a compreensão para a pesquisadora tornava-se difícil,
devido ao paradoxo de expressões e termos utilizados pelas pescadoras, para explicação dos
ciclos: “[...] a gente diz que é maré morta, mas não é morta não, ela é violenta, ela é a mais
38 Para as pescadoras existe uma sutil distinção entre os termos “encher” e “crescer”, quando atribuído às marés. O primeiro significa elevação do nível das águas, enquanto o segundo expressa o crescimento (em extensão) das águas.
99
viva que tem” (P. S. 44 anos); ou ainda “[...] maré morta não seca, ela seca, mas fica sempre
cheia”.
Conforme constatado, depreende-se que a maré constitui o principal fator que orienta a
prática pesqueira na Ilha do Beto. As pescadoras entrevistadas revelaram realizar a atividade
todos os dias da semana, exceto em períodos de maré morta.
As saídas para realização do seu saber-fazer produtivo podem ser realizadas várias
vezes ao dia, isto vai depender de alguns fatores, como a espécie de pescado. A dinâmica de
captura do caranguejo, por exemplo, prescinde que a mulher desloque-se duas vezes para o
ambiente de pesca, pois, primeiro dispõe-se as armadilhas no mangue e depois coleta-se o
crustáceo capturado. O tempo que separa as duas fases de captura do caranguejo pode ser
relativamente grande, por isso algumas mulheres revelaram realizar outras tarefas enquanto
aguardam, tais como coleta de sururu e ostra, conforme atestam os fragmentos a seguir
Às vezes deixo a ratoeira no mangue depois volto pra pegar. Enquanto a ratoeira tá no mangue, eu saio para catar sururu, ostra, pra passar o tempo e o caranguejo bater a ratoeira (D. JU. 57 anos).
Depende do pescado, quando vou pro caranguejo, vou de manhã botar as ratoeiras e mais tarde vou mariscar. Quando é de noite, se a maré tiver boa, vou pro peixe e pro camarão! (P. A. 48 anos)
A disposição também é um importante elemento considerado. Quando saem para
pescar durante o dia, em períodos de maré seca, chegam a passar um turno inteiro (manhã ou
tarde, depende da maré) no ambiente de pesca, o que corresponde a seis horas ininterruptas de
trabalho. Assim, após um dia exaustivo, sair para pescar à noite torna-se impraticável,
conforme esclarecem os argumentos “[...] pesco de noite quando não estou muito cansada,
porque passar o dia inteiro no mangue não é pra qualquer um” (P. C. 43 anos), “[...] às vezes
vou de noite também dependendo do cansaço” (P. JO. 54 anos).
As particularidades apresentadas, no que se refere à frequência com que realizam o
trabalho diariamente, constituem apenas exceções, pois, de maneira geral o que fora
observado é que a grande maioria das pescadoras costuma sair para a atividade mais de uma
vez, pelo dia e pela noite.
100
3.8 Colheres, facão, baldes e cestos: rumo à coleta do maçunim
Como já explicitado, não há um horário
estabelecido para pescar, depende da maré. Todavia,
geralmente quando a atividade é realizada pelo dia, o
trabalho das mulheres tem início nas primeiras horas da
manhã, ainda no barraco, com a preparação da
alimentação e dos instrumentos de pesca necessários.
Devido ao horário, a primeira refeição é realizada no
ambiente de trabalho (Imagem 17), por isto, além dos
apetrechos como balde, cestos, vasilhas, colheres e
facão, as pescadoras levam para o trabalho café, pão,
biscoito, fruta, principalmente manga ou banana, pois a
depender do tempo que precisem ficar também almoçam no local. A refeição constitui-se da
mistura de frutas e farinha. Dessa maneira, elas ficam alimentadas, assegurando assim a
produtividade do dia.
Neste horário (durante o dia) o trabalho compreende a captura das espécies de
crustáceos (caranguejo e aratu), moluscos (sururu, ostra e maçunim) principalmente, e peixe.
Os primeiros são encontrados no ecossistema manguezal, com exceção do maçunim que é
coletado nas crôas. O segundo, encontrado no rio Vaza Barris.
Durante o acompanhamento que fizemos do cotidiano de trabalho das pescadoras, fora
observado a dinâmica de pesca do maçunim (molusco semelhante ao sururu quando retirado
da concha) (Imagens 18 e 19). Ao chegar à crôa as mulheres se preparam (vestem meias e
colocam chapéus) e organizam os instrumentos (colheres, facão, baldes e cestos) para
iniciarem a captura do molusco. De acordo com as pescadoras, este é o pescado mais fácil de
coletar, visto que basta apenas localizá-lo na areia com a colher ou faca, pegar com as mãos e
colocá-los no recipiente.
101
As mulheres se separam, mas ficam a uma distância em que possam conversar. Chama
atenção às posições durante a coleta (Imagens 20, 21 e 22). Elas iniciam de cócoras, depois de
joelhos, sentadas e até mesmo deitadas de bruço ou de lado. É comum a expressão de dor ao
mudarem de posição. Porém, o difícil trabalho não é razão para o realizarem caladas, tristes
ou aborrecidas, é comum a conversa, a cantoria e as brincadeiras entre o grupo.
102
Como mencionado anteriormente, a maré constitui o
principal fator que influencia o ritmo de trabalho na pesca, o
que foi observado in locus durante o acompanhamento da
coleta do maçunim, à medida que a maré começa a encher as
pescadoras começam a migrar para regiões da crôa onde a
água ainda não alcançou (Imagem 23). O processo de
migração para áreas ainda secas é realizado repetidas vezes,
porque as pescadoras têm pressa e querem aproveitar ao
máximo a maré baixa para coletarem a quantidade suficiente
para encherem seus baldes e cestos, alcançando assim a cota
de pescado daquele dia.
Chama também atenção o fato delas não lamentarem
por não terem tempo suficiente (por causa da maré) para
coletarem uma boa quantidade de pescado. Quando observam
a água tomando seu espaço, falam expressões do tipo: “Já vem
ela”, “a maré tá dizendo já tá bom vão embora”, “oh mulher
deixe a gente ficar mais um pouco”! Quando a água toma toda
a crôa, a coleta do molusco é realizada mesmo dentro d´água
(Imagem 24) até o momento em que as pescadoras
reconhecem que não dá mais. Continuar o trabalho com a
maré cheia é perigoso, haja vista os riscos de acidentes com
siris e águas vivas, como é possível observar neste fragmento “o siri belisca e corta”! (P. JU.
57 anos).
Com o nível da água aumentado cada vez mais depressa, não há outra opção senão
cessar a pesca do maçunim naquele dia. Elas se conformam expressando os seguintes
argumentos “é assim mesmo”, “tá bom”, “é um pouquinho hoje, e um pouquinho amanhã”,
“amanhã a gente vem de novo”! Ou seja, não dar para ir contra os fluxos e refluxos da maré.
Terminada a coleta, as pescadoras colocam os muçunins em cestos para serem
lavados. Todo o processo ocorre ainda no local de pesca a fim de racionar a água do barraco,
103
já que a Ilha não dispõe de água encanada. Ao chegarem aos barracos, as mulheres terão
“somente” o trabalho de cozinhar e desmiolar39 o pescado.
Ao retornar à Ilha, cada pescadora leva para o
barraco seus respectivos cestos de pescado. Após o almoço,
inicia-se o processo do beneficiamento do produto, que
ocorre obedecendo-se três etapas distintas: cozimento,
desmiolamento e armazenamento. Na primeira, o maçunim é
colocado em recipientes do tipo caldeirão e latas
(principalmente), para ser cozido em fogo a lenha (Imagem
25). A etapa de cozimento que é igualmente realizado com
ostras, sururu e camarão. Esta fase é individual, ou seja,
cada pescadora cozinha o pescado no seu respectivo barraco.
O segundo momento do beneficiamento corresponde ao desmilomento, processo em
que a carne do maçunim (e outras espécies de pescado como ostra, sururu e aratu) é retirada
do casco. Esta etapa é comumente realizada na frente ou nos quintais dos barracos, e,
diferentemente da primeira, este é um procedimento coletivo. As pescadoras juntam-se para
agilizar o processo, fazendo com que isto, constitua-se num rico momento de sociabilidade,
no qual as mulheres se aproximam não só para ajudar, mas também para conversar sobre os
mais diversos assuntos, relacionadas ou não à pesca (Imagens 26 e 27).
39 Expressão utilizada pelas pescadoras da Ilha para designar o processo de retirada do pescado do tipo maçunim, ostra, sururu e aratu do casco.
104
A última fase consiste no armazenamento do
pescado em gelo (Figura 28). Assim, o produto é
conservado durante toda a semana, até a sexta-feira
ou o sábado, dias em que comumente as pescadoras
saem da Ilha para a comercialização do pescado em
feiras, domicílios ou entregar para os atravessadores
na Sede do Município.
De acordo com a maioria das entrevistadas, o destino do pescado é,
predominantemente, a comercialização, como ilustra o gráfico 03, ou conforme esclarece o
relato de uma pescadora
Gráfico 03: Destino do pescado Fonte: MARTINS/2012.
Eu comercializo tudo que pesco, vendo mais que o quê como, gosto mais de carne, a pessoa trabalha com peixe a semana toda pra tá comendo peixe direto também não dá! Eu gosto mais é de ver dinheiro entrando no meu bolso (P. VH. 45 anos).
Contudo, ainda que se priorize a venda do pescado, há de se enfatizar, que é comum a
separação de uma parte da produção para o consumo familiar. Tal situação observada in locu
corrobora com Diegues ao afirmar que o objetivo primordial da pesca artesanal é o mercado
105
“[...] ainda que o balaio ou cesto de peixe seja religiosamente separado [...]” (1983, p. 155),
para o consumo familiar.
No que diz respeito à comercialização, os valores dos pescados tendem a variar de
acordo com a existência da figura do atravessador. Dentre as pescadoras entrevistadas apenas
uma repassa aquilo que coleta ao atravessador. Por isso, o seu rendimento é substancialmente
menor em relação àquelas pescadoras que vedem seus pescados nas feiras livres do
município. Outros aspectos como tamanho da espécie e período do ano podem influenciar no
preço dos produtos, conforme ilustra o quadro a seguir:
PESCADO MEDIDA VALOR ESPECIFICIDADES Sururu 1 kg 15,00
18,00 Valor durante semana santa
Maçunim 1 kg 10,00 15,00 a 18,00
Valor durante semana santa
Camarão 1 kg 8,00 a 10,00
20,00 a 22,00
Valor do produto capturado pela pescadora Valor de revenda
Robalo 1 kg 18,00 a 20,00 Dependendo do tamanho
Tainha 1 kg 10,00, 12,00 ou 15,00
Dependendo do tamanho
Carapeba 1 medida
3,00 ______
Siri Prato com 05 und
5,00 ______
Caranguejo Corda com 06 und
2,00
7,00
Valor repassado ao atravessado Valor do produto na feira
Peixinho 1 medida 4,00 ______ Quadro 04: Demonstrativo dos valores de pescado Fonte: MARTINS, 2012.
106
3.9 Redes na maré: os desafios da pesca noturna
De acordo com o levantamento realizado durante o trabalho de campo, todas as
mulheres da Ilha pescam à noite. Em tal horário, a pesca também é influenciada pelo ritmo
das marés, todavia, diferentemente do que acontece pelo dia, o trabalho à noite inicia-se mais
tarde, como esclarece a passagem da P. G. “[...] O horário de sair pra pescar depende da maré.
A gente sai 21:00h, 22:00h, 23:00h depende, se sair mais cedo, chega mais cedo também, mas
geralmente é nessas horas mesmo”!
Conforme observado na realização da pesquisa de campo, percebe-se que a maioria
das pescadoras prefere pescar neste horário. Para tanto, foram elencadas as seguintes
justificativas: a dificuldade do trabalho durante o dia devido ao calor, o prazer e a
tranquilidade durante a noite, ou ainda a facilidade de captura das espécies de peixe de hábitos
noturnos, conforme esclarecem os depoimentos abaixo:
Eu prefiro pescar de noite, por causa do sol, pesco a noite toda só chego de madrugada! (P. M. 48 anos).
O melhor é de noite, gostoso é pescaria de noite porque o peixe é fisgado mais à noite sabia? Porque de dia ele tá nos pau, ele é sabido, de dia tá nas toca e de noite ele sai pra comer e nós pega ele, a gente tem que ter mais experiência do que ele porque se vacilar não pega nada! (P. F. 46 anos).
Pescar de noite é tranquilo, é bonito quando você ver a redinha cheia de camarão, é bonito! (P. N. 54 anos).
Neste turno, as espécies capturadas são camarão e
peixe (principalmente), siri e arraia (quando vem na rede
com o peixe ou o camarão), como pode ser observado na
Imagem 29, ao lado. .
A frequência com que realizam a atividade durante
a semana, no aludido horário, é determinada pela maré,
mas também depende de outros fatores como o dia em que
as pescadoras chegam à Ilha, a ocupação em outras
atribuições inerentes à atividade, como o beneficiamento do pescado, ou ainda a disposição
física depois de um dia inteiro de trabalho. Estes aspectos são assinalados nas afirmativas das
pescadoras a seguir:
107
Pesco de noite quatro vezes na semana (tirando a segunda). Quando a maré dá fraca saio quatro vezes e quando tá boa três ou duas noites (P. JU. 57 anos).
Se a gente vem na segunda, então a gente sai pra pescar de noite todos os dias. Se eu voltar pra casa na sexta então eu pesco quatro noites, agora se for no sábado então saiu cinco noites (P.A. 48 anos)
Pra sair de noite depende da maré, e também às vezes tem outra coisa pra fazer, como desmiolar o marisco, e às vezes não vou porque tô cansada! (P. S. 44 anos).
As mulheres saem durante a noite na companhia do marido, filhos, parentes e
esporadicamente com outras mulheres. Assim como a maré influencia a rotina de pesca, a
presença de parentes e amigos próximos também constitui um importante fator para a
realização da atividade na Ilha, o que pode ser verificado no argumento de uma pescadora
“[...] nunca pesquei sozinha, sozinha só maçunim e sururu, mas tem que ter companhia pra
gente ficar conversando” (P. V. 53 anos).
As pescadoras assumem atribuições distintas no turno da noite. Elas não atuam
diretamente na atividade como ocorre durante o dia, exceto quando realizam a pescaria de
redinha, prática que será explicitada mais adiante.
Todavia, ainda que de forma indireta, há de se destacar que as pescadoras reconhecem
a importância do seu trabalho “[...] de dia ou de noite, independente de tá catando marisco ou
ajudando meu marido no barco, o que eu faço é importante” (P. A. 48 anos). “[...] quando a
gente tá no barco somos parceiro, companheiro de pesca, um ajuda o outro, um depende do
outro, se não for desse jeito a pescaria não dá certo”! (P. S. 44 anos).
O trabalho feminino consiste em uma parceria com o marido durante a realização da
atividade, que compreende o controle do barco, puxar a rede e retirar o pescado da rede para
armazenar no gelo. Ainda que não esteja lhe dando diretamente com a captura do pescado,
para a pescadora, todas estas funções se configuram em pesca como enfatiza a P. VH. ao ser
questionada sobre o que realiza não constituir-se propriamente pesca
Mas eu tô pescando! Sou eu que remo, eu sou a popeira40. Enquanto ele fica no bico do barco jogando a tarrafa pra pegar o peixe, eu fico controlando o barco, se ele mergulhar eu tenho que segurar a corda da tarrafa e ficar controlando o barco, que é pra ele não bater a cabeça no barco, nem na hélice, nem ele se enganchar quando eu puxar a rede. A mulher tem que tá
40 Termo utilizado pelas pescadoras da Ilha para indicar quem assume o controle do barco.
108
ativa, ter cuidado com o marido que tá em baixo. Então a minha função é essa!
Nesse sentido, o trabalho realizado pela mulher junto ao marido ultrapassa o sentido
de auxílio ou ajuda, pois além da imprescindível cooperação na atividade, é de sua inteira
responsabilidade também o meticuloso trabalho de atenção e cuidado com o companheiro, a
fim de evitar possíveis acidentes ao cônjuge. Sem este importante apoio, talvez não fosse
possível alcançar o êxito durante o exercício da pesca na Ilha do Beto, onde as funções
inerentes ao homem e a mulher são igualmente relevantes. Assim, o papel atribuído a mulher
está longe de ser subestimado.
A pesca noturna é realizada em rios e em locais mais afastados da Ilha como a “boca
do oceano”, expressão utilizada para denominar mar aberto. Segundo os pescadores, em tal
ambiente são encontradas espécies de peixes maiores, agregando assim melhor valor
comercial.
Apesar dos riscos que o oceano oferece, as mulheres costumam acompanhar o marido
nas embarcações41. Esta é mais uma característica interessante e peculiar deste grupo de
pescadoras, fato que contraria uma realidade assinalada em alguns estudos (WOORTMANN,
1992; BORGONHA; BORGONHA, 2008), sobre comunidades que têm sua fonte de renda na
pesca, cuja presença da mulher não é admitida nas embarcações por acreditar trazer má sorte,
ou por determinarem que barco e o mar constituem espaços masculino onde mulher não é
bem vinda.
Por conhecerem esta realidade, as mulheres da Ilha descrevem as situações de perigo
que já vivenciaram. Dificuldades como problemas com a embarcação, mas, sobretudo, o
medo, visto que estão vulneráveis aos riscos que o oceano oferece. Relatam precisamente as
condições do barco em meio às ondas: “[...] é como se a onda engolisse a gente” “quando
você tá lá dentro você só ver o barco subir, depois que passa aquele bolo todo de água cadê o
barco? você não ver mais nada”.
Além dos perigos do mar, as mulheres temem também acidentes com o próprio
pescado, como peixe e arraia, por exemplo. Por pescarem peixes maiores, elas têm medo de
caírem dentro d´água quando estão ajudando o companheiro a puxar a rede: “teve uma vez
que meu marido tava puxando a rede, quando penso que não ele foi arrastado e eu quase cair
41 Das treze pescadoras entrevistadas 04 (quatro) informaram pescar também no ambiente marítimo, duas acompanhando os companheiros, as demais costumam pescar juntas sem a companhia da figura masculina.
109
dentro d´água com ele” (P. F. 46 anos). Quanto às arraias, elas temem acidentes com o ferrão:
“quando as arraias vem na rede, elas vêm se batendo e também as vezes elas voam pra dentro
do barco por causa da luz da lanterna ou do lampião, aí eu morro de medo daquele ferrão
pegar na gente”(P. S. 44 anos).
Os riscos enfrentados, assim como as experiências de perigo vivenciadas, não
constituem fatores que impossibilitem o acesso e a atuação das mulheres no ambiente
marítimo, pois, ainda que temerosas, como sinalizam os relatos, as pescadoras não se
intimidam a se aventurar e enfrentar os infortúnios do oceano. Tal realidade confronta a ideia
preconcebida de que o mar é espaço proibido para as mulheres, pois o que importa
verdadeiramente para as pescadoras da Ilha do Beto é assegurar suas necessidades de
sobrevivência, independente do ambiente em que atuam.
Em se tratando da realização da atividade em rio, fora observada a prática de pesca com
redinha, instrumento que lembra uma rede de vôlei. Esta técnica é realizada por duas
pescadoras, cada uma segura uma das extremidades da rede. Assim, elas adentram o rio com o
lampião na cabeça (que ajuda muito pouco a iluminar) e uma bacia amarrada à cintura para
colocar o pescado42. Desta maneira, fora presenciada a P. JO e a P. N. manipulando a rede
indo e voltando repetidas vezes.
Este momento foi acompanhado nas
margens do rio Vaza Barris que passa em
frente à vila de pescadores (Imagem 30), de
acordo com as pescadoras a técnica ocorre da
mesma forma em outros pontos de pesca mais
distantes da Ilha, conforme esclarece (P. N.
54 anos) no fragmento abaixo
A gente pesca de redinha desse mesmo jeito em todo lugar, como aqui é pequeno a gente vai até certo meio e volta, mas aí quando a beirada (margem do rio) é maior a gente vai vai, quando chega em certo meio a gente tira da rede bota na bacia e vem embora!
42 Não foi possível fazer o registro fotográfico das pescadoras neste momento, em razão da ausência de energia elétrica no local, fator que comprometeu as fotografias.
110
Após uma hora e trinta minutos,
aproximadamente, a técnica de pesca com
redinha é finalizada, e as pescadoras retornam
para os barracos trazendo a bacia contendo
camarão e outras espécies de pescado como siri e
peixe (ainda pequenos), também pedras e folhas
(Imagem 31).
Por esta razão faz-se necessário realizar
um processo de separação (Imagem 32), no qual
é aproveitado somente o camarão enquanto o siri
e o peixe são devolvidos ao rio por estarem com
tamanho inapropriado para a comercialização.
Além de devolverem ao rio as espécies que estão
com tamanho inadequado, como observado
durante acompanhamento da pesca com redinha,
as pescadoras também não costumam coletar ou
extrair a ostra e o maçunim quando não estão em
fase adulta.
Tal fato chama atenção para o senso de
sustentabilidade das pescadoras, ainda que
desconheçam o significado do termo, suas
atitudes deixam transparecer a preocupação com
a conservação das espécies, respeitando o ciclo
de vida, e, por conseguinte, a manutenção da
própria atividade pesqueira.
Após o processo de separação (Imagem 33), o camarão é colocado no gelo para ser
torrado no dia seguinte, ou ainda na madrugada. Durante a noite, quando retornam cedo da
111
maré43 (por volta das 23:00h até às 00:00h ou nas primeiras horas da madrugada), é comum
algumas mulheres darem continuidade à jornada de trabalho, realizando o beneficiamento do
pescado, ou seja, separar e torrar o camarão: “[...] Já cansei de passar madrugada adentro
torrando camarão” (P. C. 43 anos). De acordo com as pescadoras, isto ocorre em razão da
insônia desencadeada pelo cansaço “[...] a gente chega tão cansada que não consegue dormir,
então se é de tá bolando na cama é melhor tá cuidando, porque já é uma coisa a menos pra
fazer no outro dia” (P. S. 44 anos).
Seja pernoitando em busca do pescado em rio ou na “boca do mar”, ou madrugando
para tratá-lo quando retornam aos barracos, é assim que se processa a dinâmica de pesca das
mulheres durante a noite. A árdua jornada exigida na profissão, durante o dia ou à noite, não
constitui necessariamente um fator determinante para que o momento da pesca seja definido
pelas pescadoras, considerando-se somente as dificuldades e riscos experienciados durante a
realização da atividade. De acordo com o que fora observado, a labuta diária da profissão
proporciona também satisfação, alegria e prazer, como pode ser verificado nestes
depoimentos
É cansativo, mas também é divertido e alegre porque a gente conversa, rir e brinca (P. JO. 54 anos).
O momento da pesca é cansativo, mas a gente se diverte, não tem trabalho que não seja cansativo, mas é divertido (P. V. 53 anos)
O momento da pesca é bom, pense numa coisa que eu faço porque eu gosto é pescar, pra mim é melhor do que tá aqui nesse bar. Avemaria eu fico feliz quando saio de casa que levo minhas trouxas, minhas comidas pra chegar na quinta ou na sexta-feira em casa (quando retorna da Ilha) pra mim é bom (P. F. 46 anos)
43 Expressão utilizada para referir-se ao momento em que está em atividade, ou seja, pescando, qualquer que seja o ambiente (rio, mar, mangue, crôa, etc).
112
3.10 As outras ocupações das mulheres: Água e Lenha
A pesca não constitui a única atividade a que
as mulheres se dedicam na Ilha. Elas também se
ocupam de outras funções, cuja execução é essencial
para a realização das etapas que envolvem o
beneficiamento do pescado, já aqui abordado, como
também para a própria permanência dos indivíduos
que residem na Vila de Pescadores, já que os barracos
não dispõem de água encanada e fogão a gás. Este
trabalho é realizado na companhia do marido ou de
outras mulheres, como pode ser observado nas imagens 34, 35 e 36.
.
A água é utilizada para a limpeza do barraco, cozimento do pescado e higiene pessoal.
A lenha é utilizada para cozimento das refeições e do pescado. Os produtos são estocados nos
barracos, por isso a freqüência com que realizam estas funções depende da duração dos
estoques.
113
Tais produtos são localizados numa
fazenda situada a menos de dez minutos da Ilha. O
trajeto até o local é feito de barco, depois o grupo
segue a pé. Durante acompanhamento da extração
da lenha foi possível observar que as mulheres não
retiram a madeira das árvores. Elas recolhem
somente os galhos secos, como pode ser
constatado também na Imagem 37. De acordo com
as pescadoras a busca por galhos secos é preferida
para agilizar o processo de cozimento dos
produtos, e também para evitar o desmatamento, conforme esclarece estes depoimentos “[...] a
gente pega os galhinho assim porque pega mais rápido” (P. A. 48 anos) “[...] se na mata já
tem o tipo de madeira que a gente precisa, pra quê a gente vai tá cortando árvore?” (P. V. 53
anos). Enquanto procuram a lenha adequada, as mulheres costumam também coletar as frutas
encontradas no caminho como adicuri, manga e coco (Imagem 37), para fazer moqueca e para
produção do óleo utilizado como repelente.
A coleta de água (Imagem 38) ocorre numa
fonte situada no mesmo local onde as mulheres
costumam pegar lenha. Este momento foi observado
após o acompanhamento da rotina de pesca do
maçunim, por esta razão, junto com os vasilhames e
baldes para armazenar a água, as mulheres também
levam a roupa suja daquele dia de trabalho para lavar
na fonte.
Após o trajeto de barco, as pescadoras ainda
caminham aproximadamente vinte minutos até chegar à
fonte, no local as mulheres enchem as garrafas (Imagem
39), lavam roupa e tomam banho para tirar o excesso de
lama do corpo já que a água no barraco é cuidadosamente
racionada, dada a indisponibilidade deste recurso nos
barracos, bem como as dificuldades enfrentadas para
obtenção do mesmo.
114
O retorno para a Ilha constitui um momento extremamente difícil para as mulheres,
pois o peso dos vasilhames com água e a irregularidade do terreno (trajeto percorrido até o
barco) exigem força física e resistência.
A realização destas tarefas e a comercialização do pescado durante os finais de semana
na Sede do Município completam a jornada de trabalho relativo à pesca na Comunidade Ilha
do Beto.
O contato com as pescadoras da localidade permitiu constatar que o papel das
mulheres na atividade pesqueira assume uma conotação diferenciada, tendo em vista que a
importância do seu papel é reconhecida e assumida por elas. Somado a isto, foram observadas
outras surpreendentes característica peculiares ao grupo, tais como: dependência masculina
em relação à mulher para a realização da atividade pesqueira, deste modo, depreende-se que a
participação feminina não está restrita à coleta de marisco e crustáceos em ambientes
estuarinos, ou à execução das fases pré e pós captura como assinalam Alvarez e Maneschy
(2010); inexistência de atribuições ocupacionais distintas entre os gêneros, constatadas a
partir da presença da mulher nas embarcações, desempenhado funções também no mar,
espaço que em algumas comunidades é considerado exclusivo ao homem conforme explicita
Woortmann (1992); ainda no que se refere a este fator, o oposto também fora observado, ou
seja, o envolvimento do homem em tarefas destinadas constantemente às mulheres, como o
beneficiamento do pescado, por exemplo.
Desse modo, pode-se inferir que além da importante atuação da mulher em todas as
etapas que envolvem este setor, seja capturando, beneficiando, comercializando o pescado ou
acompanhando o marido nas embarcações, é interessante observar que na Ilha do Beto,
pescadores e pescadoras compartilham o mesmo espaço, não havendo diferenciação entre as
tarefas que homens e mulheres realizam.
115
3.11 Entre rios, estuários e mangues: Um Lugar chamado Ilha do Beto
A Ilha do Beto (Imagem 40) é uma pequena
localidade situada entre manguezais e o estuário do Rio
Vaza-Barris em Itaporanga D´Ajuda/SE. O quadro físico
natural encontrado no local favorece o desenvolvimento da
pesca artesanal, atividade responsável pela obtenção de
sustento e renda de inúmeras famílias no município.
Além da realização da pesca, o lugar aqui
evidenciado, constitui um espaço onde se processam
relações sociais e um modo de vida particular,
caracterizado por ralações de parentesco, amizade e
vizinhança, fatores que impulsionaram o acesso e a
permanência de alguns indivíduos no local; E embora o
grupo social a que este estudo se direciona, ou seja, as
pescadoras convivam com condições socioeconômicas
adversas, como a falta de infraestrutura e as dificuldades
inerentes à profissão pesqueira, não deixa de expressar
pelo lugar sentimentos como o de localidade, identidade,
pertencimento e reciprocidade, como esclarecem os
fragmentos extraídos dos relatos
Não penso em sair daqui de jeito nenhum, penso em fazer raízes aqui (P. F. 46 anos).
Se eu sair daqui é a mesma coisa que tirar o peixe de dentro d´agua e colocar no seco (P. JU. 57 anos).
Eu sou a única aqui que não pesca pra vender, eu pesco pra comer mesmo. Quando os vizinho ver que eu não posso sair pra pescar por causa da minha idade e da minha saúde, aí me dão, essa daí (referindo-se à vizinha) é ouro achado, quando ela ver que eu não posso, do que ela tiver divide comigo! (P. AL. 69 anos).
A sorte de todo mundo na ilha é Sr. Élson, por causa dos barco, ele conserta os motor. Se ele sair daqui muita gente fica ruim (P. N. 54 anos).
116
A realidade encontrada na Ilha é condizente com a afirmação de Mota e Pereira
quando colocam que “as interações entre as populações com o meio originam tipos diversos
de relações entre as pessoas e o lugar [...]” (2009, p. 72). Deste modo, fora constatado que a
Ilha para as pescadoras possui um significado maior que a obtenção de alimento, trabalho e
renda. O lugar aqui enfatizado é também o local onde se processam relações subjetivas, das
quais emergem valores, afetividade e significados em relação ao lugar.
De acordo com Tuan, “[...] o que começa como espaço indiferenciado transforma-se
em lugar à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor” (1983, p. 6).
Compartilhando desta ideia, pode-se considerar então a Ilha do Beto como lugar, uma vez que
seus moradores possuem amplo conhecimento acerca da sua história, da dinâmica natural que
envolve o ritmo das marés e o comportamento das espécies de pescado. Além disso, destaca-
se também a ocorrência das relações de vizinhança e dos laços de reciprocidade entre as
pessoas que habitam a Ilha, comum a outras populações como os camponeses como discorre
Queiroz (1973), acerca dos grupos de vizinhança e das relações interpessoais existentes nos
bairros rurais. Estes fatores em conjunto concorrem para que o local possua um significado e
uma importância maior para seus moradores, que simplesmente um local onde sempre podem
encontrar o caranguejo, o peixe ou o camarão, e assim assegurarem sustento e renda.
Dentro deste contexto, graças ao cotidiano da pesca artesanal, a Ilha do Beto é
concebida pelas pescadoras não apenas como um local apropriado para a realização daquela
atividade, da qual obtêm sua fonte de sobrevivência, mas, sobretudo, o local onde se
estabelecem ricas interações entre as pessoas e destas com o ambiente em que vivem.
As interações, vivências e experiências empreendidas, assim como a história da Ilha
que se imbrica com a história dos moradores que ali vivem, suscitam um sentimento particular
pelo lugar, carregado de afeição, o qual se apresenta como único e singular, pois possui
características próprias que, em conjunto, conferem-lhe uma identidade própria.
Tal sentimento manifestado e reconhecido pelas pescadoras em relação à Ilha é
denominado por Tuan (1980), como topofilia, que significa o elo afetivo entre a pessoa e o
lugar ou ambiente físico. De acordo com o autor este sentimento pode surgir por diferentes
razões, no caso da Ilha, ele é resultado da intimidade física e da dependência material, haja
vista a potencialidade para exploração dos recursos pesqueiros, que o lugar oferece.
117
O significado da Ilha para as pescadoras pôde ser compreendido a partir dos
conhecimentos, experiências e da afetividade, expressos em relação ao lugar. Estes
sentimentos originam-se a partir da atividade ali desenvolvida. Todavia, a intensa interação
estabelecida entre os sujeitos e o lugar, admite para àqueles um significado muito maior que
simplesmente o local de trabalho. Para as pescadoras, a Ilha também corresponde ao lugar de
vida, amizade, alegria, moradia e sossego, elementos vivenciados cotidianamente pelas
pescadoras. Desta forma, a Ilha constitui-se o lugar das experiências vividas.
3.12 A história do lugar: com a
palavra as pescadoras
A localização privilegiada
entre importantes ecossistemas
(Imagem 41) favorece o
desenvolvimento da pesca
artesanal, esta foi sem dúvida, a
principal razão para atrair as
pessoas não somente da cidade de
Itaporanga, mas também dos
povoados Nova Descoberta,
Duro, e cidades próximas para o
local denominado por seus
habitantes como Ilha do Beto.
Inicialmente as pessoas frequentavam o local diariamente para realizar a atividade
pesqueira, retornando no final do dia para a cidade de origem. Depois, os pescadores
começaram a passar dias na Ilha, acampados em barracos de plástico para evitar o cansativo
processo de ir e vir da cidade ou povoado de origem.
A longa distância percorrida cotidianamente a pé do local de residência até a Ilha
constituiu-se a principal razão para a ocupação do lugar, pois muitos ainda não possuíam
barco, e aqueles que tinham não era a motor, como esclarecem os relatos a seguir
Quando a gente vinha pra passar uns dia, ficava no meio do tempo, não tinha nada aqui. Mas era melhor, a gente não aguentava vim e voltar todo dia porque era a pé. Não tinha barco, ninguém podia comprar barco nesse
118
tempo, nesse tempo os filhos eram pequenos, ninguém tinha dinheiro, a renda era só daqui mesmo! (P.V. 53 anos)
Ficava muito distante pra ir todo dia e voltar pra Itaporanga, e tá todo dia no remo né? Porque hoje existe o motor, mas no tempo da gente não existia, era muito difícil! (P. AL. 69 anos). A gente vinha de pé, sem barco meu Deus cortando aquela lama todinha dentro do mangue. (P. F. 46 anos).
Este período foi marcado pelas difíceis condições de vida e trabalho enfrentadas pelos
pescadores, impostas, sobretudo, pela hostilidade do ambiente e pela falta de estrutura para a
devida acomodação das famílias
A gente já vinha com os plástico, pra procurar sempre aquele cantinho que a maré não molha, pra poder armar o barraco pra ficar (P. F. 46 anos)
A gente vinha e ficava nas beirada do mangue porque tinha muito mato aqui, espinho branco, formiga, mosquito. Ói naquela época é que era sofrimento viu! (P. AL. 69 anos).
Após um longo período nestas condições surge a necessidade de fixar moradia na Ilha,
que ocorreu a partir da construção de barracos, com a finalidade de melhorar e facilitar as
condições de permanência dos pescadores no local.
Não há consenso sobre o primeiro morador da Ilha. Para algumas pescadoras, a
primeira pessoa a construir um barraco foi um senhor chamado Moithaco, natural da Cidade
de Lagarto, mas que costumava pescar na região. Por causa desse morador, o local ficou
conhecido inicialmente como Ilha do Moithaco.
Quem teve a idéia de fazer os barraco foi um homem que já morreu. Foi ele quem fez o primeiro barraco lá, aí a gente viu e começou a fazer, a idéia de morar lá foi a partir dessa pessoa. Esse senhor foi e aí a gente começou a ir também! Ele morava pras banda de Lagarto, como ficava longe de vim pra pescar aí ele fez um barraco. Por causa dele a gente chamava aqui de Ilha do Moithaco. (P. F. 46 anos).
Por outro lado, para alguns moradores, a primeira pessoa a construir primeiro barraco
foi a P. AL. a qual revela no fragmento a seguir como teria iniciado a construção dos barracos
O primeiro barraco daqui foi o meu, eu mesmo construir com o meu marido e fiquei por aqui. Aí outros foram chegando, foram fazendo e formou isso aqui que você tá vendo hoje!
119
Outras pescadoras atribuem a descoberta do lugar, bem como a iniciativa de
construção dos barracos a vizinhos e parentes residentes da cidade de Itaporanga, que
frequentavam o local para realização da pesca, como lazer e entretenimento durante os finais
de semana.
A gente descobriu esse lugar por causa dos vizinhos de lá de Itaporanga. Quem começou a morar aqui foi uns compadres que não eram nem cadastrados, eles começaram a vim por lazer, pra pescar e comer o peixe aqui mesmo final de semana. Depois veio pra fazer os barracos que primeiro era de plástico e depois passou a ser de madeira. Aí quando todo mundo viu isso eles fora passando a fita para o povo e a gente como pescador veio também, a gente fizemos como invasão do sem terra, aí a Ilha toda encheu de barraco (P. JU. 57 anos).
Cabe ainda mencionar que dentre os primeiros frequentadores da Ilha fora mencionado
também um morador da cidade de Itaporanga chamado Beto, daí o nome atual do local.
Mas, de maneira geral, o que fora observado, é que a ideia para o estabelecimento das
moradias se deu em razão da real necessidade e dependência dos recursos pesqueiros
encontrados na localidade, cuja exploração constitui a única fonte de trabalho e renda para a
maioria dos habitantes da Ilha, conforme atestam os fragmentos abaixo
Comecei a freqüentar a Ilha desde quando comecei a pescar, minha vida por vida foi ali, aí arrumei aquele canto pra fazer meu barraco (P. F. 46 anos) Vinha pra cá pra pescar, quando via que a pescaria dava certo resolvi construir um barraco, no começo era de plástico depois fui melhorando (P. V. 53 anos). Eu vinha pra cá pra pescar e voltava pra casa todo dia porque não tinha barraco. Aí foi quando surgiu da gente fazer um barraquinho! (P. C. 43 anos).
Atualmente na Ilha existem 34 barracos. Os primeiros foram construídos pelos
próprios pescadores com a ajuda de vizinhos. Posteriormente, as melhorias das condições de
vida e trabalho possibilitaram a realização de reparos nas habitações. Atualmente alguns
barracos se destacam por apresentarem o conforto (pode-se assim dizer) de uma casa, com
piso, móveis, banheiro, quartos, cozinha tudo muito bem estruturado e organizado. Já outros,
apresentam condições precárias de higiene, instalação.
Grande parte das pescadoras está na Ilha há mais de dez anos. De acordo com o que
foi verificado, a razão primordial para permanecerem no local é o atendimento das
120
necessidades de sobrevivência, alcançada graças a realização da pesca artesanal, como pode
ser constatado nestes fragmentos [...] aqui é meu meio de ganhar meu pão (P. VH. 45 anos),
[...] é onde a gente arranja o pão de cada dia, é do que a gente sobrevive (D. JU. 57 anos), [...]
aqui é meio de ganhar a vida (P. A. 48 anos). Depreende-se a partir destes relatos que as
pescadoras referem-se ao lugar como fonte de trabalho.
Somando-se a isto, outro fator considerado para a permanência na Ilha, é a
biodiversidade encontrada no local, favorecendo o desenvolvimento da atividade pesqueira,
“[...] tudo o que quer acha aqui (P. A. 48 anos)”, “[...] aqui a gente só tem vantagem porque
pesca o siri, o camarão, o peixe, o que quiser aqui tem pra escolher” (P. F. 46 anos).
Outro aspecto importante apontado é a proximidade da Ilha em relação à cidade de
Itaporanga, local de origem da maioria das pescadoras e também para onde migram para a
comercialização do pescado no final de semana, bem como a facilidade de acesso aos pontos
de pesca existente no entorno da Ilha, a este respeito observa-se os seguintes argumentos “[...]
aqui é bom porque tanto é perto dos lugar que a gente pesca como é perto de casa” (P. G. 44
anos) “[...] se a gente fosse sair de lá de Itaporanga todo dia, quando chegasse aqui a maré já
ía tá enchendo” (P. JU. 57 anos), “[...] só aqui na Ilha do Beto a gente pode ficar perto de
onde pesca” (P. AL. 69 anos).
3.13 Vivenciando a Ilha do Beto: conhecendo a realidade
Conforme foi observado, a prática pesqueira constitui o principal motivo para a
permanência das pescadoras na Ilha, mas não somente isto. A atividade constitui o fator
responsável para o desenvolvimento do “gosto” dos moradores pelo lugar, é o que se pode
constatar nos fragmentos a seguir
Gosto daqui porque é o local da minha maré, local que vivo, é perto, é muito bom, é o local que vivo e trabalho, se não fosse aqui eu tava era morrendo de fome! (P. F. 46 anos) Aqui é muito bom, todo mundo gosta, acostuma, é dia a dia, quando não podia vir ficava doidinha em casa. Eu me sinto bem aqui não só por causa do
121
bem estar, mas porque aqui sempre tô fazendo alguma coisa. Aqui a gente pesca, busca lenha, água tudo a gente faz aqui (P. V. 53 anos) Gosto porque aqui tem uma coisinha, tem outra, e aqui tem sempre como levar alguma coisa pra casa! (P.C. 43 anos). Eu sou feliz e sinto prazer de tá aqui, porque é daqui que tiro o meu pão! (P. N. 54 anos).
Outras características do lugar como a tranqüilidade e as relações de amizade
estabelecidas entre os indivíduos foram apontadas como importantes elementos para o
desenvolvimento do gosto pela Ilha.
Gosto daqui porque é alegre, os amigos aqui é tudo é amigo mesmo, uma família! (P. JO. 54 anos). Gosto daqui, se eu pudesse trazia todo mundo pra cá, porque aqui tem uma paz, um sossego! (P. VH. 45 anos). Viver aqui na Ilha é muito bom, não tem lugar melhor pra gente viver do que aqui, é muita tranqüilidade! (P. AL. 69 anos).
A satisfação expressa nos relatos foi observada in locus durante o período de trabalho
de campo. À noite ou à tarde, por exemplo, mesmo que os pescadores e as pescadoras não
saiam para a atividade, compartilham o hábito de ficar nas portas dos barracos conversando e
ouvindo música. Chama atenção a conversa, as risadas e a animação, este comportamento sem
dúvida, constitui uma característica particular de sociabilidade do grupo.
A Ilha desperta também um forte interesse nos jovens, filhos de pescadores, que
diferentemente dos pais, buscam o lugar para o lazer e diversão durante os finais de semana,
atraídos pelo banho de rio, o caranguejo e as aventuras quando saem à procura de frutas na
mata, é desta forma que os jovens usufruem e aproveitam a Ilha
As meninas vêm pra Ilha principalmente no final de semana pra tomar banho, comer caranguejo. A gente sai também atrás de manga e adicuri. Quando tem muita gente a gente fica até tarde da noite conversando, jogando baralho e ouvindo música. Aqui é bom! (Filha de pescadores).
Por constituir-se o lugar onde encontram alimento, trabalho e renda, as pescadoras
manifestam o curioso desejo de não deixar definitivamente a Ilha, mesmo que não necessitem
122
mais sobreviver da pesca após a conquista da aposentadoria, conforme enfatiza esta
passagem.
Não penso em sair daqui, porque não penso em parar de pescar. Quando me aposentar, venho pra cá nem que seja de vez em quando! (P. JO. 54 anos).
O apego em relação ao lugar está fortemente associado à atividade pesqueira, como
pode ser verificado nestes relatos “[...] não penso em sair daqui, porque aqui dá pra viver da
pesca” (P. G. 44 anos), ou ainda “[...] eu já me acostumei aqui, e além do mais, é daqui que a
gente sustenta a família” (P.C. 43 anos), “[...] só me sinto bem aqui, não quero sair desse
lugar, nasci e me criei pescando (P. AL. 69 anos)”, [...] esse lugar é tudo pra mim é o meu
sustento e onde me sinto bem (P. V. 53 anos).
Todavia, é interessante observar que as pescadoras apontam outros elementos como
relações de amizade, a paz, o sossego e a beleza das paisagens como fatores responsáveis pela
manifestação do sentimento de afeição ao lugar. Os laços afetivos são também identificados
no entusiasmo ao falar do lugar ou dos elementos que compõe a paisagem. As formas como as
pescadoras se referem à maré, ou a emoção quando alcançam êxito na pesca, constituem bons
exemplos a este respeito, como elucidam os relatos abaixo
Eu gosto mais daqui do que minha casa em Itaporanga, porque aqui é sossegado, todo mundo é amigo, este lugar é uma paz para o pescador, aqui tem uma natureza que é muito importante e bonita (P. JU. 57 anos).
Ah minha filha quando você (pescadora se referindo à pesquisadora) vier passar uns dia aqui, você vai ver que maravilha que é! Da próxima vez que você vier, me avise que eu pego você lá em Itaporanga, pra gente vim de barco lá por cima pra você ver como é bonito isso aqui! (P. V. 53 anos).
Já vem ela... Oh mulher deixa a gente ficar só mais um pouquinho (expressões utilizadas pelas pescadoras ao perceberem a maré enchendo, durante a coleta do muçunim) (Diário de Campo).
É bonito quando você ver a redinha cheia de camarão... é bonito! (P. N. 54 anos).
Era tanto camarão, coisa mais linda ver eles com os olhinho tudo brilhando! (P. S. 44 anos).
Outras pescadoras também expressaram a preferência pela Ilha em detrimento à cidade
Itaporanga, mesmo em períodos de feriado prolongados e festas, como ressaltam os relatos,
desta forma a Ilha assume o significado também de alegria
123
Quer ver animado aqui é nas festas, carnaval, São João, final de ano. Esse carnaval aqui mesmo, foi gente que não cabia (P. C 43 anos).
Tem feriado que muita gente prefere de tá aqui mesmo do quê em Itaporanga, a Ilha nunca fica só! (P. AL. 69 anos)
Depreende-se a partir do exposto que a pesca constitui o principal fator para o
desenvolvimento de sentimentos e afetividade para com o lugar. Assim, a Ilha do Beto
corresponde não somente ao local onde é possível atender as necessidades de trabalho e renda,
mas também o lugar onde são estabelecidas importantes relações afetivas entre os indivíduos,
e entre estes e o entorno.
Pode-se afirmar que os predicados atribuídos à Ilha pelas pescadoras admitem tanto
significados objetivos como o trabalho e a subsistência possibilitados a partir do
desenvolvimento da pesca artesanal, quanto significados subjetivos, os quais se destacam por
sua multiplicidade como a alegria, o prazer, o sossego, a paz, a afetividade, as interações entre
os indivíduos e as experiências e vivências daqueles em relação ao lugar. Tais elementos sem
dúvida devem ser valorizados para compreensão dos grupos sociais, como assinalam Martins
e Silva (2011), assim como das interações destes com o entorno socioambiental.
124
125
CONSIDERAÇÕES FINAIS
4. COSTURANDO E ARREMATANDO FIOS: AS CONSIDERAÇÕES DA PESQUISA
A proposição deste estudo consistiu em investigar e analisar o papel e as atribuições de
um grupo de mulheres na pesca artesanal na comunidade Ilha do Beto, localizada no
Município de Itaporanga D´Ajuda/SE.
As entrevistas realizadas, conversas informais e as observações diretas permitiram
identificar quão importante e singular é a atuação da mulher neste ofício, cuja realização não
consiste somente na captura, tratamento e comercialização do pescado. Tal prática
proporciona o estabelecimento de um modo de vida particular, fundamentado nos saberes
tradicionais, nas relações de parentesco, amizade e vizinhança, possibilitando assim, o
surgimento de ricas relações sociais e afetivas em relação ao lugar de vivência e trabalho,
como fora observado na aludida comunidade.
A investigação junto ao grupo de pescadoras artesanais permitiu identificar uma
surpreendente realidade no que se refere à mulher no exercício da profissão pesqueira, haja
vista a existência das práticas de relação de poder masculina, comuns às comunidades que
obtém da exploração dos recursos pesqueiros sua fonte de sobrevivência.
Contrariando esse contexto, o trabalho feminino na comunidade investigada não se
restringe aos afazeres domésticos ou ao conserto de redes e beneficiamento do pescado. Ao
conduzir embarcações e laçar-se ao mar em busca do sustento da família, a mulher ampliou
seu universo de atuação e conquistou espaços historicamente ocupados pelos homens.
A autonomia das mulheres e o fato de se reconhecerem como pescadoras explicitam-se
e fundamentam-se nas experiências e habilidades relacionadas a escolha e manuseio dos
apetrechos de pesca, bem como no conhecimento dos hábitos das espécies e ciclos naturais. A
vivência com o referido grupo permitiu observar o quão singular é a leitura que as pescadoras
fazem das condições naturais, utilizando-a na seleção dos instrumentos de pesca. Não
obstante, percebe-se que esta leitura não se desenvolveu de uma hora para outra, avós, pais,
maridos e amigos contribuíram para a construção de um conhecimento característico e
126
essencial à pesca artesanal.
Assim, pode-se afirmar que a apreensão deste conhecimento pelas mulheres
contribuiu para que elas dominassem a arte/ofício da pesca, tornando-a independente em
relação ao homem. De fato, muitos foram os relatos nesse sentido, a independência,
principalmente a financeira e a possibilidade de criação dos filhos são sem dúvida os aspectos
que corroboram para que a mulher sinta-se orgulhosa e reconheça a importância da sua
profissão.
O papel do grupo de pescadoras aqui evidenciado assume uma conotação que se opõe
a um contexto de submissão e invisibilidade do trabalho feminino, presente, com algumas
exceções, no universo da pesca. A interessante realidade encontrada na Ilha do Beto, explica-
se a partir valorização conferida ao papel desempenhado na atividade pesqueira, cuja
importância é reconhecida e assumida pela própria pescadora. Seja trabalhando diretamente
na captura em rios, estuários, e mangues, beneficiando e comercializando o pescado, ou
acompanhando o marido nas embarcações.
Dessa forma, a participação e o envolvimento da mulher na pesca artesanal na
Comunidade Ilha do Beto, certamente ultrapassa o sentido da complementaridade ou ajuda.
Pois, ao adentrar no universo da pesca, a mulher participa efetivamente da formação da renda
familiar, ou ainda, assegura o provimento de sua família quando seus companheiros estão
ausentes, como fora verificado. Nesse interim, a mulher aqui evidenciada se destaca, enquanto
mãe, dona de casa, profissional da pesca e provedora do lar.
A participação feminina neste ofício possibilita não somente o atendimento das suas
necessidades de sobrevivência, mas também o estabelecimento de um vínculo com o lugar de
vida e trabalho. Tal característica foi verificada a partir dos valores atribuídos à Ilha, a qual
constitui para as pescadoras não apenas o local de trabalho, mas também local da
tranquilidade e alegria, caracterizado pela existência de fortes relações sociais, afetivas e de
amizade entre os indivíduos, o prazer e o gosto pelo lugar manifestado pelas pescadoras,
proporcionados graças ao cotidiano da atividade ali realizada.
Assim, a Ilha constitui-se um cenário onde se processam as mais complexas interações
edificadas por meio dos elementos subjetivos como as experiências, os sentimentos, as
relações de amizade, e a afetividade dos sujeitos para com o lugar. Tais elementos em
conjunto fundamentam a lógica para sobrevivência dos sujeitos ali inseridos.
127
128
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134
APÊNDICE
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO
ROTEIRO DE ENTEVISTA
RIOS, ESTUÁRIOS E MANGUES: A MULHER NA PESCA ARTESANAL Mestranda: Mary Lourdes Santana Martins Orientador: Prof. Dr. Ronaldo Gomes Alvim Co-Orientador: Cristiano Wellington Noberto Ramalho
ROTEIRO DE ENTREVISTA Público Alvo: Pescadoras da Sede do Município de Itaporanga D`Ajuda/SE
Data___ /___/___ Hora de início ____:____ Hora término ____:____
1) Nome _________________________________________________
2) Idade ______
3) Estado Civil
Casada ( ) Solteira ( )
4) Filhos?
Sim ( ) Quantos?________________ Não ( )
5) Profissão:
Pescadora ( ) Dona de casa ( ) Beneficiadora do pescado ( ) Outro:
6) Há quanto tempo trabalha como pescadora? ______________________
7) Com que idade começou a trabalhar com a pesca? ____________________
8) Com quem aprendeu a pescar? _______________________________________
9) Seus filhos ajudam na pesca?
Sempre ( ) Às vezes, quando não estão na escola ( ) Não quero que eles participem
135
10) Você acredita que o futuro do seu filho pode ser outro que não o de pescador? Por quê?
11) Você realiza outra atividade além da pesca?
Sim ( ) Qual_______________________________ Não ( )
12) Quais os ambientes que costumam pescar (rio, estuários, manguezais, maré)?
13) Quais os produtos coletados?
Peixe ( ) Caranguejo ( ) Sururu ( ) Ostra ( ) Camarão ( ) Outros
14) Fale-me sobre os instrumentos que você utiliza para capturar o pescado ________________________________________________________________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
15) Você possui Barco?
Sim ( ) Não, utilizo o barco de outras pescadoras ( )
16) Como faz para dividir os gastos (gasolina, manutenção)?
_________________________________________________________________________________________________________________________________________
17) Você pesca todos os dias da semana? ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________
18) Como vocês se preparam para pescar? ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
19) Que horas costuma sair para pescar? ___________________________________
20) Sai mais de uma vez por dia? Que horas retornam? ___________________________________________________________________
21) Costuma sair para pesca também à noite?
Sim ( ) Não ( )
22) Que produto pesca neste turno?_______________________________________
23) Com quem costuma ir para pescar neste horário? ___________________________________________________
24) Todas as mulheres da “Ilha” também costumam pescar nesse horário?
136
25) Quantas vezes durante a semana sai para pescar este horário?
26) Cada pescadora pesca somente para si ou costumam dividir o que pescam?
______________________________________________________________
______________________________________________________________
27) Fale como é o momento da pesca
_______________________________________________________________
_______________________________________________________________
28) Como planeja a pesca do dia seguinte? (vocês pescam sempre o mesmo produto
durante a semana? como vocês organizam este trabalho?)
________________________________________________________________________
________________________________________________________________________
_________________________________________________________
29) Onde armazena os produtos pescados durante a semana?
________________________________________________________________________
______________________________________________________________
30) Qual é destino dado ao pescado?
Consumo ( ) Comercialização ( ) Os dois ( )
31) Você mesmo comercializa o pescado ou vende para o atravessador/cambista?
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32) Você notou alguma diminuição na quantidade de pescado? Como você explica isto?
Sim ( ) Não ( )
33) Você já observou alguma agressão à natureza? Como era?
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34) Fale-me um pouco sobre o que é ser pescadora
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35) Como ver seu trabalho?
Ajuda ( ) O principal meio de sustento da família ( )
36) Quais os problemas que enfrenta nesta profissão?
37) Já foi acometida por algum problema de saúde ou acidente de trabalho relacionado à
pesca? Qual?
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38) Você ensina seus filhos a pescar? Por quê?
Sim ( ) Não ( ) ______________________________________________________
39) Você é cadastrada na Colônia?
Sim ( ) Não ( )
40) Existem vantagens de ser cadastrada na colônia?Quais?
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41) Existem desvantagens de ser cadastrada na colônia? Quais?
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42) Você tem casa na Sede do Município?__________________________________
43) Quando está aqui quem cuida da sua casa?______________________________
44) Você nasceu aqui em Itaporanga?_____________________________________
45) Há quanto tempo reside no município?_________________________________
46) Sempre esteve aqui?_______________________________________________
47) Onde vivia antes de vir para cá?______________________________________
48) Sente falta de onde morava?_________________________________________
49) Por que escolheu esse local?__________________________________________
50) Caso tenha morado fora de Itaporanga, por que retornou?__________________
51) Se arrepende de ter voltado?
Sim ( ) Não ( )
52) Você gosta do local onde vive? Por quê?
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53) Pensa em sair daqui? Por quê?
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54) Qual a importância que tem para você este lugar? _________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 55) Há quanto está na “Ilha” do Beto?
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56) Existe outro local onde possam também praticar a pesca?
Sim ( ) Não ( ) Qual e onde fica?
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57) Por que escolheram este local para trabalhar?
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58) Por que razão escolheu morar no local onde trabalham?
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59) Como é viver aqui na Ilha? O que é bom e o que é ruim?
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60) Como é viver em duas casas?
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61) Como surgiu a ideia de morar na Ilha? Foi individual ou grupal?
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62) Como sua família reagiu ao saber que você passaria toda a semana longe de casa?___________________________________________________________
63) Como você faz para dividir seu tempo entre trabalho, filhos e marido?
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64) Seu marido também está aqui?________________________________________
65) Durante o período que fica aqui costumam ir algum dia para a cidade?
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66) Por qual razão vai à cidade?
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O PÔR DO SOL
O pôr do sol é o fim de mais um dia,
o que é pra ser feito, foi…
e o que vale a pena é pensar na próxima manhã
(Autor desconhecido)