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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ FACULDADE DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS E LETRAS DO SERTÃO CENTRAL MESTRADO ACADÊMICO INTERDISCIPLINAR EM HISTÓRIA E LETRAS ODILON MONTEIRO DA SILVA NETO HISTÓRIA E MEMÓRIA: A ESCRITA E O PAPEL DOS MEMORIALISTAS DA CIDADE DE CANINDÉ CE QUIXADÁ-CEARÁ 2018

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

FACULDADE DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS E LETRAS DO SERTÃO CENTRAL

MESTRADO ACADÊMICO INTERDISCIPLINAR EM HISTÓRIA E LETRAS

ODILON MONTEIRO DA SILVA NETO

HISTÓRIA E MEMÓRIA: A ESCRITA E O PAPEL DOS MEMORIALISTAS DA

CIDADE DE CANINDÉ – CE

QUIXADÁ-CEARÁ

2018

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ODILON MONTEIRO DA SILVA NETO

HISTÓRIA E MEMÓRIA: A ESCRITA E O PAPEL DOS MEMORIALISTAS DA

CIDADE DE CANINDÉ – CE

Dissertação de Mestrado, apresentada ao

Mestrado Acadêmico Interdisciplinar em

História e Letras da Faculdade de Educação,

Ciências e Letras do Sertão Central da

Universidade Estadual do Ceará, como

requisito parcial para a obtenção do título de

mestre e História e Letras. Área de

Concentração: História e Letras.

Orientadora: Prof.ª Drª. Fátima Maria Leitão

Araújo.

QUIXADÁ-CEARÁ

2018

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Silva Neto, Odilon Monteiro da .

História e memória: a escrita e o papel dos

memorialistas da cidade de canindé ? ce [recurso

eletrônico] / Odilon Monteiro da Silva Neto. - 2018 .

1 CD-ROM: il.; 4 ¾ pol.

CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do

trabalho acadêmico com 123 folhas, acondicionado em

caixa de DVD Slim (19 x 14 cm x 7 mm).

Dissertação (mestrado acadêmico) - Universidade

Estadual do Ceará, Faculdade de Educação, Ciências e

Letras do Sertão Central, Mestrado Acadêmico

Interdisciplinar em História e Letras, Quixadá, 2018 .

Área de concentração: História e Letras..

Orientação: Prof.ª Dra. Fátima Maria Leitão

Araújo..

1. Memorialistas. 2. Escrita. 3. História. 4.

Canindé. I. Título.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

Universidade Estadual do Ceará

Sistema de Bibliotecas

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ODILON MONTEIRO DA SILVA NETO

HISTÓRIA E MEMÓRIA: A ESCRITA E O PAPEL DOS MEMORIALISTAS DA

CIDADE DE CANINDÉ – CE

Dissertação de Mestrado, apresentada ao

Mestrado Acadêmico Interdisciplinar em

História e Letras da Faculdade de Educação,

Ciências e Letras do Sertão Central da

Universidade Estadual do Ceará, como

requisito parcial para a obtenção do título de

mestre e História e Letras. Área de

Concentração: História e Letras.

Aprovada em: 21 de fevereiro de 2018

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________

Prof.ª Drª. Fátima Maria Leitão Araújo(Orientadora)

Universidade Estadual do Ceará-UECE

_____________________________________________

Prof.ª Drª Isaíde Bandeira da Silva

Universidade Estadual do Ceará-UECE

____________________________________________

Prof.ª Drª. Maria Juraci Maia Cavalcante

Universidade Federal do Ceará-UFC

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Trabalho dedicado ao povo devoto de São

Francisco, que, com suas singularidades,

tornaram Canindé o maior Santuário

Franciscano do Brasil.

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AGRADECIMENTOS

Após travessias que se aproximam 30 mil quilômetros, é chegada a hora de agradecer. Ao

ingressarmos no MIHL, estávamos envolto em várias atividades, de trabalhos e estudos. À

época trabalhávamos em Canindé e lá passávamos quase toda a semana. No primeiro semestre

de 2016, estávamos a frente da Coordenação do Curso de Turismo e Eventos, nas aulas no

IFCE Canindé, e como aluno especial do Mestrado Interdisciplinar em Humanidades da

Unilab.

Assim, com o início das atividades do MIHL, nosso cotidiano se colocou em travessias

diversas. Entre Caucaia, onde moramos, ora seguindo diretamente para Quixadá, algumas

vezes passando por Canindé, e retornando pela cidade de Redenção. Confessamos que não

fora um momento fácil. Os desafios não eram pequenos. Além das atividades do curso e do

trabalho, somavam-se a exaustão e os receios gerados pelas travessias.

Conseguimos, entretanto, transpor essas barreiras e finalizarmos as disciplinas do curso.

Seguindo a isso cursamos cinco disciplinas na Pós-graduação em Educação da Uece. Em

nossa casa antiga, pudemos enriquecer ainda mais o quadro formativo. Agradecemos aos

professores, com os quais tivemos a oportunidade de novos aprendizados: Deribaldo Santos,

Lia Machado, Rejane Bezerra e Sofia Lerche. E não podemos deixar de agradecer o

acolhimento das meninas da Secretaria do Programa, Jonelma e Rosângela. Foi naquele

espaço que também vivemos o momento do exame de qualificação do MIHL. Em meio a tudo

isso, continuamos trabalhando em Canindé, até agosto de 2017. Acreditamos, assim, que,

numa contabilidade ligeira percorremos todas essas distâncias.

Em meio a isso, seguimos com a mudança de objeto. Numa conversa de orientação, falamos

sobre interesses futuros de pesquisa. Assim, a orientadora, prosseguiu: Por que não estudamos

logo agora os memorialistas, visto que suas atividades em Canindé estão em total sintonia

com esse objeto? Registramos aqui nosso primeiro agradecimento. Confessamos que, embora

aquilo parecesse próximo, nos lançava novos e grandiosos desafios.

A confiança e o apoio da professora Fátima Leitão são marcas fundamentais da

materialização deste trabalho. Acreditamos que existem muitas energias e forças que

ultrapassam os elementos materiais, de sorte que, por toda essa influência recebida, somos

grato, por toda dificuldade transposta, cada limite superado. Afinal, receber a dádiva de

estarmos vivo e com saúde é um grande presente.

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No plano pessoal, recebemos ajuda de Cibele, companheira de um longo tempo. Ela

incentivou fortemente para que fizéssemos a seleção para o MIHL; estávamos bem

desapontado com experiências advindas no mundo da pós-graduação e desejávamos,

continuar os estudos do outro lado do Atlântico. Dando um colorido especial a isso,

destacamos, nossos irmãos cosanguíneos, Amilton e Emanuel, que sempre instigavam a não

desanimarmos diante dos desafios.

Nossos pais, Milton e Terezinha, esses têm um papel fundamental. Com suas escutas e

pedidos de oração para que fôssemos exitoso em cada momento desta experiência. Minha

mãe, sempre cuidadosa, preparava iguarias saborosas, para que trouxéssemos para os lanches

junto à turma do MIHL. Por incontáveis vezes, ao sair de casa, nos falávamos e pedíamos

para ela preparar o café, que já chegávamos lá, no sentido de Quixadá; ela sempre esteve

disponível. A eles nossa eterna gratidão. Em Quixadá, contamos com o apoio de Dona

Socorro, que mora nas proximidades da Feclesc. Em muitos dias, ela era quem produzia o

café que tomávamos o período das aulas.

Aos colegas do mundo do trabalho e de outros programas de pós-graduação, onde realizamos

disciplinas. No IFCE, Campus Canindé, conversávamos com muitos amigos, sobre as

angústias do curso. Basílio, Daniel Pinto, David Moreno, Ivo, Fabrício, João Paulo, Marcel,

Sávio, Rachel, Renata, Mayara, Ludimila, Virgínia. Um agradecimento especial a Daniel e

David, companheiros com os quais, além do trabalho, dividimos o espaço de moradia em

Canindé. E com ambos sempre travamos longas conversas sobre a vida e os itinerários da

pesquisa.

Os professores do MIHL, cada um como sua singularidade. Todos foram muito importantes.

Um destaque ao professor Expedito, sempre atento aos alunos, mesmo no momento em que

esteve afastado para cursar o pós-doutorado. Os colegas da 1ª turma, que em razão da vida

atarefada, não pudemos gozar de grandes vivências além do cotidiano das aulas. Com dois

deles por sua vez, tivemos grande aproximação: Eliane e Danilo. Danilo, que logo na seleção

nos chamou de velho, pois já fazia muito tempo em que eu havia me formado. Afirmamos a

ele que se fôssemos aprovado, o adotaríamos como filho. Estabeleceumos uma amizade que

vai além das vivências da academia.

Em nossa trajetória, destacomos dois mestres pelos quais temos um carinho e admiração

singulares. Professora Celeste Cordeiro, e o professor Eduardo Diatahy. Com ambos

aprendemos muita coisa, do olhar advindo dos saberes científicos, e em especial sobre a vida.

A eles nosso muito obrigado.

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Aos nossos alunos, a quem costumamos narrar nossas experiências de vida, em especial os

orientandos de pesquisa, pois foi por seu intemédio, que elevamos o conhecimento e a afeição

por Canindé. Grato por termos vivido sete anos especiais de nossa existência, compartilhada

com vocês.

Encerramos de maneira generosa, agradecendo aos membros da Banca Examinadora.

Professora Isaíde Bandeira, que nos conhece e acompanha desde os tempos da graduação em

História na Uece, professora de Prática de Ensino em História. Com ela aprendemos que tudo

deve ser registrado. Alíamos o gosto por imagens e fotografias e tomamos isso como padrão

para o resto da vida. A Professora Juraci Maia, com quem ainda não tínhamos tido

oportunidade de interação, mas que, com a sensibilidade de nossa orientadora, a convidou

para fazer parte desta elaboração. Deste modo, as indicações de ambas examinadoras foram

da maior relevância para que hoje vejamos o resultado deste trabalho materializado nas

páginas desta dissertação.

Urdindo o rol de agradecimentos que se coloca de modo extenso, é a hora de agradecer aos

nossos arautos da cidade. Augusto César, Júlio Cezar e Pe. Neri, figuras singulares que amam

o ofício de escrever sobre história. A todos nosso muito obrigado pela atenção desinteressada

que nos fora conferida. Que continuem a se encantar e a construir novas narrativas

divulgando-os com afinco e generosidade a todos os que buscam seus trabalhos, como

também sua contribuição pessoal, na participação das diversas atividade do cotidiano da

Cidade.

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“Vindos de pau-de-arara

Ou mesmo vindos a pé

Cruzando vales e montes

Na oração a fé

Para chegar então

À nossa Canindé”.

(Miscigenação, Jota Batista)

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RESUMO

Analisa a produção de três memorialistas de Canindé, Município encravado no sertão central

cearense, há aproximadamente 120 quilômetros da capital Fortaleza. Esta cidade é

reconhecida pelo caráter devocional a São Francisco de Assis, que no imaginário social é

conhecido como São Francisco das Chagas de Canindé. A metodologia partiu da análise das

obras, identificando a cidade como elemento catalisador dessa marca historiográfica, que é o

memorialismo. Em contato com as lições de etnografia, desvelamos o sentido, que orientou a

intenção de escrever sobre história desses memorialistas, os quais movidos pela paixão da

história do lugar, passaram a escrever e a divulgar suas obras, não apenas em meios

impressos, como também nas mídias sociais. Assim, em contato com os estudos sobre história

e memória, fora possível apontar uma compreensão sobre o que o conceito do memorialista.

A pesquisa indentifica o fato de que a ação empreendedora destes escritores, possibilitou-lhes

um elevado alcance de suas produções, que reiterou o reconhecimento destes na vida cultural

da Cidade. Com efeito, efetivou o sentido da história como um bem de toda a comunidade,

que se exprime de modo acessível, sem restrições. A investigação demonstra um itinerário de

como a Cidade fora construída por meio de uma historiografia, que, por sua vez está inscrita

no quadro de nossa formação histórica e social, onde a igreja católica e a religiosidade são

elementos imprescindíveis para a compreensão da História do Brasil. Assim, Canindé se

traduz como o maior Santuário Franciscano das Américas, e o segundo maior do Mundo.

Palavras-chave: Memorialistas. Escrita. História. Canindé.

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ABSTRACT

This research analyses the production of three memorialists from Canindé, a county located in

central cearense countryside, which is 120 kilometers from the capital, Fortaleza. That city is

known by devotional character to Saint Francis from Assisi that, in social imaginary, it is

known by São Francisco das Chagas from Canindé. The methodology departed from analysis

of books identifying the city as a catalytic element of such historiographical event that it is

memorialism. In contact with the lessons of ethnography, we unveiled the sense that guided

intention of writing on history of those memorialists who, moved by the passion for the

history of the place, started to write and to publicize their works, not only printed ones but

also on social media. Therefore, in contact with history and memory, it was possible to point

out an understanding on memorialist concept. This study identifies that the fact that

entrepreneurial action of such writers allowed them a significant outreach of their productions

that confirmed their acknowledgement in city‟s cultural life. In fact, it set up the sense of

history as an asset of the whole community that expresses itself in an accessible way, without

restrictions. The investigation shows an itinerary of how the city was built by a

historiography that is written down on the board of our social and historical formation where

Catholic Church and religiosity are fundamental elements to Brazilian History

comprehension. Then, Canindé translates itself as the largest Franciscan Sanctuary of

American continent and the second largest of the world.

Keywords: Memorialists. Writing. History. Canindé.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 –

Figura 2 –

Figura 3 –

Figura 4 –

Figura 5 –

Figura 6 –

Figura 7 –

Figura 8 –

Figura 9 –

Figura 10 –

Figura 11 –

Figura 12 –

Figura 13 –

Figura 14 –

Figura 15 –

Figura 16 –

Figura 17 –

Pe. Neri Feitosa, celebrando Missa em sua residência ....................................................... 63

Augusto César no interior de seu comércio, Loja Chapéu de

Couro, em Canindé. ............................................................................................................... 73

Print extraído do perfil de Augusto Cesar no facebook .................................................... 80

Júlio Cezar no Arriamento da Bandeira, ao final da Festa de São

Francisco em 2015 .................................................................................................................. 82

Vista do Largo da Basílica. Ao fundo a Biblioteca Municipal Cruz

Filho ......................................................................................................................................... 91

Sala da Biblioteca com o acervo dos autores locais e espaço para

consulta ................................................................................................................................... 91

Blog Memórias de Canindé, de Júlio Cezar, e a página Canindé

Bairrista, de Augusto César .................................................................................................. 94

Perfis de ambos no Facebook. Páginas de Augusto César e Júlio

Cezar........................................................................................................................................ 95

Os memorialistas em sintonia com a presença da igreja em

Canindé. Páginas do Facebook de Júlio Cezar e Augusto César ....................................... 96

Imagens da vida política da cidade: Desfile Cívico e os Integrantes

do Legislativo Municipal de 1954. Páginas do Facebook de Júlio

Cezar e Augusto César........................................................................................................... 98

Citação de Júlio Cezar e Augusto César em trabalho do IFCE

(CASTRO, 2017, p. 25,22.) .................................................................................................. 102

Júlio Cezar falando sobre História de Canindé ............................................................... 103

Augusto César na Escola Capelão Frei Orlando ............................................................... 105

Augusto no programa dirigido pelo radialista Assis Vieira, da

Aquarela FM ........................................................................................................................ 106

Alguns dos títulos de nossos elencados .............................................................................. 106

Homenagem aos Escritores de Canindé ............................................................................. 107

Visita à nascente do Rio Canindé – Serra da Mariana .................................................... 109

63

72

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90

90

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SUMÁRIO

1

1.1

1.2

1.3

2

2.1

2.2

2.3

2.4

3

3.1

3.2

3.3

3.4

4

4.1

4.2

4.3

5

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 14

A APROXIMAÇÃO COM OS MEMORIALISTAS, SUJEITOS DA

PESQUISA .............................................................................................................................. 16

A BUSCA DE UMA HISTÓRIA SOCIAL DA ESCRITA .................................................... 17

CAMINHOS METODOLÓGICOS ......................................................................................... 19

MEMORIALISMO E HISTORIOGRAFIA ....................................................................... 25

O MEMORIALISMO INSCRITO NA TRADIÇÃO HISTORIOGRÁFICA ......................... 25

MARCAS DO CARÁTER BRASILEIRO ..................................................................................

A CIDADE NA HISTÓRIA ........................................................................................................

A MEMÓRIA E OS MEMORIALISTAS ...................................................................................

ARAUTOS DA CIDADE: MEMORIALISTAS DE CANINDÉ- CEARÁ ...................... 54

CANINDÉ DEFINIDA PELA HISTORIOGRAFIA .............................................................. 54

NERI FEITOSA: MEMOR ERO TUI ..................................................................................... 63

AUGUSTO CÉSA MAGALHÃES PINTO – HISTORIAE MAGISTRA

VITAE ...................................................................................................................................... 72

JÚLIO CEZAR MARQUES FERREIRA – PRESERVAR É PRECISO ............................... 82

CIRCULAÇÃO E INFLUÊNCIAS DAS OBRAS DOS

MEMORIALISTAS DE CANINDÉ: DOS MEIOS IMPRESSOS ÀS

MÍDIAS SOCIAIS ................................................................................................................. 87

DIVULGAÇÃO EM SUPORTES TRADICIONAIS ............................................................. 87

A CIRCULAÇÃO DE INFORMAÇÕES: ENTRE MUDANÇAS E

PERMANÊNCIAS .................................................................................................................. 92

OS MEMORIALISTAS E O ALCANCE SOCIAL DE SUA PRODUÇÕES ...................... 100

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 111

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 115

APÊNDICES ........................................................................................................................ 119

APÊNDICE A - UM DIA, MUITAS IMAGENS: REVISTANDO VELHOS

CAMINHOS ......................................................................................................

APÊNDICE B - AS COMEMORAÇÕES DO BICENTENÁRIO DA

PARÁOQUIA EM CANINDÉ..........................................................................

14

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25

25

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54

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1 INTRODUÇÃO

Tendo trabalhado por setes anos na cidade de Canindé, atuando como professor de

História1, isto fez com que nossa atividade profissional se aproximasse dos registros desses

homens tratados nesta pesquisa, como também de suas trajetórias. Estando â frente das

disciplinas História do Brasil e História do Ceará, durante esse tempo, tivemos contato com

publicações sobre a história local. Em tempos mediados pelas redes sociais, conhecemos o

Blog Memórias de Canindé, cujo autor é Júlio Cézar Marques Ferreira Lima, conhecido como

Alemão. Por ter ocupado cargos no Legislativo Municipal, Júlio Cézar ou Alemão se mostrou

empenhado pelo funcionamento do IFCE. Lembramos que, quando da implantação desta

unidade acadêmica na cidade, houve uma audiência pública, para que se regulamentasse uma

linha de transporte para fazer o translado dos alunos e que esta garantiria preço reduzido aos

aprendizes.

O IFCE Canindé, por possuir boa estrutura física, se tornou ponto de realização de

grandes eventos de entes governamentais e até privados. Nesses, chegamos a conversar com

Júlio Cezar, sempre entusiasta no que tange a escrita de uma “síntese” sobre a história de

Canindé. Ele falou do gosto por história e de seu acervo de documentos e imagens, que ele

cuida com carinho e gosta de divulgar, como também de sua acolhida a estudantes e pessoas

interessadas em conhecer sobre a história local.

Quando da oferta do curso de Formação Política no IFCE, Júlio se tornou aluno,

e, por algumas vezes, estando no grupo que articulava o curso, além de estar à frente de

alguns encontros, tivemos a oportunidade de interagir com ele, que se mostrou solícito no que

diz respeito a tornar acessível os materiais que tem em sua posse.

Nos idos das atividades docentes, durante um evento, Neri Feitosa, padre, natural

de Arneiroz, há época com quase 90 anos, esteve no Campus Canindé falando sobre a história

do lugar. Na ocasião deixou alguns livros, com seus escritos sobre o Pe. Cícero, e um dos

volumes enfatizou que deveria ser entregue ao professor de História, e foi assim que tivemos

a oportunidade de ter contato com a obra do Padre e memorialista. Depois de algum tempo,

no dia Internacional do Turismo, de 2016, passamos a ter uma aproximação maior com Pe.

Neri. O Campus Canindé lhe outorgou uma comenda chamada “Memória Viva de Canindé”,

1 Após termos atuado na Rede Municipal e Estadual de Ensino, ingressamos na Rede Federal de Educação

Profissional e Tecnológica, exercendo atividades como professor de História do IFCE Canindé, de 01 de julho de

2010 a 31 de julho de 2017. Pelo Edital Interno de Remoção, nos encontramos no IFCE Fortaleza.

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que o mesmo recebera e disse ter se sentido honrado por tal reconhecimento. Neste dia, ele

concedeu entrevista para a jornalista do campus, material curto, mas que temos à disposição.

Quando da definição de nosso objeto de pesquisa junto ao Mestrado

Interdisciplinar em História e Letras - MIHL, procuramos Pe. Neri para uma aproximação

formal. E tudo seguiu de modo muito favorável. Gentil e colaborativamente nos abriu as

portas de sua casa nos recebendo sempre que precisávamos. Passamos a ter contato com seus

escritos, e assim caminhamos no rumo de uma relação que extrapolou a formalidade entre

pesquisador e pesquisado; foi se consolidando uma amizade fraternal. Homem de posições

definidas, advindo de uma formação clássica tradicional, foi professor no Seminário do Crato

e tem como características a crítica arguta, que ele a traduz em texto dos mais diversos,

fazendo chegar a quem possa intervir, no sentido de mudar as coisas, que ele julga indevidas.

Um de seus últimos textos dessa natureza foi o que escreveu comparando a Pastoral do Pe.

Cícero Romão Batista à do Papa Francisco. Ele enviou missivas ao Pontífice, como para a

Congregação para as causas dos santos.

Hoje, aos 91 anos, celebra missas em casa, e, por não ter espaço no atual quadro

paroquial2, se colocou mais recentemente a dar assistência a uma comunidade distante

chamada Serra da Mariana, que, ele fez de modo filantrópico, porém fora dispensado3.

Quando de sua estada lá, percebeu a diversidade de materiais fósseis, e reuniu com os

moradores um pequeno acervo no sentido de criação de um museu paleontológico,

experiência que este já havia realizado na localidade de Jamacaru, quando de sua estada no

Cariri cearense. Ele, já entrou em contato com o Departamento Nacional de Produção

Mineral, e aguarda visita de técnicos para dar continuidade ao projeto. Até o presente, nada de

ação estatal. Construiu um espaço físico, elaborou estantes, banners, para qualificar seu

projeto. Ele sonha que o museu se concretize, e a cidade disponha de um outro equipamento,

no que implicará em visitantes na cidade, como de estudiosos, e que o potencial dali, poderá

dar contribuições à ciência como um todo.

Chegou a Canindé no início dos anos de 1980, nos anos 1990 reuniu um conjunto

de pessoas interessadas na história local, grupo que se passou a chamar “Instituto Memória de

Canindé”, do qual fazem parte também Júlio Cezar e Augusto César, agentes que se

configuram como sujeitos desta investigação.

2 Embora ao chegar a Canindé, Pe. Neri já estivesse aposentado, por um período contribuiu com as atividades

religiosas da paróquia de São Francisco em Canindé. Com as mudanças no quadro de direção da paróquia, ele

passou a ter incompatibilidade com as direções tomadas e isso resultou no afastamento do religioso do quadro

das atividades sacerdotais. 3 Conforme descrevemos na nota acima, sua postura crítica aos atuais dirigentes da paróquia, fez que sua

disposição em ajudar, mesmo em caráter voluntário, fosse recusada pelo staff da administração paroquial.

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Um nome se tornou recorrente, em citações de trabalho sobre o lugar: - Augusto

César, a quem muitos tratam por Historiador. Natural da cidade, César, como é conhecido,

sempre esteve vinculado a sua cidade, com exceção dos tempos em que esteve em estudos em

Fortaleza e depois em trabalhos no Banco do Brasil. Conhecemos Augusto nos Eventos no

IFCE, aos quais ele comparecia. O diretor de implantação da unidade de Canindé era seu

amigo pessoal e de vivências na maçonaria. Desde à primeira vista, seu visual e seu porte

chamam atenção. De óculos redondos, com bigode marcante, usa suspensório, acessório

pouco comum nos dias atuais. Tem suas atividades como servidor público do Tribunal de

Justiça do Estado do Ceará, onde integra o quadro dos oficiais de justiça, sendo lotado na

comarca de Caridade, cidade vizinha a Canindé. Toda tarde, Augusto César se posiciona em

frente à sua loja no mercado público da cidade, e se põe a ler e tomar notas de eventos

diversos que acontecem na cidade. Dali, ele se coloca a atender pessoas que quererm conhecer

sobre a história de Canindé, sobre seus escritos e assuntos diversos. É uma figura popular,

conhecida da cidade, e sempre contente, disposto a ajudar a quem o procura. Augusto é

sempre convidado a participar de eventos em escolas e outras instituições que desejam

conhecer a história de Canindé. Por nove anos, atuou como professor de Matemática no

Colégio São Francisco (CNEC) de Canindé. Fala com muita tranquilidade, é um leitor

contumaz, de muitos assuntos. Tem admiração pela obra de Machado de Assis, em especial,

pelo conto Teoria do Medalhão e a obra Os Sertões de Euclydes da Cunha.

Tivemos incontáveis conversas, sendo a maioria delas defronte à Loja Chapéu de

Couro, que ele abriu na Quarta-Feira de Cinzas do ano de 1996. Antes era servidor do Banco

do Brasil, e saiu pelo Plano de Demissão Voluntária (PDV), e logo em seguida passou em

concurso do TJ-CE. O prédio onde funciona a loja é herança recebida do pai, e está em sua

posse desde 1975. E lá sentado numa cadeira do tipo “presidente”, usando um banco alto para

apoiar como mesa de estudos que ele passa suas tardes, durante toda a semana.

1.1 A APROXIMAÇÃO COM OS MEMORIALISTAS, SUJEITOS DA PESQUISA

Embora a vivência em Canindé tenha nos colocado em contato com os

memorialistas locais, foram as experiências como orientador e avaliador dos trabalhos de

conclusão de curso, do Curso de Gestão em Turismo do IFCE, campus Canindé, que nos

aproximou da vida desses homens, representada por seus textos que serviam como referência

para os estudos sobre a cidade de Canindé.

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O ano de 2013 tornou-se uma marca. Ao formar a primeira turma, recebemos duas

orientandas e tivemos a oportunidade de participar da avaliação de outros trabalhos. Ali vi

nomes e obras se repetirem ao se tentar lançar novos olhares sobre o local. O tempo passou,

vieram novas experiências, e se tornou ainda mais evidente, coadunando no quadro atual com

nossa pós-graduação em Planejamento e Gestão de Políticas Públicas, que fora iniciado com o

antigo curso de formação política, o qual Júlio e Augusto foram alunos.

Acreditamos que isso, se coloca como elemento que justifique o quadro em

questão. Homens que dedicam o seu tempo em meio as atividades cotidianas para com o uso

da linguagem escrita, dar voz a memórias diversas que marcam a vida da cidade. O fato é que

a obra, por se colocar de modo acessível ao público, se apresenta como marca para se pensar

qualquer reflexão que tenha a cidade como objeto.

1.2 A BUSCA DE UMA HISTÓRIA SOCIAL DA ESCRITA

Citamos Alessandro Portelli (2016), ao indicar a história oral como arte da escuta.

Buscamos por meio de um conjunto de conversas nos aproximar do modo como estes

homens, que, respeitosamente, chamamos de memorialistas; sujeitos que passaram a

desenvolver o gosto e o desejo de registrar suas memórias, nos domínios da tradição escrita,

que, se colocam à disposição dos interessados de modo geral.

Assim, demos sequência ao âmbito de uma pesquisa de campo, onde o

pesquisador tenta, por aproximação, e uso da linguagem falada, conhecer os meandros que

permeiam os registros dos memorialistas. Assim, feito: buscamos a aproximação, e, de acordo

com a disponibilidade de cada um dos envolvidos, fomos procurando conhecer, e, ao mesmo

tempo, urdir pontos em comum sobre os sujeitos desta pesquisa. Deixamos claro que, embora

tenhamos realizado alguns encontros, e, consequentemente, várias conversas, a investigação

não se exprime como um trabalho que se utiliza da história oral como metodologia de

pesquisa.

Nosso esforço foi no intuito de, por meio da análise da produção individual de

cada um, identificarmos o modo em que concebem e percebem o conjunto de suas ações, no

que diz respeito à compreensão sobre a história, e, o sentido de seu fazer, o que os situa na

condição de memorialistas. As obras trazem as influências formativas, ao passo que se

colocam como escritas de si.

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Um olhar atento sobre nossos investigados nos fornece uma teia de relações em

suas histórias de vida, e que dão sentido ao trabalho por estes desenvolvidos. Assim, Júlio

Cezar e Augusto César, ambos de Canindé, têm idades próximas. Suas vidas se

desenvolveram à luz dos eventos que marcam a vida cultural e social da cidade. Ambos

viveram atividades em torno das ações da igreja católica. Na infância, Augusto foi membro do

grupo de Escoteiros, Marechal Rondon, liderados por Frei Carlos Weber. Já Júlio Marques

esteve próximo de Frei Lucas e Frei Teodoro, um desportista que empresta o nome ao estádio

da cidade.

No quadro da influência sobre o despertar para um interesse sobre a história do

lugar, eles apontam admiração pelo trabalho de uma personalidade local, que passou a deter o

maior acervo de fotografias sobre a história da cidade. Ambos chamam o senhor, de nome

Francisco Magalhães Karam, de historiador, embora este não tivesse formação na área, e nem

se dedicado ao ofício de escrever trabalhos de síntese. Os dois admiravam a atuação desse

homem, que fotografou por décadas todos os eventos que ocorriam na cidade. Assim, a

admiração pelo trabalho e atuação deste que se configura como um fotojornalista

impressionou e inspirou dois de nossos sujeitos de pesquisa.

Ambos se tornaram servidores públicos, e, colocam com grande admiração pelas

coisas do lugar. Augusto foi do Banco do Brasil, e, atualmente, está no TJC-CE. Já Júlio, foi

servidor da Secretaria de Educação do Estado, lotado na Escola Frei Policarpo, em Canindé,

ao mesmo tempo em que atuou como vendedor de eletrodomésticos e tecidos. Em seguida, se

tornou servidor do Ministério da Saúde, ocupando o cargo de Agente de Endemias, função

que exerce até os dias de hoje.

Augusto, pelos estudos e por questões do trabalho, passou algum tempo morando

fora, assim como Júlio. Augusto, na condição de servidor do Banco do Brasil, se tornou uma

figura bastante conhecida da população local. Igual ocorreu com Júlio, que, ainda na

juventude, começou a militar em busca da melhoria das condições de vida da população, em

especial do bairro São Mateus.

Seu engajamento social e aproximação com personalidades da Igreja, com

destaque para o conhecido Frei Lucas Dolle, que passou quase 30 anos à frente da paróquia,

Júlio Marques se tornou ocupante de cargo no legislativo local, chegando a candidatar-se a

deputado estadual e a vice-prefeito. Atualmente encontra-se sem mandato, de volta a sua

atividade de servidor público, onde desenvolve suas atividades profissionais, e se coloca a

lutar em busca de projetos voltados à comunidade. Augusto, embora tenha tempo para

aposentadoria, continua suas atividades na cidade vizinha. Ambos se colocam como sempre

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disponíveis para atender aos chamados para falar sobre a história de Canindé. Augusto foi

convidado até para proferir palestras para a nova turma da Guarda Municipal.

Estes dois personagens têm suas histórias de vida em intersecção com Pe. Neri.

Este, ao chegar a Canindé, diz que ali encontrou muita coisa que “dá coceira a quem gosta de

memória” e assim passou a observar vazios e aludir a pesquisas sobre a história do lugar. Júlio

e Augusto já tinham grande gosto pela história do local, como também para a guarda de

documentos históricos. Ao conhecer o trabalho que Augusto César fez para um curso de

especialização, Pe. Neri diz que ele precisava ser publicado. Augusto enfrentou o desafio e

escreveu o seu livro “História de Canindé”. Sabendo do gosto e apreço pelos registros da

memória dos fatos históricos, Pe. Neri os convidou para participar do Instituto Memória de

Canindé. Vemos aqui mais um ponto em comum que reúne os três. Augusto é membro da

ACLAME (Academia Canindeense de Letras, Artes e Memória) e da Academia de Letras

Maçônica. Possui uma página no facebook de nome Canindé Bairrista, onde, em conjunto

com sua página pessoal, divulga suas produções. Júlio tem um Blog, o “Memórias de

Canindé”, mas, atualmente, assim como Augusto, tem divulgado seus materiais através de seu

perfil no facebook.

Pe. Neri é usuário do facebook e do Whats app, mais não divulga seus textos na

rede social; o faz de modo tradicional, escrevendo, e depois distribui em meio impresso,

pondo-os em meio circulante. Júlio não tem publicações em formato impresso, apenas em

formato digital. Augusto já escreveu um livro de crônicas, com personagens e fatos do lugar.

Prepara-se para um novo livro e uma edição ampliada do primeiro.

Pe. Neri dedica esforços ao museu, mas está sempre a escrever sobre algo.

Recentemente, escreveu um pequeno texto sobre a comunidade Serra da Mariana, onde esteve

dando assistência espiritual por um pequeno período, mas, que sua curiosidade pelos fósseis

locais, o faz visitar e a passar dias em jornadas na referida comunidade, que está a

aproximadamente 37 quilômetros da Sede do Município.

1.3 CAMINHOS METODOLÓGICOS

Conforme apresentamos, o contato inicial se deu, primeiramente, com as obras

dos memorialistas, de início em meios impressos, e, em seguida, nas mídias sociais. Do

contato com suas obras, seguimos para o contato com eles, o que nos propiciou o

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enriquecimento da investigação, e, além disso, uma qualificação para a experiência pessoal e

profissional.

Tomando as obras dos investigados como fontes escritas, partimos para uma

análise crítica de cada uma delas. As percepções herdadas da tradição metódica sobre o

trabalho com documentos nos levou, no primeiro momento, a verificar as fontes sobre as

quais nossos investigados produziram seus trabalhos. Identificamos, a partir de então, que eles

citam um amplo conjunto de documentos, que vão desde fontes primárias oficiais: livros de

registros da igreja, certidões, testamentos, livro de sesmarias, etc), registros historiográficos,

como os produzidos pela Comissão Científica (1961) 4O Ensaio Estatístico da Província do

Ceará (1997), de Thomaz Pompeu; fontes bibliográficas produzidas sobre a cidade de

Canindé, com destaque para o “Livro São Francisco das Chagas de Canindé – Resumo

Histórico” (1963) de Frei Venâncio Willeke, membro do IHGB, dentre outros. Além disso, os

memorialistas de Canindé passaram a se utilizar do recurso da oralidade, buscando

testemunhos de antigos moradores da cidade, como também de práticas etnográficas, visto

que em alguns dos registros eles se colocam como testemunhas oculares da história.

Ainda no tocante à análise crítica das obras, adentramos o quadro de identificação

da origem social da escrita5 de nossos investigados. Em cada uma das obras, foi possível

perceber as visões de história, que permeia a escrita de cada um deles, ao mesmo passo em

que constatamos o imaginário religioso cristão católico, como marca que perpassa essa escrita

da história. Todos eles trazem fortes elementos dessa atuação da Igreja em suas vidas. As

análises trazem as mudanças da cidade, onde eles se veem como parte dela.

Ao final desse balanço crítico das obras, mostramos alguns elementos que fazem

parte da história da cidade e que, no entanto, não se encontram registrados nas suas

produções. Como estamos a falar da produção de autores vivos, e em pleno desenvolvimento

de suas atividades de escrita, buscamos dialogar com um outro caminho, tomando como

4 A Comissão Científica do Império, chegou ao Ceará em fevereiro de 1859 e nestas terras, empreendeu ações

por dois anos. Fora a primeira atividade desta natureza, formada exclusivamente por brasileiros. Nos quadros do

II Reinado, objetivava trazer novos olhares sobre o Brasil, ao mesmo tempo que objetiva identificar nestes

domínios do país. Embora tenha sido algo de críticas ao seu tempo, pelo elevado custo e por não ter

apresentando retorno imediato, o quadro dos registros são de grande relevância para os estudos sobre o Ceará. 5 Os estudiosos em educação, usam a expressão o lugar de fala do sujeito. Em termos de historiografia, o francês

Michel de Certeau, indicou a ideia de um “lugar social”, de onde são produzidas as investigações históricas.

Como nossos investigados, não são historiadores profissionais, mas escrevem sobre história, indicamos o sentido

de uma origem social da escrita, pois embora os mesmos estejam vinculados e influenciados por um determinado

espaço social (Canindé), cada um traz consigo, elementos de uma formação particular, pessoal, que fora

construída historicamente e por sua vez, estão manifestadas em suas narrativas.

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referência as orientações deixadas pela primeira geração dos Annales franceses6, que

destacavam a necessidade dos diálogos com outros campos das ciências sociais.

Com efeito, tomando como base as indicações trazidas pela Antropologia, em

especial pela Etnografia, nos lançamos para uma aproximação com os sujeitos e

interlocutores, para ampliar o leque de percepção sobre a vida de cada um, na busca de

compreender como estes constituem seu ofício de escrita da história, identificado aqui como

atividade memorialista.

Relembrando Laplantine, no seu clássico “Aprender Antropologia”, o autor, ao

falar da construção do campo etnográfico, relembra que a ideia de Etnografia se constitui ao

passo que os pesquisadores sentiram a necessidade de não haver mais distinção entre aquele

que recolhia informações e impressões, e, por outro lado, os que detinham saber erudito, os

que elaboravam explicações ditas cientificas sobre os observados. Apoiando nossas

impressões no mestre antropólogo, destacamos: “A etnografia propriamente dita só começa a

existir a partir do momento no qual se percebe que o pesquisador deve ele mesmo efetuar no

campo sua própria pesquisa, e que esse trabalho de observação direta é parte integrante da

pesquisa”. (2003, p,59).

Assim, a Etnografia nos legou esta marca, onde o pesquisador se coloca como

participante, sem que tenha, necessariamente, uma formulação desse caminho de interação.

Isso nos permitiu uma aproximação com os nossos sujeitos, podendo observá-los em seus

espaços públicos e privados. Não realizamos roteiros de entrevistas, pois desejávamos ouvir

as falas de suas obras em si; porém, o contato com os sujeitos em vários momentos de suas

atividades social e particular nos permitiu a elaboração de anotações de campo, alargando o

nosso conhecimento sobre ideias, experiências e vivências desses homens que se ocupam no

mister de escrever e salvaguardar a memória histórica da cidade de Canindé. A convivência

com tais personagens nos inspirou a escrita de impressões que tivemos a partir de nossas

observações participantes, como o possível averiguar nos apêndices A e B desta dissertação.

Reiteramos que o presente trabalho constitui marcas de uma etnografia, sem que

seja, ou se pretenda ser uma etnografia genuína. Confirmamos nossas impressões com base

nas considerações de Mattos, em que a mesma infere: “a utilização de técnicas e

6 BURKE, Peter. A escola dos Annales. A revolução francesa da historiografia. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

1990. O texto do historiador inglês se tornou referência para os estudos brasileiros, pois o mesmo apresenta com

grande propriedade a gênese do movimento liderado por Marc Bloch e Lucien Febvre, e suas transformações ao

longo das primeiras gerações.

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procedimentos etnográficos, não segue padrões rígidos ou pré-determinados, mas sim, o senso

que o etnógrafo, desenvolve a partir do trabalho de campo e no contexto social da

pesquisa”.(1990, p,03).

Este quadro, trazido desse contato proximal, nos evidenciou que toda a ação de

recolha de documentos, divulgação de novos olhares sobre a cidade, se dá de modo diletante.

Constatamos que, para eles, a história é um bem comum, que deve ser conhecido e estar

acessível a todos. Urdimos, assim, a outra ponta do contato com os memorialistas, pois, além

do mundo real, os acompanhamos no mundo virtual, percebendo que divulgam seus escritos

para um número relevante de pessoas, ao mesmo tempo em que recebem retorno e continuam

a produzir.

As lições de Etnografia nos permitiram participar de vivências com esses homens

escritores, produtores de histórias, o que nos permitiu vislumbrar o alcance e a relevância que

desenvolvem na comunidade. Constatamos que as obras dos memorialistas de Canindé, a

“Meca do Sertão”, no Ceará, estão a compor o acervo da Biblioteca Pública Municipal, que

dedica um espaço para exposição e consulta das produções de autores locais.

A trilogia é conhecida em toda a cidade, sendo comum participação destes em

emissoras de rádio ou instituições de ensino para divulgarem seus trabalhos. Finalizamos o

percurso iniciado com a análise das obras, oferecendo aos leitores um documento que

evidencia um personagem de enorme importância para a efetivação da história, como

elemento da vida, em que as pessoas se reconheçam, e se achem identificadas como parte

dela. A cidade dispõe de um itinerário de como foi construída, por meio das marcas da

história e, em especial da historiografia local.

Assim, no conjunto que compõe a escrita desta dissertação, pode ser encontrada a

marca de um caminhar que nos foi conduzindo aos achados da pesquisa. Realizamos um

trabalho persistente, e intuitivo, em busca de vestígios e fontes que nos respondessem as

inquietações formuladas como problemática da investigação.

Tornamos-nos caminheiro em busca dos tesouros, muitas vezes soterrados, da

história local, e, em particular, da riqueza que emerge de escritos de homens devotados e

amantes da história; de gente que identifica no seu lugar de morada e de convívio social,

“coisas de dar coceira na língua”. Antes de tudo, de sujeitos que se agarram à memória como

elemento de sobrevivência de uma identidade, de um ser e fazer-se no mundo, prestes a virar

poeira nos caminhos do esquecimento.

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Continuamos agora com a estrutura dos capítulos e suas respectivas temáticas. A

Dissertação encontra-se dividida em quatro capítulos: o primeiro, constitui este espaço

introdutório que ora apresentamos para os leitores; segundo capítulo tem por título

MEMORIALISMO E HISTORIOGRAFIA. No primeiro tópico, O Memorialismo inscrito

na tradição historiográfica, iniciamos com uma incursão, apresentando a tradição

memorialística construída historicamente, destacando como se traduz num tipo de

historiografia; no tópico; Marcas do caráter brasileiro, é apontada a formação do Brasil em

seu caráter nacional, em que a atuação da Igreja se coloca como marca imprescindível para

entendermos o sentido e a formação de nosso País. No terceiro, A cidade na história, no qual

apresentamos a cidade de Canindé como sendo objeto de investigação de uma historiografia

profissional, desenvolvida por membros da própria Igreja. Encerramos o capítulo, com A

memória e os memorialistas, onde buscamos decifrar os caminhos que permeiam o conceito

de memória, trazendo nossa compreensão para o entendimento do conceito de memorialista.

O terceiro capítulo, intitula-se: ARAUTOS DA CIDADE: MEMORIALISTAS

DE CANINDÉ- CEARÁ. Na primeira parte, tópico primeiro: Canindé definida pela

Historiografia, revisitamos os primeiros registros historiográficos sobre a cidade.

Evidenciamos que, no primeiro momento, a escrita da história da cidade se colocou com total

influência da Igreja. Se no primeiro momento foi a motivação institucional que produziu essas

narrativas, no caso dos nossos investigados, a situação é inversa, parte deles, o interesse de

escrever sobre a história do lugar. Assim, destacamos o perfil de cada um dos investigados.

Neste sentido, estruturamos os próximos tópicos a partir dos títulos seguintes: Neri Feitosa:

Memor Ero Tui, da tríade, é o que há mais tempo se dedica à escrita da história. Ele é Padre

diocesano, autor de dezenas de estudos sobre questões teológicas e textos históricos, com

destaque para a vida e obra de Padre Cícero; fundador do Instituto Memória de Canindé,

espaço no qual foram produzidos mais de 40 títulos sobre a história da cidade.

O módulo seguinte, Augusto César Magalhães Pinto – Historiae Magistra Vitae

traz o perfil do autor referido, canindeense, que se declara bairrista, tem uma trajetória

marcada pela participação na vida cultural e social da cidade; servidor público estadual,

maçon e amante das letras. De seu apreço por música e fotografia, César Magalhães, como é

conhecido, se empenhou a escrever sobre a História da cidade. Escreveu um livro de síntese e

um livro de crônicas, com destaque para personagens que têm suas trajetórias ligadas a

Canindé.

Encerrando a exposição sobre a tríade canindeense, Júlio Cezar Ferreira

Marques – Preservar é preciso, também canindeense, servidor público federal, tendo

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exercido mandato de vereador no Legislativo local. Com grande tino de colecionador de

documentos e imagens da cidade, dedicou-se a elaborar registros colhidos de documentos e

passou a divulgá-los nas mídias sociais, com destaque para o seu Blog: Memórias de Canindé.

Finalizando o trabalho, o quarto capítulo se intitula CIRCULAÇÃO E

INFUÊNCIAS DAS OBRAS DOS MEMORIALISTAS DE CANINDÉ: DOS MEIOS

IMPRESSOS ÀS MÍDIAS SOCIAIS. Na primeira parte temos, A produção em suportes

tradicionais. Neste tópico, partimos das afirmações que apontavam o livro impresso como

fadado à extinção, caracterizando a grande produção em meio aos chamados tempos pós-

modernos, de um acentuado número de publicações no formato de tinta e papel, com destaque

para espaços tradicionais de leitura, como as bibliotecas, em especial, na cidade de Canindé,

onde podem ser encontradas obras dos autores locais. Na segunda parte, A circulação de

informações: entre mudanças e permanências, destacamos a produção de nossos

memorialistas em suportes não convencionais. Assim eles descobrem as mídias sociais, em

especial o Blog, Páginas no Facebook, e em particular o perfil na mesma rede e se lançam no

mundo virtual, trazendo narrativas do mundo real, retroalimentando suas produções.

Cotidianamente se motivam para trazer aos interessados novas informações sobre distintos

aspectos da cidade.

No terceiro e último tópico do capítulo, Os Memorialistas e o alcance social de

suas produções, indicamos nosso local de partida. Percebemos, antes de iniciar o trabalho,

que a produção deles se colocava como uma marca de grande alcance social, visto que os

trabalhos mais recentes produzidos sobre temas da cidade, realizados no IFCE campus

Canindé, traziam estes autores como os mais citados. Demonstramos que os memorialistas

atuam no sentido de propagar suas contribuições, em distintos espaços sociais, com destaque

para as instituições de ensino. Por esta atuação, são reconhecidos e homenageados em eventos

públicos, como o desfile do 07 de setembro, um dos grandes elementos da vida cultural da

cidade.

Finalmente, buscamos fazer os arremates dos principais achados e análises desta

pesquisa dissertativa. Nas considerações finais, exprimimos reflexões sobre o objeto que nos

moveu e nos instigou a esta finalização, em muitos outros aspectos inconclusas, em outros

trazendo muitos pontos que o tempo não nos permitiu esgotar de modo mais aprofundado,

porém, nos deixando muitas possibilidades para o desvelamento em outros momentos de

nossas inquietações como educador/pesquisador.

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2 MEMORIALISMO E HISTORIOGRAFIA

Neste capítulo, realizamos um percurso pela historiografia, como também pela

crítica histórica, evidenciando as relações entre os estudos da memória e a ideia de história.

Trouxemos as marcas da formação social e cultural do Brasil, destacando como está se

colocou no modo de produção nos registros sobre a história do País, passando depois para o

âmbito local, ou seja, a cidade de Canindé.

2.1 O MEMORIALISMO INSCRITO NA TRADIÇÃO HISTORIOGRÁFICA

As reflexões sobre a História da História não é algo novo. A busca pelo sentindo

da relevância da História para os humanos é uma inquietação que nos revisita constantemente.

Assim, os povos, ainda que não dispusessem dos domínios da escrita, passaram a buscar o

sentido sobre suas origens. O que conhecemos como tradição oral ou oralidade foi

responsável pelas bases do modo como os seres humanos passaram a se reconhecer como

sujeitos históricos.

Assim, a ideia de que cada grupo tem uma origem, resultou em

variadaspercepções. O primeiro elemento a ser observado é a relação resultante das mudanças

espaciais, que levou os humanos a denominarem isso sobre a denominação de tempo. Assim,

os estudos dos grupos sociais nos permitem identificar que as mudanças percebidas na

natureza do espaço, pouco a pouco, fossem sendo atreladas a uma lógica, definida como

tempo cronológico.

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Neste sentido, os grupos que se organizaram em torno da chamada “Revolução

Neolítica”7, percebida como a primeira revolução humana. Passaram a definir mecanismo

para entenderem a passagem do tempo da natureza, portanto surgem os dispositivos que

levarão à elaboração de calendários e o cômputo da passagem dos dias, horas, e, assim, dos

anos. Essa relação de mudanças, no entanto, foi acrescida da percepção sobre os eventos que

marcavam a trajetória de cada um desses grupos.

O campo de estudos sobre o que conhecemos como domínios da historiografia

nos fez perceber que as relações sobre a passagem do tempo foi permeada por percepções de

várias temporalidades. Assim, nas chamadas civilizações antigas, a passagem do tempo

serviria como elemento para ajudar os grupos a enfrentarem as adversidades já vividas. Neste

sentido, a passagem do tempo teria um caráter pragmático sobre o modo de vida do grupo

social. Uma exceção neste período foram os povos hebreus, visto que manifestaram bases de

uma consciência histórica. Considerando-se um povo diferente, apresentaram como elemento

teleológico o horizonte de que se preparavam para receber um Messias, suscitando a ideia de

uma origem que estaria na esfera de um passado, e a crença que em algum tempo advindo, no

qual o Messias retornaria, projetando assim a ideia de um futuro.

Com a chamada tradição clássica, especialmente com os povos gregos e romanos,

é quando evidenciamos os primeiros trabalhos no âmbito de Filosofia da História, neste

momento, encontramos os registros sobre a ideia de “aporias do tempo”, com suporte na qual

se abre um quadro amplo de reflexões sobre o sentido de percepção das passagens do tempo,

que em determinados domínios se colocam como regimes de historicidade.

Um dos trabalhos mais amplos sobre o modo como as civilizações clássicas

pensaram as relações do tempo e o sentido da História, está na obra do pensador francês Paul

Ricoeur (1994), “Tempo e Narrativa”, nessa obra disposta em três volumes, o autor se coloca

num esforço para compreender a maneira pela qual os gregos e romanos exprimem suas

percepções sobre o tempo e o sentido da história.

O autor toma como base de sua reflexão inicial duas obras clássicas. A grega, é a

“Poética” de Aristóteles, registrada entre os anos (335 a.C. e 323 a.C. a.C); a latina é

“Confissões”, de Santo Agostinho. Assim, o pensador francês revisita aspectos

imprescindíveis para a compreensão do sentido da história humana. Com rigor de quem

7 O conceito Revolução Neolítica foi criado pelo estudioso australiano Gordon Childe (1892-1957). A referida se

coloca sobre o surgimento das primeiras civilizações, momento que após o domínio do fogo, da agricultura e do

pastoreio os humanos, saíram da condição de nômades e passaram a ter vida sedentária. Como marca dessa

formação social, temos a divisão social do trabalho, e as práticas culturais marcadas pelo domínio da escrita que

se apresenta como forma de poder instituído. Esta interpretação se refere ao que conhecemos como civilizações

ocidentais.

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conhece as bases da língua em que as obras foram produzidas, o Filósofo descortina as

relações sobre o sentido que permeia a ideia de uma escrita da história.

Tomando como base o título da obra, “Tempo e narrativa”, nos é apresentado

duas grandes questões. A primeira dispensa apresentações pelo simples fato de que é

impossível pensar a ideia de história, sem levar em consideração o sentido como a ideia de

tempo é constituída. A narrativa leva-nos a uma série de reflexões, sobre as relações como se

instauram as ideias de história.

O ato de narrar, que se coloca como a gênese da construção de um sentido para a

história ao ser experienciado, nos aproxima de outra questão. Assim, a narrativa se associa à

ideia de ficção, expressão que, se observada em sua etimologia, em grego, faz alusão ao

trabalho do oleiro. A ideia de trabalho, empregado à prática do oleiro, nos remete a relação

com as figuras. Assim como o trabalho manual é capaz de gerar figuras, o ato de narrar só

adquire sentido a ideia de um campo de figuração.

Para Ricouer (1994) O narrador ao proferir sua fala, cria figuras para ilustrar o

sentido do ocorrido. Foram os gregos a indicarem que a ideia de história está relacionada a

testemunho, ao ato de ver, que por sua vez, a partir da relação com a linguagem falada, produz

o que conhecemos como relato histórico. E, a cada narrativa, o narrador, adentra ao universo

da ficção para fazer com que seu relato tenha sentido e se aproxime do real.

O recurso aos documentos marca uma linha divisória entre história e ficção: ao

contrário do romance, as construções do historiador visão ser reconstruções do

passado. Por meio do documento e da prova documentária, o historiador está

submetido ao que um dia, foi. Ele tem uma dívida para com o passado, uma dívida

para com os mortos, que o transfoma em devedor insolvente. (RICOEUR,1997,

p.292).

Com base em tais pressupostos, foi possível formular um sentido para a noção de

ideia de história. Ao sistematizar os relatos orais, os testemunhos, amparados pelo domínio da

escrita foram responsáveis por produzirem marcas sobre as quais os povos passaram a se

reconhecer. Gregos e romanos, “definiram ao seu modo” quem de fato eram aqueles que

podiam ser considerados pertencentes a estes povos.

Importante é ressaltar que, entre as práticas culturais, o domínio da língua já se

colocava como um elemento de ligação, que dava sentido ao modo de ser de um povo. Além

disso, foi por meio da literatura, que a ideia de história se colocou como marca indelével no

que diz respeito a uma identificação. Em diferentes várias manifestações literárias, as

civilizações clássicas legaram ao mundo ocidental os pressupostos iniciais para a

compreensão do universo histórico.

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Retomando as considerações de Aristóteles (484 a.C-322 a.C), nas narrativas do

que nos chegou sob o título de “ Arte poética”, que, segundo os relatos são, na verdade, notas

sobre suas atividades professorais, vejamos:

O historiador e o poeta não se distinguem um do outro, pelo fato do primeiro

escrever em prosa e o segundo escrever em verso (pois, se a obra de Heródoto fora

composta em verso, nem por isso deixaria de ser obra de história, figurando ou não o

metro dela). Diferem entre si porque um escreveu o que aconteceu e o outro o que

poderia ter acontecido. Por tal motivo a poesia é mais filosófica e de caráter mais

elevado que a história, porque a poesia permanece no universal e a história estuda

apenas o particular. (ARISTÓTELES, 2003, p. 14).

O Pensador grego nos apresenta, portanto, alguns elementos para esta reflexão.

O primeiro é a afirmação de que a história se exprime sobre o que de fato ocorreu, assim

validando o sentido etimológico do conceito de história que se apoia na ideia de testemunho,

do acontecido, ao passo que a poesia pode se colocar sobre o que poderia ter acontecido.

Tal asserção nos conduz à ideia de que à História estaria ligada, diretamente, a um

compromisso com a verdade, pois, além de descrever sobre o acontecido, a mesma possuiria

um caráter particular, enquanto a poesia, por tratar dos possíveis acontecimentos se mostraria

com um caráter universal. Assim, essa lógica de que a História denota as versões do real,

desenvolveu a crença num sentido de que tudo para se tornar produto da história humana

deveria ser verificável.

Uma História da História começou por se apoiar num quadro amplo de elementos

que intentam a confirmação dos eventos como ocorreram. As reflexões sobre a crítica

histórica, no entanto, em especial as desenvolvidas por Paul Ricouer, nos exprimem qual o

sentido do itinerário sobre a construção da história: “Uma história por outro lado, deve ser

mais do que uma enumeração de eventos numa ordem social, deve organizá-los na totalidade

inteligível de tal sorte que possa sempre indagar qual é o tema da história”.( RICOUER, 1994,

p.91).

E, assim, instaurou-se a tradição clássica sobre o sentido da História. Os grandes

eventos, que marcaram a vida dos povos, se colocaram como objetos balizadores da maneira

como eles estabelecem suas experiências históricas. Pouco a pouco, um conjunto de

elementos foi concebido e passou a legitimar o que se concebeu como tarefa dos

historiadores.

Recorremos aos procedimentos de conexão, tomados da própria prática historiadora,

que garantem a reinscrição do tempo vivido no tempo cósmico: Calendário,

sequência das gerações, arquivos, documentos, rastro. Para a prática historiadora,

não são problemas esses procedimentos. Só seu relacionamento com as aporias do

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tempo faz aparecer para um pensamento da história, o caráter poético da história

relativo aos embaraços da especulação (RICOUER, 1997, p.174).

As afirmações em destaque nos levam a revistar as considerações de Aristóteles

em que o mesmo excluía a história do sentido poético, pois, a poesia era capaz de tratar de

fenômenos universais, se valendo por sua vez de sua capacidade de criação. A crítica

anunciada reitera a necessidade de pensar o sentido da história, tomando por base o ideário

grego de poiesis, como criação, por sua vez retomando a aproximação das relações com os

elementos de ficção. Assim Ricoeur destaca:

A relação entre ficção e história é com certeza, mais complexa do que jamais se dirá.

Ora sem dúvida, é preciso combater o preconceito segundo o qual a linguagem dos

historiadores poderá torna-se inteiramente transparente, a ponto de deixar falar os

próprios fatos: Como se bastasse eliminar os ornamentos da prosa para acabar com

as figuras de poesia. (1997, p.259).

Outro ponto fundamental para compreender o sentido da História é a ideia de

tempo. Destacamos, anteriormente, o que na tradição do pensamento filosófico passou a se

denominar como aporia, no caso em questão, as “aporias do tempo”. Ao passo que o

pensamento grego se debruça sobre o sentido de pensar os primeiros conceitos sobre o

universo da história, a tradição latina aprofundará sua compreensão para a utilidade da

História, constituíndo assim, o que a Historiografia contemporânea define como regime

clássico de historicidade8.

Dada a expansão dos domínios do Império Romano, e a consequente adoção do

cristianismo como religião oficial do império, esta visão de História impregnou fortemente a

tradição cristã, que em muito influenciou no pensamento ocidental. Com base no modelo de

compreensão clássico, tomamos como base as considerações de François Hartog: A famosa

fórmula historie magistra vitae remonta a Cícero. Ela expressava a concepção clássica da

história enquanto formadora do exemplo (plena exemplorum). Ao narrador tudo formiga de

lições de exemplo. (2014, p.102).

Quando Roma divulgou os pressupostos do cristianismo, a influência da

Historiografia latina se instaurou nos quadros da doutrina cristã. Assim, naquilo que

conhecemos como Idade Média, com os domínios da Igreja e a difusão do cristianismo, passa-

se a um novo modelo de pensar a história, que, por sua vez, caracterizou os pressupostos do

modelo clássico.

8 O conceito “regime de historicidade”, foi introduzido pelo historiador francês François Hartog. Com base nos

textos da antiguidade ao mundo contemporâneo, o mesmo enumera como a história fora sendo carregada de

sentidos nos diferentes momentos históricos. Por sua vez, o mesmo dialoga com estudiosos do presente como:

Marshal Sahlins(1987), Paul Ricouer(1983), Reihart Kossleck(1985), dentre outros, para fundamentar suas ideias

sobre os regimes de histroricidade.

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O mais relevante dessa nova modalidade de se perceber o sentido de pensar a

História repousa nas contribuições da Filosofia patrística, em especial ao pensamento do

jovem nascido em Tagaste, hoje Argélia, a quem o mundo conheceu como Santo Agostinho.

Neste sentido, como os gregos, Santo Agostinho se embrenha pelas aporias do tempo e nos

faz refletir, na própria complexidade de definir o que é o tempo. Assim manifesta:

Que, pois, é o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; mas se quiser explicar a

quem indaga, já não sei. Contudo, afirmo e com certeza sei que, se nada passasse,

não haveria tempo passado; que se não houvesse os acontecimentos, não haveria

tempo futuro; e que se nada existisse agora, não haveria tempo presente. Como

podem existem esses dois tempos, o passado e o futuro, se o passado já não existe e

se o futuro ainda não chegou? Quanto ao presente, se continuasse sempre presente e

não passasse ao pretérito, não seria tempo, mas eternidade. Portanto se o presente

para ser tempo, deve tornar-se passado, como podemos afirmar que existe, se sua

razão de ser é aquela pela qual deixará de existir? Por isso o que nos permite afirmar

que o tempo existe é a sua tendência para não existir. (2002, p.120).

Por conseguinte, como no chamado pensamento clássico, a tradição cristã apontou

não apenas para a formulação de um pensamento filosófico, como também para a criação de

um modelo historiográfico que marcará o mundo medieval. A tradição clássica estava

orientada por uma visão de história na qual o passado servia como fonte de conhecimento

para o presente. Este situava-se instrumentalizado diretamente pelos acontecimentos do

passado; já a Idade Média vivia sob a égide de que o passado ilumina o presente, acreditando

na ideia de um paraíso cristão, e que este seria o elemento teleológico da experiência humana.

A igreja conhecia a tradição do pensamento clássico, enquanto o cristianismo

segue como modelo para a produção de uma historiografia medieval. Em seu interior, a igreja

católica, em especial a de tradição romana, detentora do conhecimento e das técnicas de

escrita, formula um quadro de textos, onde repousa essa visão historiográfica. Falamos de um

tempo em que o acesso aos bens culturais, não estavam acessíveis.

Até o início da Modernidade e a formação do Estado Nacional Moderno, e sendo

o latim a língua entendida como base para as reflexões de caráter científico (língua oficial das

liturgias), podemos observar as crônicas, e em especial, a produção historiográfica como as

grandes marcas desse modo de registrar a história dos homens. O modelo de vida ditado pelo

cristianismo, com os seus ritos, marca as temporalidades da vida e da morte. Assim, as

práticas cristãs definem em seus quadros a instalação de uma memória reatualizada em seus

ritos.

O imaginário medieval que se define na constituição de uma historiografia, nos

chama atenção para o sentido atribuído à memória. Le Goff, ao se referir à memória no

Medievo, faz a seguinte afirmação: “Todavia, a memória tinha um papel considerável no

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mundo social, no mundo cultural e no mundo escolástico e, bem entendido, nas formas

elementares da historiografia. A Idade Média venerava os velhos, sobretudo porque via neles

homens-memória, prestigiosos e úteis”.( 1990, p.449).

Tomando como base a ideia de “homens-memória”, avançamos no sentido de

compreender o modo pelo qual os itinerários da memória, seguem nos quadros de registros da

história, em especial, a história registrada fora do crivo do que passamos a conhecer sobre

oficio dos historiadores.

Seguindo com a relação de um novo modo de percepção sobre o sentido de

História, que irá caracterizar os chamados tempos modernos, vemos que, neste momento,

marcado por profundas mudanças econômicas, sociais e políticas, a História passa a ser

composta não mais a partir do modelo clássico, pois a atenção antes voltada para o passado,

nesse novo tempo estará vinculada à ideia de futuro.

Chegando ao Iluminismo com sua crença na razão e no caráter universal, é

possível afirmar que é justamente neste período, no chamado “Século das Luzes”, que se

ampliam as considerações sobre os quadros da memória. Novamente, Le Goff pontua essas

transformações: é no século XVIII que se cunhará, em 1726, o termo mémorialiste e, em 1777,

memorandum, derivado do latim através do inglês”.(1990, p.460).

Assim, o vocábulo mémorialiste passará a designar o autor de memórias

históricas ou literárias; de tal modo, o termo passou a ser sinônimo de um quadro de

ocupações, como: diarista, historiador, cronista, colunista, romancista, paleógrafo, escritor,

analista. Essas tranformações ocorrem ao mesmo em que a História se distancia da Literatura,

e, por sua vez, reunindo um conjunto de saberes que se colocaram como pressupostos do

trabalho do historiador de oficio.

Como marca dessas tranformações, observamos, no estudo de Hartog, a

denominação de memorialista, ao examinar a obra de um autor do século XVIII, no qual ele

aponta como sendo o precurssor da nova produção de História à luz dos tempos modernos.

Nestes termos, o historiador descreve François Rene de Chateaubriand9: “„Eu me encontrei

entre dois séculos‟, escreverá o velho memorialista, em vias de terminar este monumento

inaudito das Memórias do além-túmulo” ( Apud HARTOG, 2014, p.94).

9 Escritor, ensaísta, diplomata e político francês. Como o mesmo se dizia, vivera entre dois séculos (1768-1848).

Sua obra se coloca como sendo pré-romântica e suas produções influenciaram a literatura romântica de raiz

europeia, como também a lusófona.

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Assim, ao compor o sentido sobre qual a Modernidade constrói suas formulações

sobre História, ele tece suas considerações, tomando por base as ideias de um outro

historiador contemporâneo:

Neste ponto as afirmações de Reihart Kossleck10, sobre a dissolução do modelo da

história magistra são duplamente esclaredora: para compreender a posição do

próprio Chateaubriand e entender, ao mesmo tempo, o que quer dizer essa mudança

de regime de historicidade.

Em análises doravante clássicas, Reihart Kosseleck demonstrou como a formação do

moderno conceito de história(die geschichte) na Alemanha por volta dos anos de

1760-1780 pouco a pouco esvaziou de sua substância uma concepção de história que

conjugava exemplariedade e repetição. Ao contrário a história no singular(die

geschichte), que se entende como processo e se concebe como história em si, com

seu próprio tempo, abandona o exemplum e se detém no caráter único do

acontecimento. Assim, aprofunda-se uma distância e uma tensão entre o campo da

experiência dos indíviduos e seu horizonte de expectativas. Precisamente, o conceito

moderno de história possibilita compreender esse distanciamento, dar conta dele e

mesmo colocá-lo a serviço do progresso geral da história. (HARTOG, 2014, p.103).

Essas mudanças, no que concerne à percepção de um novo sentido de História,

se colocam sob as transformações advindas da chamada “Era das Revoluções”. Desde a

Revolução Francesa, se observa a criação dos sistemas educacionais na Europa, cabendo aos

estudos historiográficos potencializar esse sentido da relevância da história humana, para os

quadros do que se denomina civilização.

Tende-se as demandas por história como um elemento imprescindível para o

reconhecimento dos grupos sociais, percebemos que, desde então, se institui uma crescente

produção de narrativas, que ocorrem dentro e fora do chamado saber acadêmico desenvolvido

sob o crivo dos chamados historiadores profissionais. Um olhar atento ao período em questão

nos mostra, na tradição inglesa, os estudos desenvolvidos sobre as tradições populares, até

então conhecidos como folclore.

Os franceses, em especial desde o Império Napoleônico, definiram um quadro de

estudos sobre a compreensão de História. Este campo do saber passou a configurar os

domínios dos conhecimentos a serem ensinados pela escola formal. Assim evidenciou-se

novos pressupostos sobre a ideia de História.

Tendo como base essa percepção sobre o gênero humano, identificamos, o fato de

que o desejo de escrever sobre história é uma prática que não está no passado, permanece viva

e pujante no nosso tempo. E, por esta razão, ensejamos um esforço para situar, o universo dos

10

Historiador alemão (1923-2006), apontado como um dos grandes intelectuais do pós-guerra. Embora sua obra

cubra uma grande quantidade de temáticas, é no estudo da história dos conceitos que ele recebeu maior

notoriedade.

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conceitos das ciências humanas e sociais, a escrita da história realizada por “homens

comuns”, que não possuem formação para tal prática. Numa perspectiva da historiografia

ocidental, situamos tais sujeitos como memorialistas. Nosso objetivo é, portanto, descortinar o

universo que permeia a atuação destes memorialistas.

2.2 MARCAS DO CARÁTER BRASILEIRO

Conhecendo um pouco a realidade sobre a formação do Brasil e, em especial a do

Ceará, tomando como espaço fisiográfico o Sertão cearense, ou seja, a cidade de Canindé,

situada no Sertão central do Estado, com distância de 120 Km da Capital, desejamos

(re)visitar a escrita da história desenvolvida por um grupo de memorialistas locais, que, na

ausência de textos produzidos sob o cânone institucional, acabam assumiram esse quadro de

referência.

Memorialistas, assim se classificam em termos conceituais, as pessoas que se

dedicam ao ofício de recolha das memórias, que, no domínio da escrita, ascendem ao campo

do que seja a história do grupo onde estão inseridos, na grande maioria pelo natalício,

projetado a um local, com circunscrições definidas, e percorrendo uma trajetória, validada

por instituições inseridas nestes locais.

Neste mister, justificamos a necessidade de estudos sobre esta escrita social dos

memorialistas, destacando a relevância social da cidade de Canindé, por ser o maior Santuário

Franciscano das Américas e o segundo maior do mundo11

. É um lugar que se instaurou no

imaginário brasileiro, pela devoção ao santo italiano, que atrai milhares de pessoas em visitas

à cidade a cada ano.

E em meio a este quadro que oscila entre as marcas da religiosidade e a paisagem

sertaneja, está encravada a cidade de Canindé. O Município tem sua história de formação

vinculada a devoção a São Francisco de Assis, que se fez, ao longo do processo de

colonização, um dos santos mais cultuados pelo povo brasileiro.

Importa ressaltar que uma cidade é o resultado de um processo histórico, onde se

colocam variados elementos. As disputas ocorrem desde o sentido de denominação e

definição do território, seguindo com os elementos que compõem as imagens do lugar. Disso

11

Conforme apresentaremos ao longo do texto, o Santuário de Canindé, dedicado a São Francisco, é

administrado historicamente por padres diocesanos, depois passa ao controle das ordens religiosas. Incialmente

os capuchinhos e depois os franciscanos. Por sua vez é a Ordem Francisacana Secular (OFS), que congrega a

organização de toda a comunidade franciscana espelhada pelo mundo, que apresenta o referido qualificador a

cidade de Canindé.

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se coloca a própria toponímia, que, no caso de Canindé, é uma alusão clara aos habitantes

naturais da região.

Na ocupação do território brasileiro e, no caso do Ceará, a doação de sesmarias, à

margem dos grandes rios se fez algo comum. Às margens do rio Canindé desenvolveu-se um

núcleo de povoamento, que traz como marca fundante a elevação de uma capela em devoção

a São Francisco, que logo de início se reverbera pela ocorrência de milagres, atribuídos a

intervenção do Santo de Assis.

Dentre as narrativas que ilustram o processo de ocupação se mostra uma, de que

as terras ocupadas pelo templo religioso pertenciam a três irmãos que eram fazendeiros,

radicados na região do Jaguaribe. O processo definido como colonização se materializou com

a distribuição de terras da Coroa a particulares, definidas como sesmarias. Por sua vez, no que

hoje conhecemos como o Município de Canindé, não foi diferente. O sertão tem como marca

a a pecuária e depois o algodão. Não foi a exploração dessas atividades econômicas que fez

com que Canindé se tornasse (re)conhecida. Canindé figura, desde os tempos coloniais, como

espaço onde a religiosidade, se exprime como marca fundante.

Assim, Thomaz Pompeu de Sousa Brasil, ao falar sobre as origens da cidade,

destaca: “A antiga capella de S. Francisco das Chagas da freguesia da capital, fundada em

1775, foi elevada a freguesia independente por alvará de 30 de setembro de 1817”.

(1997,p.168). Com efeito, percebemos que são as marcas da religiosidade, que vão definindo

as alterações. Assim, com o crescimento da devoção, se inicia campanha para criação da

paróquia.

No mesmo texto, ao descrever a Villa de Canindé, Thomaz Pompeu reitera:

É um povoado importante, situado a margem esquerda do rio de seu nome, e com

boas casas: tem um rico e elegante templo dedicado a S. Francisco das Chagas, cujos

milgagres atrahem anualmente grande numero de peregrinos de todas as partes, que

ofertam ricos oblatos, e que eleva o rendimento do patrimônio da matriz”. (IDEM,

p.168).

As impressões definidas pela Historiografia cearense nos indicam que a

experiência religiosa teve papel incisivo para a definição dos contornos das cidades. Trazendo

a realidade de Canindé, nos registros de Gustavo Barroso, as narrativas sobre a origem do

lugar e o consequente processo de transformação do local, são assim expressados:

E já em 1775, o português Francisco Xavier de Medeiros edificava ali a primeira

capela dedicada ao Pobrezinho de Assis. A construção, em grande parte feita de

esmolas, levou 20 anos. Ao ser terminada em 1795, o glorioso santo obrou o primeiro

milagre, salvando da morte certa um operário que caíra do andaime da torre. A notícia

correu célere por todo o interior cearense, iniciando-se, então as peregrinações que

fariam de Canindé a Compostela ou a Lourdes do Ceará.(1962, p.03).

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No imaginário devocional, o Santo é elevado à condição de São Francisco das

Chagas de Canindé. Retomando o pensamento de Capistrano de Abreu, que afirmava que,

para se escrever uma síntese da História do Brasil, se fazia necessário escrever a História da

Companhia de Jesus, nestas terras, tal leitura nos remete a pensar no fato de que para pensar o

Brasil, devemos levar em consideração as ações praticadas pela igreja durante nossa

formação.

A Igreja no Brasil vem dos primeiros tempos da Colônia. Após as tentativas de

manter a posse de modo descentralizado, o que ocorreu com a criação das Capitanias

Hereditárias, a Metrópole definiu a institucionalização de um governo centralizado,

denominado por Governo Geral. Com a criação deste, chegou ao Brasil, em 1549, Tomé de

Souza, o primeiro deles e junto vinham na missão os Inacianos da Companhia de Jesus,

congregação surgida durante as reformas religiosas, que tiveram uma ação de destaque no

chamado Novo Mundo.

Assim na América Portuguesa, nas terras do além-mar, fundou-se uma colônia

marcada por uma intensa atuação da igreja em todos os aspectos da vida cultural e social do

povo. Os religiosos percorreram todos os cantos da Colônia. Com base no processo de

catequese, implementado através de aldeamentos, as populações nativas foram

gradativamente atingidas por um etnocídio. Assim, o historiador Boris Fausto, descreve as

nuances da presença da igreja, nos territórios que formaram o Brasil.

O controle da Coroa sobre a Igreja foi em parte limitado pelo fato de qye a

Companhia de Jesus até a época do Marquês de Pombal (1750-1777) teve forte

influência na Corte. Na Colônia, o controle sofreu restrições. De um lado, era muito

difícil enquadrar as atividades do clero secular – aquele que existe fora das ordens

religiosas -, disperso pelo território; de outro, as ordens religiosas conseguiram

alcançar maior grau de autonomia. A maior autonimia das ordens dos franciscanos,

mercedários, beneditinos, carmelita e principalmente jesuítas resultou de várias

circustâncias. Eles obedeciam a regras próprias de cada instituição e tinha uma

política definida com relação a questões vitais da colonização, como a indígena.

Além disso, na medida em que se tornaram proprietárias de grandes extensões de

terra e empreendimentos agrícolas, as ordens religiosas não dependiam da Coroa

para sua sobrevivência. (1995, p.61).

A igreja, em sua ação expansionista e precisamente influenciada pelo sentido da

Companhia de Jesus, chegou a criar um “Estado dentro do Estado”12

, tamanho o poder

político e econômico obtido pelos inacianos na colonização. Por outro lado, eles se colocavam

em termos de promoção do desenvolvimento das gentes e do discurso de salvação das almas.

Nnão só os inacianos, no entanto, vieram ao Brasil, pois a eles se juntaram muitas

outras ordens no processo de promoção do catolicismo nas novas terras. Sob o discurso de

12

FAUSTO, Boris. “História do Brasil”. São Paulo: Edusp, 1995. P. 111.

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levar a fé e salvar os gentios, a Igreja permeou no seio da sociedade brasileira, sendo ela a

conferir atributos que deveriam ser do próprio Estado.

Os domínios sobre a instrução, embora durante a Colônia não seja possível se

falar em um sistema de educação pública, podemos afirmar que foi a igreja que guiou os

processos de instrução, tendo a Companhia de Jesus papel fundamental. Importante é destacar

que, desde as práticas dos sacramentos, em especial, o Batismo, esta servia como base para a

pessoa ascender ao mundo cristão, como também ser reconhecido como ser existente.

Só em tempos republicanos foi instituído um Código Civil, bem como, os

registros de nascimento, pois antes era o registro de batismo que servia como documento

“oficial”, para que as pessoas comprovassem quem de fato eram. O documento que conferia

isso era produzido pela igreja e não pelo Estado.

No quadro de expansão, sob as bênçãos da igreja foram criadas inúmeras cidades.

A expansão da fé católica não se colocava apenas na difusão da doutrina e da distribuição de

sacramentos ao povo. Nos mais diversos rincões a igreja usou de seu poder para demarcar que

em cada canto, estavam seus domínios e do Estado.

Vemos, assim, os templos religiosos espalhados Brasil afora. Estes se colocavam

como símbolo de poder e marca de uma atuação efetiva, que alterou o modo de ser das

populações. Com a criação do primeiro bispado, gradativamente, a igreja definiu sua ação em

termos de ocorrência material no Brasil.

Destacamos elementos como instrução e divulgação de informações, nas relações

intensas entre o Estado português e a Santa Sé, e depois, com o já Estado Brasileiro, a igreja

promoveu desenvolvimento de amplos serviços às populações que não detinham acesso a

direitos tampouco a serviços públicos. Falamos aqui de ações ligadas a um caráter social,

numa perspectiva religiosa, imbuída de ação caritativa, para com os pobres e desvalidos.

Neste quadro, destacamos as ações de Padre Ibiapina, a quem Gilberto Freyre, assim

qualifica: “Do ponto de vista do Catolicismo ou do Cristianismo social, Ibiapina foi, talvez, a

maior figura da Igreja no Brasil”. (1990, p. 96).

Dentre as obras de Ibiapina, as mais marcantes foram as Casas de Caridade, sobre

as quais Freyre tece as seguintes considerações: “ A função destas boas casas tem sido antes

de socorro aos doentes, aos pobres e aos órfãos que a de aproveitamento dos desajustados ou

renegados do sistema dominante”(IDEM, p.97)

É desse modo foram construídos espaços dedicados à promoção dos cuidados,

como, hospitais, asilos, casas de caridade, orfanatos, leprosários; sem esquecer as edificações

de obras de combate às calamidades naturais, em especial, a seca, como, açudes, cacimbas e

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outros elementos amenizadores do nível de sofrimento das populações marginalizadas pela

ordem instituída.

No Ceará, esse processo foi marcante. Tão forte e demarcada foi a atuação da

igreja que temos em nosso território experiências que mobilizam anualmente a visitação de

milhares de pessoas ao Estado. Os principais destaques são para Juazeiro do Norte, cidade

jovem do Cariri cearense, que tem na figura do Padre Cícero Romão Batista sua grande marca

de existência, tendo anualmente três grandes momentos de romarias. A cidade de Juazeiro

está localizada no sul do Ceará e atualmente, com os municípios vizinhos, formaram uma

nova região metropolitana.

A outra grande experiência religiosa é encravada no Sertão Central do Ceará. Em

Canindé, ainda nos tempos da Colônia se iniciou o quadro devocional a São Francisco,

religioso que viveu nos territórios que formariam a Itália, sendo oriundo de uma família

abastada. Francisco rompeu com a ideia de riqueza e passou a dedicar a vida no sentido do

auxílio aos pobres e necessitados. Vivendo uma vida com base mendicante, Francisco se

tornou uma figura admirada ao longo da Modernidade, embora que seu modo de perceber o

mundo entre em contradição com os pressupostos da ética moderna. Por sua vez, entre as

congregações que se dedicaram à expansão da fé católica, na América Portuguesa, estão “os

franciscanos”.

E o Ceará se coloca para o mundo como detentor de um espaço religioso, que, sob

o crivo da Igreja Católica, se desenvolve sob os auspícios da experiência oficial, reconhecida

e chancelada sob as bênçãos de Roma. Assim a cidade repousa em uma atmosfera do universo

religioso devocional.

O aspecto da devoção, que cria o sentido de edificação do espaço religioso e

depois catalisa a existência de devotos em busca de recebimento de graças ou de

agradecimentos pelos milagres alcançados, é de fato o primeiro ponto a ser observado nas

construções da cidade. A devoção, elemento considerado como mágico ou pré-moderno, é

algo que o tempo não apagou, mas que a cada dia é revistado por novas práticas.

Ao se observar um espaço do Santuário Franciscano, denominado “Casa dos

Milagres”, lá se encontram ex-votos, depositados como testemunho de graças alcançadas

pelas mais distintas razões. Vão desde elementos, como, partes do corpo, esculpida em gesso

ou madeira, que simbolizam a cura de doenças físicas; ampliando para outros que simbolizam

a realização pela aquisição de bens materiais, como também de elementos intangíveis, como

aprovação em concursos públicos, conclusão de cursos de pós-graduação; até a concretização

de experiências, como o matrimônio.

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Percebemos aqui que a Modernidade ,com seus cânones trazidos pelo pensamento

cientifico, não foi capaz de erradicar tais práticas, embora que à luz do referido discurso, eles

não podem ser considerados milagres. Um olhar austero podia dizer que a manutenção de tais

eventos, estaria ligada ao modo pelo qual fora gestada a sociedade brasileira, que, mesmo com

as mudanças na ordem política, não se fez, minimamente, republicana, ao garantir o acesso a

direitos fundamentais às populações do continente, que é o Território Brasileiro.

Assim, a experiência desse cristianismo, que legou ao mundo uma memória de

ritos e práticas culturais, moldou a cidade de modo que o tempo passou e, dia após dia, vemos

as práticas antigas coexistirem com elementos do tempo presente.

Hoje para pedir graças ou orações, os devotos podem entrar em contato com a

burocracia da igreja, mediante vários canais, que vão desde a comunicação por telefone ou e-

mail, como as missivas enviadas ao Santuário, por um equipamento criado, que é a “Revista

Santuário”13

, ao editar mensalmente, um número, e lá existe um espaço, que serve como base

para que os romeiros mandem seus pedidos ou agradecimentos, mediante cartas, recebidas

pelos correios.

2.3 A CIDADE NA HISTÓRIA

A busca pelas origens do próprio conceito de História, nos aproxima da ideia do

testemunho, e que, dos testemunhos, vistos ou coletados sob narrativas, surge o ofício do

historiador, que sai na busca de encontrar as origens dos eventos, de modo diferente do que

faziam os poetas, que eram inspirados pelas musas. Do testemunho ao postulado da narrativa,

esse processo se coloca no tempo de modo mais complexo, cria elementos que buscam

sistematizar e orientar o modo de como se produzir essas interpretações.

Vemos, assim, que o domínio da escrita, que é onde se materializa a narrativa

histórica, se coloca de modo a criar visões de história, onde grupos que não dominavam a

técnica e não ocupavam espaços políticos, tendem a ficar de fora do discurso que tende a se

consolidar como sendo o oficial.

Com efeito, temos a compreensão de que todas as ações humanas são políticas e

dotadas de intencionalidade. A busca de entendimento pelas origens é um elemento que

perpassa os grupos humanos. Novamente aqui reiteramos esse papel que o cristianismo, ao se

tornar religião oficial do Império Romano, e, depois, seguir no imaginário ocidental, lega-nos

13

Os diversos aspectos da comunicação do Santuário de Canindé, podem ser observados no seguinte endereço

digital: http://www.santuariodecaninde.com/

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todo um campo de práticas que nos remete à busca do conhecimento sobre nossas origens,

tomando como destaque os ritos de nascimento e morte, que, na tradição cristã, são

assinalados com o batismo e depois a morte, pela passagem a outra vida.

A cristandade propunha esse indivíduo mundano, enquanto a modernidade nos

traz as relações de diferenciações, de tipos, nacionais, regionais, etc. E as relações com os

grupos, mediadas por memórias, impressas como história, é que vão tecendo esse conjunto

complexo de diferenças. Nesse novo âmbito instaura-se a escrita da História, como um campo

do saber, que busca autonomia, legitimada pelo ideário das ideias políticas e sociais, que

seguem pautando as filosofias da História e o modo como são produzidas as interpretações

sobre como se deve escrevê-la. Neste sentindo, destacamos as considerações de Certeau:

Se por um lado ocorre um processo de separação, por sua vez se inicia um novo

processo tão caro aos eventos da modernidade. A produção da história seguiria um

caminho novo, diferente pois estaria alinhada a um sentido de especialização. A

escrita dá história a luz dos tempos modernos se coloca como uma atividade feita

por especialistas, embora que não estivesse definida uma formação básica em

história, mas saberes são instituídos como necessários para se dedicar a escrita da

história.(2011, p.91).

Enquanto se hierarquiza o saber histórico, produzido sob os auspícios do

pensamento moderno, entendido por científico,essa produção não se desenvolve como um

elemento universalizado a todos aqueles que desejam ter suas histórias registradas.

No Brasil, um País marcado por enormes contradições econômicas, políticas e

sociais, as narrativas sobre ele, produzidas por seus intelectuais, além de demorarem a ser

feitas, suas construções não se colocaram de modo a efetivar um entendimento sobre a

diversidade do País. É aqui que percebemos o espaço deixado por uma historiografia oficial,

que no tempo foi ocupada por produções não profissionais, “consideradas menores”, mas que,

ao final ,buscam levar ao universo da escrita memórias de lugares que não se encontram

contemplados nesse quadro mais amplo da historiografia dita científica.

O estudo de um religioso franciscano sobre a cidade de Canindé14

, Frei Venâncio

Willeke (1906-1978), dita esforços para esboçar os caminhos da devoção à São Francisco na

cidade, como também de apresentar os religiosos pelo território cearense. Assim, em artigo

publicado na “Revista do Instituto Histórico do Ceará”, o mesmo descreve (1959, p.177):

14

Este estudo não é o pioneiro. Por sua vez se colocou como sendo uma obra de síntese. Seu autor dedicado a

vida religiosa, desenvolveu vários estudos tendo temas de História e Historiografia como temática. O destaque a

este estudo na referida passagem do texto se coloca pelas seguintes questões: O estudo perfaz um esforço

indicando sua condição de estudo científico diferente dos estudos anteriores, dado o lugar social do autor; sua

produção está marcada por um complexo acervo de fontes, como também pela referência de estudos anteriores;

os estudos futuros o trazem registrado em seus itinerários.

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“Se no Ceará predomina o culto de São Francisco sobre o antoniano, explica-se em

parte pela falta de conventos franciscanos em toda aquela região, durante os quatro

primeiros séculos, afora duas residências da Ordem que temporariamente havia em

Fortaleza, desde a fundação realizada em 1624 por Frei Cristovão Severim de

Lisboa, e em Quixeramobim, durante a segunda metade do século XVIII, como

também pela atuação conjunta de várias entidades seráficas. É que na primeira

metade do século XVIII, já haviam terciários seculares de São Francisco, residentes

no Ceará e afiliados a fraternidade do Recife, cujo padroeiro, desde a fundação, vem

a ser o santo estigmatizado”.

“Afirmamos, pois sem receio de errar, que franciscanos, capuchinhos e terciários

seculares contribuíram para a propaganda do culto de São Francisco no Ceará e de

modo especial em Canindé, surtindo tanto mais resultado porque, interrompida a

catequese jesuítica com a expulsão da companhia em 1758, prosseguiu-se e

intensificou-se a atividade franciscana conjunta, prevalecendo também entre as

devoções aos vários Santos chamados Francisco, o culto ao estigmatizado”.

Herman Willeke15

, que nasceu na Alemanha em 1906, entrando para Ordem

Fransciscana em 1925, quando recebeu o nome de Frei Venâncio Willke, veio para o Brasil

em 1926 e continuou seus estudos, fez o noviciado no Convento de Olinda e se ordenou em

1931. Residiu em muitos lugares do Brasil, dentre eles Canindé, no Ceará.

O sentido da construção de sua escrita evidenciou que ele se destacou como um

historiador de ofício. Dedicou grande parte da sua vida a conhecer sobre o sentido da atuação

franciscana no Brasil. Trabalhos recentes apontam suas contribuições como inovadoras no

que concerne à história das ordens religiosas no Brasil e, em especial, a dos franciscanos16

.

Por sua dedicação aos estudos históricos, em 1968, se tornou membro do Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro. Quando de sua passagem por Canindé, escreveu um livro, que ele

aponta como versão escolar. A obra “São Francisco das Chagas de Canindé – Resumo

Histórico”, datada de 1962, tendo sido feita uma segunda edição em 1973.

A obra do referido religioso, que foi membro do IHGB, serve até os dias de hoje

como base para novos estudos. Nesse sentido, não é a referida produção que se coloca como

elemento para as nossas reflexões e sim a produção de três memorialistas da cidade, ainda

vivos, que possuem no quadro atual a circulação de documentos impressos (livros e textos),

como também divulgam suas produções por meio das redes sociais, em blogs, e de modo mais

amplo no Facebook.

Desse modo a cidade, historicamente reconhecida como espaço religioso de

devoção franciscana, tem se tornado objeto das narrativas destes homens, que tem no fascínio

15

Os elementos de ordem biográfica do Religioso, colhemos em documentos do acervo do Instituto, Histórico e

Geográfico Brasileiro, do qual ele foi membro. 16

No artigo: “Fontes Franciscanas: Historiografia Franciscana Brasileira, a professora Tânia Conceição

Iglésias”, atualmente vinculada a UNB, faz o referido destaque a produção de Frei Venâncio Willeke. In: Revista

HISTERDBR On-line, Campinas, n.42. jun2011.

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pela História, dedicado tempo e esforço nas atividades para divulgação e “preservação” do

que eles dentro de seus campos de percepção entendem como construção da história.

Embora as produções não recebam incentivo ou apoio de entes públicos ou

privados, são na totalidade custeadas pelos autores, elas estão em vários espaços importantes,

com destaque para as bibliotecas das escolas públicas e privadas do Município.

Quanto às narrativas que se exprimem nas redes sociais, essas não têm uma

fronteira definida, tal qual as que se se percebe no impresso. Ao observar as publicações dos

memorialistas, algumas recebem consideráveis números de “curtidas”, comentários, sendo

reproduzidas por outras pessoas. Toda essa teia formada exprime um quadro importante

sobre a ampliação do sentido da história percebida como uma construção acessível a toda a

sociedade.

2.4 A MEMÓRIA E OS MEMORIALISTAS

Destacamos, anteriormente, a aparição do termo memorialista, no âmbito da

História da História. Embora alguns historiadores profissionais façam referência ou menção

ao trabalho desses sujeitos, não encontramos esforços no sentido de desvelar a ideia do autor e

o sentido de sua obra. Sempre que se constituem narrativas, onde são mencionados trabalhos

de historiadores não profissionais, a primeira questão é apontá-los como sendo “trabalhos de

memorialistas”.

A ideia de classificação, validada pela autoridade de fala de quem confere o

conceito, configura um sentido hierárquico, onde o “saber” produzido à luz dos saberes

históricos institucionalizados se colocam superiores sobre aqueles produzidos fora dos

espaços do saber formal, se traduzem como espaços de poder.

Deste modo, indicamos não ser simples apenas dizer que essa ou aquela obra é

apenas uma produção de memorialista. Num esforço em busca de situar o universo de atuação

desses indivíduos, chegamos às considerações de Gramsci, pensador italiano que dedicou

parte de sua obra a perceber o sentido da produção dos intelectuais. Numa passagem do

clássico “Concepções dialéticas de história”, ele nos aponta a seguinte percepção:

Passagem do saber ao compreender e ao sentir e, vice-versa, do sentir ao

compreender e ao saber. O elemento popular „sente‟, mas nem sempre compreende

ou sabe; o elemento intelectual „sabe‟, mas nem sempre compreende e, muito

menos, „sente‟. Os dois extremos são, portanto, por um lado, o pedantismo e o

filistinismo, e, por outro, a paixão cega e o sectarismo. Não que o pedante não possa

ser apaixonado, até pelo contrário; o pedantismo apaixonado é tão ridículo e

perigoso quanto o sectarismo e a mais desenfreada demagogia. O erro do intelectual

consiste em acreditar que se possa saber sem compreender e, principalmente, sem

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sentir e estar apaixonado (não pelo saber em si, mas pelo objeto do saber), isto é em

acreditar que o intelectual possa ser um intelectual (e não um mero pedante) mesmo

quando distinto e destacado do povo-nação, ou seja, sem sentir as paixões

elementares do povo, compreendendo-as e, assim, explicando-as, e justiçando-as

em determinada situação histórica, bem como relacionando-as dialeticamente as leis

da história, a uma concepção de mundo superior, científica e coerentemente

elaborada, que é o „saber‟; não se faz política-história sem esta paixão, isto é, sem

uma conexão sentimental entre os intelectuais e o povo-nação.(1978, p.138-139).

De posse das considerações gramscianas, nos é possível apontar que aqueles

dedicados a escrever sobre História, não legitimados pelos círculos acadêmicos, transitam

entre o elemento que ele chama de popular, portanto, aquele que sente, e, traz consigo o

atributo do intelectual, pois estes possuem um lastro no que diz respeito às ideias universais

guardando consigo um profundo elemento de paixão pelo que fazem.

Não sendo uma prática nova, o trabalho dos memorialistas suscita o exercício da

escuta sobre as narrativas do grupo social onde estão inseridos. Assim, as narrativas sobre as

origens do lugar, as descrições que reúnem eventos e personagens, pouco a pouco, vão

ganhando formato sobre distintos gêneros textuais. Vemos, como destaque, as narrativas

como síntese, como também um intenso domínio da crônica, cujos elementos da História são

trazidos para o cotidiano dos grupos, em que, muitas vezes, são destacadas ações de

protagonistas anônimos.

Antes que os elementos se configurem como domínio da História, tudo repousa no

encantador universo da memória. Certamente, o século XX assistiu a um crescimento de

estudos da memória nos quadros das tradições dos saberes, anunciados como científicos. Da

Biologia à Medicina, da Antropologia à História, à Educação, são por demais expressivas as

inúmeras obras que tratam das relações com a memória, em especial, com a História.

Dessa forma, ao situamos o trabalho com a memória, se coloca como necessário

conhecer a trajetória da mesma, indicando quais os caminhos que a memória imprime sobre o

ato de escrita da história. Ao analisar esse percurso, Jacques Le Goff aponta:

A passagem da memória oral à memória escrita é certamente difícil de compreender.

Mas uma instituição e um texto podem talvez ajudar-nos a reconstruir o que se deve

ter passado na Grécia arcaica.

A instituição é a do mnemon que "permite observar o aparecimento, no direito, de

uma função social da memória" [Gernet, 1968, p. 285]. O mnemon é uma pessoa que

guarda a lembrança do passado em vista de uma decisão de justiça. Pode ser uma

pessoa cujo papel de "memória" está limitado a uma operação ocasional. Por

exemplo, Teofrasto assinala que na lei de Thurium os três vizinhos mais próximos

da propriedade vendida recebem uma peça de moeda "em vista de lembranças e de

testemunho". Mas pode ser também uma função durável. O aparecimento destes

funcionários da memória lembra os fenômenos que já evocamos: a relação com o

mito, com a urbanização. Na mitologia e na lenda, o mnemon é o servidor de um

herói que o acompanha sem cessar para lhe lembrar uma ordem divina cujo

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esquecimento traria a morte. Os mnemones são utilizados pelas cidades como

magistrados encarregados de conservar na sua memória o que é útil em matéria

religiosa (nomeadamente para o calendário) e jurídica. Com o desenvolvimento da

escrita estas "memórias vivas" transformam-se em arquivistas. (1990, p.437).

Remonta à tradição clássica o reconhecimento social de alguém cuja função

dormita em fazer o registro das memórias. Ao mesmo tempo, a elaboração de códigos escritos

implica diretamente sobre a regulação do que de fato seria reconhecido como integrante da

memória. Ao se debruçar sobre a história social da memória, Le Goff destaca de que modo se

institui uma ideia de memória coletiva, como resultado das transformações sociais:

A evolução da memória, ligada ao aparecimento e à difusão da escrita, depende

essencialmente da evolução social e especialmente do desenvolvimento urbano: "A

memória coletiva, no início da escrita, não deve romper o seu movimento tradicional

a não ser pelo interesse que tem em se fixar de modo excepcional num sistema

social nascente. Não é pois pura coincidência o fato de a escrita anotar o que não se

fabrica nem se vive cotidianamente, mas sim o que constitui a ossatura duma

sociedade urbanizada, para a qual o nó do sistema vegetativo está numa economia de

circulação entre produtos, celestes e humanos, e dirigentes. A inovação diz respeito

ao vértice do sistema e engloba seletivamente os atos financeiros e religiosos, as

dedicatórias, as genealogias, o calendário, tudo o que nas novas estruturas das

cidades não é fixável na memória de modo completo, nem em cadeias de gestos,

nem em produtos [1964-65, pp. 67-8] (1990, p.433).

Vemos aqui um novo desafio, que é o de compreender a ideia de uma memória

coletiva. Já que não se pode deter ou fixar tudo na memória, como são elaborados socialmente

os elementos que irão fazer parte do repertório dos grupos sociais, percebemos aqui um dos

primeiros desafios a serem dirimidos por todos aqueles que atuam descortinando os meandros

da memória social.

Partindo dessa premissa, um dos trabalhos mais significativos sobre os usos da

Memória é do francês Maurice Halbwachs, produzido nos anos 30 do século imediatamente

passado. Embora o texto tenha se tornado conhecido nos anos 1950, visto que o autor se

coloca como uma das vítimas da 2ª Guerra Mundial, o escrito passou a influenciar pesquisas

por todo o mundo. Isto não foi diferente na também tradição brasileira dos estudos da

memória.

Para a composição do nosso objeto de pesquisa, materializado neste texto

dissertativo, as questões ligadas à memória coletiva se fazem imperiosas por algumas razões:

a primeira delas está ligada às origens da cidade de Canindé, local de produção dos

memorialistas em estudo, as quais se instauram com suporte numa memória religiosa.

Desde as primeiras narrativas que anunciam a construção da capela dedicada a

São Francisco e por sua vez o crescimento da devoção e as peregrinações ao “lugar da

memória” que origina a cidade, o ato de coligir memórias da cidade se dirigem para o mesmo

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ponto de partida. Neste aspecto, nos é oportuno citar Maurice Halbwachs, que, ao tratar do

espaço religioso, destaca:

Que as lembranças de um grupo religioso lhes sejam lembradas pela visão de certos

lugares, localização e disposição dos objetos, não há do que se espantar. A separação

fundamental, para estas sociedades, entre o mundo sagrado e o mundo profano,

realiza-se materialmente no espaço. Quando entra numa igreja, num cemitério, num

lugar sagrado, o cristão sabe que vai encontrar lá um estado de espírito do qual já

teve experiência, e com outros fiéis, vai reconstruir, ao mesmo tempo, além de uma

comunidade visível, um pensamento e lembranças comuns, aquelas que foram

formadas e mantidas em épocas anteriores, nesse mesmo lugar. (1990, p.154-155).

Além da referência ao lugar que se mostra como esse espaço da memória

coletiva, vemos instaurada outra relação. As práticas que reatualizam a validade dos espaços

de memória são perpassadas via gerações. Embora os construtores da capela, e os primeiros

peregrinos, não estejam mais com sua presença física, o imaginário devocional se reinventa

anualmente com os milhares de pessoas que visitam a cidade.

Em realidade, no desenvolvimento contínuo da memória coletiva, não há limites de

separação nitidamente traçadas, como na história, mas somente limites irregulares e

incertos. O presente (entendido como se estendendo por uma certa duração, aquela

que interessa à sociedade de hoje) não se opõem ao passado, configurando-se dois

períodos históricos vizinhos. Porque o passado não mais existe, enquanto que, para o

historiador, os dois têm realidade, tanto um quanto outro. A memória de uma

sociedade estende-se até onde pode, quer dizer, até onde atinge as memórias dos

grupos dos quais ela é composta. Não é por má vontade, antipatia, repulsa ou

indiferença que ela esquece uma quantidade tão grande de acontecimentos e de

antigas figuras. É porque os grupos que dela guardavam a lembrança desapareceram.

Se a duração da vida humana for duplicada ou triplicada, o campo da memória

coletiva, medido em unidade de tempo, será bem mais extenso. (HALBWACHS:

1990, p.84)

De efeito, observamos, no caso específico de Canindé, uma cidade que se

inscreve num imaginário religioso das práticas cristãs, as experiências que marcam a vida

cultural, econômica, política e social da cidade estão amparadas em imagens advindas desse

passado que anunciam suas origens. Assim, independentemente das convenções pessoais dos

grupos do presente, o acima exposto se hamroniza a todos os que têm relações com a cidade.

Confirmando as observações feitas pelo pensador citado anteriormente, vamos

considerar dois exemplos para melhor perceber as evidências alinhadas aos quadros das

memórias coletivas da cidade. Ainda no século XIX, durante a celebração da Festa de São

Francisco, padroeiro de Canindé17

, em vez de se fazer uso da imagem do Santo, transportado

num andor, a cidade passou a realizar as procissões tendo um painel iluminado por baterias,

que pesa mais de meia tonelada. Assim, uma efígie do Santo é lavada durante as noites de

17

Embora as origens da cidade de Canindé remontem à História Colonial, ela se tornou munícipio em 29 de

julho de 1846.

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novena pelos devotos, que percorrem em procissão as ruas da cidade.

Em épocas comuns, o painel fica depositado na Casa dos Milagres, espaço que

compõe os equipamentos do hoje Santuário de São Francisco. O tempo passou e gerações

foram se revezando no carregamento do painel, que se coloca como marca até hoje.

Certamente, para quem nasceu nesta cidade há mais de um século, não consegue ver a

celebração da festa sem o cortejo com o painel.

Outro ponto importante diz respeito aos equipamentos criados na cidade, sob a

direção da igreja, dentre eles o hospital, que atende não só Canindé, mas também as cidades

vizinhas, como também o Mosteiro, o Convento, o Salão Paroquial e o Museu da cidade;

assim, as lembranças que compõem a experiência da cidade se colocam como marcas de uma

memória, que existe no momento atual. Além do tempo cronológico, já passado e de novos

ritmos que marcam a vida da cidade não há como descolar ou negar todo o conjunto de

elementos que, de um modo ou de outro, voltam esse olhar sobre o passado e apontam um

marco, de onde tudo havia começado.

Saindo das práticas e dos lugares, o último aspecto se coloca sobre o sentido da

existência dos “homens”, que estiveram à frente dos processos que definiram os contornos da

cidade. Assim, ao passo que a devoção a São Francisco se amplia, a população local se

organiza no sentido de promover a elevação da capela à condição de paróquia. Em outubro de

1817, foi criada a paróquia de São Francisco de Canindé, que, após os padres diocesanos,

ficou aos cuidados dos Capuchinhos, que por lá estiveram por um expressivo período, e só

depois é que os Franciscanos passam a orientar os trabalhos naquele lugar.

Portanto, bem antes de Canindé estar sob a circunscrição do Estado, como ente

municipal, foi a ação da igreja que imprimiu as marcas sobre o que se tornaria a cidade. Tal

ação se exprime de modo tão determinante que há um predomínio dos nomes dos logradouros

e dos espaços públicos atribuídos a membros da igreja que desenvolveram trabalho na

comunidade. Vemos assim, nome de: escolas, estádio, galerias de comércio, praças e ruas.

Em suma, o que denominamos como memória coletiva de um grupo é um discurso

narrativo que tem como sujeito este mesmo grupo e que tenta dar sentido a eventos

ou experiências relevantes de seu passado. Para que a soma de recordações

individuais de uma experiência compartilhada se transforme em memória coletiva

ou recordações partilhadas, ela deve poder-se integrar num relato aceito como

genuíno „do que ocorreu. (MUDROVCIC, 2009, p.105).

Vemos, assim, uma teia de sentidos que alimenta as gerações em torno dos

eventos e práticas que caracterizam a cidade. A passagem do tempo reatualiza essas práticas,

modificando ou incorporando novos elementos, mas, estas não perdem a conexão com as

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imagens que identificam os grupos que vivem e dão materialidade a experiência. Ao falar em

memórias coletivas, o autor retrocitado deixa clara a relação que estas se colocam em torno

das identificações dos grupos.

Revisitando o exemplo em questão, Canindé, que tem uma população estimada

em pouco mais de 85 mil habitantes, durante as comemorações da festa de São Francisco

recebe um contingente superior a um milhão de pessoas. Embora haja um ponto alto, que

provoca um aumento na densidade demográfica do lugar, o reconhecimento da cidade como

uma cidade de peregrinação religiosa faz com que ela receba cotidianamente pessoas atraídas

por essa atmosfera de um espaço sagrado.

Por isso, mesmo o observador desatento perceberá que, cotidianamente, com o

raiar do sol e o anúncio dos sinos da Basílica, indicando a chegada da primeira missa do dia, é

notável a presença de moradores de outras cidades, que vêm em sentido devocional a

Canindé. Além disso, como observador da dinâmica da cidade, identificamos o fato de ser

comum, fazendo parte da paisagem do lugar, pessoas trajando a veste marrom, o hábito

franciscano, prática muito comum dos devotos que fazem promessas para se dirigirem

vestidos assim até a cidade. Outra cena habitual são pessoas portando ex-votos18

para serem

depositados na Casa dos Milagres, espaço onde estes são recolhidos. Assim, novamente, nos

apoiamos em Mudrovcic (2009, p.105), quando afirma que “o acontecimento pode não

constituir propriamente uma lembrança dos membros atuais do grupo, mas deve ter sido uma

lembrança comum de seus predecessores”.

Ao trazer essa reflexão, nosso intuito é de compreender os elementos que

permeiam a construção de sentido do trabalho de um memorialista. Os memorialistas não

viveram tudo aquilo que passarão a registrar como marcas da trajetória do grupo em que estão

inseridos. Existem apreço, o gosto por todo o repertório dos eventos, das lembranças e, por

meio das memórias já narradas por muitas gerações, atuam no sentido de motivar, de

fomentar sentidos para que eles constituam uma prática que se exprime como marca de

trajetórias pessoais.

Acreditamos que não seria ousado afirmar que a atividade de recolha e divulgação

das memórias dos grupos sociais se coloca como marcas de um oficio, assim como ocorre

com os historiadores profissionais. Os estudos sobre a produção dos historiadores salientam

18

É denominado por ex-voto a representação material pela obtenção de uma graça alcançada. Assim, o devoto,

após ter o pedido alcançado, materializa-o e o leva como testemunho da promessa materializada. Como os

pedidos são de várias naturezas, como ex-votos, vemos réplica de partes do corpo humano, simbolizando a cura

de doenças; de bens materiais, como carro, casa etc; como também vemos a referência a bens imateriais.

Destacamos, o êxito alcançado pela aprovação em concurso público, pela conlusão de cursos de pós-graduação,

lato e stricto sensu.

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que a prática historiadora foi, noo tempo, se cercando de elementos que formularão marcas de

um saber definido por científico, visto que ele mesmo se faz por via de métodos e técnicas

que foram sendo aperfeiçoadas à proporção do tempo.

Ao mesmo tempo em que falamos na construção de uma identidade profissional, o

trabalho do historiador não foge ao sentido inicial, que o aproxima de uma prática de oficina.

Daí a dificuldade em, muitas vezes, de eles cobrarem por serviços profissionais prestados à

sociedade. Assim como aqueles que têm no ofício de produzir, de escrever e refletir sobre

História como domínio de uma prática profissional, o memorialismo que por sua vez se

traveste de uma prática historiográfica (não igualando aqui ao ofício de historiador), requer de

todo aquele que se aventure nos meandros das memórias, para torná-las objeto de história,

uma espécie de comportamento devotado.

Referenciamos aqui, o devotado, não como uma estrutura de algo mágico,

desprovido de racionalidade, mas como o que se encontra ligado a atividades que requerem de

quem o faça mediante esforço, dedicação que leva para além do tempo humano ilustrado pela

passagem do relógio e do calendário, ao que podemos apresentar como um projeto que

permeia a vida do sujeito, que, em meio as suas demandas da vida pessoal e profissional, dá

sentido a uma atividade outra, marcada por esforço e dedicação.

Na busca por uma imagem que poderia dimensionar a referida prática, a

relacionamos com aquela de quem cria figuras ilustradas por mosaicos. De modo

aparentemente simples, mas com muita singularidade, cada peça instalada, fora do quadro

geral, tende a não ter significação. Quando observadas em conjunto, eles nos revelam beleza e

uma densidade profunda, o que nos conduz a identificar com uma determinada experiência

histórica.

Assim, elementos que vão desde as crônicas, de opúsculos, passando por ações de

maior fôlego, como a organização de uma narrativa, e que se aproxima das ideias de síntese,

vemos uma amplitude de atividades que dão forma e sentido ao trabalho dos memorialistas.

Como na grandeza trazida pelos mosaicos, essa escrita recebe formato e se exprime para a

comunidade, carregada por um modo de comunicar-se que atinge um público amplo e diverso.

Ao falar da escrita da história, Jacques Le Goff(1990; p.09), expressa que “[...]

não se tem história, sem erudição”, o que os memorialistas também carregam consigo em sua

formação pessoal. Acessar o universo da leitura e das letras, no que tange à prática de

escrever e divulgar escritos, se coloca como uma situação pouco comum para a grande das

pessoas. E, mais uma vez, vemos o fazer dos memorialistas como uma marca de

singularidade, pois são pessoas inseridas no quadro do que o saber formal aponta como

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erudito, mas que, ante o desejo de materializar esses registros de História, o fazem voltados

para um público amplo, visto que a paixão pessoal por História só tem sentido a proporção

que aquilo que é percebido, descoberto, descortinado, chegando ao homem comum, e que este

se reconheça como parte dessas experiências.

Como a instituição de saber formal confere aos profissionais de História o devido

reconhecimento profissional, para que eles possam atuar em sua prática e ser reconhecidos

por tal atuação, os memorialistas recebem a chancela da própria comunidade onde eles se

inserem. Os primeiros recebem formação para atuar nos diferentes dos domínios da história,

dentre eles, a realização de trabalhos que contribuam para a historiografia, para que o

“conhecimento histórico” possa operar de modo a transformar a sociedade; então os

memorialistas se forjam em meio ao quadro das vivências e das experiências do grupo social.

De uma convicção pessoal que o inclina para a necessidade de buscar conhecer

em maior profundidade a história de sua comunidade, ele se lança num desafio, que se

exprime como marca de sua vida, visto que, para isso, ele necessita fazer escolhas no sentido

de suscitar olhares sobre o espaço onde se inserem. Vemos aqui, talvez, a marca de maior

singularidade que define a importância dos memorialistas para o grupo social.

Tal feito, entretanto não ocorre de modo simplificado. A ideia de um

(re)conhecimento se exprime desde o momento em que eles, nos domínios da escrita, se

empoderam desta e revelam a todos os interessados as marcas de suas origens sociais. A

humanidade, de fato, não foi mais a mesma desde o momento em que elaborou códigos de

comunicação escrita. Assim, a primeira grande credencial é ter o domínio do código, para

que, então, possa haver o reconhecimento da comunidade, dos grupos sociais.

Tomando como exemplo o Ceará, lugar de onde partiram inteligências

prodigiosas sobre o Brasil19

, vemos, até bem próximos de nós, a grande significação do

trabalho de memorialistas se inscrevendo nos quadros da própria historiografia cearense.

Traspondo a ideia de que é recente a formação de historiadores profissionais, vemos homens

de variados matizes profissionais se lançando na arte de escrever sobre História,

precisamente, a História do povo, com suas características mais marcantes.

Retomando o locus onde estão inseridos os memorialistas em foco, identificamos,

nos quadros de intelectuais que emitiram suas percepções sobre o Ceará, imagens fecundas

que se colocam sobre a cidade de Canindé. Destacamos, assim, numa passagem do texto

19

São do Ceará inteligências como José de Alencar, Capistrano de Abreu, Clóvis Beviláqua, Araripe Júnior, D.

Hélder Câmara, Delmiro Gouveia, Antônio Vicente Mendes Maciel (Antônio Conselheiro), José Antônio Maria

Ibiapina (Pe. Ibiapina), Cícero Romão Batista (Pe. Cícero), dentre muitos outros, no passado e no presente.

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denominado “À margem da História do Ceará”, de autoria de Gustavo Barroso20

, uma

peculiaridade sobre as imagens que compõem essa terra:

Contava-me na infância um veterano da guerra do Paraguai, ferido no ombro de

Itororó, que, no hospital de sangue, identificava a origem dos seus companheiros de

dor pelos santos que invocavam, gemendo. Quando ouvia dizer: - Ai, minha Nossa

Senhora de Nazaré! Sabia tratar-se dum paraense. Se escutava: - Ai meu Senhor do

Bonfim! Era um baiano. Se outro bradava: - Salve-me a Senhora da Aparecida!

Seria paulista ou mineiro do Sul. E todos os cearenses sem exceção, clamavam: -

Valha-me, S. Francisco das Chagas de Canindé! ( 1972, p.05).

Além da observação que leva à indicação da experiência religiosa do povo do

Ceará e do núcleo de irradiação que é a cidade de Canindé, a ilustração de Barroso (1972) nos

toca no sentido de perceber a grandeza na escuta das memórias de um homem comum,

inserido num evento histórico importante, embora a guerra seja um elemento trágico do

gênero humano, no entanto, é da matriz de escuta que se inicia um quadro de reflexões.

Se não tivesse sido registrado nos campos da escrita, certamente tais elementos

não teriam chegado até nós e haveriam sido apagados pela passagem do tempo. O

esquecimento é outra face que a necessidade pelo registro escrito legou aos humanos. Darci

Ribeiro (1997), ao narrar suas passagens com os índios “Urubu Ka‟apor‟, cita, que na

conversa com um dos chefes, ele narra uma genealogia de 1.200 nomes, algo impensado pela

nossa tradição que se amparou na crença de que o que está escrito permanecerá.

Entre o que foi recolhido mediante a escuta das memórias e na disposição de

identificar esses registros, constrói-se o trabalho primordial do ser memorialista. Assim, tal

ação está permeada também por intencionalidades, visto que é uma atividade humana, e, de

tal modo Rossi (2007) qualifica:

A reevocação não é algo passivo, mas a recuperação de um conhecimento

anteriormente experimentado. Voltar a lembrar implica um esforço deliberado da

mente, é uma espécie de escavação ou de uma busca voluntária entre os conteúdos

da alma: quem rememora „fixa por ilação‟, o que antes viu ouviu ou experimentou

isso, em substancia, é uma capacidade de pesquisa; diz respeito somente a quem

possui a capacidade deliberativa, porque deliberar também é uma forma de ilação.

(2007, p.16).

Como já conhecemos, toda ação humana é uma ação política, carrega consigo

intenções e subjetividades. Assim, a constituição das memórias se exprime diretamente ligada

ao que se denomina de identidade social. Com efeito, as atividades que se expressam em

20

Embora hoje sendo nome de monumento na capital cearense, Gustavo Dodt Barroso (1888-1959), é um dos

mais significativos intelectuais cearenses, com obras conhecidas e com atuação dentro e fora do país. Por sua

inserção nos quadros da militância política no integralismo e sua inclinação pelas ideias dos fascismos do século

XX, fizeram com que ele fosse banido dos quadros da História da Literatura Brasileira. Autor de 128 obras,

sendo o primeiro a escrever uma sociologia do cangaço, tais ações fizeram com que a importância de sua obra

fosse negligenciada e desconhecida das novas gerações.

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ações para a junção de materiais que irão balizar a construção dos registros de memória são

motivadas por um reconhecimento pessoal, do sujeito a um grupo social, no caso em foco, a

primazia est´z situada na polissemia da cidade.

Reiterando as relações das memórias coletivas, sob o prisma das identificações,

Michel Pollak nos chama atenção para um conjunto de elementos que caracterizam essa

produção das memórias.

Quais são, portanto, os elementos da memória individual ou coletiva? Em primeiro

lugar são os acontecimentos vividos pessoalmente. Em segundo lugar são os

acontecimentos que eu chamara „vividos por tabela‟, ou seja, acontecimentos

vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. São

acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou mas que, no imaginário

tomaram tamanho relevo, que no fins das contas, é quase impossível saber se ela

participou ou não (1992, p.202).

De posse dessas observações voltamos-nos para a figura do memorialista e a

sua existência como marca da vida cultural e social dos mais diversos lugares do Território

Brasileiro. Neste sentido, esses homens são revisitados o tempo todo, como uma espécie de

depositários, de guardiães da memória do grupo, e, sempre que necessário, se colocam como

os representantes da comunidade, perante aos demais.

No que tange ao que caracteriza a cidade de Canindé, como uma cidade inscrita

nos domínios do imaginário cristão, não são apenas pequenas passagens que marcam o que se

chama calendário cívico da cidade, o momento em que os memorialistas são evocados, a

comparecerem. Destacamos anteriormente que a cidade respira uma atmosfera que põe em

sintonia o passado no presente. Assim, cada novo olhar da cidade se conjuga com essa

reatualização do passado e assim os memorialistas se colocam a reafirmar sua prática,

trazendo à tona a experiência dos grupos que fazem parte dos quadros da comunidade.

Retomando o quadro definido por Pollak (1992), a figura do memorialista transita,

no meio social, como aquela que conhece, que guarda consigo esse conjunto de experiências

do passado coletivo, onde este é confundido com aquele que viveu de fato os eventos do

passado. Assim nada de relevante na comunidade é realizado sem que seu comparecimento

físico, ou seus registros escritos, sejam tomados como referências.

Diferente do que ocorre com as produções historiográficas consagradas, o trabalho

dos memorialistas circula de modo comum, sem que seja privilegio de grupos

institucionalizados. Assim, seja nas bibliotecas públicas, nas estantes particulares e no

cotidiano da cidade, a obra deste ou daquele autor é vista, lida e reconhecida como elemento

de referência às origens do lugar, se constituindo um patrimônio pessoal, como uma espécie

de álbum de família, onde, mesmo que a pessoa não apareça nas imagens destacadas, ali

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repousam passagens das origens comuns.

Novamente, retomamos as observações de Pollak (1992, p.202), ao afirmar que “a

memória é constituída por pessoas, personagens”. Daí uma questão que se coloca como

marcante, ao se registrarem as escritas da memória, pois, ao destacar a participação das

figuras humanas nos quadros da história, aquele que realiza os registros pode ser apontado

como tendo esta ou aquela intencionalidade de destacar ou esquecer daqueles que, tenham de

fato contribuído de modo relevante para o desenvolvido do grupo social.

Além de possíveis intencionalidades, os estudos sobre a memória tiveram atenção

significativa, com o que alguns chamam de apagamentos, silêncios e, de modo mais efetivo, o

esquecimento. A primeira percepção sobre o pensar da memória nos leva a perceber, por um

dispositivo próprio desta capacidade cognitiva, ela, por si mesma, desenvolve estratégias de

esquecimento.

Nem tudo é lembrado, ou não é lembrado de igual modo, pois o ato de lembrar

pode estar submetido a determinadas experiências humanas. Retomamos o fato, de que os

elementos que catalisam as ações dos nossos memorialistas sejam as relações definidas com o

espaço da cidade, pois embora sejam identificadas outras imagens do lugar, a memória do

sentimento religioso é a mais recorrente, e que certamente não pode ser abandonada, por

qualquer percepção sobre o lugar. Poderíamos apontar outra marca, que coloca uma imagem

da cidade, também muito ocorrente. Estando o lugar encravado no sertão cearense, sendo o

sertão uma região fisiográfica caracterizada pelo baixo nível de precipitação e por

temperaturas elevadas, a seca, o calor, também se colocam como elementos de identificação

do lugar.

Ainda nos quadros da Historiografia cearense, identificamos nos estudos

produzidos pela famosa Comissão Científica de Exploração21

(1859-1861), que esteve em

visita ao Ceará durante o II Reinado, a visita à Vila de Canindè nas atividades da referida

Comissão, visto que consta como um dos espaços visitados.

A Comissão tinha como objetivo o reconhecimento das potencialidades do

Território Brasileiro no contexto do Império. Acreditava-se que o território do Ceará, que foi

21

No panorama do Império Brasileiro, como dentre as muitas iniciativas realizadas para se criar uma ideia do

Brasil, temos a famosa Comissão Científica, chamada popularmente de Comissão das Borboletas. Esta fora a

primeira Viagem Científica do Império. Estava organizada em cinco seções: Geológica e Mineralógica,

Zoológica, Astronômica e Geográfica, Etnográfica e Narrativa de Viagem. Tendo como participes grandes

nomes do pensamento brasileiro. A destacar Gonçalves Dias, conhecido por sua produção como romancista, que

era um grande etnógrafo, e o botânico, Freire Alemão, cujas observações sobre Canindé se encontram em todos

os estudos feitos pelos memorialistas locais.

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o ponto de irradiação, seria possuidor de jazidas e minas de metais preciosos. Embora não

tendo confirmado tais achados, o trabalho da Comissão que era formada por integrantes

brasileiros, trouxe à luz informações desconhecidas, ao passo que acabaram por escrever

elementos importantes para o pensamento científico nacional; sem se esquecer de que os

estudos da Comissão trazem relatos ampliados sobre distintas marcas da terra e da gente do

Ceará.

Assim no relatório, registrado sob a pena do botânico Freire Alemão, na passagem

iniciada sob o título, “Canindé, vila, na ribeira do riacho Canindé”, na seção denominada de

inspeção, ele, descreve:

Esta vila do Canindé, dizem os moradores que no verão fica deserta: a maior parte

dos moradores têm sítios na serra, e lá vão passar o verão, que é muito quente aqui;

os proletários vão alugar-se para o trabalho. Então, não só a moradia aqui é triste,

mas faltam os poucos recursos que se acham durante o inverno. Agora mesmo há

grande dificuldade para se comprar uma galinha, capote, ovos, etc,; o que se acha na

terra é carne fresca do dia em que se mata, farinha, milho, feijão, arroz e rapadura,

ou açúcar grosso, aguardente, vinho sofrível , cerveja e pouca fruta: nada de verdura.

A água é má, e no verão é pior. É quente o lugar, há agora muita môsca, e bastante

muriçocas. (1961, p.336).

Identificamos aqui uma outra imagem atribuída, não só a Canindé, como ao Ceará

e à vastidão dos domínios caracterizados pelas paisagens sertanejas. Embora pareça algo sem

relevância, as interpretações trazidas pelos domínios dos saberes chamados oficiais tendem a

ser assimiladas como verdades acabadas.

De um lado há o fervor religioso, a religiosidade manifestada de modo singular.

Ao mesmo tempo em que a devoção a São Francisco define o caráter toponímico, a condição

natural, tida aqui como uma espécie de calamidade natural, também se apresenta como uma

marca do lugar e do povo que vive imerso nesse quadro cotidiano.

Trazemos essas imagens no sentido de identificar que o quadro de interpretações

da memória coletiva não parte de um todo obscuro, aparentemente desconhecido. A prática

dos memorialistas se ampara na remota tradição de buscar indícios, vestígios que possam

trazer elementos para a qualificação de sua prática.

Se por um aspecto as impressões anteriormente produzidas se colocam como

elementos considerados, o que dizer quando na produção das memórias são percebidas as

marcas de esquecimento? A cidade se traduz como um espaço da memória cristã sob os

moldes católicos romanizados, o que definirá, nos espaços dessa memória, a não participação

de grupos que partilham de um mesmo espaço social.

A condição de maior Santuário Franciscano das Américas, o segundo maior do

mundo, se exprime como uma condição de poder, que tende a levar ao apagamento tudo

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aquilo que ocorre em paralelo, ao passo que este não seja favorável à visão preponderante. Ao

perceber as narrativas que compõem a cidade, não apenas dos memorialistas em foco, mas na

dinâmica da cidade, embora estejam presentes, não estão no cânone das memórias os grupos

cristãos não católicos, assim como as religiões de matriz africana, que também constituem

expressões da vida da cidade.

Revisitando uma outra contribuição de Pollak, denominada “Memória,

esquecimento e silêncio”, ele nos chama atenção para os elementos que demarcam as

referenciais da memória.

A memória essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do

passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos em tentativas mais ou

menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras

sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, clãs, famílias, nações,

etc. A referência ao passado serve para manter a coesão do grupos e das instituições

que compõem a sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua

complementariedade, mas também as oposições irredutíveis (1989, p.07).

A elaboração das memórias se traduz como um elemento complexo da vida social.

Não podendo ser percebido como um elemento isolado, embora que a prática memorialista

seja dotada de uma profunda marca de desprendimento pessoal, referidas produções se

expõem como elementos representativos da comunidade. Embora sejam objetos de críticas e

divergências, eles estarão sempre ancorados no sentido em que estão a compor memórias que

se baseiam num campo de verificações já reconhecidas como marcas do seu lugar e de sua

origem.

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3 ARAUTOS DA CIDADE: MEMORIALISTAS DE CANINDÉ- CEARÁ

Neste capítulo trazemos a constituição da cidade de Canindé, sob um olhar

historiográfico, sob uma clara influência da igreja. Neste momento, o primeiro, em que a

cidade é tomada como objeto de investigação, evidenciamos uma motivação de fora para

dentro, na produção dessas escritas da história do lugar.

Com o passar do tempo, são os habitantes do lugar que se sentem motivados a

estabelecer outras visões sobre essa história da cidade. Destacamos, assim, a produção de três

amantes de história, que desenvolveram importante atuação, no que tange a lançar novos

olhares sobre o lugar, que tem como marca primordial a devoção ao Santo Padroeiro, São

Francisco das Chagas de Canindé.

3.1 CANINDÉ DEFINIDA PELA HISTORIOGRAFIA

É importante ressaltar que uma cidade resulta de interações coletivas, no tempo

e no espaço. Empenhar esforços na busca por uma certidão de nascimento de um lugar é uma

ação no mínimo equivocada. Por sua vez, a cidade de Canindé22

tem suas origens ligadas ao

sentimento religioso cristão católico, devotado na figura de São Francisco de Assis.

Além dos chamados registros oficiais, que dão conta das terras dividas em

sesmarias, o elemento integrador do que será uma nova cidade é de fato a instalação da igreja

dedicada ao Santo de Assis. Com a ocorrência dos milagres, o espaço religioso se transforma

pelo crescente aumento de visitantes ao lugar. Assim, um olhar mais atento para o que hoje é

o Centro Histórico da cidade nos faz compreender que é a irradiação dos eventos em torno da

experiência religiosa que orienta gradativamente a cartografia da cidade.

22

Destacamos no Apêndice 01, as imagens da cidade que permeiam a produção dos memorialistas estudados.

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Destacamos as considerações de Zeny Rosendahl (1998), quando enuncia que é o

espaço sagrado que possibilita e delimita o profano. Aqui entendemos a esfera de sagrado e

profano além das considerações do cânone burocrático da igreja. Nesse sentido, se existe um

aumento expressivo de pessoas no lugar, temos uma crescente demanda por produtos e

serviços para atender aos visitantes do espaço.

Ressaltamos que a construção da primeira igreja e o aumento do número de

devotos, em visita a ela se colocam como elementos importantes no que tange aos domínios

da igreja na região. Apontamos anteriormente o modo pelo qual a ação da igreja é relevante

na formação do Brasil, e, no que diz respeito a Canindé, isso não foi diferente. À medida que

a devoção se amplia, a igreja se organiza no sentido de cuidar do novo espaço em foco.

Vemos que, pouco tempo depois de construída a igreja e do crescimento da

devoção, Canindé é elevada à condição de paróquia. Assim, tais acontecimentos fazem com

que sistematicamente os domínios da Igreja se ampliem ainda mais. Quando a Igreja foi

elevada à condição de Santuário, a cidade passou a viver um novo momento, visto que a

condução do Santuário ficou inicialmente, sob o domínio dos Capuchinhos, que

gradativamente ampliaram o leque de atuação da igreja, para muito além da vida religiosa.

Por um longo período, os Capuchinhos conduziram a cena em Canindé, até que no

século XX, o Santuário23

, que depois foi elevado à condição de Basílica, passou a ser

conduzido pelos Franciscanos, até o presente momento. E essa existência oficial da igreja no

que brevemente se tornará a cidade de Canindé, se coloca como imprescindível para a

compreensão da história do lugar.

Mesmo com a formação de um Estado Brasileiro, Igreja e Estado continuavam

ligados. Infelizmente, no curso de toda nossa formação, a ação estatal, quer seja como

América Portuguesa ou Estado Brasileiro, foi sempre incipiente. Nesse sentido, a igreja aqui,

estava desde o nascimento das pessoas, que passavam a existir, em termos oficiais, por meio

do registro de batismo. Esta ocupou os vários domínios da vida cultural, política e social dos

lugares que compõem o território.

23

Após a criação da Paróquia de Canindé, em 1817, os padres diocesanos conduziram os trabalhos no Santuário.

Em setembro de 1898, chegaram os Capuchinhos lombardos, que ficaram até março de 1923, quando o mesmo é

assumido pelos Franciscanos. É comum se pensar que a condução dos trabalhos na paróquia sempre fora

conduzida pelos franciscanos. De todo modo a experiência religiosa de Canindé, se transforma na principal

marca devocional ao santo de Assis, em nosso país, reiterando o fato da presença franciscana que percorreu o

território ao longo da colonização. Dizem até que o “Brasil nasceu franciscano”, visto que na comitiva de Pedro

Álvares Cabral, o religioso, Henrique Soares Coimbra, era integrante da Ordem de São Francisco. In:

MASCARENHAS MENK, José Theeodoro. http://www.ihgdf.com.br/quem-era-e-como-se-chamava-o-frei-que-

rezou-a-primeira-missa-no-brasil/

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Olhar o passado de Canindé é simplesmente observar toda essa configuração.

Partindo da atual Basílica (cerne), identifica-se toda uma teia de elementos, de relações

criadas a partir desse lugar. Nesse sentido anterior, a ideia de municipalização foi a ação da

igreja por meio de seus religiosos que intervieram no que seria a cidade que conhecemos hoje.

Esse modo de atuação, em que está situada a ideia de instrumentos para o

desenvolvimento humano, embora que ligados a uma lógica de assistência e caridade, fez

parte do mundo medieval europeu, no entanto, ao se observar as ações desenvolvidas pela

Igreja em Canindé, percebemos a sintonia com tais práticas descritas por Lewis Mumford, em

“A cidade na história”:

Desde o próprio momento em que a Igreja se tornou religião oficial do Estado

romano, em 313 A.D., aquele programa se achou em perigo, e a Cidade de Deus

distanciou-se ainda mais. Recantos de paz e ordem cristã continuavam visíveis no

mosteiro; e uma parte não pequena daquele espírito se introduziu na cidade, através

de funções fraternais da guilda. Mas a ideia cristã floresceu na adversidade e com

êxito enfrentou uma série de revesses que culminou no século XIII. Enquanto a

própria vida era orientada para a morte e o sofrimento, uma medida não pequena da

intenção cristã encontrava uma saída em atos de compaixão e caridade, que

tomavam sua forma institucional apropriada na cidade. Em nenhuma cultura urbana

anterior existia qualquer coisa semelhante aos grandiosos dispositivos em favor dos

doentes, dos velhos, dos sofredores, dos pobres, que existiam na cidade medieval.

(2004,p.345).

Assim, mesmo em temporalidades distintas, a Igreja no Brasil, em especial em

Canindé, não poupou esforços no sentido de construir equipamentos de assistência à

população. É possível apontar a construção de escolas, abrigos, centro de formação

profissional, hospital e maternidade, além de outros que foram edificados para atividades da

própria igreja, mas que são utilizados pela comunidade em geral. Aqui indicamos o convento,

o mosteiro, o salão paroquial e toda a estrutura que compõe o complexo do Santuário, que

hoje dispõe de rádio e núcleo televisivo.

Em meio ao exposto se coloca como impossível compreender as configurações da

cidade, inserida em domínios coloniais que se dão sob as bençãos da Igreja Católica Romana,

sem a compreensão do papel da instituição no tempo. Se esse conhecimento, se traduz em

aspectos de uma materialidade histórica, pelo que conhecemos como patrimônio de cal e

pedra, a igreja do seu modo foi tratando de fazer registros dessas páginas de história

experienciadas em Canindé.

Com a criação da Paróquia, que em 2017 completou 200 anos, isso se torna ainda

mais efetivo. Agora, com o marco burocrático, a igreja passa a ser o lugar oficial que passará

a produzir os dados sobre o lugar. Com a prática dos registros da vida eclesiástica, nos livros

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de tombo, batizados, casamentos, óbitos, todas essas ocorrências passaram a receber atenção,

sendo registrados como elementos históricos.

Embalados ainda por essa presença da igreja que não se fazia somente em termos

físicos, mas na construção de um imaginário sobre o lugar, identificamos, ainda no século

XIX, um conjunto de ações que visam a dar contornos ao que seja, essa “História de

Canindé”. Assim, ao passo que a experiência religiosa cresce, Canindé se torna Santuário,

aumentam as peregrinações e os devotos, então, fazia-se necessário registrar, conceder um

norte às origens, algo próximo do modo de perceber a História como na tradição clássica,

onde o passado ilumina o presente.

No final do século XIX para o limiar do século XX, quando da implantação da

República, momento sacralizado na História como advento que decorrera como: Questão

Militar e Questão Religiosa, afirmara-se o ideário republicano que, à luz da Modernidade, se

colocava como o governo mais compatível com o ideário advindo das ideias políticas e

sociais gestadas pela influência iluminista. Sobre este contexto, a historiadora e professora

Emília Viotti da Costa ( 1999) assevera que:

É opinião corrente que a proclamação da República resultou das crises que abalam o

fim do Segundo Reinado: a Questão Religiosa, a Questão Militar e a Abolição.

Afirma-se que a prisão dos bispos do Pará e de Pernambuco incompatibilizou a

Coroa com extensas camadas da população. A Abolição, por sua vez, indispôs os

fazendeiros contra o regime, levando-os a aderir em massa às ideias republicanas.

Finalmente, a Questão Militar, que se vinha agravando desde a Guerra do Paraguai

em virtude do descontentamento crescente dos militares em relação ao tratamento

que lhes dispensava o governo, levou-os a tramar o golpe de 15 de novembro que

derrubou a Monarquia e implantou o regime republicano no país. (...). Nem todos os

historiadores, entretanto, aceitam essa versão. Alguns acham que a República é

consequência natural dos vícios do antigo regime. A Monarquia fora desde o início

uma planta exótica na América (Pp. 447-448).

A Historiadora analisa os diversos momentos que definiram a modalidade de

instauração do Brasil republicano. Ao explicitar as coordenadas dessa passagem, ela desvela

as causas da fraqueza das instituições democráticas e da ideologia liberal. Neste sentido, a

autora de “Da monarquia à República: momentos decisivos” nos indica o objetivo de sua

obra:

Na abordagem dos temas procuramos evitar as explicações mecanicistas, que, por

apresentarem os homens como meras vítimas de forças históricas incontroláveis,

acabam por isentá-los de qualquer responsabilidade. Assumindo que dentro das

determinações gerais do processo histórico há sempre uma relativa margem de

liberdade, examinamos o comportamento das elites brasileiras em alguns momentos

decisivos. (1999, p.17).

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No que concerne à relação entre Igreja e Estado, o que se pode apreender em

relação aos primeiros anos republicanos no Brasil? Ângela Maria Castro Gomes e Marieta de

Moraes Ferreira, em um balanço historiográfico sobre a Primeira República, afirmam a partir

dos estudos empreendidos, que se consolida a ideia de que se tratava de um momento-chave,

não só para a compreensão da história do catolicismo no Brasil, como também para a

apreensão das marcas que ele imprimiu na sociedade brasileira (GOMES E MORAES,

(sic)1989).

A elite eclesiástica brasileira foi resistente ao contexto histórico, visto não abrir

mão de tudo o que havia conquistado desde o período colonial. Foi agindo de acordo como o

contexto exigia. Assim, não deixou escapar a chance de se manter numa convivência pacífica

com o Estado, até que a hierarquia do catolicismo se reestruturou e se fortaleceu no cenário

político nacional no período do Estado Novo.

Ao observar o Brasil, em especial no que se coloca nos rumos da História da

Igreja, a separação entre essa instituição e o Estado, trouxe implicações fortes nas ações

desenvolvidas nas terras brasileiras, como também de toda a América Latina. Deste modo, as

diretrizes a serem desenvolvidas nestas terras devem seguir agora o direcionamento ditado

pelo poder de Roma, processo este conhecido como romanização. Sobre esse contexto,

Gomes e Moraes (1989, p. 267) afirmam:

De forma consensual, a bibliografia situa que com as encíclicas

Encíclica Quanta cura y Syllabus Errorum (1864) Roma passa a comandar uma

política de supremacia espiritual do papado que se manifesta na reformulação

dos conteúdos do catolicismo e na moralização e nacionalização do clero. O

ultramontanismo era tanto um movimento defensivo ante os avanços do

racionalismo cientificista moderno como a ampliação dos espaços das crenças

concorrentes, como um movimento ofensivo da Igreja através da afirmação da

hierarquia e da pureza da fé católica. Foi no contexto desta orientação de

renovação e disciplinarização espiritual que se desencadeou a crise da

proclamação da República, onde o conservadorismo católico foi golpeado com o

fim da Monarquia e, com ela, do regime do Padroado.

Em termos pragmáticos, os grandes espaços de devoção popular que em

quadros gerais eram dirigidos por irmandades de leigos, daí em diante ficaram sob o comando

das ordens religiosas. E em Canindé isso não foi diferente. Os Capuchinhos italianos

chegaram ao sertão cearense em 1898 e, em seguida instaurou-se um outro momento, não só

em termos de vivências religiosas, como também no que tange aos aspectos socioculturais da

cidade, que pouco tempo depois sediou o segundo Santuário Franciscano do mundo.

Com os religiosos no lugar, temos o aparecimento dos primeiros trabalhos que se

mostraram como registros de uma dita “história oficial”. Assim, o conjunto dos eventos que

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marcaram até então a origem da devoção e a trajetória da cidade é elevado à condição de

objetos de História. As memórias que embalavam as narrativas orais, pouco a pouco,

passaram a repousar nos domínios da escrita.

Assim, a primeira produção escrita sobre a cidade de Canindé é intitulada “Capela

Milagrosa”, e tem como autor o poeta cearense Álvaro Dias Martins, natural de Trairi, que

viveu parte de sua vida no Rio de Janeiro. Em sua trajetória, destacam-se a participação em

movimentos importantes da vida cultural no Ceará, como nos movimentos literários, “Padaria

Espiritual e Centro Literário”, o primeiro que contou com a participação de notáveis, como

Adolfo Caminha, Antônio Sales, Lívio Barreto, Jovino Guedes e Henrique Jorge; logo depois,

no Centro Literário, onde ele foi fundador, esteve junto de outros grandes nomes de nossa

intelectualidade, tais quais: Guilherme Studart, Papi Júnior, Rodrigues de Carvalho, Quintino

Cunha, dentre outros.

Acreditamos que a incumbência atribuída ao Álvaro Martins, de realizar esse

primeiro registro histórico, não se deu de modo despretensioso, mas pelo fato de ele estar

envolto nessa atmosfera dos movimentos intelectuais no Ceará. Como desejamos apresentar a

cidade construída historicamente na produção dos memorialistas, acreditamos ser

indispensável apontar o sentimento que exprime aos autores que inauguram essa prática na

cidade.

Destacamos, a seguir, o preâmbulo de “A capela Milagrosa”, texto publicado em

1898, onde o autor deixa claro o lugar de onde fala, ao tempo em que delineia seus objetivos:

Em fins de maio do ano passado, os editores Cunha, Ferro & Cia, procurara-me por

duas vezes em minha residência, e pediram-me com insistência que escrevesse um

livro sobre SÃO FRANCISCO de Canindé, visto possuir eu larga cópia de notas e

documentos relativos à milagrosa capela.

Faltando-me estudos especiais e competência para escrever sobre assunto de tanta

magnitude, relutei a princípio; porém, depois de melhor inspirado, e já tendo

adotado um plano geral de obras descritivas sobre o Ceará, no intuito de torná-lo

bem conhecido, resolvi traçar as páginas que ora submeto a apreciação do público.

É este livro escrito para o povo, e como tal o fiz em linguagem singela e simples, ao

alcance de todas as inteligências e cultivos.

Bem se vê, nesta obra, o leitor não deve procurar grandezas de estilo, nem sutilizas

de arte.

O assunto, porém, recomenda a obra: e, se esta não pode valer pelos recursos

intelectuais que falecem ao autor, vale ao menos pela boa intenção que a ditou e pelo

esforço empregado em sua confecção.(1898, p.03)

O autor anuncia ao leitor do texto todos os meandros que antecederam a sua

construção. Afirma o apelo recebido para a produção. De um lado, acredita que o desafio é

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amplo, mas, ao mesmo passo, reitera a ideia de que já possui lastro e condições de realizar o

trabalho. No que tange à finalidade, uma espécie de missão, visto que se destaca o acesso à

História da devoção em Canindé, história essa que deve estar no alcance a todos.

Pouco tempo depois, temos um novo trabalho, que tem a experiência religiosa em

Canindé como objeto de sua investigação. Em junho de 1907, o canindeense Augusto Rocha

escreveu: “Santuário de São Francisco de Canindé- Resumo Histórico”, obra que, em 1911

recebeu uma segunda edição. Nascido em Canindé em 1867, Augusto Cordeiro da Rocha fez

seus estudos no Atheneu Cearense. Dedicou-se às atividades comerciais, exercendo também

funções públicas na cidade de Baturité. Em sua cidade natal, porém, ele se dedicou a um

conjunto de atividades do mundo intelectual e das letras.

Fundou o primeiro jornal da Cidade, “O Canindé”, colaborou em periódicos locais

como o de Baturité e de alcance estadual, como: “O Norte”, “O Ceará”, “O Estado”, todos de

Fortaleza, bem como em periódicos do Sudeste. Em Canindé dedicou-se a atividades docentes

no Colégio São Francisco, mantido pelos frades capuchinhos, chegando a fundar um Grêmio

Literário24

batizado de Afonso Celso. O munícipe de notada ilustração, que hoje figura como

nome de rua na cidade, deixou trabalhos sobre genealogia da família, contos e poesia e

desenvolveu atividades conjuntas com outro conterrâneo das letras cearenses, o poeta Cruz

Filho25

.

Assim como feito por Álvaro Martins, Augusto Rocha deixa marcado cada um

dos elementos que antecederam a produção de sua obra. Destacamos dois elementos que

antecedem o texto introdutório. O primeiro deles é a nota em agradecimento a Dom Joaquim

José Vieira, bispo da Diocese do Ceará, e a Frei Mathias de Ponterânica, missionário

capuchinho, a quem o autor anuncia “tributo de gratidão e respeito do autor”(1911, p,01).

Após o agradecimento, ele destaca: “Por contrato celebrado entre autor e o editor,

está obra é de absoluta propriedade deste último”.(IDEM,p.01). Ele uma citação de Victor

Hugo, como epígrafe do que se segue na introdução: mais il est permi même au plus faible,

d'avoir une bonne intention et de la dire26

(1907, p, 01).

24

Informações colhidas no Blog: Coisas de Cearense. História, cultura, turismo e os costumes de nossa gente. 25

José da Cruz Filho (1894-1974) é natural de Canindé, estudou no Colégio Santo Antônio dos Padres

Capuchinhos de Canindé onde depois se tornou professor. Com grande inclinação para as letras, destacou-se

como poeta e como jornalista. Fundou, o jornal O Canindé, o primeiro jornal da cidade. A Biblioteca Pública

Municipal recebe o seu nome. 26

Como tradução, temos: mas é permitido, mesmo ao mais fraco, possuir uma boa intenção e declará-la..

Partindo de uma experiência de base franciscana que tem como marca a humildade e o desapego material, no

entanto esta experiência deveria ser apresentada na forma de registro histórico.

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Acreditamos que a indicação de uma passagem do pensamento do autor de “Os

miseráveis” e de outras obras de denúncia social, nos indiquem, de algum modo, como está

permeada a compreensão de História do autor. Uma tradução aproximada do mesmo nos

indica que: “mas é permitido, mesmo ao mais fraco, possuir uma boa intenção e declará-la...”.

Seguimos com as palavras do autor a apresentar a obra, em seu quadro introdutório:

Publicando o presente trabalho, temos em vista oferecer ao público um esboço

histórico do celebre Santuário de São Francisco de Canindé, para que fique mais ou

menos satisfeita a curiosidade, aliás justificada, de muitas pessoas, especialmente

romeiros, que desejam a origem desta Igreja e de sua grande celebridade.

Procuramos escrupulosamente escrevê-lo com toda a imparcialidade, escudado em

fatos autênticos, colhendo em fontes insuspeitas os dados para sua composição.

Além dos livros da paróquia, que consultamos, colhemos grande soma de

esclarecimentos sobre o assunto em manuscritos e notas avulsas que nos forneceram

obsequiosamente, os distintos cavalheiros: Major João Facundo Vieira da Costa,

tabelião desta comarca, e o Reverendo Padre Luiz de Souza Leitão, atualmente

vigário no Estado do Pará.

Este pequeno escorço histórico, pois, não é mais do que uma organização feita por

nós, cujo original é devido ao espírito investigador dos cavalheiros acima

mencionados.

Quanto aos fatos extraordinários que se relacionam com a Igreja, ouvimos algumas

pessoas de inteiro crédito e a tradição forneceu-nos outros, e assim transmitimo-los

ao leitor com toda simplicidade, omitindo qualquer opinião pessoal.

Igualmente utilizamos-nos de diversas informações a respeito da Igreja, encontradas

em “A Capela Milagrosa, de Álvaro Martins, à qual não nos cingimos inteiramente

por encontrar nela diversos erros históricos, os quais refutamos com argumentos

inconcussos nestas páginas ligeiras.

Procuramos, em todo este trabalho, empregar linguagem chã, simples e sem

artificios, por jugarmo-la conveniente à índole desta obra, que se destina ao povo

em geral.

Portanto, damos-nos por bem pagos se com este pequeno serviço que prestamos à

terra que nos serviu de berço, contribuirmos de alguma forma para o

desenvolvimento do fervor religioso e da grande confiança no grande e humilde

Patriarca de Assis.(1907, p,01-02).

Augusto Rocha demarca, nas primeiras linhas do texto, a força que o move no

sentido de materialização do trabalho. Como natural da cidade, cresceu ouvindo as diversas

narrativas que explicavam as origens da devoção a São Francisco e a consequente formação

da cidade. Ele afirma-se despretensioso, destacando que o real sentido é fazer com que o

povo, em especial os romeiros que buscavam conhecer a História da Igreja em Canindé,

tivessem meios para isso.

As duas obras em destaque colocam-se de modo próximo no tempo e no espaço.

Ambas foram produzidas em intervalo inferior a uma década, o que nos leva a indicar

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relações de proximidade entre as duas produções. Os autores afirmam que foram convidados a

realizar os trabalhos, sendo este ligado diretamente a um interesse mais amplo que é a

presença da igreja, como anunciamos anteriormente. O título das obras: “A Capela

Milagrosa” e “Santuário de Canindé” deixam claro que o fio condutor da narrativa é o

sentimento religioso, sob o qual se projetou a cidade.

Além dos títulos, as notas de agradecimento, as pessoas escutadas para a

composição dessas, as fontes, todos estão em sintonia com o ideário advindo dos Metódicos

do século XIX, em nossa tradição denominados como Positivistas, que atribuem valor

inquestionável ao documento escrito, em especial aos documentos oficiais, oriundos da Igreja

e do Estado.

Os autores acreditavam, portanto, que estariam fixando as bases sobre o pensar a

História de Canindé, sob os moldes em que a escrita da História estava influenciada naquele

momento. Outro elemento comum é afirmado pelos autores, de que os trabalhos têm como

finalidade o alcance do grande público. Isso teria sido o grande objetivo pelo qual os trabalhos

foram realizados; embora estivéssemos em um momento em que o acesso à leitura não era

realidade para uma grande parte da população brasileira, em especial para os romeiros de São

Francisco. Isso só reforça o fato de que se coloca como marca real uma necessidade percebida

pela igreja, da necessidade de constituir narrativas sobre essa história oficial da presença desta

instituição no sertão do Ceará, que àquele momento se colocava como espaço promissor de

grande devoção.

A cidade que tem como seu mito fundador27

a devoção a São Francisco se desenvolve

como um espaço da memória cristã. E nessa circunscrição de experiências vividas, onde

milhares de protagonistas anônimos visitam a cidade durante o ano, percebemos um

sentimento de desejo em recolher e narrar os eventos que marcam a vida da cidade, que

ultrapassam os elementos da vida religiosa e política.

Se a produção dos primeiros trabalhos se deu de fora para dentro, se os autores

receberam a incumbência de fazer esses registros, o quadro atual é diferente. Trazemos à luz

deste estudo a produção de três pessoas, denominadas memorialistas, os quais tem por

interesse pessoal o intuito de apresentar às novas gerações os itinerários que compõem a

27

A ideia de Mito, aqui destacada, se coloca em sentido antropológico, ou seja, que dá sentido a existência. Não

há como compreender as origens da cidade, descolada do sentido religioso.

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História do lugar. A seguir conheceremos cada um deles, bem como os seus legados como

escritores da história local 28

.

3.2 NERI FEITOSA: MEMOR ERO TUI

Neri Feitosa - assim foi batizado quando nasceu em 04 de abril de 1926, lá na

cidade de Arneiroz, sertão dos Inhamuns. Oriundo de uma família cujo sobrenome se destaca

nos “eventos” que marcam a História do Ceará colonial, ainda criança, viu seu pai escrever

em folhas de papel almaço um tratado genealógico da Família Feitosa. Certamente, sua

origem familiar num universo onde se tinha o domínio da leitura e da escrita o influenciará no

gosto pela arte de escrever.

Assim, saindo de sua terra natal, o jovem Neri, que depois seria o Pe. Neri

Feitosa, hoje com quase 92 anos, fez seus estudos iniciais no Crato, ingressando no Seminário

da Prainha, em Fortaleza, onde cursou Filosofia e Teologia. Tempos depois, atuou como

professor de grego e latim no Seminário do Crato.

Figura 1 - Pe. Neri Feitosa, celebrando Missa em sua residência

Fonte: Elaborado pelo autor

28

Na apresentação dos traços biográficos dos memorialistas destacados, adotamos como marca de suas histórias

de vida um caráter de narrativa oral. Estas informações foram coletadas durante o exame de seus escritos.

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A vida no Cariri o influenciou profundamente. Ali chegando, se pôs a buscar

compreender o real sentido da obra do Padre Cícero Romão Batista, desenvolvida em décadas

naquela região. Essa admiração fez com que ele, realizasse estudos sobre a obra do Fundador

de Juazeiro do Norte, chegando ao tempo presente. Ele empreendeu esforços, portanto, para

difundir os avanços da ação pastoral desenvolvida por Cícero, que o aproxima das ações hoje

desenvolvidas pela Papa Francisco.

Enviou ao Pontífice estudo por ele realizado, que, assim espera auxiliar no

processo e ver Pe. Cícero reabilitado e santo no panteão da igreja oficial. O grande elemento

de destaque nesse estudo que aproxima as duas pastorais se coloca no sentido da indicação de

que Cícero, diferentemente de outros religiosos de seu tempo, cujas preocupações eram os

elementos da assistência espiritual, acreditav, que tudo que dizia respeito ao povo, era de sua

pastoral. Assim, as desigualdades sociais, que tanto marcavam aquela região, deveriam ser

combatidas. Isso se nota no incentivo à produção coletiva, como também dos vários ofícios

desenvolvidos pelos moradores da cidade29

.

Assim, ele, percebendo a situação do Cariri de seu tempo, onde dominava uma

“servidão de pé de engenho”, atuou, de modo a realizar a produção de alimentos em bases

comunitárias, o incentivo ao desenvolvimento de ofícios, sem esquecer da liderança política,

que o fez promover o pacto dos coronéis, elemento que buscava reduzir os níveis de violência,

tão comum a vida da região30

.

A vivência no Cariri, certamente, influenciou diretamente o seu modo de

percepção sobre o sentido da história humana. Seu início de vida sacerdotal se deu numa

comunidade chamada Jamacaru, pertencente a Missão Velha. Ali esteve por mais de uma

década e lá empreendeu um grande feito: Criou um museu de fósseis, que tempos depois

passou a compor o acervo do Museu Paleontológico da Universidade Regional do Cariri.

29

Cícero Romão Batista, o Pe. Cícero de Juazeiro, foi aluno da primeira turma do Seminário Provincial de

Fortaleza, criado à luz dos pressupostos lazaristas franceses. Faziam parte dessa turma, nomes como: Capistrano

de Abreu, José Marrocos e Paula Ney (todos expulsos). O jovem Cícero, que ao torna-se padre e depois com o

impedimento se lançou na política era de fato um homem à frente de seu tempo. Ainda no começo do século XX,

ao se tornar prefeito, elaborou um Plano Diretor para a Cidade de Juazeiro do Norte, num momento em que

poucas cidades tinham essa preocupação. Um passeio pela cidade ilustra como nela, se colocam artífices de

ofícios, que trabalham com materiais de várias naturezas e a origem de tudo remonta às percepções de Pe.

Cícero. 30

Estas reflexões estão no texto: FEITOSA, Neri. “Reabilitação do Padre Cícero”. Estudo dos problemas que

bloqueiam o início do processo. Canindé: IMC, 2017.

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Assim como muitos dos religiosos oriundos da Diocese do Crato31

, ele saiu de lá

e desenvolveu atividades em Madalena e Fortaleza chegando a Canindé. A formação dos

padres diocesanos tende a fazer com que eles sejam formados a desenvolver um caráter de

intervenção junto à comunidade, que as ações sejam realizadas para além do cuidado com a

vida espiritual.

No caso de Pe. Neri, sua formação no Cariri o aproximou do legado de Pe. Cícero,

como também de Ibiapina. Em sua residência, em Canindé, logo na entrada, há uma imagem

de Ibiapina, com a legenda Mestre e Doutor da Igreja. Ibiapina foi uma das inteligências de

maior consciência social que o Brasil já teve. Os trabalhos deles influenciaram muitos outros

cearenses e a magnitude de sua obra chama a atenção de um outro consagrado mestre do

pensamento brasileiro. Na introdução de “Sobrados Mucambos”, Gilberto Freyre dedica

várias páginas sobre o alcance e a relevância do Religioso.

Ao observar os vários textos escritos por Pe. Neri, vemos um cuidado de traduzir

os ensinamentos religiosos para o homem comum, para as populações que, regra geral não

estão assistidas pelo acesso a bens culturais como a leitura. Assim, escreveu livros voltados

para a catequese e evangelização, tendo alguns deles sido publicados por editoras

especializadas, como a Editora Vozes, texto de reflexão teológica em níveis mais elevados,

voltados a um público de especialistas.

Numa passagem pela produção bibliográfica do Religioso32

, encontramos, títulos

voltados aos leigos, dentre eles: “Aos jovens rurais” (1977), “Trabalho em Paróquia Rural”

(1978), “Formação para o homem do campo” (1980) “Manual de novenas” (1983), “A

sabedoria do povo” (1984), “Preparação para a primeira comunhão” (1984), “Moral" “Deus”

(1984), “Vida” (1984), “Mês de maio” (1987).

Dentre as publicações especializadas, voltadas para um público específico,

destaca-se: “Pastoral” (1977), “Espiritualidade para vigários” (1981), “Vocações e grandes

vocacionados” (1983), “Testemunho e contratestemunho” (1984), “Jovem”, “Você também

pode vencer” (2009), “Resenha Marial” (2009), “O admirável Jesus dos Evangelhos” (2010),

“Visão cristã da vida e da morte” (2011).

31

Num texto escrito em 2013, Pe. Neri denuncia o caso de dezenas de religiosos que por motivos diversos

deixaram as atividades sacerdotais na Diocese do Crato, onde ele está incluído. In: “Crato, a diocese que mais

“exporta” Padres”. Notas para a História da Igreja que está em Crato. Canindé: 2013. 32

Num balanço feito por Padre Neri, em 2011, tinha produzido um total de 65 títulos, hoje acrescidos por outros.

Infelizmente não dispõe deles, visto que, após as impressões ele os doa. É densamente significativa sua atuação

como escritor.

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Para esse homem com origens formativas no Cariri, porém, o destino o levaria a

Canindé33

, um lugar gestado sobre uma polissemia de memórias, no qual a igreja

desenvolvera uma relação marcante com a formação e o desenvolvimento do lugar. Seu gosto

por escrever memórias iniciadas nas terras de Pe. Cícero terá lugar nos domínios de São

Francisco onde estas auferiram relevo e passaram a compor um itinerário narrativo que

servirão de base para o novo quadro de registros do tempo presente sobre a história da cidade.

Citamos no decorrer do texto que as obras mais conhecidas do autor são: “Origens

de Canindé”, “Escolar e turístico” e “Igreja de Canindé”, no entanto, em sua estada na cidade,

o Religioso, que tem enorme apreço pela escrita da História, foi gradativamente percebendo

espaços na história do lugar que não haviam recebido a devida atenção. Assim, encontramos

uma dezena de pequenos textos, que ele as denomina por monografias ou plaquetas, que se

colocam a lançar olhares sobre a cidade em múltiplas direções.

O texto “Origens de Canindé”- escolar e turístico, é iniciado com a indicação de

motivos para o qual fora realizado. Assim enumera o autor:

Estudantes, romeiros e turistas procuram muito sobre o nascedouro de Canindé.

Canindé tinha um filho ilustre, Francisco Magalhães Karam, que desde cedo apostou

em “arquivar” toda notícia sobre sua terra.

Para sua casa de comércio e estúdio fotográfico acorriam os estudantes e os

pesquisadores em busca de informações. E ele os atendia a todos com desvelo e

acolhimento, sem enfado.

Karam faleceu em 2001 e fez uma falta louca; toda a população pesquisadora ficou

sem referencial ou sem ter para quem apelar. O Instituto Memória de Canindé, com

este livro, quer preencher a lacuna criada com a partida de Chico Karam”.

Faça bom proveito. (2002,p.02)

Percebemos, assim que a cidade vive e revive em seu cotidiano por meio desse

olhar sobre sua história. Enquanto para muitos lugares o pensar sobre os eventos que marcam

a trajetória dos lugares tem momentos datados, como o Dia do Município e os desfiles do sete

de Setembro, Canindé, pelo fato de receber cotidianamente pessoas de outros espaços, emana

essa necessidade de narrativas sobre suas “histórias”.

33

Pe. Neri chegou a Canindé em 1982. Neste tempo morou na zona urbana e rural do Município. Chegou a se

ausentar por curtos intervalos da cidade. Em 2017, passou uma temporada de 04 meses na região do Cariri.

Desde dezembro de 2017, está de volta a Canindé, residindo a rua Aldenise Cordeiro, 915, bairro Bela Vista.

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67

Em 2016, Pe. Neri fez uma compilação de todos os textos e enviou cópias para as

várias bibliotecas da cidade34

. Este é o quadro geral dos textos produzidos por ele, divididos

em dois volumes.

Compõem o volume 01.

1. “A Igreja de Canindé” – 200 anos (1996)

2. “De José Pereira do Ó a Joana do Ó” (2009)

3. “Origens de Canindé” (2002)

4. “Achegas ao Livro Origens do Canindé” –escolar e turístico (2010)

5. “Centenário da Presença Franciscana em Canindé” (1998)

6. “Japuara e a tragédia de 1971”(1996)

7. “Canindé” – Data e autoria dos fatos (2008)

8. “Origens da Paróquia de Canindé” (2009)

9. Elucidações sobre os nossos primórdios (Canindé) (2009)

10. “Topônimos de Canindé e outras Revelações” (2009)

11. “A Missão Muxió dos Índios Canindé” (2012)

12. “Benemêrencias do Capitão-mor Antônio José Moreira Gomes” (2012)

Compõem o volume 02.

1. “O Beato Amorim” (2012)

2. “Documentos Históricos Inéditos” (2012)

3. “Para a História de Canindé” (2012)

4. “Biografia do Sargento-mor Francisco Xavier de Medeiros” (2013)

5. “Biografia do Doutor Francisco Freire Alemão Cisneiros” (2012)

6. “História de Madalena” (2005)

7. “Os Moços do Jaguaribe e a Capela de São Francisco das Chagas” (2012)

8. “História do povoado de Olho d‟água do Bizerril” (2004)

9. “Capela de Nossa Senhora de Nazaré do São Gonçalo” (2005)

10. “Acabou-se a Paróquia de São Francisco das Chagas de Canindé” (2014)

11. “Tragédia em Canindé” (2014)

12. “O Barão de Canindé” (2014)

34

Canindé possui uma Biblioteca Pública Municipal, batizada com o nome de CRUZ FILHO, em alusão ao

poeta natural da cidade. No quadro destes equipamentos, temos, no miolo urbano, as Bibliotecas das Escolas

Estaduais, Frei Policarpo, Frei Orlando e Paulo Sarasate. Todas estas são públicas. Existem 09 escolas privadas,

onde, o acervo, tem o acesso reduzido. Há uma grande Biblioteca na cidade que está sob o domínio dos frades.

Esta não é acessível.

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13. “O Desmembramento da Paróquia de Canindé” (2014)

14. “Instituto Memórias de Canindé” (2014)

O quadro ora exposto nos aponta a dimensão do trabalho realizado pelo Religioso,

objetivando produzir registros sobre distintos aspectos da História da cidade. Como indicam

os títulos, vários destes se colocam a pensar as relações desenvolvidas pela presença da igreja.

Como destacamos em outras passagens do texto, a cidade suscita esse olhar, permeado por

essa atmosfera do imaginário religioso.

Assim na Monografia nº 05, denominada: “Origens de Canindé” – escolar e

turístico- Pe. Neri referencia o que ele chama de sinais da presença de São Francisco, na

construção das imagens da cidade.

“Logo ao ser construída a capela de Medeiros, São Francisco começou a marcar ali

um lugar predileto para sua proteção.

1º sinal – o pedreiro Antônio Maciel escorregou no alto dos andaimes e caiu

desaprumado rumo abaixo. Francisco Xavier de Medeiros viu o acidente e valeu-se

depressa de São Francisco.

Contra todas as esperanças, Maciel enganchou a roupa numa ponta de andaime, à

altura da janela dos sinos, e ficou pendurado. Os companheiros o retiraram com

ajuda de uma corda, são e salvo.

2º sinal - No ponto de subir as tesouras para o teto, uma deslizou sobre Francisco

Xavier de Medeiros, atigindo-lhe a coxa e machucando. Foi levado para casa nos

braços e no dia seguinte estava de todo recuperado. Fez surpesa aos trabalhadores,

quando apareceu na capela para os trabalhos de costume.

Bastou isso para o povo reconhecer a presença benéfica de São Francisco naquela

capela dele. A resposta do povo foi dupla: 1ª- começou a recorrer a São Francisco,

com extraordinária confiança e as graças alcançadas aumentavam a presença na

capela, com ex-votos; 2ª- cooperou com a manutenção da capela, ofertando um

substancioso patrimônio em terras-fazendas e gado.

Com o apelo a São Francisco, multiplicaram-se os casos inegavelmente miraculoso

até o dia de hoje. Como o nordestino é migrante, levou a relação dos prodígios de

São Francisco em Canindé aos quadros pontos cardeais da pátria.

Com isto a capela de Canindé extravasou sua influência para muito além da ribeira,

para além do Estado e para além da pátria. (2002, p.34)

Saindo do elemento caracterizado pela igreja, temos no conjunto da obra, um

olhar voltado para os elementos sociais que marcam as contradições de nossa formação social,

assinalada pelas desigualdades. Tomamos como exemplo, o texto intitulado “A Japuara e a

Tragédia de 1971”. Certamente, as novas gerações não conhecem o evento que marcou a

história do sertão do Ceará. Em linhas gerações, o conflito pela posse da terra, que envolveu

um comerciante local e os ocupantes da fazenda Japuara, configurou uma das muitas

narrativas sobre as questões do acesso à terra no Brasil.

O conflito que deixou vítimas fatais e teve repercussão até na imprensa

internacional chegou a ser objeto de estudos pela tradição universitária, de documentário e a

compor o imaginário do ideário pela reforma agrária no Brasil. Esta experiência, ocorrida

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durante os governos militares, marcou o início do acesso à terra, fruto de uma ação de reforma

agrária. Essa experiência, ocorrida num passado recente transformou a cidade de Canindé na

área detentora do maior número de assentamentos rurais do País.

O espetáculo foi horripilante: catinga de sangue e catinga de pólvora, ânimos

excitados, foices ensanguentadas, pavor, crueldade, viúvas, órfãos, hospitais, feridas

e indignações: guerra mesmo, com todo seu destroço. Imagine você nove corpos

humanos ensanguentados, estendidos desajeitados no chão, cabeça partida, moleira

esfolada, braços cortados, corpos perfurados.

A busca na justiça de um lado e de outro cegou os dois lados e o pior aconteceu a

todos. (1996, p. 09)

Assim, Pe. Neri, com sua sensibilidade para as questões que marcam a vida da

cidade, foi paulatinamente fazendo dos elementos, não só do passado, como também do

cotidiano, as histórias do presente. No volume dois, encontra-se um texto com o título “A

tragédia em Canindé”, que aborda um grave acidente de ônibus ocorrido em18 de maio de

2014, no KM 304 da Rodovia BR 020 em Canindé. O ônibus que transitava no sentido

Madalena - Fortaleza perdeu o controle e o acidente resultou em 41 vítimas, das quais 18

vieram a óbito e 23 ficaram feridas.

O Memorialista após fazer um balanço das vítimas da tragédia e compor um

quadro geral sobre a repercussão deste para a cidade, que foi toda mobilizada, destaca a

solidariedade de todos os que se colocam em ajuda as vítimas e aos familiares e faz duras

críticas àqueles que ele nomeia como “bandoleiros”, que passaram a se aproveitar da situação,

saqueando os pertences das vítimas, e a multidão que se projetou para lá no sentido de

produzir imagens da tragédia sem nenhum respeito às vítimas nem aos familiares.

No quadro seguinte ele assinala que passou o dia e a noite a meditar sobre a

tragédia. Percebeu que um fato como aquele tem implicações teológicas e evangélicas. Nesse

momento, aparece a marca da formação religiosa queà a luz dos preceitos teológicos, busca

explicação para os eventos que compõem a história humana. Compara o ocorrido com outros

análogos na mesma data e visualiza em passagens dos evangelhos o número de vítimas fatais

envolvidas no ocorrido.

Nossa atenção se destaca ao sentido de compreender o modo como este homem,

que advém de uma formação clássica tradicional, gestada à luz de uma das instituições de

maior prestigio social, dedica o seu tempo a compor análises sobre os momentos da vida da

cidade. Talvez, para muitos, tais atividades não signifiquem muito, visto que o tempo presente

permitiu que uma legião de pessoas escreva e emita juízos sobre os aspectos que permeiam a

vida em sociedade.

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Embora o Religioso não tenha desenvolvido um trabalho de síntese, que buscasse

uma visão desenvolvida sob os aspectos cronológicos ou temáticos, percebemos, no cômputo

geral da obra, algumas lacunas importantes. Sendo Canindé um espaço marcado pela devoção

católica, verificamos a ausência do reconhecimento de outras manifestações religiosas.

Em Canindé há várias igrejas evangélicas, como casas de culto de religiões de

matriz africana. Nenhum dos textos se reporta aos negros na região, o que não acontece com

os nativos. A matriz tupi, como definiu Darci Ribeiro (1997), está marcada desde a toponímia

do lugar; O quadro das transformações políticas, não se encontra apresentado, as marcas de

sociabilidade são outro elemento que fogem ao quadro geral das análises. Essas questões em

nada reduzem o papel social e a importância dos trabalhos deixados pelo Memorialista à

comunidade.

Pelo trabalho prestado à sociedade, já recebeu homenagens da Câmara dos

Vereadores de Canindé, que ele se recusou a receber 35

. No quadro das distinções pessoais, no

ano de 2016, durante a comemoração do Dia Mundial do Turismo, o curso Gestão em

Turismo do IFCE lhe conferiu uma comenda denominada: “História Viva de Canindé”. Esta

ele recebeu e proferiu um caloroso discurso à comunidade acadêmica da instituição. Numa

das passagens de seu discurso, afirmou que, ao chegar a Canindé, encontrou coisas de “dá

coceiras em quem gosta de memória”.

Dessa inquietação e desejo em recolher e divulgar estas memórias, Pe. Neri

fundou, na cidade, uma agremiação denominada por Instituto Memória de Canindé, onde se

juntou a outros interessados pela produção das memórias sobre o lugar. Além de ser o mais

velho dos memorialistas que compõem este estudo, a sua atuação é expressa como

instrumento que catalisa a ação dos outros dois investigados.

Repousa no texto: “Instituto Memória de Canindé. Memor ero tui – Sl 41,7” (Eu

me lembro), onde ele faz um balanço de todas as publicações do Instituto até o momento, que

vislumbramos as reais dimensões do que ele compreende sobre a construção da história. O

texto está dividido em parte: 1. Como nascem os institutos; 02. Cultura; 3. Memória; 4.

História; 5. O Instituto Memória de Canindé.

A parte mais longa do texto é o ponto 02. Ao falar de cultura, o autor faz um

grande percurso e se detém por um bom tempo a falar da língua com toda a sua

complexidade. Acreditamos que isso tem razão, de ser, pois é por intermédio da língua,

35

Numa das muitas conversas que tivemos, Pe. Neri se afirma signatário do Pacto das Catacumbas, documento

da Igreja assinado por religiosos que participaram do Concílio Vaticano II. Este documento que reitera a ação de

uma igreja servidora e pobre, traz em um de seus artigos a negação a toda e qualquer modalidade de distinção,

honrarias e congêneres.

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entendida como manifestação cultural, que é possível expressar todo o arcabouço de

experiências humanas, seguindo a refletir sua compreensão sobre o conceito de memória.

Um integrante do Memória de Canindé, convidado a fazer “memória”, deve ter bem

clara a ideia de “memória”, no sentido cultural. Qual a diferença para você entre

memória e história?

(....) A recomposição do passado, sobre a forma de memória histórica, resulta de um

complexo processo de negociação. Segundo Halbwachs (1990, p.209), a noção de

“memória histórica” é ambígua, pois memória e história se opõem como

modalidades distintas de interpretação do passado.

O sociólogo adverte que não há solução de continuidade entre a memória e a

história, pois ao se aproximar do passado, a história expõe, na verdade, a distância

entre sua interpretação e a dos viventes dos fatos narrados.

Memória e História se conectam com o passado por vias distintas: a primeira exige o

aval da vivência para confirmar a fidelidade de seu relato, enquanto História requer

por meio da crítica dos rastros e vestígios, o necessário controle metódico para aferir

a verossimilhança de sua narrativa. (FEITOSA, 2014, p.19)

Ao buscar compreender as relações sobre História e memória Pe. Neri indica seu

itinerário perceptivo. Traz como referência o clássico “A memória coletiva”, do francês

Maurice Halbwachs, que se colocou como referência obrigatória nos estudos da memória no

País. O texto dispensa apresentações. O que nos chama atenção é o cuidado e a percepção em

definir um terreno, um espaço social de onde se fala. Isso ficará evidente no ponto 04, quando

ele se reporta à História.

Introduzindo a ceção, está categoricamente a visão do Estudioso da História, o

memorialista ou historiador diletante, Pe. Neri, sobre as ações por ele desenvolvidas no

âmbito da escrita da História.

Frequentemente convida-me para reunião, chamando-me “historiador”. É o

suficiente para eu não comparecer, porque é só o que eu não sou, sem a menor

modéstia. No Memória de Canindé um só é formado em História e professor de

História: Francisco Cristiano. Eu sou formado em Filosofia e Teologia; estudo com

gosto as origens de Canindé, por força da fundação do Memória, mas sou garraio.

Em Canindé há cronistas e memorialistas; ninguém é historiador (grifamos),

pelo que estudei e coloco aqui, a fim de que ninguém se arvore um título que não

possui; você pode ser um “amador” e, por isso, pode ser perigoso, por pensar que é

autoridade no assunto. (2014, p.20).

Acreditamos que esse momento de reflexão, onde os autores desenvolvem uma

escrita de si e estabelecem seus olhares sobre as produções realizadas com temas históricos da

cidade, os situam na condição de memorialistas, um conceito aparentemente simples, mas que

carrega uma série de implicações, sendo estas tratadas na primeira parte deste estudo. Neste

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sentido, Pe. Neri estabelece, rigorosa e fundamentadamente a sua condição de memorialista,

afastando a asserção que o denomina de historiador.

Notória é a atitute ética e cuidadosa do Padre-filósofo, ao definir as fronteiras

entre o campo acadêmico e a escrita diletante dos homens/mulheres que se dedicam à

memória, que desprendem grande parte de suas vidas em busca de vestígios, fontes e relatos

que desvelam histórias sobre a cidade onde vivem, convivem e produzem história

cotidianamente. São eles e elas verdadeiros arautos do lugar, da gleba. São, portanto,

verdadeiros guardiões da História.

Ao continuar sobre o sentido da História Pe. Neri tece analise sobre a maneira

como a escrita da História foi pensada no Ceará, destacando a atuação do Instituto Histórico,

Geográfico e Antropológico. Parte então para um plano mais geral, à luz das tradições

vigentes na Historiografia, chegando a citar as contribuições da História Cultural e a indicar o

pensamento de Peter Burke como de referência nessa área.

Ao tratarmos das contribuições de Padre Neri, fizemos uso de um dístico retirado

dos Salmos, que o autor atribui a esse momento de reflexões. Acreditamos que sua formação

pessoal o aproxima do modelo de pensar a História do regime clássico de historicidade. Ele

imprimiu esforços no sentido de perceber a história como um elemento dinâmico, que está o

tempo inteiro a ser influenciado por outras concepções, marca essa trazida pela Modernidade,

onde a História aufere estatuto de ciência.

Assim, nos domínios do IMC, foi gestada uma quantidade de produções, por

vários autores. Dentre os nomes que participaram da agremiação se encontram, Augusto

César Magalhães Pinto e Júlio Cezar Marques Ferreira, situados no contexto das novas

gerações de apaixonados pela produção de memórias de Canindé. Diferente do primeiro, esses

dois guardam consigo o fato de serem oriundos do lugar.

3.3 AUGUSTO CÉSA MAGALHÃES PINTO – HISTORIAE MAGISTRA VITAE

Nascido em Canindé, a 25 de agosto de 1959, César Magalhães, como é

conhecido por toda a comunidade, fez estudos iniciais em Canindé. Para cursar o antigo

segundo grau, foi para Fortaleza, sendo aluno do curso de Eletrotécnica da antiga Escola

Técnica Federal do Ceará, atual IFCE campus Fortaleza. Como aluno da instituição, além das

atividades escolares, foi bolsista do almoxarifado. Assim como Machado de Assis, que ao

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trabalhar na Imprensa Nacional, passava parte de seu tempo a estudar, Augusto aproveitava o

tempo livre em meio ao trabalho para se dedicar aos estudos.

Encerrado o curso na antiga ETFCE, ele ingressou, por concurso no Banco do

Brasil. Para um jovem advindo do interior, alcançar uma carreira numa instituição renomeada

como o Banco do Brasil, se expressava quase como um privilégio. E assim seguiu carreira na

instituição, onde trabalhou por um período de 25 anos. No BB, chegou a realizar trabalhos em

outras unidades da Federação, sendo adido, na cidade de Ipojuca, Pernambuco.

De volta ao Ceará, ainda como empregado público do Banco, retornou à sua terra

natal, onde, além das atividades na instituição financeira, atuou como professor de matemática

no Centro Educacional São Francisco, vinculado a Campanha Nacional de Escolas da

Comunidade (CNEC).

Figura 2 - Augusto César no interior de seu comércio, Loja Chapéu de Couro, em

Canindé.

Fonte: Elaborado pelo autor

O tempo passou em meio às mudanças ocorridas no País e a precarização da

profissão de bancário. Ele deixou a carreira em 1995. Pouco tempo depois, ingressou,

novamente por meio de concurso, na carreira de Oficial de Justiça, do Tribunal de Justiça do

Ceará, sendo designado como oficial na comarca de Caridade, cidade vizinha a Canindé. De

volta a sua terra e em outra atividade, tempos depois, retomou os estudos e cursou Pedagogia

e uma Pós-graduação em Administração Escolar.

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A saída do Banco impôs-lhe novos desafios e, em meio à retomada da carreira no

serviço público, ele resolveu empreender na área do comércio. Ocupou um dos pontos

comerciais que recebera de herança do pai, abriu uma loja de ferragens, que está sediada na

rua principal da cidade, com acesso ao mercado antigo de Canindé, criado em 1948. E, na loja

que o mesmo batizou com o nome de fantasia de “Chapéu de Couro”, quando está livre de

suas atividades institucionais, fica sentado numa cadeira estilo presidente, apoiado por um

banco alto, que serve de apoio, passa as tardes a dedicar-se a leituras dos mais variados

gêneros, como também de observar impressões que costuma lhe render grandes narrativas,

divulgadas ao grande público nas mídias sociais, em especial, da rede social Facebook.

Augusto César tem uma vida marcada pela inserção em vários espaços sociais. É

membro da Maçonaria e dirige as atividades na Fraternidade Canindeense, loja existente há

muito tempo na cidade. De sua ampla participação social, é membro da Academia de Letras

Maçônicas, do Instituto Memória e da recém-criada ACLAME (Academia Canindeense de

Letras, Artes e Memória).

A infância vivida e sentida na cidade suscitou nele um forte sentimento de

identificação com o lugar. Isso está assinalado em cada passagem de seus textos. Ainda na

infância, conheceu um personagem ilustre do lugar. Era Francisco Magalhães Karam, que

todos conheciam como Chico Karam. Pelo quadro composto nas descrições de vários

conhecedores da história do lugar, Karam era um homem em sintonia com os acontecimentos

históricos que permeavam o seu tempo.

Embora não tenha conhecido a afirmação de Le Goff, para quem “[...] a fotografia

revolucionou a memória”, compôs um quadro amplo de registros fotográficos sobre os

diversos momentos da cidade, onde se percebem as transformações espaciais e o quadro de

eventos políticos e sociais. Assim, o jovem Augusto, que, como quase todas as crianças da

cidade, viveu uma vida próxima aos eventos da igreja, até a casa ficava a poucos metros da

Basílica. Ainda na infância, fez parte de um grupo de escoteiros desenvolvidos por um dos

religiosos que atuou na cidade. Conforme destacamos anteriormente a ação da igreja não era

situada apenas no quadro da vida religiosa, mas também buscava estar em sintonia com o

mundo cultural das pessoas.

A cidade de sua infância dispunha de equipamentos culturais, como cinema, mas

um deles sempre recebeu de Augusto especial atenção - a Biblioteca Pública Cruz Filho,

localizada de frente para a Basílica. Ali o menino que está inserido na dinâmica do sertão

alçou seus primeiros voos rumo a mundos pouco conhecidos, os quais demarcaram suas

percepções sobre o sentido de se pensar a História.

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Além da fotografia e da Literatura, ele se exprime como um apaixonado por

música. E esse conjunto de paixões do universo cultural foi aos poucos, perfazendo,

moldando o seu olhar sobre o lugar, e, num dado momento se percebeu como um apaixonado

por História. Os itinerários iniciados com as diferentes linguagens o levaram para um lugar

comum de onde todas as outras se alimentam: A História.

Assim, por um tempo vasto Augusto se dedicou a colecionar fotografias,

documentos antigos, objetos, elementos que constituem os vestígios deixados pelos humanos

em suas trajetórias. Num dado momento histórico, ao realizar seus estudos de pós-graduação,

já maduro, ele se lançou nos domínios da escrita da História. Seu esforço pessoal rendeu duas

obras que ele intitulou de: “Viagem pela História de Canindé: Ensaio cronológico e

icnográfico dos primórdios aos dias atuais” e “Histórias de Nossa Terra e de Nossa Gente-

Crônicas ilustradas”.

A apresentação do livro Viagens pela História de Canindé é escrita pelo fundador

do Instituto Memória de Canindé, Pe. Neri Feitosa. Ele inicia o texto com a pergunta: “Uma

esperança?” Em seguida qualifica a obra como imortal, no curso do texto, destaca:

César não é apenas uma esperança para Canindé. Na carta aos Romanos (8,25), São

Paulo diz que a esperança tem por objeto o que não vemos e não possuímos ainda.

Ora, César já é uma realização nos caminhos da história.

.... Quando fundei o Instituto Memória de Canindé (1996) nem pensei em convidar o

César para integrante. Hoje está na primeira linha de batalhas do Instituto. Se ele é

uma esperança é no sentido de fazer seguidores.

O autor deste livro é dotado para fazer história. Faz história em cima dos

documentos. Tem força de vontade para pesquisar e não mede sacrifícios para

colimar seus intentos.

Quanto ao livro, é mesmo o que o título sugere: uma viagem pela história de

Canindé. Poder-se-ia pensar que o livro de Frei Venâncio era a última palavra.

César não escreveu a história partindo do ponto deixado por Frei Venâncio (1956),

mas foi aos primórdios.

A história é uma disciplina com múltiplas facetas, cada historiador explora um filão

diferente. (...)

Para mim, o Instituto Memória de Canindé, com este livro de César, atingiu o ideal a

que se propôs. Ele vai fazer parelha com outro livro importante: Cronologia

Canindeense, do ilustre professor Hélio Pinto Vieira.

Estamos todos de parabéns e dando magnífico exemplo a outras cidades. (2003,

p.13-14)

Conforme exprimimos no texto, a História de Canindé está eivada de várias ações

cujo objetivo é o ato de narrar a história do lugar. Desde o texto de Álvaro Martins e Augusto

Rocha, outras perspectivas já haviam se lançado com esse desejo. Ao apresentar as relações

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da cidade como um espaço da memória religiosa, indicamos as considerações de Gustavo

Barroso, ao afirmar que a devoção a São Francisco, durante a Guerra do Paraguai, havia se

tornado um indicativo do lugar de origem dos soldados feridos que pediam a ajuda do Santo

para o restabelecimento da saúde.

Nesse conjunto de escritas sobre a História de Canindé, se destacou a de Frei

Venâncio Willeke, datada do final dos anos 50 do século XX, que, pela disposição e formação

do autor, se configurou como uma síntese. Essa é a primeira grande contribuição dos estudos

de Augusto César, indicado na apresentação de Pe. Neri.

Escrever trabalhos de síntese não é de fato uma tarefa simples. Mestres da

Historiografia Brasileira, como Capistrano de Abreu já falavam sobre isso, quando se

expunham a pensar a História do Brasil. Assim na atual Canindé, Augusto César, após

período de recolha de documentos, informações e reflexões, oferece à comunidade

canindeense um estudo que expressa como empreendimento realizado por grandes nomes.

Um exame da obra nos indica que esta guarda relação direta com a formulação de textos

importantes escritos no Brasil desde a formação do IHGB, remontando nossas origens como

Estado Nacional. Sobre uma visão da historiografia, tais modelos de escrita são definidas sob

o título de corografias.

Assim a obra em foco está composta pelas seguintes seções: 1. A origem do

povoamento; 2. Chega a Canindé o Tenente-General Simão Barbosa Cordeiro; 3.

Administração do Patrimônio de São Francisco; 4. A família Barbosa Cordeiro; 5. Primórdios

da atuação da Câmara Municipal de Canindé; 6. Panorama de Canindé na passagem do

Sec.XIX p/o Séc.XX; 7. Chegam a Canindé os Missionários Capuchinhos; 8. A administração

dos Frades Franciscanos; 9. O Século XX- Efemérides.

Esta descrição corroboraa maneira já consagrada com as escritas da História em

base na tradição das corografias. Tomamos a seguir uma descrição ampla desse modelo de

pesquisa histórica. nesNes termos Marcos Lobato Martins, conceitua:

Eram monografias municipais e regionais, que misturavam história, tradição e

memória coletiva. Esses trabalhos tomavam como fundamento espaços bem

recortados politicamente que eram considerados em si mesmos. O relacionamento

do “nacional” Com o “regional” e o “local” era reduzido à descrição de impactos de

grandes acontecimentos da história do país nos espaços subnacionais. A narrativa, a

seleção e o encadeamento dos fatos, a referência recorrente a determinados tipos de

personagens, tudo isso objetivava mostrar que a região é resultado do protagonismo

de figuras extraordinárias. Muitas vezes, os corógrafos tenderam considerar as

regiões e seus povos como dotados de características definas perenes, configurando

um contexto histórico imutável. (2015, pp.140-141).

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Destacamos como exemplo deste tipo de escrita a Corografia Brasílica, do Pe.

Aires do Casal, primeiro texto publicado pela Imprensa Nacional, datado de 1817. As

corografias têm como marca elementos históricos e geográficos, como as “fontes primárias”.

No texto de Casal, a marca é a compilação da Carta de Pero Vaz de Caminha, considerado o

texto de nascimento do Brasil.

Ressaltamos que o modelo sob o qual o texto está produzido, não lhe retira

nenhum mérito; pelo contrário. Há riqueza de detalhes na obra, em especial dos

apêndices.Onde na primeira parte da seção, o autor explica: “Neste capítulo apresentaremos

uma sequência de documentos originais mencionados ao longo do presente trabalho”(2003, p.

267). Assim das páginas 267 a 292, temos a indicação de fontes primárias, como parte de uma

genealogia das primeiras famílias instaladas na região. Essa indicação se expressa como

fundamental em particular para que outras pessoas, pesquisadores, que ao ensejarem realizar

novos estudos, tenham um itinerário a seguir, partindo de fontes primárias.

Em seguida, das páginas 293 a 333, há uma outra seção, intitulada “Canindé cem

anos de fotografia: pessoas; eventos; paisagens”. Assim, como as fontes escritas se constituem

como um elemento de maior relevância para novas pesquisas, as imagens dispensam

apresentação quanto à relevância de seu potencial para outras visões sobre a história. Aqui se

juntam duas grandes paixões do autor, fotografia e História, que robustecem a sua produção e

reafirmam o subtítulo da obra: “Ensaio cronológico e iconográfico dos primórdios aos dias

atuais”.

Ao falar em dias atuais, continuamos a narração, com: “História de nossa terra e

de nossa gente: Crônicas ilustradas”. Ao todo, o autor, oferta ao leitor um conjunto de 28

textos, que trazem personagens, vivências, observações do cotidiano, como também a escrita

de si. Como não nos é possível fazer uma análise de cada uma, destacamos quatro delas que

tratam de abordagens distintas, destacando que estamos a tratar de crônicas. Sendo assim,

indicamos: “O jovem centenário”; “As proezas de Jota Batista”; “Grupo de Escoteiros

Marechal Rondon” e as “Águas do São Francisco”.

Escolhemos a primeira delas, “O jovem centenário”, cujo título o autor retira de

um seriado dos Estados Unidos exibido nos idos de 1970. Assim, o homem referido nesta

crônica é Luiz Gonzaga Pereira, assim descrito pelo autor, da seguinte maneira:

Seu Luiz Pereira é a pessoa centenária mais lúcida e de aparência mais jovial que já

conheci. Percorre diariamente a pé, vários quilômetros na Meca Franciscana,

conversando com seus inúmeros amigos. Esse hábito, aliado ao fato de nunca ter

fumado nem ingerido bebida alcoólica, ele diz ser o segredo da sua longevidade

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sadia. O mais impressionante é o fato de, na época de seu nascimento a expectativa

de vida ser inferior a 40 anos.

No nosso livro Viagem pela história de Canindé, temos um capítulo intitulado: O

Século XX - Efemérides, o qual traz registrados os acontecimentos mais marcantes

do século passado em nossa cidade. Muitas informações ali contidas nos foram

narradas ou chanceladas como autênticas, através da palavra sincera e lúcida e

inquestionável deste home que foi testemunha ocular dos fatos políticos e sociais

mais relevantes ocorridos em Canindé. Temos, em nossos arquivos em fitas VHS

horas de depoimentos abordando e detalhando os mais diversos aspectos vividos

e/ou testemunhado por este arquivo vivo da história de Canindé. (2009, p.96-97).

Vemos aqui importantes elementos que caracterizam o sentido da formação de nosso

Memorialista. A disposição em buscar informações sobre a cidade, sem que ele esteja

imbuído de aportes teóricos sobre os estudos da memória e da História oral, ele se coloca de

modo intenso a usar técnicas para qualificar seus escritos. Vemos aqui uma designação

cunhada ao tratar a cidade: “Meca Franciscana”. Poderia ser Roma Franciscana, visto que é

das peregrinações a Roma, para visitar o túmulo de São Pedro, que originou o termo romeiro.

Na tradição islâmica, há um pressuposto de que os crentes em Alá devem visitar pelo

menos uma vez na vida a cidade de Meca. Sendo assim, conhecendo bem o imaginário de

nossa formação social, acreditamos que o autor tenha cunhado a ideia, partindo da magnitude

do Santuário Franciscano em solo cearense. Desse modo, pessoas de várias crenças chegam a

visitar, mesmo que uma vez na vida, o espaço dedicado a São Francisco.

Prosseguimos com os relatos das proezas de Jota Batista, por ser um personagem

importante da cena cultural canindeense; o homem hoje de meia-idade que no passado

trabalhou na Capital como cobrador de ônibus e hoje é servidor público na Secretaria

Municipal de saúde de Canindé, é conhecido por uma multidão de pessoas, por ser o autor da

música mais tocada nos festejos de Canindé, que trazemos inclusive como epigrafe deste

trabalho.

Assim, esse homem de grande sensibilidade artística é autor de muitas obras dentre as

quais, a música “miscigenação”. Na crônica, Augusto César narra que um dia, o jovem

atuando como cobrador de ônibus na Capital, acreditava ter achado a quantia de cinco reais,

que em conjunto com os 5,00 que já possuía era possível ao final do expediente tomar quatro

cervejas. Desta feita, ao pagar a conta, percebeu que o dinheiro caído no interior do coletivo

era seu, e para ir embora do bar, teve que empenhar o crachá funcional.

Jota Batista é um dos grandes talentos das artes da cidade. Em Canindé é notória a

participação de pessoas que protagonizam manifestações artísticas. Assim, a cidade possui

quatro personalidades que receberam o título de mestres da Cultura Popular, concedidos pela

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Secretária de Cultura do Estado. São eles: Dina Martins, vaqueira e aboiadora; Odete Uchôa,

especialista em ervas e remédios; Getúlio Colares, sineiro, e Mestre Bibi, escultor.

O grupo de Escoteiros Marechal Rondon é, de fato, uma escrita de si. Aqui

Augusto descreve uma experiência da adolescência ao participar de um grupo de jovens

escoteiros criado por um franciscano de nome Carlos Weber. Destaca, em parte dos escritos,

as características mais marcantes do Religioso. Era um homem inteligente, poliglota,

dominava o código Morse36

, tinha um porte atlético, nadava e mergulhava como um peixe,

tinha o que hoje se percebe como consciência ecológica e como principal marca franciscana

exercia o desapego de bens materiais: usava uma escova velha de uso dental para pentear o

cabelo e em uma de suas alpargatas de couro, o cabresto tinha um parafuso como parte.

Como legado mais relevante dessa experiência, descreve: “Uma das marcas que

carrego comigo desde aquela época é o cumprimento dos horários. Frei Carlos Weber não

admitia atraso nem de segundos”(IDEM, p.122). Ainda em sintonia com o universo do

ideário franciscano, seguimos a crônica que encerra o livro: “As águas do São Francisco”.

Ação política que povoa o imaginário das populações assoladas pela carência hídrica desde os

tempos do império, a narrativa se inicia assim:

Um homem encontra-se num parque da cidade, comendo um pedaço de pão seco. À

medida que ele vai dividindo o alimento para levar à boca, migalhas vão caindo ao

solo, e os pombos fazem banquete saboreando – o que fatalmente seria lixo.

Aquele homem humilde é altruísta: sente o mais profundo prazer ao certificar-se que

aquilo que não lhe tem nenhuma serventia tem plena utilidade para um ser vivo. O

homem a quem me refiro bem podia ser São Francisco de Assis que, como se sabe,

tinha profundo respeito à natureza e amava a todas as criaturas de Deus. O santo do

milênio talvez fosse além. O invés de dar migalhas aos pombos seria capaz de dar a

36O código morse é um sistema composto por todas as letras e todos os números e sinais gráficos. Desenvolvido

em 1835, pelo pintor e inventor Samuel Finley Breese Morse, o Código Morse é um sistema binário de

representação à distância de números, letras e sinais gráficos, utilizando-se de sons curtos e longos, além de

pontos e traços para transmitir mensagens. Esse sistema é composto por todas as letras do alfabeto e todos os

números. Os caracteres são representados por uma combinação específica de pontos e traços, conforme exposto

na tabela acima. Para formar as palavras, basta realizar a combinação correta de símbolos. As mensagens são

transmitidas por meio e intervalos de som (apito) ou luz (lanterna), podendo ser captadas por diversos aparelhos,

como, por exemplo, o radiotelégrafo e o telégrafo. Esse meio de comunicação foi muito utilizado por

marinheiros durante o século XIX. O primeiro registro de resgate marítimo depois de pedido de socorro

utilizando o Código Morse ocorreu em 1899, no Estreito de Dover. Em meados do século XIX, a utilização do

Código Morse se popularizou rapidamente, atingindo praticamente todos os países europeus. Em 1865, após a

realização de algumas modificações no sistema, o Congresso Internacional Telegráfico regulamentou o Código

Morse Internacional, que proporcionou maior dinamismo às comunicações. Com a invenção do telefone, no fim

do século XIX, o Código Morse caiu em desuso. O desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação mais

eficazes desencadeou a substituição desse sistema por outros aparelhos. Na França, por exemplo, o Código

Morse deixou de ser utilizado pelas grandes navegações desde 1997. Fonte: <

http://brasilescola.uol.com.br/geografia/codigo-morse.htm>. Acesso em 20 de janeiro de 2018. As 20:00.

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eles o pão, e ele próprio se alimentar de eventuais migalhas. Longe de mim achar

que todo mundo é obrigado a ter um comportamento santo como o de São Francisco;

atitude daquele homem humilde, só o fato de não ter enxotado os pombos, já me

basta. Moral da História: aquele que não quer ou não acha que não deve repartir seu

alimento, pelo menos não impeça o uso de migalhas por quem está necessitado.

Dito isto, nos cabe uma analogia com a questão da transposição das águas do Rio

São Francisco ou, como queiram, com a integração de bacias. Estudos apresentados,

sem nenhuma contestação técnica, dão conta de que á agua a ser utilizada neste

programa iria corresponder à migalha de 1,4% da vazão mínima na foz daquele

caudaloso rio. Dita água que terá dois destinos: ou ser utilizada para matar a sede de

12 milhões de nordestinos do semiárido ou irá, preciosamente, se misturar de forma

irreversível à água do mar (ou o pombo aproveita a migalha ou o homem enxota a

pontapés): (PINTO, 2009, p.154-155).

Vemos no quadro apresentado que nosso memorialista se coloca em total sintonia

com as marcas de seu tempo. Com efeito, não apenas os elementos de um passado distante se

colocam como marcas de seu interesse e de analises. Os elementos do presente também se

exprimem como sinais de sua escrita. Ao anunciarmos esta seção, junto ao nome de Augusto

César, indicamos uma passagem do pensamento de Cícero, que caracteriza o modelo clássico

de se pensar a história. A “história como mestra da vida” fazia com que o conhecimento do

passado servisse de base para iluminar o presente, e assim identificamos intensiva marca de

narrar do autor canindeense.

Numa de suas dezenas de postagens em seu perfil pessoal na rede social,

Facebook, ele se define como “pesquisador histórico”. Ilustramos a seguir com um registro

sei.

Figura 3 - Print extraído do perfil de Augusto Cesar no Facebook

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Fonte: Facebook (2017)

As afirmações do autor demonstram que ele se expressa de modo atento, no

sentido de que seus escritos possam ser revisitados. A tempo igual, reitera um cuidado

especial com as informações, com o caráter entendido como “verdadeiro” e “imparcial” na

produção dos registros históricos. Assim, percebemos que as bases que fundaram a História

como disciplina no século XIX, deixaram raízes profundas no sentido de validação das

informações, assim aproximando as pessoas da veracidade dos fatos.

Destacamos, a grande relevância do trabalho desenvolvido por este “pesquisador

histórico”, que se declara amante de sua terra, que tem uma página no Facebook, intitulada:

Canindé Bairrista. O título já demonstra a intensidade das suas identificações com o lugar e

com todas os seus sinais. Quer seja na escrita do livro formulado como de caráter histórico,

quer em suas crônicas, vemos uma ação de grande desprendimento e apreço pela história do

lugar; e, mais do que isso, o autor se posta à disposição dos interessados para falar sobre tudo

isso, ao passo que isso o retroalimenta no sentido de escrever mais e mais impressões sobre

sua terra.

Assim como nos escritos de nosso primeiro memorialista, vemos aqui, em

especial no livro de síntese, a ausência de quase todos os elementos apontados anteriormente.

Augusto tem um cuidado especial em transitar pelas duas grandes esferas de poder das

instituições que assinalam a vida da cidade: o política e religião. Esperamos que ele possa

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continuar seus encantamentos com a Ciência de Heródoto e produzir novas narrativas sobre

seu lugar que batizou carinhosamente como “Meca Franciscana”.

3.4 JÚLIO CEZAR MARQUES FERREIRA – PRESERVAR É PRECISO

Nascido em Canindé, a 29 de julho de 1961, de uma família de servidores públicos,

Júlio Cezar, a quem todos chamam de Alemão, é também um dos muitos outros apaixonados

pela história de sua terra natal. Viveu de modo intenso sua infância, participando das

vivências ligadas às atividades realizadas pelos Franciscanos. Assim como Augusto César,

que também é canindeense, tem memória afetiva por alguns desses religiosos, em especial,

Frei Marcos Weber; Júlio tem profunda admiração por Frei Teodoro e Frei Lucas Dolle.

Conforme expresso anteriormente, a igreja não desenvolvia apenas ação religiosa; pelo

contrário, historicamente, existiram iniciativas de atenção à comunidade, em especial, ações

de trabalhos ligadas à juventude. Alemão, como é conhecido e se apresenta a todos, sempre

teve grande apreço pelas atividades esportivas e, durante a permanência de Frei Teodoro, este

que era amante dessas atividades tratou de incentivar a prática entre as novas gerações.

Figura 4 - Júlio Cezar no Arriamento da Bandeira, ao final da Festa de São Francisco

em 2015

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Fonte: Elaborado pelo autor

Embora os aspectos de sociabilidade não estejam tratados nos dois primeiros

memorialistas, a cidade de Canindé tem em sua história, uma marcante atuação de times de

futebol. Alguns dos nomes que foram destaques no futebol cearense, inclusive são oriundos

de Canindé. Em reconhecimento às contribuições de Frei Teodoro, o Estádio Municipal da

cidade foi batizado com o seu nome, que influenciou uma geração de jovens canindeenses.

Júlio Cezar, não fez carreira nos esportes, no entanto, sempre atuou em atividades

voltadas para o grande público. Realizou estudos na cidade e, ainda jovem iniciou sua vida

laboral. Inicialmente, atuou no comércio local, como vendedor de eletrodomésticos e tecidos.

Num determinado momento, conseguiu um emprego público, como servidor da Secretaria de

Educação do Estado, com lotação na Escola Frei Policarpo.

A atividade como servidor público ocorria concomitantemente às atividades no

comércio. A vida de Júlio Cezar, no entanto, esteve marcada, desde cedo, com os caminhos da

política. Ainda jovem recém-morador do bairro São Mateus, em Canindé, mobilizou os

moradores locais, durante uma visita do Governador, para que ele levasse água aos moradores

do bairro. E assim marcou sua trajetória, sempre desenvolvendo atividades que buscassem

alterar as condições de vida da população local. Num dado momento, ingressou, por concurso,

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na antiga SUCAM37

,o que o conduziu a ficar um tempo ausente da cidade, visto que ele só

retornava periodicamente a sua casa.

Os trabalhos como servidor do Ministério da Saúde, pouco tempo depois, o

levaram a trabalhar em Fortaleza e por questões de ordem familiar morou na cidade de

Caucaia. Os laços familiares e o desejo pelas coisas da terra fizeram com que ele voltasse.

Assim, na condição de agentes de endemias e no trabalho com a população rural e urbana,

Júlio iniciou carreira na política.

No que tange às origens familiares, seu pai é professor de História, fato que

reforçou ainda mais seu gosto por esta seara do saber. Ele não desenvolveu estudos em

História. Já em idade madura, realizou estudos de graduação na área de Serviço Social, que o

deixou em forte sintonia com as ações por ele desenvolvidas nos meandros da vida política.

Seu gosto por História fez com que ele se lançasse a recolher documentos,

imagens, jornais, variadas modalidades de registros que indicam a trajetória humana. Suas

atividades como agente de endemia, permitiram-lhe entrar em contato com uma infinidade de

documentos. Esses para uma vastidão de pessoas, não despertam qualquer atenção. Pe. Neri,

ao citar e caracterizar os membros do Instituto Memória de Canindé, destaca: “Júlio Cezar

Marques Ferreira Lima, pesquisador com precioso arquivo colhido, vereador”(2014, p,24).38

O mais experiente e o mentor intelectual do Instituto Memória é categórico ao

afirmar a condição dele como pesquisador e detentor de um arquivo precioso. A nossa

atividade docente em História do IFCE campus Canindé, logo em seu início, nos pôs em

contato com Júlio Cezar. Dentre as primeiras ações desenvolvidas ali, realizamos um Curso

de Extensão, denominado Formação Política. Desta atividade, participaram muitas pessoas,

com destaque aqueles que ainda hoje exercem mandatos no Município.

O curso de extensão trouxe resultados positivos à comunidade. A iniciativa, que

começou com um curso de extensão, hoje fora transformada em pós-graduação Latu sensu,

em Gestão e Avaliação de Políticas Públicas, que já formou a primeira turma e se encaminha

em novo processo seletivo para a formação de uma outra. Pouco tempo depois do contato com

Júlio Cezar no curso de Formação Política, após uma conversa de aula com alunos do Curso

Técnico Integrado em Eventos, eles nos apresentaram um documento em formato word,

37

SUCAM Superintendência de Campanhas de Saúde Pública, que em 1991, passou a configurar com outros

órgãos a Fundação Nacional de Saúde (Funasa). 38

Júlio Cezar, atuou como vereador no mandato (2012-2016). Em 2016, se lança candidato a vice-prefeito, no

entanto não é eleito e retorna ao seu cargo de Servidor Público Federal, na distrital da FNS em Canindé. O

mesmo é agente de endemias, onde a atuação principal é o trabalho em campanhas educativas para o combate a

doenças endêmicas, como no combate aos agentes etiológicos dessas doenças.

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intitulado: Projeto Memórias de Canindé: Um mergulho no passado viajando pelo tempo, cujo

realizador era o próprio Júlio Cezar.

Configurando as marcas das antigas corografias, o conjunto de informações teve

início com um histórico do Município, seguido pela transcrição de documentos oficiais,

dentre eles a Ata da seção da 1ª Câmara Municipal, e um conjunto de imagens de momentos

da história do lugar, com destaque para as personagens da atividde política e religiosa.

Passando mais algum tempo, foi a vez de conhecer o Blog Memórias de Canindé,

cujo mentor intelectual das postagens está creditado a Júlio Cezar. Assim foi cada vez mais

comum ouvir falar neste personagem, sendo referido quando o assunto era a História da

cidade. Seguindo o quadro de atividades profissionais, chegaram as atividades de orientação

de Trabalho de Conclusão de Curso, dos alunos da Gestão em Turismo.

Diferente das atividades desenvolvidas anteriormente, essa vivência nos levou

ainda mais para junto da cidade. As pesquisas que se colocaram em variadas direções, no

entanto, guardavam um elemento comum. As referências ao lugar, a cidade no cômputo geral

das duas primeiras turmas, todas trataram de temas sobre Canindé. Foi assim que nossas

atividades profissionais nos levaram para junto desses homens, que, além do gosto por

História, dedicavam a sua vida à pesquisa, à escrita e, o mais importante à divulgação dessas

informações.

Júlio foi o primeiro com quem tivemos contato, ainda quando da instalação do

IFCE em suas atuais instalações. Ele deu total apoio para que o poder público municipal

realizasse a concessão de um transporte público municipal, para transportar, diariamente os

alunos do IFCE, durante os turnos de seu funcionamento.

Distintamente dos primeiros memorialistas, cuja intensidade de registros se

expressa por via dos domínios da escrita, a atuação de Júlio o situa no sentido de chamar

atenção para a importância da história do lugar, com destaque especial paea as bases do

patrimônio histórico edificado. Daí a referência que indica sua compreensão de História, estar

associada à ideia de que preservar é preciso.

Não que ele não seja sensível e não perceba a dimensão do que chamamos

patrimônio histórico cultural em sentido amplo, onde se insere a dimensão do patrimônio

imaterial, visto que a cidade de Canindé, em especial, pela grandiosa Festa de São Francisco,

que a cada edição recebe uma participação superior a um milhão de pessoas, pode ser levada

tranquilamente à condição de patrimônio imaterial do Ceará, ao lado de uma outra grandiosa

festa, já inscrita como patrimônio imaterial, que é a Festa do Pau da Bandeira, que ocorrente

todos os anos, em Barbalha, no Cariri cearense.

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Acreditamos que o grande mérito de Júlio Cezar foi, e é, o de levar as informações

dos meios impressos para o formato digital. Assim no início desta década, quando as redes

sociais se tornavam uma realidade cada vez mais próxima, Júlio idealizou um blog, para

divulgar as informações sobre a História do lugar. Com efeito, como um compilador e

antiquário, retomando a observação de Pe. Neri sobre seu acervo, passou a ilustrar no blog

imagens e informações sobre a História local.

Passando de um simples elemento de lançar as informações, a cada uma delas, ele,

tem o cuidado de citar de onde foram retiradas. Não é intenção deste trabalho apontar uma

hierarquia na importância dos autores; pelo contrário, ensejamos mostrar que cada um guarda

peculiaridades e há espaço para todos eles. O caráter de indicação de onde estavam as

informações, ou as fontes consultadas, em muito contribuiu para aqueles que se colocaram a

realizar investigações sobre a História da cidade.

De tal sorte, percebemos as contribuições de Júlio Cezar como de grande

relevância para todos aqueles que buscam se aproximar de elementos componentes da

História de Canindé. Até janeiro de 2018, as visitas ao seu Blog passaram de 70 mil visitas, e,

só recentemente, Canindé saltou a casa de oitenta mil habitantes. Ele se utilizava do Blog,

levava muitas das informações a sua página pessoal no Facebook e seus esforços alcançaram

mais pessoas.

Passado o tempo o Blog parece não se atualizar, mas, cotidianamente ele publica

na página pessoal no facebook. Ainda nos tempos em que exercia funções no Legislativo

Municipal, visitava diversos espaços da cidade e sempre chamava atenção para os problemas

enfrentados pelo povo propondo soluções.

Sem mandato parlamentar, Júlio Cezar retornou ao seu cargo de servidor público

federal como agente de endemias, e continua a desenvolver suas atividades no serviço

público. Assim como Augusto, que desenvolve atividade comercial, Júlio tem uma empresa

de serviços de dedetização, que presta serviço na cidade. Ele entretando, não se esquece de

sua grande paixão que é a cidade, com todos os seus significados.

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4 CIRCULAÇÃO E INFLUÊNCIAS DAS OBRAS DOS MEMORIALISTAS DE

CANINDÉ: DOS MEIOS IMPRESSOS ÀS MÍDIAS SOCIAIS

Neste capítulo visitamos os meandros da circulação da obra de nossos escritores,

destacando a produção e divulgação, em formato tradicional de tinta e papel, e sua inserção

nas mídias sociais (blog, redes sociais). Demonstramos o alcance e a relevância desses

trabalhos, com suporte nas experiências individuais e coletivas vividas pelos autores, em

vários momentos da vida cultural e social da cidade de Canindé, destacando a influência

dessas ações, como prática que efetiva a ideia da História como um bem comum, que deve ser

conhecida e está acessível a toda a comunidade.

4.1 DIVULGAÇÃO EM SUPORTES TRADICIONAIS

O século XX trouxe na sua polissemia de conceitos, um que se destacou nas

reflexões sobre a atualidade. A Pós-Modernidade, modernidade líquida, tempos

hipermodernos, são muitos destes que se colocaram numa crítica direta a herança moderna, de

marcada influência iluminista. Assim, um dos principais sinetes da Modernidade, no que diz

respeito ao conhecimento compartimentado, produzido de modo fragmentado, muitas vezes

considerados ilhas do saber, esse movimento evoca a necessidade de (re)ligar o

conhecimento, de que os saberes se agrega, de modo inter-relacionado.

Em meados do século XX, nessa avalanche de conceitos e proposições,

encontramos afirmações como a de Marshal McLuhan (1962), que afirmava que a produção

de livros em formato tradicional, sob o modelo trazido por Gutenberg, no início dos tempos

modernos, estava com os dias contados.

O tempo passou, iniciamos um novo século e a produção de livros continua sendo

uma marca do mundo dito civilizado. A facilidade trazida pela redução das distâncias físicas,

medidas pelo uso dos computadores ligados em rede, possibilitou o acesso a um número

maior de publicações, que circulam através do comércio eletrônico. Autores continuam a

escrever, e a grande mudança se exprimiu no sentido das produções se colocarem sob novos

formatos, o que os estudos linguísticos definem como diferentes suportes.

Assim, é possível hoje se divulgar livros voltados ao mercado editorial, como

produções especializadas, única e exclusivamente em formato digital. Conhecemos os e-

books, que se mostrou cada vez mais próximos de um maior número de pessoas, podendo,

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muitas vezes, assim, não se restringir aos limites das distâncias espaciais. Vale ressaltar que,

embora milhares de pessoas em todo o mundo estejam conectados à rede mundial de

computadores, a ideia de que internet se coloca acessível a todos é no mínimo ingênua; em

especial em realidades como a brasileira, num país marcado por grandes assimetrias sociais,

em que um quantitativo elevado da população não foi incluído, sequer, no cânone da leitura e

da escrita.

As informações ganharam a rede, sendo mediadas pelo que se denomina de

mídias sociais. Embora, através destas mídias tenhamos a organização de grandes acervos de

produções que vão desde as produzidas pela tradição acadêmica, passando por obras literárias,

jornais, revistas, uma diversidade de elementos escritos, referidas mídias sociais receberam

grande adesão das chamadas redes sociais.

Assim, nos mais variados espaços do País, escutamos as pessoas se referirem à

divulgação de informações que circularam no Orkut (hoje desativado), passando pelo

Facebook, Twitter, Instagran, Linkedin, até os espaços utilizados para aproximar as pessoas,

com a finalidade de promover namoros e paqueras, bem como outros modais de interação,

como é o caso do Tinder, o mais popular em todo o mundo.

Tomando como referência a cidade de Canindé, estabelecida por intermédio da

visão de seus memorialistas, fomos em busca do quadro dessas produções, que circulam pela

cidade. Assim, no largo da Basílica, o grande ícone da devoção franciscana, temos, defronte a

esta, a Biblioteca Pública Municipal Cruz Filho, onde todos os interessados no acesso a livros

de várias temáticas podem fazer, leva-los e decodifica-los.

Ao definir este objeto, realizamos uma incursão ao referido equipamento, para

termos a dimensão das obras dos memorialistas no acervo da Biblioteca Municipal. A visita

nos trouxe a confirmação de que, de fato, há um espaço que congrega a produção dos autores

locais, abrigando as obras dos memorialistas.

Verificamos, outroassim, os velhos problemas com o descaso no que se refere à

coisa pública, em especial, no que tange à política de manutenção e preservação de

bibliotecas. O edifício onde funciona é um prédio secular, o que já prenuncia uma situação de

cuidado especial para com o referido patrimônio. Tal cuidado, no entanto, não acontece. A

deficiente manutenção do prédio acarretou, o aparecimento de vazamentos, infiltrações e

agentes como os cupins, que danificam as peças do acervo.

Além dos agentes que compõem a natureza, no entanto o que compromete

também, a qualidade do funcionamento do equipamento, é o grande problema, os advindos da

natureza humana. O acervo, que tinha uma quantidade significativa de exemplares das

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produções locais, aos poucos, foi alvo de pessoas mal-intencionadas, que praticaram as mais

distintas modalidades de depredação.

Estas se traduzem em manifestações, que vão deste a retirada de páginas, de

capítulos, o mais grave, - a subtração de volumes inteiros das obras do acervo. Infelizmente,

tal prática é bastante comum. Ao falar das atividades promovidas pelo Instituto Memória de

Canindé, Pe. Neri Feitosa traz, nas considerações finais de seu texto, algumas observações

acerca do que ele chama “A Arte de Pesquisar”(2016, p.25). Subdivide-a em dois pontos: a)

Paciência para pesquisar; b) Honestidade do pesquisador. E, ao falar do que ele chama de

honestidade do pesquisador, assevera que:

Pode até acontecer que essa dificuldade em mostrar livros de pesquisa seja gerada

por algum pesquisador. O Memória de Canindé tem livro perdido em mão de

integrante: pede emprestado para pesquisar e não devolve.

Pesquisando na Biblioteca Pública de Canindé, encontrei páginas cortadas a gillete

no tronco e o atendente disse que era ação de estudantes. Dona Mary mandou botar

uns cartazes na subida da escada, proibindo subir com sacolas. Fui informado que

era para evitar “apropriação indébita” de livros. A mesma dona Mary me disse que

até o Secretário de Cultura chega, tira um volume de uma coleção, leva e não

retorna: fica a coleção incompleta. (IDEM, p.26)

Acreditamos ser dispensável a defesa de manutenção em bom estado de um

equipamento cultural do porte de uma Biblioteca Pública. Canindé é uma cidade com pouco

mais de 80 mil habitantes, em sua configuração trasnporta os distintivos de nossa formação

social, caracterizada pelas desigualdades. Estudos como do professor José de Jesus Sousa

Lemos(2012), do Departamento de Economia Agrícola da UFC, trazem dados, mostrando

que, aproximadamente 75% dos moradores da cidade são privados de renda.

Assim, além da defesa de um espaço, público voltado para o interesse da

sociedade, haja vista suas características, vemos por outro lado os sinais negativos de nossas

heranças coloniais, traduzidas nas ações do agente público, que chega no espaço público e

trata o bem geral como se fosse privado.

Um sinal complexo que suscitou historicamente inúmeras reflexões no âmbito do

pensamento social brasileiro, o patrimonialismo, esse não reconhecimento dos limites entre a

esfera do público e do privado, compromete os possíveis avanços sociais e nos mostram um

quadro de contradições que levam o País para longe de quaisquer traços de uma vida

republicana.

Uma Biblioteca, em especial numa cidade como Canindé, que recebe pessoas do

Brasil e do mundo, que tem em seu território vários equipamentos ligados à Administração

Pública Federal (Banco do Brasil, Banco do Nordeste, Caixa Econômica Federal, Distrito de

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Saúde (MS), IFCE), da Estadual (7ª Crede, Distrital de Saúde, Perícia Forense), - todos esses

entes que compõem os meandros da Administração Pública, - tornaram a cidade um polo

receptor de pessoas, motivadas por variadas intenções.

Sendo assim, a Biblioteca Pública deveria ser percebida pela Administração

Municipal como um bem a serviço, não apenas, da comunidade canindeense, mas também

como um espaço que pode ser visitado por curiosos e pesquisadores além-fronteiras do

Município. Vemos assim o quão hercúleos são os trabalhos que se colocam a promover e a

divulgar a cidade, tendo como base os aspectos culturais, tão importantes para a promoção do

ideário ligado aos níveis de desenvolvimento humano.

Ainda no que diz respeito às práticas de não cuidado com os livros, no arremate

de seu texto, Pe. Neri, é mais uma vez, enfático, ao falar sobre a realidade canindeense.

O convento de Canindé tem uma biblioteca colossal. Mas lá não entra nem o anjo da

guarda: os frades com medo dessas desonestidades. E têm razão.

Agora meu caro integrante do Memória de Canindé: você por ventura ou desventura,

é um desses que surrupiam livros ou que pedem emprestado e não devolve? Se for,

que Deus lhe seque a mão direita! Assim seja. (IBIDEM, p.27)

Numa espécie de desabafo, o mais experiente de nossos memorialistas demonstra

uma preocupação ampliada com o sentido da preservação dos acervos, em especial porque

muitos dos materiais produzidos foram impressos sem apoio financeiro, sendo

autofinanciados. Ao mesmo tempo, percebemos as marcações na trajetória dos recheios das

bibliotecas, no que diz respeito, também à prática de visita a equipamentos, com o intuito de

subsidiar suas pesquisas.

Conforme descrevemos anteriormente, e de posse do relato do Memorialista, é

possível ter uma dimensão do quanto é deficiente a situação da Biblioteca Municipal. Em

visita ao local, encontramos uma quantidade expressiva de livros, incluindo livros raros, mas

que carecem de tratamento e cuidado.

Como mostramos em passagens anteriores do texto, Canindé tem uma produção

significativa de autores locais, além das de teores histórico e memorialístico. Uma análise

atenta nos exprimiu que muitos dos textos, em especial os produzidos durante a existência do

Instituto Memória, não se encontram mais disponíveis no acervo da instituição.

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Figura 5 - Vista do Largo da Basílica, ao fundo a Biblioteca Municipal Cruz Filho

Fonte: Elaborado pelo autor

Figura 6 - Sala da Biblioteca com o acervo dos autores locais e espaço para consulta

Fonte: Elaborado pelo autor

O balanço crítico feito pelo Pe. Neri, em 2014, indica que o Instituto produziu até

aquele momento o total de 43 títulos, tendo reeditado três livros de outros autores. O livro de

Frei Venâncio, citado neste estudo, “Cronologia canindeense” do professor Hélio Pinto, e as

“Notas políticas e religiosas sobre Canindé”, do Padre Luís Leitão.

Em 2016, padre Neri compilou todos os seus textos em dois volumes e distribuiu

exemplares para algumas bibliotecas, incluindo a Municipal. Essa coletânea, no entanto, já

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não está mais disponível no referido equipamento, tendo paradeiro ignorado. Novas

tecnologias foram aparecendo e os memorialistas as utilizam como nova alternativa para a de

divulgação de suas obras, o que é apontado como solução para se livrarem das práticas

nefastas do extravio de suas produções. Passaram, então, a divulgar seus escritos para o

grande público, mediado agora pelas redes sociais.

É digna de destaque a inserção dos memorialistas nas mídias sociais, indicando

que eles não ficaram à margem do mundo tecnológico, embora pertencentes a gerações

distanciadas desses avanços da sociedade informática.

4.2 A CIRCULAÇÃO DE INFORMAÇÕES: ENTRE MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS

Anterior ao início deste trabalho, conforme anunciamos, já havíamos tomado

conhecimento desta prática situada como habitual para a divulgação dos trabalhos dos autores

memorialistas. A exceção de Pe. Neri, que não aderiu às redes sociais como meio para

divulgação de seus trabalhos, Augusto César e Júlio Cezar já haviam adentrado a este meio

com grande intensidade.

À medida que o estudo evoluia, passamos a acompanhar, diariamente, no ano de

2017, as diversas publicações desses produtores. A iniciativa de Júlio Cezar, no início de

2012, de levar suas informações sobre a cidade por meio de um Blog, foi bem recebida pela

comunidade. O sítio que guarda o número de visitantes nos mostra que teve um acesso de

mais de 70 mil usuários. Numa analogia rápida, era como se quase toda a população da cidade

tivesse acessado pelo menos uma vez.

Passado algum tempo, a experiência do Blog, embora exitosa, migrou para a rede

social Facebook. Assim, Júlio Cezar, o idealizador do Blog, e Augusto Cesar, que já se

utilizavam da rede, passaram a potencializar suas postagens em caráter amplo para divulgação

de informações aos interessados em geral.

Em tempos de domínios do Facebook, Augusto César ampliou ainda mais o

conjunto de alcances de suas informações, com a criação de uma página dento do Facebook,

de nome Canindé Bairrista. Ele, então, deu ainda maior amplitude aos seus trabalhos. Assim

como o Blog, contabiliza o número de visitantes. Ao examinar uma página no Facebook, o

usuário é convidado a segui-la. Atualmente, a Canindé Bairrista tem um número superior a

2500 seguidores.

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Em razão desses dados quantificáveis, podemos inferir que a experiência dos

autores é entendida como exitosa, visto que, nas questões do presente, temos o volume de

informações como um grande desafio, na relação entre os autores e leitores. Num momento

histórico em que é comum as pessoas reclamarem da ausência de tempo para realizarem

tantos afazeres, conseguir leitores, é fati expresso como um elemento desafiador.

E, assim, os autores caminham com suas atividades quase de modo cotidiano. Eles

não têm uma pauta especifica de assuntos a serem destacados sobre a cidade. Percebemos, às

vezes, a relação com alguma data comemorativa, em especial, quando a cidade se apronta

para os festejos de São Francisco, mas que se diversificam no correr dos dias.

Vemos, assim, temas que tratam de pessoas do lugar, de eventos ocorridos, do

panorama político e com grande força, a transcrição de documentos históricos, geralmente de

caráter oficial, onde se encontra um grande acervo de imagens, edificações antigas, muitas

vezes denunciando o quadro de depreciação por que estes bens transitam, em especial, pela

ausência de ações do Poder Público, no sentido de mantê-las preservadas.

Demarcação registrada coincidem com as interações pessoais com o lugar. Cada

um ao descrever fatos, eventos que estejam conectados com suas histórias de vida, mostra o

grande elemento que exprime o sentido deste ofício abraçado. Todo pesquisador

independentemente de sua área de formação, reconhece que toda modalidade de propagar,

conhecimento exige esforço e desprendimento pessoal.

Reiteramos aqui, a ideia de que um olhar cuidadoso nos demonstra que este

exercício, por sua natureza, intelectual, necessita de um comportamento devotado para a sua

realização. Os pesquisadores, no quadro geral, em particular, os que trabalham com os estudos

de História, tem suas práticas mediadas por atividades acadêmicas e institucionais. É assim,

desde a preparação de materiais para a utilização em aulas nos variados âmbitos de ensino da

graduação e da pós-graduação, das comunicações para participação em eventos, dos artigos,

capítulos de livros, publicações em periódicos especializados, relatórios de pesquisa.

Todas essas ações constituem parte do exercício profissional do pesquisador.

Aqueles que se esforçam para a formulação de atividades intelectuais, sem que estas se

definam como sentido de sua vida profissional, merecem o respeito e o apreço, não só da

comunidade para quem estão a produzir, mas, em especial daqueles que estão à frente dos

espaços dos saberes institucionais. Sobre esse sentido de escrever acerca de História além de

um dever de ofício, o historiador Philipe Àries 39

, em meio a sua atividade de historiador

39

ARIÈS, P. O historiador diletante. Rio de Janeiro: Bertrand, 1994.

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profissional, refletiu sobre sua prática, perante os conceitos formulados pela tradição

acadêmica. Ele próprio embora um autor de reconhecimento internacional, se definia como

um historiador diletante, aquele que exercia sua prática por um gostar pessoal, que estava

além das atividades meramente burocrática ou institucional.

Vemos em nossos agentes sociais esse mesmo sentimento, definido pelo

Historiador francês. As suas produções não lhe rendem comprovações curriculares, não

pontuam para a aprovação de financiamento de projetos, não os classificam como

pesquisadores de determinada grandeza, por enquanto, apenas suas produções são acolhidas,

em grande parte, por um público local, cujo comportamento, funciona como um elemento

catalisador para que deem continuidade as suas atividades, realizadas em meio a todos os

demais aspectos, que lhes permeiam às trajetórias pessoais e profissionais.

Figura 7 - Blog Memórias de Canindé, de Júlio Cezar, e a página Canindé Bairrista, de

Augusto César

Fonte: Facebook (2017)

Conforme já anunciamos, estes homens de trajetórias comuns dedicam uma parte

considerável de seu tempo para atuar na divulgação de informações sobre a cidade. O grande

destaque é para o revisitar a história do lugar, onde cada novidade é sempre motivo de grande

emoção para todos aqueles que acompanham essas pessoas. Vemos a seguir o quadro

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ilustrado por seus perfis na rede Facebook, o apreço que os mesmos têm para o seu lugar de

origem.

Figura 8 - Perfis de ambos no Facebook. Páginas de Augusto César e Júlio Cezar

Fonte: Facebook (2017)

Conforme nos mostra a imagem, é notório que eles querem ser conhecidos como

amantes do lugar. No espaço intitulado imagem de capa, anunciam, de modo pragmático, uma

referência ao lugar. É comum aos usuários da rede fazerem uso de imagens pessoais, com

destaque a belas paisagens ou imagens de família, no entanto, temos, nos dois casos, uma

vista panorâmica da cidade. Embora produzida em momentos distintos, as fotografias de

ambos fazem referência a uma imagem do passado.

Assim foi definido, que o objeto da História é o “passado”. É partindo dessas

imagens do passado eles se debruçaram em suas trajetórias para, de algum modo,

compreenderem muito do que se tem hoje. Ao indicar um perfil para cada um no capítulo

anterior, percebemos como esse conhecer o passado lhes situa como algo caro e necessário

para serem conhecidos pelas novas gerações.

São eles, hoje, homens de meia-idade, mas cujos itinerários pessoais sempre

foram vinculados à cidade, mesmo nos momentos em que residiram em outros espaços. A

cidade com todo seu arcabouço de eventos, se desenvolveu por meio da experiência coletiva

devocional a São Francisco, tendo nos ritos da vida inscrita nessa memória religiosa seu

grande diferencial.

Ao passo que muitos lugares revisitam suas origens em determinados momentos

dos calendários ligados ao que chamamos de vida civil, em Canindé, a atmosfera religiosa se

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inscreveu com força desmedida sobre os aspectos da vida social e cultural do lugar. Um

exemplo disso é notado facilmente durante a realização dos festejos de São Francisco, em

especial na semana que antecede o final da festa, pois todas as atividades da cidade são

paralisadas, à exceção do que hoje está definido como serviços essenciais, com destaque para

saúde e segurança pública.

Durante os festejos, a cidade de Canindé se inscreve num mundo paralelo. Nessa

semana, o trânsito de veículos é interrompido em grande parte da cidade, em especial nas ruas

do centro histórico, nas proximidades do Complexo do Santuário. A cidade, de menos de 100

mil habitantes, vive durante dias uma experiência diferente, que mobiliza a atenção de todos,

independentemente de suas vinculações ao evento religioso.

Destacamos na sequência os elementos da vida pessoal dos autores, no decorrer

de suas existências, elementos que forjaram esse modo de atração que têm pela cidade, -

imagens da infância, que indicam marcas da vida cultural, social em que experienciaram, cada

um a seu modo, mas tendo em comum as ações promovidas pela dimensão religiosa, o

elemento mais significativo da cidade.

Figura 9 - Os memorialistas em sintonia com a presença da igreja em Canindé.

Páginas do Facebook, de Júlio Cezar e Augusto César

Fonte: Facebook (2017)

Como é possível identificar nas imagens mostradas, Júlio Cezar descreve uma

passagem marcante de sua infância. Aos novo anos de idade, fez sua primeira comunhão, um

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97

momento de grande relevância para a vida dos católicos, após o Batismo que assenta o início

do ingresso no mundo cristão. A Eucaristia, sacramento na doutrina católica, surgiu como um

novo degrau nessa experiência da vida religiosa. Enquanto ele – Júlio Cezar, descreve a

importância do evento, destaca dois elementos peculiares: o primeiro é a proximidade e

admiração pelo religioso Frei Lucas Dolle, personagem que por décadas dirigiu os trabalhos à

frente do Santuário de Canindé.

Frei Lucas desenvolveu ações importantes, como a mobilização do Poder Público

estadual para a construção de estradas e outros equipamentos para facilitar a estada dos

romeiros que visitavam a cidade. Quando no conflito que Pe. Neri descreveu anteriormente,

como a Guerra da Japuara, após a batalha entre os trabalhadores e a polícia, Frei Lucas foi o

primeiro a chegar para socorrer as vítimas. A tempo, o Memorialista traz uma dimensão

afetiva sobre o seu pertencimento à cidade. Tudo para ele passa pelas relações com a cidade,

onde nasceu, cresceu e projetou-se para o que é hoje. Não se compreende sem a relação com a

cidade.

No quadro seguinte, vem Augusto César, em uma vivência que marcou a sua

história de vida. Ao descrevermos suas crônicas, em seu livro: “História de nossa terra e de

nossa gente”, lá estava sua participação como integrante do grupo de Escoteiros Marechal

Rondon; sob os cuidados de Frei Carlos Weber, religioso de caráter fortemente franciscano,

pois buscava uma vida desapegada dos meios materiais e pregava entre seus aprendizes o

cuidado com a natureza e o despertar para uma consciência ecológica. Neste sentido, Augusto

César declara que esta convivência deixou como legado elementos importantes, que este

levava para a vida pessoal e profissional, em particular, o cuidado com os horários.

O Religioso de origem alemã se posicionava sempre no zelo pelo cumprimento

dos horários, pela narrativa que se configurava como um regime espartano em seu caráter

disciplinar. Ainda sobre o Religioso, o autor destaca que ele tratava a todos com equidade,

não havia nenhum caráter de distinção de tratamento para com os membros do grupo. Dentre

as lições deixadas por essas experiências, Augusto descreve na crônica que ele era atento

sobre o quesito das indumentárias e acessórios que os escoteiros deveriam portar.

Exemplificando o caráter rigoroso do Religioso, conta que um dos jovens, um dia,

havia sido advertido de que estava sua roupa faltando um botão. Frei Carlos o advertiu,

afirmando que este deveria ser reparado. No encontro seguinte, no momento de revista à

tropa, o religioso identificou o fato de que o jovem não havia reparado o botão. Diante do

quadro em questão, ele sacou do bolso um canivete e retirou todos os botões que ainda tinham

na roupa do jovem; em seguida, pôs os botões na mão do rapaz, que foi para casa, segurando

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as calças, pois estava sem botões. Assim, em caráter pedagógico, a experiência nunca mais foi

repetida por nenhum dos integrantes.

Figura 10 - Imagens da vida política da cidade: Desfile Cívico e os Integrantes do

Legislativo Municipal de 1954. Páginas do Facebook de Júlio Cezar e Augusto César

Fonte: Facebook (2017)

Saindo do quadro da esfera religiosa, outra dimensão partícipe constante nas

narrativas desses memorialistas são os quadros da vida política. A imagem da esquerda,

publicada por Júlio Cezar, faz referência a um momento marcante dos eventos políticos do

lugar. Embora as metrópoles tenham deixado as comemorações do Dia da Independência para

os desfiles militares, em Canindé, referida data é comemorada de modo expressivo com uma

multidão de pessoas na rua.

As escolas do Município, públicas e privadas, desfilam pelas ruas, assinaladas por

uma profusão de cores. Como um sinal herdado das tradições militares, as escolas dividem

seus integrantes em pelotões, que fazem referência às mais diversas temáticas: eventos

políticos, calamidades naturais, personagens marcantes e, em especial, a história do lugar.

Assim, o desfile ou a “marcha” do Sete de setembro é um momento de grande congraçamento

da população. Embora não exista um ranque entre as escolas participantes, é comum a

comunidade de expectadores conferir um título de vencedor a essa ou aquela escola.

Júlio Cezar descreve o evento de modo sucinto. Seu destaque é para a necessidade

de salvaguardar os monumentos históricos, que ali era o prédio onde funcionava a Prefeitura

Municipal e foi destruído. Destaca a necessidade de preservação: “O que seria de uma cidade

sem a história de sua evolução, sem as memórias daqueles que ajudaram a erguê-la, sem os

mitos e lendas que encantam e seduzem quem passa por elas”.

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Embora o autor não se arvore dos discursos teóricos em torno do conceito de

Lugares da Memória, o Memorialista aponta para uma necessidade real, um desafio a ser

encarado no âmbito das políticas públicas, no caso em questão, do Poder Municipal. Augusto

apresenta a Câmara Municipal eleita para a legislatura de 1954. A primeira observação diz

respeito à legenda atribuída à imagem: Ligado na História. Em seguida, há a descrição de

todos: “Francisco Magalhães Karam, Guilherme Guedes de Oliveira, Paulino Ferreira Gomes,

José da Silva Mota, Antônio Santiago de Oliveira Filho, Francisco Tavares, Manuel Carneiro

Sampaio e Antônio Alves da Silva.

O prefeito eleito foi Raimundo Barroso Sampaio (Mundinho Sampaio). Se o

patrimônio edificado deve ser algo preservado e conhecido pelas novas gerações, a memória e

as ações dos homens que protagonizaram as ações políticas se colocam na mesma condição.

Vemos aqui, mais uma vez, as sinalizações que conduziram um pensamento sobre a ideia de

História. Não é objeto deste estudo promover qualificações sobre as possíveis visões de

História que permeiam a compreensão de nossos investigados e sim destacar suas

contribuições, para que, à luz da atualidade, possamos estabelecer novas percepções sobre o

sentido da História.

Falando de um lugar social de quem conhece um pouco os meandros que

colocaram o saber histórico na condição de um saber científico, revistamos o mito grego se

Sísifo. Assim como o personagem da narrativa está condenado a subir com a pedra até o alto

do monte, e esta, cai, e ele recomeça tudo outra vez: uma metáfora do que é de fato, o trabalho

do historiador.

A cada nova geração, os historiadores, assim como Sísifo, refazem a tarefa de

descortinar o passado à luz do seu tempo. Ante, porém as ações promovidas por estes que

aqui tratamos como memorialistas de oficio, aqueles que desejam rolar a pedra até o cume e

produzir novas interpretações poderão contar com o trabalho precioso destes homens, que se

encontram espelhados pelos mais diversos recônditos, não só do Brasil, mas de todo mundo.

Destacamos, ainda, o fato de que tanto na realidade brasileira quanto na realidade

do Ceará, os grandes itinerários que se colocaram sobre o olhar de nossa formação social

foram produzidos por homens amantes das Letras e da História, que, embora em alguns casos,

portadores de títulos de saberes formais, institucionalizados, não eram historiadores

profissionais. - e arriscamos dizer que essa condição não era de fato uma preocupação para

eles.

Na introdução de seu livro “Viagem pela história de Canindé”, Augusto César,

delineia o sentido que o conduziu sua a materialização: “Devo ressaltar que não se trata de

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100

uma obra idealizada por um escritor profissional, mas por um simples amante da história de

sua cidade, que numa linguagem simples se propõe a conduzir o leitor numa viagem através

da história de Canindé”. (CÉSAR, 2003, p.20).

Retomamos, mais uma vez, as reflexões de Pe. Neri Feitosa, no balanço crítico do

Instituto Memória de Canindé: “Por aqui já começamos a distinguir entre história e memória:

a história a serviço da memória. O nosso Instituto é de Memória, não é de história, mas não

pode desligar-se da história; a memória é integrante da história. Memória e história se

interagem. A memória precede a história e a história confirma a memória”.(FEITOSA, 2016,

p.02).

A produção dos autores, é uma atividade que exige esforços. Observamos a

materialização de suas reflexões pessoais, sobre as práticas de escrever sobre História, que se

faz de modo despretensioso, onde percebemos um desejo de efetivvar a História como um

bem comum da comunidade onde estão inseridos.

Confirmando esse desejo, de tornar a história como esse bem comum,

identificamos o caráter relevante da estratégia das produções de nossos memorialistas, de

saírem da versão tradicional das narrativas registradas em tinta e papel, avançado para o rol

do mundo virtual, a que um número ampliado de pessoas tem acesso, de modo, rápido e

prático, além de poder entrar em contato direto com os autores. Evidenciamos esta

circunstância, como de maior relevância para tornar a História, um elemento vivo da

experiência cotidiana das pessoas.

A prática da divulgação em formato digital não deixou que os autores encerrassem

com o desejo de prosseguir com a publicação em configuração impressa. Augusto César

prepara-se para lançar versão atualizada de seu livro de síntese, como também de uma outra

obra de crônicas. Pe. Neri mostra-se sempre disposto a trazer visões renovadas sobre a cidade,

e Júlio Cezar, pretende escrever um livro de síntese sobre a história da cidade.

4.3 OS MEMORIALISTAS E O ALCANCE SOCIAL DE SUA PRODUÇÕES

Realizado todo este percurso, chegamos ao ponto que acreditamos nos mover em

nossa partida. Conforme relatamos na experiência investigativa sob relatório, o contato com a

produção destes autores se deu amparo em nossas experiências como docente no IFCE,

campus Canindé. No primeiro momento, ocorreu a formulação das aulas, e, em seguida na

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101

realização de um projeto de pesquisa, que intencionava conhecer a cidade, partindo das ruas

de seu centro histórico.

Foi entranto, com as atividades de pesquisas que, na primeira ocasião esteve o

contato restrito ao curso de Gestão em Turismo, se ampliando posteriormente para os cursos

de Educação Física e, ao final de nossa passagem nesta instituição, no Curso de

Especialização em Planejamento e Avaliação de Políticas Públicas.

No curso Gestão em Turismo e na Especialização, além das atividades como

docente, tivemos a oportunidade de exercitar as orientações de Trabalho de Conclusão de

Curso. Com os estudantes de Educação Física, participamos como avaliador nas bancas de

qualificação e de defesas dos Trabalhos de Conclusão de Curso- TCCs.

Ressaltamos que cada uma dessas experiências, quer seja como avaliador ou como

orientador dos trabalhos, nos punha em maior sintonia com a cidade. Falamos da cidade não

apenas associando-a aos eventos, em especial da esfera religiosa, mas, também, à sua vida

cultural e com as pessoas, protagonistas anônimos que encontrávamos na rua, no mercado,

nas igrejas, nos bares, restaurantes, dentre outros espaços citadinos.

Acreditamos que a inquietação que permeia a vida dos estudiosos do universo das

ciências humanas e sociais foi nos conduzindo a querer conhecer mais e mais esse caráter da

cidade de Canindé. Em muitos dos trabalhos que orientamos, foi feito o acompanhamento aos

estudantes em suas atividades de entrevista. Neste processo, tivemos o privilégio de conhecer

pessoas fantásticas, como a mestra Dina Vaqueira, e o mestre Getúlio, o sineiro da Basílica40

.

Os temas dos trabalhos dos aprendizes versaram sobre os mais diversos assuntos.

Tinham, contudo, um elemento comum, ou seja, guardavam consigo o desejo de revisitar

aspectos da história da cidade. Assim, acompanhamos trabalhos que se dedicaram a estudar:

as igrejas do centro histórico, o museu, os mestres da cultura, irmandades religiosas, o mês

mariano, as ruas da cidade, os índios kanindés, o mercado velho, as potencialidades turísticas

da cidade etc. Três deles nos tocaram de maneira bem profunda.

O primeiro, que buscava compreender o acolhimento promovido pelos moradores

da cidade, aos romeiros durante a festa de São Francisco. O segundo estudou a construção do

imaginário social da figura de São Francisco, por meio das missivas enviadas pelos romeiros.

O terceiro, e mais recente, realizou estudos sobre dois terreiros de culto de matriz africana em

Canindé.

40

Os dois canindeenses são Mestres da Cultura Popular, titulação concedida pela Secretaria de Cultura do Estado

do Ceará.

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102

Ao todo, foram 15 trabalhos que orientamos e duas dezenas de bancas de

avaliação de outros trabalhos orientados por colegas professores. Esse exercício nos levou ao

contato com as obras de nossos investigados. Mesmo que a aproximação com tais sujeitos

tenha ocorrido posteriormente, por meio de nosso estudo, percebemos que, até o ano de 2014,

o Instituto Memória de Canindé havia registrado a produção de mais de 40 títulos sobre

aspectos da história da cidade. Uma visão atenta para os trabalhos de nossos alunos, iniciados

com as primeiras turmas, o que foi repetido seguidamente, é que três nomes se destacavam no

cenário da cidade: Pe. Neri, o que há mais tempo tem se dedicado à arte da escrita, em

especial de escrever sobre história, Augusto César e Júlio Cezar.

Em algumas situações, os alunos já chegavam de posse de algumas das obras,

enquanto outros traziam referencias do Blog e, o mais curioso ainda, chegavam a trazer

passagens de conversas tidas com eles, visto que todos estavam vivos e se colocavam como

disponíveis para atender a todos os que os procuravam.

Figura 11 - Citação de Júlio Cezar e Augusto César em trabalho do IFCE (CASTRO,

2017, p. 25,22.)

Fonte: CASTRO, 2017, p. 25,22.(Trecho da obra referida )

Acreditamos que esse arrazoado de elementos destacados possa evidenciar a

magnitude que a ação desses homens tem para com a realidade da cidade. Se, por largo

tempo, suas participações em eventos institucionais, como a leitura de suas obras, estiveram

por algum tempo circulando nas escolas de educação básica, com a chegada do IFCE, a oferta

dos cursos de graduação e de especialização, até o momento, conseguiram fazer com que a

produção desses autores passasse a ser vista, como transposta aos domínios da cidade.

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103

Uma monografia da aluna Glecy Anne Castro41

, que discutia a convivência do

homem com o semiárido, traz na primeira parte do texto a utilização de imagens e

informações coletadas junto ao Blog “Memórias de Canindé”, cujo autor é Júlio Cezar. No

mesmo trabalho, a aluna transcreve trechos da entrevista concedida por Augusto César,

realizada defronte à sua loja no Mercado Municipal, espaço onde ele passa suas tardes entre

leituras, anotações e atendimento às pessoas interessadas em conhecer a história da cidade.

A passagem descrita anteriormente nos indica que o trabalho desses autores tem

de fato contribuído para a formação de outras perspectivas sobre a cidade. Embora não

estejamos a tratar de trabalhos de cunho essencialmente histórico, o trabalho realizado sob o

âmbito institucional tem a chancela de um documento público, que se encontra disponível

para todo e qualquer interessado, constatamos que as tarefas de nossos investigados ganham

mais e mais notoriedade.

Figura 12 - Júlio Cezar falando sobre História de Canindé

Fonte: Facebook (2017)

No que se coloca com os aspectos de um comportamento de disponibilidade,

vemos que nossos arautos se expõem a qualquer desafio lançado pela comunidade. Vemos, no

quadro a seguir, duas imagens divulgadas por Júlio Cesar em seu perfil no facebook, a

primeira ela está em sua casa recebendo os alunos da Escola Frei Policarpo e a segunda, e

uma das muitas chamadas que o mesmo apresenta, sobre marcas da história da cidade.

41 CASTRO, Glecy Anne. As estratégias de convivência no semiárido cearense: O caso do Assentamento

Santana da cal em Canindé/CE (Monografia de Especialização). Referido trabalho foi orientado pelo professor

Ivo Luís Oliveira, e teve como avaliadores os professores: David Moreno Montenegro e Odilon Monteiro da

Silva Neto. Foi realizado como requisito final do Curso de Especialização em Planejamento e Gestão de

Políticas Públicas do IFCE campus Canindé, que agora está em processo de inscrição para a 2ª turma.

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104

Tomando como base a formação das novas gerações, percebemos uma

singularidade, reiterando o caráter de uma cidade que lida o tempo todo com as marcas da

memória. Em 2017, o Governo do Estado do Ceará, por via da Secretaria de Educação Básica

do Estado, em acordo com a nova regulação do ensino médio, criou as escolas de tempo

integral42

.

Nesse novo formato de funcionamento do ensino médio, além das disciplinas em

caráter obrigatório, há um conjunto delas que compõe o itinerário formativo a ser escolhido

pelo aluno, chamadas de eletivas. Na atual Escola Capelão Frei Orlando, uma das disciplinas

eletivas foi denominada de Viajantes da História, se dedica aos estudos de aspectos sobre a

literatura de Canindé. Assim, muitos dos integrantes do Instituto Memória de Canindé foram

convidados a contribuir nesse projeto. No quadro a seguir, Augusto César fora convidado a

dele participar, tendo como tema para discussão: Literatura de Canindé.

Na cidade onde as narrativas de história se propagam como ondas, registramos

mais um momento em que os memorialistas são convidados a falar sobre seus estudos,

escritos e percepções. Durante o ano, em especial no decurso dos festejos de São Francisco, as

várias emissoras de rádio da cidade dedicam quadros inteiros para falar sobre a História da

Festa e outros aspectos relativos ao Município.

O invento de Marconi,43

oriundo dos tempos da chamada Segunda Revolução

Industrial, ganhou grande dimensão no Brasil nos anos 30 do século XX, em especial, com as

práticas políticas definidas pelo Estado Novo, que buscou integrar o País, através do rádio.

Num tempo, em qu euma parcela significativa da população está conectada às

redes sociais, onde os portais de notícias divulgam informações das mais diversas, em

Canindé, como em muitas cidades brasileiras, o rádio continua dominando a cena da cidade.

42

De acordo com as Metas do Plano Nacional de Educação (PNE), se encontra a criação das escolas de tempo

integral (Meta 06). No Ceará as primeiras experiências iniciaram em 2016. Em 20 de julho de 2017, o Governo

do Estado do Ceará, institui a LEI 16.287, que define a Política de Ensino Médio em Tempo Integral na Rede de

Educação Estadual. Como marcas desta política, destaca-se: Carga horária de 45 horas semanais e o currículo

flexível. De acordo com as Metas do PNE, é que pelo menos metade das escolas de ensino básico, ofereçam

ensino em tempo integral, atendendo a no mínimo 25% dos estudantes. 43

Guglielmo Marconi foi um físico e inventor italiano, inventor do primeiro sistema prático de telegrafia sem

fios, em 1896.

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Figura 13 - Augusto César na Escola Capelão Frei Orlando

Fonte: Facebook (2017)

Assim, ocorre com as rádios locais, visto que em Canindé, temos rádios privadas,

como a Aquarela FM, FM Líder, Rádio Jornal, como também a Rádio São Francisco e a FM

Santa Clara, equipamentos da Igreja de Canindé. Sendo assim, é através das rádios que são

anunciadas ofertas de emprego, realizadas campanhas beneficentes e de publicidade, são

localizados pessoas e documentos, as instituições de ensino divulgam cursos e ações, ou seja,

tudo o que acontece na cidade passa pelas ondas do rádio. No quadro a seguir, mais uma vez,

Augusto César se encontra na Rádio Aquarela FM, falando sobre A história da festa de São

Francisco.

Conforme apresentamos nesta seção, é um elemento concreto o reconhecimento

da obra dos memorialistas de Canindé. Embora algumas percepções possam considerar a obra

desses homens como uma obra menor, ou a acusarem de não possuir caráter cientifico

acreditamos que a ação desses homens contribui, de modo efetivo, para a realização de um

pressuposto básico que é fazer com que as pessoas tenham interesse pelos temas de História.

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Figura 14 - Augusto no programa dirigido pelo radialista Assis Vieira, da Aquarela FM

Fonte: Facebook (2017)

Figura 15 - Alguns dos títulos de nossos elencados

Fonte: Elaborado pelo autor

Constatamos que, nos sertões de Canindé, homens que não se apresentam sobre as

vestes de intelectuais conseguem sensibilizar as pessoas comuns, como também um público

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marcado por acesso a um nível de leitura especializado. Sem a preocupação da ditadura do

mercado editorial, como das exigências dos formalismos das tradições letradas, vão, dia após

dia deixando suas marcas, quer sejam nos suportes tradicionais de tinta e papel quer seja nos

circuitos das mídias digitais.

Vemos n atual configuração da sociedade brasileira o sucesso de público que tem

as produções de jornalistas, a exemplo de Laurentino Gomes, como também de historiadores

profissionais, onde destacamos Mary del Priore, autora de dezenas de livros que, com sua

sensibilidade e inteligência, cativa públicos para as leituras de temas históricos.

Numa demonstração de reconhecimento por parte da comunidade canindeense,

mostramos a seguir, calorosa homenagem prestada pela Escola Capelão Frei Orlando durante

o desfile do 07 de setembro de 2017, onde um dos pelotões da escola desfilou tendo como

temática a Literatura de Canindé, destacando assim, a produção dos autores, que tem a cidade

e a devoção ao Santo de Assis, como patrimônio maior.

Figura 16 - Homenagem aos Escritores de Canindé

Fonte: Facebook (2017)

No conjunto de ações que envolvem os escritores com sua terra, apontamos uma

vivência conjunta de Pe. Neri Feitosa e Augusto César, ocorrida em 06 de junho de 2017,

quando percorrermos o caminho entre a Sede do Município de Canindé até a serra da

Mariana, lugar do nascedouro do rio Canindé. Esta travessia está descrita num dos

documentos mais consultados por nossos memorialistas. Durante os trabalhos da Comissão

Científica no Ceará, esta fez investigações em Canindé, e os relatos de Freire Alemão

evidenciam distintos aspectos que compunham a cidade que ele encontrou.

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Conforme apontamos nas páginas iniciais, os relatos de Freire Alemão (1861), e

os de Thomaz Pompeo de Sousa Brasil (1864), se colocam como referências nos estudos de

nossos arautos. Destacamos a seguir, passagens dos dois documentos.

Informações dadas pelo sr. Antônio da Cunha Marreiros, nascido em 1785, na

ribeira do Canindé.

Sendo êste lugar denominado S. Gonçalo sem que êle, sem que ele tenha lembrança

de ter havido aqui fazenda alguma.

Não sendo compreendida uma porção de terras na margem do Canindé ao lado

esquerdo, foi esta sendo aproveitada para se fazer o templo de S. Francisco das

Chagas. Uns sujeitos do Jaguaribe, chamados se bem se lembra Pais Calaças,

puseram demanda querendo fazer-se senhores destas terras; mas por morte deles,

cessou essa questão.

Em 1780 e tantos, de que tem lembrança o nosso informante, não havia neste lugar

uma habitação.

Francisco Xavier de Medeiros, português morador em Pirangi, foi quem teve a

iniciativa de se fazer aqui uma igreja, com esmolas e auxílios, dos moradores.

Principiou-se a fazer a igreja em 1789. Foi seu primeiro capelão o Padre João José

Vieira; não se sabe quando se disse a primeira missa.

Durante a seca de 1792 houve uma parada nas obras, que continuaram

depois.(ALEMÃO CISNEIROS, 1861, p. 226).

Conforme indicamos, os registros de Freire Alemão sobre o Ceará estavam

relacionados aos Estudos da Comissão Científica (1859-1861). Pouco tempo depois, Thomaz

Pompeo de Sousa Brasil elaborou seu “Ensaio Estatístico da Província do Ceará”, já

produzido por uma inteligência cearense, no capítulo Município e freguesia de Canindé.

Destacamos duas seções: Hydrographia e Villa de Canindé. Assim, temos:

O rio Canindé, que nasce na serra da Marianna, banha a vila e depois de engrossado

pelos affluentes, Souza, Longá, Sanct’Anna, Poço da Egua, Sariema, Capitão-Mór e

Batoque, despeja no Curú, que nasce na serra do Machado, corta o município, e

recebe as ribeiras Perdição, Pedras, Xinogué e Tijossuóca.(1864, p.167)

Villa de Canindé. __ É um povoado importante, situado à margem esquerda do rio

de seu nome, e com boas casas: tem um rico e elegante templo dedicado a S.

Francisco das Chagas, cujos milagres atrahem anualmente grande número de

peregrinos de todas as partes, que ofertam ricos oblatos, o que eleva o rendimento do

patrimônio da matriz a 2:000$ annuaes. Há na vila 2 escolas, uma para cada sexo, e

um cemitério. Dista da capital pelos caminhos comuns 30 leguas.(idem, p.168)

Augusto Cesar, Júlio Cezar e Pe. Neri dedicaram especial atenção aos registros

deixados por estes dois nomes que ajudaram a compor um pensamento sobre a ideia de Brasil.

Pe. Neri, elaborou um pequeno ensaio descrevendo a figura de Freire Alemão e a contribuição

de suas impressões para o entendimento da História de Canindé.

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Figura 17 - Visita a nascente do Rio Canindé – Serra da Mariana

Fonte: Facebook (2017).

No quadro da direita, estão destacados os comentários de Pe. Neri, sobre o texto

que escrevemos desta aventura que buscou refazer o caminho dos exploradores da Comissão

Científica do Império (ver texto no apêndice B). Passado mais de um século, é possível

observar que, para muitas das populações do Brasil, a realidade pouco se transformou. O País

se configurou como uma das nações mais ricas do globo. Esse modelo de desenvolvimento

não se traduz de modo republicano a grandes massas do povo brasileiro.

Se no passado, entretanto, este olhar sobre Canindé fora constituído por quem

veio de fora, de longe, hoje a cidade pode ser compreendida pelo esforço dos seus. Mais uma

vez, afirmamos a relevância da ação desses homens, sobre o grandioso ofício que traduz a arte

de escrever histórias. Esta ação é expressa no sentido de reconhecer o trabalho destas figuras

humanas, que, por décadas, dedicou um esforço singular para que as imagens da cidade sejam

compostas em narrativas.

Em nenhum momento deste trabalho, houve a intenção de criar alguma

modalidade de hierarquia, entre este modo de pensar a História dos memorialistas e as ditas

tradições dos saberes definidos sob o cânone da ciência. Assim, como aqueles que

construíram a história desde as passagens de Heródoto, no século V a.C, aquele sentimento de

ir em busca de testemunhas, de fragmentos e vestígios da trajetória humana, tem motivado

incontáveis gerações de homens no tempo e no espaço.

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Que no lugar de promover um ranque entre tradições de saberes diferentes,

possamos promover aproximações e assim fortalecer na sociedade o reconhecimento do saber

histórico como base para as transformações sociais, em especial, no caso do Brasil, uma

sociedade tão marcada pelas desigualdades, gestadas ao largo decurso de nossa formação.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na passagem por vários espaços que compõem o modal dos estudos

acadêmicos em nosso Estado, escutamos dentre as muitas questões, uma delas que versava

sobre o sentido de encerrar os trabalhos. Alguns dizem que as terefas universitárias, nunca

serão concluídas, de sorte que o ideal é apontar considerações finais. Outros já reiteram que

não. Tudo, ao seu modo, segue o regime ditado pela existência. Todo trabalho resulta em

conclusões.

Em meio a isso, então ouvimo nas narrativas, uma passagem ligada ao pensador

Giogio Agamben, exprime a ideia de que os trabalhos científicos, num dado momento, o

pesquisador os abandona, visto que eles estariam sempre prontos a serem modificados ou

acrescidos. Talvez esse pressuposto esteja em sintonia com outro italiano, tão significativo

para o mundo cientifico, Umberto Eco, o qual concebia que todo dia estaríamos a reescrever

as mesmas coisas, de modo diferente.

Trago as passagens desses pensadores, não para traduzir créditos a estas palavras

que encerram nosso trabalho, mas pelo fato de reconhecer, que é um elemento complexo

recortar do quadro amplo de nossas experiências um objeto qualquer, iniciando esforços para

ampliar a sua compreensão.

Não há novidades em promover estudos sobre a produção dos memorialistas. Em

grande parte deles, o sentido é de situá-los como um saber, ou uma produção reduzida ante

aos estudos feitos pelos historiadores profissionais. É comum a produção destes autores ser

tomada como fonte, quando não são encontrados estudos sobre referidas temáticas. Nossa

intenção, no entanto, era compreender como, de fato, estes homens haviam se aproximado

desse ofício: de que maneira poderíamos usar os saberes da ciência para, assim, qualificar o

seu trabalho.

Percebendo o memorialismo como uma modalidade de historiografia, que não se

expresse de modo simples, do contrário, o quadro da narrativa de cada um deles está cingido

por uma série de pressupostos desse modo de fazer ciência que a academia tanto reafirma em

seus discursos. No caso da tradição em história, a ideia de fonte, de documentos, de busca e

compromisso com a verdade, também move o sentimento desses protagonistas.

Assim identificamos, no caso focalizado, o fato de que a cidade está inscrita numa

atmosfera, cujas relações com a memória, com a história de origem do lugar, se conjugam

como um elemento da vida tais pessoas. E os esforços para se configurar essa história, no caso

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de Canindé, não é algo novo. As primeiras produções já contam mais de um século de

existência. Na realidade da cidade, que reatualiza cotidianamente essa memória da devoção a

São Francisco, distintas gerações esforçam-se por lançar outras visões sobre como tudo isso

começou, e de que modo o tempo passou, e esse sentimento da memória religiosa, só vem a se

ampliar.

De tal sorte, os autores permanecem ao seu modo, na busca de reatualizar esse

itinerário de sentidos da cidade. Isso é demonstrado, pois vemos, quase cotidianamente, esse

cuidar para que novas informações, outras percepções estejam a chegar a um número mais

amplo de pessoas.

Conforme ressaltamos, nenhum dos elencados se anuncia que chegou ao fim de

seus trabalhos. Pelo contrário, vemos o passar dos dias com novos desafios sendo transpostos

por esses homens. Augusto César trabalha na atualização de seu livro “Viagem pela História

de Canindé”, e já tem um outro livro de Crônicas para ser apresentado. Recentemente,

recebeu da viúva do senhor Francisco Magalhães Karam todo o acervo de imagens e

documentos que ele o guardava. Agora, Augusto tem novo acervo de material que,

certamente, lhe renderá novos trabalhos.

Júlio Cezar, também, continua a visitar lugares e está sempre a divulgar novos

achados, garimpados de modo cuidadoso em suas andanças pela cidade. Pe. Neri lançou mais

recentemente um texto sobre a serra da Mariana, comunidade onde ele está em atividade para

tornar o espaço dedicado ao recolhimento de materiais fósseis em um Museu de

Paleontologia.

Percebemos que para esses homens que não têm essa ação como atividade

profissional, e fazem isso de modo espontâneo, a cada dia de suas experiências individuais,

novos elementos são expressos. Sendo assim, essa atividade poderia ser comparada ao desafio

de Hércules, ao vencer a Hidra de Lerna. Como na história mítica, de cada cabeça destruída,

nasciam duas.

Assim, os autores demontram novas impressões sobre a cidade, outras

inquietações se colocam e eles prosseguem, cada um dentro de suas possibilidades, a oferecer

aos leitores, novas narrativas sobre a lugar, que hoje figura dentre os roteiros mais visitados

do País. Que estas ações possam despertar, outras visões e contribuir para que os elementos da

vida cultural possam, de fato atuar de modo a promover o desenvolvimento do lugar.

A atividade científica não deve se julgar como um elemento prioritário a um

retorno imediato à sociedade. Podemos ter ações que fujam deste enquadramento. No caso

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sob exame, mostramos à comunidade um itinerário dos percursos que constituíram a ideia da

cidade de Canindé, ao quadro que ela é hoje, o de maior Santuário Franciscano das Américas.

Partindo do que temos hoje, observamos que essa construção resultado de um

enorme percurso de esforços realizados sob a ideia de uma inteligência cearense, que edifica,

um pensamento social sobre a terra e o povo do Ceará. Com efeito, se, no primeiro momento,

os registros foram deixados por viajantes de outros lugares do País, o Ceará e Canindé,

projetaram um quadro de entendimento sobre sua história.

Ao iniciar a investigação, percebíamos indicações do alcance social da obra de

nossos investigados. Chamava nossa atenção a quantidade de sujeitos dedicados à arte de

contar as histórias da cidade, sob os mais diversos ângulos. Dedicamos, pois, uma atenção

especial a compreender, à luz dos saberes da tradição acadêmica, num feito conceitual capaz

de indicar as dimensões dos trabalhos realizados pelos moradores memorialistas.

Percebemos que este é o primeiro ponto de diferenciação de outros trabalhos que

têm como base a obra deles. Outro ponto importante a ressaltar, está no fato de que todas as

impressões sobre o sentido das obras e as percepções dos autores acerca da ideia de História

têm como base os depoimentos, marcados no domínio de seus escritos. Embora tenhamos nos

aproximado de práticas etnográficas, optamos por identificar as falas e visões de cada um

deles no curso de suas produções e não por intermédio da metodologia de História Oral.

A cidade que se desenvolveu à luz da memória devocional a São Francisco tem o

seu cotidiano marcado pelo sentimento de revisitar essa memória. Esta razão, certamente

atuou no tempo como elemento catalisador, para que estas memórias não fossem apagadas e

as novas gerações tivessem contato com estas narrativas, prosperandode modo a reforçá-las.

Se comparada a outras cidades, Canindé se destaca pelo número expressivo de

memorialistas, como também pela quantidade de textos produzidos por estes. Tal condição

resultou na possibilidade de as experiências escolares dedicarem um espaço para os estudos

de uma “Literatura Canindeense”, que permitiu duas grandes contribuições a esta

comunidade. A primeira delas é reconhecer a história da cidade, como um elemento

indispensável à formação das gerações, enquanto a segunda, radica em materializar na prática

o quadro de reflexões teóricas advindas da academia, ao apregoarem a noção de que a

História é um bem de todos, e deve estar acessível, não sendo um privilégio de determinados

grupos sociais.

Acreditamos que a ação mais expressiva dos trabalhos desses homens/mulheres de

Canindé, se expressa não em um sentido de realizar uma atividade puramente instrumental,

que, a qualquer momento, pode ser consultada por quem manifestar interesse, como ocorre

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com as centenas de trabalhos produzidos anualmente pela comunidade científica brasileira.

Do contrário, as pessoas comuns estão a ouvir, a ler, a narrar nos vários espaços da cidade

esse conjunto de memórias, que fazem parte da história do lugar. O trabalho realizado por

nossos memorialista, tem um sentido orgânico, vivo, pois não encerram um caráter de fim,

demontrando um sinete teleológico, uma finalidade, que é manter a cidade viva, com os

elementos de suas origens e das transformações ocorridas no lato espaço temporal.

Pretendemos que este trabalho concorra para a realização de novas reflexões nos

quadros da História de Canindé, como também nos registros da Historiografia cearense.

Manifestamos nosso apreço e estima a todos estes arautos que, em grande parte, figuram

anônimos nos vários cantos do País, mas que, em Canindé, protagonizam e se mostram como

exemplos a serem seguidos pelas novas gerações. Seja usando tinta e papel, ou nos suportes

digitais, a História se apresenta como um atributo humano, e, por isso, deve ser sentida, como

a figura do Jano, eles têm um olhar voltado para trás e outro para a frente, o que torna esse

ofício uma atividade incessante.

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SOUSA LEMOS, José de J. Mapa da Exclusão social no Brasil: radiografia de um país

assimetricamente pobre. 3. ed. Fortaleza: BNB, 2012.

WILLEKE, Venâncio. Origem da devoção a São Francisco das Chagas de Canindé.

Fortaleza: IHGACE, 1959.

_______. São Francisco das Chagas de Canindé. Resumo histórico. Canindé: Arquivo

paroquial, 1973.

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APÊNDICES

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APÊNDICE A - Um dia, muitas imagens: revistando velhos caminhos ...

No primeiro momento, as impressões são das emoções trazidas pelas narrativas do

velho professor de Arqueologia que o cinema imortalizou, Sr. Jones, ou Indiana Jones. No

que tange a experiência da inteligência brasileira, na busca de descobrir o Brasil, tivemos a

famosa Comissão Científica, conhecida como Comissão das Borboletas, que, sob designação

de Pedro II, se embrenhou por um Brasil que necessitava ser registrado, na ideia do Brasil

oficial. Assim também, o velho “problema” da seca, que na experiência brasileira se constitui

como calamidade, tivesse suas causas investigadas, como também o apontamento para

melhoria dessas condições.

Sob as palavras de Freire Alemão, a Comissão passou por Canindé, e nestas paragens

foram feitas muitas notas. Um dos elementos nos chama atenção, que é o lugar da nascente

do rio de nome Canindé, que fez valer a toponímia da cidade. O rio Canindé tem origens num

lugar distante do que hoje é a sede do Município, mas que, entre o passado e o presente, o

acesso se mostra ainda difícil. Os estudiosos foram em lombo de animais, até o conjunto de

serras, que recebera o nome da sesmeira, da Sesmaria de número 427, que se chamava

Mariana Pinhoa de Brito.

Assim numa manhã de sol, tivemos a oportunidade de refazer uma parte dos itinerários

desses estudiosos, na companhia de duas grandes personalidades da cidade de Canindé, a

Meca Franciscana, como assim a denomina Augusto César Magalhães Pinto, personalidade

agradável que tem dedicado parte de sua vida à leitura e aos estudos sobre a história de

Canindé e a temas diversos. Cotidianamente, Augusto, dedica parte de suas tardes a pousar na

calçada de seu comércio no Mercado Central da cidade, em meio a leituras, e recebe sempre

muita gente interessada em conhecer sobre a história da cidade. Por lá passam estudantes com

os mais variados interesses, além de pessoas que desejam sua presença em determinados

espaços, em especial, os educacionais, para falar de temáticas relativas à história do lugar.

A outra personalidade é o Padre Neri Feitosa, que, mesmo não sendo natural de

Canindé, assumiu a cidade como sua, e, em mais de três décadas vividas lá, empreendeu

esforços para produzir narrativas que ajudassem a comunidade a conhecer sobre suas origens.

Hoje não mais desempenhando atividades sacerdotais em termos burocráticos, Pe. Neri se

coloca à disposição de todos os interessados em conhecer seus escritos, sobre diversos

aspectos da história e da memória do lugar, sendo o fundador do Instituto Memória de

Canindé, onde se registram dezenas de publicações.

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Assim, ao nos aproximarmos do Religioso, tomamos contato com as memórias desse

lugar, onde se encontram as nascentes do rio Canindé, que se tornara objeto de investigação

desse autor. Assim, nos conta Pe. Neri, que ao entrar em contato com a referida comunidade,

ficou inquieto em descobrir ter sido a tal Mariana que, por muitoss anos, fora o nome que

definira o conjunto de serras constituintes da paisagem natural. Os moradores diziam, que

Mariana, “foi uma mulher que morreu de fome”. Então, Pe. Neri investigou e descobriu que

se tratava de alguém que fora dona um conjunto de terras, registradas como a Sesmaria 427.

Diante de nossa curiosidade e interesse sobre estes temas, nos empenhamos em

realizar um itinerário pelo local, na companhia dessas duas figuras, que têm pela ciência de

Heródoto, um apreço e uma paixão incomuns. Assim, realizamos o percurso, saindo da Sede,

a bordo da supermáquina de Augusto Cesar, e desde a partida, tivemos o contato com um

número ampliado de discussões sobre o sentido de construção do que hoje é a cidade de

Canindé.

Entre estradas oficiais, asfaltadas,, definindo-se como expressão do mito de progresso

e desenvolvimento, passamos por estradas de terra, como tão bem descreveu Capistrano: -

“Caminhos antigos”, que hoje não recebem apenas as marcas dos cascos de boi e das

montarias, mas que, com dificuldades, os veículos de maior porte, são capazes de encarar.

Assim como as motocicletas, bens que cada vez mais se tornam comuns nos deslocamentos

das populações com menor poder aquisitivo, que, em meio às mudanças substituíram as

montarias por motos, visto que o tempo passou e não foram criados sistemas de transportes

públicos.

Num percurso de quase duas horas, em meio a paradas e comentários, chegamos ao

que se coloca como sede da comunidade da Serra da Mariana. Numa região plana, encontra-se

uma capela dedicada ao Coração de Jesus, que, nos levam a fazer duas pequenas reflexões: a

primeira sobre a presença da igreja no Brasil, instituição que conferiu uma espécie de caráter

à formação do Brasil e ao povo brasileiro. A segunda é o culto ao Coração de Jesus, que nos

indica, os sinais de um Cristianismo voltado para as determinações romanizadoras.

Lá nossa primeira visita foi a um espaço ainda em construção: o museu de fósseis da

serra da Mariana, idealizado pelo Pe. Neri. Ao chegar lá e perceber um conjunto de elementos

líticos diferentes, o Religioso empreendeu um esforço em construir um espaço físico, para

abrigá-las e hoje aguarda a visita dos estudiosos do Departamento Nacional de Produção

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Mineral, para que se tenha dimensão dessa riqueza, como também para que o patrimônio ali

possa ser fonte de estudos por interessados e curiosos.

De lá seguimos, num deslocamento de carro, e depois a pé, em direção às nascentes do

rio. E essa travessia nos aproxima das ideias do “Brasil Sertanejo”, de Darcy Ribeiro, onde o

brasileiro, em meio ao seu poder de criar e conviver com as adversidades, vive num Brasil

que, em parte, parou no tempo; as estradas, as construções das casas, um certo ritmo de vida

das populações locais. Segundo os moradores, lá as pessoas não costumam trancar a porta das

casas.

Vemos nas casas, o uso de energia elétrica e, em algumas sinais de TV, que nos levam

a refletir sobre o fato do modelo de desenvolvimento imposto a milhares de brasileiros, que

vivem em grande parte como nos tempos da colonização. O contato com a naturezano

entanto, nos proporcionou além do encantamento, conhecer pessoas que vivem em grande

sintonia com a terra, produzindo quase tudo de que necessitam para sua subsistência.

Numa das experiências mais marcantes desse modo de viver, destacamos a visita a um

pequeno produtor. Ao chegarmos lá, ele separava um belo feijão maduro das vagens,

produzido ali, sem a sorte do que se chama o tal Agro. Nada de agrotóxico. E de lá seguimos

para conhecer in loco as colmeias do pequeno apiario. E, pela primeira vez, experienciamos o

que em linguagem sertaneja se chama comer o “mel no cacho”, o mel nos favos, coletado de

forma simples, e nos servido com tamanha generosidade pela sociabilidade sertaneja.

Após registros, percursos e imagens voltamos à Sede da cidade, vendo rostos

anônimos, embalados por um horizonte de expectativa, quase igual aos de seus antepassados.

Outra parada se deu já nas proximidades da Sede, num restaurante de beira de estrada,

chamado de “Zé Baderna”. Em meio ao nome, que soa como “politicamente incorreto”,

saboreamos uma galinha caipira com pirão. Essa, junto com o mel no cacho, traduzem

imagens de um Brasil, de cores, aromas e sabores, mas que é, esquecido pela lógica do Brasil

oficial, cujo modelo de desenvolvimento não envolve milhares de brasileiros.

Encerramos essas palavras, agradecendo a generosidade de Augusto e Pe. Neri, que no

conjunto de suas atividades diversas, se dedicam, a fazer com que estas narrativas do Brasil

sejam conhecidas.

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APÊNDICE B - As comemorações do bicentenário da paráoquia em canindé.44

Acreditamos ser de grande relevância as comemorações que marcam o bicentenário da

criação da paróquia de Canindé. Dentre as grandes inteligências que pensaram o Brasil,

incluso o cearense Capistrano de Abreu, já chamda atenção para que, antes de se escrever uma

síntese da história do Brasil, haveria a necessidade de se formular uma História da Companhia

de Jesus, primeiro grupamento que divulgou o ideário cristão nas terras que seriam

denominadas de Brasil.

Deste modo, foi implementado nas vastidões do território do novo País um conjunto

diverso de experiências religiosas, tendo a igreja católica como cicerone desse processo.

Mesmo de modo singular, a igreja justificou com suas ações, visto que, durante vasto tempo

da formação histórica e social do Brasil, Igreja e Estado se configuravam como faces de uma

mesma moeda.

No caso focalizado, que podemos ter como elemento de analogia para outras

experiências, a igreja não participou no que diz respeito ao elemento patrimonial de cal e

pedra de suas edificações do nosso território. Em meio a uma sociedade gestada sob a égide

da escravidão, a igreja no processo de formação da sociedade brasileira, se colocou de

maneira a promover seus objetivos e a efetivar a prática da caridade cristã, através de um

conjunto de elementos para dirigir às populações carentes, o acesso a condições mínimas de

sobrevivência.

Assim, bem antes que o Estado brasileiro, colocasse em prática ações de

desenvolvimento, a igreja católica o faz de modos diversos, tendo nas terras, que depois

seriam denominadas de Nordeste experiências singulares, como as promovidas pelo Padre

Ibiapina e o Pe. Cícero Romão Batista. Desta feita, às terras de Canindé, cidade formada em

torno da devoção a São Francisco das Chagas, a igreja se justificou por via de obras que

implicaram a melhoria das condições de vida das populações, não só da cidade de Canindé,

como também de municípios vizinhos.

Após dois séculos de atividades sistemáticas na referida cidade, podemos observar o

quanto a sociedade brasileira está presa ao passado colonial, com diversas marcas do atraso e

do mandonismo, mas que a cidade continua a contar em pleno século XXI, com equipamentos

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Por: Odilon Monteiro da Silva Neto, professor de História do IFCE, campus Canindé.

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públicos, que foram idealizados e gestados sob intervenção da Igreja, e que se colocam como

imprescindíveis para a existência da comunidade. Destacamos o Hospital da Cidade, que, no

ano das comemorações, agoniza pelo descaso do Poder Público em não reconhecer a saúde

como um direito social, que nos aproxima de fato de uma sociedade republicana.

Encerramos estas breves considerações reconhecendo a importância que a Igreja

Católica teve no que concerne à formação da sociedade brasileira, sendo suas ações de

enorme relevância para que as populações que historicamente têm seus direitos negados e

vivem suas vidas de modo a contar com as práticas cariativas, para manter-lhes a vida e a

esperança em dias melhores.