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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ FACULDADE DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS E LETRAS DO SERTÃO CENTRAL MESTRADO INTERDISCIPLINAR EM HISTÓRIA E LETRAS ANDERSON COELHO DA ROCHA DE CATIVO A RÉU, DO JULGAMENTO A FORCA: ENFORCAMENTOS E CONTROLE SOBRE ESCRAVOS NA PROVÍNCIA DO CEARÁ QUIXADÁ CEARÁ 2019

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

FACULDADE DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS E LETRAS DO SERTÃO CENTRAL

MESTRADO INTERDISCIPLINAR EM HISTÓRIA E LETRAS

ANDERSON COELHO DA ROCHA

DE CATIVO A RÉU, DO JULGAMENTO A FORCA: ENFORCAMENTOS E

CONTROLE SOBRE ESCRAVOS NA PROVÍNCIA DO CEARÁ

QUIXADÁ – CEARÁ

2019

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ANDERSON COELHO DA ROCHA

DE CATIVO A RÉU, DO JULGAMENTO A FORCA: ENFORCAMENTOS E

CONTROLE SOBRE ESCRAVOS NA PROVÍNCIA DO CEARÁ

Dissertação apresentada ao curso de Mestrado Interdisciplinar em História e Letras da Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial para obtenção do grau de mestre em História e Letras. Área de concentração: Cultura, memorias, ensino e linguagens. Orientador: Prof. Dr. Tyrone Apollo Pontes Cândido.

QUIXADÁ – CEARÁ

2019

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ANDERSON COELHO DA ROCHA

DE CATIVO A RÉU, DO JULGAMENTO A FORCA: ENFORCAMENTOS E

CONTROLE SOBRE ESCRAVOS NA PROVÍNCIA DO CEARÁ

Dissertação apresentada ao curso de Mestrado Interdisciplinar em História e Letras da Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial para obtenção do grau de mestre em História e Letras. Área de concentração: Cultura, memorias, ensino e linguagens.

Aprovado em: 14 de fevereiro de 2019.

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À Família

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a minha família por todo o apoio e incentivo em todas as escolhas que fiz

até aqui, aos meus pais, Rosa e Amâncio o meu obrigado por tudo. As minhas irmãs

Solange, Janelane e Naele e meu irmão Amâncio. A vocês sou profundamente grato.

À minha companheira Tamires, por todo o carinho e, por sempre estar ao meu lado,

como uma das grandes incentivadoras das minhas escolhas. Obrigado por tudo.

Ao Prof. Dr. Tyrone Cândido pela orientação e confiança, obrigado por todo incentivo

e ensinamentos, sou profundamente grato por tudo.

Aos membros da banca, Dr. Eurípedes Antônio Funes e Dr. Manoel Carlos Fonseca

de Alencar por aceitarem fazer parte deste momento, pelas observações,

questionamentos e críticas.

À Luciana Reges pelos valiosos ensinamentos durante a escrita da monografia na

graduação e na construção do projeto que resultou nessa dissertação. Obrigado pela

amizade e por sempre torcer e vibrar em cada uma das minhas conquistas.

As colegas da segunda turma do MIHL, Fernanda Alanna, Lisiani e Laís.

À CAPES, pelo Financiamento da pesquisa.

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RESUMO

Durante a vigência do código criminal de 1830, a província brasileira do Ceará

registrou 24 casos de execuções públicas como forma de punição a delitos

considerados graves. Desse total, dezesseis dos condenados eram escravos. Ou

seja, 2/3 das penas de morte executadas recaíram contra o grupo dos cativos. Esta

pesquisa analisa a pena de morte enquanto mecanismo de controle social da

população cativa na província cearense no século XIX. Castigo exemplar, a pena

capital pública deveria servir de exemplo aos demais cativos, reprimindo a

participação em assassinatos contra senhores e seus familiares, além da participação

em insurreições. Para isso, as execuções ocorriam nas vilas onde habitavam os

condenados, mesmo que seu julgamento tivesse corrido por instâncias na capital da

província ou ainda por foros superiores, até chegar ao Conselho de Estado e a vista

do monarca, na capital do Império. Donos de escravos obrigavam seus cativos a

assistir às execuções, acompanhadas também por uma multidão de curiosos que a

tudo ficava atenta, registrando detalhes dos acontecimentos. A pesquisa utilizou

variados tipos de fontes, como processos crimes, a legislação penal, matérias de

jornais e documentos administrativos. O último caso de pena capital registrado no

Ceará deu-se em 1855, ainda que execuções tenham recaído sobre cativos de outras

regiões do Brasil até os últimos anos do regime escravista.

Palavras-chave: Enforcamentos. Controle sobre escravos. Província do Ceará.

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ABSTRACT

During the validity of the 1830’s criminal code, the Brazilian province of Ceará

registered 24 cases of public executions as a form of punishment for crimes considered

serious. Of these total, sixteen of those convicted were slaves. In other words, 2/3 of

the executed death sentences fell against the captive group. This research analyzes

the death penalty as a mechanism of social control of the captive population in the

province of Ceará in the 19th century. Exemplary punishment, the public capital

punishment should serve as an example to the other captives, repressing participation

in murders against masters and their families, as well as participation in insurrections.

To this end, executions took place in the towns where the condemned people lived,

even though their trial had run through the province capital or through superior forums

of the State Council and the monarch in the capital of the Empire. Slaves owners forced

their captives to watch the executions, accompanied by a curious crowd who kept an

eye on everything, recording details of the events. This research used several types of

sources, such as criminal processes, criminal law, newspaper articles and

administrative documents. The last case of capital punishment registered in Ceará

occurred in 1855, although executions fell on captives from other regions of Brazil until

the last years of the slave system.

Keywords: Hanging. Slave Control. Provence of Ceará.

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SUMÁRIO

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3

3.1

3.2

3.3

3.4

4

4.1

4.2

5

INTRODUÇÃO ......................................................................................

ENFORCAMENTOS..............................................................................

O CASO DO ESCRAVO FUISSET .......................................................

FORCA PARA OS ESCRAVOS............................................................

PROCISSÕES PARA A MORTE: O TEATRO DAS EXECUÇÕES.....

O CONTRATEATRO ............................................................................

CRIMES.................................................................................................

REVOLTAS............................................................................................

COTIDIANO, CRIMINALIDADE E TENTATIVAS DE CONTROLE

SOCIAL..................................................................................................

A CRIMINALIDADE ESCRAVA.............................................................

OS CRIMES DOS ENFORCADOS........................................................

TRIBUNAIS .........................................................................................

LEGISLAÇÃO E CONTROLE SOCIAL..................................................

ESCRAVOS RÉUS NOS TRIBUNAIS DA PROVÍNCIA CEARENSE..

CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................

REFERÊNCIAS ....................................................................................

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1 INTRODUÇÃO

Para aplicar a pena de morte, a sociedade deveria

ostentar a autoridade moral de não ter contribuído

em nada para fabricar esse criminoso.

Evaristo de Moraes Filho

Enfocada sob diversas perspectivas, a análise das relações escravistas é

um tema bastante recorrente nos estudos de história social. Os autores, de acordo

com seus referenciais teóricos e metodológicos, bem como dos diferentes contextos

históricos, estimularam a discussão de pontos fundamentais: demografia e famílias

escravas, economia da escravidão, revoltas cativas e quilombos, raça, nação,

abolição e pós abolição, para o entendimento do cativeiro em suas distintas formas

de ocorrência. As perspectivas de análise da história social da escravidão são vastas

e, permite avançar no conhecimento das estratégias de resistência e sobrevivência

dos cativos em seu cotidiano. Esta vertente percebe o escravo como sujeito ativo em

seu processo histórico. Tal entendimento veio se contrapor a uma visão que entendia

o escravo como um objeto destituído de vontade, incapaz de dar sentido as suas

ações.

No início do século XX, com a publicação de Casa Grande & Senzala de

Gilberto Freyre, surgiu o esforço de constituir a ideia de uma escravidão pacífica,

especialmente pela comparação que se fazia com outras sociedades escravistas:

“[d]esde logo salientamos a doçura nas relações de senhores com escravos

domésticos, talvez maior no Brasil do que em qualquer outra parte da América”

(FREYRE, 1966, p. 393). Nesse sentido, a miscigenação racial, analisada por Freyre,

proporciona elementos que favorecem o surgimento do mito de uma certa harmonia

das raças, a ideia de uma democracia racial. No cerne destas questões, o estudo

sobre a escravidão proposto por Freyre alcançou maior vigor em virtude das

explicações em torno da formação social brasileira.

As proposições de Freyre não suscitaram contestação imediata. Pelo

contrário, exerceram influência em outros autores, sedimentando ainda mais os mitos

da docilidade do senhor e a submissão do escravo. A partir dos anos de 1950, porém,

uma nova concepção iria se opor de modo contundente a essas ideias, revitalizando

os estudos sobre a escravidão negra no Brasil. As décadas de 1960 e 1970 fizeram

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com que a temática da escravidão fosse retomada de forma mais incisiva, surgindo

estudos que contestavam o “cativeiro brando”. Em outras palavras, trabalhos de

pesquisadores da chamada “escola paulista” representada por Florestan Fernandes,

Emília Viotti, Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni tiveram um papel

importante, ao se contraporem às ideias de Freyre sobre as relações paternalistas.

Tais autores empenharam-se na desconstrução da visão amistosa da escravidão

proposta por Gilberto Freyre. Para esses autores, a escravidão tinha um caráter

puramente violento; seus trabalhos se destacaram na denúncia da violência desse

sistema que é baseado no domínio senhorial e na desigualdade social.

A partir de então, o escravo apareceu como uma “coisa”, um ser incapaz

de criar um mundo de significados próprios (sentimentos, aspirações, vontades etc.).

A teoria do escravo coisa foi explicitada por Fernando Henrique Cardoso:

[...] O reconhecimento social da condição de pessoa humana era negado aos escravos, objetiva e subjetivamente, pelos homens livres. Além disso, graças aos mecanismos socializadores da ordem escravocrata, às condições materiais de vida do escravo e às formas pelas quais os escravos se inseriam no processo de produção, as representações mantidas pelos senhores sobre a inferioridade objetiva dos escravos e sobre a impossibilidade natural de o escravo reagir à sua condição, eram aceitos, em condições normais de funcionamento do sistema, pelos próprios escravos (CARDOSO, 1977, p. 152).

A postulação desse sociólogo coisifica o escravo de tal modo que o coloca

como agente passivo do sistema, sob o qual o próprio escravo não poderia lutar

contra. A democracia racial, proposta por Gilberto Freyre é criticada tendo como base

a violência das relações de classe indicadas pelos representantes da “escola paulista”.

Essa representação enganosa só poderia ser quebrada quando o “escravo coisa” se

transformasse no “escravo-rebelde”, rompendo com o sistema, através da fuga, da

insurreição, do assassinato de senhores ou do quilombo. Sidney Chalhoub, historiador

filiado à historiografia social da escravidão, em uma crítica a Fernando Henrique

Cardoso aponta que:

A violência da escravidão não transformava os negros em seres “incapazes de ação autonômica”, nem em passivos receptores de valores senhoriais, e nem tampouco em rebeldes valorosos e indomáveis. Acreditar nisso pode ser apenas uma opção mais cômoda: simplesmente desancar a barbárie social de um outro tempo traz implícita a sugestão de que somos menos bárbaros hoje em dia, de que fizemos realmente algum “progresso” dos tempos da escravidão até hoje. A ideia de que ela supõe ingenuidade e cegueira diante de tanta injustiça social, e parte também da estranha crença de que

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sofrimentos humanos intensos podem ser de alguma forma pesados ou medidos (CHALHOUB, 1990, p. 42, destaques do autor).

A superação da ideia de escravo coisa só foi sobrepujada com a escravo

rebelde, ou seja, aquele escravo que reage a condição de coisa por meio da revolta e

da violência. Jacob Gorender apontou que “o primeiro ato humano do escravo é o

crime, desde o atentado contra seu senhor à fuga do cativeiro” (1978, p. 65). Fernando

Henrique Cardoso explica ainda que ao escravo restava “apenas a negação subjetiva

da condição de coisa, que se exprimia através de gestos de desespero e revolta e

pela ânsia indefinida e genérica de liberdade” (1977, p. 152).

Abordagens historiográficas mais recentes, configuradas sobretudo a partir

da década de 1980, concentraram seus esforços na percepção dos cativos enquanto

sujeitos das transformações históricas ao longo dos períodos de escravidão. Autores

como Robert Slenes, João José Reis, Flávio dos Santos Gomes, Sidney Chalhoub,

Sílvia Hunold Lara, Célia Maria Marinho de Azevedo são nomes que se destacam

nestes novos enfoques adotados. Contrapondo-se às teses clássicas citadas acima,

esses pesquisadores enfatizam a relevância dos escravos como agentes históricos

manifestados no plano da resistência social e da cultura. Um dos objetivos desse

enfoque é compreender as relações de sociabilidade, mediações culturais, e

experiências dos sujeitos escravizados.

Na análise de Celia Maria Marinho de Azevedo, em Onda negra, medo

branco: o negro no imaginário das elites século XIX, cujo recorte espacial é São Paulo,

essa pesquisadora reforça a identificação do escravizado e do negro, especialmente

das classes dominadas de forma geral, como “atores de sua própria história”. A autora

enfatiza a constituição de um imaginário sustentado pelo temor e pela insegurança

criada pelos conflitos reais ou apenas potenciais, entre uma pequeníssima elite

formada por grandes proprietários e pelas classes de profissionais liberais em

contraposição com um grande grupo de gente miserável – escravizados e livres – que

não era considerado pelas instituições políticas.

Desse modo, o medo branco de uma potencial onda negra ocupava o

imaginário de uma elite senhorial que temia que o Brasil fosse cenário de uma revolta

escrava aos moldes da revolução escrava de São Domingos no Haiti (1791-1804). As

ações de repressão as movimentações da população negra e escrava eram as formas

de causar uma espécie de paz social.

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João José Reis e Eduardo Silva esclarecem que os senhores não exerciam

“seu poder apenas na ponta do chicote, mas também através do convencimento de

que o mundo da escravidão oferecia ao escravo – e a uns mais que a outros –

segurança e mesmo um certo espaço de barganha” (2003, p. 323). Por outro lado, o

cativo que aparentava comportamentos acomodados e, até submissos em um dia,

podia tornar-se o rebelde do momento seguinte, permanecendo numa zona de

indefinição de acordo com as circunstâncias de suas vivências cotidianas. Em meio à

tensão da sociedade escravista, Negociação e Conflito configurar-se-iam como os

limites entre os quais senhores e escravos se relacionavam.

Lançando mão da análise dos autos criminais, Silvia Hunold Lara optou por

dialogar com a historiografia que lhe antecedeu a partir da análise do cotidiano dos

cativos que ali viveram e manifestaram-se por meio de comportamentos tidos como

transgressores. Silvia Hunold Lara também verifica que “A maior parte dos estudos

participantes do debate, nos anos 60, fundava suas análises em referências empíricas

relativas ao século XIX e suas conclusões chegaram a ser muitas vezes generalizadas

para todo o período em que vigorou a escravidão no Brasil” (1988, p. 102).

Maria Helena Machado utilizou-se de processos criminais das cidades de

Campinas e Taubaté referente ao período de 1830 a 1888, objetivando analisar a vida

dos escravos na óptica da resistência. Em Crime e Escravidão, Maria Helena Machado

considera como resistência o uso de estratégias de sobrevivência dos cativos nas

lavouras paulistas. Segundo a autora, uma destas estratégias pode ser detectada nas

justificativas relativas a furtos, apontadas pelos próprios cativos, além de “[g]êneros

alimentícios contra dinheiro, sobrevivência versus acumulação, assim cantavam os

escravos, justificando seus furtos como estratégias de apropriação de uma parcela da

produção realizada” (1987, p. 104).

Dialogando com outras pesquisas que tiveram como base processos

criminais e que buscaram discutir questões pertinentes ao tema do crime e da

criminalidade, compreendemos o crime a partir das considerações de Boris Fausto

que o define como a quebra da norma legal. Boris Fausto define ainda as diferenças

existentes nos termos crime e criminalidade:

As duas expressões têm sentido específico: ‘criminalidade’ se refere ao fenômeno social na sua dimensão mais ampla, permitindo o estabelecimento de padrões através da constatação de regularidades e cortes; ‘crime’ diz respeito ao fenômeno em sua singularidade cuja riqueza em certos casos não

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se encerra em si mesma, como caso individual, mas abre caminho para muitas percepções (FAUSTO, 1984, p. 09).

Nesse sentido, perceber as ações de resistência individuais dentro de uma

lógica de resistências coletivas nos levam também a discussão sobre o fenômeno da

resistência individual dentro de uma dimensão mais ampla das ações de resistências

coletivas dos cativos em busca da liberdade.

Além dos já mencionados historiadores, Sidney Chalhoub em Visões da

Liberdade contesta a posição de Fernando Henrique Cardoso e de outros autores com

referência a ideia de coisificação do escravo; eles se empenharam em reconstruir as

atitudes dos escravos que evidenciavam também sua autonomia, muitas vezes,

posicionando-se e impondo condições ao destino que lhes era reservado em meio a

toda a crueldade existente na escravidão.

João José Reis e Flávio Santos Gomes, em Liberdade por um fio: história

dos quilombos no Brasil, informam que em cada lugar do país cuja presença do

escravizado era patente a resistência, assim como a acomodação, ocorria de várias

formas. Apesar de ser ameaçado com castigos físicos, o escravizado ajustava

“espaços de autonomia” com os escravizadores ou, então, trabalhava com lentidão,

estragava ferramentas, queimava plantações, investia contra o escravizador e o feitor,

muitas vezes chegando ao homicídio. Revoltavam-se individual e coletivamente.

Porém, a resistência utilizada com mais frequência na escravização era a fuga, com

a instauração de bandos de escravizados fugidos. No entanto, nem sempre o fujão

procurava um grupo.

Quando refletimos sobre a importância dos sujeitos, notamos que a

mudança de ponto de vista sobre as relações sociais nos traz esclarecimentos

referentes às vivências dos negros escravizados, livres e libertos. Inserida nesse

aspecto, Silvia Hunold Lara, na obra Campos da Violência apresenta bons

esclarecimentos ao analisar, de forma instigante, as relações sociais no Brasil, entre

o final do século XVIII e o início do século XIX, expondo que os antagonismos entre

senhores dominantes e escravizados submissos não condiziam com o rigor que

muitos pesquisadores afirmavam existir.

Silvia Hunold Lara faz um comentário geral sobre a violência retratada pela

historiografia que, a partir da década de 1940 até a década de 1970, estava dividida

em três grupos: o primeiro grupo defendia um sistema escravista de relações pacíficas

e cordiais; o segundo grupo defendia o negro sendo coisa e cujas relações entre

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escravizados e escravizadores eram de violência; e os autores da terceira abordagem

“definiam paternalismo como uma forma de clientelismo” (1988, p. 97). De modo geral,

evidenciamos essas etapas das quais Lara menciona como sendo três, juntamente

com a fase em que o escravo é visto como sujeito de sua própria história.

Em suas análises sobre os crimes de escravos no município de Franca em

São Paulo, Ricardo Alexandre Ferreira (2011), identifica que no âmbito da

historiografia dedicada ao estudo do cotidiano e da resistência escrava no Brasil a

conjugação do trinômio “escravidão-crime-liberdade” propiciou, em conjunto com

outras abordagens e fontes, instigantes debates e até polêmicas interpretativas. Uma

delas desencadeou-se há quase duas décadas, quando alguns historiadores

comentaram que a historiografia precedente, especialmente nas décadas de 1960 e

1970, apesar de contribuir com o avanço na compreensão do papel do cativo na luta

contra a escravidão, centrava-se excessivamente na violência como principal arma

usada tanto para a dominação senhorial quanto para a resistência empreendida pelos

escravos, consoante Ferreira:

Embora não sejam uníssonos, de maneira geral, esses estudos concluíram que o crime, sobretudo o de morte, era um ato limite antecedido por uma série de outras manifestações cotidianas de desagrado dos cativos em sua relação com os senhores. Cientes dessas demandas, muitos senhores realizavam concessões aos seus escravos – interpretadas por alguns pesquisadores como estratégias de dominação fundadas em critérios paternalistas. (2011, p. 26).

Ao explorarem fontes de natureza criminal, alguns desses historiadores se

lançaram à tentativa de interpretar os significados e sentidos conferidos pelos próprios

cativos aos planejamentos de ataques individuais e coletivos contra senhores, feitores

e administradores. À resistência às autoridades senhoriais, os pequenos furtos, os

ataques individuais ou os produzidos coletivamente contra membros diretos da

administração escravista eram percebidos como ataques diretos contra a instituição

do cativeiro no Império. De um lado, os senhores realizavam concessões aos

escravos como estratégia de dominação. Do outro, os cativos eram capazes de

compreender essas concessões como conquistas de suas ações. No campo

historiográfico, essa interpretação esteve fortemente vinculada ao debate

historiográfico das décadas de 1980 e 1990.

Embora não se possa atribuir a todos os escravos a compreensão da

escravidão em sua amplitude institucional, os ataques individuais e coletivos a

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senhores, feitores e autoridades estatais ocorreram em diversas regiões do Império

brasileiro, permeou a literatura, estavam presentes nas matérias divulgadas pela

imprensa periódica e nos debates parlamentares, consequentemente contribuindo de

forma incisiva para extinção da escravidão no Brasil.

Neste ponto da Introdução é o momento de apontar e justificar os recortes

empíricos, temporais e geográficos que balizam e fundamentam o estudo que se vai

dar a ler. Tendo em conta as posições acima definidas e o conjunto da historiografia

a respeito da escravidão, o presente trabalho procurou trazer reflexões semelhantes

à província do Ceará entre 1830 e 1855, visando analisar as relações sociais dos

escravos no século XIX.

Diversamente a uma proverbial escravidão menos violenta que teria

supostamente existido na província cearense, a presente pesquisa deparou-se com

uma série de enforcamentos de cativos que se deram sob um clima de forte tensão.

Evidência do recurso ao que era considerado pelas autoridades como atitudes

criminosas, as ações dos escravos no Ceará em relações a seus senhores, feitores e

outros indivíduos do mundo dos brancos não parecia ser nada amistosas em diversos

episódios. A presente dissertação tem como objetivo: Compreender a pena de morte

enquanto mecanismo de controle social da população cativa na província

cearense no século XIX. Ao mesmo tempo: Compreender como os escravos

envolvidos nos tribunais e condenados à forca agiram diante desse mesmo

controle. O recorte espacial é a província cearense e o recorte temporal é de 1830 a

1855. O primeiro justifica-se em decorrência da mudança da legislação penal do

Império brasileiro com a criação do Código Criminal de 1830, que constituiu uma

importante mudança na compreensão do crime e da punição. O segundo refere-se ao

último registro de execução de pena de morte na província cearense.

Durante os primeiros passos no processo de investigação histórica deparei-

me com duas publicações de 1894 da Revista do Instituto Histórico do Ceará- RIC de

autoria do pesquisar Paulino Nogueira: Execuções de pena de morte no Ceará. O

artigo foi divido em duas partes, vindo a público em dois números sucessivos da

Revista. O autor preocupou-se com uma recuperação da memória local, ou seja, em

reunir e salvaguardar da seletividade da memória humana os fatos históricos

considerados importantes. De posse de registros da época, Paulino Nogueira realizou

levantamentos das execuções de pena de morte e registrou 33 execuções, sendo elas

duas execuções durante a vigência das Ordenações Filipinas, quatro pela Comissão

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Matuta, cinco pela Comissão Militar e 24 pelo Código Criminal de 1830. A partir daí

iniciamos nossas analises trabalhando com as execuções capitais sob a vigência do

Código Criminal de 1830 e um dado logo despertou nossa atenção: 24 execuções

foram registradas em diferentes vilas da província cearense até o ano de 1855, sendo

que, desse número, 16 dos sujeitos que padeceram na forca pertenciam ao grupo dos

cativos, um número bastante expressivo que chegou a representar 2/3 dos sujeitos

executados na forca eram escravos.

Partindo das informações registradas por Paulino Nogueira realizei um

trabalho de investigação de fontes oficiais que tratassem dos enforcamentos dos

escravos, os quais o autor havia enfocado. A tarefa não foi nada fácil, os processos

criminais referentes aos crimes dos escravos enforcados não foram localizados nos

arquivos do Ceará. Somente alguns deles foram encontrados sob a tutela do Arquivo

Nacional-AN, dos quais tive acesso a partir do contato com Jofre Vieira, historiador

cearense que durante a realização de sua dissertação deslocou-se até o Rio de

Janeiro e conseguiu encontrar os processos criminais dos escravos Luís de Aracati,

da escrava Bonifácia de Fortaleza, da escrava Raymunda do Icó (apesar de ter sido

condenada à morte, conseguiu fugir da cadeia e não foi executa), e um processo

incompleto do escravo José de Fortaleza.

Por conta da escassez de documentações oficiais que dessem conta dos

cativos executados no Ceará, o artigo de Paulino Nogueira representou uma fonte

muito importante para realização da pesquisa, à medida que trazia diversos elementos

que preenchiam as lacunas da ausência de fontes oficiais. Os processos criminais dos

quatro escravos executados permitiram vislumbrar e discutir aspectos importantes das

experiências desses cativos. Apesar de apresentar, de forma geral, os sujeitos como

transgressores das normas, a análise dos autos dos processos de investigação de

homicídio permitiu uma leitura das experiências desses sujeitos, das sociabilidades

com companheiros, da mesma condição ou não, assim como relevou as tensões

decorrentes das relações entre senhores e escravos. Os processos criminais

revelaram importantes leituras sobre aspectos dos conflitos decorrentes das

condições do cativeiro na província do Ceará, porém apenas os processos analisados

não eram o suficiente para uma leitura minuciosa das ações criminosas envolvendo

escravos. A saída encontrada para tanto surgiu na ocasião de pesquisar os processos

criminais guardados no Arquivo Público do Estado do Ceará – APEC; tratava-se de

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uma documentação mais volumosa, com materiais que cobriam praticamente todo o

século XIX.

O procedimento inicial foi, digamos, ambicioso. Eu estava decidido a

analisar todos os processos criminais referentes as décadas de 1830 à 1855, mas

logo essa tarefa se mostrou bastante complicada, pois eram processos que davam

conta de várias vilas da província. Logo nos deparamos com maços enormes de

processos criminais e, fotografar e analisar todos demandaria um tempo que o curto

período de mestrado não possibilitava, além do que revelou-se ser uma tarefa

desnecessária, já que os processos que eu já havia identificado e copiado mostraram-

se suficientemente ricos para o tipo de análise que eu esperava fazer.

Surgira então um norte para a pesquisa. Decidi trabalhar com os processos

que comprovadamente envolvesse escravos na condição de vítimas ou de réus. O

trabalho se direcionava cada vez mais, como veremos adiante, para a tentativa de

compreensão das tentativas de controle social sobre os escravos, e era obvio que a

consecução de tal objetivo dependia da recuperação mais sistemática das

experiências históricas dos cativos ditos criminosos da província do Ceará.

A pesquisa no Arquivo Público demandou alguns meses entre o processo

de busca e seleção dos processos que seriam fotografados para a análise posterior,

que demandou mais alguns meses de leitura e fichamento dos processos que seriam

analisados na pesquisa. Os documentos apresentavam uma representação filtrada a

partir dos olhares de juízes e escrivães acerca do que entendiam como importante a

ser registrado nos autos. Ao se trabalhar com processos crimes, o pesquisador deve

ter consciência de que a fonte documental que maneja é oriunda, na realidade, de

depoimentos orais, e que há notáveis diferenças entre língua falada e língua escrita.

Na transposição do oral para o escrito, as palavras podem ter variado de forma e de

conteúdo. Assim, na passagem do oral para o escrito “não se opera uma simples

transcrição” (MEIHY; HOLANDA, 2007, p. 134). Os escrivães, influenciados pelos

valores da época, deixam o registro carregado de subjetividade. O filtro do juiz e/ou

do escrivão pode ter contaminado parcialmente o relato. Assim, parafraseando Carlo

Ginzburg, podemos afirmar que essa fonte documental é duplamente indireta: por ser

escrita “e, em geral, de autoria de indivíduos, uns mais outros menos, abertamente

ligados à cultura dominante” (2006, p. 13).

Arlete Farge (1999), ao comentar sobre a pesquisa com manuscritos

existentes em arquivos policiais do século XVIII – onde se encontram processos,

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inquéritos, interrogatórios, testemunhos, acareações e outros –, comenta o quão

importante essa tipologia de fonte se mostra para permitir o acesso à palavra dos

desfavorecidos que não deixaram escritos em outras tipologias de fontes.

Portanto, os processos crime se constituem em uma preciosa fonte

documental da qual o historiador pode se valer para travar contato com sujeitos sociais

menos favorecidos, ou até mesmo ignorados socialmente. Entre esses se incluem os

escravos africanos e seus descendentes, que constituem os sujeitos que buscamos

visualizar nessas fontes. Como destaca o historiador Sidney Chalhoub:

Apesar das mediações introduzidas pelos interrogatórios do delegado e do juiz e pelas anotações dos escrivães da delegacia e da pretoria, os personagens de carne e osso que protagonizaram efetivamente a trama em questão berram forte, e os ecos distantes de suas vozes fazem vibrar os nossos tímpanos (CHALHOUB, 1986, p. 20).

Por tratar de facetas da criminalidade, os autos dos processos criminais

são fontes riquíssimas para a compreensão das estratégias de resistência desses

sujeitos. Nessa documentação podemos perceber todo o processo que envolve a

composição de um processo crime. Desde a aquisição de provas para compor a

atuação dos suspeitos, o arrolamento de testemunhas, os depoimentos das

testemunhas de acusação e defesa, os laudos técnicos periciais, e as indicações das

leis e das penas. Como podemos perceber, os processos crimes são fontes que

trazem diversas informações acerca dos sujeitos envolvidos, porém era preciso

articular outras fontes.

Com o objetivo de abordar o problema da criminalidade em sua dimensão

mais ampla, decidimos recorrer aos relatórios produzidos pelas autoridades do

Executivo Imperial, especificamente os relatórios do Ministério da Justiça. Interessado

em saber como os crimes cometidos por escravos eram integrados ao problema geral

da segurança pública e individual, voltamo-nos para os discursos proferidos pelos

ministros da Justiça. Composto um quadro geral do problema da criminalidade no

Império e, nele compreendido o lugar conferido aos tipos de delito praticados por livres

e escravos, concentramos nossa atenção em analisar também os relatórios

produzidos pelo Executivo provincial afim de compreender como era tratado as ações

transgressoras a lei penal vigente. Os relatórios tanto do Executivo Imperial quanto do

Executivo provincial, apresentava um quadro geral da criminalidade e, como essa era

observada pelas autoridades do Estado imperial.

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Desde o início do período imperial, coube aos ministros da Justiça elaborar

um detalhado relatório a respeito de suas atividades que incluía uma apreciação sobre

o problema da criminalidade no país. Anos mais tarde, tarefa semelhante, porém

restrita à sua circunscrição administrativa, também foi atribuída aos presidentes das

províncias. Conforme as prescrições legais, ministros e presidentes se dirigiam às

sessões de abertura das respectivas casas legislativas, na corte e nas sedes das

províncias, e apresentavam suas narrativas. Os relatórios do Ministério da Justiça e

os relatórios do Executivo provincial constituiu uma importante fonte para a análise da

criminalidade numa perspectiva governamental.

Além das fontes mencionadas, outra tipologia de documentos oficiais

ligados a administração provincial do Ceará que consultamos foram as

correspondências (expedida e recebida) dos presidentes da província com os

ministros da Justiça. As correspondências enfocaram assuntos referentes a tentativas

de controle por parte do executivo provincial dos assuntos relativos a criminalidade na

Província. A correspondência ministerial apresentou o governo imperial como grande

árbitro na resolução de contendas no cumprimento da lei. Encontramos nas

correspondências emitidas pelos presidentes da Província informações a respeito dos

tramites legais dos processos envolvendo escravos executados, na maioria das vezes

solicitando a resolução de empecilhos durante os procedimentos para a aplicação da

pena última.

A imprensa cearense também se revelou uma fonte importante, entre os

periódicos consultados: O Desesseis de Desembro (1839- 1840), O cearense (1846-

1891) e Pedro II (1840-1889) foram pesquisados na internet, por meio do site da

Biblioteca Nacional (BN). Da Revista Instituto Histórico do Ceará, foram analisados os

escritos de Paulino Nogueira com dois escritos, As execuções de Pena de morte no

Ceará (1894) e Os presidentes da província no período regencial (1899) e também o

de Benedicto Santos, a Pena de morte no Aracaty (1910).

Expomos de forma breve os vestígios analisados durante o processo de

investigação da presente pesquisa. Sabemos que as fontes históricas são constituídas

por uma série de registros da atividade humana das quais o pesquisador se vale para

estudar o passado. Durval Muniz de Albuquerque Jr. (2007) deixa claro que o

historiador reinventa o passado fundamentando suas interpretações nos vestígios

deixados pelos homens no decorrer do tempo. Para isto, é indispensável um “um

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aparato teórico e metodológico mais sofisticado que tenta dar conta deste passado

com suas múltiplas significações” (ALBUQUERQUE JR, 2007, p. 205).

De posse dos “vestígios do passado” buscamos ajustar nosso aparato

metodológico para tentar dar conta a essas “múltiplas significações”, consideramos

convenientes as ferramentas metodológicas da micro-história que se baseia no

recorte temático de um objeto bastante específico para tentar compreender um

fenômeno dentro de um contexto amplo.

Para o manuseio correto das nossas fontes de pesquisa consultamos

historiadores como Jacques Revel, que nos ajudou na compreensão seguinte:

“podemos definir o projeto micro histórico como aquele que visa a reconstruir todas as

cadeias de casualidade, a partir das escolhas dos indivíduos” (1996, p. 153). Ao se

estudar um evento pequeno, circunscrito historicamente no tempo e no espaço, como

é o caso da província cearense, isso permite a compreensão, em escala, de uma

realidade mais ampla. Ao se eleger o (micro) como objeto de análise, como escala

própria de observação como propõe Revel “[a] escolha de uma escala particular de

observação produz efeitos de conhecimentos, e pode ser posta a serviço de

estratégias de conhecimentos” (1996, p. 20). Dessa maneira, utilizaremos essa

metodologia para melhor compreender as ações de nossos sujeitos, como suas ações

se inserem no contexto amplo.

A fim de dar conta das questões propostas na pesquisa, estruturamos esta

dissertação em três capítulos que discutem a pena de morte enquanto mecanismo de

controle social da população cativa na província cearense durante a primeira metade

do século XIX. No Primeiro capítulo, Enforcamentos, abordaremos as execuções de

pena de morte como uma espécie de teatro de poder, visualizando as execuções

como espetáculo pensado mais como um mecanismo de controle social do que como

um mecanismo punitivo do Império. O ponto de partida foi o enforcamento do escravo

Fuisset de Quixeramobim em 1837, o primeiro cativo executado pelo Estado imperial

na província do Ceará. O enforcamento de Fuisset abre as discussões no capítulo no

qual damos continuidade na tentativa de compreender o porquê 2/3 das execuções

capitais recaíram sobre o grupo dos sujeitos cativos, sendo que, representavam uma

pequena parcela da população da província do Ceará. Feito isso, analisaremos na

sequência a utilização de elementos simbólicos como forma de afirmação de poder

durante as execuções capitais, a fim de percebem a forma como objetos simbólicos

se inserem na dinâmica do poder com o intuito de exercer um controle que além de

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teatralizado é realizado. De tal modo, partiremos das execuções individuais para

compreender os elementos simbólicos estruturados no momento do ritual de

execução e, como esses elementos eram pensados para atender as demandas do

Estado Imperial, já que as execuções eram pensadas como controle social sobre a

população cativa e sobre a população negra livre e liberta, como também para a

população branca e pobre que era vista como uma classe perigosa. Além de controle

social, podemos perceber as execuções de pena de morte como uma forma de se

obter certa estabilidade social, porque a elite imperial vivia sob um constante medo de

uma potencial revolta negra. Após observar como as execuções de escravos no

Ceará constituíram-se em uma teatralização do poder imperial (suscitando um

correspondente contrateatro, protagonizado pelos executados e outros sujeitos

históricos), para finalizar as discussões no presente capítulo, analisamos o que

identificamos como o contrateatro que consistia em ações desviantes do controle

pretendido por autoridades e senhores durante as execuções capitais. Durante a

própria encenação punitiva, punha-se em movimento a demonstração da resistência

ao poder dos agentes imperiais, chegando muitas vezes a comprometer o papel

disciplinador do enforcamento e suscitando exemplos de rebeldia.

No Segundo capítulo, Crimes, discutiremos a criminalidade escrava como

forma de resistência à condição de cativo, as lutas travadas entre senhores e

escravos, e os casos que levaram os escravos a sair da condição de cativo para a de

réu da justiça imperial. No primeiro tópico do capítulo buscamos inserir a província do

Ceará no ciclo de revoltas do período regencial brasileiro, a fim de compreender como

essas agitações políticas afetaram a província e quais foram as consequências

dessas ações para o Ceará no que diz respeito ao cotidiano e criminalidade. Na

segunda parte do capítulo, nos debruçamos sobre os crimes cometidos por escravos,

as tensões e conflitos decorrentes das condições do cativeiro. Finalizamos o capítulo,

analisando os crimes cometidos pelos escravos que foram condenados a forca na

província, buscando perceber as circunstâncias agravantes que resultaram na

punição com a forca.

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No Terceiro capítulo, Tribunais, analisamos a legislação penal do Império

brasileiro, desde suas origens nos debates parlamentares até a criação de uma

legislação específica para punição dos escravos que cometessem homicídios contra

membros da camada senhorial. Na primeira parte do capítulo buscamos compreender

qual a realidade social a legislação brasileira buscava atender? A segunda parte do

texto buscou abordar a prática jurídica nos tribunais, analisando as estratégias dos

cativos para escapar a condenação à morte diante de juízes e outras autoridades.

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2 ENFORCAMENTOS

Atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas,

sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito

parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que

será atenazado se aplicara chumbo derretido, óleo fervente,

piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a

seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro

cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos

a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento. (FOUCAULT, 1975,

p. 09).

Mesmo já passados vários anos, as primeiras páginas de Vigiar e punir,

escritas por Michel Foucault, ainda causam uma forte impressão nos que as leem pela

primeira vez. Foucault inicia sua narrativa com o ato de execução de Damiens, um

parricida que foi teatralmente executado em Paris no dia 2 de março de 1757. A sua

sentença antecipa o macabro espetáculo que o povo parisiense presenciou naquele

dia.

A espetacularização da pena de morte é um mecanismo de controle social

antigo. Alípio de Sousa Filho (1995), ao comentar sobre esta prática punitiva entre os

romanos, apontou para a função que a execução exercia entre todos que a

presenciavam. Para o autor, o sacrifício público para nada mais servia do que para a

difusão do medo, que

Serve para manter todos os indivíduos na normalidade da cultura instituída e muitos dos ritos coletivos, alimentados pelo medo, servem para aliviar as tensões psíquicas, funcionando como soluções para os desequilíbrios que ameacem a Ordem. (1995, p. 95).

O medo gerado pelo suplício e a pena de morte, sendo executada como

um grande espetáculo – que potencializava as dores e as sensações –, atuava como

um mecanismo de controle. A função social de um auto de execução era significativa,

pois, além de dar um entretenimento ao povo, aliviando suas tensões, era mais um

recurso pedagógico das elites dirigentes, ensinando e mostrando com um exemplo

dantesco qual era o castigo exemplar para os criminosos:

Essa relação da pena de morte com o espetáculo teatral público é importante que seja sublinhada porque exprime toda a intenção de força simbólica do

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mito do castigo exemplar. A ostentação do suplício do condenado [...] e a execução do réu, numa cerimônia ritual pública, serviam de demonstração do triunfo do poder e da lei, mas, principalmente, pela riqueza do simbolismo da encenação servia de exemplo para todos os demais na sociedade. (SOUSA FILHO, 1995, p. 96).

Com realizações em locais públicos, as execuções capitais deveriam servir

como efeito moralizante sobre as consciências dos indivíduos para que não

seguissem o mesmo caminho do criminoso. Mas, para que todo esse teatro, se o

criminoso já estava julgado e seria, de uma maneira ou de outra, penalizado com a

morte? Na verdade, a morte era a pena para o criminoso, todavia o suplício, o “teatro”,

era uma mensagem dirigida para os circunstantes.

O Brasil Colônia também foi legatário desta macabra forma de punir os

criminosos. Um dos casos mais exemplares de pena de morte precedida por um

suplício foi o de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Condenado à “morte

natural para sempre” por conspirar contra a administração reinol, foi enforcado e logo

em seguida decapitado, sendo sua cabeça erguida no lugar mais público de Vila Rica

até que o tempo a consumisse; já seu corpo, foi esquartejado para fosse espalhado e

ficasse exposto pelos caminhos de Minas até que o tempo também às consumisse.

As execuções capitais serviam mais para o Estado mostrar-se ao povo do

que para punir o delinquente, que por sua vez poderia em vida pagar seus crimes, ou

ser morto sem tanto dispêndio. Segundo Foucault, as cerimônias de execução

europeias – assim como em outras partes do mundo – eram “um acontecimento que

não levava ao espetáculo apenas o réu, o oficiante e o carrasco”, mas muitos

“espectadores a se comprimirem em torno do cadafalso”. (FOUCAULT, 1975, p. 36).

Neste capítulo, principiamos pela delimitação do terreno sobre o qual

edificaram-se as relações estabelecidas entre as formas de punição do Estado

imperial brasileiro, que no caso da presente pesquisa, são as execuções capitais de

cativos condenados por crimes de homicídios na província cearense. O castigo de um

escravo – até mesmo de um livre – em praça pública não deve ser encarado como

uma simples aplicação da lei, como reparação de um crime. O auto de execução

servia, sobretudo, para mostrar a administração que se exerce sobre o povo. No nosso

caso, as punições ao escravos serviam para mostrar a força do poder público imperial.

Nesse sentido, analisaremos como as execuções de pena capital

funcionavam como mecanismos de controle social do Estado. Partindo das execuções

como estruturas de controle social, investigaremos a teatralização da execução com

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todas as suas construções simbólicas e ritualísticas de afirmação de poder e terror,

como também, analisaremos o mesmo ritual a partir do seu contra teatro, ou seja, as

tentativas de manipulações do ritual que acabavam tomando outras formas de

interpretações na província cearense durante toda a primeira metade do século XIX.

2.1 O CASO DO ESCRAVO FUISSET

Chamavam-lhe José, mas ficou mais conhecido como Fuisset, apelido a

ele dado por João Bagatela, pois foi assim que interpretou o som que o condenado

fizera quando deu seu último suspiro1. Onde e quando nascera não sabemos, mas

Fuisset destaca-se em nosso estudo por ter sido o primeiro escravo levado à forca na

província do Ceará no século XIX.

Condenado por ter participado do assassinato de seu senhor, Fuisset

seguiu para a morte no dia 30 de março de 1837. Uma forca havia sido erguida no

Alto do Rosário, na Serra do Estevão, termo de Quixeramobim. Ali aguardava uma

multidão ansiosa para ver o espetáculo da execução. Fuisset mostrou-se abatido,

recusou a alimentação que lhe ofereceram e percorreu as ruas da vila “aos dobres

plangentes dos sinos” (NOGUEIRA, 1894, p. 175). Acompanhava o padre Inácio

Antonio Lobo, vigário interino que servia de confessor do condenado e liderava o

préstito, recitando em voz alta o salmo 50 de Davi. Ao chegar à frente do patíbulo, a

sentença foi proferida pelo porteiro Manoel Gomes da Silva, vulgo Manoel Grazina.

Em seguida, Fuisset foi estrangulado na frente de todos.

Tudo tinha sido previsto para que a execução do escravo Fuisset se

constituísse num ritual que levasse aqueles lá presentes a entender que crimes

graves, principalmente aqueles perpetrados por escravos contra seus senhores,

haveriam de ser punidos com a morte em público. Era bem o caso de Fuisset, preso,

julgado e condenado por ter participado do assassinato de seu senhor, o português

José de Azevedo, conhecido por todos em Quixeramobim, onde vivia, como José da

Fama. Numa trama idealizada pela esposa do senhor português, Fuisset fora

convencido a atrair José da Fama até um lugar isolado da mata, onde desferiu um

golpe de machado contra a nuca da vítima.

1 Segundo Paulino Nogueira, João Bagatela era a alcunha de João Antônio de Genova, “espírito pilhérico” presente

à execução do escravo Fuisset. Toda a narrativa que segue foi baseada nas informações trazidas em NOGUEIRA

(1894, p. 173-176).

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Possivelmente, o crime contra José da Fama ocorreu em fins do ano de

1836 ou princípios do ano seguinte, pois logo no dia 29 de março de 1837 Fuisset era

interrogado, processado, pronunciado e condenado à morte na forca. A celeridade

com que tudo transcorreu explica-se pelo momento histórico em que ocorreu o caso.

Para Ricardo Figueiredo Pirola (2015), as agitações das revoltas do Período

Regencial, principalmente aquelas nas quais participavam mais ativamente os

escravos, fizeram com que os legisladores do Império aprovassem, em 10 de junho

de 1835, uma lei que previa a pena capital, sem brechas para recursos ou apelos,

para todo escravo que atentasse contra a vida de seu senhor, membros da sua família

ou feitores. Fuisset foi um desses, enquadrado na lei de 10 de junho de 1835.

Para que cumprisse com sua função intimidatória, o enforcamento haveria

de se constituir numa espécie de teatro do poder. Daí todo o ritual que acompanhava

a caminhada do condenado até a forca: a procissão pelas ruas da vila, o dobrar dos

sinos, as proclamações, a benção do vigário e, mais importante de tudo, a presença

da multidão que a tudo assistia. Como se tratava de uma medida que visava o grupo

dos cativos, em particular, a presença ali dos escravos da região era fundamental. Daí

porque, no dia da morte do escravo Fuisset, como relatou Paulino Nogueira, “todos os

senhores de escravo mandaram os seus para assistir ao ato como exemplo...”.

(NOGUEIRA, 1894, p. 175).

Mas nem tudo correu como esperado. Até às vésperas da execução de

Fuisset não havia quem quisesse servir de carrasco. O enforcamento teria sido

adiado, não fosse uma decisão tomada pelo juiz responsável pelo caso. Como relatou

Paulino Nogueira:

Ocorreu então ao juiz da execução, tenente-coronel Pedro Jayme de Alencar Araripe, ir a cadeia que estava cheia de recrutas para o exército e oferecer a soltura àquele que se quisesse prestar. Logo se apresentou um, recebendo em paga a soltura prometida, 5§000 réis, uma garrafa de vinho e uma galinha gorda. (NOGUEIRA, 1894, p. 175).

Resolvido o problema do carrasco, pode-se dar curso à execução de

Fuisset. Mas, tão logo o último sopro de vida abandonara o corpo do infeliz cativo, um

fenômeno desviaria a atenção dos presentes. Como é habitual no Ceará, a ausência

de chuvas após o dia do padroeiro São José (19 de março) deixava os habitantes do

sertão apreensivos, temerosos pela ocorrência de mais um ano de seca, e naquele

ano de 1837 não havia ainda caído uma só gota do céu. Mas, “de repente e como por

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encanto”, escureceu o tempo e caiu uma chuva torrencial que fez toda a multidão se

retirar do Alto do Rosário, deixando para trás o cadáver de Fuisset pendurado sob o

temporal, onde permaneceu até o dia seguinte, quando foi enfim retirado e sepultado.

Em seguida, os que assistiam à execução de Fuisset entenderam que

aquilo havia sido um sinal, dando ao fato “o caráter de castigo de Deus, e como certa

a salvação do réu, a quem começou a fazer promessas...” (NOGUEIRA, 1894, p. 176).

Conta Paulino Nogueira que inclusive os jurados e o juiz, diante das evidências,

“juraram nunca mais condenar ninguém à morte” ou “presidir mais a nenhuma

execução”. Uma procissão de penitência foi organizada na mesma noite, percorrendo

as ruas da pequena vila, “suplicando aos céus a revogação do castigo que se reputava

iminente. (NOGUEIRA, 1894, p. 176).

A relutância de pessoas de Quixeramobim a se apresentarem como

carrascos, assim como o entendimento difundido de que a chuva forte que caiu sobre

os que assistiam ao enforcamento de Fuisset seria um castigo divino, são aspectos

que fazem crer que o espetáculo da morte pela forca não cumpriu plenamente sua

função de punição exemplar. Para tanto, deveria prevalecer o sentimento de medo

diante do poder punitivo do Estado imperial que se mostrava implacável diante

daqueles que ousassem descumprir suas leis. No entanto, diante da execução do

escravo Fuisset em 1837, o que se viu foi o sentimento de culpa prevalecer sobre o

temor, mostrando por meio do imaginário religioso que a população local estava

principalmente preocupada em não descumprir com os desígnios de uma lei que se

entendia ser superior, a lei divina.

O caso do enforcamento do escravo Fuisset, de Quixeramobim, apresenta,

como visto, diversos elementos relativos ao uso da pena de morte como punição de

escravos na província cearense oitocentista. Sendo um importante mecanismo de

controle social, abordaremos nas próximas páginas as execuções públicas de

escravos como uma porta de entrada para o tenso universo da escravidão na

província. Analisando as estratégias do uso dos enforcamentos no controle dos

escravos, observando os rituais de execução como uma teatralização do poder e

abordando a atitude popular diante da punição pela morte, iniciaremos nosso estudo

sobre a pena capital na província cearense durante o século XIX, para a qual esse

assunto revela uma face ainda pouco conhecida da história social.

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2.2 FORCA PARA OS ESCRAVOS

O caso do enforcamento do escravo Fuisset, de Quixeramobim, abre o

cortejo de procissões para a morte que marcaram a província cearense nos anos entre

as décadas de 1830 e 1850, período que, em algumas vilas do sertão e do litoral,

incluindo a capital, Fortaleza, escravos incriminados por se voltarem violentamente

contra membros das camadas livres e brancas, foram condenados com a pena capital

e enforcados em praça pública. De um total de 24 condenados à pena de morte

durante o século XIX, dezesseis eram escravos, o que demonstra a tendência das

instituições jurídicas locais em racializar o enforcamento enquanto método punitivo

que recaía preferencialmente sobre os negros cativos (ver Tabela 1). É um dado

expressivo de uma província não pertencente aos principais centros escravistas do

Império, onde a população livre era numericamente bastante superior à dos reduzidos

ao cativeiro, e na qual supostamente existiria certa brandura permeando as relações

escravistas locais, segundo o mito sustentado por uma parcela das elites intelectuais

desde as décadas finais do século XIX.

Tabela 1 – Enforcados no Ceará, 1830-1855

Vila N° de Enforcados Status

Livre Escravo

Capital 11 02 09

Sobral 01 - 01

Quixeramobim 01 - 01

Crato 03 03 -

Aracati 02 01 01

Viçosa 01 - 01

Granja 01 - 01

Ipú 02 01 01

S. Matheus 01 01 -

S. Bernardo 01 - 01

Total 24 08 16

Fonte: NOGUEIRA, Paulino. Execuções por pena de morte no Ceará. Revista Trimestral do Instituto do

Ceará, ano VIII, tomo VII, 1º e 2º semestre de 1894, Fortaleza, Typographia Economica, 1894, p. 324.

Havia no Ceará, em 1840, uma população total de 210.087 indivíduos,

segundo o levantamento ordenado pelo presidente da província, Francisco de Souza

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Martins. Desse montante, somente 14.881 pessoas eram registradas como escravos2.

Mas, apesar de serem menos de 10% da população provincial em meados do século

XIX, os escravos foram as vítimas preferenciais das condenações por enforcamento,

representando 2/3 dos condenados. Isso, que por si mesmo aponta para o caráter

escravista do estado imperial, indica ainda a forte tensão nas relações entre livres e

escravos na própria província cearense. A pena de morte, punição máxima contra os

crimes mais graves cometidos na proverbialmente violenta província do Ceará, atingia

preferencialmente os escravos porque, como em qualquer sociedade escravista, eles

eram ali o grupo social considerado mais perigoso para as camadas brancas

privilegiadas.

O próprio crime perpetrado pelo escravo Fuisset pode ser encarado sob

essa ótica, pois, tendo sido planejado pela esposa da vítima, apenas o cativo, executor

do atentado, terminou na forca. Quanto a mandante, Joaquina Maria de Jesus, mulher

de condição livre e esposa do português assassinado, conseguiu fugir após o

atentado, escondeu-se em propriedades em pontos distantes da província (em Barra

dos Inhamuns, Vila Nova do Ipú e Acaraú), vindo a se apresentar à justiça somente

após dez anos de transcorrido o crime.3

Durante muito tempo, o discurso sobre um cativeiro de reduzido

contingente, foi utilizado pelos agentes do poder para tentar amenizar a existência da

escravatura na província cearense, como também para tentar negar a existência da

população negra na província. Segundo o historiador Eurípedes Antônio Funes: “A

ideia postulada é de que no Ceará não há negro porque a escravidão foi pouco

expressiva. Isto leva a uma lógica perversa: associar o negro à escravidão” (FUNES,

2007, p. 103).

Associar o negro a escravidão é uma lógica que não leva em conta a

existência de negros livres e libertos na província cearense, já que em algumas vilas

da província, o número de negros e pardos livres, somado com os dos cativos, chegou

a ultrapassar o número da população branca, como é apresentado por Eurípedes

Funes: “Chama atenção, nos dados de 1804, a vila do Crato com uma população de

2 Relatorio com que apresentou o Exm. Senhor Doutor Francisco de Souza Martins, presidente desta província,

na ocasião da abertura da Assembleia Legislativa provincial no dia 1° de agosto de 1840. Ceará, Typ.

Constitucional. Anno de 1840, p. 10. 3 Pedro II, Fortaleza, 6/10/1853, p. 4, Acervo da Biblioteca Nacional. Petição da ré Joaquina Maria de Jesus,

despachada pelo meritíssimo juiz de direito da comarca de Quixeramobim, o doutor Antonio Leopoldino de Araújo

Chaves. Quixeramobim, 1853.

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20.681, onde 67,5% era de ‘pretos e pardos’ livres e cativos e em Sobral chegavam a

72,0 %” (FUNES, 2007, p. 105).

Esses dados são importantes indicadores da existência de uma população

preta e parda que não era cativa, e que algumas vezes chegou a ultrapassar a

população branca, e por outro lado temos também uma população cativa que,

segundo o censo de 1840, não passava dos 7,1% da população total da província4.

Os enforcamentos públicos de cativos eram a demonstração mais

agressiva do poder punitivo do estado imperial, visando conter as atitudes de

resistência e de revolta dos escravos. O Código Criminal de 1830 foi a primeira

regulação do regime monárquico, após a Independência, a prever a pena capital para

os crimes de morte com agravantes, como expresso em seu artigo 192. Também

prescrevia a pena capital para os que incorressem em crime de insurreição, “reunindo-

se vinte ou mais escravos para haverem a liberdade por meio da força”, como

registrado no artigo 113.5

Não demorou, porém, como mostrou o historiador Ricardo Figueiredo

Pirola, para que as penas ditadas pelo Código Criminal de 1830, bem como as do

Código do Processo Criminal, aprovado em novembro de 1832, fossem apontadas

como frágeis para fazer face à crescente agitação dos cativos. Parlamentares, em

1833, objetaram que escravos pronunciados por assassinatos, agressões,

insurreições ou envenenamentos poderiam escapar da pena de morte quando se

alegava atenuantes que poderiam livrar o incriminado da forca, podendo as penas ser

comutadas para galés perpétuas, prisão com trabalhos forçados ou açoites. (PIROLA,

2015).

Com a abdicação de Pedro I, em 1831, uma fase de fortes agitações sociais

teve início em diversas regiões do Brasil. Os escravos, cujas lutas pela liberdade

vinham crescendo desde os anos da Independência, tomariam parte ativa em várias

revoltas que abalaram o Período Regencial (REIS, 2000). As revoltas de Carrancas,

em Minas Gerais, e dos Malês, na Bahia (respectivamente em 1833 e 1835), fizeram

soar o sinal de alarme para as elites políticas do Império, que redobraram forças no

controle sobre os escravos desde então (ANDRADE, 2017; REIS, 2003). A aprovação

4 Relatorio com que apresentou o Exm. Senhor Doutor Francisco de Souza Martins, presidente desta província,

na ocasião da abertura da Assembleia Legislativa provincial no dia 1° de agosto de 1840. Ceará, Typ.

Constitucional. Anno de 1840, p. 10. 5 Código Criminal do Império do Brasil, 1830, art. 193.

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da lei de 10 de junho de 1835, que afastou qualquer atenuante que pudesse beneficiar

escravos que matassem, envenenassem, ferissem gravemente ou tomassem parte de

insurreições contra senhores, parentes e feitores, foi uma das principais medidas

adotadas nesse sentido.

Também na província do Ceará a população negra escrava promovia

protestos e revoltas. Desde as lutas da Independência, senhores armavam seus

cativos para tomar parte nas disputas locais. A circulação de notícias sobre os

sucessos dos escravos em São Domingos, que ficou conhecido por toda parte como

o haitianismo, motivou a gente de cor, entre livres, libertos e escravos, a sustentar

ações coletivas contra as opressões das minorias brancas (CÂNDIDO, 2017). Talvez

a mais temerária das atitudes de escravos nessa época tenha sido o motim dos pretos

da escuna Laura 2ª, em 1839, uma embarcação proveniente de São Luiz, Maranhão,

na qual cativos, tripulantes e passageiros negros mataram o capitão, o contramestre,

o prático e dois marinheiros brancos para escaparem do cativeiro. Fundeando próximo

à costa cearense, na altura de Cascavel, diversos escravos procuraram fugir, mas

foram capturados em seguida (VIEIRA, 2009). Como veremos adiante, os presos do

motim da escuna Laura 2ª protagonizariam o maior espetáculo de enforcamento que

a capital do Ceará já testemunhou.

Para as elites proprietárias, a Revolução do Haiti (1791-1804) unificou

todas as ameaças em uma só cor, a negra. Enquanto, para os escravos, a revolução

propagou uma onda de liberdade, para as elites propagou o medo. O “medo negro”

foi uma das características marcantes, logo após a Revolução do Haiti, como explica

Célia Maria Azevedo no livro Onda negra e medo branco: o negro no imaginário das

elites do século XIX:

Ora, perguntavam-se alguns assustados “grandes” homens que viviam no Brasil de então, se em São Domingos os negros finalmente conseguiram o que sempre estiveram tentando fazer, isto e, subverter a ordem e acabar de vez com a tranquilidade, dos ricos proprietários, por que não se repetiria o mesmo aqui? Garantias de que o Brasil seria diferente de outros países escravistas, uma espécie de pais abençoado por Deus, não havia nenhuma, pois aqui, assim como em toda a América, os quilombos, os assaltos as fazendas, as pequenas revoltas individuais ou coletivas e as tentativas de grandes insurreições se sucederam desde o desembarque dos primeiros negros em meados de 1500. (AZEVEDO, 1987, p. 35).

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A onda negra e o medo branco, que nomeia o livro de Célia Azevedo,

podiam ser sentidos pelas elites senhoriais ao passo que as insurreições escravas

das primeiras décadas do século XIX assolavam o Império, a cada homicídio que um

escravo praticava contra seu senhor ou outra pessoa livre, era a chama de temor que

se acendia no imaginário da elite senhorial. De acordo com João José Reis e Eduardo

Silva, reportando-se para uma das regiões mais convulsionadas pelas revoltas

escravas no período imperial, “Ao longo da primeira metade do século XIX a Bahia se

constituiu em ambiente favorável a resistência escrava” (REIS; SILVA, 1989, p.33).

Buscando criar um ambiente de maior tranquilidade, a classe senhorial

buscou agir com violência contra as várias formas de resistência escrava, desde os

pequenos furtos, as agressões físicas e, em últimos casos, os atentados contra vida

dos senhores proprietários. A pena de morte passou então a ser utilizada com um

propósito pedagógico disciplinador da população cativa e pobre, que para a elite

senhorial, não deveriam aproveitar das instabilidades políticas internas – como foram

os casos das revoltas do período regencial – ou externas – o caso da Revolução de

São Domingos no Haiti – para incitar o clima de efervescência de disputas políticas

por parte dos grupos dos escravos.

Entre 1837 e 1855, dezesseis escravos foram enforcados no Ceará. Nove,

desse total, foram executados em Fortaleza, capital da província. Chama atenção, por

outro lado, as outras vilas onde ocorreram enforcamentos públicos de cativos. Foram

oito diferentes localidades, situadas em pontos diversos do território provincial. Para

que viesse a cumprir com sua função intimidatória, era fundamental que a punição

ocorresse na mesma região em que havia se dado o crime, para que outros escravos

viessem a testemunhar o sofrimento do condenado, virtualmente um membro de sua

própria comunidade. A tabela abaixo indica as datas e as localidades em que

ocorreram enforcamentos:

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Tabela 2 – Escravos enforcados no Ceará

Escravo Ano Localidade

José (Fuisset) 1837 Quixeramobim

João Mina 1839 Fortaleza

Hilário 1839 Fortaleza

Benedito 1839 Fortaleza

Bento 1839 Fortaleza

Constantino 1839 Fortaleza

Antônio Angola 1839 Fortaleza

José 1840 Fortaleza

Luís 1840 Aracati

Sebastião 1841 Sobral

Antonio 1842 Viçosa

Bonifácia 1842 Fortaleza

Luiz 1842 Granja

Estevão 1845 Ipú

Capitão Cebola 1855 Fortaleza

Joaquim 1855 São Bernardo

Fonte: NOGUEIRA, Paulino. Execuções por pena de morte no Ceará. Revista Trimestral do

Instituto do Ceará, ano VIII, tomo VII, 1º e 2º semestre de 1894, Fortaleza, Typographia

Economica, 1894, p. 324.

As execuções de escravos serviam, dessa maneira, mais como exemplos,

uma espécie de controle social, do que como punição voltada para atingir o indivíduo

praticante do crime. Seguindo essa linha de raciocínio, poderemos perceber porque

foram os cativos as vítimas privilegiadas da punição por enforcamento público no

Ceará provincial, apesar de serem apenas uma pequena minoria da população e dos

que incorriam em crimes de morte, envenenamento ou insurreição. Demonstrando

uma menor tolerância para com os crimes cometidos por escravos, os agentes da

justiça usavam a dramatização da morte na forca como instrumento de afirmação do

poder imperial diante dos movimentos protagonizados pelos escravos. Mas para

alcançar sua função de teatro do poder, os enforcamentos deveriam seguir certa

lógica simbólica, dando sentido preciso ao ritual de execução pública. Como

experiência social, porém, os cortejos de execução nem sempre cumpriam com aquilo

previsto pelos agentes do poder.

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2.3 PROCISSÕES PARA A MORTE: O TEATRO DAS EXECUÇÕES

Um enforcamento público de um escravo condenado poderia assumir as

dimensões de um ritual bastante complexo. Foi o que se constatou em Fortaleza, em

28 de fevereiro de 1840, por ocasião da execução do escravo José, condenado à

morte pelo tribunal do júri de Fortaleza de 16 de novembro de 1839, por ter matado

com um tiro o seu senhor, o sobralense Luiz Ferreira Gomes:

Às 7 e meia horas da manhã, saiu o préstito com as prescrições e formalidades já conhecidas. Desfilou pela Rua da Boa Vista, entrou na praça conselheiro José de Alencar, atravessou a rua Senador José de Alencar (antiga rua das Hortas), saiu na rua do Major Facundo e seguiu até o largo do Paiol da Pólvora (Passeio Público), onde estava armada a forca. O juiz José Maria Eustáquio Vieira trajava preto, montava um cavalo preto, com arreios cobertos de preto. O carrasco Pareça seguia no seu costumado posto, em cumprimento do seu desgraçado ofício. (NOGUEIRA, 1894, p. 61).

O horário marcado, as ruas por onde passaria o préstito, a presença do juiz

trajando terno preto, montado em cavalo preto, “com arreios cobertos de preto”, o

carrasco em seu “costumado posto”... Tudo tinha sua forma, seu tempo e lugar, tudo

tinha sido planejado para gerar o máximo efeito nos que assistiam àquele espetáculo

da morte. O próprio Código Criminal, em seu artigo 40, prescrevia certas providências

a serem adotadas durante a procissão para o enforcamento:

Art. 40. O réu com seu vestido ordinário, e preso, será conduzido pelas ruas mais públicas até à forca, acompanhado do juiz criminal do lugar, aonde estiver, com o seu escrivão, e da força militar que se requisitar. Ao acompanhamento precederá o porteiro, lendo em voz alta a sentença, que se for executar.6

De acordo com Lilia Moritz Schwarcz, a procissão pública era o ritual por

excelência pelo qual o regime monárquico brasileiro ordenava o teatro da política

imperial. O tempo do coroamento de Pedro II, em 1841, parece ter marcado o

momento auge no qual o regime imperial valeu-se da função agregadora de rituais e

símbolos para promover uma almejada centralização política no país. Segundo a

autora:

Se não há governo que deixe de usar esse tipo de recurso, pode-se dizer que é somente na monarquia que rituais e símbolos ganham um lugar oficial, fazendo parte do corpo da lei. É nesse regime que a etiqueta adquire uma

6 Código Criminal do Império, 1830 art. 40.

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posição central, que a festa se realiza como uma extensão do sistema, que as insígnias representam a sobrevivência e a vigência do modelo e que o rei se transforma em ícone maior, símbolo dileto do Estado. (SCHWARCZ, 2001, p. 8)

Assim como nas peças teatrais, em que tudo era encenado segundo um

roteiro que determinava as falas e os gestos dos atores, os cortejos de execuções

capitais também seguiam uma lógica preestabelecida. Os rituais de enforcamento

começavam quando o réu era levado até o oratório para que fosse realizada a

confissão, sempre um dia antes da data marcada para a execução. No caso do

escravo Luís, executado em Aracati no ano de 1840: “No dia 24, subiu para o oratório,

assistido pelo vigário da freguesia Joaquim de Paula Galvão e pelo padre Antônio

Francisco Sampaio” (NOGUEIRA, 1894, p. 61). A confissão dos réus fazia parte das

prerrogativas legais estabelecidas no Código Criminal de 1830 para a realização da

execução, e durante todo o cortejo o réu deveria ser acompanhado por representantes

da justiça e da igreja, irmanando poder temporal e divino num mesmo desfile.

O escravo Luís havia matado um homem branco em Aracati, amante de

sua senhora, com sete facadas. O crime ocorrera em 1836, porém Luiz teve de

aguardar a decisão da justiça preso na cadeia pública de Fortaleza. Após quase quatro

anos de penosa espera, o resultado foi a da condenação à morte por enforcamento.

Dos relatos disponíveis sobre procissões em rituais de execução de escravos, o

préstito que acompanhou os últimos momentos do escravo Luís pareceu ter tido uma

especialmente forte atmosfera sagrada, a se levar em conta os detalhes expostos a

seguir:

O préstito, acompanhado pelo juiz municipal Alexandre Ferreira dos Santos Caminha, que ia a cavalo, pelo escrivão, o carrasco vindo da capital e a força pública, partiu da cadeia pela manhã. Dobrando, afinados, os sinos dos quatro templos, tendo a sua frente o porteiro José dos Santos, conhecido por José Mãozinha, que apregoava a sentença, e subiu pela rua do Comércio, voltou para o local da forca pela rua do Piolho, hoje do Rosário. O condenado ia algemado, sem chapéu, de baraço de barbante ao pescoço. Vestido de camisa branca e calça de riscados de listas encarnadas, ladeado pelo padre Antônio Francisco Sampaio e o seminarista José Bento Barbosa, que conduzia na mão a imagem de Cristo. (SANTOS, 1910, p. 66)

Segundo o estatuto do padroado, a Igreja Católica no Brasil estava

submetida ao poder temporal do Império, mas isso não significava que os serviços

religiosos fossem desvalorizados. Bem pelo contrário, no que tange aos rituais de

enforcamento a presença do sagrado, expressa pelo acompanhamento de clérigos,

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badalos de sinos, imagens sacras, bênçãos e confissões, oferecia um precioso

reconforto aos que estavam ali reunidos para assistir a uma morte provocada.

Mas aquele era um rito, sobretudo, jurídico. Isso ficava claro pela presença

destacada do juiz que, em geral, seguia à frente do cortejo, montado a cavalo, de um

escrivão e de um porteiro, este último encarregado de proclamar a sentença do

condenado por todo o percurso da procissão e também à frente do patíbulo, antes da

execução do enforcamento.

A atenção do público, porém, voltava-se preferencialmente para a figura do

condenado. Este deveria, como regra, trajar “vestido ordinário”, de cor clara, porém

não branca, e caminhava com mãos amarradas, ao redor do pescoço o baraço. Pelos

relatos disponíveis, os seis condenados pelo motim da escuna Laura 2ª estavam

“vestidos todos de camisas e ceroulas de ganga amarela”. Bonifácia, que seguiu para

a forca em 1842, vestia “calça de homem, com saia e cabeção”. Sobre o escravo

Benedito, vulgo Capitão Cebola, marchou ao patíbulo “com passo firme, vestido de

alva, descalço” (NOGUEIRA, 1894, p. 79).

Na outra ponta da corda, atrás do condenado, ia o carrasco, responsável

por garantir a morte do enforcado. Desse importante protagonista dos enforcamentos

esperava-se muito sangue frio, indiferença, coragem. Geralmente, era um condenado

pela justiça que negociava vantagens em sua pena em troca do serviço desgraçado.

Sua função não se restringia em armar a forca e arremessar o condenado; devia

completar o enforcamento subindo nos ombros do executado, estrangulando-o, gesto

designado como “cavalgar sobre o condenado”.

Mas nem sempre os carrascos no Ceará tiveram atuação regular. Por

ocasião da execução do escravo Sebastião, em Sobral, 1841, conta-se que o

condenado “mostrava coragem e presença de espírito, que contrastavam com a

covardia do carrasco.” (NOGUEIRA, 1894, p. 87).

Este, ao chegar o préstito ao patíbulo, chorava tanto, distanciando-se da forca, que o réu, sem aguardar providências do juiz, tratou de por si mesmo executar a sentença! Pôs o baraço no pescoço, subiu sozinho os degraus da forca, amarrou a corda, ouviu o sacerdote rezar o Credo; e às últimas palavras – Vida eterna! – atirou-se desembaraçadamente ao espaço, contorcendo-se pouco a pouco em agonias, por algumas horas, até expirar! A morte se deu não por estrangulação, como de costume, mas por asfixia muito demorada. (1894, p. 87).

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Ao se conduzir o cadáver de Sebastião para o enterro, uma dúvida surgiu:

tratava-se, afinal de contas, de um “justiçado” ou de um “suicida”? Seu sepultamento

somente poderia ser acompanhado pelos ritos sagrados caso se afastasse a

caracterização de suicídio. As autoridades, piedosas, permitiram enfim que o enterro

ocorresse de fato no cemitério, situado à poente da cidade de Sobral, onde jaziam os

corpos dos numerosos desvalidos que, durante a epidemia de varíola de 1825, haviam

sido ali enterrados.

Na província cearense, uma figura que ficou bastante conhecida por

exercer a função de carrasco foi o homem de nome Francisco Correia Pareça. Pareça

era um condenado a galés perpétuas por ter cometido um assassinato em Fortaleza.

Segundo Paulino Nogueira, era “caboclo baixo, de cor escura, um tanto taciturno”

(NOGUEIRA, 1894, p. 72). Pareça era uma figura problemática; enquanto esteve

preso, sempre arrumava confusão. A primeira vez em que serviu como carrasco foi

em 1835, na execução de Maximiano da Silva Carvalho, a primeira execução por

enforcamento tida na capital. Realizou em vida onze execuções, no total, dez em

Fortaleza e uma em Aracati, até abandonar a função, em 1845, após lançar João

Gregório para a eternidade. Enviado para a prisão de Fernando de Noronha, faleceu

no hospital no dia 16 de julho de 1882, com aproximadamente 86 anos de idade.

(NOGUEIRA, 1894, p. 72)

Pareça foi o carrasco responsável pelas seis execuções realizadas contra

dos escravos da Laura 2ª no ano de 1839 na capital Fortaleza.

Marchava na frente ainda, o porteiro dos auditórios Agostinho José da Silva, fazendo o pregão da sentença, seguiam atraz a cavallo, o juiz coronel Fidelis, o cirurgião José Antônio Figueiras Portugal, a direita, e o escrivão Manoel Lopes de Souza, a esquerda. Iam em seguida os seis pacientes vestidos de camisas e ceroulas de ganga amarella, algemados, com baraço ao pescoço, ladeados pelos confessores d’agonia. O carrasco, Pareça, acompanhava-os sem pegar nas pontas das cordas, tantas eram dessa vez. (NOGUEIRA, 1894, p. 52).

De tal modo, foi realizado o cortejo do maior ato de execução de escravos

na província do Ceará, tanto que o carrasco Pareça nem mesmo conseguia pegar nas

pontas das cordas, já que eram muitas. Até mesmo no momento das execuções, a

organização dos que iam primeiro foi feita com um caráter simbólico punitivo:

João Mina foi o primeiro, tinha sido o assassino do Capitão; mas chorava copiosamente; maldizia-se da sorte; pedia socorro em voz alta ao juiz, a todo mundo! Mostrava um terror e temor invencíveis a morte. Contrastava com

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suas lamentações o cynismo selvagem de Hilário, que devia seguir-se: este comia pão de ló, bebia vinho com outros dous e dizia com ar de repressão, Morre, homem, mas não dá gosto aos teos inimigos! Não obstante, o carrasco lutou por longos minutos para fazer o réo subir a forca, mas enfim consumou a tragédia legal. Seguiu-se Hilário, sua coragem foi maior que seo crime, que consistiu apenas em lançar ao mar os cadáveres do marujo Maia e do prático Felippe. Quando viu que era chegado sua vez, não foi preciso chama-lo, marchou com passo firme e ar triumphante, subiu com sobranceira de quem ia se vingar. Benedicto o terceiro. Era um cabra que ia ser vendido ao Recife. Foi o assassino de Feliciano Prates. Antonio, natural da Angola matou o Marujo, foi o quarto. Constantino o quinto na ordem das execuções. Bento foi com rasão o ultimo, porque foi o primeiro na perversidade. Quando o Capitão já esfaqueado, refugiava-se no logar do leme, foi ele quem gritou Venha a Fisga! E o lançou ao mar. Foi ele também quem matou o marujo Maia, instigou Constantino a matar o preto velho Antonio, e distribuiu pelos parceiros bebidas para encoraja-los na infernal emprezal; (NOGUEIRA, 1894, p. 52).

As execuções dos pretos do Laura 2ª seguiu-se do grau de participação na

ação do motim, sendo a última execução reservada ao escravo Bento, pois, segundo

o que havia sido apurado durante o processo, foi o que agiu com maior violência,

sendo considerado pela justiça como o cabeça do motim. Sua execução só foi

realizada quando o mesmo terminou de assistir todos os seus companheiros

padecerem na forca antes dele, ou seja, antes de ter seu fim trágico, ainda precisou

assistir seus companheiros ter as vidas ceifadas pelos representantes da justiça

imperial que utilizavam das mãos de Pareça como meio para esse fim.

O missionário norte-americano Daniel P. Kidder esteve em Fortaleza em

1839, poucos dias depois da execução dos condenados do motim na Laura 2ª. Pôde,

então, observar o “largo, junto ao forte”, onde ocorreram os enforcamentos. Chamou-

lhe a atenção as diferenças em relação ao que se dava nos Estados Unidos, quanto

às cerimônias de pena de morte:

No Brasil não se adota o cadafalso de alçapão. A forca ergue-se sobre três moirões, em forma triangular. A ela se sobe por uma escada, e, quando a corda já está ajustada ao pescoço do condenado, este é içado pelo carrasco que, para abreviar a morte, se pendura nos ombros da vítima. (KIDDER, 2008, p. 179)

Os locais escolhidos para a realização das execuções eram geralmente os

mais públicos da cidade ou vila em que tinha acontecido o crime motivador da

sentença. Mesmo quando o julgamento e a prisão aconteciam na capital da província,

o réu era escoltado até a vila em que o crime tinha sido praticado, como foi o caso do

escravo Luís, de Aracati:

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No dia 16, pela manhã, saiu Luís da cadeia da capital, escoltado por 30 praças ao comando do alferes, depois capitão, Joaquim do Carmo Ferreira Chaves, cunhado também que foi do assassinado. Acompanhava-o também o celebre carrasco Francisco Correia Pareça. [...] No dia 23, ao amanhecer, entrou a escolta no Aracati e logo se derramou pela população, com a rapidez do raio, a fatal noticia: Era enorme a quantidade de gente que corria até a cadeia para ver o condenado, que aliás, não se mostrava abatido. (NOGUEIRA, 1894, p. 285-286).

Um caso, porém, de duplo enforcamento, diverge dos aspectos mais

comuns quanto ao lugar da execução. Trata-se do que ocorreu com os condenados

Luiz e Antônio, ambos escravos de uma família maranhense que vivia na vila de

Viçosa, em 1841, na serra da Ibiapaba, ali refugiados durante os conflitos da

insurreição conhecida como Balaiada. Alguns furtos estavam ocorrendo na vila e se

descobriu que estavam sendo praticados por um grupo de escravos, entre os quais

figurava Luiz, que foi duramente repreendido por seu senhor, Inácio João de

Magalhães. Indignado pelas ameaças recebidas, Luiz armou o assassinato de seu

senhor nas vésperas da partida da família que voltava ao Maranhão. Luiz matou Inácio

João de Magalhães com um tiro de bacamarte. Em seguida, descobriu-se que o crime

havia sido preparado em conluio com o escravo Antônio, pertencente a d. Mariana,

esposa da vítima. Ocorre que Antônio, para não ser preso, fugiu para a vila de Granja,

onde foi encontrado e capturado. Luiz também já havia sido agarrado num sítio há

poucas léguas do local do assassinato.

As autoridades condenaram os escravos, mas tomaram a decisão de enforcar

Antônio em Viçosa, “por ter sido capturado na Granja”, e enforcar Luiz em Granja, “por

ter sido preso na Viçosa!” (NOGUEIRA, 1894, p. 298). O cronista Paulino Nogueira,

estranhando o fato décadas depois, opinou que aquela sentença devia-se a “lógica

jurídica daqueles tempos” (1894, p. 298). Podemos pensar, por outro lado, que aquela

decisão permitia com que as punições, ocorrendo em lugares diferentes, exercessem

sua função intimidatória sobre um público mais extenso de cativos, situados em zona

ainda bastante agitada pelos conflitos da Balaiada, revolta que, como se sabe, contou

com a participação incisiva de negros, tanto livres como escravos (ASSUNÇÃO,

2008).

Referindo-se a Inglaterra no século XVIII, um dos países em que os rituais de

enforcamento o fizeram referência para os estudos históricos sobre a pena capital,

Edward Thompson considerou que “o ritual da execução pública era um acessório

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necessário a um sistema de disciplina social dependente, em grande parte, do teatro”.

Ao que, acrescentava:

Uma grande parte da política e da lei é sempre teatro. Uma vez “estabelecido” um sistema social, ele não precisa ser endossado diariamente por exibições de poder (embora pontuações ocasionais de força sejam feitas para definir os limites de tolerância do sistema) (Thompson, 1998, p. 48).

No presente tópico tratamos da teatralização da morte de escravos como

um meio que o Estado brasileiro encontrou, em meados do século XIX, para promover

isso que Thompson define como os “limites da tolerância do sistema”. Sendo o Brasil

um dos maiores centros escravocratas naquele tempo, essas “pontuações ocasionais

de força” do estado imperial, enquanto parte do sistema de disciplina social, estavam

voltadas primordialmente contra as massas de cativos. No Ceará, mesmo sendo uma

província com reduzida presença numérica de escravos, isso não foi diferente.

A execução em praça pública de escravos, enquadrados em crimes

considerados graves (geralmente associados a ações violentas contra seus senhores,

administradores e feitores), teve início na província cearense, como no restante do

Império, num tempo em que revoltas multiplicavam-se pelo país e agitavam as massas

escravas, representando um grande perigo para o próprio sistema escravista. Da

perspectiva dos que almejavam manter o governo dos escravos sob controle, a

intimidação pelo enforcamento exemplar parecia uma saída necessária para fazer

desacreditar a confiança crescente que envolvia então as aspirações dos cativos por

liberdade.

O espetáculo do enforcamento de escravos, tendo uma função

disciplinadora muito clara, não deixava de ser igualmente um drama das tensões

sociais inerentes às relações escravistas. Todo o conjunto de acontecimentos

desencadeados pela ocorrência do delito praticado pelo escravo, até o sepultamento

do condenado, era acompanhado de perto por todos os agrupamentos da sociedade,

suscitando muita emoção e ansiedade. Desde o momento da descoberta do ato

criminoso, geralmente seguido pela fuga do cativo, rumores tratavam de colocar todos

a par de notícias que alteravam o curso regular do cotidiano. Notas eram estampadas

nos jornais e as autoridades faziam circular informações, procurando cumprir o

protocolo oficial.

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2.4 O CONTRATEATRO

Em vários momentos, ações desviantes do controle pretendido por

autoridades e senhores eram perpetradas pelos incriminados e por aqueles que se

lhes prestavam solidariedade. Durante a própria encenação incriminatória e punitiva,

punha-se em movimento a demonstração da resistência ao poder dos agentes

imperiais, chegando muitas vezes a comprometer o papel disciplinador do

enforcamento e suscitando exemplos de rebeldia.

Isso se deu, decerto, durante os dias que precederam o enforcamento dos

cativos presos por terem participado do motim na escuna Laura 2ª. Quando foram

apanhados, após dois dias de fuga pelas matas desabitadas próximas à vila de

Cascavel, os negros do motim foram levados a Fortaleza e, ali, uma multidão os

aguardava. Conta o historiador oitocentista João Brígido dos Santos que era “grande

a expectação, quando esta gente chegou à casa do juiz de paz [...] Todos queriam ver

os criminosos, não pela estranheza da culpa, onde se matava tanto, mas pela sorte

que os aguardava, ex vi das leis da escravidão, que giram noutro eixo, que não o do

direito”. (SANTOS, 2009, p. 164).

Os que conseguiram assistir à concorrida sessão do tribunal do júri de 18

de julho puderam ouvir o réu Constantino falar da fome que passavam, ele e seus

companheiros negros, em alto mar, das ameaças de açoite por parte do capitão, das

humilhações que vinham sofrendo. Hilário, um dos cativos, nascido no Brasil assim

como Constantino, recebera no rosto um golpe dado com uma colher do contramestre

de bordo, quando pedia por mais comida. O depoimento apresentou o ponto de vista

dos cativos, revelou os bastidores da conspiração dos amotinados e a argumentação

encorajadora de Constantino para seus companheiros, dizendo que “em muitas partes

já tinham acontecido desordens por motivo de falta de comer!” (SANTOS, 2009, p.

158).

Mesmo encontrando-se acuados, amarrados e alquebrados pelas torturas

sofridas quando foram enfim capturados, após resistirem à prisão, o exemplo de

rebeldia dos escravos da escuna Laura 2ª parece ter inspirado ameaças à ordem

pública, aquela dos senhores. Os meses de espera pela sentença final do julgamento

não deve ter diminuído a tensão na pequena cidade de Fortaleza, pois quando o juiz

municipal marcou para o dia 19 de outubro de 1839 a data da execução dos

condenados (data que seria ainda adiada para 22 de outubro), um forte esquema de

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segurança foi montado, sendo solicitada ao chefe da legião da Guarda Nacional a

disposição, desde as 6 horas da manhã, de uma tropa composta por um capitão, um

tenente, um alferes e cinquenta praças; também devia comparecer todo o corpo

policial da cidade e os praças de 1ª linha que se achassem presentes naquele dia

(NOGUEIRA, 1894, p. 53). Tanta mobilização de força teve seu motivo, pois o clima

de conspiração pesava na atmosfera de Fortaleza. Uma folha que fazia oposição ao

presidente de província anunciava, dias antes do enforcamento:

Rumores se têm espalhado pela cidade de que no dia da execução dos assassinos da Laura 2ª premedita-se um – S. Bartolomeu – nos oposicionistas: outros, porém, aparecem de que tenta-se somente assassinar os srs. Facundo, Miranda e José Lourenço.7

Sem que se saiba com qual intenção precisa, a matéria do Correio da

Assembleia Provincial do Ceará sustenta que os rumores que circulavam pela cidade

ameaçavam aqueles membros da oposição política ao presidente da província. Mas

isso não descarta o entendimento de possíveis outros significados desses rumores.

Afirma James C. Scott que os rumores são um dos mais consagrados meios pelos

quais setores subalternos da sociedade estabelecem os discursos ocultos que

compõem suas formas cotidianas de resistência. Adotando essa perspectiva,

pensamos que havia na capital cearense daqueles dias articulações ou, ao menos,

aspirações de revolta popular, ditas a boca miúda, que suscitavam a sensação de

insegurança por parte das elites locais. Que o delineamento de tais rumores não fosse

muito claro para os agentes do poder, isso não chega a ser algo surpreendente, haja

vista que, como disse ainda Scott:

Uma das grandes ironias das relações de poder é o fato de as atuações exigidas aos subordinados poderem converter-se, nas suas mãos, numa barreira quase intransponível e capaz de tornar a vida dos dominados opaca para as elites. (SCOTT, 2013, p. 188).

Evidências de atitudes insubordinadas permeiam as narrativas sobre

outros enforcamentos ocorridos no Ceará. A escrava Bonifácia, tendo sido condenada

por assassinar o filho de seu senhor de quatorze anos, enquanto aguardava o dia da

execução, conseguiu fugir, cavando um buraco na parede da cadeia pública, porém

foi recapturada, dias depois, em Jacarecanga, então arredores de Fortaleza, quando

7 Correio da Assembleia Provincial do Ceará, suplemento, Fortaleza, 19/10/1839, p. 5.

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se passava por lavadeira, carregando uma trouxa de roupa na cabeça. Mais sorte teve

a cativa Raimunda, de Icó. Condenada à forca em 1841, após seis meses sofrendo

ameaças e açoites, conseguiu livrar-se da morte, evadindo-se da cadeia da vila sem

nunca mais ter sido encontrada. Quanto ao escravo Benedito, apelidado de Capitão

Cebola, era já um escravo fugido que vivia pelos mangues nos arredores de Fortaleza

quando foi capturado por ter matado uma criança que atravessava as matas do Cocó,

levando pão e carne para seu senhor. Descoberto, preso e torturado, Capitão Cebola

foi levado “algemado e carregado de ferros” ao oratório, um dia antes do

enforcamento. “Tratando-se de uma fera”, afirmou o presidente da província, “é

preciso, ainda nesta hora extrema, trazê-la bem segura” (NOGUEIRA, 1894, p. 78).

Mas o que as autoridades julgavam ser uma ameaça à ordem podia provir

de outros sujeitos que não fossem os próprios condenados. As aglomerações de

pessoas que acompanhavam as procissões e assistiam atentas aos enforcamentos

não pareciam aspirar confiança aos governantes, daí porque eram sempre vigiadas

de perto por soldados destacados para conter qualquer tumulto. O dia marcado para

o justiçamento do escravo Benedito, o Capitão Cebola, amanheceu sob intenso

aguaceiro, mas isso não impediu que à frente da cadeia ficasse reunida uma multidão

de cerca de três mil pessoas. Prorrogado o enforcamento para depois da chuva,

aquele ajuntamento aguardou até o início da tarde, quando enfim partiu o cortejo,

acompanhando o condenado. Eram tantos, que o desfile pelas principais ruas da

cidade foi cancelado e o condenado seguiu direto para o local onde havia sido erguido

o patíbulo, logo ao lado, na praça da Amélia, há poucos metros de distância. Guardas

fizeram um cerco de proteção ao redor do escravo Benedito e das autoridades

(NOGUEIRA, 1894).

Decerto, o que mais despertava o temor dos agentes estatais era a forte

emoção que tomava conta das multidões nos dias do enforcamento. A existência,

entre o público que assistia aos rituais de enforcamento, de um sentimento de

reprovação contra aquele ato foi o motivo da notícia, publicada no periódico

fortalezense O Commercial, numa matéria que tinha como título: “O justiçado do dia

18”.

Mais uma execução de pena última em nossa capital! Ontem, por uma hora da tarde, no campo da Amélia que é nossa praça de Grève, foi justiçado o infeliz Cebola, alcunha por que era conhecido o escravo Benedito, acusado de assassínio.

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Atos tais, que justamente se consideram como o reproche mais solene ao bom senso da sociedade que os tolera, nunca deixam de abalar de um modo doloroso aos que se condoem da triste humanidade quando, espezinhada em seus foros, parece gemer ao impulso da crueldade. Estes sentimentos naturalmente suscitados pelo horror duma execução, isto é, dum assassinato social, ou de um homicídio determinado pela justiça, com todo o aparato da legalidade, afim de punir outro homicídio, ocasionado pelo crime, como que ainda impressionam os habitantes da capital.8

Paulino Nogueira narra que, quando viram passar o escravo Benedito em

direção à forca, “todos choravam e tão alto que o choro dava para ouvir-se ao longe,

a semelhança de uma chuva que se aproximava” (NOGUEIRA, 1894, p. 80). A

compaixão em relação ao condenado que seguia para a morte concorria com o

sentimento de vingança ou de indignação contra o crime que esse havia praticado. No

caso do escravo Benedito, seu delito havia vitimado um criança praticamente

indefesa, porém isso não fez com que a maioria presente ao seu enforcamento

deixasse de lhe prestar apoio, erguendo seu pranto de dor e piedade. Sentimentos de

comoção também puderam ser percebidos durante a execução do escravo Antônio

em Viçosa

N’essa occasião surgio da multidão um velho, que chamou em socorro do réo a bandeira da misericórdia; e dizem que a própria senhora gritava em vozes altas da sua casa, que ficava próxima: Pega-te, meu negro, com a bandeira da misericórdia! Mas o juiz da execução, Francisco Gonçalves de Magalhães, o pae da victima e o povo gritavam ainda mais alto: Morra negro! Morra negro! (NOGUEIRA, 1894, p. 299).

Estudos de João José Reis revelaram o quanto a arte da boa morte pôde

mobilizar a sociedade brasileira no século XIX (REIS, 2009; REIS, 2001). Sendo a

crença mais difundida (um dado tanto da tradição católica europeia quanto das

provenientes da África), a de que a morte era apenas um momento de passagem, de

uma alma imortal que se desprendia de um corpo finito, muitos dos que

acompanhavam os préstitos dos condenados sentiam-se corresponsáveis por

interceder em favor daquele que em breve deixaria nosso mundo. Daí tantos prantos

e orações dirigidos aos condenados. Nesse sentido, a disposição das multidões que

observavam as procissões dos enforcados visava colaborar com o próprio cortejo.

Por outro lado, a empatia em relação à figura do condenado que o momento

solene promovia poderia representar um fator de instabilidade, caso algum quesito

visto com indispensável para a boa morte do réu não fosse contemplado. Numa época

8 O Commercial, Fortaleza, 19/04/1855.

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de reformas urbanas e medicalização, quando novas práticas de sepultamento

pareciam desafiar a tradição funerária em várias cidades do país, a população

mantinha-se alerta para evitar um tipo indesejável de morte, pois se acreditava que

recompensas e punições poderiam recair sobre os vivos, assim como sobre o espírito

dos mortos, dependendo da forma como se procedia a passagem para o além.

A morte prematura, a morte por feitiçaria, a falta de ritos fúnebres ou os

sepultamentos inadequados eram tidos como formas impróprias de morrer e a elas

estavam associados diversos malefícios. Acreditamos que para muita gente a morte

por enforcamento deveria, de alguma maneira, estar associada a essas formas

inadequadas de morrer, pois se sabe que a dialética do corpo no imaginário popular,

como apontou José de Souza Martins, implicava em compreender que ele, o corpo,

“era um corpo carnal e simbólico ao mesmo tempo”. Nessa concepção, o corpo

humano não pertencia aos homens, não devendo ser profanado por mão humana

(MARTINS, 2015, p. 168). Convém então fazermos alusão ao historiador Peter

Linebaugh que mostrou a tensão suscitada na segunda metade do século XVIII,

quando se intensificou o confisco pelo Estado ou a usurpação ilegal dos cadáveres

dos enforcados na praça de Tyburn, em Londres. Os cadáveres dos condenados eram

vendidos para que estudantes e professores utilizassem-nos nas aulas de anatomia,

nos cursos de medicina ou cirurgia da Inglaterra. Parentes e amigos dos condenados,

no entanto, não aceitavam aquilo que era tomado como uma violação profana do

corpo dos enforcados e disputavam à força os corpos ao pé da forca, visando lhes

garantir um enterro digno. Isso provocava distúrbios frequentes e, às vezes, revoltas

de grandes proporções nos dias de justiçamento (LINEBAUGH, 1975). As cerimônias

de enforcamento tornavam-se, assim, momentos potencialmente explosivos.

As últimas palavras dos condenados ganhavam, nesse sentido, um efeito

todo especial. Daí tanta atenção direcionada aos menores gestos dos réus quando se

dirigiam à forca. Sobre a escrava Bonifácia, observou-se que marchava para o

cadafalso “sem se mostrar acovardada” e que, “ao passar pela casa do senhor, lançou

para ela um olhar muito expressivo – de quem queria proferir algumas palavras. As

portas, porém, estavam fechadas.” (NOGUEIRA, 1894, p. 66-67). Memorável também

foram os gestos e as palavras de Capitão Cebola:

Apenas o réu chegou ao cimo do patíbulo, disse em voz alta, em linguagem incorreta, mas inteligível – Peço a todos um Padre Nosso e uma Ave Maria! E dirigiu-se para o carrasco: – Manoel, eu te perdoo a morte. Meu carrasco

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não devia ser tu, mas o carrasco do Velho Machado! (NOGUEIRA, 1894, p. 67)

O enfrentamento da morte com coragem parece servir como mensagem

lançada ao público observador. Com relação ao enforcamento coletivo dos

amotinados da escuna Laura 2ª, o encorajamento pôde ser compartilhado entre os

companheiros cujo destino era o mesmo. Vendo o escravo João Mina chorar

copiosamente na frente da forca, maldizendo-se da sorte e pedindo socorro, Hilário,

que comia pão de ló e bebia vinho naquele instante, disse ao colega com repreensão:

“Morre, homem, mas não dá gosto aos teus inimigos!” O próprio Hilário, quando

chegou a sua vez, adiantou-se ao chamado do carrasco, “marchou com passo firme

e ar triunfante, subiu com sobranceira de que ia se vingar” (NOGUEIRA, 1894, p. 52).

Percebemos que, da parte dos escravos condenado, não faltaram também

gestos e palavras dramáticas que dialogavam com as expectativas daqueles que

assistiam aos rituais de enforcamento. De vítimas, enquadrados pelas rigorosas leis

do Império, punidos com a pena máxima, roubavam a cena e, ainda uma vez mais,

desafiavam a ordem de seus senhores. Podemos descrever tais atitudes, com

Thompson, como parte do contra teatro de poder acionado pelos subalternos: “Assim

como os governantes afirmavam a sua hegemonia por um estudado estilo teatral, os

plebeus afirmavam a sua presença por um teatro de ameaça e sedição” (THOMPSON,

1998, p. 65).

A execução em praça pública de escravos, enquadrados em crimes

considerados graves (geralmente associados a ações violentas contra seus senhores,

administradores e feitores), teve início na província cearense, como no restante do

Império, num tempo em que revoltas multiplicavam-se pelo país e agitavam as massas

escravas, representando um grande perigo para o próprio sistema escravista. Da

perspectiva dos que almejavam manter o governo dos escravos sob controle, a

intimidação pelo enforcamento exemplar parecia uma saída necessária para fazer

desacreditar a confiança crescente que envolvia então as aspirações dos cativos por

liberdade.

Considerações mais gerais sobre a eficácia do recurso ao enforcamento

como método de controle sobre os escravos ultrapassariam as possibilidades de

discussão do presente capítulo. Porém, não seria possível deixar de lado as

demonstrações de resistência, por parte dos escravos condenados e outros atores

sociais, que, por vezes, comprometiam o papel disciplinador dos enforcamentos,

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chegando a oferecer expressivos exemplos de rebeldia. Sendo os enforcamentos

rituais multitudinários marcados por forte emoção, pudemos perceber que elementos

como tentativas de fuga, rumores, aspirações de revolta, costumes fúnebres e as

próprias últimas palavras dos condenados podiam se constituir em fatores

instabilizadores do teatro do poder.

Enfim, há que se notar que os rituais de enforcamento de escravos tiveram

vida curta na província cearense, antecedendo em duas décadas o declínio da

escravidão, sendo o último justiçamento registrado no ano de 1855. Fatores sociais

complexos – relacionados à própria consolidação do estado imperial, ao afastamento

dos perigos das revoltas sociais e ao declínio dos contingentes de escravos na

província com a intensificação do tráfico de cativos para outras regiões do país –

podem ser apontados como elementos que explicam a relativa brevidade dos

enforcamentos de cativos no Ceará. De toda maneira, sabemos que os próprios

escravos condenados exerceram papel ativo, contribuindo por desacreditar que a

morte na forca fosse capaz de extinguir suas aspirações por liberdade e sua rebeldia.

A teatralização da morte de escravos na forca apresentava falhas

enquanto mecanismo de controle social. Mais uma vez é Paulino Nogueira quem

oferece a crônica, criada com base nos relatos que colheu sobre o dia do

enforcamento do escravo Benedito, vulgo Capitão Cebola, último cativo executado em

Fortaleza:

Um quarto de hora depois, si tanto, quando o povo se dispersava com mostras de comoção, um caboclo trava-se de razões com outro, ao enfrentar a S. Casa, onde é hoje o teatro S. Luiz, e quase o mata com uma faca! Na altercação, dizia para o contendor – Tu pensas que eu tenho medo daquilo? (apontando para o patíbulo). Forca só se fez para homem! (NOGUEIRA, 1894, p. 80-81)

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3 CRIMES

Após observar como as execuções de escravos no Ceará constituíram-se

em uma teatralização do poder imperial (suscitando um correspondente contrateatro,

protagonizado pelos executados e outros sujeitos históricos), no capítulo anterior,

passamos agora a analisar o universo da criminalidade na província cearense afim de

compreendermos as atitudes dos cativos consideradas ameaçadoras à ordem local e

os motivos que levaram as autoridades a condenação de parte desses escravos à

pena máxima do enforcamento. As discussões vão girar em torno do que Boris Fausto

define como crime e criminalidade. As duas expressões têm sentidos específicos,

como se segue:

‘Criminalidade’ se refere ao fenômeno social na sua dimensão mais ampla, permitindo o estabelecimento de padrões através da constatação de regularidades e cortes; ‘crime’ diz respeito ao fenômeno em sua singularidade cuja riqueza em certos casos não se encerra em si mesma, como caso individual, mas abre caminho para muitas percepções. (FAUSTO, 1984, p. 09).

Perceber as ações de resistência individuais dentro de uma lógica de

resistências coletivas nos levam também à discussão sobre o fenômeno da resistência

individual dentro de uma dimensão mais ampla das ações de resistências coletivas

dos cativos em busca da liberdade. Para os aprofundamentos das discussões no

presente capítulo, discutiremos com as obras Crime e escravidão de Maria Helena

P.T Machado, Crimes em comum, livro de Ricardo Alexandre Ferreira, e Senhores e

Caçadores de E.P Thompson, para obter um melhor aprofundamento das lutas

travadas pelos cativos e dos crimes como ato de resistência aos maus tratos do

cativeiro. Não poderíamos entender as dimensões das resistências sem obras de

João José Reis, sobre resistência escrava, e o artigo Formas cotidianas de resistência

camponesa, de James C. Scott (que nos fez compreender que em pequenos atos

cotidianos podem ser encontradas manifestações de resistência).

Por meio do levantamento das trajetórias particulares das ações que

motivaram os crimes dos cativos contra seus senhores ou agregados da família, ou

mesmo funcionários das fazendas, pretendemos traçar um plano geral da

criminalidade escrava na província cearense, e compreender como os atos de

resistência se configuraram como crimes penalizados com a morte. De tal modo,

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poderemos compreender melhor as dinâmicas das lutas pela liberdade e resistências

cativas na província do Ceará no século XIX.

3.1 REVOLTAS

Essa história começa nas primeiras décadas do século XIX, quando o Brasil

deixava para trás a antiga condição de Colônia e experimentaria a recentemente

adquirida condição de Império independente. Nesses tempos, demarcou-se uma luta

intensa pela instalação da administração imperial que, após a abdicação de D. Pedro

I em 1831, descentralizaria o domínio político, dando início a diversas disputas pelo

controle do Império. Desde os tempos da Independência, passando por todo o

Primeiro Reinado (1822-1831), até o fim do Período Regencial (1831-1840), o novo

regime político brasileiro foi profundamente marcado pela grande efervescência de

movimentos impulsionados por diferentes motivações e que eclodiram em todas as

regiões do Império. Movimentos nos quais indivíduos de diferentes segmentos sociais

manifestaram suas oposições contra a ordem estabelecida, contribuindo para o clima

de instabilidade que se deu no momento de luta pelo domínio imperial.

A abdicação de D. Pedro I, em 7 de abril de 1831, marco inicial de transição

para o Período Regencial é retomado como momento de disputa em torno de

diferentes projetos de nação, em perspectivas diversas que vão das discussões na

arena estritamente política, passando pelos conflitos sociais em torno do processo de

integração das regiões ao projeto centralizador na Corte imperial, até lugar de homens

e mulheres de cor na construção da nação. Nas palavras de Ilmar Rohloff Mattos:

Os anos que se seguiram a abdicação foram anos de levantes, revoltas, rebeliões e insurreições. De sonhos frustrados e de intenções transformadoras em ações vitoriosas. Foram sem dúvida, anos emocionantes para aqueles que viviam no Império do Brasil. (1987, p. 10).

Não por acaso, a Regência é referida como o período das instabilidades

políticas, de levantes, revoltas, rebeliões e insurreições, como bem destacou Ilmar

Mattos em O Tempo Saquarema. Um momento clímax do processo de conformação

da ordem advinda com a Independência. Privilegiando a política parlamentar e

abordando com minúcia as disputas entre as diversas propostas e os grupos que iam

se delineando, Marcello Basile mostra que o 7 de abril inaugurou um momento ímpar

de experimentação política, em que uma diversidade de fórmulas políticas foram

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apresentadas e experimentadas, e de participação popular, ainda que não na política

institucional, mas nas ruas, de um amplo leque de grupos e estratos sociais, chegando

a ser identificado por Marco Morel como um grande "laboratório" político e social, no

qual as mais diversas e originais fórmulas políticas foram elaboradas e diferentes

experiências testadas.

Uma primeira observação que deve ser feita trata-se da historiografia

acerca das revoltas do Período Regencial. Durante muito tempo, as narrativas

historiográficas concentraram seus esforços sobre os movimentos de maior amplitude

nas províncias, aqueles que receberam maior atenção da administração imperial e,

muitas das vezes, atribuindo características sobretudo negativas, ressaltando as

revoltas ocorridas como sinônimo de anarquia e empecilho ao estabelecimento da

ordem. Aqui, pretendemos abordar as revoltas Regenciais em suas próprias bases e

não como um momento de transição política entre a abdicação e o chamado regresso

conservador. Na tabela abaixo, listamos alguns dos outros movimentos que sacudiram

o Período Regencial e que em alguns casos não são tão conhecidos quanto outros:

Tabela 3 – Revoltas do Período Regencial

Revoltas regenciais Ano Localização Tendência

Revolução do 7 de abril 1831 1831 Corte Exaltada/

Moderada

Mata-Marotos 1831 Bahia Exaltada

Revolta do povo e da tropa 1831 Corte Exaltada

Revolta do povo e da tropa 1831 Pará Caramuru

Setembrada 1831 Maranhão Exaltada

Setembrada 1831 Pernambuco Exaltada

Distúrbios do Teatro 1831 Corte Exaltada

Levante da ilha das Cobras 1831 Corte Exaltada

Novembrada 1831 Pernambuco Exaltada

Revolta de Pinto Madeira e Benze-

Cacetes

1831-

1832

Ceará Caramuru

Levantes federalistas (seis) 1831-

1833

Bahia Exaltada

Sedição de Miguel de Frias e

Vasconcellos

1832 Corte Exaltada

Sedição do rio Negro 1832 Pará Exaltada

(continua)

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Fonte: BASILE, Marcello. O laboratório da nação: a era regencial (1831-1840) In: GRINBERG, Keila;

SALLES, Ricardo (org.). O Brasil Imperial (1808-1870). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Vol. 1,

2009, p. 53-119.

Acima, reunimos alguns dos movimentos e suas principais tendências.

Porém, frisamos a importância de compreender tais movimentos enquanto

manifestações de segmentos populares. A frente desses movimentos, estavam

facções políticas com projetos e linhas de ação distintas, assim como movimentos

anti-lusitanos. Mas também alguns outros grupos eram formados por segmentos

sociais diversos, como índios, livres pobres, negros libertos e também os escravos

que, em alguns movimentos, chegaram a assumir a frente dos protestos como na

Revolta de Carrancas em Minas Gerais, no levante dos Malês na Bahia e na Rebelião

de Manuel Congo no interior do Rio de Janeiro.

Para esse primeiro momento, abordaremos algumas das Revoltas que

tiveram desdobramentos logo após abdicação de D. Pedro I em 1831. Analisaremos

Revolta do Barão de Bülow 1832 Corte Caramuru

Abrilada 1832 Pernambuco Caramuru

Assuadas (duas) 1832 Corte Caramuru

Cabanada 1832-

1835

Pernambuco-Alagoas Caramuru

Revolta do Ano da Fumaça 1833 Minas Gerais Caramuru

Carrancas 1833 Minas Gerais Escrava

Revolta do povo e da tropa 1833 Pará Exaltada

Conspiração do Paço 1833 Corte Caramuru

Rusga Cuiabana 1834 Mato grosso Exaltada

Carneiradas 1834-

1835

Pernambuco Exaltada

Malês 1835 Bahia Escrava

Cabanagem 1835-

1840

Pará Exaltada

Revolução Farroupilha 1835-

1845

Rio Grande do Sul- Santa

Catarina

“Exaltada”

Sabinada 1837-

1838

Bahia Exaltada

Rebelião de Manuel Congo 1838 Rio de Janeiro Escrava

Balaiada 1838-

1841

Maranhão e Piauí “Exaltada”

(conclusão)

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as tendências presentes nas revoltas, quais eram as bandeiras e projetos levantados

pelos sujeitos que as compunham e, o desenrolar das mesmas durante o tempo que

os conflitos estiveram ativos até serem sufocados pelas autoridades imperiais. No

segundo momento, analisaremos revoltas que tiveram uma maior participação de

escravos, com pretensões antiescravistas como norteadoras de suas ações.

Da primeira onda de revoltas que tiveram início logo após o episódio da

abdicação do trono, a Revolta de Pinto Madeira (1831-1832) no Ceará, surgiu como

um movimento contrário a saída do monarca e, tinha como uma de suas principais

pautas motivações a restauração do Imperador D. Pedro I ao trono do Império

brasileiro. De acordo com a historiadora Ana Sara R. P. Cortez Irffi.

No ano de 1831, a vila de Crato, sede de Comarca do Cariri Cearense, foi invadida por homens que, segundo relatos, carregavam ‘cacetes e facas’ e infundiam terror à população da vila. Ainda conforme as notícias, eram os ‘homens de Jardim’, inconformados com a abdicação de D. Pedro I, pois acreditavam que o monarca teria sido obrigado a deixar o cargo e voltar para Portugal. Sobre o comando desses homens estavam Joaquim Pinto Madeira e o Padre Manoel Antônio de Sousa. Essa revolta, que durou até meados de outubro de 1832, ficou conhecida como Guerra Civil ou revolta do Pinto Madeira e seu ‘exército’, como cabras. (2017, p. 201).

Inconformados com a abdicação de D. Pedro I do trono e acreditando que

o monarca teria sido obrigado a deixar o trono, um grupo sob o comando de Joaquim

Pinto Madeira e o Padre Manoel Antonio de Souza organizaram uma revolta na

Comarca do Cariri Cearense que ficou conhecida como Revolta de Pinto Madeira.

Na região do Cariri cearense, a revolta de Pinto Madeira e seu ‘exército’ de

cabras atraiu a atenção das autoridades imperiais que viam na organização do

movimento, a defesa da restauração de D. Pedro I ao trono, o que ia contra os

interesses dos liberais que defendiam a Regência pela Constituição de 1824. As

autoridades da Província cearense declararam imediatamente o movimento incitado

por Joaquim Pinto Madeira e o padre Manoel Antônio de Souza como inimigo da

liberdade, e ao grupo de homens e mulheres que os acompanhavam, atribuíram uma

denominação de cabras, nomenclatura que atribuía todas as marcas consideradas

marginais aos sujeitos assim identificados.

De um lado, os interesses restauradores dos cabeças da revolta, do outro

as tentativas das autoridades em sufocar os revoltosos, que diziam-se defensores da

liberdade e da Constituição, e ainda a participação do ‘exército’ de Pinto Madeira, os

cabras. A participação dos cabras nessas lutas possuíam interesses diversos do que

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percebiam as elites senhoriais e as autoridades tanto da região do Cariri, quanto até

mesmo da província cearense. Desqualificados pelas autoridades como massa de

sujeitos marginais levados pela incitação de terceiros, ou seja, considerados como

uma massa moldável às pretensões dos líderes da revolta. Ao contrário do que

pensavam as autoridades sobre essa massa popular que acompanhava Pinto

Madeira, suas reivindicações tinham raízes na defesa de condições básicas de

sobrevivência e contra uma nação brasileira que se tornava independente e relegava

a essa parcela da sociedade a exclusão do direito à cidadania. No caso da província

do Ceará, a revolta de Pinto Madeira figura-se como um dos momentos em que a

adesão ao novo Império e administração política por meio dos regentes não se deu

de forma pacífica, mas sim por meio da imposição armada e violenta.

A participação de sujeitos das camadas populares não se restringiu

somente a revolta de Pinto Madeira na província do Ceará. Muito pelo contrário,

constata-se seu engajamento em outros movimentos durante o período Regencial.

Sobre a participação dessa parcela da sociedade, os historiadores Sérgio Buarque de

Holanda e Emília Viotti da Costa sugeriram que, com o processo de Independência

do Brasil, a participação de sujeitos sociais pertencentes as camadas populares

passou a ter uma presença cada vez mais frequentes. Estes, tendo acreditado nas

promessas das liberdades cidadãs, amplamente propaladas durante o movimento da

Independência, sentiram-se traídas com a manutenção do mundo dos privilégios,

externando sua indignação e inconformismo nas rebeliões regenciais populares.

Sérgio Buarque de Holanda foi mais a fundo em suas análises e percebeu

as rebeliões populares da Regência como resultados da indignação pela continuidade

das injustiças e exclusão do pacto político, que admitia como cidadãos os sujeitos que

detinham o direito político do voto, e este, por ser censitário, excluía uma grande

parcela da população que não possuía condições financeiras para exercer a cidadania

aos moldes da Constituição de 1824. O autor sugere que as revoltas populares no

caso da província do Pará foram decorrentes das insatisfações entre os populares

com o processo de Independência:

[...] As populações nativas esperavam, com a Independência, “uma liberdade completa, liberdade constitucional mal entendida”, dir-se-ia mais tarde. No entanto, continuava o regime da escravidão, das violências…. Os nativos já se viravam contra os brancos que pela cor da pele já lhe pareciam reinóis ou seus adeptos. [...]. (HOLANDA, 1967, p. 86).

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Movimentos sociais que contaram com enorme participação popular, a

Cabanagem (1835-1840) e a Balaiada (1838-1841) mobilizaram um grande

contingente de pessoas dos mais variados segmentos sociais, colocando em pauta

diversos projetos que nem sempre eram compartilhados por todos. A intensidade da

luta e o elevado número de pessoas que aderiram à causa dos rebeldes assustaram

as autoridades imperiais. Foram lutas sangrentas, que visavam, entre outras coisas,

quebrar a hegemonia dos portugueses no comércio, já que estes eram amplamente

responsabilizados pelo alto custo de vida e, consequentemente, pela miséria que

atingia grande parte da população.

No caso da Cabanagem no Pará, suas raízes estavam ligadas ao processo

de independência e à oposição entre os que defendiam o projeto recolonizador da

Corte portuguesa e aqueles ligados ao projeto de emancipação brasileira. A

Cabanagem foi um movimento social que agregou uma ampla frente de participação

popular e a diversidade dos projetos ali reunidos eram tanta que levou ao choque de

interesses e colaborou com o seu posterior enfraquecimento. Em Cabanos,

patriotismo e identidades, Magda Riccianalisa o segundo ciclo de revoltas do período

regencial no norte do Império. Ela mostra que a província do Pará, longe de ser isolada

e pouco povoada, como se pretendeu em várias análises, estava interligada a rotas

internacionais através do comércio intercontinental e da circulação de pessoas e

ideias entre a região e os países vizinhos.

Características semelhantes também podem ser observadas no caso da

Balaiada, movimento que ocorreu no Maranhão e no Piauí e chegou até mesmo a

repercutir em algumas vilas da província do Ceará, entre os anos de 1838 e chegou a

durar até o ano de 1841. A Balaiada chegou a registrar entre seus participantes uma

forte presença popular que dinamizou a base social da revolta, dotando-lhe de um

caráter multiclassista. Nas palavras de José Murilo de Carvalho, a Balaiada foi um

“conflito de elites que aos poucos se torna guerra popular” (CARVALHO, 2007, p. 253).

A diversidade dos rebeldes também pode ser percebida na participação

cearense. Na região que engloba as cidades de Sobral e Granja, áreas próximas à

fronteira com o Piauí, foram registrados contatos e alianças de proprietários de terras

cearenses com os rebeldes balaios. Neste sentido, o ofício nº 02, de 11 de março de

1840, enviado pelo então presidente da província do Ceará, Francisco de Sousa

Martins, ao ministro da justiça, Francisco Ramiro D’Assis Coelho, é bastante revelador

das redes de ligações do movimento com algumas pessoas do Ceará.

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Cumpre-me participar a V. Exa. que na Villa de Granja d‟esta Provincia tem aparecido alguns indicios de connivencia com os rebeldes das Frexeiras; mas julgo que elles não terão consequencia mediante as providencias que tenho dado para prevenir qualquer rompimento.9

Interessante perceber neste trecho que o presidente buscou enfatizar que,

no Ceará, este movimento não teria força, mas diversos foram os grupos sociais no

Ceará que sofreram influências dos rebeldes. O próprio Francisco de Souza Martins

forneceu pistas sobre a origem social dos sujeitos que se rebelaram contra as

autoridades. Em seu relatório anual de 1840, informou que

Da Povoação de S. Pedro, no termo de Villa Viçoza evadirão-se muitos Indios com suas familias para se reunirem ao sequito das Frecheiras, cujos chefes empregavão os esforços possíveis não só para atrair (sic) os Indios de outras Povoações, como também os demais habitantes dos outros Municípios visinhos. Individuos desfarçados forão por elles enviados com proclamações e cartas, convidando os povos a rebelião, e excitando-os com o engodo das propriedades dos legalistas.10

A fuga dos índios para juntaram-se as forças rebeldes evidencia a situação

dos índios do Ceará naquele momento, ao optar pelo engajamento com os balaios,

declaravam insatisfação em relação as condições de vida e a posse da terra na

província. Os sujeitos que aderiram a Balaiada entenderam que ali estava uma

oportunidade para melhorar suas condições de vida.

Uma das principais causas de insatisfação entre homens livres pobres e

libertos era a questão do recrutamento, grande causador de conflitos, pois expunha

as contradições e hierarquias sociais. Era comum, durante os períodos de lutas pela

Independência a incorporação de sujeitos pertencentes às camadas populares da

sociedade para combater juntamente com as tropas oficiais do Império. Na maior parte

das vezes, eram recrutados com o uso da força. De acordo com Tyrone Cândido:

A incorporação popular nas tropas atuantes nas lutas desse período resultou em complexos desdobramentos sociais. Aquele tempo foi marcado por recrutamentos em massa, muitas vezes forçados, pelo disciplinamento de tropas com métodos violentos, pela vigilância tentando conter as deserções frequentes, pela perseguição a esses desertores, pelos castigos físicos e as

9 Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC). Fundo: Governo da Província. Série: Correspondência Expedida.

Livro de Registro da Correspondência da Presidência da Província do Ceará dirigida o Ministério da Justiça,

1835-1843, Livro nº 30. Ofício do presidente da província do Ceará, Francisco de Souza Martins, ao ministro da

justiça, Francisco Ramiro de Assis Coelho, nº 02, 11 de março de 1840, fls. 86.v e 87. 10 Relatorio com que apresentou o Exm. Senhor Doutor Francisco de Souza Martins, presidente desta província,

na ocasião da abertura da Assembleia Legislativa provincial no dia 1° de agosto de 1840. Ceará, Typ.

Constitucional. Anno de 1840, p 06.

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prisões sofridos pelos soldados recalcitrantes, pela fome e falta nos pagamentos durante as duras jornadas movimentando-se pelas quentes veredas na caatinga (CÂNDIDO, 2018, p. 8).

O recrutamento forçado, já utilizado em vários momentos de conflitos,

desde os episódios de 1817 e 1824, também fora utilizado para combater os rebeldes

do Período Regencial. Por conta da “massificação operada pelo recrutamento”, aos

trabalhadores pobres livres, assim como a incorporação de índios, escravos e libertos,

igualmente feito em larga escala, provocou uma resistência de grandes proporções.

Essas experiências traduziam-se em uma diversidade de projetos e de

ações políticas, expressão do antagonismo fervilhante entre os diversos grupos

sociais, representantes de interesses diversos, econômicos, sociais, políticos ou

raciais. Alguns desses movimentos ocorridos nas províncias, sua relação com a Corte,

os projetos de identidade nacional e a participação popular, são analisados por

Marcus Carvalho em Movimentos sociais: Pernambuco (1831-1848), e em Cabanos,

patriotismo e identidades, por Magda Ricci. Nos dois textos, publicados no volume II

de O Brasil Imperial, organizado por K. Grinberg e Ricardo Salles, a data da Abdicação

é novamente o divisor de águas que mobiliza esses grupos e radicaliza as oposições.

Entretanto, os acontecimentos e seus desenvolvimentos são vistos neles como parte

de um processo histórico de longa data, envolvendo questões políticas e sociais

engendradas no enfrentamento entre os interesses dos diversos grupos em disputa.

Ambos articulam o plano político institucional das tentativas do governo na Corte de

tomar o controle sobre as províncias ao plano regional e cotidiano das querelas locais

e aos sentidos da liberdade atribuídos pelo povo, atentando para a precariedade das

liberdades individuais. A participação popular é aqui posta em relevo sem ser vista

como espasmódica ou manipulada pelas elites políticas.

Inseridos numa trama complexa e mostrando a diversidade de grupos

envolvidos e as lógicas que corroboravam as lutas, fazendo-os por vezes aliados

circunstanciais como no caso dos senhores de engenho, escravos, quilombolas,

indígenas e homens livres pobres em geral. Ainda que, por vezes, não houvesse uma

organização com objetivos mais específicos, os grupos em questão tinham suas

razões e sua lógica de ação a partir de interesses próprios. Assim, a política cotidiana

das pessoas comuns e dos diversos grupos que as compõe é analisada sem esquecer

seus laços com a política institucional.

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No caso de Marcus de Carvalho, a não compartimentação da história

desses movimentos numa Pernambuco em constante estado de tensão, que é guiada,

de modo mais geral, pelos acontecimentos ligados ao 7 de abril, data da Abdicação,

quando aqueles que haviam apoiado a repressão de D. Pedro I às pretensões

revolucionárias de 1817 ou 1824 passam a ser perseguidos pelos que agora foram

elevados pela gangorra política.

Analisando a Sabinada na Bahia (1837-1838) não apenas como parte do

processo conflituoso de disputa entre projetos de autonomia e independência das

províncias em relação à Corte, mas, sobretudo, como disputa pelo lugar dos homens

de cor na construção da nação, Keila Grinberg analisou dois projetos políticos em

disputa: de um lado aquele representado por Antônio Pereira Rebouças que,

colocando-se do lado da “ordem”, procurava ater-se aos princípios constitucionais

segundo os quais os cidadãos brasileiros, qualquer que fosse a sua cor, só poderiam

ser distinguidos por seus talentos e virtudes; Francisco Sabino, por outro lado,

representava aqueles que viram com desgosto serem cada vez mais negadas as

possibilidades abertas a partir da Independência, de uma maior inserção de livres e

libertos, pardos e mulatos, tanto na participação política como na ocupação de cargos

públicos e militares.

O existir cotidiano da sociedade imperial na primeira metade do século XIX,

assinalado pelas várias manifestações de rebeldia e pelas formas de repressão das

autoridades imperiais, evidenciam o medo aos sentidos de liberdade da parcela pobre

da sociedade imperial e deu subsídios aos dirigentes imperiais e das elites locais a se

aliarem e a submeter esses homens e mulheres livres pobres à repressão.

A segunda categoria de revoltas Regências agrupam movimentos com

tendências antiescravistas, como foram os casos da Revolta de Carrancas (1833), em

Minas Gerais, a Revolta dos Malês (1835), na Bahia, e a Revolta de Manoel Congo

(1838), no interior do Rio de Janeiro. Nossa intenção aqui é enquadrar esses três

movimentos distintos na elaboração de políticas relativas ao tráfico negreiro e no

impacto das ações escravas.

Em 1833, dezenas de cativos se sublevaram na freguesia de Carrancas

(comarca do Rio das Mortes), onde se concentravam as mais altas taxas de escravos

por homem livre da província (cerca de 60%) e uma igualmente elevada proporção de

africanos entre os cativos (56,25% do total). A escravaria do deputado Gabriel

Francisco Junqueira matou seu filho na fazenda Campo Alegre e, em seguida, rumou

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à Bela Cruz, onde se juntou a outros insurrectos para chacinar o proprietário José

Francisco Junqueira, a mãe, a esposa, o genro, a filha e os dois netos, um de 5 anos

e outro de dois meses. Ao todo, nove membros da família Junqueira foram

massacrados no levante, cuja repressão, tão imediata como violenta, resultou no

enforcamento exemplar de dezesseis participantes.

Marcos Ferreira de Andrade (1999) chama a atenção para a enorme

riqueza e complexidade do movimento, que podem ser percebidas por diversos

fatores. O primeiro está ligado ao grau de organização e planejamento da revolta, que

é revelado pelo sucesso do movimento e a articulação entre os escravos de várias

fazendas.

Revolta dos Malês se deu em janeiro de 1835, na capital da Bahia. Aí

também era alto o porcentual de escravos (42% da população) e de africanos (63%

entre os de condição servil). Quase seiscentos cativos lutaram nas ruas de Salvador

por cerca de três horas, com a intenção de seguir para a zona rural, onde previam se

encontrar com outros e travar batalha menos desigual. Mais uma vez, a repressão foi

rápida e cruenta: quase setenta escravos foram fuzilados sumariamente e mais de

cinco centenas sofreram punições, fossem elas pena de morte, tortura ou deportação

para a África (REIS, 1986).

Por fim, merece ser citado um terceiro levante, conhecido como a revolta

de Manuel Congo, na freguesia de Pati do Alferes (comarca de Vassouras, Rio de

Janeiro), onde a taxa de africanos chegava a 70% em 1837, por se tratar de fronteira

agrícola em franca expansão. Em novembro de 1838, centenas de escravos de duas

fazendas do capitão-mor Manuel Francisco Xavier abandonaram as senzalas na

calada da noite e se infiltraram na densa mata atlântica. Parece que tiveram por

objetivo montar quilombos na topografia serrana do Rio de Janeiro, mas autoridades

da época também ressabiaram que se unissem a outros escravos da Fábrica Nacional

de Pólvora, em Estrela (RJ). A repressão da Guarda Nacional sobreveio seis dias

depois da fuga. Ao fim e ao cabo, todos os escravos foram recuperados, à exceção

de seis cativos mortos em combate e do líder, Manuel Congo, condenado ao

enforcamento exemplar. (GOMES, 2006, p. 144-246).

Três revoltas, três lugares, três datas sem dúvida. É possível traçar

aproximações que os coloquem à luz do quadro mais amplo da política brasileira e

dos discursos sobre a escravidão no Parlamento. A revolta de Carrancas parece estar

diretamente relacionada com as convulsões políticas nascidas de disputas entre

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liberais moderados e apoiadores do ex-Imperador, os chamados caramurus. Em 22

de março de 1833, esses conservadores tinham tomado a capital Ouro Preto e, para

obstar as ações repressivas das tropas regenciais, espalharam entre os escravos o

boato de que o imperador os tinha libertado, mas seus senhores os mantinham

ilegalmente no cativeiro. Não restam dúvidas, portanto, de que a luta dos escravos

fendeu brechas significativas para discursos antiescravistas na imprensa e nos

espaços institucionais do Estado nacional. De acordo com Tâmis Peixoto Parron

(2015):

Se uma fratura na solidariedade da classe senhorial levara a uma revolta de escravos, a de Carrancas em 1833, uma segunda revolta de escravos, a dos malês em 1835, motivara uma série de iniciativas que ameaçavam a força da própria classe senhorial. Tudo somado, a imprensa mulata, os artigos contra a escravidão, as revoltas escravas, os projetos de lei antiescravistas e as ações antitráfico do Executivo impunham uma questão aos atores coevos: qual iria ser a natureza da relação entre o governo brasileiro e a escravidão e, em particular, entre o governo brasileiro e o tráfico negreiro transatlântico? (2015, p. 317).

Sobre as ações escravas e suas repercussões no parlamento o assunto é

analisado de diferentes perspectivas nos trabalhos de Rafael Bivar Marquese e Dale

Tomich. Para Marquese e Tomich em O Vale do Paraíba escravista e a formação do

mercado mundial do café no século XIX foi a ação “concertada” entre os fazendeiros

do Vale escravista e os políticos ligados ao regresso o que estreitou a relação entre o

crescimento do tráfico atlântico e o aumento da produção cafeeira, além da otimização

do tráfico conseguida por luso-brasileiros que comandavam boa parte do infame

comércio na região da África centro-ocidental. Nem sempre a historiografia articula

satisfatoriamente insurreições escravas com política nacional; às vezes sem fazer

crítica de fonte, outras sem levar em conta interesses escravistas, conclui

prematuramente que os escravos perpetraram o fim do tráfico negreiro e da

escravidão no Brasil. Sobre o desenrolar das ações antiescravistas dentro dos

debates parlamentares, o historiador Tâmis Parron percebeu o seguinte.

Trata-se de um caso em que a instabilidade no plano institucional degringolou para lutas sociais, que, por sua vez, tiveram reflexo direto no Parlamento. No mês seguinte à revolta, o ministro da Justiça apresentou um pacote de segurança pública para evitar que planos de “restauração” do duque de Bragança (D. Pedro I) resultassem em “guerra civil”. O pacote consistia em quatro pontos: 1. Centralização da Guarda Nacional mediante nomeação de comandantes e majores por presidentes de Províncias e pelo governo; 2. Criação de guardas municipais para arrochar vigilância sobre localidades e desincumbir a Guarda Nacional de tarefas menores; 3. Controle estrito sobre

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a liberdade de imprensa (com proibição expressa de menções a D. Pedro I); 4. Punições rigorosas e sem direito a recurso de escravos sublevados. Em última análise, procurava-se evitar que inimigos externos (o ex-Imperador e seus correligionários) se aliassem a inimigos internos (escravos). (PARRON, 2009, p. 98).

Não há a menor dúvida de que os cativos contribuíram para o debate sobre

a escravidão no país. Os aparatos repressivos da justiça imperial foram acionados a

partir da pressão exercida pelos cativos em diversas regiões do Império. A própria

criação da lei de n° 4, de 10 de junho de 1835, surge no contexto das Revoltas de

Carrancas e sua criação torna-se efetiva no mesmo ano da Revolta dos Malês em

1835. Os cativos aproveitaram o momento de dissensão política para reivindicar

melhores condições de vida. A expectativa da liberdade esteve na linha do horizonte

destes sujeitos que fizeram a liberdade sua bandeira de luta contra a opressão da

sociedade escravista. Apesar da forte repressão que sofreram, estes homens e

mulheres deixaram suas marcas em diversas ações, desde as resistências por meio

das fugas, as agressões físicas e os assassinatos contra sujeitos ligados a sociedade

escravista. Na própria história do Ceará, as execuções de escravos são marcas de

uma resistência que se dava por meio da luta, e que por várias vezes foi violenta e

sangrenta em ambos os lados.

3.2 COTIDIANO, CRIMINALIDADE E TENTATIVAS DE CONTROLE SOCIAL

No caso da província do Ceará, a independência política de Portugal

transcorreu em meio a inúmeros conflitos armados, num processo que surge ainda

com a Revolução de 1817 e segue até o fim da Confederação do Equador, em 1824.

Inúmeros foram os agrupamentos de homens armados dos mais variados segmentos

sociais, e dos quais faziam parte “um conjunto popular heterogêneo de pessoas do

sertão (índios, mestiços, brancos pobres, negros libertos, inclusive escravos)”

(CANDIDO, 2018). Esses grupos de homens armados despertavam o temor da

população por onde passavam, assim como das autoridades imperiais, que nos

momentos de crise aproveitavam destes mesmos bandos para combaterem os

rebeldes, sem que deixassem de recear que a qualquer momento pudessem vir a se

unir ao “inimigo”.

Ainda se faziam presente as lembranças da Revolução pernambucana de

1817 e da Confederação do Equador de 1824 quando novos episódios políticos

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envolvendo conflitos armados voltaram a agitar a população da província cearense.

Desta vez estamos falando dos conflitos decorrentes do Período Regencial quando,

ainda nas primeiras décadas do século XIX, quando eclodiu a revolta da Balaiada no

Maranhão e Piauí (1838-1841). No Ceará, algumas das vilas localizadas junto à

fronteira com a província do Piauí foram afetadas diretamente por tropas rebeldes que,

cometiam principalmente furtos de gênero alimentício e de animais. Em

correspondência enviada ao Ministérios da Justiça, o então presidente da província

do Ceará, Francisco de Souza Martins, em anos de 1840 descrevia ações de rebeldes

na vila de Viçosa:

Comuniquei o rezultado do ataque das freixeiras que ocorreo huma parte dos rebeldes daly fugidos se evadirão pelas matas que são muito espessas no município de villa viçosa, e no dia 1° do corrente assaltarão inexperadamente a povoação de S. Pedro do mesmo município e assassinarão seis ou sete pessôas que apanharão desapercebidas roubarão as cazas e queimaram muitas.11

A narrativa apresentada pelo chefe do executivo provincial descreveu uma

ação repleta de violência, que além dos roubos envolveu também assassinatos e

atentados contra as propriedades dos moradores da povoação de São Pedro da vila

de Viçosa. Com o propósito de conter outras possíveis ações semelhantes, as

autoridades provinciais acharam acertado o armamento da população civil, visando

que a própria população combatesse os rebeldes durante os períodos de

instabilidades. O temor às revoltas cresceu com a chegada das notícias dos

acontecimentos da revolução de São Domingos (1791-1801), conhecida como

Revolução do Haiti, onde os escravos levantaram força e colocaram fim à escravidão.

Os acontecimentos do Haiti atiçaram o medo a classe senhorial durante todo o tempo

que existiu escravidão no Brasil. Manoel Ximenes de Aragão, professor e comerciante

que escreveu em suas memórias aquilo que viu no sertão cearense da primeira

metade do século XIX, não deixou de observar esse temor sobre os “acontecimentos

desastrosos da Ilha de S. Domingos” ao tratar dos tempos logo após a extinção da

Confederação do Equador:

11 Dando algumas informações á cerca dos rebeldes das freixeiras. IN: BR.APEC.GP.CO.EX.ENC. 32-B, 1835-

1843. Ofício do presidente da província do Ceará, Francisco de Souza Martins, ao ministro da justiça, Francisco

de Assis Ramiro Coelho, n° 18, 20 de junho de 1840, fl. 95 à 99.

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Já quase extintos os barulhos se achavam da parte dos patriotas e da do governo contra estes, quando menos se esperava, a população, lembrada dos acontecimentos desastrosos da Ilha de S. Domingos, cujos fatos eles não ignoravam e nem deixavam de falar deles, tratou de se juntar em grandes grupos e evadir todas as povoações e vilas em várias partes da província, principalmente no Cariri, na Serra do Pereiro, em Quixeramobim e na Serra Grande com o desígnio de matar a patriotas. (ARAGÃO, 1913, p. 62).

O haitianismo também serviu de motivação para que as autoridades

aumentassem a vigilância contra uma insurgência plebeia, principalmente sobre a

população de cativos, numa época em que instituições de efetivo controle sobre o

território sertanejo ainda eram incipientes. A precariedade do controle sobre as

revoltas estava relacionada à própria estrutura das forças armadas no Brasil, que

dependia do armamento da população civil para auxiliar as tropas regulares de

soldados, para promover a vigilância sobre as conspirações e os levantes. Sem poder

impor uma regular disciplina sobre as tropas, principalmente os regimentos da Guarda

Nacional, muitos soldados desertavam e alinhavam-se nas frentes rebeldes. Em

momentos mais acirrados, os governantes viam-se obrigados a armar grande parte

da população que, não estando totalmente convencida de colaborar com o Império,

podia representar um perigo ainda maior para a ordem. Sobre isso, fica evidente na

correspondência emitida ao Ministério da Justiça, no ano de 1841, pelo então

presidente da província do Ceará, Jozé Joaquim Coelho, ao comunicar a ordem que

havia dado para o recolhimento daquele armamento que seu antecessor havia

distribuído à população com o intuito de defender a província de alguns rebeldes:

Quando tiveram logar os deploráveis acontecimentos em S. Bernardo e Sobral, o meo antecessor julgou acertado armar grande porção da população de armamento ou mesmo todo o que aqui existia para o inteiro da província. Conta-me que foi elle destribuido com pouca descripção. Depois que se restabelleceol-o a tranquillidade publica não tratou elle de fazel-o o recolhimento a capital e suposto esse que grande parte do armamento tivesse sido remetido a titulo de armar a Guarda Nacional, com tudo mandei-o recolher agora mesmo por que nenhum serviço pode ser prestado pela quela

Guarda sem estar armada.12

Ao passo que o armamento da população civil passou a representar sérios

problemas quanto impossibilidade do controle sob os indivíduos dispersos pelos

sertões da província, a ordem de recolhimento foi prontamente emitida. A essa altura,

12 Aviso sobre a ordem que foi dada para recolher o armamento, IN: BR.APEC.GP.CO.EX.ENC. 32-B, 1835-

1843. Ofício do presidente da província do Ceará, Jozé Joaquim Coelho, ao ministro da justiça, Paulino Jozé Soares

de Souza, n° 48, 13 de setembro de 1841, fl. 124.

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o então presidente do Ceará, Joze Joaquim Coelho, alertava a respeito do perigo que

a ação de armar a população podia representar para à segurança pública da província.

Ao passo que attento o estado ainda pouco lesongeiro D’esta província não acho conveniente que as armas da nação estejão depositadas nas mãos de indivíduos ignorantes e desmoralizados que podem voltal-as conta as

autoridades ao menor aceno dos anarquistas.13

Juntamente com a ordem de recolhimento do armamento, o presidente

Joze Joaquim Coelho alertava que as armas da nação poderiam se voltar contra as

próprias autoridades que haviam realizado a distribuição das mesmas, alertando para

as possíveis ações da população da província de ir contra ao poder imperial. O

armamento da população civil em momentos de crises, a fuga ao recrutamento, a falta

de controle sobre bando de homens armados pelos sertões a formação de grupos

mercenários, e a formação de vários grupos de bandidos, e de assassinos de alugueis

se espalhavam por todo o território da província. Aproveitando-se dos momentos

conturbados para administração provincial, inúmeros grupos desses homens

armados, eram classificados pelos governantes como “gentes da pior espécie”,

“massa de bandidos”, “gente ignorante”. Grupos que carregavam alcunhas como

Mourões, Malambas, Tetéus, Bentevis, Mata Velhos, Faz Fome, Zolhões,

Folgazões14. Classificados pelo presidente Martiniano D’Alencar como afamados

assassinos que por suas façanhas haviam adquirido “uma celebridade e appellidos

consetaneos as suas crueldades”15.

As décadas de 1830 à 1855 foram marcadas pela presença desses grupos

de homens, que armados, praticavam todo tipo de atos por todas as vilas das província

do Ceará, fazendo vítimas e fama por onde passavam. A instalação da justiça

demorou para ter uma ação dura contra aqueles que algumas vezes eram

considerados como feras pelos administradores da justiça. Sendo que ainda era

recente a formação da Guarda Nacional na província e a chefatura de polícia teve sua

criação só a partir da década de quarenta do século XIX. O que demorou para ter sua

efetivação em todo território cearense, que era repleto de grupos de bandidos que em

13Idem, Ibidem. 14 Relatorio com que o excellentissimo prezidente da provincia do Ceará abrio a terceira sessão ordinaria da

Assemblea Legislativa da mesma provincia no dia 1.o de agosto de 1837. Ceará, Typ. Patriotica, 1837, p. 2. 15 Idem, Ibidem.

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alguns dos casos recebiam a conivência de autoridades, e alguns casos que eram

envolvidos em dinâmicas político-partidárias.

Como pode ser visto até o presente momento do texto, as tentativas de

instalação do Estado imperial na província do Ceará demarcaram um intenso período

de lutas violentas. De um lado, inúmeros grupos de indivíduos armados (muitas das

vezes com as próprias armas que eram distribuídas pelas autoridades para que

fizessem o combate aos rebeldes) viviam soltos pelos sertões, praticando todo tipo de

atentado por onde andavam, sempre armados de granadeiras, clavinotes, bacamartes

e a inseparável faca, instrumento que não tinha um uso especifico, mas servia de

ferramenta de trabalho para os inúmeros afazeres dos sertanejos (mas também

exercia uma função como instrumento de ataque ou defesa no momento de um

conflito).

Nos sertões, as disputas de famílias, os conflitos políticos, o banditismo e

as desavenças cotidianas faziam parte de um universo criminal corriqueiro. O

cotidiano da província cearense era marcado por conflitos que deixavam vítimas e

produziam o status do criminoso, do assassino. Senhores proprietários de terras e de

posses, políticos e membros do estado imperial, sertanejos pobres, libertos e

escravos, personagens variados do mesmo universo social da província do Ceará. A

influência de proprietários locais e o controle sobre séquitos de homens armados

reforçava o controle sobre vilas mais afastadas da capital da província. Matava-se

por tudo, por dinheiro, por política, por ofensa moral ou por vingança, também

matavam por “amor” ou em defesa da honra, enfim, a lista era imensa.

O perfil dos crimes, não era tão diferente de outras províncias da mesma

época em que o assassinato e o roubo de gado eram delitos simbolicamente

expressivos da sociedade, e que para defender ou conquistar propriedades, tentavam

contra a vida do outro. Nesta mesma sociedade, os pobres, livres ou escravos,

formavam as classes perigosas por excelência. Em seu discurso para Assembleia

Provincial no ano de 1837, o presidente da província do Ceará José Martiniano de

Alencar proferiu as seguintes considerações:

Estes assassinatos são pela mor parte o effeito repentino de rixas e brigas entre pessoas da ultima classe da sociedade e não o resultado d’esses assaltos sanguinolentos dados por diversos indivíduos prepotentes que acompanhados de grandes séquitos d’homens armados corrião d’huma

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extremidade da província à outra levando o terror e a consternação por toda

a parte e pondo em sustos e riscos a todos os cidadão16.

Os discursos dos representantes provinciais desqualificavam boa parte da

população da província do Ceará, discursos que também repercutiam sobre a

província que, passava a ser vista como território violento, e a população pobre era

sempre vista como classe perigosa e propensa a cometer todos os tipos de crimes;

ou, se não os cometessem, poderiam ser capazes de acoitar aqueles que os haviam

cometido. O estereótipo presente nos discursos era reforçado por levantamentos

estatísticos que serviam como quadros sobre os quais seus discursos eram

construídos. O combate aos séquitos de criminosos armados acabou sendo a saída

encontrada pelas autoridades provinciais para mudar o quadro da criminalidade na

província.

Nos sertões da província, as tentativas de perseguições contra os

criminosos muitas vezes eram fadadas ao fracasso. Por vezes, a inferioridade de

homens da justiça em relação aos bandos criminosos era a principal circunstância.

Por outras vezes, o pouco conhecimento desses mesmos homens sobre os territórios

e matas nas quais os criminosos possuíam superioridade técnica possibilitava rotas

de fuga, embrenhando-se pelas matas espessas para despistar seus captores.

As estatísticas policiais lhes atribuíam as prisões por desordem, que

frequentemente estava associada a embriaguez. A faca, instrumento de trabalhos

diversos, estava sempre presente e era carregada na cintura, que imediatamente

poderia ser acionada e utilizada para produzir uma vítima e um criminoso. Além da

faca, as armas de fogo também estavam presentes no cotidiano e eram ferramentas

utilizadas em vinganças por sujeitos que não fugiam de uma disputa em nome da

honra.

Outro tanto porem não posso diser-vos da segurança individual maiormente no nosso sertão aonde o bacamarte é o desforço geralmente adoptado para a reparação de supostos gravames mais filhos de nenhuma ilustração e

moralidade dos habitantes do que de motivos reas.17

Fugir de uma peleja era desonroso para o homem do sertão que sempre

esteve atrelada a figura simbólica do “cabra macho”. Em algumas das vezes, essas

16 Relatorio com que o excellentissimo prezidente da provincia do Ceará abrio a terceira sessão ordinaria da

Assemblea Legislativa da mesma provincia no dia 1°. de agosto de 1837. Ceará, Typ. Patriotica, 1837, p. 2.

17 Idem, Ibidem.

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pelejas só terminavam quando se produzia o assassinato, que produzia a vingança,

que produziria ainda muitos outros assassinatos, pois a vingança era cobrada com

sangue, o que algumas das vezes derramavam-se muito até se darem por satisfeitos.

Além dos crimes motivados por brigas e vinganças, outros tantos

mandavam mais nomes para as listas estatísticas das autoridades. A honra do homem

dos sertões também era ferida por suspeitas de infidelidade e as mulheres acabavam

sendo vítimas. A morte, uma vez produzida, lavava a honra e a vida das mulheres

parecia de pouco valor se fosse para reparar uma vergonha. Assim como nos crimes

por “amor”, que muitas vezes eram justificativas para atos impensados, motivados por

ciúmes ou rejeição. As tentativas de compreender as motivações para o fenômeno da

criminalidade nos sertões eram diversas. Os representantes do Império à frente da

administração provincial apontavam várias razões, como se segue adiante no discurso

de Joaquim Marcos de Almeida Rego, presidente da província no ano de 1851:

Diversas são as causas que dão lugar a essa serie de crimes atroses, mas entre ellas avulta a ociosidade e a falta de educação moral e religiosa e sobre tudo a indulgencia e a bonomia dos jurados e só pelo andar dos tempos com o progresso da civilisação da moralidade e da acção perseverante e

inexorável da justiça18.

Os discursos dos presidentes da província do Ceará acerca da

criminalidade no interior da província sempre construíam um perfil para os sujeitos dos

sertões. Quase sempre visto como um lugar distante e espaço da barbárie onde o

modelo de civilização portuguesa ainda não havia chegado. Era, portanto, o espaço

do incivilizado, onde as resoluções dos conflitos eram na maioria das vezes

solucionados de maneira violenta e as soluções para tal era a “educação moral e

religiosa”19. Os sertões visto a partir dos olhares da administração provincial era o

local propenso a ações de natureza hostil. Até aqui, já conseguimos ter uma ideia dos

discursos construídos pelas autoridades provinciais desde a década de 1830,

chegando até a década de 1850. Vai se construindo uma visão estereotipada de um

homem do sertão propenso a cometer todo tipo de violência, motivado algumas vezes

pela prática do consumo do álcool e o portar de armas. Cabia como instrumento de

combate ao crime a educação moral e religiosa, alicerces da civilização. A elite

18 Relatorio com que o excellentissimo prezidente da provincia do Ceará, Joaquim Marcos de Almeida Rego,

abrio a terceira sessão ordinaria da Assemblea Legislativa da mesma provincia no dia 7 de julho de 1851. Ceará,

Typ. Patriotica, 1851, p. 4. 19 Idem, Ibidem.

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imperial empreendia sua leitura em relação a questão criminal a partir do nível moral

e religioso da população, defendendo sempre o ensino da moral e da religião como

princípios das nações civilizadas.

Enquanto aos crimes, já temos certa ideia do perfil e das ocorrências mais

cometidas na província cearense. O próprio presidente Joaquim Marcos de Almeida

Rego opinou: “Os crimes de homicídio avultavam mais do que todos os outros e que

reunidos às tentativas de homicídio e ferimentos formam mais do que dous terços da

totalidade deles”20. Os crimes contra a vida faziam parte de uma cruel estatística dos

relatórios províncias, responsáveis por produzir a imagem dos sertões como local

onde a vida era banalizada.

No ano de 1854, o presidente da província do Ceará, Pires da Motta, se

mostrava bastante seguro em seu discurso à Assembleia. Lembrava que a província

estava sendo alvo de comentários e notícias que a incluíam num cenário marcado por

homicídios e violências. O presidente admitiu que a má fama da província tinha certa

razão de ser: “não se passa mês em que não venha pungir o coração o conhecimento

de alguma morte violenta, às vezes acompanhada de circunstâncias atrozes e que só

a ferocidade de bárbaros se poderia recear”.

O relatório do ano de 1855, ainda sob a presidência de Pires da Motta,

arrolava dados que demostravam a ação do poder diante dos homicídios. Buscou ali

se compor estatísticas em que os delitos no Ceará apareciam em redução. Sobre os

registros criminais da província do Ceará, o capítulo Cárceres, Cadeias e o

nascimento da prisão no Ceará, de autoria de José Ernesto Pimentel Filho, Silvana

Fernandes Mariz e Francisco Linhares Fonteles Neto, que compõe o volume 2 da

coleção História das prisões no Brasil, levanta algumas observações diante das

estatísticas criminais apresentadas anualmente pelos chefes do Executivo provincial.

Os registros de crimes apresentados anualmente pelos presidentes de província e chefes de polícia do Ceará não fornecem ao pesquisador nenhuma segurança quanto à correção dos dados criminais, posto que estavam sujeitos a um poder público muito instável. Esta instabilidade sentia-se logo no fato de se ter, quase a cada ano, um nome diferente à frente do Executivo provincial. A maioria dos mapas das pequenas cidades não eram enviada com assiduidade e os registros feitos na Secretária de Polícia eram irregulares e precários. (PIMENTEL FILHO; MARIZ; FONTELES NETO, 2017, p. 157).

20 Idem, Ibidem.

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Além dos problemas com relação ao combate à criminalidade, a burocracia

da administração da justiça também carecia de dados que pudessem não só

quantificar os tipos de crimes mais recorrentes, mas identificar aspectos referentes

aos criminosos. “Destes crimes” diz o livro de Registro dos Relatórios da Secretária

de Polícia do Ceará ao Ministério da Justiça, “os mais frequentes, são os de homicídio,

o de ferimentos, o de uso de armas defesas e fuga de presos”.21 De fato, os crimes

mais registrados pelo poder imperial eram os ferimentos e as agressões físicas, os

homicídios e tentativas de homicídio, além dos furtos e roubos, as calúnias e injurias,

o uso de armas, os estupros, os dados, as fugas e tiradas de presos, entre outros.

Afim de organizar um levantamento dos tipos de delitos cometidos na

província do Ceará, recorremos a outras tipologias de fontes. Além dos livros

referentes às correspondências dos presidentes da província e dos registros da

Secretária de Polícia da província, os processos criminais representaram uma fonte

riquíssima em dados a respeito de vítimas e réus, informações referentes as disputas

presentes no cotidiano imperial. O acesso a essa tipologia documental foi possível a

partir das pesquisas realizadas no Arquivo Público do Estado do Ceará - APEC. A

partir dos dados levantados, organizamos um gráfico com o percentual dos casos

encontrados e os separamos por tipo de crime cometido. Dessa organização resultou

o gráfico seguinte:

Gráfico 1 - Mapa dos Crimes na provícia do Ceará (1830-1855).

Fonte: Arquivo Público do Estado do Ceará- APEC.

21 SECRETARIA DE POLÍCIA DA PROVÍNCIA DO CEARÁ. Registros dos relatórios da Secretária de Policia

do Ceará ao Ministério da Justiça. 01/01/1855, fl. 5. Apud in: História das prisões no Brasil, Ernesto, pág 159.

46 31 29 28 18 17 16 15 15 1 1 2 2 2

223

0

50

100

150

200

250

1

Homicídios tentativas de homicídio Ferimentos

Roubo Injúrias Ameaças

Danos Furtos Ofensas

Reduzir a escravidão Tirada de presos Resistência

Rapto Estupro Total

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Os números presentes no gráfico acima foram coletados a partir de uma

metodologia de pesquisa que contou com a elaboração de um recorte temporal da

pesquisa entre 1830 e 1855, período que segue a criação do Código Criminal em

1830. O ano de 1855 é a data da última execução capital na província cearense, sendo

de tal modo um recorte temporal que buscou dar conta de todas as execuções capitais

de escravos, desde a vigência do aparato jurídico imperial até o último registro de

punição capital. Certos do período temporal que pretendíamos analisar, passamos a

procurar processos criminais que estivessem enquadrados dentro do recorte temporal

previamente estabelecido.

Durante a procura por processos criminais, encontramos um corpus

documental de sete comarcas da província. Da comarca de Baturité, tivemos acesso

aos processos dos municípios de Imperatriz e do município de Baturité. Da comarca

do Icó, encontramos processos do município de Icó, São Matheus e Lavras da

Mangabeira. Da comarca de Sobral encontramos processos dos municípios de Granja

e Viçosa. Outros processo que encontramos são dos municípios de Solonópole e

Tauá.

A partir do levantamento das comarcas e municípios, passamos a analisar

os processos, qualificamos enquanto tipos de crimes, autores e réus e condenação

ou absolvido. Os tipos de crimes classificados e quantificados foi elaborado a partir da

minuciosa investigação dos processos criminais. Dentre os tipos de crimes mais

recorrentes, os homicídios e as tentativas de homicídios foram os mais praticados,

logo seguidos pelos ferimentos. Esses três tipos de delitos identificados representam

um cotidiano marcado pela recorrência de crimes contra a vida. Juntos, os três tipos

de crimes chegam a 107 processos dos 223 encontrados, sendo um número bastante

expressivo dentro da totalidade dos processos. Os crimes de roubo (assim

enquadrando roubo de gado e cavalos, assim como roubos de outras posses) também

era bem comum durante a primeira metade do século XIX. Outros tipos de crimes

encontrados foram: injúrias, ameaças, danos, furtos, ofensas, “reduzir a escravidão

pessoa livre”, “tirada de presos”, resistência, rapto e estupro. Alguns em menor

número do que outros, mas todos, no seu conjunto, importantes indicadores dos tipos

de ações criminais que eram praticadas na sociedade cearense do século XIX.

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3.3 A CRIMINALIDADE ESCRAVA

A escravidão típica da grande propriedade rural coexistiu no Brasil do

século XIX com o cativeiro praticado em regiões onde predominavam os senhores de

pequenas posses. Viver entre poucos escravos, contudo, não era sinônimo de um

cotidiano suavizado. Infere-se que ocorria nessas regiões um cativeiro peculiar, o

qual, embora fosse fundamentalmente marcado pelo tipo de relação direta

estabelecida entre os senhores e seus cativos, cedia espaço ao contato recorrente

dos escravos com a população livre em geral.

Caracterizada como uma região onde a utilização de mão de obra cativa

apresentou proporções diminutas em virtude do tipo de economia nela predominante

no decorrer da maior parte do século XIX. A partir da constatação de que a

concentração de escravos na província cearense foi pouco expressiva se comparada

com outras regiões do Império onde o predomínio do sistema de plantation, no Ceará,

a população cativa encontrava-se distribuída entre proprietários de pequenos grupos

de escravos, localizados em áreas onde a produção destinava-se predominantemente

à subsistência e ao abastecimento interno.

De acordo com o historiador Eurípedes Antônio Funes (2007), ao nos

colocarmos diante de temas referentes à escravidão no Ceará, nos deparamos com a

ideia postulada de uma escravidão branda no Ceará por conta do número diminuto de

escravos na província. Se em relação a população cativa o número de negros era um

pequeno percentual em relação a livres, no caso da população negra e parda que não

era cativa temos um percentual que chegou a ultrapassar a população branca. De

acordo com Eurípedes Funes:

No início do século XIX, a presença de afro-brasileiros já era significativa por estas terras cearenses, onde negros e pardos libertos somavam 60,7% de uma população total de 77.375 habitantes. Neste universo, a população negra e parda cativa, somava 12.254, ou seja, 15,8% da população. (FUNES, 2007, p. 104).

À medida que a ocupação do Ceará foi-se efetivando por meio pecuária,

consolidou-se um espaço de trabalho que atraiu um contingente de homens livres que,

vindo de outras províncias, em sua maioria eram pobres, negros e pardos que na

condição de vaqueiros, trabalhavam por meio do sistema de quarta, efetivando-se

assim uma outra modalidade de trabalho na qual a presença de trabalhadores livres

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era fortemente empregada. Diferentemente de outras províncias do que hoje é

considerado o Nordeste açucareiro, a ocupação das terras cearenses se deu de forma

mais lenta. Os caminhos abertos pelo gado possibilitaram uma dinâmica social

diferenciada das sociedades de engenho. Todavia, a introdução de mão de obra

escrava tornou-se de forma mais acentuada a partir da introdução das lavouras

algodoeiras.

Em lugar de confirmar ou desmentir a hipótese de que nessas

circunstâncias o cativeiro fosse mais tênue em relação a outras áreas onde

predominavam diferentes padrões demográficos de escravos, tenciona-se analisar

aqui possibilidades, matizes e complexidades do processo histórico local, pois se

infere que tanto a violência explícita quanto práticas de sobrevivência dos cativos

compunham um intricado jogo de relações no cotidiano de senhores e seus escravos.

Entretanto, sobre os índices de crimes praticados pela população livre, em

primeiro lugar é preciso lembrar que a expansão da criminalidade da população livre

encontra sua explicação no crescimento demográfico. Decerto, o aumento

populacional vertiginoso não se verificou entre a camada escrava. A partir dos dados

apresentados por Eurípedes Funes no capítulo Negros do Ceará:

Apesar das dificuldades decorrentes das omissões e lacunas nas estatísticas levantadas, foi possível perceber que a população escrava, no Ceará, apenas em 1819, segundo dados apresentados por Artur Ramos, chegou a 28% da população, não superando em outros momentos a casa dos 20%, decaindo já a partir da década de 1840, chegando em 1872 a 4,4%, mantendo esse nível até 1883/1884, quando ocorre a libertação dos cativos. (FUNES, 2007, p. 108).

Cabe lembrar aqui a queda no número de escravos por conta do tráfico

interprovincial de escravos que, após o fim do comércio internacional, intensificou o

envio de cativos das províncias do Norte do país para o abastecimento da cresce

demanda de mão de obra nas províncias do Sul do país. Diante da constatação do

pequeno número populacional da camada escrava no Ceará, a hipótese da existência

de uma ampliação efetiva dos crimes de escravos neste período baseia-se na

consideração dos homicídios contra senhores e feitores, à medida que estes foram

percebidos tanto pelos senhores quanto pelo aparelho judiciário, como crimes limites,

uma vez que atentavam diretamente contra os princípios da sociedade escravista.

Conscientes da fragilidade dos mecanismos de dominação paternalista de que

dispunham, os senhores, desde sempre temeram os ataques de seus cativos.

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Após realizar algumas breves considerações acerca do cotidiano da

escravidão na província do Ceará, passo a analisar alguns dos casos de crimes de

morte ocorridos na província cearense durante a primeira metade do século XIX. São

casos em que se pode visualizar a trama da criminalidade na província cearense, da

qual já ouvimos falar muito por parte das autoridades provinciais e ministeriais, mas

que agora é chegado o momento de deter nossa análise dos casos de uma maneira

mais densa de cada situação.

Tivemos acesso a um conjunto de processos que nos permite adentrar e

analisar de forma mais densa um cotidiano marcado por diversas estratégias de

sobrevivência ou, como nos ensinou Michel de Certeau (1998), o cotidiano como o

conjunto de operações singulares que, às vezes, dizem mais de uma sociedade e de

um indivíduo do que a sua própria identidade. São casos em que podemos observar

as estratégias de sobrevivência e resistência empregadas por diversos sujeitos e

indicam que as tensões e contradições presentes no cotidiano encontravam seu

desaguadouro nos crimes de morte.

A escravidão produziu representações ideológicas do trabalho ambíguas e,

muitas vezes, conflitantes. Por uma parte, degradou o trabalho manual à medida que

este passou a ser visto como coisa própria de escravos. “Trabalhar feito um escravo”

é uma expressão reveladora de uma percepção do trabalho como uma atividade

própria da sua condição de cativo. Contrapondo-se a figura do senhor, do rico

proprietário que não sabia o peso das ferramentas do trabalho. Assim, segundo certo

ponto de vista aos escravos caberia dispender todo o esforço para a produção,

enquanto aos senhores caberia o ócio. Essa realidade, em vários casos, foi o gatilho

para diversas ações violentas de cativos contra seus senhores. Essa realidade, sem

dúvida, era percebida pelo escravo, à medida que colocava padrões determinantes

entre o bom escravo e o rebelde.

Essa percepção foi o estopim para o escravo André se voltar violentamente

contra seu senhor José Maria Firmino durante os trabalhos na fazenda de propriedade

do seu senhor, na vila de Itapagé no ano de 1860. Durante os serviços na plantação,

André havia recebido várias reclamações por parte do senhor que se queixava da

demora na limpeza de uma área que seria utilizada para o plantio. Durantes dias

seguidos de reclamações e ameaças de castigos físicos, enquanto o escravo estava

limpando uma área para o cultivo, ouviu seu senhor reclamar mais uma vez da demora

e tornar a repetir as ameaças de açoites. Enfurecido, o escravo André armou-se com

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a enxada com a qual realizava o serviço e desferiu vários golpes contra seu senhor

que veio a óbito de imediato.

O escravo, colocado sob o jugo da disciplina e da produtividade,

compreendia que preencher as expectativas do senhor podia significar um dispêndio

de energia física incompatível com suas forças. Assim, entre as expectativas

senhoriais do rendimento econômico do escravo e as possibilidades materiais e

emocionais desses em cumpri-las, criou-se uma margem, mais ou menos incerta, de

tensões e negociações. Circunstâncias parecidas também foram motivos para a

explosão de fúria do escravo Antônio do Icó no ano de 1862. Antônio trabalhava nos

vários serviços da propriedade do seu senhor. Certo dia, enquanto o escravo Antônio

cortava lenha para levar para vender na cidade, José Maria, o proprietário do escravo,

reclamou da demora nas tarefas e acusou o escravo de fazer corpo mole durante o

serviço, ameaçando-o de punir com uma surra se não fosse logo levar os cortes de

lenha para vender na cidade. Indignado com o que acabara de escutar, Antônio tomou

o machado em suas mãos e desferiu um golpe com tanta força que o seu senhor não

teve tempo nem de pedir socorro, vindo a óbito logo em seguida.

Escravos e senhores viram-se compelidos a mover-se nessa zona

perigosa, onde cada um dos lados viam-se na tarefa de desenvolver estratégias que

lhes permitissem experimentar os limites um do outro. No interior dessas relações

sociais de trabalho profundamente tensas é que se insere a problemática da disciplina

e de uma economia particular do castigo.

Na análise dos casos envolvendo relações de trabalho e disciplina,

homicídios contra senhores, e também contra feitores, eram fruto de tensões

derivadas da disciplina do trabalho versus resistência escrava. Os ataques contra a

autoridade senhorial, espelhada na figura tanto do próprio senhor quando de seus

prepostos, feitores e capatazes. Nesta tendência, os ataques violentos contra aqueles

que representavam o mando senhorial foram frequentes. Sobre essa categoria de

crime, um caso que é bastante representativo das tensões envolvendo escravos e

feitores foi o crime cometido pelo escravo Francisco no ano de 1870 na vila de

Solonópole.

O escravo Francisco trabalhava na roça juntamente com outros escravos

da propriedade sob administração do feitor Manoel Felizardo, a quem todos atribuíam

uma imagem de homem autoritário e violento. Certo dia, Francisco regressava

juntamente com outros escravos de mais um dia de trabalho, quando no caminho

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foram abordados pelo feitor que ordenou que voltassem imediatamente para o

trabalho. Percebendo que escravos não queriam atender a ordem dada, o feitor

Manoel Felizardo começou a castigar um escravo menor com muita violência. Já

indignado com a situação, o escravo Francisco de posse de uma faca que trazia junto

a cintura, e pulou sobre o feitor deferindo-lhe diversas facadas das quais resultou-lhe

na morte imediata.

A mesma percepção de um feitor injusto aparece nas palavras do escravo

Luiz de Baturité no ano de 1872. Ao ser inquirido sobre os motivos de ter assassinado

o feitor, João Marcellino, Luiz respondeu que ao reclamar da quantidade de comida

que recebia e a falta de uma camisa para vestir, o feitor respondeu que por conta da

reclamação não ia receber nenhuma comida e nem uma peça de roupa até aprender

a parar de reclamar. Luiz contou que, enfurecido, pegou uma mão de pilão, bateu com

a mesma até o feitor cair no chão e perceber que já não estava mais vivo.

Revelando-se como a figura catalisadora das tensões provenientes da

disciplina do trabalho, pressionado fortemente pelo senhor para fazer frente à

resistência do escravo, o feitor transformava-se em alvo privilegiado de ataques.

Nesse sentido, a representação do feitor prepotente e exagerado na aplicação dos

castigos tinham consequências nas revoltas violentas por parte dos cativos.

Os testemunhos dos escravos que ficaram gravados nos autos criminais

reproduzem o completo quadro das percepções escravas, remetendo-se aos pontos

nodais do sistema escravista, remarcado que o estopim dos homicídios foram as

tentativas de acelerar o ritmo do trabalho. As tensões subjacentes ao aumento da

produção e o aumento das ameaças de castigos físicos ao descumprimento da

produção exigida. A escravaria percebia a sobrecarga do ritmo de trabalho, sendo

esses os argumentos apresentados pelos escravos como os motivos dos crimes,

apresentando seus desagrados a um cativeiro muito rigoroso. O eclodir da violência

escrava contra seus senhores e feitores imbricou-se na problemática do trabalho e

nas relações sociais a ele subjacentes.

Os homicídios nos quais apareceram como vítimas homens livres formam

outro conjunto de casos dos quais tivemos conhecimento. Os conflitos envolvendo

escravos e homens livres pobres, sugerem a existência de relações sociais intensas

entre essas camadas. Este foi o caso do homicídio perpetrado em Icó pelo escravo

Bernardo no ano de 1873. Durante um momento de festividades, o escravo Bernardo

que estava na companhia do homem livre de nome Joaquim dos Santos, acabou se

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desentendendo com o companheiro. Ambos travaram uma luta corporal na qual o

escravo Bernardo, de posse de uma faca, acabou atingindo Joaquim dos Santos que,

por decorrência dos ferimentos, adquiriu uma infecção que lhe custou a vida. Ao tentar

se defender das acusações, Bernardo alegou que ambos haviam bebido acima da

conta e o desentendimento havia tido início quando Joaquim dos Santos negou-se a

pagar a parte que cabia a ele na bebedeira.

A embriaguez parece ter sido o motivo apontado pelo escravo Manoel

durante uma briga com um homem livre de nome Vicente Ferreira em Tauá no ano de

1858. O cativo contou a justiça que já possuía desentendimentos com a vítima há

algum tempo, chegando até mesmo a ser agredido em uma ocasião na qual fora

acusado por Vicente Ferreira de ter furtado em uma plantação de sua propriedade. O

escravo Manoel contou que, durante a bebedeira, avistou de longe Vicente Ferreira

em um jogo de baralho e, tomado pelo desejo de vingança, voltou até a propriedade

do seu senhor e armou-se com um bacamarte com o qual cometera o homicídio contra

Vicente Ferreira.

Pelo visto, parece que as ações violentas envolvendo cativos também

produziu vítimas entre a camada que não estava ligada as relações de mando, como

foram os casos citados anteriormente. Tais conflitos, produzidos durante relações

sociais cotidianas, apresenta um cotidiano no qual sujeitos escravizados teciam

relações fora das propriedades senhoriais, ficando evidente nesses casos, que os

escravos estavam em circulação em vários espaços sociais.

As relações entre escravos e livres também produziu vítimas do lado da

camada cativa da sociedade. Seja enquanto réus, ou na condição de vítimas, o

contato entre livres e escravos se mostrou violento em algumas situações particulares.

O contato mais livre em espaços menos vigiados abriram oportunidades para o inter-

relaciomento entre as duas categorias e, o aflorar de questões conflituosas. Este foi o

caso da trama envolvendo o escravo José do qual passamos a narrar na sequência.

José era escravo de Sebastião da Costa Leitão, de idade por volta de trinta

e cinco aos quarenta anos de idade, estado civil disseram que era solteiro. José

apareceu para nós no processo criminal no qual o mesmo figura como vítima de

homicídio praticado pela pessoa do oficial de justiça Rufino de Paula Avelino. Certa

noite, por volta do mês de dezembro de 1840, na vila de Tauá, Verinha de Maria

Rufina, filha do oficial de justiça Rufino de Paula Avelino, decidiu sair em companhia

de Florinda Maria para tomar banho no rio que se localizava nas proximidades da casa

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de Verinha. Pouco tempo depois, já voltando para casa, Verinha percebeu que sua

janela estava arrombada e convidou a colega Florinda para entrar em sua companhia

para que pudessem verificar do que se tratava. Ao adentrar sua residência, Verinha

logo percebeu que sua rede de dormir estava cortada, foi então que a mesma foi

surpreendida pelo cativo José que desferiu rapidamente contra a mesma socos e

pauladas.

Florinda, dando-se conta de tal situação decidiu então correr com destino

a casa de Rufino de Paula Avelino, pai da moça, para que o mesmo pudesse acudir a

filha que estava sendo agredida por José. No exato momento, Rufino chega e depara-

se com a filha sendo agredida e entra em seu socorro, começando de imediato uma

luta corporal com o cativo José que, armado de uma faca, tentou desferir golpes em

Rufino de Paula que, apesar de receber uma facada no braço, conseguiu tomar posse

da dita faca e a usou em seu proveito contra José, que não teve a mesma sorte de

Rufino de Paula e acabou sendo atingido fatalmente e vindo a óbito já no local da luta.

Tendo início o processo criminal contra Rufino de Paula Avelino, um

conjunto de pessoas, moradores próximos ou pessoas que haviam presenciado o fato

ocorrido, foram intimadas a prestar depoimento para investigação e apuração dos

culpados e dos motivos do fato. Uma das testemunhas do processo foi o viajante

Antônio Moreira da Silva, de vinte e dois anos de idade, que em seu depoimento

relatou os acontecimentos que disse ter presenciado:

Disse que estando no comercio la chegava José, escravo de Sebastião da Costa Leitão e convidara elle a testemunha para irem a caza de Vicencia moradora desta Villa e dahy se dirigirão a caza de Maria Rufina filha do accuzado e la chegando o assassignado abriu a janela da caza de Maria Rufina e entrando e não encontrando ninguém, cortara os punhos da rede e que queria dar uns bofetões naquela cabloca. 22

No exposto acima, percebemos alguns fatos que foram apresentados pelo

viajante Antônio Moreira que, por estar em companhia da vítima de Rufino de Paula,

e agressor de Rufina, apresentou alguns detalhes da trama, como o convite feito pela

vítima para ir na casa de uma terceira pessoa e que acabaram entrando na casa de

Rufina, e foi quando o cativo José apresentou suas verdadeiras intenções que era de

“dar alguns bofetões naquela cabloca”23. Os motivos que levaram José a realizar essa

22 Trecho do depoimento de Antônio Moreira da Silva no processo criminal de Rufino de Paula Avelino IN:

Arquivo Público do Estado do Ceará – APEC. Cartórios do Interior. Tauá ações criminais, pacote 01, período de

1795-1870. 23 Idem, Ibidem.

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empreitada não foram mencionados no processo criminal. As outras testemunhas

todas foram questionadas sobre os motivos que levaram o cativo José a tal atitude e

as testemunhas disseram não saber. Podemos depreender que o cativo podia ter

agido em retaliação a alguma desavença que poderia ter com Rufina ou até mesmo

com o pai da mesma, e que essa havia sido a forma que havia encontrado para sentir

que a vingança havia sido feita. Ou também pode ser que sejam outros fatos, já que

não ficaram claros os motivos do ato de José.

Por outro lado, a vida conjunta nas senzalas e a experiência comum na

vivencia da escravidão tenderam a forjar, entre os escravos, laços afetivos e alianças

de ajuda mútua. Embora isso, a análise dos processos criminais de homicídios entre

escravos demonstra que a violência inerente ao sistema perpassava, também, as

relações sociais que os cativos mantinham entre si, apontando a necessidade de

matizar as visões unilaterais da organização da comunidade escrava.

O casamento e a manutenção de uma precária estrutura família também

apresentava tensões e conflitos. Nesse sentido, o processo de 1854, no qual André,

escravo24 do Coronel Pedro Alves Feitoza, foi acusado de assassinar sua mulher,

Maria Joanna, também escrava do mesmo senhor, é ilustrativo dos conflitos

subjacentes a estrutura familiar escrava. Neste, o marido suspeitando de infidelidades

por parte da mulher, seguiu a mesma até um mato onde Maria Joanna cortava lenha

e surpreendeu-a agarrando por trás e deu uma punhalada no peito que lhe causou a

morte instantânea. Poucas informações foram encontradas no processos do escravo

André para que pudéssemos entender mais um pouco sobre essa trama que resultou

na morte de sua mulher, a escrava Maria Joanna.

O ciúmes parece ter sido o fato motivador do homicídio praticado por

Benedicto, o escravo de Francisco José da Costa, no ano de 1869 em Lavras da

Mangabeira. Neste, o escravo Benedicto foi acusado de assassinar sua companheira,

a preta Rita, escrava do mesmo senhor, por conta de um presente que a dita escrava

havia recebido do comerciante Joaquim de tal. Segundo Benedicto, as atitudes da

companheira haviam motivado suas desconfianças, e o presente recebido era a prova

da traição.

Os dois casos narrados acima são ilustrativos das tensões subjacentes à

estrutura familiar escrava. Segundo Eurípedes Funes (1996), a constituição da família

24 Arquivo Público do Estado do Ceará – APEC. Cartórios do Interior. Tauá ações criminais, pacote 01, período

de 1795-1870.

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foi a primeira forma encontrada pelo escravo, em seu universo social, para amenizar

as adversidades, pois, dentro do precário acordo que extraía de seus senhores, o

casar-se significava ganhar mais controle sobre o espaço de moradia. O seio da

família constituía o espaço em que a autoridade independia, em grande parte, da

presença do senhor. Os laços matrimoniais davam certo tom de “autonomia” e

“liberdade” para o escravo. Vivendo perto dos seus, daqueles de quem gostava, que

conhecia, tinha possibilidade de viver uma vida menos infeliz, pois juntos podiam

dividir a dor e a alegria, lutar pela compra de alforria, praticar seus cultos religiosos e

comungar dos mesmos costumes.

As diferentes tramas narradas aqui apresentam esse universo em que

sujeitos escravizados como no caso do escravo José, mostrou sua insatisfação que,

apesar de ter seu motivo desconhecido para nós, provocou uma reação do cativo

contra um sujeito pertencente a classe senhorial, e de tal insatisfação o mesmo reagiu

da forma que pode, travando uma combate direto do qual saiu sem vida, mas do qual

deixou registrado sua reação de descontentamento diante de uma realidade da qual

tantos outros sujeitos na condição de cativos haviam compartilhado.

O estudo da criminalidade na província do Ceará demostra que algumas

situações cotidianas eram resolvidas com soluções violentas, o embate corporal era

uma forma utilizada por sujeitos que acreditavam ter sido prejudicados de alguma

forma, seja ela uma situação concreta ou até mesmo uma ação vista como desonrosa

feita por parte de alguém. Tanto nas relações extremas de cativos contra seus

senhores ou prepostos, quanto nos conflitos estabelecidos com a população em geral,

ou conflitos entre sujeitos da parcela livre da sociedade. Nos diferentes espaços da

sociedade cearense, seja na capital ou nos sertões, livres e escravos viveram

circunstâncias diversas nas quais a luta por seus espaços e interesses algumas vezes

eram resolvidas de forma violenta, por meio da luta corporal, da emboscada, da

associação com terceiros ou outras formas diversas.

Durante esse capítulo, apresentamos de diversas formas os quadros da

violência e da criminalidade da sociedade cearense do século XIX, desde as lutas da

independência, das formações dos bandos de sujeitos armados e as classificações

das autoridades provinciais e ministeriais acerca destes sujeitos. Analisamos também

situações em que os conflitos violentos produziram vítimas e réus, e ao mesmo tempo

produziram a província enquanto espaço violento, alimentaram estatísticas que nas

mãos das autoridades do estado imperial, produziram o status do criminoso. Daremos

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prosseguimento as nossas análises nos debruçando agora sobre os crimes de

escravos que foram levados a forca como forma de represália do estado imperial a

suas transgressões. São situações diversas, mas que nos permitirá compreender as

ações de controle social contra crimes praticados por sujeitos considerados como

classes perigosas, como em sua maioria nos casos os escravos e em alguns casos

que envolviam sujeitos livres.

3.4 OS CRIMES DOS ENFORCADOS

A história marcou a vida e as atitudes de senhores e escravos. Faces

opostas de um mesmo todo, o processo histórico os acolheu de maneiras diferentes

e implicou vivências peculiares. Respondendo à conjuntura do sistema escravista, os

escravos desenvolveram estratégias de resistências que se refaziam constantemente.

Crime ou criminalidade, categorias de análise de conteúdos diversos que não podem

ser encarados como excludentes, categorias que requerem conceituações claras e

procedimentos metodológicos específicos. Mais uma vez recorremos a Boris Fausto

para nos auxiliar na conceituação dessa problemática que nos acompanha em grande

parte da trajetória deste estudo. Criminalidade, como bem destacou Boris Faustos, se

refere ao fenômeno social na sua dimensão mais ampla, permitindo o estabelecimento

de padrões de constatações de regularidades; crime diz respeito ao fenômeno na sua

singularidade cuja riqueza em certos casos não se encerra em si, mas abre caminho

para diversas percepções. (FAUSTOS, 1983, p. 09).

Um dos momentos privilegiados para o estudo de algumas facetas das

relações entre cativos e senhores é por meio do conflito e, para nosso estudo não

seria diferente. Os processos criminais instaurados pelas autoridades policiais e

judiciárias para a apuração de bordoadas, facadas, tiros e outros vários tipos de

agressões físicas, possibilitam a compreensão de alguns dos limites cotidianos que

separavam a escravidão e a criminalidade. Por meio da documentação produzida

pelas autoridades policiais e judiciárias, assim como os registros escritos narrando as

tramas criminais, deixados por intelectuais e cronistas do século XIX, tivemos a

possibilidade de acessar um universo permeado por vários casos envolvendo práticas

criminosas perpetradas por sujeitos escravizados, nas quais figuraram como vítimas

sujeitos pertencentes a camada senhorial e da camada pobre livre da sociedade

cearense oitocentista. Em um quadro mais recorrente, os crimes contra seus

senhores ou prepostos, foram os mais praticados pelos sujeitos escravizados.

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A consideração dos autos criminais permite a abordagem de aspectos

sociais da vida das camadas dominadas, tais as relações de amizade, parentesco ou

vizinhança, os padrões familiares e mesmo a organização do trabalho e sobrevivência.

Com o propósito de compreender as tramas do crime e da criminalidade dita escrava

na província cearense, analisaremos a partir de agora alguns casos de crimes de

morte perpetrados por escravos que tiveram punições enquadradas no artigo 192 do

Código Criminal de 1830 e na lei de 10 de junho de 1835 que levaram os escravos a

forca.

O temor aos escravos permeou a instituição escravista e encontrou na

Justiça especial ressonância com a repressão exemplar dos crimes contra a

autoridade senhorial. Este foi o caso da já mencionada lei de 10 de junho de 1835,

sancionada com objetivo de repressão às ações violentas praticadas por escravos

contra membros da camada senhorial. A partir da utilização dessa lei, a camada

senhorial passou a ter em mãos um poderoso instrumento de defesa, utilizado

fortemente contra tensões e revoltas escravas.

Os casos de conflitos envolvendo escravos e senhores representam um

cotidiano do sistema escravista da província cearense marcado pela ausência da

mediação de feitores, representando que os senhores possuíam relação de mando

direta com seus escravos, o que fazia com que as situações de conflitos também não

fossem intermediadas por terceiros. Analisando os casos de crimes envolvendo

cativos e senhores no município de Franca, Ricardo Alexandre Ferreira (2003)

percebeu que, em se tratando dos casos dos senhores de poucos escravos, em que

a relação de mando era direta, os possíveis conflitos também o eram, o que fez com

que Ferreira defendesse que no cotidiano de senhores de poucos escravos os

conflitos pudessem acontecer com mais frequência do que em grandes propriedades

em que o proprietário dos escravos não possuíam relação de mando diretamente com

seus cativos. O crime praticado pelo escravo Sebastião (levado à forca em Sobral, em

1841) contra seu senhor pode ser analisado a partir da ótica das tensões envolvendo

senhores e escravos:

As 10 horas da noite do dia 2 de Maio de 1841, Sebastião, escravo, matou a seo senhor, o negociante Joaquim Francisco do Rego, geralmente conhecido por Doutor Rego, quando este se recolhia à sua casa. E logo após se evadio-se deixando o seo senhor morto. (NOGUEIRA, 1894. p. 81).

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Os motivos que suscitaram o assassinato cometido por Sebastião não

ficaram explícitos mas, por si só, o crime pode ser visto como o resultado de tensões

existentes entre o escravo Sebastião e o seu senhor. Escravos e senhores viram-se

compelidos a mover-se nessa zona perigosa, sujeitos do mesmo processo mas,

experimentando lados opostos, muitas vezes em situações limites, nas quais a

violência eclodia e o homicídio figurava-se como resultado de tensões produzidas

cotidianamente. Seja pela pressão recebida para produzir mais no trabalho, seja pelos

abusos sofridos em formas de agressões físicas ou verbais, a falta de alimentação e

de condições mínimas de sobrevivência, as relações eram carregadas de tensões que

diversas vezes produziam vítimas, sejam elas da camada senhorial ou cativa.

Os ataques contra as autoridades senhoriais, apresentam-se como indício

real da existência de tensões que muitas vezes só eram percebidas nas ações limites,

mas que se faziam presentes durante toda a existência do cativeiro no Brasil. Essa

realidade, sem dúvida, pode ser percebida à medida que nos deparamos com um

conjunto de casos nos quais os senhores apareceram como vítimas de homicídios

perpetrados por seus cativos. Além do já mencionado crime praticado pelo escravo

Sebastião, outro caso envolvendo ações violentas entre senhores e cativos trata-se

do homicídio praticado pelos escravos Antonio e Luiz.

O crime de homicídio envolvendo os cativos Luiz e Antônio, da vila de

Viçosa, localizada na região norte do Ceará, é um importante exemplo da associação

de cativos em conflitos contra senhores. Luiz e Antônio eram ambos escravos de uma

família maranhense que vivia na vila de Viçosa, em 1841, na serra da Ibiapaba, ali

refugiados durante os conflitos da insurreição conhecida como Balaiada. Alguns furtos

estavam ocorrendo na vila e descobriu-se que estavam sendo praticados por um

grupo de escravos, entre os quais figurava Luiz, que foi duramente repreendido por

seu senhor, Inácio João de Magalhães. Indignado pelas ameaças recebidas, Luiz

armou o assassinato de seu senhor nas vésperas da partida da família que voltava ao

Maranhão. Luiz matou Inácio João de Magalhães com um tiro de bacamarte. Em

seguida, descobriu-se que o crime havia sido preparado em conluio com o escravo

Antônio, pertencente a D. Mariana, esposa da vítima. Ocorre que Antônio, para não

ser preso, fugiu para a vila de Granja, onde foi encontrado e capturado. Luiz também

já havia sido agarrado num sítio há poucas léguas do local do assassinato. Capturados

e processados, ambos foram condenados à pena capital pelo homicídio que, além de

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vitimar o senhor dos escravos, a ação dos escravos foi percebida como uma ameaça

aos interesses escravistas de proprietários locais.

Encontrando ainda uma estrutura bastante similar a essa, o escravo José

foi condenado à morte pelo art. 1° da lei de 10 de junho de 1835 na capital de

Fortaleza, em 16 de novembro de 1839, por ter matado com um tiro o seu senhor, o

sobralense Luiz Ferreira Gomes. O crime perpetrado por José havia sido realizado em

conluio com Miguel Pereira dos Anjos, homem de condição livre que, por sua

participação no crime, foi condenado pelo tribunal de Fortaleza a “20 annos de galé,

pena mínima no art. 192 do Cód. Crim.” (NOGUEIRA, 1894, p. 57). José, por sua

condição de escravo, foi enquadrado na lei de 10 de junho de 1835; já Miguel Pereira

dos Anjos, porque era homem livre, foi poupado do mesmo destino do parceiro de

crime.

Na mesma linha interpretativa, o escravo Luís havia matado um homem

branco em Aracati, amante de sua senhora, com sete facadas. O crime ocorrera em

1836, porém Luís teve de aguardar a decisão da justiça preso na cadeia pública de

Fortaleza. O crime atribuído a Luís havia sido planejado em conluio com Iria Maria,

mulata de condição livre que teve como sentença “sofrer a pena de prisão perpetua

gráo medio do artigo cento e noventa e dois”. (NOGUEIRA, 1894, p. 282).

Ações como essa, não podem ser encaradas como casos isolados, apesar

de serem resultados de ações produzidas no interior das propriedades senhoriais.

Ações violentas perpetradas por cativos contra autoridades senhoriais apresentavam

uma fragilidade nas relações de mando que de maneira alguma poderiam ser

percebidas e aproveitadas pelos sujeitos cativos. O conluio entre gente de cor (um

escravo e uma mulata de condição livre) poderia ser encarado como uma atitude grave

a ponto do assassinato ter condenado a pena de morte o escravo Luís.

Muitas vezes, motivados pelas mesmas razões, os homicídios podiam

converter-se em ataques coletivos. Sofrendo todos os parceiros de cativeiro os maus

tratos por parte dos sujeitos na condição de mando, bastava que um dentre eles

tomasse a iniciativa do ataque para que os outros o seguissem. Assim, o motim da

escuna Laura 2ª, navio de cabotagem que fazia o percurso entre as províncias de

Pernambuco e Maranhão, foi cenário de um massacre quando passava pelo litoral da

província cearense no ano de 1839. O plano contou com Constantino como um dos

líderes e a ele aderiram, inicialmente, Antonio Angola, Bento Angola, Hilário e João

Mina, que logo trataram de formular um plano de ação para tomar a embarcação.

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Estratégia formulada, só faltava o momento oportuno para a empreitada, o

grupo decidiu que o melhor momento para agirem seria durante noite, aproveitando a

oportunidade enquanto todos já estivessem reunidos para dormir. Então, por volta de

09 da noite, na altura do porto do Arapassu25, o grupo agiu. Hilário “teve ordem de ir

tomar a faca ao marinheiro Bernardo”, enquanto “Constantino e João Mina atacaram

o capitão em seu camarote. Septe facadas já lhe tinhão dado, quando elle se refugiou

no leme”; foi então que Bento Angola gritou: “venha a fisga, e o infeliz lançou-se ao

mar!”. Luiz Cabo-Verde ficou encarregado do contramestre e, com uma estaca de

madeira, o matou; também foi o responsável pela morte do prático Felippe, que foi

assassinado a cacetadas e cujo corpo, com o auxílio de Hilário, foi jogado no mar.

Antonio Angola “deu com um páo n‟um dos marujos, e o matou”, enquanto novamente

Hilário jogava um corpo no mar, agora do marujo Maia, que “Bento tinha morto dentro

de um bóte”; e por fim, Benedicto, que “foi o assassino do passageiro Feliciano. Depois

de dar-lhe com um páo, o lançou tambem ao mar”. (VIEIRA, 2009, p. 161).

De toda a cena de violência, os amotinados pouparam apenas alguns,

dentre eles: o escravo Antonio, o cozinheiro do navio, e os passageiros, Agostinho,

Damazo, Luiz Aracati, Manoel e os menores Elias e Philippe, todos cativos. O único

sobrevivente que não era escravo foi o marujo Bernardo. Após deixarem o saldo de

seis mortos e uma cena de violência banhada de sangue, os escravos Hilário,

Constantino, Bento, Luiz Cabo verde, Antônio Angola, João Mina e Benedicto, os

autores do motim, se apropriaram do que conseguiram carregar do navio e fugiram

juntamente com Luiz Aracati – a respeito de Luiz Aracati, não consta participação no

motim, o mesmo acabou implicado por ter-se tornado cúmplice na fuga. Antônio, o

cozinheiro, tampouco participou do motim. Muito pelo contrário, o mesmo ficou do lado

do capitão e acabou tomando uma facada por conta disto. Apesar de tudo, Antônio

viu-se obrigado a acompanhar os demais que acabaram tomando o rumo da estrada

real de Aracati. O motim do Laura 2ª fez parte do ciclo de revoltas escravas da década

de 1830 no Império. A capacidade de organização dos amotinados revelou o clima de

tensão proveniente das ações encabeçadas por sujeitos escravizados.

Sem dúvida, a lei de 10 de junho de 1835 (criada em resposta as agitações

provenientes de ataques de escravos contra sujeitos da camada senhorial), revelou-

se como importante anteparo senhorial para a defesa da instituição, uma vez que o

25 Atual Iguape, litoral da cidade de Aquiraz região metropolitana de Fortaleza, capital do Estado do Ceará.

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texto da lei tinha como objetivo primordial coibir e castigar exemplarmente, através da

pena de morte, os cativos que ousassem infringir o estatuto básico da sociedade

escravista. Apesar do rigor da lei de 10 de junho de 1835 contra os crimes que

vitimassem sujeitos da camada senhorial, a ocorrência de transgressões escravas

aconteceram com certa frequência durante todo o tempo que durou escravidão no

Brasil. Evidências de atitudes insubordinadas permeiam as narrativas sobre outros

crimes praticados por escravos no Ceará.

Ademais, essa mesma linha de análise descrita pela lei, uma tendência de

transgressões escravas também se manifestaram-se contra fiscalizadores do

trabalho, o conhecido feitor. Os ataques contra os feitores muitas das vezes ações

contra situações de extrema opressão.

Em 1845, por exemplo, Estevão, enforcado na vila do Ipú, escravo do

Coronel Diogo Lopes de Araújo Salles, matou ao feitor do seu senhor, Manoel de

Carvalho Guedes Mourão, “dando-lhe com uma mão de pilão na cabeça quando a

vítima dormia e, logo de madrugada mesmo, evadiu-se do local em fuga”.

(NOGUEIRA, 1894, p. 301). O crime que Estevão havia cometido não tinha sido contra

seu senhor, mas contra um feitor da fazenda onde morava. Logo após o crime

praticado, tomou fuga mas acabou encontrado e preso, e os procedimentos para a

realização da investigação do crime tiveram início imediatamente. Ao ser interrogado

pelo juiz sobre qual o motivo de ter cometido tal crime, Estevão alegou que já não

aguentava os maus tratos que sofria do feitor da fazenda. No caso de Estevão, fica

claro que a relação na fazenda acontecia por intermédio do feitor Manoel de Carvalho,

a quem Estevão se referiu como sujeito que cometia maus tratos com os cativos. Por

administrarem o escravos e serem figuras que autoridade a mando dos senhores,

ficava a cargo do feitor a administração de castigos aos escravos, o que os colocava

em uma posição direta com os escravos que diante de maus tratos, em alguns casos

se voltavam violentamente contra a figura do feitor. As tensões envolvendo escravos

e feitores estiveram intrinsecamente relacionadas as relações escravistas, um

representando a figura de autoridade e o outro o subordinado, dois lados opostos do

mesmo sistema.

Entretanto, o escravo, colocado sob o jugo da disciplina e o império da

produtividade, cabendo ao feitor uma disciplina rígida que por vezes se exprimia na

violência constante contra os escravos, colocava-se em uma situação de risco dentro

das tensas relações escravistas. Os conflitos envolvendo senhores e escravos

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estiveram diretamente relacionados a relação de mando de senhores e feitores. Na

condição de autoridades das relações de produção, passavam a ocupar uma posição

na linha de frente dos conflitos encabeçados por escravos. Outra forma de conflitos

envolvendo escravos são os casos registrados de homicídios praticados por escravos

contra familiares de seu proprietário, sugerindo a existência de relações sociais tensas

entre cativos e o seio familiar do qual os mesmos eram propriedade. Neste caso,

percebemos que os sujeitos escravizados faziam parte de um universo cotidiano

também da família, não sendo o espaço do trabalho o exclusivo das relações sociais

dos escravos. Sobre essa linha de raciocínio, o caso do escravo Joaquim é bastante

revelador de ações conflituosas contra membros da família da camada senhorial.

No dia 30 de Março de 1854, pelas 4 horas da tarde, na povoação de Taboleiro d’Areia, do termo da S. Bernardo, Joaquim entra de surpresa na casa da sobrinha e afilhada do seu senhor-Anna dos Passos de Jesus, que estava sosinha, fecha as portas e tenta saciar seus instintos libidinosos; e como a moça resiste heroicamente, depois de consumar o torpe delicto, mata-a enforcando-a, receioso de que, se a moça sobrevivesse, o denunciaria e ele seria castigado. (NOGUEIRA, 1894, p. 313).

Joaquim era escravo de Antônio Ferreira da Silva Nogueira, tio da vítima

do crime. Joaquim era escravo, solteiro de 24 anos, natural de São Bernardos das

Russas. Tensões também eram produzidas nas relações entre escravos e livres,

principalmente aqueles que pertenciam as famílias dos proprietários dos escravos. O

aflorar das tensões violentas e crimes contra familiares da camada senhorial

apresentou-se como produto de uma realidade que marcou o cotidiano dos senhores

de poucos escravos.

A escrava Bonifácia, tendo sido condenada por assassinar o filho de seu

senhor de quatorze anos, crime esse praticado na capital Fortaleza no ano de 1841,

demostra que mesmo com leis mais rígidas, ações de insubordinação poderiam

acontecer a qualquer momento, seja contra senhores ou seus familiares. As

testemunhas juradas no processo crime da escrava Bonifácia descreveram o

assassinato praticado pela escrava como um ato extremamente violento, as marcas

da agressão e do estrangulamento que resultou na morte do menino de quatorze anos

deixaram todos que tomaram conhecimento do caso admirados com os requintes de

crueldade produzidos pela escrava.

Ao passo em que ações violentas eram produzidas por sujeitos da camada

escravizada, percebiam-se também a fragilidade da manutenção do sistema

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escravista, que apesar de contar com a intromissão da Justiça com seus mecanismos

de punição exemplarmente elaborados, não conseguiam conter os ânimos exaltados

da camada cativa. Quanto ao escravo Benedito, apelidado de Capitão Cebola, era já

um escravo fugido que vivia pelos mangues nos arredores de Fortaleza quando foi

capturado por ter matado uma criança que atravessava as matas do Cocó, levando

pão e carne para seu senhor. Preso e torturado, Capitão Cebola caminhou para forca

no ano de 1855 na capital Fortaleza.

O crime, sobretudo o de morte, era um ato limite antecedido por uma série

de outras manifestações cotidianas de desagrado dos cativos em sua relação com os

senhores. Cientes dessas demandas, muitos senhores realizavam concessões aos

seus escravos interpretadas por alguns pesquisadores como estratégias de

dominação fundadas em critérios paternalistas. Do seu lado, os cativos eram capazes

de compreender essas concessões como conquistas e negociar com os proprietários

entre os extremos da submissão e da rebeldia. O crime praticado por Bonifácia na

capital Fortaleza em 1841 por exemplo, foi um ato repleto de violência praticado contra

o filho do seu proprietário, resultado de uma ação provocada pelas insatisfações

cotidiana dos cativos em relação as condições de vida enquanto escrava. Voltar-se

contra membros da relação escravista de forma violenta era o ato limite para uma

série de ações cotidianas de desagrado. O caso do escravo que mata o senhor ou

seu feitor também pode ser vislumbrado de igual modo, Estevão por exemplo, alegou

os maus tratos por parte do feitor como motivo para assassina-lo. Benedicto ou, como

era mais conhecido, Capitão Cebola não voltou-se contra um membro da sociedade

escravista, pois foi acusado pelo assassinato de um escravinho mas, por aqueles

tempos já era um escravo fugido que vivia escondido pelas matas nas proximidades

de Fortaleza, revelando-se um escravo rebelde.

A escravaria percebia a situação na qual estavam inseridos como

fortemente injusta, uma vez que trazia, implicitamente, a sua submissão a um ritmo

de trabalho mais impiedoso. Dessa forma, justificando os motivos dos crimes, os

escravos implicados, entre outros argumentos, apresentaram seu desagrado com

condições de trabalho rigorosas, agressões sofridas, assim com “a comida que havia

sido negada”. Os escravos envolvidos no crime de homicídio, os cometeram em

resposta as condições pelas quais passavam.

Embora não se possa atribuir a todos os escravos a compreensão da

escravidão em sua amplitude institucional, os ataques individuais e coletivos a

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senhores e feitores durante sessões de castigos e humilhações públicas ou

reservadas, ou, ainda, como desfechos de planos sangrentos cuidadosamente

elaborados diariamente em meio a ameaças ocorreram nas diversas regiões do

Império. Os debates promovidos nas assembleias parlamentares, os relatórios

emitidos por secretarias de governo e a imprensa articularam diferentes narrativas a

respeito de crimes e da criminalidade escrava no Brasil do Oitocentos. Por outro lado,

o eclodir da violência escrava contra seus senhores, feitores e sujeitos da camada

senhorial, imbricou-se na problemática do trabalho e nas relações a ele subjacentes.

Esses atos criminosos canalizaram as forças do grupo cativo para a contestação da

ordem senhorial. A permanência de traços comuns a estes homicídios, recobrindo

todo o período estudado, permite identificar que foram estes decorrências dos

atributos estruturais ao sistema escravista, mais especificamente as relações de

trabalho entre senhores e feitores, e as relações sociais entre prepostos que geraram

um sistema de tensões latentes.

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4 TRIBUNAIS

Em relação ao processo, devemos observar que não há entre

nós autoridades, juízes, ou tribunais especiais, que conheçam

delitos cometidos pelos escravos. São processados,

pronunciados e julgados, conforme os delitos e lugares, como os

outros delinquentes livres ou libertos. (MALHEIRO, 1866, p. 45).

Embora ferir ou matar fossem desfecho de disputas, não colocavam fim a

um problema. Muito pelo contrário, era o início de outro. Nos tribunais as disputas se

davam por meio dos aparatos jurídicos. Livres e escravos sentaram no banco dos réus

e proferiram suas insatisfações e motivações que resultaram em desfechos

sangrentos que os colocariam de uma vez por todas em situações que só terminariam

quando da punição por meio da morte.

O presente capítulo pretende compreender um modelo de justiça fundado

nos pressupostos punitivos expressos nas antigas ordenações portuguesas, apesar

de se dar num contexto alicerçado em princípios que visavam à constituição de

códigos criminais modernos. Na segunda parte do capítulo analisaremos as

interpretações das leis durante as sessões nos tribunais da província cearense em

que escravos foram condenados à pena capital.

4.1 LEGISLAÇÃO E CONTROLE SOCIAL

A pena capital já fazia parte do universo punitivo do Brasil desde período

colonial, quando o Brasil era regido pelas Ordenações Filipinas. Com o processo de

independência e a outorga da constituição de 1824, a sua permanência no novo

código de leis do emergente Estado imperial brasileiro passou a ser discutida. A pena

de morte tornou-se um fato jurídico do novo Império com a aprovação do Código

Criminal, cuja criação estava prevista no art. 179, inciso XVIII, da Carta constitucional,

preceituando que se organizasse, o quanto antes, um código civil e criminal fundado

nas sólidas bases da justiça e equidade. Havia a necessidade de que as instituições

jurídicas fossem reformadas para, desta forma, se consolidar o novo Império. Os

debates para criação do novo código criminal do Império teve início na câmara dos

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deputados no primeiro semestre do ano de 1826, contando assim dois anos da

promulgação da constituição do Império.

Com abertura da Câmara dos Deputados (1826), teve início a uma série de

reformas na ordenação jurídica. Buscava‐se garantir as liberdades e determinações

previstas na Constituição do Império. A urgência dos deputados em substituir as

Ordenações Filipinas pode ser percebida no discurso proferido no primeiro dia de

agosto de 1826, quando a comissão de legislação e justiça civil e criminal considerou

que

A nação brasileira, que independenciando-se da nação, a que esteve unida por mais de três séculos, e constituindo-se debaixo de uma forma de governo diferente; ainda se está regendo pelo código daquela nação compilado pela maior parte de outros de nações estranhas, e além disso por um sem número de leis extravagantes publicadas depois, que não só se tornam quase impossível o seu conhecimento, mas que não podem convir aos povos do Brasil, a cuja índole, necessidades, e localidades se não consultou; de sorte que podemos dizer que não temos código algum.26

Claro estava para os legisladores brasileiros que já não havia mais sentido

um Império recém independente continuar a ser regido pelas leis criminais da antiga

metrópole. O Brasil passava a experimentar uma condição diferente da anterior, e

como tal, precisava possuir seu próprio conjunto de leis para se impor como

independente. Nas palavras dos membros da comissão, o Brasil possuía a partir de

então um povo diferente, de índole e necessidades diferentes. Neste mesmo parecer

a comissão definiu que o Código Criminal deveria ser dividido em duas partes, uma

penal e a outra comportando o Código de Processo Criminal.

O primeiro esboço do anteprojeto para criação do Código Criminal foi

entregue por José Clemente Pereira que fez ponderações, explicitando que o mesmo

fora escrito de maneira sumária e ainda carecia das devidas reflexões. Apesar de ter

recebido o anteprojeto apresentado pelo deputado Clemente Pereira, a mesma

comissão responsável pelo escolha do projeto do Código Criminal deixou claro que a

escolha do projeto do mesmo ainda estava aberta a todos os deputados que

quisessem apresentar anteprojetos para que a comissão pudesse fazer a escolha

daquele que melhor servisse de base para as próximas discussões na câmara e no

senado.

26 Anais da Câmara dos Deputados, 01 de Agosto de 1826.

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Cerca de um ano depois da apresentação do anteprojeto de Clemente

Pereira, foi a vez do deputado Bernardo Pereira de Vasconcelos apresentar seu

anteprojeto no ano de 1827. Seu anteprojeto estava divido em três partes: a primeira

tratava dos crimes e das penas; a segunda das matérias judiciais, como os conselhos

de jurados de acusação ou sentença; e por fim, a terceira expunha a ordem do

processo. Muitos dos deputados da comissão de criação do novo Código Criminal

votaram contra o anteprojeto de Bernardo Pereira de Vasconcelos. Na verdade, o

anteprojeto de Bernardo Pereira

Dividia os delitos em Crimes Policiais (crimes contra a ordem pública no cotidiano das cidades); Crimes Particulares (crimes contra as pessoas, suas propriedades, honra e moral); Crimes Públicos (Delitos contra a ordem monárquica, bem como delitos cometidos por funcionários públicos). As penas aplicadas, e acordo com o projeto, seriam: morte, galés, prisão simples e com trabalho, banimento, desterro, infâmia (suspensão da cidadania brasileira), multa, perda dos objetos do crime, caução (fiança ou penhora dos bens), vigilância da justiça (o réu deveria habitar no lugar que lhe for designado pela justiça). [...] Além disso, no projeto de Vasconcelos já estava prevista a punição da tentativa de crime, a existência de condições agravantes e atenuantes, bem como considerava a pena como um mal necessário que visava à correção do infrator [...]. (ALBUQUERQUE NETO, 2008, apud SANTOS, 2012, p. 30).

Apesar da comissão já contar com dois anteprojetos para o Código Criminal

– o de José Clemente Pereira e o de Bernardo Pereira de Vasconcelos –, em 15 de

maio de 1827 o deputado Clemente Pereira entregou mais um anteprojeto de código

criminal à câmara dos deputados e, assim como fizera Bernardo dias antes, logo no

dia posterior tratou de apresentá-lo oralmente aos parlamentares. Meses depois, em

setembro daquele ano, a comissão de legislação justiça civil e criminal deu o veredito

final e indicou o anteprojeto de Bernardo Pereira de Vasconcelos como vencedor,

argumentando que o mesmo, por ser

Mais amplo no desenvolvimento das máximas jurídicas, razoáveis e equitativas e por mais miúdo na divisão das penas, cuja prudente variedade muito concorre para a bem regulada distribuição delas, poderá mais facilmente levar-se à possível perfeição com o menor número de retoques acrescentados àqueles que já a comissão lhe deu de acordo com seu ilustre autor. 27

Apesar da escolha do projeto do deputado Bernardo Pereira de

Vasconcelos ainda no ano de 1827, uma série de discussões ocorreram no interior da

Assembleia Legislativa até ser sancionado o Código Criminal em 1830. Entre elas

27 Anais da Câmara dos Deputados, 14 de setembro de 1827.

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estava a manutenção ou não das penas de morte e de galés perpétuas nos crimes de

homicídio qualificado e insurreição de escravos, sendo excluídos dos crimes políticos.

Sobres os debates a respeito da manutenção da pena de morte, o deputado Antônio

Ferreira França proferiu em discurso na câmara a tentativa de excluir a pena de morte

de qualquer discussão quanto ao código criminal com o argumento de que a

constituição brasileira de 1824 já a havia abolido:

Eu peço licença para dizer que havendo dito na proposta que está abolida pela constituição, ela merece ter o primeiro lugar, pois sendo causa deste gênero deve ter a preferência, porque a proposta é constitucional; perdoe V. Ex., mas julgo não pode haver demora, assim está determinado pela constituição. 28

O deputado referia-se ao inciso 19 do artigo 179 da Constituição que abolia

os açoites, a tortura, as marcas de ferro e as penas cruéis, mesmo que o artigo 27 da

mesma carta abrisse um precedente para a pena de morte. Com efeito, a

argumentação do deputado foi interessante, mas execuções de pena de morte

coexistiram durante esses seis anos de constituição sem que houvesse nenhuma

interferência jurídica por parte do legislativo. O presidente da câmara, deputado Costa

Carvalho, replicou Ferreira França, informando que não era o momento de se discutir

a pena de morte e sim o parecer da comissão de legislação e justiça criminal e civil;

era o momento de se entrar em questão o código penal e não apenas uma de suas

penas.

Como vimos, os debates na câmara em torno do tema se alongaram desde

1826 e se enveredaram pelo ano de 1830 quando Paula e Souza propôs a eleição de

uma comissão especial para agilizar a redação do código, evitando assim as

intermináveis discussões e emendas ao texto original que já duravam quatro anos. Os

indicados foram Limpo de Abreu, Luiz Cavalcanti e o próprio Paula e Souza, autor da

emenda. Lino Coutinho resumiu bem o momento pelo qual passava a nação. Já não

restava mais espaço para o Brasil, independente de Portugal, julgar seus crimes pelo

Livro V das Ordenações Filipinas. Para ele, a responsabilidade dos deputados era

discutir artigo por artigo, item por item de forma madura; mas, renunciou aos debates

pormenorizados e, votou na comissão especial indicada por Paula e Souza.29

28 Anais da Câmara dos Deputados, 06 de maio de 1830. 29 Anais da Câmara dos Deputados, 11 de setembro de 1830

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As discussões pautadas sobre a introdução ou não da pena de morte no

Código Criminal tiveram início a partir do dia 11 de setembro de 1830. Foram debates

acalorados, com falas bastante extensas, onde os discursos favoráveis e contrários

se alternaram muitas vezes. Neste momento, escolhemos alguns discursos que

julgamos terem expressado a maioria das opiniões trazidas pelos deputados.

Apresentaremos os discursos, ideias e propostas dos poucos deputados que negaram

decisivamente a pena de morte no texto do Código Criminal. Logo após essa primeira

exposição, apresentaremos os discursos daqueles deputados que foram favoráveis

da permanência da pena de morte no texto do Código, mas trataram de reformular

sua aplicação, excluindo-a dos crimes políticos e introduzi-la nos cometidos por

escravos. Outro grupo de deputados ainda propôs a elaboração de um Código

Criminal exclusivo para a parcela cativa. Por fim, discutiremos as argumentações

daqueles que defenderam a necessidade de tal pena tanto para a parcela livre quanto

para cativa, sendo essa a proposta vencedora dos debates.

O já citado Ernesto Ferreira França lançou seu discurso e bradou diante de

todos os deputados que daquela câmara não deveria “sair um código bárbaro”.

Preliminarmente o deputado Ferreira França requereu que a pena de morte fosse

retirada em casos de crimes políticos, mas no decorrer dos debates ele se posicionou

contra a pena de morte quer para crimes políticos, para cidadãos comuns ou para

escravos. Em 13 de setembro, o deputado ainda faz mais um discurso, desta vez mais

abrangente que o anterior, afirmando que em uma nação onde faltavam instrução

primária e casas de correção, a pena de morte era coisa duvidosa e que a mesma

seria imputada em relação à condição do criminoso e não ao crime. 30

Outro deputado que proferiu um discurso contra a pena de morte foi Ribeiro

de Andrada. Segundo ele, a pena de morte além de ser inútil era também uma

anomalia para uma nação moderna. Leitor de Cesare Beccaria, o mesmo fez

referências ao autor para sustentar suas afirmações no debate. Defendia que a

suspensão da liberdade seria o ideal para a punição do criminoso, e criticou a pena

de morte apresentando-a como um espetáculo de terror e vingança que se apagava

das memorias após realizada a execução do criminoso. Essas ideias já haviam sido

apresentadas pelo escritor Beccaria:

O rigor do castigo faz menor efeito sobre o espírito do homem do que a duração da pena, pois nossa sensibilidade é mais fácil e mais

30 Anais da Câmara dos Deputados, 13 de setembro de 1830.

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constantemente atingida por uma impressão ligeira, porém frequente, do que por abalo violento, porém passageiro. Todo ser sensível está dominado pelo império do hábito [...]. A impressão causada pela visão dos tormentos não pode resistir à ação do tempo e das paixões, que em breve levam da memória as coisas mais essenciais. Em geral, as paixões violentas causam vivíssima surpresa, porém o seu efeito não é duradouro. (BECCARIA, 2011, p.11).

Os argumentos do deputado estavam de acordo com os pressupostos

defendidos por Beccaria. Para este, uma punição duradoura permeada por uma série

de trabalhos pesados e de privação da liberdade, em vez dos espetáculos de

enforcamentos rápidos e cruéis, seria bem mais vantajoso para se atingir a

sensibilidade do espírito humano. Do outro lado dos debates estavam os que

defendiam a permanência da pena de morte no Código Criminal, neste grupo

encontramos o deputado Antonio Pereira Rebouças, que em seu discurso proferiu os

seguintes argumentos.

Disse-se: a pena de morte é necessária no Brasil, porque no seu solo existem homens imorais e facinorosos que a troco de uma miserável quantia cometem um assassinato [...] que os escravos, e outros homens acostumados a serviços penosos cometeriam crimes porque melhorariam de condição indo para uma prisão sem trabalho [...] que não temos a madureza necessária para não admitirmos a pena de morte. 31

Rebouças defendeu a permanência da pena de morte e baseou-se no fato

de que a pena de morte já existia há muito tempo no Brasil, e que ainda assim existiam

diversos criminosos que cometiam todo tipo de sorte de crime em troca de

pagamentos. O que o deputado não percebeu foi que seu discurso foi ambíguo, pois

ao declarar a existência de criminosos quando a pena de morte já fazia parte do

universo das penas da justiça, o mesmo deixou em evidencia que a pena de morte

não surtia efeito no combate aos crimes de assassinatos mandados.

Bernardo Pereira de Vasconcelos, então autor do projeto, não poderia

deixar de subir à tribuna para defender a adoção da pena de morte. Em 14 de

setembro mostrou um tom inquisidor àqueles que se pronunciavam contra a pena

capital:

Parece-me, pois que todos os senhores que falaram sobre esta matéria devem ilustrar à comissão, sobre as penas que devem substituir a de morte e galés. Devem também declarar-se se este código compreende os escravos [...]. Examinem os ilustres deputados que tem falado contra a pena de morte,

31 Anais da Câmara dos Deputados, 14 de setembro de 1830.

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que nós não temos prisões para receber os que cometeram grandes crimes; que este código vai ser executado desde já, e, entretanto não se tratou ainda que penas hão de substituir no código as de morte e galés. 32

Vasconcelos ao defender a pena de morte e de galés pediu que aqueles

que fossem contra apresentassem propostas de substituição para penas, e que tantos

debates e nenhuma apresentação de uma proposta diferente só faria adiar mais ainda

a promulgação do Código que já vinha se arrastando nos debates da câmara desde

1826.

Outro grupo de deputados se posicionou a favor da criação de um código

de leis que normatizassem especificamente os crimes cometidos por escravos. Um

dos mais destacados representantes desse grupo foi o deputado Paula e Souza. Para

o deputado, a pena de morte deveria se estender para homens livres também, que

cometiam toda a sorte de crimes e inclusive alguns era conhecidos por cometerem

crimes atrozes em troca de pagamentos.

Neste denso e agitado debate, muito vai se revelando sobre as concepções

e valores da sociedade escravagista que dominava o Brasil, havia quem defendesse

proposições adversas, como foi o caso do deputado Rego Barros, que era contra a

pena de morte em casos que figurassem crimes de origem políticas, mas era a favor

da manutenção da mesma em crimes de homicídio e insurreição de escravos.

Até o veredito final do Código Criminal intensos debates foram proferidos

na câmara dos deputados. No dia 15 de setembro de 1830, finalmente chegou ao

momento da decisão do projeto. Neste momento, a câmara já contava três emendas

de propostas. Uma de autoria de Bernardo Pereira de Vasconcelos, redator do

Código, que propôs que a pena de galés continuasse existindo até o momento em que

se inaugurassem cadeias apropriadas; voltando atrás retirou a mesma antes que ela

entrasse em votação. Paula e Sousa propôs que a pena de morte só fosse aplicada

nos casos de homicídio e aos cabeças de insurreição, sempre em grau máximo. Esta

emenda foi rejeitada pela casa. Todavia, a emenda proposta por Rego Barros, em que

a pena de morte fosse excluída nos casos de crimes políticos e introduzida nos crimes

de homicídio e contra escravos (sendo votada em uma casa de políticos e de senhores

escravistas) passou sem maiores objeções. (SANTOS, 2012, p. 50)

32 Anais da Câmara dos Deputados, 14 de setembro de 1830.

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Após ser aprovado na câmara dos deputados, o projeto do Código Criminal

de Vasconcelos seria enviado para que os senadores pudesse votar se aprovariam

ou não o projeto. No senado, o projeto não teve problemas para receber a aprovação.

A urgência em aprovar o código era tamanha que os senadores decidiram não fazer

discussões pormenorizadas para não atrasar ainda mais o projeto que já vinha se

arrastando desde 1826. Sem mais debates, os senadores acharam de acordo aprovar

o Código Criminal de imediato, e o mesmo já passou a entrar em vigor no dia 16 de

dezembro de 1830.

Surgia assim o primeiro Código Criminal brasileiro. Sua sistematização de

legislação penal possuía 313 artigos e estava dividido em quatro partes: I - Dos Crimes

e das Penas: que correspondiam aos artigos 1° ao 67°; II - Dos Crimes Públicos: artigo

68° ao 178°; III – Dos Crimes Particulares: artigos 179° ao 275°; IV – Dos Crimes

Policiais: artigos 276° ao 313°Logo no primeiro artigo estava previsto que nenhum

crime seria punido com penas que não estivessem estabelecidas na lei, além de

atenuantes e agravantes (BRASIL, 1830). Além de ser considerada bastante liberal

para a época, foi também o primeiro Código Autônomo da América Latina, inspirando

e servindo de base ao Código Espanhol de 1848 e ao Código Penal Russo de 1855.

O Código Criminal de 1830 estabelecia, destarte, três tipos de crimes:

Públicos, onde eram abordados os crimes contra o Império, contra a tranquilidade

interna, contra o tesouro e a propriedade pública; Particulares, onde se encontravam

os crimes contra a liberdade e a segurança individual, contra a propriedade particular;

e Policiais, em que estavam regulamentados os crimes contra as normas policiais e

regras públicas, as posturas municipais. Ademais, estavam previstas no código as

seguintes penas: morte (do art. 38 ao 43); galés (art. 44 e 45); banimento, degredo e

desterro (do art. 50 ao 52); multa (do art. 55 ao 57); suspensão do emprego (art. 58);

e perda do emprego (art. 59). Previa ainda a existência de circunstâncias agravantes

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(do art. 1633 ao 1734) e atenuantes (art. 1835) e entendia a menoridade como uma

circunstância atenuante. Os açoites como pena ficavam reservados aos escravos e

não poderia exceder o número de 50 por dia (art. 60). Aos escravos que fossem

condenados, caberia a aplicação da pena de morte, galés ou açoites determinado pelo

juiz, e ao fim seria devolvido ao senhor que o traria acorrentado a ferros por um prazo

determinado.

Ainda em relação às penas a que estavam sujeitos os cativos que

cometessem atos conceituados como delitos, verificavam-se algumas distinções em

relação ao restante da população. No Código Criminal, dois artigos estão ligados

diretamente aos delitos praticados pela parcela da população cativa; eram eles os

artigos de número 113 (que conceituava e regulava o crime de insurreição) e o artigo

de número 60.

33 As circunstâncias agravantes mencionadas no código eram: 1º Ter o delinquente commettido o crime de noite,

ou em lugar ermo. 2º Ter o delinquente commettido o crime com veneno, incendio, ou inundação. 3º Ter o

delinquente reincidido em delicto da mesma natureza. 4º Ter sido o delinquente impellido por um motivo

reprovado, ou frivolo. 5º Ter o delinquente faltado ao respeito devido á idade do offendido, quando este fôr mais

velho, tanto que possa ser seu pai. 6º Haver no delinquente superioridade em sexo, forças, ou armas, de maneira

que o offendido não pudesse defender-se com probabilidade de repellir a offensa. 7º Haver no offendido a

qualidade de ascendente, mestre, ou superior do delinquente, ou qualquer outra, que o constitua á respeito deste

em razão de pai. 8º Dar-se no delinquente a premeditação, isto é, designio formado antes da acção de offender

individuo certo, ou incerto. Haverá premeditação quando entre o designio e a acção decorrerem mais de vinte e

quatro horas. 9º Ter o delinquente procedido com fraude. 10. Ter o delinquente commettido o crime com abuso

da confiança nelle posta. 11. Ter o delinquente commettido o crime por paga, ou esperança de alguma recompensa.

12. Ter precedido ao crime a emboscada, por ter o delinquente esperado o offendido em um, ou diversos lugares.

13. Ter havido arrombamento para a perpetração do crime. 14. Ter havido entrada, ou tentativa para entrar em

casa do offendido com intento de commetter o crime. 15. Ter sido o crime commettido com surpresa. 16. Ter o

delinquente, quando commetteu o crime, usado de disfarce para não ser conhecido. 17. Ter precedido ajuste entre

dous ou mais individuos para o fim de commetter-se o crime.

34 Ainda existiam as circuntâncias agravantes mencionadas no Art. 17. Tambem se julgarão aggravados os crimes:

1º Quando, além do mal do crime, resultar outro mal ao offendido, ou á pessoa de sua familia. 2º Quando a dôr

physica fôr augmentada mais que o ordinario por alguma circumstancia extraordinaria. 3º Quando o mal do crime

fôr augmentado por alguma circumstancia extraordinaria de ignominia. 4º Quando o mal do crime fôr augmentado

pela natureza irreparavel do damno. 5º Quando pelo crime se augmentar a afflicção do afflicto.

35 Art. 18. São circumstancias attenuantes dos crimes: 1º Não ter havido no delinquente pleno conhecimento do

mal, e directa intenção de o praticar. 2º Ter o delinquente commettido o crime para evitar maior mal.

3º Ter o delinquente commettido o crime em defeza da propria pessoa, ou de seus direitos; em defeza de sua

familia, ou de um terceiro. 4º Ter o delinquente commettido o crime em desaffronta de alguma injuria, ou

deshonra, que lhe fosse feita, ou á seus ascendentes, descendentes, conjuge, ou irmãos. 5º Ter o delinquente

commettido o crime, oppondo-se á execução de ordens illegaes. 6º Ter precedido aggressão da parte do offendido.

7º Ter o delinquente commettido o crime, atterrado de ameaças. 8º Ter sido provocado o delinquente. A

provocação será mais ou menos attendivel, segundo fôr mais ou menos grave, mais ou menos recente. 9º Ter o

delinquente commettido o crime no estado de embriaguez. Para que a embriaguez se considere circumstancia

attenuante, deverão intervir conjunctamente os seguintes requesitos; 1º que o delinquente não tivesse antes della

formado o projecto do crime; 2º que a embriaguez não fosse procurada pelo delinquente como meio de o animar

á perpetração do crime; 3º que o delinquente não seja costumado em tal estado a commetter crimes. 10. Ser o

delinquente menor de vinte e um annos. Quando o réo fôr menor de dezasete annos, e maior de quatorze, poderá

o Juiz, parecendo-lhe justo, impôr-lhe as penas da complicidade.

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Art. 60. Se o réu for escravo, e incorrer em pena que não seja a capital ou de galés, será condenado na de açoites, e, depois de os sofrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com um ferro pelo tempo e maneira que o Juiz determinar. O número de açoites será fixado na sentença, e o escravo não poderá levar por dia mais de cinquenta.36

A pena de açoites limitava-se aos cativos em virtude destes estarem fora

das disposições do artigo 179 § XIX da Constituição de 1824, que abolia “os açoites,

a tortura, a marca de ferro quente e todas as mais penas cruéis”. No Código Criminal

de 1830, em seu Capítulo IV (com o título Insurreição) definia em seu artigo 113

“Julgar-se-ha commettido este crime, retinindo-se vinte ou mais escravos para

haverem a liberdade por meio da força”. E definia as penas – “Aos cabeças - de morte

no gráo maximo; de galés perpetuas no médio; e por quinze annos no minimo; - aos

mais – açoutes”. A pena de morte era mencionada ainda em outra situação definida

pelo artigo 192 “Matar alguém com qualquer das circumstancias aggravantes

mencionadas no artigo dezaseis, numeros dous, sete, dez, onze, doze, treze,

quatorze, e dezasete”. E definia o grau das penas – “de morte no gráo maximo; galés

perpetuas no médio; e de prisão com trabalho por vinte annos no mínimo”.37

O novo Código afirmou-se entre muitos juristas do Oitocentos como corpo

de leis moderno, construído as bases das ideias liberais. Tais adjetivos são

contestados por Jurandir Malerba, em obra na qual ele trata dos paradoxos jurídicos

dos oitocentos brasileiro ao analisar a Constituição de 1824, o Código Criminal de

1830, o Código de Processo Criminal de 1832 e o Código Comercial de 1850.

Segundo ele:

Inúmeros autores criaram o mito de que o diploma criminal promulgado em dezembro de 1830 seria um marco de modernidade, portador de novas ideias liberais em voga na Europa, e que se anteciparia a elas na legislação penal [...]. Mas estava longe de ser esse bastião de liberalismo que embeveceu os contemporâneos e mesmo estudiosos posteriores. (MALERBA, 1994, apud SANTOS, 2012, p.31).

Ainda segundo Malerba, apesar dos textos jurídicos imperiais darem a

impressão de negar a sua herança colonial, “todo o ordenamento político e jurídico do

Império permanecerá fundado nas mesmas bases anteriores: o latifúndio

agroexportador e o trabalho escravo”. (MALERBA, 1994, apud Santos, 2012, p. 31).

36 Código Criminal do Império do Brasil, art. 60. 37 Código Criminal do Império do Brasil, 1830, Artigos 113 e 192.

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Não havia possibilidades de se esconder os valores ensejados pela elite latifundiária

e escravista. O Código Criminal carregaria em si toda a subjetividade daquele tempo

– como qualquer outra fonte histórica.

Analisando a sociedade imperial, Hebe Mattos focalizou o conceito de

cidadania empregado na época. A historiadora menciona que a Constituição Imperial

de 1824 reconheceu os direitos civis de todos cidadãos brasileiros, os diferenciando

pelo ponto de vista político. Tendo como referencial o direito ao voto, expressão

máxima de cidadania, Mattos nos aponta uma tripartição da sociedade oitocentista. O

cidadão passivo “sem renda suficiente para ter direito ao voto”, o cidadão ativo votante

“com renda suficiente para escolher, através do voto” e o cidadão ativo eleitor e

elegível. Como o poder aquisitivo era o fator primordial para o exercício do voto, as

posses diferenciavam os direitos políticos. Em outras palavras, se os descendentes

de escravos libertos poderiam (se renda tivessem) exercer plenamente todos os

direitos políticos da monarquia, os escravos nascidos no Brasil que fossem alforriados

não entrariam em pleno gozo dos direitos reconhecidos aos cidadão do Império.

(MATTOS, 2004, p. 20-21). Em linhas teóricas, se a Constituição de 1824 considerava

todos os homens cidadãos livres e iguais, o voto censitário hierarquizava atuação

política, produzindo cidadãos diferenciados. Ainda segundo Mattos, este aspecto era,

“o principal limite do pensamento liberal no Brasil”. (MATTOS, 2004, p. 7-8). Os

direitos e as garantias de nossa primeira constituição eram um privilégio para os

cidadãos, homens livres, e não para os escravos.

O código de 1830 deu conta de uma sociedade mista, composta de

cidadãos ricos com direitos políticos, homens pobres aquém das decisões e, por fim,

uma massa escrava que não era considerada humana, que recebia a denominação

de Coisa. Jurisconsulto e parlamentar, Agostinho Marques Perdigão Malheiro (1966)

foi um dos mais destacados pesquisadores dos fundamentos jurídicos, em sua obra

mais conhecida, A escravidão no Brasil, publicada entre 1867 e 1868, Malheiro é

enfático:

Em relação à lei penal, o escravo, sujeito do delito ou agente dele, não é coisa, é pessoa na acepção lata do termo, é um ente humano, um homem enfim, igual pela natureza aos outros homens livres seus semelhantes. Responde, portanto, pessoal e diretamente pelos delitos que cometa; o que

foi sempre sem questão. (1966, p.49).

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A Constituição imperial havia sido promulgada mas, excluía o escravo

enquanto agente político, negava direitos por não ser considerado como cidadão e

súdito da monarquia, o considerando como Coisa, ao mesmo tempo, o Código

Criminal inseria o escravo como sujeito do delito, passível de punição. Se a

Constituição excluía o escravo na participação da cidadania no Império, o Código

Criminal o incluía em relação a lei penal.

O aparato criminal estava criado. Os políticos continuavam organizando a

legislação do Império. A abdicação de D. Pedro I ao trono brasileiro em favor de seu

filho, até então impúbere, não foi motivo para que os trabalhos parassem. Faltava

ainda a organização do aparato jurídico que não havia sido criado em conjunto com o

Código Criminal como era esperado pelos deputados da comissão do Código. A

conclusão do Código do Processo Criminal só foi concluída em 29 de novembro de

1832. As alterações mais significativas que tivemos em relação à pena de morte no

Estado imperial brasileiro, além da inserção no Código criminal e da lei de 10 de junho

de 1835 – da qual falaremos ainda neste tópico – vieram no momento da criação do

Código Processual em 1832; na sua Reforma em 1841 e no Regulamento número

120, de 31 de janeiro de 1842, necessário para organizar toda a parte policial e

criminal da Reforma do Código de Processo.

Quanto à pena de morte, o Código de Processo Criminal veio para dirimir

algumas dúvidas e esclarecer algumas obscuridades, assim como gerar outras. Ele

estabeleceu por meio do art. 332 que para condenação a pena de morte havia a

necessidade da unanimidade de votos dos jurados presentes na sessão de

julgamento.38 Comumente, qualquer pena era imposta quando dois terços do corpo

de jurados fossem a favor dela, mas em relação à pena de morte se a quantidade de

votos não alcançasse a totalidade dos jurados, o réu seria imediatamente sentenciado

à pena de galés perpétuas, não obstante, poderia protestar por um novo júri.39 Em

relação a pena de morte o Código Processual não apresentava distinção entre réus

livres ou escravos.

O Código Processual trouxe de volta a possibilidade do réu recorrer ao

Poder Moderador para minoração das penas, direito esse que a Constituição de 1824

38 Art. 332. As decisões do Júri são tomadas por duas terças partes de votos; somente para a imposição da pena de

morte é necessária a unanimidade, mas em todo caso, havendo maioria, se imporá a pena imediatamente menor:

as decisões serão assinadas por todos os votantes. (BRASIL, 1832). 39 Art. 308. Se a pena imposta pelo Júri for de cinco anos de degredo, ou desterro, três de galés ou prisão, ou for

de morte, o réu protestará pelo julgamento em novo Júri. Idem, Ibidem.

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previa40 Mas, tempos depois, em 11 de abril de 1829, o imperador abriu mão dessa

sua exclusividade constitucional. Por se tornarem recorrentes os crimes de escravos

contra seus senhores, o imperador mesmo à revelia das prerrogativas do poder

moderador renunciou o direito de perdoar ou moderar as penas capitais impostas a

escravos, pois

Tendo sido mui repetidos os homicidios perpetrados por escravos em seus proprios senhores, talvez pela falta de prompta punição, como exigem delictos de uma natureza tão grave, e que podem até ameaçar a segurança pública, e não podendo jamais os réos comprehendidos nelles fazerem-se dignos da Minha Imperial Clemencia: Hei por bem. Tendo ouvido o Meu Conselho de Estado, ordenar, na conformidade do art. 2.º da lei de 11 de Setembro de 1826, que todas as sentenças proferidas contra escravos por morte feita a seus senhores, sejam logo executadas independente de subirem á Minha Imperial Presença. As autoridades a quem o conhecimento deste pertencer o tenham assim entendido e façam executar

Assim, a análise principia pelos desdobramentos da situação dos escravos

frente às posturas municipais e a justiça criminal, aborda alguns dos principais

conflitos entre autoridades e senhores no município de Franca, passando pelos efeitos

locais das tensões desencadeadas pelas revoltas de cativos no país e termina com

um dos principais componentes da relação entre alguns senhores. 41

O Império, cada vez mais rígido em relação aos crimes cometidos por

escravos, por meio dos códigos de leis buscava a manutenção do regime escravista.

No entanto, foi a Lei nº 4 de 10 de junho de 1835 que regulamentou especificamente

a punição para os escravos que matassem ou ferissem gravemente seus senhores,

administradores, feitores e respectivos familiares. Caso os ferimentos fossem

considerados leves seria aplicada a pena de açoites. A lei de exceção, criada em meio

a um agitado contexto de lutas escravas pela liberdade, barrava a possibilidade de

qualquer recurso para os escravos que cometessem crimes contra os agentes do

sistema escravista, pois, sendo a sentença condenatória, se executaria sem recurso

algum. Como a lei não deixava brechas para o pedido de graça e a comutação, sendo

condenados, à morte ou a qualquer pena, não haveria nenhuma medida judicial

cabível que suspendesse ou atenuasse a sentença. De acordo com o artigo 1° da lei

de 10 de junho de 1835, escravo condenado era escravo executado.

40 O Imperador exerce o poder moderador: Inciso VIII – Perdoando e moderando as penas impostas aos réus

condenados por sentença”. Constituição Brasileira de 1824. 41 Coleção de Leis do Império do Brasil - 1829, Página 263 Vol. 1 pt. II

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Art. 1º Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave offensa physica a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, a administrador, feitor e ás suas mulheres, que com elles viverem.42

Tendo tomado como objeto de investigação a criação do projeto de lei do

que viria se tornar a lei 10 de junho de 1835, Ricardo Figueiredo Pirola (2015) analisou

minuciosamente os preâmbulos da lei de 1835, seu contexto histórico e os debates

parlamentares a respeito do projeto de lei, iniciado em 1833.

Ao reforçar as penas para os crimes que atingiam o senhor, feitor, administrador e suas mulheres e filhos, a proposta de 1833 colocava em evidência não apenas as ações cativas que deveriam ser mais severamente reprimidas, mas também o grupo de pessoas a ser protegido pela nova legislação. Os ataques de um escravo contra uma pessoa livre qualquer ou contra outro escravo (desde que não estivessem inclusos no grupo de indivíduos mencionados no artigo primeiro da proposta) continuariam a ser julgados pelas penas previstas no Código Criminal. (PIROLA, 2015, p. 36).

A proposta de 1833 elegia, nesse sentido, a família senhorial e os agentes

mais diretamente ligados ao controle da produção como um grupo privilegiado, que

passaria a ter uma barreira legal de proteção contra possíveis ações rebeldes dos

cativos. Os ataques escravos contra esse grupo seria severamente reprimido sem a

possibilidade de recurso algum por parte do Poder Moderador.

Ricardo Pirola (2015) esclarece que durante muito tempo a criação da lei

de 10 de junho de 1835 esteve associada aos atentados praticados por escravos

contra sujeitos ligados a classe senhorial durante a década de 1830; mais

especificamente historiadores associavam a criação da lei a revolta dos Malês (1835)

na província da Bahia. Mas, de acordo com Pirola, os debates parlamentares já

haviam começado desde 1833, sendo mais bem associado assim a Revolta de

Carrancas, que pertencia à vila de São João Del Rey, na província das Minas Gerais.

Tendo eclodido em 13 de maio de 1833, diversos escravos pertencentes a várias

fazendas se insurgiram e deixaram um saldo de vários mortos. Os “rebeldes de

Carrancas foram exemplarmente punidos, sendo que 16 deles receberam à pena de

morte por enforcamento sendo executados em praça pública em dias alternados e

com cortejo da Irmandade da Misericórdia, na vila de São João Del Rei”.

Pouco menos de um mês após o fatídico na vila de São João Del Rei, em

10 de junho de 1833, a Regência, representada pelo ministro da justiça Aureliano de

42 BRASIL, Lei N° 4 de 10 de junho de 1835.

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Souza e Oliveira Coutinho, submeteu a Câmara dos Deputados um projeto de lei com

o intuito de simplificar o trâmite processual nos casos de escravos que assassinassem

seus senhores e/ou pessoas que sobre eles exercessem autoridade. Em plenária o

ministro chamou a atenção dos deputados para os crimes perpetrados por escravos,

que eram, segundo ele, dignos da mais séria atenção do corpo legislativo. Vejamos

um trecho do seu discurso:

Se a legislação até agora existente era fraca, e ineficaz para coibir tão grande mal, a que hora existe mais importante é, e menos garantidora da vida de tantos proprietários fazendeiros, que vivendo mui distantes uns dos outros, não poderão contar com a existência, se a punição de tais atentados não for rápida e exemplar, nos mesmos lugares, em que eles tiverem sido cometidos.43

Um fato interessante que é destacado no discurso é a crítica do deputado

em relação a legislação já existente, afirmando que a mesma era ineficaz para coibir

ações de cativos contra sujeitos do sistema escravista. Pirola (2015) aponta dois

pontos centrais das análises historiográficas em relação a lei de 10 de junho de 1835;

o primeiro seria o contexto histórico e o segundo sua aplicabilidade no Estado imperial.

Em relação ao primeiro ponto, já destacamos o contexto de agitação escrava e

mencionamos duas grandes revoltas que repercutiram no Império, a Revolta dos

Malês na Bahia (1835) e a Revolta de Carrancas (1833). Em relação ao segundo

ponto, Pirola faz suas interpretações a partir das análises de Ribeiro (2005 apud

PIROLA 2015), que também analisou a criação do projeto de lei contra os crimes

cometidos por escravos contra senhores, segundo o autor, “cada execução afirmava

o direito de um senhor possuir escravos, seu direito de castigá-los, prendê-los, vendê-

los, no limite, através dos instrumentos estatais, matá-los”. (RIBEIRO, 2005, apud

PIROLA, 2015, 47). A lei de 10 de junho mostrava-se como um dos meios de controle

da população cativa. Referindo-se à lei excepcional de 1835, argumentava Perdigão

Malheiros nos anos sessenta dos Oitocentos:

Esta legislação excepcional contra o escravo, sobretudo em relação ao senhor, a aplicação da pena de açoites, o abuso da de morte, a interdição de recursos, carecem de reforma. Nem estão de acordo com os princípios da ciência, nem esse excesso de rigor tem produzido os efeitos que dele se esperavam. A história e a estatística criminal do Império têm continuado a registrar os mesmos delitos. E só melhorará, à proporção que os costumes se forem modificando em bem do mísero escravo, tornando-lhe mais

43 Anais da Câmara dos Deputados, 10 de junho de 1833.

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suportável ou menos intolerável o cativeiro, e finalmente abolindo-se a escravidão (MALHEIRO, 1866, p. 47).

Crítico da lei de 1835 e do conjunto de leis penais em relação aos escravos,

Malheiros definia que somente uma mudança nos costumes poderiam modificar os

problemas criminais pelos quais o Império passava. Outra mudança no conjunto das

leis do Estado imperial veio com a promulgação do decreto de 9 de março de 1837.

Em decreto publicado em 9 de março de 1837, o Regente em nome do Imperador

buscou explicitar o fato de que a recém aprovada lei de 10 de junho de 1835, que

impossibilitava os réus de apelação judicial depois da condenação em primeira

instância, não alterava o direito de recorrer à graça imperial. O ato de perdoar ou

comutar uma sentença era uma dos princípios constitucionais que a lei de 1835 não

havia alterado.44

Os caminhos trilhados e as possíveis respostas nos levam a acreditar que

a pena de morte estava intrinsecamente ligada ao projeto de nação e à manutenção

da governabilidade, e a continuidade do sistema escravista, assim como queriam as

elites brasileiras. Uma vez excluída dos crimes políticos, a pena de morte alcançava

basicamente os homens pobres livres e notadamente os escravos. Já discutimos no

1° capítulo a função pedagógica da pena de morte para o Estado imperial brasileiro,

sendo um importante mecanismo de controle do Estado brasileiro sobre a massa da

população subalterna.

4.2 ESCRAVOS RÉUS NOS TRIBUNAIS DA PROVÍNCIA CEARENSE

A Constituição de 1824, apesar de conter exceções como a que limitava a

cidadania dos libertos nas eleições, não continha nenhuma regra para a definição

jurídica dos que se encontravam no cativeiro. Por um lado, o silêncio do texto

constitucional quanto aos cativos era juridicamente sustentável e reafirmava a

escravidão não incluindo coisas ou objetos de propriedade (os escravos) em regras

destinadas a cidadãos. Por outro lado, essa falta de princípios constitucionais

norteadores gerou uma consequência direta: os escravos continuaram a ocupar até a

abolição o mesmo banco dos réus dos de condição livre.

44 Coleção das Leis do Império do Brasil, Atos do Poder Executivo, Decreto de 9 de março de 1837.

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Situação um tanto paradoxal. Ao mesmo tempo em que a Constituição de

1824 excluía os escravos, negava a estes a cidadania. Por serem considerados

peças, propriedades comercializadas assim como os animais, a lei penal os

colocavam enquanto agentes ativos, pois eram passiveis das mesmas punições que

os sujeitos ditos cidadãos. Agostinho Marques Perdigão Malheiro (1866) foi um dos

mais destacados pesquisadores dos fundamentos jurídicos que sustentaram a

legislação sobre os escravos no Brasil. Em sua obra mais conhecida, A escravidão no

Brasil, Malheiro é enfático.

Em relação à lei penal, o escravo, sujeito do delito ou agente dele, não é coisa, é pessoa na acepção lata do termo, é um ente humano, um homem enfim, igual pela natureza aos outros homens livres seus semelhantes. Responde, portanto, pessoal e diretamente pelos delitos que cometa; o que

foi sempre sem questão. (1866, p. 49).

Perdigão Malheiro assevera que as penas relativas aos escravos eram

entendidas como exceções ou excepcionalidades. O Código Criminal do Império

impunha exclusivamente ao condenado escravo, quando sentenciado a outras penas,

que não fosse à de morte ou galés perpétuas, a substituição da pena de prisão pela

de açoites, que não poderiam ultrapassar a quantidade de cinquenta por dia,

complementada pela obrigação do uso de ferros nos pés ou pescoço durante o

período determinado pelo juiz. Pena exclusiva dos escravos, os açoites só foram

abolidos do Brasil em 1886.

Não havia no Código Criminal destaque artigo a artigo que explicassem a

maneira de se imputar pena aos escravos. Com exceção do artigo de número 60 “Art.

60. Se o réo fôr escravo, e incorrer em pena, que não seja a capital, ou de galés, será

condemnado na de açoutes, e depois de os soffrer, será entregue a seu senhor, que

se obrigará a trazel-o com um ferro, pelo tempo, e maneira que o Juiz designar.”

Estabelecendo a quantidade de açoites “O numero de açoutes será fixado na

sentença; e o escravo não poderá levar por dia mais de cincoenta.”45 O mesmo código,

entretanto, não possuía uma lei específica para a punição do escravo que

assassinasse seu senhor ou qualquer outra pessoa, salvo quando se caracterizava o

crime de insurreição.

O crime de insurreição não só definia a punição para as reuniões de vinte

ou mais escravos “para haverem a liberdade por meio da força” como estendia a

45 Código Criminal do Império do Brasil, 1830, art. 60.

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mesma punição dos cativos aos livres identificados como cabeças do levante. Previa

a punição ainda, na forma do artigo 115, de todos aqueles que participassem da

insurreição incitando ou ajudando os escravos a se rebelar: “Ajudar, excitar, ou

aconselhar escravos á insurgir-se, fornecendo-lhes armas, munições ou outros meios

para o mesmo fim”. 46 Estudioso de uma das insurreições de escravos que mais

repercutiram no Império, o levante dos Malês, ocorrido em Salvador, na Bahia, em

1835, João José Reis argumenta:

O artigo 115 tinha como único objetivo atribuir ao homem livre, mas sobretudo ao liberto, uma maior periculosidade para distingui-lo do escravo e justificar sentenças mais duras. E o alvo principal dessa lei eram forros de origem africana, pois eles e seus patrícios escravos eram os que se rebelavam com maior frequência no Brasil, e na Bahia em particular. (2003, p.452).

Mesmo julgados culpados pelos crimes punidos com a morte (insurreição,

homicídio agravado e roubo com morte), livres e escravos ainda podiam recorrer a

Imperial Clemência, um dos atributos do Poder Moderador que podia perdoar, comutar

a pena, ou mandar que a executassem. Menos de cinco anos se passaram desde a

promulgação do Código Criminal do Império em 1830, os problemas com notícias de

planejamento de insurreições e assassinatos de senhores se impuseram, e a Lei n. 4

de 10 de junho de 1835 suspendeu a possibilidade dos recursos aos cativos

condenados pelo assassinato ou prática de ferimentos graves contra seus senhores,

os familiares dos seus senhores e prepostos.

Num primeiro momento, a imediata execução da sentença foi suspensa

para que houvesse tempo de se empreender uma revisão dos autos antes da

consumação da pena. Posteriormente, em 1837, o recurso à Graça Imperial foi

permitido aos cativos condenados à morte por homicídios que não vitimaram seus

proprietários. Um aviso de 1849 mandava estender aos cativos condenados na lei de

1835 um dispositivo geral do Código do Processo que proibia a aplicação da pena de

morte nos casos em que a única prova contra o réu era a confissão. Mais tarde, em

1854, os escravos que vitimaram seus senhores também puderam fazer suas

condenações subirem à apreciação da Clemência Imperial. (FERREIRA, 2011).

Nos tribunais, os interesses em jogo tornavam a situação bem mais

complexa. Caso a caso, a interpretação da lei por parte de advogados, promotores de

acusação e juízes tomavam rumos diferentes. Uma situação interessante acerca da

46 Idem art. 115.

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infinidade de interpretações das legislações criminais, diz respeito ao julgamento dos

escravos responsáveis pelo motim do Laura 2° no ano de 1839. Após proferida a

sentença, o Juiz Clemente Francisco da Silva quis dar a execução aos condenados o

mais rápido possível, mas acabou sendo impedido pelo presidente da província João

Antonio de Miranda, que alegou que as medidas legais não haviam sido obedecidas

como mandava a legislação penal. Em oficio dirigido ao Ministério da Justiça, o

presidente da província do Ceará alegou os motivos que o fizeram interver na

execução.

Pretendeo o juiz de direito interino desta Capital fazer executar a sentença respectiva; porem obstei-lhe, valendo-me do Dec. de 9 de Março de 1837 que, além de determinar que só no caso de morte, feita por escravo contra seo senhor, se deve executar a sentença independente do recurso ao Poder Moderador, me permitte mais impedir nesse mesmo caso a execução, quando eh assim julgue conveniente representar então o Poder supremo. (NOGUEIRA, 1894, p. 51).

Em sua intervenção o presidente João Antonio de Miranda fez questão de

lembrar ao Juiz que a sentença não poderia ser executada enquanto a lei não fosse

devidamente observada. Desta maneira, o presidente alegava que as interpretações

do Juiz de direito não estavam de acordo com a legislação vigente. Com base no

Decreto de 9 de março de 1837, o presidente da província esclarecia sua intervenção

na atitude do magistrado.

Ainda naqueles casos em que não há lugar o exercício do Poder Moderador, não se dará execução à sentença de morte, sem prévia participação ao Govêrno Geral do Município da Côrte, e aos Presidentes nas Províncias, os quais, examinando e achando que a Lei foi observada, ordenarão que se faça a mesma execução, podendo contudo os Presidentes das Províncias, quando julguem conveniente, dirigir ao Poder Moderador as observações que entenderem ser de justiça para que este resolva o que lhe parecer; suspenso então todo o procedimento. (NOGUEIRA, 1894, p. 51).

O presidente da província tomou para si o direito que o decreto imperial

havia criado para o líder do governo provincial, e ao se mostrar contrário a decisão do

magistrado, acabou criando uma disputa jurídica onde ambos buscaram evocar a

legislação para fundamentar seus pontos de vista. Do ponto de vista do magistrado,

sua decisão se fazia favorável com base na interpretação que o mesmo fazia do artigo

4° da lei de 10 de junho de 1835, que previa “Em taes delictos a imposição da pena

de morte será vencida por dous terços do numero de votos; e para as outras pela

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maioria; e a sentença, se fôr condemnatoria, se executará sem recurso algum”.47 A

interpretação que o magistrado fazia da lei de 10 de junho de 1835 estava correta até

aí, mas a mesma legislação apresentava um ponto falho em sua decisão, e valendo-

se desse ponto falho o presidente da província construiu a sua argumentação de não

deixar executar a pena sem o recurso. Observemos o que determinava a lei de 10 de

junho de 1835 em seu artigo 1°.

Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave offensa physica a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, a administrador, feitor e ás suas mulheres, que com elles viverem.48

Para o juiz, o capitão do navio era o administrador da embarcação assim

como um feitor é administrador de uma fazenda, e no seu entender “ninguem

juridicamente fallando poderá negar que o capitão de um navio seja administrador;

porquanto este nome se dá áquelle que administra e negocia fazenda alheia para seo

dono”49. Com base na letra da lei de 10 de junho de 1835, o magistrado fazia firme o

seu argumento de que os escravos do Laura não tinha direito ao recurso de graça e

deveriam ser imediatamente executados. Mas, ainda contrário a decisão do juiz, o

presidente da província, com base na mesma legislação, também construiu seu

argumento de acordo com o que interpretava com base na lei: “os reos erão escravos

do Capitão do navio, a quem assassinarão?” a pergunta do administrador provincial

acabou por encerrar os debates entre o magistrado e o presidente da província, e os

escravos da Laura tiveram direito ao recurso de graça imperial.

As discordâncias entre o líder do governo provincial e o magistrado abriu

brechas para que pudéssemos analisar alguns dos pontos defendidos ambos. O

primeiro ponto que podemos mencionar é o fato do julgamento ter sido realizado às

pressas, era necessário mostrar a força da justiça em relação aos crimes de maior

gravidade, e a busca pela punição exemplar acabou fazendo com que o rápido

processo contra os escravos abrissem brechas para possíveis contestações. Assim

aconteceu, todos foram julgados e condenados, sem a defesa do advogado ou de um

curador para os escravos.

47 Lei n° 4 de 10 de junho de 1835, art. 4. 48 Coleção das Leis do Império do Brasil, Atos do Poder Executivo. Lei n° 4 de 10 de junho de 1835. 49 APEC. Livro de Registro da Correspondência da Presidência da Província do Ceará dirigida o Ministério da

Justiça, 1835-1843, Livro nº 30. Ofício do presidente da província do Ceará, João Antonio de Miranda, ao ministro

da justiça, Francisco Paula de Almeida e Albuquerque, nº 22, 07 de agosto de 1839, fl. 79.v.

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A posição tomada pelo presidente da província frente a observação da lei

mostra a percepção que o mesmo havia feito da decisão do juiz em negar o direito ao

recurso tomando como base o artigo 4° lei de 10 de junho de 1835 que negava o

direito ao recurso de graça, mas o próprio juiz não tinha pleno conhecimento se os

escravos pertenciam a sociedade Ferreira e Irmãos, por isso o mesmo deve ter

preferido condenar os escravos com base no artigo 192 do Código Criminal e não no

artigo 1° da lei de 10 de junho, visto que nem todos os escravos amotinados

trabalhavam no navio. Sendo assim, a legislação não poderia ser aplicada como

mandava a letra da lei. Por esse motivo o presidente interveio na decisão e resolveu

acionar o poder central para tomada de decisão na sentença dos escravos da Laura.

Apesar da disputa jurídica acerca do cabimento ou não do recurso de graça, o Poder

Moderador não concedeu o perdão aos réus, e ordenou que a execução tivesse

prosseguimento.

Ser julgado com base no Código Criminal e não na lei de 1835 era sem

dúvida uma vitória da defesa ocorrida antes mesmo da decisão dos jurados pela culpa

ou inocência do cativo. Significava a possibilidade de o réu escravo recuperar os

mesmos direitos e instrumentos de defesa dos réus livres. Era, por exemplo, a

possibilidade de os defensores contarem com a argumentação de que para a prática

do crime existiu alguma das circunstâncias atenuantes previstas no Código Criminal

estratégia que, uma vez acatada pelo júri, resultava efetivamente na diminuição da

pena.

No caso da província do Ceará, dos 16 escravos executados com a pena

de morte, somente três foram condenados com base na lei de 10 de junho de 1835.

Fuisset no ano de 1837, em Quixeramobim, foi condenado por ter assassinado seu

senhor, o português de conhecido pela alcunha de José da Fama. José, por ter

assassinado seu senhor no ano de 1840 na capital Fortaleza. E Bonifácia, por ter

cometido, com requintes de crueldade, um assassinato contra um garoto de quatorze

anos, filho do seu senhor. Todos esses, foram casos que foram enquadrados na lei

de 10 de junho de 1835 por terem sido assassinatos cometidos contra senhores e

membros da família de seus proprietários.

Porém observamos que outros casos de assassinatos contra proprietários,

feitores e familiares não foram enquadrados na lei de 10 de junho de 1835, e sim com

base no artigo 192 do Código Criminal. O homicídio perpetrado pelos escravos

Antonio e Luiz, por exemplo, havia sido cometido contra Ignácio João, proprietário do

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cativo Luiz, já a Antonio, era escravo da esposa do assassinado, sendo ambos os

escravos pertencentes à mesma família.

Cúmplices em uma trama de assassinato contra Ignácio João, ambos

planejaram e executaram o plano que vitimara Ignácio. Rapidamente descobertos

pelas autoridades, Luiz e Antonio foram presos e levados ao julgamento que

aconteceu de forma muito rápida. Presidido pelo capitão Ignácio José Rodrigues, teve

como acusador o promotor público Luiz José de Madeiros, sendo o defensor dos réus

o advogado Ignácio José Rodrigues Pessoa. Os réus, Luiz e Antonio, foram julgados

condenados com base no artigo 192 do código criminal.

Situação parecida foi a que acometeu a execução de Estevão, escravo do

Coronel Diogo Lopes de Araújo Salles, morador na vila de Ipú, região Norte da

província do Ceará. No ano de 1845, Estevão foi acusado de ser o autor da morte

perpetrada em Manoel de Carvalho Guedes, feitor do senhor ao qual Estevão

pertencia. Capturado e interrogado, confessou que havia praticado o crime “dando-

lhe com uma mão de pilão na cabeça quando o Manoel dormia, e de madrugada

evadio-se”. Estevão não negou a autoria do crime do qual passava a virar réu, mas

em sua defesa alegou que havia cometido o mesmo em circunstâncias dos “maltratos

que sofria”. (NOGUEIRA, 1894, p. 301).

Estevão foi levado ao júri na sessão do dia 16 de setembro de 1845 e,

acabou sendo pronunciado como incurso no grau máximo do artigo 192 do Código

Criminal. A diferença fundamental entre ser pronunciado pelo artigo 192 e o artigo

primeiro da lei de 10 de junho de 1835 estava nos procedimentos judiciais adotados

para o julgamento e depois dele. O pronunciamento pela lei de 10 de junho previa a

convocação extraordinária do júri, e a pena de morte só poderia ser aplicada se a

votação do júri corresponder a dois terços dos votos. Já no artigo 192 do código

criminal, o réu seria julgado em uma sessão regular, sem a necessidade de maioria

de votos de um júri. Apesar do artigo 192 do código criminal possibilitar circunstâncias

atenuantes durante a execução do crime, também existiam as circunstâncias

agravantes que poderia levar a condenação pelo artigo 192 ao grau máximo, ou seja

a condenação à morte. No caso de Estevão, a pena foi agravada com base nas

circunstâncias agravantes previstas no artigo 16 do Código Criminal de 1830.

Situação parecida foi a do escravo Sebastião, também acusado pelo

assassinato cometido contra o seu senhor, Joaquim Almeida Rego, em 2 maio de

1841, logo no dia 6 do mesmo foi capturado e interrogado no dia seguinte “respondeo

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elle ser natural de Pernambuco, com 35 annos de idade, que fora preso na Lagôa das

Pedras, Riacho das Intas, do termo de Sobral, e que o motivo de sua prisão era ter

dado uma facada no seu senhor”. (NOGUEIRA, 1894, p. 85). Sebastião havia sido

preso portando a arma do crime, a faca ainda suja de sangue, sabia que não tinha

como negar que havia sido ele o autor daquele assassinato, resolveu confessar

durante o interrogatório, mas em sua defesa Sebastião alegou que “praticara o acto

por ter tirado um bocado de aguardente de seo senhor, ficando alguma cousa tonto e

com medo de ser castigado” (NOGUEIRA, 1894, p. 85). Julgado, Sebastião foi

condenado a morte com base no grau máximo do artigo 192 do Código Criminal de

1830.

Além da lei de 10 de junho de 1835 e do Código Criminal de 1830, o Código

do Processo Criminal de 1832 parece ter gerado inquietações acerca dos julgamentos

de escravos na província cearense. A acusação que pesava contra José, em 1840 na

capital Fortaleza, era de haver matado o seu senhor com um tiro, e por ter tido como

cúmplice na trama o livre Miguel Pereira dos Anjos, de vinte e poucos anos de idade.

Outra prova não existia contra José senão a sua confissão de autoria do crime, e o

depoimento do cúmplice Miguel dos Anjos. Outra testemunha não havia que pudesse

atribuir aos réus a autoria do assassinato de Luiz Ferreira Gomes. Apesar da falta de

mais depoimentos, o juiz de direito José Maria Eustáquio proferiu a sentença dos réus:

Conformando-me com a decisão do jury de senteça, em virtude do art. 1° da lei de 10 de junho de 1835, condemno o réo escravo José á pena de morte por ter assassinado a seo senhor Luiz Ferreira Gomes; e o réu Miguel Pereira dos Anjos a 20 annos de galés, pena mínima do art. 192 do Cód. Crim. Por ter avido as circumnstancias aggravantes n° 17 do art. 16 do mesmo Cód. Crim. (NOGUEIRA, 1894, p. 57).

Apesar de confiar que a sentença estava de acordo com a lei, o juiz José

Maria Eustáquio remeteu a cópia da sentença juntamente com o processo do réu para

o presidente da província para que observasse os procedimentos jurídicos, até aí tudo

corria conforme mandava o decreto de 9 de março de 1837. Mas, um fato que

despertou nossa atenção diz respeito as observações feitas pelo juiz na

correspondência reproduz um pouco das inquietações que perturbavam o magistrado

a respeito da sentença de José.

Nenhuma testemunha jurada existe no processo que presenciasse o delicto: as que juraram todas se referem a voz pública e a indícios e circumnstancias anteriores e posteriores ao delicto; mas, apezar do art. 94 do Cód. do Proc. Juguei dever condemnar á morte o réo José em rasão da declaração do có-réo Miguel Pereira dos Anjos, que não foi destruída pelo réo José; e porque

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as leis tem feito mui series excepções para a imposição da pena de morte contra escravos: não obstante, V. Exc. Na conformidade do Dec. de 9 de março de 1837, decidirá se a sentença deve ser executada – Deus Guarde a V. Exc. – Cidade de Fortaleza, 18 de Novembro do anno de 1839. – Exc. Sr. Dr. João Antonio de Miranda, presidente desta província. – José Maria Eustáquio Vieira, Juiz de Direito Interino. (NOGUEIRA, 1894, p. 58).

O artigo 94 do código do processo criminal do qual o magistrado faz

menção determinava o seguinte “A confissão do réo em Juizo competente, sendo livre,

coincidindo com as circumstancias do facto, prova o delicto; mas, no caso de morte,

só póde sujeital-o á pena immediata, quando não haja outra prova”50. O juiz de direito

proferiu a sentença do escravo José declarando que, apesar de ter reconhecido no

réu a autoria do assassinato de seu senhor e de ainda ter contra o réu escravo José,

e ter tomado o depoimento do cúmplice no assassinato no qual acusava José, não

sabia se em casos de condenação pelo artigo 1° da lei de 10 de junho de 1835 a pena

de morte poderia ou não ser imposta, pois a única prova existente no caso era a

confissão do réu. Tomado por incertezas diante do caso, o juiz de direito decidiu

recorrer ao poder moderador do presidente João Antonio de Mirada, para que o

mesmo analisasse se a sentença estava na conformidade da lei e ordenasse a

execução.

Mas, pelo visto, o presidente João Antonio de Mirada também ficou receoso

em ordenar a execução do réu, e acabou remetendo a documentação para que o

Ministro da Justiça esclarecesse a situação. O presidente João Antonio Miranda

enviou o seguinte oficio.

N° 36. Exc. Sr. Foi nesta Cidade condemnado á morte o réo escravo José, a quem diz respeito o officio em original do juiz de Direito Interino a sentença junta, que tudo incluso passo as mão de V. Exc. Ou porque seja negócio melindroso, ou por impulso de minha consciência, ou porque emfim me pareça que poderia haver outra sentença, se differente marcha tivesse tido o processo no 2° Conselho, resolvi-me aproveitar da disposição do Dec. de 9 de março de 1837, e tudo levar a sabia consideração de V. Exc. O juiz de direito portanto entendeo que o cit. Art. 94 pode militar para o caso em questão, e eu também concordo com elle, se não se acha revogado pela Lei de 10 de junho de 1835, o deduzo como indispensável a consequência de que, não havendo outra prova, não podia a confissão de um réo obrigal-o á pena última, quaisquer que sejam aos excepções, que se hajam estabelecido para o processo dos escravos em semelhante caso. (NOGUEIRA, 1894, p. 57).

Pelo visto, a sentença do escravo José encontrava um empecilho que nem

mesmo o presidente da província conseguia resolver, “Ou porque seja negócio

50 Código do Processo Criminal, 1832, Art. 94.

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melindroso, ou por impulso de minha consciência, ou porque emfim me pareça que

poderia haver outra sentença, se differente marcha tivesse tido o processo no 2°

Conselho”. (1894, p. 57). O entrave encontrado pelo magistrado e pelo governante

não encontrou a mesma problemática nas mão do Regente do Império, que logo

tomando conhecimento do caso ordenou que a sentença fosse cumprida sem mais

recursos, sendo o réu escravo José executado na forca.

José não foi o único escravo que teve que esperar a resolução de um

dilema entre as autoridades por conta da aplicação ou não do artigo 94 do código do

processo criminal. Ricardo Pirola (2015), ao analisar em sua tese o contexto de

criação da lei de 10 de junho de 1835, percebeu que várias remessas de processos

enviadas ao Ministério da Justiça davam conta da dúvida em relação a aplicação do

artigo 94 do código do processo criminal em casos de condenação pelo artigo 1° da

lei de 10 de junho de 1835. Segundo Pirola, várias autoridades do magistrado ou do

governo imperial faziam diferentes leituras sobre a validade da confissão do réu como

única prova do crime de escravos condenados pela lei de 10 de junho de 1835. De

acordo com Pirola:

Dois argumentos foram mais utilizados para justificar a comutação da pena capital de escravos: primeiro, a inexistência de outra prova além da confissão do réu (o que de acordo com o artigo 94 do Código do Processo provava o delito, mas impedia a aplicação da pena de morte) e, segundo, a menoridade dos réus. (PIROLA, 2015, p. 140).

O artigo 94 fazia parte do capitulo VI do código do processo criminal que

estabelecia As provas. De acordo com o disposto na lei, apenas a confissão do réu

não bastava para uma condenação à morte, visto que a confissão poderia ter sido

forçada por alguma ameaça, castigos físicos ou qualquer outro tipo de coerção. Sobre

essa linha de analise, podemos citar o caso da escrava Raymunda do Icó, acusada

de praticar um assassinato no ano de 1840 contra Maria Delfina de Jesus, filha do seu

senhor. Raymunda foi leva ao júri que sentenciou a mesma a pena de morte prevista

no artigo 1° da lei de 10 de junho de 1835. O fato é que, de acordo com os comentário

de Paulino Nogueira, “Raymunda foi submetida a castigos até confessar o crime. A

confissão foi a base de ameaças de morte e açoites! Açoites tão rigorosos quem sendo

executados há seis mezes, ainda a Ré conservava duas grandes chagas resultados

dos açoites”. (NOGUEIRA, 1894, p. 94).

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Em virtudes das possíveis ameaças e castigos físicos, como foi o caso da

escrava Raymunda, a justiça, pelo menos na letra da lei, recusava a confissão do réu

para casos de condenação à morte, buscava assim, evitar arbitrariedades de

confissões sob pressão. Apesar de toda a violência e irregularidades na aplicação da

sentença, Raymunda acabou fugindo da cadeia da vila de Icó e seu paradeiro não foi

encontrado, acabou tendo mais sorte que outros tantos que haviam tido a mesma

experiência que ela.

Essa porém, não foi a mesma sorte dos escravos Benedicto e Joaquim.

Quanto ao escravo Benedito, apelidado de Capitão Cebola, era já um escravo fugido

que vivia pelos mangues nos arredores de Fortaleza quando foi capturado por ter

matado uma criança que atravessava as matas do Cocó, levando pão e carne para

seu senhor. Descoberto, preso e torturado, Capitão Cebola foi levado diante do júri

presidido pelo juiz Miguel Fernandes Vieira, que mais uma vez, deu oportunidade para

Benedicto falar sobre o caso. Diante dos membros do tribunal, Benedicto “negou o

crime que havia confessado na formação da culpa, e disse que se havia confessado

algo, foi por estar ainda tonto das pancadas que levara dos soldados”. (1894, p. 75).

No caso de Benedicto e Raymunda, a confissão foi extraída por meio de

ameaças e tortura. Ao sujeito que estava diante de forte agressão física e ameaças,

a primeira proposta feita pelo torturador acabava sendo a opção mais viável diante de

uma condição de dores e sofrimentos intensos. Benedicto deixou claro que se

confessou sua autoria no crime, está não foi por vontade própria, nem muito menos

em condições favoráveis a racionalização do que estava declarando diante das

autoridades.

Um caso bastante interessante com o qual nos deparamos foi o do escravo

Joaquim, na vila de São Bernardo das Russas.51 Contra Joaquim havia sido aberta

uma investigação por um homicídio praticado contra Anna dos Passo Jesus, sobrinha

de seu senhor. Preso como o principal suspeito do crime, Joaquim foi indiciado.

Anno do Nascimento do Nosso Senhor Jesus Christo de 1854, aos três dias do mez de abril, nesta povoação e districto de Taboleiro d’Areia, Termo da Villa de São Bernardo, comarca do Aracati, Província do Ceará-Grande, em casa de audiências do Subdelegado actualmente em exercício o cidadão Jozé Felizardo Freire, comigo o Escrivão do seo cargo ao deante nomeado; e sendo ai presente o réo indiciado preto Joaquim, escravo de Antonio Ferreira da Silva Nogueira, para fim de ser interrogado acerca do horrível assassinato em Anna dos Passos de Jesus. (NOGUEIRA, 1894, p. 316).

51 Atualmente município de Russas, localizado na região do Vale do Jaguaribe, Estado do Ceará.

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Tendo início aos procedimentos sumários para formação da culpa, Joaquim

passou a responder uma série de perguntas: qual seu nome, idade, estado, e

naturalidade. Respondeu chamar-se Joaquim, solteiro, de 24 anos de idade, e natural

de São Bernardo das Russas. “Perguntado onde estava ao tempo em que foi

perpetrado o assassinato? Respondeo que em casa da própria assassinada, sendo

elle o próprio autor do crime”. (1894, p. 314). Perguntado com qual instrumento tinha

assassinado a vítima, respondeu que com um cabresto de couro.

Joaquim não negou sua autoria no assassinato de Anna Passos, mas

apresentou uma versão diferente da versão das testemunhas do crime. Segundo a

versão de Joaquim, o assassinato que havia produzido em Anna Passos foi resultado

de uma acusação de roubo de um dinheiro da vítima, a qual furto a mesma havia

apontado Joaquim como o autor. Em seu depoimento, Joaquim relatou que temendo

os castigos que seriam imputados pelo seu senhor se soubesse de tal acusação,

resolveu assassinar Anna Passos para se livrar de tais acusações. Essa foi a versão

apresentada por Joaquim. Uma informante que disse ter visto o crime, narrou com

detalhes tudo que presenciou. A informante era Maria, escrava de João Soares

Pereira que disse que “vio por um buraco na parede o preto Joaquim dentro da casa,

abaixado como sentado ou de cócoras, e junto delle igualmente vio as pernas da

moça, batendo com os pés no chão como quem estribuchava”. (1894, p. 315).

O subdelegado pronunciou Joaquim como incurso no artigo 192 do código

criminal, e o juiz municipal sustentou a pronuncia, dando lugar ao julgamento que teve

início no dia 18 de março de 1854. Presidio ao júri o juiz de direito José Pereira da

Graça, acusou o promotor público José Liberato Barroso, defendeu o curado Hypolito

Cassiano Pamplona. Durante o julgamento Joaquim negou todo o crime dizendo que

“Se o confessara nos dous interrogatórios procedentes, fora levado por promessa que

lhe fizeram de soltal-o si elle não negasse o crime”. (1894, p. 317). Desta vez nos

deparamos com uma declaração interessante, Joaquim teria mesmo sido convencido

a confessar um crime mesmo não sendo o autor com a promessa de ficar solto, ou

teria Joaquim decidido voltar atrás dos depoimentos anteriores e decidido alegar uma

possível coerção por parte das autoridades que haviam realizado o sumário do crime.

Teria sido essa uma estratégia das autoridades policiais ou de Joaquim. Se foi ou não

uma estratégia de Joaquim se livrar das acusações a ele imputadas, o juiz não deu

muito crédito a essa alegação.

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Desta vez foi o advogado de Joaquim quem tentou livrar seu cliente de uma

fatídica condenação a forca. Em favor do réu, o advogado alegou menoridade. Caso

provada, livraria Joaquim de uma condenação à morte ou a pena de galés (a segunda

mais rígida depois da capital), conforme prescrevia o artigo 45 parágrafo 2° do código

do criminal. A pena de galés não poderia ser aplicada em dois casos:

Art. 45. A pena de galés nunca será imposta: 1º A's mulheres, as quaes quando tiverem commettido crimes, para que esteja estabelecida esta pena, serão condemnadas pelo mesmo tempo a prisão em lugar, e com serviço analogo ao seu sexo. 2º Aos menores de vinte e um annos, e maiores de sessenta, aos quaes se substituirá esta pena pela de prisão com trabalho pelo mesmo tempo.52

A tentativa de alegar a menoridade poderia ser uma saída para aquela

situação em que Joaquim se encontrava, de modo que, ainda segundo as disposições

do artigo 18, parágrafo décimo do Código Criminal, o fato de um réu ser menor de 21

anos era considerado circunstância atenuante: “São circunstâncias atenuantes dos

crimes: ser o delinquente menor de vinte e um anos”. O que significava, entre outras

coisas, a impossibilidade de aplicação da pena de morte. Se a alegação do advogado

fosse aceita, Joaquim se livraria não só da condenação à morte como também da

condenação a galés, mas a alegação da menoridade não foi desfeita pelo promotor

público que alegou “com a certidão do baptisterio, pela qual se verificava que o réo

tinha sido baptisado a 31 de agosto de 1830, e contava, portanto, 24 anoos”.

(NOGUEIRA, 1894, p. 317). A alegação de confissão por meio de coerção declarada

por Joaquim, e a tentativa do advogado em recorrer apresentando uma suposta

menoridade do réu não foram matérias suficientes para livrar Joaquim da sentença

proferida pelo juiz. “A vista da decisão do jury, condemno o réo Joaquim, escravo de

Antonio Ferreira da Silva Nogueira, na pena de morte, que será executada na forca,

na forma da lei” (1894, p. 318). Joaquim caminhou para forca no dia 20 de fevereiro

de 1855.

Quando tiveram a oportunidade de defesa os réus falaram, e falaram

bastante. Os escravos envolvidos no motim do Laura 2ª usaram os argumentos da

fome, das péssimas condições com que eram tratados e do medo da repressão

violenta em prol de suas defesas. Os que conseguiram assistir à concorrida sessão

do tribunal do júri durante o julgamento dos réus da Laura 2ª puderam ouvir o réu

52 Código Criminal do Império do Brasil, 1830, art. 45.

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Constantino falar da fome que passavam, ele e seus companheiros negros, em alto

mar, das ameaças de açoite por parte do capitão, das humilhações que vinham

sofrendo. Hilário, um dos cativos, nascido no Brasil assim como Constantino, recebera

no rosto um golpe dado com uma colher do contramestre de bordo, quando pedia por

mais comida. O depoimento apresentou o ponto de vista dos cativos, revelou os

bastidores da conspiração dos amotinados e a argumentação encorajadora de

Constantino para seus companheiros, dizendo que “em muitas partes já tinham

acontecido desordens por motivo de falta de comer!” (SANTOS, 2009, p. 158).

Mesmo encontrando-se acuados, amarrados e alquebrados, algumas

vezes machucados por conta das agressões que sofriam durante a prisão, muitos dos

réus escravos falavam das condições cruéis do cativeiro, da fome e das agressões

físicas. O banco dos réus talvez fosse o único momento para os sujeitos escravizados

declararem publicamente suas insatisfações contra o cativeiro.

Apresentamos o cenário dos tribunais acionados contra escravos punidos

à pena máxima da província cearense. Como historiadores já antes demonstraram, o

século XIX no Brasil destacou-se pela presença de uma intromissão paulatina e cada

vez mais efetiva de poderes externos e normativos nas relações privadas

estabelecidas entre os senhores e todos aqueles por eles submetidos. De acordo com

Maria Helena P. T Machado.

Ao longo do século XIX [...] a tendência manifesta foi a de uma paulatina intromissão do Estado na regulamentação das relações entre senhores e escravos, como comprova o caudal de leis, decretos, avisos e alvarás que se somaram e superpuseram nas últimas décadas da escravidão regulamentando a instituição escravista e a esfera de poder senhorial. (MACHADO, 1987, p. 31).

O Código Criminal em 1830 e o Código do Processo Criminal de 1832

marcaram uma intromissão normativa dos poderes estatais em uma relação punitiva

que já era antiga. Cabia agora ao Estado Imperial a punição aos crimes cometidos por

cativos, e não mais somente aos senhores proprietários. Os instrumentos legais

passavam a ser utilizados nas tarefas de vigilância, apuração das ocorrências,

identificação de transgressões, condução dos julgamentos e determinação das

punições a serem cumpridas. De um lado, uma vigilância a nível local realizava um

trabalho administrativo e preventivo; de outro, os códigos: Criminal do Império (1830)

e de Processo Criminal do Império do Brasil (1832) (os quais, ao lado do conjunto de

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leis excepcionais, avisos, decretos, entre outros, eram empunhados por distintas

autoridades que, progressivamente, passaram a intervir nos acertos entre senhores e

destes com seus cativos, principalmente, em regiões de grandes concentrações de

escravos). Tentar compreender o cotidiano cativo numa localidade de predomínio das

pequenas posses de escravos, por meio da análise de processos criminais implica

considerar as tensões que dia a dia marcavam a vida dos escravos. De um lado a

relação quase sempre direta com os senhores, de outro a intervenção da justiça.

Ambos prioritariamente reservando aos cativos a punição pelos atos considerados

como faltas, infrações ou crimes

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegando ao final dessa trajetória, a sensação que fica é a de dever

cumprindo e a certeza é de que esse tema está longe de ser esgotado. Chegar até

aqui não foi tarefa fácil, O caminho que procurei trilhar nesta pesquisa talvez possa

ser formulado sem que seja preciso me estender muito; então tentarei ser breve. Meu

objetivo principal foi tentar compreender a pena de morte enquanto mecanismo de

controle social da população cativa na província cearense no século XIX. Trabalhei

bastante para tentar dar conta desta pesquisa e, agora preciso juntar os fios da minha

argumentação para tentar escrever essas considerações finais.

Num primeiro momento tratamos da teatralização da morte de escravos

como um meio que o estado brasileiro encontrou, em meados do século XIX, para

promover isso que Thompson define como os “limites da tolerância do sistema”.

Sendo o Brasil um dos maiores centros escravocratas naquele tempo, essas

“pontuações ocasionais de força” do estado imperial, enquanto parte do sistema de

disciplina social, estavam voltadas primordialmente contra as massas de cativos. No

Ceará, mesmo sendo uma província com reduzida presença numérica de escravos,

isso não foi diferente.

O espetáculo do enforcamento de escravos, tendo uma função

disciplinadora muito clara, não deixava de ser igualmente um drama das tensões

sociais inerentes às relações escravistas. Todo o conjunto de acontecimentos

desencadeados pela ocorrência do delito praticado pelo escravo, até o sepultamento

do condenado, era acompanhado de perto por todos os agrupamentos da sociedade,

suscitando muita emoção e ansiedade. Desde o momento da descoberta do ato

criminoso, geralmente seguido pela fuga do cativo, rumores tratavam de colocar todos

a par de notícias que alteravam o curso regular do cotidiano. Notas eram estampadas

nos jornais e as autoridades faziam circular informações, procurando cumprir o

protocolo oficial. Adotando uma sugestão de Peter Linebaugh, procuramos entender

o teatro de execução pública também enquanto um drama social capaz de expressar

o conjunto de tensões que permeavam a sociedade na época; no caso da sociedade

brasileira, estas tensões confluíam para as contradições fulcrais das relações

escravistas.

Em vários momentos, ações desviantes do controle pretendido por

autoridades e senhores eram perpetradas pelos incriminados e por aqueles que se

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lhes prestavam solidariedade. Durante a própria encenação incriminatória e punitiva,

punha-se em movimento a demonstração da resistência ao poder dos agentes

imperiais, chegando muitas vezes a comprometer o papel disciplinador do

enforcamento e suscitando exemplos de rebeldia.

Percebemos que, da parte dos escravos condenados, não faltaram também

gestos e palavras dramáticas que dialogavam com as expectativas daqueles que

assistiam aos rituais de enforcamento. De condenados, enquadrados pelas rigorosas

leis do Império, punidos com a pena máxima, roubavam a cena e, ainda uma vez mais,

desafiavam a ordem de seus senhores. Podemos descrever tais atitudes, com

Thompson, como parte do contrateatro de poder acionado pelos subalternos: “Assim

como os governantes afirmavam a sua hegemonia por um estudado estilo teatral, os

plebeus afirmavam a sua presença por um teatro de ameaça e sedição”.

(THOMPSON, 1998, p. 65).

A execução em praça pública de escravos, enquadrados em crimes

considerados graves (geralmente associados a ações violentas contra seus senhores,

administradores e feitores), teve início na província cearense, como no restante do

Império, num tempo em que revoltas multiplicavam-se pelo país e agitavam as massas

escravas, representando um grande perigo para o próprio sistema escravista. Da

perspectiva dos que almejavam manter o governo dos escravos sob controle, a

intimidação pelo enforcamento exemplar parecia uma saída necessária para fazer

desacreditar a confiança crescente que envolvia então as aspirações dos cativos por

liberdade.

Considerações mais gerais sobre a eficácia do recurso ao enforcamento

como método de controle sobre os escravos ultrapassariam as possibilidades de

discussão em considerações finais da pesquisa. Porém, não seria possível deixar de

lado as demonstrações de resistência por parte dos escravos condenados e outros

atores sociais, que, por vezes, comprometiam o papel disciplinador dos

enforcamentos, chegando a oferecer expressivos exemplos de rebeldia. Sendo os

enforcamentos rituais multitudinários, marcados por forte emoção, pudemos perceber

que elementos como tentativas de fuga, rumores, aspirações de revolta, costumes

fúnebres e as próprias últimas palavras dos condenados podiam se constituir em

fatores instabilizadores do teatro do poder.

Enfim, há que se notar que os rituais de enforcamento de escravos tiveram

vida curta na província cearense, antecedendo em duas décadas o declínio da

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escravidão, sendo o último justiçamento registrado no ano de 1855. Fatores sociais

complexos – relacionados à própria consolidação do estado imperial, ao afastamento

dos perigos das revoltas sociais e ao declínio dos contingentes de escravos na

província com a intensificação do tráfico de cativos para outras regiões do país –

podem ser apontados como elementos que explicam a relativa brevidade dos

enforcamentos de cativos no Ceará. De toda maneira, sabemos que os próprios

escravos condenados exerceram papel ativo, contribuindo por desacreditar que a

morte na forca fosse capaz de extinguir suas aspirações por liberdade e sua rebeldia.

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