fissura na neblina -...

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NA FISSURA NEBLINA

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nafissura

neblina

Julia Pedreirafissura na neblina

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E aquelas dezenove pessoase três bombeiros ainda há pouco, também, existiam no mesmo momento e nesse mesmo momento sucumbiram.Diferente de mim, ocupavamalém do mesmo tempo,o mesmo espaço.Ocupavam o mesmo espaçoaté serem engolidas pelas chamas. Enquanto eu cantava, eramtrês horas da tarde, e eu cantava, eu ainda cantava, e o fogose alastrava, eram três horasda tarde.

Um dia cantei blowin’ in the wind e alguém disse que eram três horas - naquela noite quandoli o jornal, vi que tinham colocado fogo numa casinha e que três bombeiros e dezenove pessoas tinham morrido - o incêndio também tinha sido às três horas.Eu ainda cantando e essa casa ainda queimando. Eu cantandoe a casa queimando. Em frente a um fogo em fúria, eu não fazia nada quanto a esse fogo.Veja só.Tanto eu quanto dylan quanto o fogo estávamos no mesmo tempo. Essa era a única coisa que tínhamos em comum:existíamos no mesmo momento.

PREFÁCIO PREFÁCIO

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Tem vida que é noticiosaE ninguém acredita

Mesmo que a janela esteja aberta para a beira do mundo só se olha para aquele quadrado impresso de pequenas falhas

mas ali tem um corpoum som, um pedaço de osso

pois bemque fale

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O mundo está olhando paravocêsagora vocêsdeveriam estar orgulhososvocêscada um devocêslutou pela liberdade e pelademocraciavocêstodosvocêssão heróisvamos examinarvocêsquem nós temos debaixo de nósvocêse vamos colocar quem sobrapara fora

aqui vocês todos vocêse nenhum de nós

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Todo resto, caroço De bicho, cheiro de mofo No ouro.O absoluto sol numaÚnica mordidaO povo.

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Apontam para o mártir na praçauma estátua de mármore com punhos erguidosdiante dele, elevivocontemplando a si, um monumentoaté que apedrejam a pedramatam a estátuatomba o mortochora o mártirdiante da queda ao chãoum monumentodizadeus

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lá de cimaum idiota dizeu seiquem souo povo sabequem souminha imagem éo povo quem soueu souo povoencarno a massa, sou a massavocêszero vírgula zero zero umeu,tirano,um.

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E desde ontem eu penso:A terra pode se abrir a qualquer momento.pergunte

Como você vive

MalVocê me diz.

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Porque

as pessoasnãoestão nemaíse morre umde nósaíum louco mata policiaisaíprontotalvez esses crioulos sejam perigosos

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Se o sistema solar coubesse na ilha de Manhattan, o sol teria apenas trinta centímetros e a estrela mais próxima estaria a oito mil e oitocentos e cinquenta quilômetros de Manhattan:

em Belém.

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Cento e trinta e quatro mortes Quais os nomes?

Cento e trinta e quatro mortos Quais os nomes?

Cento e trinta e quatro homens mortos Quais os nomes?

Cento e trinta e quatro presos mortos Quais os nomes?

Cento e trinta e quatro corpos mortos Quais os nomes?

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Dentro do balde tem um órgãoum coraçãoFora do corpoFede

São seis e dezEm Manaus

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o caminho mais rápido para se chegar ao ponto mais distante num voo direto é lançar-se em direção ao ponto mais próximo

afinal, a lua nunca está no mesmo lugar no céumas ela é sempre a mesma para qualquer um que a olhe de qualquer ponto da Terra

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uma avalanche pode ser provocada pela vibração do ar que acompanha um ruído intenso

foi o que aconteceu quando eles gritaram:

nós vamos parar

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Não tem centro, ela vem de um lado e vai para o outro é como se não tivesse começo nem fim tudo é branco e imediatamente não é uma espécie de ser ou não ser contínuoDiante dela, nos calamosÉ a questão de todosUma bandeira esbravejae nada diz.

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Cabum!Escutei.Saí correndo e quase tropecei Era o corpo de uma mulher Parecia morta, não respirava.Vi um osso saltando da perna;O rosto não tinha pele. Por um segundo, lembrei minha irmã.Quis chorar. O cardápio na minha mão, corri e o lancei longe.Estava no Dunkin’Donuts,olhando o menu,quando escutei. Cabum!Parecia aquelas coisas que a gente vê na Síria. Minha irmã.Chorei.

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cada vez que a maré sobe três metrosos continentes se elevam quinze centímetrosa atmosfera incha muitos quilômetrosas fronteiras dilatam alguns milímetroscada um de nós perde algumas gramas de pesomas poucos ganham algum pedaço de terra

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O tempo percorreu o espaço para cair justamente alinaquela cúpula onde o sino badalava as horas metálicas e contínuasblen-blen, blen-blen

A partir de então, a única coisa que se podia fazer era olhar para frente.

E nada de horizonte.

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Trinta bilhoes de cometas já foram perdidosOu destruídossetenta bilhoes de partículas subatômicas expelidas pelo sol ainda permanecem voando

atentado!a voz falouSó dá para sair daqui morrendo. Deus é maior.Estica o braço para cima e atira.

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O mundoacaba onde você alcança o teto com as mãos.

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A primeira vez que ouvi falar não ouso dizer aquilo que ouço ainda não consigo dizer nem para mim nem pra ninguém

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Eu mordia um hot-dog enquanto Marlon Brando conversava comigo. O bar era pequeno. Eu tomei um gole da coca-cola do Marlon Brando e saímos do bar e olhamos para a luminosidade fraca da rua. Eu e Marlon Brando vimos as manchas na lua e a chuva forte que caía. Eu disse para o Marlon Brando que isso tudo era uma invenção do Agrippino que eu roubava. Marlon Brando me olhou e me disse que tudo que sabemos do céu é o que vemos da Terra. Eu disse para o Marlon Brando que eu não sabia nada sobre o céu. Ele me disse que tudo bem porque nunca vimos a Terra por fora e mesmo assim achamos que sabemos tudo sobre ela. Passamos na frente de um supermercado e eu fiquei com vontade de comer alguma coisa, qualquer coisa.

Perguntei se ele também queria comer alguma coisa, qualquer coisa. Marlon Brando me disse que essa coisa, qualquer coisa na história do Agrippino era pão doce recheado de creme. Eu fiquei com vontade de comer um pão doce recheado de creme. Eu entrei numa padaria e comprei um pão doce recheado de creme e ofereci um pedaço para o Marlon Brando. Marlon Brando se aproximou de mim, tocou com suas mãos as minhas e vi a boca do Marlon Brando abrindo e mordendo o pão doce recheado de creme. Vi a língua do Marlon Brando lambendo os seus lábios sujos de creme. Eu mordi a mordida do Marlon Brando no pão doce, e lambi meus lábios sujos de creme. Marlon Brando olhava para os meus lábios e eu olhava para os olhos do Marlon

POSFÁCIO POSFÁCIO

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Brando olhando meus lábios. Eu pensei porra o Marlon Brando está desejando meus lábios. Eu me aproximei do Marlon Brando e de olhos fechados abocanhei os lábios úmidos e carnudos com sabor de creme do Marlon Brando. Lembrei que o Agrippino disse que o pão doce é bom para matar a fome mas que a digestão é difícil. Pensei que tudo que é bom para matar a fome, a digestão é difícil, inclusive o Marlon Brando. Olhei o céu e pensei que eu sabia que ele era azul igual uma piscina e que tinha nuvens igual algodão doce. Eu pensei que eu não sabia como era a Terra por fora. Talvez redonda, talvez azul, talvez uma bola de gude flutuante. Eu pensei que pelo menos eu sabia agora como era o gosto do Marlon Brando e a textura dos lábios do

Marlon Brando e os movimentos da língua do Marlon Brando e o toque das mãos do Marlon Brando e o cheiro de suor do Marlon Brando e os olhos penetrantes do Marlon Brando e o Marlon Brando me penetrando e o ritmo do Marlon Brando dentro do meu ritmo e eu gozando com o Marlon Brando gozando dentro de mim e que se foda a terra o céu e o pão doce recheado de creme matando a fome.

POSFÁCIO POSFÁCIO

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FISSURA NA NEBLINA

poemas Julia Pedreiraedição Alexandre Barbosa de Souzaprojeto gráfico Marina Oruêfoto Douglas Garcia

São Paulo, janeiro 2018Membrana / www.membrana.info

esses poemas foram escritosa partir da reciclagem de notícias de jornais ao longo do ano de 2017

fonte Sporting Grotesque papel São Francisco 240 g/m2 e 80 g/m2

impresso em indigo na gráfica Forma Certa

Realização

MEMBRANA