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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
FACULDADE DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS E LETRAS DO SERTÃO
CENTRAL
MESTRADO ACADÊMICO INTERDISCIPLINAR EM HISTÓRIA E LETRAS
FRANCISCA LISIANI DA COSTA RODRIGUES
ESTUDO LINGUÍSTICO-FILOLÓGICO E HISTÓRICO SOCIAL DE
ESCRITURAS DE COMPRA E VENDA DE ESCRAVOS NO SÉCULO XIX
(1870 – 1873)
QUIXADÁ – CEARÁ
2019
FRANCISCA LISIANI DA COSTA RODRIGUES
ESTUDO LINGUÍSTICO-FILOLÓGICO E HISTÓRICO SOCIAL DE ESCRITURAS
DE COMPRA E VENDA DE ESCRAVOS NO SÉCULO XIX (1870 – 1873)
Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado Acadêmico Interdisciplinar em
História e Letras da Faculdade de
Educação, Ciências e Letras do Sertão
Central da Universidade Estadual do
Ceará, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em História
e Letras. Áreas de concentração: Cultura,
Memória, Ensino e Linguagem.
Orientador: Prof. Dr. Expedito Eloísio
Ximenes
QUIXADÁ – CEARÁ
2019
À memória de meu avô, João Paulo
Filho, que em vida mostrou o valor da
empatia e da humildade, prezou pela
educação transformadora e viveu pela
importância de buscar conhecimento.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha mãe, Liduina Rodrigues, que tanto me ensina sobre força, afeto e
sensibilidade para enxergar a felicidade no caminho.
Às minhas irmãs, Beatriz, Carliene e Lidiane, pelos ensinamentos, pelas mensagens de
conforto e encorajamento e pelas fotos e vídeos dos meus sobrinhos que me dão alegria
quando me faltam forças.
Ao meu querido orientador, professor Expedito Eloísio Ximenes, que, desde a
graduação, é um ponto de apoio e de aprendizagem. Obrigada pela orientação neste
trabalho, pelos livros emprestados, pelas sempre sábias palavras que me ajudaram na
escrita e me ensinaram tanto sobre a vida. Sua forma simples e sensível de enxergar o
outro me inspira.
Às minhas amigas e professoras Jaquelânia e Valdênia. Serei eternamente grata por me
acolherem com tanto afeto na casa e no abraço de vocês. A amizade das duas é um dos
melhores presentes que ganhei nessa vida.
Ao Anderson Lemos, meu ponto de calmaria nos dias turbulentos, meu ponto de amor
em todas as horas.
A toda minha família, representada pelo Andrade, que me ajudou de tantas formas até
aqui.
Às minhas amigas Lizandra, Alice e Mayara, severinas fortes e combatentes que
estavam comigo no Mestrado. Vocês representam a força que carrego de todas as
mulheres que lutaram para que hoje nós tenhamos acesso à educação e ao poder da
escrita.
Às minhas amigas Samyla, Kaline, Priscila, Sabrina, Larissa e Maiara que estão sempre
comigo. Estão nessas linhas todas as conversas que já tivemos sobre coragem, futuro e
crença em nós mesmas.
Aos meus amigos, Tiago, Ythalo, Guilherme e Alan que, cada um ao seu modo, me
ajudaram a tornar os dias difíceis mais prazerosos.
Aos professores do MIHL, em especial à Vânia Vasconcelos, minha eterna inspiração.
Aos colegas da turma 02 do MIHL, nossas conversas, nem sempre convergentes, me
ensinaram muito sobre individualidades e respeito.
À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), por
financiar o desenvolvimento desta pesquisa.
Ao Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), que guarda as fontes desta pesquisa,
pela disponibilidade em atender os pesquisadores.
Ao grupo de pesquisa PRAETECE (Práticas de Edição de Textos do Estado do Ceará),
pelas boas viagens e reuniões com os colegas que compartilham do amor pela Filologia.
A todos que tornaram possível a realização deste trabalho, embora não tenham sido
citados diretamente.
RESUMO
A presente dissertação é resultado do estudo que consiste na análise linguística e
histórica de documentos oitocentistas do Ceará, referentes à escravidão, especificamente
à transação comercial envolvendo os negros escravizados. Fundamentamo-nos na
Filologia, na Diplomática, no Léxico, na Cultura e na História Social, e percorremos os
seguintes caminhos: inicialmente, selecionamos cento e setenta e quatro escrituras de
compra e venda de escravos datadas do período de 1870 a 1873. Em sequência,
baseando-nos nas normas de edição reelaboradas pelo grupo de pesquisa Práticas de
Edição de Textos do Estado do Ceará (PRAETECE), editamos semidiplomaticamente
todos os documentos. Realizamos, a posteriori, o levantamento de lexias presentes nas
escrituras, mediante a observação do contexto de uso e quando esse não foi suficiente
para esclarecer o sentido, recorremos aos dicionários de Moraes Silva (1789), Silva
Pinto (1832), entre outros. Organizamos e analisamos as lexias a partir de categorias,
compreendendo seu sentido dentro do discurso social e jurídico sobre a escravidão,
descrevendo e levantando hipóteses sobre a comercialização de escravizados na
província cearense. Os resultados apontam que as lexias são capazes de conservar ou
modificar seus sentidos de acordo com as concepções ideológicas e culturais vigentes na
sociedade no momento em que são registradas. Na análise dos dados, constatamos que
os homens cativos eram mais procurados e mais valorizados no tráfico de escravizados,
identificamos, também, a venda de famílias escravas, bem como a separação desses
laços familiares, levantando uma discussão sobre o tratamento dado aos cativos e suas
relações afetivas. Estes aspectos ajudaram a compreender um pouco da história da nossa
língua e da história do Ceará nos oitocentos no que se refere à escravização de negros.
Palavras-chave: Filologia. Léxico. Cultura. Escravidão.
RESUMEN
La presente disertación es resultado del estudio que consiste en el análisis lingüístico e
histórico de documentos ochocentistas de Ceará, referentes a la esclavitud,
específicamente a la transacción comercial involucrando a los negros esclavizados. Nos
basamos en la Filología, en la Diplomática, en el Léxico, en la Cultura y en la Historia
Social, y recorrimos los siguientes caminos: inicialmente, seleccionamos ciento setenta
y cuatro escrituras de compra y venta de esclavos fechadas en el período de 1870 a
1873. En secuencia, basándonos en las normas de edición reelaboradas por el grupo de
investigación Práticas de Edição de Textos do Estado do Ceará (PRAETECE), editamos
semidiplomáticamente todos los documentos. Realizamos, a posteriori, el levantamiento
de las lexías presentes en las escrituras, mediante la observación del contexto de uso y
cuando ese no fue suficiente para aclarar el sentido, recurrimos a los diccionarios de
Moraes Silva (1789), Silva Pinto (1832), entre otros. Organizamos y analizamos las
lexías a partir de categorías, comprendiendo su sentido dentro del discurso social y
jurídico acerca de la esclavitud, describiendo y levantando hipótesis acerca de la
comercialización de esclavizados en la provincia cearense. Los resultados apuntan que
las lexías son capaces de conservar o modificar sus sentidos de acuerdo con las
concepciones ideológicas y culturales vigentes en la sociedad en el momento en que se
registran. En el análisis de los datos, constatamos que los hombres cautivos eran más
buscados y más valorados en el tráfico de esclavizados, identificamos, también, la venta
de familias esclavas, así como la separación de esos lazos familiares, levantando una
discusión acerca del trato dado a los cautivos y sus relaciones afectivas. Estos aspectos
ayudaron a comprender un poco de la historia de nuestra lengua y de la historia de
Ceará en los ochocientos en lo que se refiere a la esclavización de los negros.
Palabras clave: Filología. Léxico. Cultura. Esclavitud.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Catalogação do livro de escrituras ........................................................... 20
Figura 2 - Fragmento de uma escritura de compra e venda de escravos ............... 20
Figura 3 - Fragmento de uma escritura de compra e venda de escravos ............... 21
Figura 4 - Edição fotográfica de uma escritura de compra e venda escravos ....... 22
Figura 5 - Fragmento de uma escritura de compra e venda de escravos ............... 27
Figura 6 - Fragmento de uma escritura de compra e venda de escravos ............... 27
Figura 7 - Capa do livro de escrituras ....................................................................... 44
Figura 8 - Contracapa do livro de escrituras ............................................................ 45
Figura 9 - Termo de abertura do livro de escrituras ................................................ 46
Figura 10 - Termo de encerramento do livro de escrituras ..................................... 47
Figura 11 - Rubrica do Juiz de Direito .................................................................... 48
Figura 12 - Edição fotográfica de uma escritura de compra e venda escravos com
alterações na foto ....................................................................................................... 53
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 - Divisão dos documentos diplomáticos ................................................... 43
Quadro 2 - Exemplo de uma análise diplomática ..................................................... 48
Quadro 3 - Exemplo de dados para uma análise diplomática ................................. 50
Quadro 4 - Análise diplomática de uma escritura de compra e venda de escravos
................................................................................................................................... 51
Quadro 5 - Dicionários usados para pesquisa dos significados das lexias ............. 60
Quadro 6 - Categoria 01, Elementos que compõem o documento ......................... 60
Quadro 7 - Categoria 02, Locais citados nas escrituras .......................................... 63
Quadro 8 - Categoria 03, Sujeitos citados no documento ....................................... 68
Quadro 9 - Categoria 04, Caracterização dos sujeitos citados nos documentos .... 70
Quadro 10 - Compradores em destaque nas escrituras analisadas ....................... 96
Quadro 11 - Empresas em destaque nas escrituras como negociantes ................... 97
Quadro 12 - Quantidade de escravos por escrituras ............................................... 98
Quadro 13 - Mulheres cativas vendidas sozinhas .................................................... 99
Quadro 14 - Homens cativos vendidos sozinhos .................................................... 100
Quadro 15 - Cativos vendidos em grupo.................................................................. 100
SUMÁRIO
1 “POR MEIO DESTE INSTRUMENTO”: CONSIDERAÇÕES INICIAIS ....... 13
2 “ESCRITURA DE VENDA QUE FAZ...”: ASPECTOS METODOLÓGICOS
DA PESQUISA ................................................................................................... 19
2.1 DO TIPO DE PESQUISA ....................................................................................... 19
2.2 DO CORPUS ........................................................................................................... 20
2.3 DA EDIÇÃO E DAS NORMAS DE EDIÇÃO ...................................................... 28
2.4 DA ANÁLISE FILOLÓGICA E LINGUÍSTICA.................................................... 33
2.5 DA ANÁLISE HISTÓRICO-SOCIAL DO CEARÁ .............................................. 37
3 “SAIBAM QUANTOS ESTA VIREM...”: ANÁLISE FILOLÓGICA E
LINGUÍSTICA DAS ESCRITURAS ............................................................... 39
3.1 A FILOLOGIA COMO ESTUDO INTEGRAL DO TEXTO ................................ 39
3.2 A CONSTITUIÇÃO FORMAL DO TEXTO: UMA ANÁLISE DIPLOMÁTICA 43
3.3 ESTUDO LINGUÍSTICO DO TEXTO: O LÉXICO COMO FORMA DE
REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE SOCIAL ................................................ 55
4 “E LHE TRANSFERE TODO DOMÍNIO, SENHORIO E POSSE...”: ANÁLISE
SÓCIO-HISTÓRICA DAS ESCRITURAS ...................................................... 80
4.1 ADENTRANDO O CEARÁ NO SÉCULO XIX: UM OLHAR PARA A
ESCRAVIDÃO ...................................................................................................... 80
4.3 ALGUMAS REFLEXÕES ACERCA DA CONSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA
ESCRAVA.............................................................................................................. 83
4.2 OS PROCESSOS DE COMPRA E VENDA DE ESCRAVOS NO CEARÁ NO
SÉCULO XIX ........................................................................................................ 91
5 “OUTORGUEI E ACEITEI”: CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................ 104
REFERÊNCIAS ................................................................................................. 107
13
1 “POR MEIO DESTE INSTRUMENTO”: CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A língua é um dos maiores bens de um povo e os estudos sobre ela oferecem
muitas possibilidades de análises. O ser humano não nasce com uma língua pré-
estabelecida, no entanto, nasce com a capacidade para aprender a utilizar uma língua
qualquer, o que só será possível por meio de estímulos recebidos pela interação social.
A invenção do alfabeto causou uma revolução na maneira como os
indivíduos interagem, possibilitando o registro impresso da fala, a representação de
ideias, além de permitir a produção de gêneros textuais que tinham determinado valor
social na época em que foram escritos. O impacto da escrita na história da humanidade
contribuiu para a descrição das sociedades que podem ser analisadas através dessas
produções.
Os documentos antigos revelam questões específicas de seu momento de
produção. São documentos pessoais, jurídicos, políticos, entre outros, que são fontes de
informações sobre épocas passadas e revelam as mudanças nas formas da sociedade se
relacionar e se comunicar. Muitos desses documentos se perderam, devido ao tempo e à
má preservação, entretanto, muitos outros foram armazenados e preservados em
arquivos públicos que são responsáveis por organizar esses gêneros textuais e colaborar
com o acesso de pesquisadores interessados no estudo desses escritos.
O Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC) guarda documentos dos
períodos colonial e imperial brasileiros. São diversos gêneros textuais que contam as
histórias dos indivíduos e de seus costumes, que ajudaram a construir a história social,
cultural e linguística do estado do Ceará e do Brasil. Autos, ofícios, editais, portarias,
correspondências, relatórios, mapas, processos, escrituras etc., que constituem fontes
para estudos. Diante da necessidade de recuperar esses textos para preservar as
memórias da história da nossa língua e da nossa cultura, escolhemos como objeto de
pesquisa as escrituras de compra e venda de escravos, datadas do século XIX, tendo
como objeto de estudo os elementos linguísticos do texto e as relações históricas e
sociais envolvendo as pessoas escravizadas do ponto de vista da sua comercialização.
Para direcionar nossa investigação, levantamos alguns questionamentos. O
que os aspectos diplomáticos revelam sobre a estrutura do gênero textual escrituras de
compra e venda de escravos? Levando em conta o léxico presente nos documentos, o
que as lexias revelam sobre o contexto de comercialização de cativos? Considerando o
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contexto sócio-histórico, o que podemos observar em relação à cultura e aos sujeitos
que faziam parte do processo de compra e venda de escravos?
Diante dessas questões, discutimos qual a relevância de uma pesquisa dessa
natureza, que investiga elementos da língua e da história social de uma época passada,
além de refletir sobre a necessidade de restaurar os documentos antigos.
Para responder as perguntas levantadas, temos como objetivo geral analisar
linguística e historicamente as escrituras de compra e venda de escravos do século XIX
(1870-1873). A partir dessa finalidade, elaboramos os seguintes objetivos específicos:
descrever a organização estrutural do gênero documental escritura de compra e venda
de escravos; analisar os aspectos linguísticos-filológicos das escrituras, sobretudo, os
aspectos lexicais que caracterizam os sujeitos envolvidos nos textos; analisar os
aspectos sócio-históricos e culturais da sociedade escravocrata do Ceará no século XIX
presentes nas escrituras.
Nossa dissertação está inserida na linha 01 de pesquisa – Memórias e
Historicidade – do Mestrado Interdisciplinar em História e Letras que se propõe a
recuperar vozes e/ou textos que representam sujeitos, para compreender as relações de
poder, as formações das culturas e das identidades e os processos históricos nos quais
atuaram e atuam. Insere-se também no grupo Práticas de Edição de Textos do Estado do
Ceará (PRAETECE) desde 2015, grupo de pesquisa que tem o interesse em preservar
nossa história e memória.
Durante o período da graduação em Letras/Português pela Universidade
Estadual do Ceará, fui bolsista de iniciação científica financiada pela FUNCAP, período
que possibilitou a realização do trabalho de edição dos documentos que integram o
projeto intitulado Edição de textos oficiais da capitania do Ceará dos séculos XVIII e
XIX para estudos da língua e da história-social1. Nesse primeiro contato foi possível
fazer leituras sobre o labor filológico e realizar o tratamento com os documentos,
editando-os e catalogando-os. Ao observar a potencialidade do teor informativo dos
textos, selecionei um livro com 174 escrituras de compra e venda de escravos, datadas
do período de 1870 a 1873, pertencentes ao Arquivo Público do Estado do Ceará
(APEC), para realizar o trabalho de análise que resultou nesta dissertação de mestrado.
1Projeto de iniciação científica (FUNCAP/IC) realizado por mim, Francisca Lisiani da Costa Rodrigues,
na Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central, no período de 2014 a 2016, orientado
pelo Professor Doutor Expedito Eloísio Ximenes.
15
Os documentos antigos são permeados por informações que traduzem a
sociedade, os indivíduos e as questões discutidas na época de sua escritura. Estudar
esses documentos, portanto, é uma tarefa que nos conduz ao conhecimento da história
da língua, dos gêneros textuais e dos elementos culturais e sócio-históricos.
Ao explorar esses documentos em estudos linguísticos, o pesquisador se
insere em um mundo de linguagem que contribui para compreender a realidade
linguística que vivenciamos na atualidade. E ao se voltar para esses documentos como
um pesquisador historiador é possível analisar o contexto histórico e refletir as
vivências e as realidades da sociedade num tempo passado. Observamos que a história
de um povo está presente nos escritos produzidos em todas as épocas de sua existência,
são importantes relatos dos costumes e dos fatos. Os manuscritos aqui analisados
descrevem a atmosfera vivenciada por nossos antepassados e colaboram para a
recuperação de fatos da memória da sociedade cearense escravista.
No estado do Ceará, há alguns trabalhos de recuperação de documentos
relativos ao período da administração colonial que registram a história e a cultura do
povo cearense. A contribuição do estudo apresentado nesta dissertação irá se somar a
outras pesquisas de mestrado e de doutorado como os trabalhos de Ximenes (2004,
2009), que tem se dedicado aos estudos filológicos e linguísticos dos documentos
manuscritos do período colonial brasileiro. Em sua dissertação de mestrado, o
pesquisador estudou o comportamento dos pronomes clíticos em Autos de Querela
escritos no Ceará do século XIX. Em sua tese, voltou-se para as unidades fraseológicas
(UFs) da linguagem jurídico-criminal da capitania do Ceará, nos séculos XVIII e XIX,
além da elaboração de um glossário das UFs usadas nos processos jurídicos.
Outra contribuição para a preservação da memória documental vem de
Martins (2013) que em sua dissertação estudou o gênero bando, gênero específico da
administração colonial brasileira. Além da edição feita, oferecendo aos documentos o
trato filológico, fez uma interpretação dos elementos linguísticos e dos atores sociais
presentes nas fontes. Destacamos ainda o Programa de Pós-Graduação em Linguística
Aplicada (PosLA-UECE), que possui várias pesquisas destinadas à edição e análise de
documentos manuscritos do período colonial brasileiro. A dissertação de Josino (2015)
sobre autos de arrematação, a dissertação de Almeida (2015) sobre o gênero portaria, e
um estudo linguístico sobre as unidades fraseológicas em escrituras de compra e venda
de escravos, realizado por Pinto (2015), dentre outros. Os pesquisadores citados
também fazem parte do grupo PRAETECE, um grupo cearense destinado ao trabalho de
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recuperação e análise de manuscritos. Embora haja várias pesquisas no Ceará, no
entanto, muitos documentos não foram estudados, mesmo guardando ricas informações
sobre vivências da época de sua produção. O APEC conserva um acervo que nos
permite uma análise mais profunda da nossa história em todos os setores da vida. Editar
os textos é recuperar a memória de nosso povo e conhecer detalhes da vida nunca antes
revelados. Constitui também uma necessidade urgente, dado ao estado de conservação
em que o acervo se encontra.
Segundo Ximenes (2004), a maior parte dos documentos pertencentes ao
Arquivo Público do Estado do Ceará ainda não está sequer catalogada. Os
colaboradores do arquivo realizam um trabalho de preservação, todavia, são inúmeros
os documentos manuscritos a espera de catalogação e edição, que poderiam contribuir
para pesquisas e interpretações sobre momentos e sujeitos históricos. Nesta dissertação
mostramos a importância de trabalhar com a recuperação das informações contidas
nesses documentos e da relevância de preservar essas fontes.
Justifica-se, dessa maneira, a relevância acadêmica, linguística social do
presente trabalho, pois fornece excelente material para consulta à sociedade em geral e à
comunidade dos pesquisadores interessados nas informações linguísticas e históricas
contidas no códice2 em estudo, à medida que possibilita a leitura e a compreensão do
seu teor comunicativo por meio de edição dada aos documentos e por meio do estudo
dos aspectos linguísticos e históricos.
Compreendemos que a melhor e mais eficiente maneira de conhecer a
língua de uma comunidade é observar suas rotinas e hábitos linguísticos ao longo do
tempo, cuja maneira de conhecimento só pode ser feita por meio dos textos produzidos
por esta comunidade.
Para tanto, podemos traçar como interesse central da dissertação a análise
do léxico presente nas escrituras, visando compreender a relação das lexias com o
contexto sócio-histórico da época. Bem como a certificação de manter a veracidade do
documento editado, visando oferecer textos seguros para o estudo linguístico e sócio-
histórico do português do Brasil através da edição semidiplomática das escrituras.
Ainda se justifica pela relevância de trazer a recuperação de informações históricas
registradas nos documentos que revelam um período importante do Estado do Ceará,
como a escravidão e a comercialização de homens, mulheres e crianças na então
2 Conjunto de folhas de pergaminho manuscritas, unidas numa espécie de livro.
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província cearense. Além do estudo do gênero textual escritura de compra e venda de
escravos, documento legal que oficializava o comércio de cativos e que permite a
análise de diversos aspectos presentes no corpo do texto.
O corpus editado oferece uma contribuição aos pesquisadores das mais
diversas áreas do conhecimento com interesse em leituras e pesquisas. Citamos a área
do Direito, já que o gênero escritura está localizado na esfera jurídica, podendo ser feita
uma comparação com os documentos de compra e venda atuais; os historiadores terão
acesso a uma narrativa feita pelas mãos dos escribas que narram a história da antiga
província cearense, especificamente o funcionamento do comércio de escravos, nas
regiões que hoje divide-se como Sertão Central, Maciço de Baturité, Vale do Jaguaribe,
Vale do Cariri, Sertão do Inhamuns e Sertão de Sobral. As escrituras de compra e venda
de escravos trazem uma narração de como ocorriam a compra e a venda dos sujeitos
escravizados, bem como quem era os compradores e vendedores; a Sociologia poderá
dispor de riquíssimo material para o estudo, por exemplo, do poder que era conferido
aos escribas, elite intelectual da época, por deterem a habilidade da leitura e da escrita;
os linguistas e filólogos terão textos fidedignos de um momento pelo qual passou a
língua portuguesa, os quais contêm vários objetos para análise.
Realizar uma edição textual requer um aprimoramento teórico sobre leitura
e interpretação de textos. Textos antigos, por exemplo, sofrem com a má conservação,
com os efeitos do tempo, do clima, da ação dos insetos e do próprio uso inapropriado de
seus leitores, fatores que aceleram a corrosão desses textos e de suas informações. Os
rasgos, os borrões de tintas, as ações das traças degradam rapidamente esses
documentos, dificultando a leitura, criando a necessidade de uma edição urgente para
que esses dados históricos e linguísticos não se percam.
Diante das possibilidades de análise e da importância da recuperação dos
textos antigos, esta dissertação está direcionada à potencialidade de informações das
escrituras, descrevendo aspectos linguísticos e históricos revelados através do trato
filológico dado aos documentos.
A dissertação está dividida em três seções. A primeira, intitulada “Escritura
de venda que faz...”: aspectos metodológicos da pesquisa, aborda, como porta de
entrada desse estudo, a metodologia usada na dissertação, explicando as normas de
edição das escrituras, os fatores que influenciaram na seleção das lexias para análise
linguística e os métodos para análise dos dados históricos contidos nos documentos.
18
Na segunda seção, que intitulamos “Saibam quantos esta virem...”: análise
filológica e linguística das escrituras, apresentamos os conceitos de Diplomática,
Filologia, Cultura e Léxico, sempre associados ao trabalho de análise linguística e
filológica proposta na seção. Na última subseção, Estudo linguístico do texto: o léxico
como forma de representação da realidade social, apresentamos as lexias registradas,
seus significados e comentários sobre o contexto de uso desses termos.
Na terceira seção, intitulada “E lhe transfere todo domínio, senhorio e
posse...”: análise sócio-histórica das escrituras, analisamos aspectos históricos do
Ceará oitocentista a partir de dados colhidos nas escrituras, refletindo sobre questões
sociais da escravidão, como a família escrava, os preços dos cativos e o contexto
histórico em que repercutiam fortes discursos de apoio ao fim do sistema escravista.
Assim, analisamos o discurso das escrituras de compra e venda de escravos
através do estudo do gênero textual, da leitura de narrativas expressas nos documentos e
da interpretação de fatos através do contexto e das referências. Desta forma, o leitor
encontra uma análise interdisciplinar de documentos que muito revelam sobre nossa
língua e nossa história.
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2 “ESCRITURA DE VENDA QUE FAZ...”: ASPECTOS METODOLÓGICOS
DA PESQUISA
A metodologia que seguimos nesta dissertação é baseada nos pressupostos
de Ximenes (2009), que sugere uma divisão metodológica em dois passos: “O primeiro
diz respeito à edição semidiplomática dos manuscritos coletados que formam o corpus
da pesquisa” (XIMENES, 2009, p. 24). É neste momento que o pesquisador situa seu
corpus no tempo e no espaço, analisando o contexto de produção, o suporte e outros
elementos estruturais dos textos. O segundo passo é a escolha de algum aspecto
linguístico para ser analisado, já que as informações contidas nos documentos abrem
uma gama de possibilidades de análise. Aqui, nos debruçamos sobre o léxico do texto e
as questões histórico-sociais.
No trato do corpus, primeiramente fizemos a edição semidiplomática dos
documentos, cuidamos do estudo linguístico, destacando o léxico que caracteriza os
sujeitos e alguns elementos que compõem o corpus e, em seguida, tratamos da
contextualização sócio-histórica das escrituras de compra e venda de escravos.
2.1 DO TIPO DE PESQUISA
Dentro do estudo feito por Gil (2008), sobre os tipos de pesquisa,
entendemos que, quanto aos objetivos, esta dissertação é explicativa e quali-
quantitativa. Explicativa, pois nos propomos a analisar as escrituras de compra e venda
de escravos, elucidando como os sujeitos envolvidos nessa comercialização são
descritos, analisando sob uma perspectiva linguística e histórica. Qualitativa, porque a
investigação pretende analisar os discursos e/ou silenciamentos dos sujeitos, para
interpretá-los de maneira a relacioná-los com o contexto de produção dos documentos
estudados. E quantitativa porque utilizamos técnicas estatísticas para quantificar as
informações presentes nas escrituras sobre os preços dos escravizados, a quantidade de
sujeitos envolvidos na transação comercial dos escravizados, as idades etc.
Quanto aos procedimentos técnicos, a pesquisa é documental, visto que as
escrituras são documentos oficiais da antiga província cearense (século XIX) e
analisamos as informações que esses documentos antigos nos proporcionam para o
estudo da língua e da história social da época, para correlacionar com o momento
presente.
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2.2 DO CORPUS
Nosso corpus constitui-se de cento e setenta e quatro documentos
manuscritos da esfera jurídico-administrativa. Esses documentos pertencem ao APEC e
estão registrados no livro de escrituras número 357, escritos no período de 16/11/1870 a
16/06/1873. O recorte temporal do livro de escrituras abrange um contexto que antecede
as mudanças jurídicas e administrativas que o Ceará sofreria com a abolição. Na
imagem abaixo, é possível verificar a catalogação do livro de escrituras:
Figura 1: Catalogação do livro de escrituras.
Fonte: APEC.
As escrituras de compra e venda de escravos são documentos produzidos
por escrivães e/ou tabeliães, em cartórios da antiga província do Ceará. Os manuscritos
apresentam escrita regular quanto ao traçado das letras, que possuem tamanho pequeno,
com alguns borrões e sem rasuras, respeito à pauta e às linhas imaginárias e
regularidade na inclinação da escrita, quase sempre à direita, como se observa no texto
abaixo:
Figura 2 - Fragmento de uma escritura de compra e venda de escravos.
Fonte: APEC.
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As escrituras são constituídas por uma estrutura textual semelhante. São
documentos oficiais que apresentam elementos jurídicos como selos, assinaturas de
testemunhas, texto padronizado que trazem os nomes de compradores, vendedores,
tabelião, escrivão, lugar de origem dos envolvidos, informações sobre o cartório onde
foi realizado o processo de compra e venda etc. Na imagem abaixo temos um exemplo
desses elementos:
Figura 3 - Fragmento de uma escritura de compra e venda de escravos.
Assinaturas dos negociantes. Fonte: APEC.
O gênero textual analisado se caracteriza por uma estrutura formal
específica, possui extensão de até dois fólios. São documentos que apresentam uma
estrutura rigidamente organizada, com um discurso linear, apresentam aspectos
linguísticos e sociais que revelam ideologias vigentes no contexto de produção, e se
configuram, portanto, como uma potencialidade informacional. Apresentamos a seguir
um exemplo de uma escritura fotografada:
22
Figura 4 - Edição fotográfica de uma escritura de compra e venda escravos.
Fonte: APEC.
Sobre a edição semidiplomática, convém ressaltar que não foi feita a partir
do contato direto com os documentos, o que não é recomendado, uma vez que isto
poderia acelerar o processo de deterioração do suporte. Trabalhamos com a fotografia
dos documentos e recorremos aos manuscritos originais apenas em casos
extraordinários.
Todos os fólios estão preenchidos frente e verso. Na introdução do texto traz
uma apresentação da escritura, de alguns sujeitos envolvidos na compra e venda e o
preço do escravizado vendido. Vejamos um exemplo: “Escritura de venda que fazem os
negociantes desta praça Moura & Rolim & Sobrinho a José Correia dos Santos, de um
escravo de nome Reinaldo, pela quantia de 1.200$000 reis” (fl.2r).
No corpo do texto a compra e venda é efetivada e, para isso, a “peça”
negociada é descrita, seu preço é exposto e a posse é garantida, como podemos observar
no trecho abaixo:
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E pelos outorgantes vendedores foi dito perante as mesmas testemunhas que
sendo elles senhores e possuidores livre e desembaraçadamente da terça parte
da escrava Delfina, mulata, de vinte annos de idade, solteira, e sem officio, e
da de sua filha de nome joanna tambem mulata, de dousannos de idade, e
ambas naturais da freguezia de Maranguape, vende como effectivamente
vendido tem por meio deste instrumento á mencionadacompradora
DonaIsabel pelo preço e quantia certa de trezentos e trinta mil reis, que em
moeda corrente elles vendedores confessam ja haver recebido da maõ da dita
compradora, peloque dão a esta plena e geral quitação de paga, e lhe transfere
todo dominio, senhorio e posse das terças partes de referidas escravas,
podendo daquellas tomar posse como suas que saõ e ficam sendo por bem
deste instrumento. (fl.1r)
A conclusão das escrituras também apresenta estrutura semelhante, com a
apresentação das testemunhas, o termo de fé do tabelião e as assinaturas dos envolvidos
na transação comercial, como no exemplo a seguir:
Depois de feita esta escritura foi por mim lida presente esses vendedores,
comprador, os quais reciprocamente a aceitaram por acharem-n’a como
outorgado haviam e eu Tabelião como pessoa publica a outorguei e aceitei
em nome dos auzentes e pessoas a que pertencer possam sendo testemunhas a
tudo presentes Bernardo Jose Couto eAntonio Jose de Freitas, que
assignaram com o mesmos vendedores, comprador e comigo Joaquim Feijó
de Mello Tabeliaõ que escrevi =Termo testemunhas Moura Rolim Sobrinho
Jose Correia dos Santos Bernardo Jose Couto Antonio Jose de Freitas (fl.2r)
Algumas características são comuns em todos os fólios, como a letra, a cor
da tinta usada na escrita, o espaço que o texto ocupa no fólio, que preenche quase por
completo o fólio, deixando pouco espaço na margem superior, em que está localizada a
assinatura e o número do fólio.
A partir da fotografia desses documentos foi feita a leitura e a edição em
suporte Word, fonte Times New Roman, tamanho 11, espaçamento simples, alinhado à
esquerda. Essas regras pré-definidas são usadas para realizar uma edição responsável.
As normas foram estabelecidas pelo projeto Para a História do Português
Brasileiro (PHPB)3 adaptadas pelo grupo PRAETECE
4 que consistem em:
1. A transcrição será conservadora.
2. As abreviaturas, alfabéticas ou não, serão desenvolvidas, marcando-se, em
itálico e em negrito, as letras omitidas na abreviatura. No caso de variação
3 Projeto Para a História do Português Brasileiro (PHPB) foi fundado em 1997, sob a coordenação geral
do pesquisador Ataliba Teixeira Castilhos. Desenvolve estudos com base nos corpora levantados, com o
objetivo de conhecer e descrever a realidade linguística do português brasileiro. 4 Normas disponíveis no seguinte endereço eletrônico: http://praetece.wixsite.com/praetece
24
(Deos e Deus) no próprio manuscrito ou em coetâneos, a opção será para a
forma mais frequente usada no documento.
3. Não será estabelecida fronteira de palavras que venham escritas juntas, (desde
que não haja nenhuma dúvida, em havendo, prefere-se separar as palavras),
não se introduzirá hífen ou apóstrofo onde não houver. Exemplos: eporser;
aellas; daPiedade; ominino; dosertão; mostrandoselhe; achandose; sesegue.
4. A pontuação original será rigorosamente mantida, assim como a
translineação.
5. A acentuação original será rigorosamente mantida, não se permitindo
qualquer alteração. Exemplos: aRepublica; decommercio; edemarcando
também lugar; Rey D. Jose; oRioPirahý; oexercicio; hé m.to convenientes.
6. Será respeitado o emprego de maiúsculas e minúsculas como se apresentam
no original, (desde que não haja dúvida, em havendo, prefere-se a forma
minúscula). No caso de alguma variação física dos sinais gráficos resultar de
fatores cursivos, não será considerada relevante. Assim, a comparação do
traçado da mesma letra deve propiciar a melhor solução.
7. Eventuais erros do escriba ou do copista serão remetidos para nota de rodapé,
onde se deixará registrada a lição por sua respectiva correção.
8. Inserções do escriba ou do copista, nas entrelinhas ou nas margens superior,
inferior ou laterais, bem como toda e qualquer intervenção de terceiros no
documento original, serão indicadas na edição em nota de rodapé.
9. No caso de repetição que o escriba ou o copista não suprimiu, passa a ser
indicada pelo editor que a coloca entre colchetes duplos. Exemplo:
fugi[[gi]]ram correndo [[correndo]] emdiração opaco.
10. Letras ou palavras não legíveis serão indicadas entre colchetes com a forma
[ilegível]. Da mesma forma letras ou palavras deterioradas serão indicadas
entre colchetes: [deteriorada].
11. Trecho de maior extensão não legível por deterioração receberá a indicação
[corridas + ou – 5 linhas]. Se for caso de trecho riscado ou inteiramente
anulado por borrão ou papel colado em cima, será registrada a informação
pertinente entre colchetes e sublinhada.
12. A disposição das linhas do documento original será mantida na edição, sem
necessidade de nenhuma marca. A mudança de fólio receberá a marcação
com o respectivo número na sequência, alinhado à direita da seguinte forma:
25
fl.1v. fl.2r. fl.2v. fl.3r. Caso tenha rubrica será indicada abaixo do número do
fólio entre colchetes.
13. Na edição, as linhas serão numeradas de cinco em cinco a partir da quinta.
Essa numeração será encontrada à margem direita da mancha, à esquerda do
leitor. Será feita de maneira contínua por documento.
14. As assinaturas simples ou as rubricas do punho de quem assina serão
sublinhadas e indicados entre colchetes. Exemplos: assinatura simples:
Bernardo Jose de Lorena.
15. Quaisquer tipos de informação que o editor julgar significativas para a
compreensão do texto, quer digam respeito a aspectos da diagramação ou do
layout, serão indicadas em notas de rodapé.
A seguir, apresentamos um fólio do nosso corpus para exemplificar a edição
semidiplomática:
26
fl.1r
JBVasconcelos
Escritura de venda que fazem Pinheiro de Palma eCompanhia
da terça parte que possuem nas escravas Delfina e sua filha Joanna á viu-
va dona Isabel Antonia Tavares pela quantia de 330$000. 5 Foram pagos os direitos devidos.
Saibam quantos esta virem que sendo no anno do Nascimento
de Nosso Senhor Jezus Christo de mil oitocentos setenta, aos desaseis dias do
mez de jun digo de Novembro, n’esta cidade da Fortaleza, capital da Provin=
cia do Ceará, em casa de morada da viúva Dona Isabel Antonia Tavares, on= 10 de vim eu Tabelião á chamado. ahi foram-me presentes perante mim
as duas testemunhas abaixo assignadas, de uma parte como outorgantes
vendedores Pinheiro da Palma eCompanhia negociantes e moradores nesta mesma
cidade representadas pelo socio Antonio Pinheiro da Palma, e de outra co=
mo outorgada compradora a mesma Dona Isabel, proprietaria e tambem mo- 15 radora nesta mesma cidade; todos bem reconhecidos em sua identidade por
mim Tabeliaõ do que dou fe. E pelos outorgantes vendedores foi dito peran=
te as mesmas testemunhas que sendo elles senhores e possuidores livre
e desembaraçadamente da terça parte da escrava Delfina, mulata, de
vinte annos de idade, solteira, e sem officio, e da de sua filha de nome joanna 20 tambem mulata, de dousannos de idade, e ambas naturais da freguezia
de Maranguape, vende como effectivamente vendido tem por meio deste
instrumento á mencionada compradora Dona Isabel pelo preço e quan=
tia certa de trezentos e trinta mil reis, que em moeda corrente elles vende-
dores confessam ja haver recebido da maõ da dita compradora, pelo 25 que dão a esta plena e geral quitação de paga, e lhe transfere todo
dominio, senhorio e posse das terças partes de referidas escravas, podendo
daquellas tomar posse como suas que saõ e ficam sendo por bem deste ins=
trumento. E logo pela compradora foi dito que acceita esta escritura de
venda como lhe é feita, e que já das terça parte das referidas escravas 30 Delfina e sua filha joanna esta de posse Pagou a compradora o sello devido de
quatrocentos reis em estampilha, que apresentou e foi por mim inutili=
sada; assim mais pagou na sessaõ de arrecadação da Thezouraria
Provincial vinte mil reis de imposto conforme o conhecimento numero 2716
desta data. Depois de feita esta escritura foi por mim lida perante 35 elles vendedores e compradora, os quais reciprocamente a acceitaram
por acharem-n’a como outorgado haviam, e eu Tabeliaõ como pessoa
publica a outorguei e acceitei em nome dos auzentes e pessoas a que per=
tencer possa, sendo testemunhas a tudo presentes Joze da Siveira
Dutra e Jose Samico, que assignaram com as mesmas vendedores 40 e compradora comigo Joaquim Feijó de Mello Tabeliaõ que escrevi=
[Pinheiro da Palma eCompanhia]
[Isabel Antonia Tavares]
Testemunhas=[Jose da Silveira Dutra]
[Jose Samico]45
27
Alguns aspectos dificultam a edição conservadora, como os fólios que se
encontram deteriorados, soltos da encadernação, com manchas, borrões, folhas
amareladas e tinta quase apagada, elementos que dificultam a leitura, como nos
exemplos abaixo:
Figura 5 - Fragmento de uma escritura de compra e venda de escravos.
Fonte: APEC.
Figura 6 - Fragmento de uma escritura de compra e venda de escravos.
Fonte: APEC.
Diante desses elementos que dificultam o trabalho do filólogo, a
recuperação desses textos torna-se uma atividade árdua, todavia, percebemos a
relevância e a urgência de fazermos uma edição dessas fontes. Interpretamos, também,
os fatos linguísticos e históricos que os documentos oferecem, fato que estimula a
pesquisa por se tratar de uma atividade instigante. Compreender momentos e sujeitos
históricos através da leitura de textos é um exercício cansativo, entretanto, prazeroso,
como confirma Bacellar (2008) na perspectiva do historiador:
28
O trabalho com fontes manuscritas é, de fato, interessante, e todo historiador
que entra por essa seara não se cansa de repetir como os momentos passados
em arquivos são agradáveis. Grandes obras historiográficas tiveram sua
origem nas salas de arquivo, onde muito suor e trabalho foram gastos, após
semanas ou meses de paciente e dedicada fase de pesquisa. O abnegado
historiador encanta-se ao ler os testemunhos de pessoas do passado, ao
perceber seus pontos de vista, seus sofrimentos, suas lutas cotidianas.
(BACELLAR, 2008, p. 24)
Acrescentamos que o exposto acima em relação ao historiador também se
aplica ao filólogo ou linguística dedicado ao trabalho de edição e análise dos textos
deixados por nossos antepassados. Tratar a fonte histórica como um artefato cultural
repleto de informações sobre um momento histórico de uma sociedade é enxergar
potencial para uma pesquisa responsável e uma oportunidade para produzir novos
discursos de compreensão sobre conceitos, visto que são produções culturais, carregadas
de sentido, fontes com informações explícitas e implícitas que incitam nossa capacidade
de reflexão e análise crítica.
2.3 DA EDIÇÃO E DAS NORMAS DE EDIÇÃO
A edição constitui um importante passo do labor filológico, pois a partir
dela os textos tornam-se acessíveis ao público leitor. É por meio da transcrição que
documentos antigos, sujeitos ao desgaste do tempo, podem ampliar sua vida útil,
permitindo que as informações neles contidas venham a ser acessadas por estudiosos de
diversas áreas.
Há tipos de edições que permitem atender às variadas vertentes de pesquisa
e aos diferentes públicos, cabe ao pesquisador filólogo escolher o modelo de edição que
melhor atende aos objetivos almejados em sua pesquisa. Cambraia (2005) divide as
edições em monotestemunhais (que apresentam apenas um registro textual) e
politestemunhais (que dispõem de mais de uma versão editada). As edições
monotestemunhais tomam por base o nível de mediação que o filólogo emprega na
reprodução do texto e se dividem em quatro tipos, a saber: a fac-similar, a diplomática,
a paleográfica e a interpretativa.
A primeira delas, edição fac-similar, também conhecida como fac-símile,
fac-similada ou mecânica, consiste na edição que mais se aproxima do original, sendo
uma reprodução efetuada por meios mecânicos, tais como: fotografias, xerografias etc.
Assim, neste tipo de edição, o editor pode observar com exatidão características
29
peculiares do documento princeps, como: traçado das letras, ilustrações, margens,
coloração e tamanho.
Dentre esses outros tipos de edições, o que possui o menor grau de
mediação no documento é a edição diplomática, uma vez que prima por uma edição
conservadora no que tange a todos os elementos encontrados no texto, tais que:
abreviaturas, sinais de pontuação, separação vocabular, paragrafação e translineação.
Acerca dos benefícios encontrados nesse tipo de edição, Cambraia (2005, p. 94)
esclarece que:
Como vantagem deste tipo de edição, pode-se citar a facilitação de leitura
que propicia, pois dispensa o leitor da árdua tarefa de decifrar as formas
gráficas da escrita original do modelo, particularmente difíceis em
testemunhos manuscritos. Por outro lado, tem como desvantagem o fato de
também poder ser consultada fundamentalmente por especialistas, pois,
apesar da facilitação já mencionada, a manutenção de certas características –
em especial, os sinais abreviativos – exige certamente conhecimento
especializado, não dominado pelo grande público. Não se pode deixar de
lembrar ainda que mesmo sendo bastante rigorosa, uma edição diplomática já
constitui uma interpretação subjetiva, pois deriva da leitura que um
especialista faz do modelo. (CAMBRAIA, 2005, p.94)
Seguindo essa linha de conservação linguística, mas com a pretensão de
ampliar o seu público alvo, temos a edição paleográfica (conhecida também por
semidiplomática ou diplomático-interpretativa), que apresenta um nível médio de
intervenção do editor. Nesse tipo de edição objetiva-se, além de ofertar uma edição
fidedigna, facilitar a leitura do texto por parte daqueles que não possuem um
conhecimento especializado na área e retificar possíveis falhas identificadas no texto,
tais como supressão ou repetição de letras e palavras. E para que esses objetivos sejam
alcançados, Cambraia (2005, p. 95) assevera que: “[...] o editor atua de forma mais
interventiva, através de operações como desenvolvimento de sinais abreviativos,
inserção ou supressão de elementos por conjectura, dentre outros (embora qualquer uma
dessas operações fique explicitamente assinalada na reprodução).”
As edições interpretativas, às quais são atribuídas o grau máximo de
mediação que se possa admitir, além de desenvolverem as abreviaturas, realizam
uniformizações gráficas, conforme explica Cambraia:
Não se pode deixar de esclarecer que, neste tipo de edição, a uniformização é
Essencialmente gráfica: não se uniformizam variantes fonológicas,
morfológicas, sintáticas e lexicais (o que geralmente ocorre na chamada
edição modernizada). É evidente, porém, que certas uniformizações (de
30
pontuação, paragrafação, etc.) acabam por fixar apenas uma das leituras
possíveis do testemunho, razão pela qual esse tipo recebe justamente o nome
de interpretativa. Como se vê, sua maior qualidade - a acessibilidade –
determina igualmente seu maior defeito – a subjetividade (CAMBRAIA,
2005, p. 97).
Neste trabalho usamos a edição paleográfica (ou semidiplomática) feita a
partir das fotografias das escrituras originais. De acordo com os nossos objetivos, a
edição semidiplomática é a que melhor se adequa, visto que preserva o estado da língua
em questão, o que se mostra primordial em nossa dissertação, por sua natureza
linguística. Além disso, permite o desenvolvimento das abreviaturas, ofertando uma
edição que poderá ser utilizada por pesquisadores de outras áreas que tenham pretensões
de realizar estudos relativos à escravidão, por exemplo. Fotografar os documentos
originais é um recurso do mundo moderno a favor da recuperação de textos históricos e
é um importante aliado do trabalho do filólogo, uma vez que os textos arquivados no
APEC e em outros arquivos públicos não podem ser levados para outros locais. Este
recurso permite que o editor faça consultas ao manuscrito onde e quando quiser, além
de permitir a conservação e reprodução desses textos em outros suportes.
Um dos objetivos da edição e análise das escrituras é tornar o documento
acessível a um público especializado, mas também a um público leigo e interessado na
área. Para tanto, a escolha da edição ganha uma grande relevância, ao escolher o tipo de
edição o filólogo precisa refletir sobre o tratamento ideal para os documentos
escolhidos. Cada edição tem seus métodos, portanto, os resultados serão diversos.
Diante de nossos objetivos, surge uma preocupação em oferecer transcrições fiéis o
mais próximo do original, para que não haja intervenção no sentido do texto e seja
mantida uma fonte genuína para pesquisas de estudiosos, todavia, desejamos esclarecer
questionamentos que possam surgir no decorrer da leitura do documento.
O trabalho de edição de um manuscrito não é uma tarefa fácil, uma vez que
diferentes fatores podem ter acarretado modificações nos textos. A edição escolhida
para esta dissertação foi a semidiplomática, que facilita a leitura por meio da
interferência do editor, como o desenvolvimento das abreviaturas. Spina (1994) explica
a diferença entre as edições diplomática e semidiplomática:
A transcrição puramente diplomática já constitui uma forma de interpretação,
pois elimina as dificuldades de natureza paleográficas suscitadas pela
escritura; a transcrição diplomática interpretativa (ou semidiplomática) vai
mais longe na interpretação do texto, pois já representa uma tentativa de
melhoramento do mesmo, com a divisão das palavras, o desdobramento das
31
abreviaturas (trazendo as letras, que não figuram no original, colocadas entre
parênteses) e às vezes até com pontuação. (SPINA, 1994, p. 85)
Adotando a edição semidiplomática neste trabalho, temos textos próximos
aos originais, permitindo uma análise mais profunda da estrutura e dos elementos
linguísticos e sociais dos documentos, buscando respostas e abrindo possibilidades de
novos questionamentos. O foco neste tipo de edição é facilitar a leitura e não modificar
significativamente o conteúdo do texto, como explica Cambraia (2005, p. 95): “[...] no
processo de reprodução do modelo, realizam-se modificações para o tornar mais
apreensível por um público que não seria capaz de decodificar certas características
originais, tais como os sinais abreviativos”.
Assim, nosso trabalho contribui para os estudos filológicos no estado do
Ceará, analisando documentos pertencentes à antiga província que, segundo Ximenes:
(...) por muitos anos, ficou esquecida pelos colonizadores. As tribos
indígenas levavam sua vida conforme os seus costumes e viviam em toda a
extensão do território cearense sem o domínio europeu. A colonização dessa
terra só se concretizou após várias tentativas com mais de cem anos de atraso
em relação ao período de chegada dos colonizadores ao Brasil. (XIMENES,
2013, p. 14).
Etimologicamente, Filologia quer dizer “amigo da palavra”, mas o termo
não possui um conceito uniforme, e ao longo do tempo sofreu diversas variações em seu
significado. No século XX, Ferdinand Saussure traz uma nova leitura acerca desta
ciência, ele afirma que:
A língua não é o único objeto da filologia, que pretende, antes de tudo, fixar,
interpretar e comentar os textos; esse primeiro estudo faz com que ocupe
também com a história literária, costumes instituições etc. em toda parte ela
usa seu método próprio que é a crítica. Se aborda questões linguísticas é,
especialmente, para comparar textos de épocas diferentes, determinar a língua
particular de cada autor, designar e explicar incursões em uma língua arcaica
e obscura (SAUSSURE, [1916] 2012, p. 31)
Para este trabalho, nos interessamos nos conceitos que abarcam a análise
linguística e também a preocupação da Filologia com a interpretação dos elementos
históricos. Para Ximenes (2009, p. 33), “a Filologia é a ciência que tem como objeto de
trabalho a cultura dos povos através de seus textos [...]”. Desta forma, é uma ciência que
busca compreender o texto em todos os seus aspectos. A Filologia não se restringe
somente à língua, mas abrange o contexto de produção do texto. O documento pode
32
revelar a sociedade e os atores sociais responsáveis por ideias e comportamentos
humanos que culminaram na produção daquele texto.
O trabalho filológico é árduo e minucioso, o pesquisador lida com
documentos produzidos em diferentes épocas, com linguagem específica e estruturas
situadas. Segundo Basseto (2001) o labor filológico nos proporciona a aquisição de
conhecimento e cultura, através da apreensão da palavra como expressão da inteligência
e do pensamento do outro. Para o autor, o ser filólogo manifesta uma ideia de
aprimoramento intelectual, de amplos conhecimentos e de cultura em geral.
Atualmente, a Filologia se preocupa com a interpretação das informações
contidas nos textos e em possibilitar o acesso a esse teor informativo. Neste trabalho,
usamos o conceito de Filologia para recuperação das escrituras de compra e venda,
fazendo a transcrição e a interpretação do teor do documento. O conceito de Filologia
dado por Castro (1992) engloba a ideia que nos propomos a seguir no presente trabalho,
que define a Filologia como:
Ciência que estuda a gênese e a escrita dos textos, a sua difusão e a
transformação dos textos no decurso de sua transmissão, as características
materiais e o modo de conservação dos suportes textuais, o modo de editar os
textos com respeito máximo pela intenção manifesta do autor. (CASTRO,
1992 apud XIMENES, 2013, p. 189).
Portanto, o trabalho de edição e análise desses documentos é de grande
importância no que diz respeito à atividade de recuperar e preservar a história do Ceará,
principalmente sobre a escravidão. As escrituras de compra e vendas de escravos são
documentos oficiais que fornecem informações sobre a história social do Ceará e
aspectos linguísticos fundamentais para abordar questões do funcionamento da língua
na época em que esses textos foram escritos. Logo, o estudo filológico desses
documentos está dentro da proposta do conceito dado por Lamas (2009, p. 25), segundo
o qual “(...) a atitude filológica corresponde plenamente ao estudo da Linguística do
Texto, em qualquer de suas modalidades ou manifestações particulares, atuais e
pretéritas (...)”.
A edição prima por conservar as informações conforme o original, fato que
traz complexidade ao labor do filólogo, tendo em vista que para se chegar a uma edição
que preserva a escrita contida no documento original, se faz necessário o conhecimento
de inúmeros fatores. É necessário que o filólogo busque conhecer o contexto histórico a
33
que esses escritos dizem respeito. Em nosso caso, que lidamos com documentos
referentes à segunda metade dos oitocentos (1870-1873), é pertinente levantar algumas
questões na análise dos textos, tais como: Como o Brasil se organizava nesse período?
Que ideologias eram defendidas? Que práticas religiosas mais lhe representavam?
Como a província cearense se comportava nesse contexto?
2.4 DA ANÁLISE LINGUÍSTICA
Na perspectiva linguística, analisamos o léxico presente nos documentos e
apresentamos como as construções léxicas indicam traços da cultura daqueles que
vivenciaram o contexto do comércio de escravizados, com destaque para as lexias que
remontam à prática escravocrata e que permitem conhecer sob qual configuração ela se
deu.
Levando em conta que o léxico abarca as diversas experiências do ser
humano através das nomeações, analisamos as diferentes classificações feitas no
discurso das escrituras sobre os sujeitos envolvidos na compra e venda de cativos e as
lexias que caracterizam esse processo. O léxico de uma língua nos permite atribuir aos
seres, locais e coisas os conceitos que os qualificam no nosso sistema linguístico,
segundo Biderman (2006):
O léxico de uma língua constitui, portanto, uma forma de registrar o
conhecimento do universo. Ao dar nomes às entidades perceptíveis e
apreendidas no universo cognoscível, o homem as classifica
simultaneamente. Assim, a nomeação da realidade pode ser considerada
como a etapa primeira no percurso científico do espírito humano de
conhecimento do universo. Ao identificar semelhanças e, inversamente,
discriminar os traços distintivos que individualizam estes referentes em
entidades distintas, o homem foi estruturando o conhecimento do mundo que
o cerca, dando nomes (palavras e termos) a essas entidades discriminadas. É
esse processo de nomeação que gerou e gera o léxico das línguas naturais.
(BIDERMAN, 2006, p. 35)
O estudo do léxico nas escrituras recebe um tratamento mais aprofundado,
pois se tratam de documentos específicos de uma época e apresentam um discurso da
esfera jurídico-administrativa, ou seja, as lexias usadas no texto correspondem a esse
contexto. De modo específico, devido à temática envolta nesse estudo ser a escravidão,
faz-se imprescindível que se conheça, minimamente, questões gerais acerca dela. Em
virtude disso, o conhecimento prévio dessas questões é de grande valia para que
consigamos identificar lexias relacionadas à escravidão e que, atualmente, não são mais
34
utilizadas frequentemente. As lexias apresentam relação com o universo jurídico, são
declarações, reconhecimento, obrigações que se repetem nas narrativas das escrituras e
configuram um modelo de estrutura.
São documentos que tratam da comercialização de escravizados, o léxico
usado para caracterizar os indivíduos envolvidos nesse processo revela informações
particulares sobre a transação comercial envolvendo os sujeitos cativos. Assim, fizemos
um levantamento das lexias relativas aos escravos que nos possibilitam entender um
pouco do cenário da comercialização de cativos e separamos os termos selecionados em
categorias, a saber: Elementos que compõem o documento; Locais citados nas
escrituras; Sujeitos citados no documento; Caracterização dos sujeitos citados nos
documentos.
Na pesquisa, a língua, especificamente o léxico, será um subsídio para
compreender os aspectos da transação comercial e quem eram os sujeitos envolvidos, ou
seja, compreendemos as relações sociais por meio de algumas lexias usadas nos
documentos. Neste momento, discorremos sobre os significados de cada uma das lexias
e das relações destas com as unidades pertencentes a sua categoria e com as demais
lexias identificadas.
Por exemplo, ao analisar a categoria dos sujeitos envolvidos nos documentos
apresentamos as lexias voltadas ao cativo, ao comprador e ao vendedor, além das
figuras jurídicas que participam da transação, como o tabelião, o escrivão e as
testemunhas. Na caracterização dos sujeitos citados nos documentos apresentamos
lexias tais como: africano, preto, crioulo, cabra, mulato, pardo, agricultor, lavrador,
cozinheiro, solteiro, casado, viúva etc.
Para tanto, com vistas a identificar inicialmente o sentido com o qual cada
lexia foi utilizada, observamos os seus contextos de uso, as definições dispostas nos
dicionários e referências historiográficas. Com relação aos dicionários, recorremos a
Moraes Silva (1789), Vieira (1873), Figueiredo (1913), Silva Pinto (1832) e Bluteau
(1728).
Mais do que observar as relações estabelecidas entre os itens lexicais de
cada grupo, buscamos examinar ainda as conexões firmadas entre as categorias lexicais
escolhidas para analisar, a fim de constatar em que medida cada categoria encontra-se
relacionada com a escravidão, foco principal desse estudo. Vale ressaltar que para a
seleção lexical, observamos os sentidos dessas lexias, mediante os seus contextos de uso
e por meio de consulta a obras lexicográficas e historiográficas no intuito de selecionar
35
apenas aquelas relativas aos negros escravos e/ou que possibilitem conhecer a realidade
em que estes se encontravam.
No contexto de produção das escrituras não existiam normas ortográficas
estabelecidas, entretanto, entendemos que os documentos foram escritos considerando a
norma culta da época, já que eram poucos os que tinham acesso à leitura e à escrita. Isso
possibilita o contato com uma das fases pelas quais a língua portuguesa passou.
O conhecimento do sistema de escrita da época é importante para sabermos
como os sujeitos usavam a língua naquele contexto e como isso está presente no gênero
textual escrituras de compra e venda de escravos. As fontes analisadas datam do século
XIX, portanto, é relevante compreender os aspectos do sistema ortográfico pertencente
àquela época, segundo as gramáticas históricas, para contextualizarmos linguisticamente
o corpus.
Teyssier (1997, p. 6) diz que “Os primeiros textos escritos em português
surgem no século XIII”, isso significa que, por muito tempo, a ortografia da língua
portuguesa não possuía um sistema padrão de escrita, já que os primeiros acordos
ortográficos vieram ocorrer no século XX. Desde os primórdios, aos dias atuais, divide-
se a história da ortografia portuguesa em três períodos: o fonético, o pseudoetimológico
e o simplificado.
No primeiro período, que inicia com os primeiros documentos redigidos em
português, as palavras eram escritas como eram pronunciadas. Esse período coincide
com a fase arcaica do idioma, portanto, não havia um padrão uniforme na transcrição
das palavras, a escrita apresentava variação dentro do mesmo texto, não havia uma
sistematização reconhecida. O grafema h, por exemplo, podia indicar tonicidade da
vogal: he (é); a existência de hiato: sahida (sa-í-da), sabha (sabia); e, às vezes, era usado
sem função indefinida: hua (uma). Segundo Coutinho (1976), no período fonético se
escrevia pelo ouvido, ou seja, as palavras eram registradas de acordo com o som que se
ouvia:
Não havia um padrão uniforme na transcrição das palavras. Às vezes, em um
documento, aparecem os mesmos vocábulos grafados de modo diferente.
Para isso, concorriam as diferenças regionais que deram em resultado o
sincretismo das formas, a influência embora pequena do latim, a negligência
dos autores e copistas, e, em alguns casos, a grafia castelhana. O que porém,
não se pode negar-se a tendência manifestamente fonética do sistema então
em uso. Escrevia-se não para a vista, mas para o ouvido (COUTINHO, 1976,
p. 72).
36
O período pseudoetimológico tem início delimitado no século XVI e vai até
o ano de 1904, quando a Ortografia Nacional de Gonçalves Viana foi publicada. Essa
grafia tem como principal característica o emprego de consoantes germinadas
(dobradas) e insonoras. A grafia etimológica ou pseudoetimológica consistia em
conservar as letras das palavras latinas ou gregas, mesmo que não possuíssem valor
fonético. Além das consoantes geminadas, há o emprego de grupos consonantais
impróprios como gn, ct, pt, dentre outros, numa forma de recuperar ou aproximar do
étimo da palavra, mesmo que em muitos casos fossem apenas criações infundadas, pois
quem escrevia queria mostrar erudição e aproximação com a cultura clássica greco-
romana. Segundo Ximenes (2009, p. 14), “esse período vem a lume com o
Renascimento e a volta da cultura clássica greco-latina que influenciou os espíritos a
adotarem a grafia supostamente etimológica de cuja origem seria o étimo daquelas
línguas”.
O terceiro período começa com as tentativas de Gonçalves Viana de
apresentar um sistema fixo de grafia, com base na história da língua. Dessa forma,
algumas regras ortográficas foram estabelecidas, como a redução das consoantes
dobradas e a regularização da acentuação gráfica. Felisbino diz que:
Assim, a sistematização da ortografia nesse momento vislumbrou um caráter
não apenas de simplificar e fixar a ortografia apresentava um eixo
nacionalista, sobretudo, com referência às marcas entre a pronúncia brasileira
em relação à pronúncia europeia, ampliando e intensificando, dessa forma, a
procura da identidade nacional por meio da criação de um sistema gráfico
brasileiro (FELISBINO, 2013, p. 10).
Podemos inferir que a ortografia dos documentos aqui estudados
cronologicamente tem sua vigência no final do século XIX, entretanto, a escrita ainda
guarda traços do período fonético, que era usado até o fim do século XVI. Muitos
grafemas são escritos tal qual eram pronunciados, o que não implica uma uniformidade
na escrita, pois cada indivíduo tem sua maneira de falar. Por outro lado, percebemos
traços da ortografia pseudoetimológica na qual “as palavras eram escritas de acordo
com a grafia de origem, reproduzindo todas as letras do étimo, embora não fossem
pronunciadas” (SILVA, 2010, p. 98).
Nas escrituras públicas de compra e venda de cativos percebemos a
presença de duas ortografias: a fonética e a pseudoetimológica. Isso implica em dados
diferentes, que podem revelar a liberdade de escrita do escrivão, responsável por redigir
37
as escrituras. Isso também revela que, mesmo havendo uma separação de períodos, eles
não se anulam, ou seja, o início de um período ortográfico não elimina todos os aspectos
do antigo período vigente, os usuários da língua não vão aderir completamente ao novo
sistema e isso pode explicar porque encontramos traços de períodos anteriores à época
que estudamos.
Essas observações sobre a ortografia da época ajudam a compreender o
contexto linguístico que as escrituras foram produzidas, fato que auxilia na análise dos
elementos léxicos dos documentos.
2.5 DA ANÁLISE SOCIAL
A partir do levantamento das lexias, contextualizamos o social, o judicial, o
econômico e o administrativo da então província cearense, descrevendo o
funcionamento dos órgãos administrativos e os sujeitos que trabalhavam nesses espaços,
e como se organizava a economia no contexto que as escrituras foram produzidas.
Por meio de leituras já elaboradas sobre esse recorte temporal da história do
Ceará e a partir das hipóteses levantadas através dos dados apanhados na seção de
análise das lexias, realizamos um estudo sobre o comércio da época, a relação senhor e
cativo, a vivência do escravizado, a constituição da família escrava e como era
deslegitimada no processo de comercialização.
Tendo exposto todas as categorias lexicais identificadas, apresentamos os
significados com que estas foram empregadas nos documentos e o que estes nos
permitem conhecer acerca do sistema econômico e social de escravidão ocorrido na
província cearense nos oitocentos. Os significados das lexias categorizadas e
empregadas para qualificarem os escravos, por exemplo, trazem uma complexidade de
sentidos, podendo indicar seus locais de origem e fatores usados para estabelecer uma
diferença de preços no momento da transação comercial.
Compreender os sentidos dessas lexias permite-nos entender a importância
conferida às categorizações presentes nesses documentos públicos, responsáveis muitas
vezes por decretar as condições de vida a que os cativos estavam sujeitos ou
enfrentariam após sua compra e mudança de senhor. Para tanto, fizemos um
levantamento bibliográfico dos estudos já realizados sobre o período escravista no
Brasil, com recorte no Ceará, realizamos um estudo sobre o contexto da escravidão no
Ceará, trazendo aspectos levantados nos dados analisados a partir das lexias. Também
38
nos debruçamos sobre o funcionamento da comercialização de cativos, da estrutura do
documento oficial de compra e venda, sobre a organização dos órgãos públicos
responsáveis pela transação e pela caracterização dos sujeitos que detinham o poder de
articular o comércio e oficializar a ação de compra e venda. Fizemos, ainda, uma
reflexão sobre condição da família escrava no contexto de escravidão no Ceará,
descrevendo os laços afetivos nas senzalas.
A partir das lexias analisadas investigamos qual era o lugar dos cativos
casados, como eram vendidas as crianças cativas (se junto ou separadas dos pais), a
situação das crianças vendidas, mesmo no contexto da promulgação da lei do Ventre
Livre5, levantamos hipóteses sobre a existência de filhos brancos de escravas pretas e
outras possibilidades de investigações feitas a partir das lexias categorizadas.
Desta forma, serão realizadas leituras acerca da escravidão no Brasil e no
Ceará, como os estudos de Gorender (1985), Girão (1984), Libby&Paiva (2005), Rocha
(2004), Funes (2007) entre tantos pesquisadores e escritores com pesquisas na área.
5 A Lei do Ventre Livre foi uma lei abolicionista, promulgada em 28 de setembro de 1871 (assinada pela
Princesa Isabel). Esta lei considerava livre todos os filhos de mulher escravas nascidos a partir da data da
lei.
39
3 “SAIBAM QUANTOS ESTA VIREM”: ANÁLISE LINGUÍSTICA-
FILOLÓGICA DAS ESCRITURAS
Nesta seção apresentamos a análise lexical e os embasamentos teóricos de
que nos servimos para a realização deste trabalho, os quais centram-se, de modo basilar,
nos conceitos de Filologia, Diplomática, Léxico e Cultura. A finalidade é mostrar a
relação entre o léxico e a cultura explicada através de quatro categorias lexicais inclusas
nas escrituras de compra e venda analisadas. São elas: 1. Elementos que compõem o
documento; 2. Locais citados nas escrituras; 3. Sujeitos citados no documento; 4.
Caracterização dos sujeitos citados nos documentos. Essas categorias têm relação
central com o sistema de compra e venda de cativos. Refletimos, ainda, sobre o
processo de significação das palavras, entendendo a forma que elas foram empregadas
na construção do sentido, no contexto dos documentos, ou seja, sobre a escravidão,
especificamente sobre a comercialização dos sujeitos escravizados no Ceará
oitocentista.
Como procedimentos metodológicos, optamos pela descrição semântica das
lexias6, ou seja, a descrição do significado de cada item lexical encontrado em
dicionários ou em leituras já feitas sobre essas lexias, relacionando-as com a produção
de sentido no contexto de uso do texto.
Nas subseções a seguir, fizemos uma descrição dos conceitos das principais
áreas que estamos trabalhando na pesquisa. Na subseção 2.1 falamos sobre o importante
papel da Filologia para a restauração e preservação de textos antigos, além de falar da
contribuição que o labor filológico oferece para as análises dos processos históricos
vividos pelas sociedades passadas. Na subseção 2.2 temos como foco o estudo da
Diplomática, explicando a importância dessa ciência para a análise da estrutura interna e
da organização do documento e de sua autenticidade. Na subseção 2.3, por fim,
embasados nos conceitos de Léxico e de Cultura, trazemos as lexias encontradas nos
documentos e seus significados que nos interessam para analisar o contexto sob a
perspectiva histórica.
6 Lexia: Unidade do léxico (vocábulos, expressões idiomáticas, locuções etc.). Unidade funcional
significativa de comportamento lexical. Usamos o termo lexia e outros equivalentes, como item lexical.
40
3.1 A FILOLOGIA COMO ESTUDO INTEGRAL DO TEXTO
Para o tratamento dos documentos nos embasamos nos princípios da
Filologia, área de estudo da linguagem humana que tem como foco a língua escrita em
qualquer suporte e em qualquer época histórica. Neste trabalho, adotamos a perspectiva
que compreende a Filologia como a ciência do texto, principalmente dos textos antigos.
O estudo filológico de um texto não se restringe somente a sua análise
linguística, oferecendo inúmeras possibilidades de investigação que podem interessar a
diversas áreas como a Linguística, a História, a Sociologia, o Direito entre outras.
O termo Filologia apresenta múltiplas definições e, também, divergências
quanto à sua atuação. O Dicionário Houaiss (2001, p. verbete filologia) destaca pelo
menos cinco definições para o termo. Entre elas, a que mais se aproxima da perspectiva
que adotamos nesta dissertação é a seguinte: Filologia é o “estudo rigoroso dos
documentos escritos antigos e de sua transmissão, para estabelecer, interpretar e editar
esses textos”. Ou seja, a Filologia faz um estudo amplo de documentos escritos,
preocupando-se com a edição, mas também com a transmissão das informações contidas
nesses escritos. Neste trabalho, nossos objetivos ultrapassam a edição de documentos,
pois trazemos uma interpretação histórica e linguística, sobretudo do léxico desses
textos.
A Filologia é uma ciência antiga, que ao longo dos séculos sofreu alterações
na sua significação. Não pretendemos descrever a história da Filologia, mas
compreender alguns conceitos que revelam a grandeza dessa área no que diz respeito à
investigação e à recuperação de textos.
Basseto (2001) explica o longo percurso histórico percorrido pela Filologia
na Grécia e Roma. Já no Renascimento, por exemplo, há um retorno ao classicismo e o
conceito ganha novos olhares:
Com os primeiros indícios do renascimento, na segunda metade do século
XIV, volta-se a estudar novamente os clássicos na Itália e depois em toda a
Europa. Reaparecem os filólogos, como os Escalígeros, Saumaíses,
Casaubon, Wolf, entre tantos outros nomes conhecidos, que estudam
comentam e editam os clássicos latinos e gregos. Com isso, se fixa o conceito
moderno, em sentido estrito, e filologia como a ciência do significado dos
textos; e em sentido mais amplo, como a pesquisa científica do
desenvolvimento e das características de um povo ou de uma cultura com
base em sua língua ou em sua literatura. (BASSETTO, 2001, p. 37).
41
Nessa ótica mais ampla, a Filologia caminha até os dias atuais como a
ciência que estuda o texto e a língua escrita, considerando sua história, suas mudanças,
as influências recebidas por cada contexto e os fenômenos linguísticos. É a ciência que
também investiga, através dos discursos dos textos editados e/ou analisados, as
vivências de antigas e recentes sociedades, suas formas de vida, suas culturas expressas
por meio da língua.
É nessa perspectiva ampla da ciência que investiga as sociedades e suas
culturas através de seus textos que ancoramos nosso trabalho. Para além da análise dos
aspectos linguísticos, investigamos questões históricas, culturais, políticas, jurídicas e
administrativas do Ceará e do Brasil do século XIX, que ainda têm reflexos na
atualidade brasileira.
Na tarefa de investigar os documentos em uma perspectiva linguística e
histórica, recorremos a outras ciências que nos ajudam a compreender os sujeitos e seus
discursos. Uma delas é a Lexicologia, percebendo que através do léxico podemos
enveredar por diversos caminhos, pois estudar o léxico de uma língua também é estudar
a história de quem fala essa língua. Por meio do estudo das lexias registradas nas
escrituras, analisamos como a linguagem revela a história social da época.
Compreendemos que a maneira mais eficiente de conhecer o passado das
sociedades é conhecer os registros deixados por elas. A Filologia tem como um de seus
papeis principais a recuperação e a divulgação, por meio de edição, de produções
textuais de determinada época, fato que possibilita conhecer o modus vivendi de um
povo, a organização política, social, cultural etc. de determinada comunidade em épocas
passadas. Para Lamas (2009), os estudos filológicos devem integrar além das dimensões
linguísticas, os elementos culturais presentes nos escritos:
Trata-se, no fundo, de propor um modelo articulado em que se integrem o
cultural, o linguístico, o literário, porém em que também englobem as demais
dimensões da linguagem: a cognitiva, a gramatical e a semântica, a
sóciocomunicativa e a textual, a variação, a aplicação do linguístico a
qualquer das esferas da realidade prática, etc. E se trata, também, de um
modelo comum para a linguística sincrônica e para a diacrônica. (LAMAS,
2009, p. 24)
Ximenes (2012, p. 94) explica que o trabalho filológico, ou seja, “a leitura
cuidadosa, a recuperação, a edição e a interpretação dos textos” exige um olhar atento
que pode apontar para variados caminhos, quais sejam: da língua, da história, do plano
42
social, temporal e ainda referente à natureza do documento selecionado, dando à
Filologia uma dimensão interdisciplinar.
Pelos objetivos que esta dissertação pretende atingir, podemos afirmar que
trilhamos perspectivas interdisciplinares, sendo a Linguística e a História as áreas mais
evidentes, mas trabalhando também com a linguagem do Direito, pois analisamos
documentos genuinamente jurídicos, e também a Sociologia, já que analisamos o
contexto escravocrata, descrevendo o comportamento dos sujeitos, suas ideias e as
consequências da conjuntura do contexto social da época e também de que forma isso
reverbera nas relações sociais atualmente.
Destacamos o papel crítico do filólogo em relação à autenticidade do
documento. É necessário primar pela verdade, analisar se o texto pertence de fato à
época e ao autor que lhe foram atribuídos, devendo estar preparado para identificar os
possíveis equívocos presentes no texto, tornar claros pontos de difícil compreensão
para, assim, restaurá-lo em sua forma genuína. Desta forma, o filólogo deve se basear
em informações diplomáticas e paleográficas. Ainda nessa perspectiva de
responsabilidade que o filólogo deve ter sobre o documento estudado, Spina (1994)
expõe que para ser denominado como filólogo, é preciso deter uma postura científica
ante o documento. Segundo ele, a Filologia que não emprega técnicas fundadas em
conhecimentos científicos torna-se puramente amadorismo.
Na interpretação das escrituras de compra e venda de cativos lidamos com o
contexto histórico em que o Brasil vivenciava a escravidão, as primeiras reinvindicações
pela abolição, os movimentos pró e contra a libertação dos escravos, convivendo ainda
com a comercialização de cativos entre as regiões cearenses e para outras províncias, e é
nesse contexto que mergulhamos por meio do trato filológico nas escrituras. Desta
forma, fazemos uma análise para além do texto, investigamos os cargos e as funções
administrativas e jurídicas citadas nos documentos, assim como as leis vigentes, a
organização diplomática do gênero textual, e tantos outros aspectos que englobam os
textos.
O labor filológico exige uma pesquisa responsável sobre o documento.
Através de leituras, buscamos informações diversas acerca da realidade que propiciou a
escrita desses textos, uma vez que eles foram produzidos em um espaço e um tempo
específicos, além de se tratar de um período importante da história do Brasil, momento
esse que abrange muitos discursos ideológicos e ações a serem investigadas. Nesses
textos, há informações sobre a organização territorial vigente da província cearense
43
naquele período, um repertório lexical dedicado ao documento público, além da
descrição da prática comercial que se passa no cenário da escravidão. Essas leituras são
essenciais para construir uma pesquisa que pretende analisar dialogicamente o
repertório lexical e seus sentidos na história.
Partimos, a seguir, para uma explanação teórica sobre a Diplomática e sua
importância para compreender a organização, a função e o uso dos documentos oficiais.
3.2 A CONSTITUIÇÃO FORMAL DO TEXTO: UMA ANÁLISE DIPLOMÁTICA
Nesta subseção nos voltamos para a estrutura do documento, a forma com a
qual ele se apresenta. Desse modo, analisamos o texto do ponto de vista diplomático, ou
seja, sua organização formal. Esse processo também nos permite identificar elementos
que muito revelam sobre o contexto de produção das escrituras, como o tipo de escrita e
a linguagem usada na época, os elementos internos do texto, que remetem à sociedade,
como o papel que servia como suporte, as regras do sistema judicial e administrativo da
época que deveriam constar nos documentos públicos, entre tantos elementos que
podemos identificar nas informações contidas nas escrituras.
Bellotto (2004, p. 47) atribui o nascimento da Diplomática ao surgimento da
necessidade de verificar a fidedignidade de certos “diplomas” medievais, ou seja, a
investigação sobre a falsidade versus a veracidade desses papéis. Ainda segundo
Bellotto (2009), os documentos diplomáticos são os de natureza jurídica que refletem
ações e relações políticas, legais, sociais e administrativas entre o Estado e os cidadãos,
configurando, assim, os documentos públicos. E podem ser divididos em duas
categorias: dispositivos e testemunhas. Essas categorias apresentam subdivisões, a
saber:
Quadro 1 - Divisão dos documentos diplomáticos
Dispositivos Testemunhais
Normativos: normativos: lei, ordem de
serviço, regulamento etc.
De ajuste: tratado, convénio, contrato,
pacto etc.
De correspondência: intimação, circular,
edital, portaria, memorando, alva.
Assentamento: atas, termos, autos de
infração etc.
Comprobatórios: atestados, certidões,
traslados, cópias autenticadas.
Informativos: pareceres, informação,
relatórios etc.
Fonte: elaborado pela autora.
44
As escrituras de compra e venda de escravos podem ser caracterizadas
como documentos comprobatórios, pois são certidões que comprovam a venda e a
compra de escravizados. Os documentos possuem a estrutura organizacional legal e
jurídica, com testemunhas, assinaturas, selos e termo de reconhecimento do tabelião.
Trata-se, portanto, de um documento que mostra a transação comercial de um bem que
era registrado em livros cartoriais. A escritura era pública, escrita por um burocrata
imperial e ficava sob controle do Estado. As certidões tinham o objetivo de tornar
públicos e legais as relações comerciais, sejam imóveis, móveis, terras, escravos etc.
A seguir, mostramos a capa e a contracapa do livro de escrituras de compra
e venda de escravos, que contém os documentos que analisamos aqui. O papel na base
da capa foi colado pelo Arquivo Público do Estado do Ceará como forma de
catalogação dos livros:
Figura 7 - Capa do livro de escrituras.
Fonte: APEC (Capa do livro de escrituras de compra e venda de escravos, Livro 357).
45
Figura 8 - contracapa do livro de escrituras.
Fonte: APEC (Contracapa do livro de escrituras de compra e venda de escravos, Livro 357).
A encadernação em capa dura, de cor vermelha, possui uma etiqueta
amarelada colada na lombada semelhante à fita adesiva, aspectos que parecem
intervenções posteriores. Analisar o suporte é importante para verificar possíveis
intervenções e o que é considerado genuinamente pertencente à estrutura original do
documento.
Para Bellotto (2002, p. 19), o objeto da Diplomática “é a configuração
interna do documento, o estudo jurídico de suas partes e dos seus caracteres para atingir
sua autenticidade [...]”. Já para Richter (2004, p. 87), a Diplomática “é a ciência que
estuda a estrutura formal dos documentos antigos e contemporâneos e seus caracteres
externos (suporte, tinta, sinete, selos, carimbos) e internos (forma documental), com o
objetivo primeiro de verificar sua autenticidade e seu valor como fonte histórica”. De
acordo com a autora, “atualmente, a diplomática estuda também a tipologia
documental” (RICHTER, 2004, p. 88).
Cardoso (2008) afirma que, em todos os livros de registros documentais, era
obrigatório haver termo de abertura, termo de encerramento e a numeração em todas as
páginas, seguidas da rubrica de quem primeiro manuseou o livro. Ressalta ainda que
46
isso deveria ser feito antes do primeiro registro. As numerações e rubricas aparecem no
início dos fólios7, ao lado direito e apenas no recto desses.
O livro de escrituras que analisamos possui termo de abertura e de
encerramento, bem como a rubrica de quem primeiro manuseou, como mostramos a
seguir:
Figura 9 - Termo de abertura do livro de escrituras.
Fonte: APEC. Livro de Escrituras.
Edição semidiplomática do termo de abertura:
7 Na Filologia utilizamos o termo fólio equivalente justamente a uma folha em que a parte frontal é
chamada de recto enquanto a dorsal denomina-se verso.
47
Este livro servirá para n’elle lançar
o 1º Tabeliaõ Joaquim Feijó de Mello
as escripturas de compra e venda de es-
cravos; e vai numerado e rubricado em
todas as suas folhas com a rubrica = JB deVascon-
cellos = de que uso, levando no fim o
competente termo de encerramento.
Cidade da Fortaleza 16 de No
vembro de 1870 –
O Juiz de Direito daComarca
Julio Barbosa deVasconcelos
Figura 10 - Termo de encerramento do livro de escrituras.
Fonte: APEC. Livro de Escrituras.
Edição semidiplomática do termo de encerramento:
Tem este livro cento e quarenta e
oito folhas, os quais ficam todas por
mim numeradas e rubricadas com a
rubrica = JBdeVasconcellos = de que
48
uso e no principio o competente
termo de abertura –
Cidade da Fortaleza 16 de
Novembro de 1870 –
O Juiz de Direito daComarca
Julio Barbosa deVasconcelos
Figura 11 - Rubrica do Juiz de Direito.
Fonte: APEC. Livro de Escrituras.
Esses elementos diplomáticos auxiliam na busca por informações textuais, o
que é importante para legitimar o discurso como sendo jurídico e legal e também para
compreender aspectos próprios do contexto linguístico e administrativo da época.
A Diplomática ajuda na identificação de elementos externos, extrínsecos,
físicos nos documentos. Segundo Bellotto (2015, p. 01), “a Diplomática fornece os
elementos que sustentam a teoria arquivística em seus princípios básicos: o da
proveniência; o da organicidade; o da unicidade e o da indivisibilidade/integridade”.
Dessa forma, esta ciência compreende o documento como um todo, investigando desde
antes de sua criação.
Bellotto (2002) apresenta uma estrutura de documentos diplomáticos
dividida em três partes: o protocolo inicial, o texto e o protocolo final que os
documentos públicos podem apresentar:
Quadro 2 - Exemplo de uma análise diplomática.
(continua)
Parte do texto Discurso analisado
Protocolo Inicial
Este elemento pode ou deve ter quatro
subdivisões:
Invocação divina, às vezes, em forma
abreviada (“em nome da Santíssima
Trindade...”, “In Dei nomine...”);
Titulação, compreendendo o nome e
titulo do autor;
Direção, destinatário, que pode ser
individual ou coletivo;
Saudação breve, nem sempre, muitas
vezes, regida de forma abreviada (“Vos
envio muita saúde”; “S” = Saúde).
É o corpo, a alma do documento. Constitui-se das
seguintes partes:
Preâmbulo: tido como um ornamento, de
aspecto literário, para chamar a atenção
sobre a utilidade do documento, também
49
Texto
denominado “arenga” (conversa fiada);
Notificação: dá conhecimento a uma ou
várias pessoas;
Exposição ou narratio: mostra as causas
que tornaram necessário o ato;
Dispositivo: parte mais importante,
essência do documento, expressa a
vontade do autor;
Sanção: cláusulas finais expressando uma
punição, explicitando a pena em que se
vai incorrer (espiritual ou penal, uma
maldição);
Corroboração: expressa o empenho de
bens em garantia. Também pode ter o
sentido de renúncia a determinadas coisas
ou de corroboração, quando a pessoa que
recebe o documento é obrigada a divulgá-
los.
Protocolo
Final ou
Escatocolo
É a parte final do documento. Divide-se em:
Subscrição ou assinatura – do autor;
Datação: consiste na localização do
documento no tempo e espaço (dia, mês,
ano, era, às vezes, hora, cidade, vila,
tec.). A datação consiste nas datas tópica
e cronológica.
Precação: constituída por dois elementos:
- assinatura de testemunhas ou a quem foi
delegada a execução do ato; - sinais de
validação: selo e carimbos.
Fonte: Bellotto (2002).
Ainda segundo Bellotto, no protocolo final podemos verificar a subscrição
ou assinatura do autor que atesta o ato ou fato ocorrido, as datas que atestam o tempo e
o lugar onde foi produzido o documento e os selos e/ou carimbos que validam
judicialmente o texto. Esses elementos diplomáticos são primordiais para selar a
autenticidade do documento.
Devemos lembrar que nem todo documento diplomático apresenta todas as
partes supracitadas, alguns não apresentam o protocolo inicial ou final, por exemplo.
Este fato não impede que a análise seja feita e pode evidenciar a falta de padronização
na produção de documentos, mesmos os públicos.
Todas as escrituras de compra e venda de escravos aqui analisadas
apresentam uma estrutura padrão. Por esta razão, usamos como exemplo apenas uma
escritura para realizar uma análise diplomática. A partir de uma proposta de análise
elaborada por Tognoli (2013) mostramos que a estrutura das escrituras segue um
modelo diferente do proposto por Bellotto (2002), no entanto, o documento é
diplomático e suas características internas e externas nos permitem fazer uma análise
diplomática.
50
Tognoli e Guimarães (2011) propõem uma construção analítica unificada
dos elementos essenciais que compõem os métodos estudados e que, teoricamente,
funciona como uma síntese metodológica para analisar documentos de qualquer
natureza (jurídica ou não/público ou privado), em qualquer ambiente
(tradicional/eletrônico), em qualquer época (medieval, moderna, contemporânea), para
verificar o comportamento dos elementos comuns que compõem os métodos, ao longo
dos anos. Para isso, os autores esclarecem o objeto de estudo da Diplomática:
Entendemos, portanto, a informação orgânica registrada em uma forma
escrita determinada, produzida e/ou recebida por uma pessoa física ou
jurídica no desenvolvimento de uma atividade específica, variável com
relação ao lugar e à época, de natureza jurídica ou não. (TOGNOLI e
GUIMARÃES, 2011, p. 9)
A seguir, mostramos o modelo de análise diplomática elaborado por Tognoli
(2013):
Quadro 3 - Exemplo de dados para uma análise diplomática.
(continua)
Espécie documental
Tipo documental
Categoria Documental:
Dispositivo
Probatório
Informativo
Natureza do ato:
Público
Privado
Elementos externos:
Material
Tipo de escrita
Qualidade de impressão (visualização, integridade do documento)
Meio de registro
Selos e Sinais
Elementos internos:
Língua
Estilo de linguagem
Protocolo Inicial: (Título/Assunto/Datas/Invocação/Titulação – nome e
predicado do autor e destinatário/Saudação inicial)
51
Texto (preâmbulo/exposição/notificação/dispositivo/sanção/corroboração /
anúncio dos sinais de validação)
Protocolo Final (precação/Saudação final/datas/subscrição)
Pessoas envolvidas na criação do documento:
Autor da ação
Autor do documento
Destinatário da ação
Destinatário do documento
Escritor
Testemunhas envolvidas
Estado de transmissão:
Pré-original
Original
Pós-original
Informações complementares:
Fundo produtor/recebedor
Grupo
Série
Notação
Fonte: Tognoli (2013).
O livro de documentos usado como fonte neste trabalho é composto por
escrituras que seguem uma estrutura similar, divergindo apenas em alguns elementos do
texto, como os sujeitos envolvidos e seus perfis, os preços negociados e pequenas
alterações na escrita. Como trabalhamos com 174 documentos, optamos pela análise
diplomática de um exemplar para que a leitura não se torne repetitiva e por acreditar que
os aspectos analisados em uma escritura permitam uma compreensão de um quadro
geral das informações contidas no corpus.
Abaixo, mostramos um quadro elaborado a partir do método de Tognoli
(2013) com as informações encontradas na escritura (fl.47v) usada como exemplo para
análise:
Quadro 4 - Análise diplomática de uma escritura de compra e venda de escravos.
Padrão ideal de análise diplomática para
documentos de arquivo
Informações das Escrituras de compra e venda
de escravos
Espécie documental Escritura
Tipo documental Escritura de compra e venda de escravos
Categoria Documental Probatório
52
Natureza do ato Público
Elementos externos
Material: papel;
Tipo de escrita: a escrita utilizada,
predominantemente, foi a escrita
humanística cursiva ou italiana (Spina,
1994), a forma de registrar a mão corrida,
bastante cuidadosa, as letras pequena
inclinada para a direita, apresentando
traçado regular;
Qualidade de impressão: visualização
com baixa qualidade, devida a tinta azul
um pouco apagada;
Contém selo [no final].
Elementos internos
Língua: língua portuguesa;
Estilo de linguagem: jurídica;
Ementa: “Escritura de venda sob a
condiçaõ reta de um escravinho de nome
Sebastiaõ que á Moura Rolim &
Sobrinhos faz Manoel Joaquim Pereira
juntos pela quantia de 800$000 reis.”;
Protocolo inicial: “Saibam quantos estas
virem que sendo no Anno do Nascimento
e Nosso Senhor Jesus Christo de mil
oitocentos setenta e um ao primeiro dia
do mez de julho, n’esta cidade da
Fortaleza, do Ceará.”;
Texto: “(...) em meu cartorio
compareceram perante mim e as duas
testemunhas abaixo assignadas, de uma
parte como outorgante vendedor o
Tenente Coronel Andre Epifanio Ferreira
Lima, agricultor e morador no termo de
Baturite e de outra como outorgados
compradores Luis Ribeiro da Cunha &
Sobrinhos, negociantes e moradores nesta
mesma cidade, todos bem conhecidos de
mim Tabelião, do que doufe”;
Protocolo final: “Depois de feita esta
escritura foi por mim lida perante eles
vendedor e comprador, os quais
reciprocamente a aceitaram, e eu Tabeliaõ
como pessoa publica a outorguei e aceitei,
sendo testemunhas a tudo presentes
Viriato Ferreira Barreto e Fellipe José de
Santiago com os mesmos vendedores e
compradores e comigo Joaquim de Mello
Tabeliaõ que escrevi =”.
Pessoas envolvidas na criação do documento
Autor da ação: Tabelião Joaquim Feijó de
Mello;
Destinatário da ação: Moura Rolim &
Sobrinhos;
Destinatário do documento: Cartório de
53
Fortaleza;
Testemunhas: Viriato Ferreira Barreto e
Felippe José de Santiago.
Estado de transmissão Original
Fonte: autora (a partir do modelo proposto por Tognoli (2013)).
Na escritura que analisamos acima podemos perceber que o protocolo final
não traz a assinatura do autor, apenas sua apresentação, bem como não atestam o tempo
e lugar onde foi produzido o documento. No entanto, encontramos essas informações no
protocolo inicial. A seguir, mostramos a foto da escritura com algumas observações
inseridas para melhor visualizar as informações diplomáticas, seguida da edição:
Figura 12 - Edição fotográfica de uma escritura de compra e venda escravos
com alterações na foto.
Fonte: APEC.
A seguir, apresentamos a edição semidiplomática da escritura analisada:
54
fl.47v
Escritura de venda que faz o Tenente Coronel André Epifanio
Ferreira Lima de seus escravos José e Luisa á Luis Ribeiro da Cunha
& Sobrinhos, pela quantia ambos de 2:000$000 reis, como abaixo se declara
Saibam quantos esta virem que sendo no Anno do Nas- 5 cimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos setenta e dous,
aos vinte e cinco dias do mez de janeiro, nesta cidade da Fortalesa,
Capital do Ceará, em meu cartorio compareceram perante mim e as
duas testemunhas abaixo assignadas, de uma parte como outorgante
vendedor o Tenente Coronel Andre Epifanio Ferreira Lima, agricultor e 10 morador no termo de Baturite e de outra como outorgados compra-
dores Luis Ribeiro da Cunha & Sobrinhos, negociantes e moradores nesta
mesma cidade, todos bem conhecidos de mim Tabelião, do que
doufe. E pelo outorgante vendedor foi-me dito perante as mesmas
testemunhas que esse é senhor e possuidor dos escravos Jose de 15 vinte e dousannos de idade, e Luisa de desoito, ambos pretos
solteiros, sem officio, e naturais desta Provincia; e porque os pos-
sui livre e desembaraçados de qualquer onus, vende com effectiva-
mente vendido tem por meio deste instrumento aos mencionados
compradores, pelo que digo aos mencionados compradores Luis 20 Ribeiro da Cunha & Sobrinhos, pelo preço e quantia certa ambos de
dous contos de reis, que, em moeda corrente, esse vendedor con-
fessa ja haver recebido dos compradores, pelo que lhe dá plena
e geral quitação de paga, e lhes transfere toda posse, dominio e
senhorio dos referidos escravos, dos quais podem esses compradores 25 tomar conta como seus que são e ficam sendo por bem deste instru-
mento. E logo pelos compradores for dito que aceitam a presente es-
critura nos termos em que está concebida e que ja estão de posse
dos referidos escravo Jose e Luisa. Pagaram os compradores na Sec-
ção de Arrecadação da Thezouraria Provincial desta cidade, a quantia 30 de seiscentos mil reis, conforme o conhecimento que me apresentaram
numero 199 desta data. Depois de feita esta escritura foi por
mim lida perante esses vendedor e compradores, os quais reciprocamen-
te a aceitaram por acharem-n’a como outorgado haviam, e eu Ta-
belião como pessoa publica a outorguei e aceitei em nome dos au- 35 zentes e pessoas a que pertencer possa, sendo testemunhas a tudo pre-
sentes Viriato Ferreira Barreto e Antonio Jose de Britto
que assignaram com os mesmos vendedor compradores e comigo
Joaquim Feijó de Mello Tabelião que escrevi =
[AndreEpifanio Ferreira de Lima] 40 [Luis Ribeiro da Cunha Sobrinhos]
Testemunhas [Viriato Ferreira da Cunha]
[Antonio Jose de Britto]
55
As escrituras de compra e venda de escravos iniciam por uma ementa,
espécie de introdução contendo uma apresentação do gênero textual, o nome do cativo,
seu preço e, na maioria dos documentos, a expressão “como abaixo se declara”, que
funciona como texto introdutório para o protocolo inicial.
No que diz respeito ao aspecto estilístico das escrituras públicas, nota-se que
foram elaboradas em uma linguagem formal. São textos expositivos e descritivos e
apresentam frases padronizadas.
A falta de algum elemento diplomático se explica pela natureza jurídica do
instrumento, pelas especificidades de cada gênero textual e pela época que ele é
produzido. Na escritura de compra e venda de escravos, notamos que a datação vem
explícita no protocolo inicial, quando na maioria dos documentos jurídicos esse
elemento é exposto no protocolo final.
A ausência de algumas características diplomáticas não é um problema,
apenas mostra que os gêneros textuais tinham estruturas diferentes, mesmo sendo
documentos públicos, oficiais. Atualmente, os documentos da esfera pública também
devem respeitar protocolos e apresentarem características diplomáticas, o que não
significa que todos tenham a mesma estrutura.
3.3 ESTUDO LINGUÍSTICO DO TEXTO: O LÉXICO COMO FORMA DE
REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE SOCIAL
Nesta subseção, apresentamos os conhecimentos teóricos sobre léxico e
sociedade, mostrando a relação de interdependência estabelecida entre estes conceitos.
Nesta última parte da seção também apresentamos a análise das lexias encontradas no
corpus, separadas em categorias. Para tanto, apresentamos um quadro por cada
categoria de lexias, constando seu significado, um exemplo do contexto de uso na
escritura com a indicação do fólio em que se localiza e uma edição modernizada do
trecho da escritura para leitura mais fácil do texto. Em sequência, analisamos com quais
sentidos as lexias foram utilizadas.
Estudar o léxico de uma língua é enveredar por um mundo de costumes,
valores, ideologias de um povo, e também de um período histórico e de um espaço
específico. Logo, o estudo lexical é também um estudo sobre a história de uma língua e
da cultura de um povo, de um lugar, de um tempo.
56
Neste trabalho, os estudos do léxico e da cultura caminham juntos, fazemos
uma relação das lexias levantadas nos documentos, sempre relacionando com o contexto
de produção das escrituras de compra e venda de escravos. Antes, vamos visitar alguns
conceitos de cultura e de léxico e a relação entre essas duas áreas.
O conceito de cultura não é unânime, sua definição é sempre revisitada e
atualizada. Raymond Williams (1969), por exemplo, contribuiu bastante para a
compreensão desse conceito. Na obra “Cultura e sociedade”, o autor faz um panorama
das definições distintas atribuídas ao sentido de cultura. Para ele, o conceito de cultura e
a própria palavra surgiram no pensamento inglês, no período da Revolução Industrial.
Nesse olhar histórico, Williams estuda o processo das mudanças que
ocorreram no conceito de cultura e relaciona essas definições às transformações
históricas, seja nas formas de trabalho, na política, nas classes sociais, nas produções
culturais, como a literatura e na arte, entre outras.
Williams dialoga sobre o que seria uma cultura em comum, a qual ele
relaciona a verdadeira democracia à possibilidade de viabilizar o acesso a “todas as
formas” de cultura a todas as pessoas. Para ele:
Uma cultura comum não é, em nenhum nível, uma cultura igual. Mas
pressupõe, sempre, a igualdade do ser, sem a qual a experiência comum não
pode ser valorizada. Uma cultura comum não pode opor restrições absolutas
ao acesso a qualquer das suas atividades: este é o sentido real do princípio de
igualdade de oportunidades. (WILLIAMS, 1969, p. 326)
Apropriando-nos deste conceito, refletimos sobre o momento histórico em
que o Brasil vivia na época de produção das escrituras de compra e venda de escravos,
e refletimos sobre a relação citada por Williams de política e cultura. Interessa-nos
compreender de que maneira as relações de poder eram estabelecidas e como esses
discursos eram formas de manutenção de uma cultura que excluía e escravizava.
Desta forma, com o cuidado de não cometer anacronismo, estamos na
posição de análise de fatos passados e não podemos deixar de adotar uma postura crítica
em nosso estudo, entendendo que essa posição se torna necessária quando podemos
confirmar as reverberações da escravidão no Brasil até os dias atuais, citando o racismo
e outras posições excludentes.
A perpetuação desse tipo de ideia/ação é feita, principalmente, através do
discurso. A língua é cultura, é também um instrumento de transmissão de cultura, de
ideologias, de experiências, de costumes, de comportamentos etc. Fiorin (2003)
57
concorda que “não existe cultura sem língua” e Fonseca (2012) acrescenta que “a língua
forma o espectro mais amplo da constituição do conhecimento de si e do outro”. Ou
seja, a língua é a ponte para conhecer a nós mesmos e o que nos rodeia, incluindo as
experiências de outros. Desta forma, é a responsável por construir os laços entre os
tempos e as ideias.
Biderman (2001) faz uma discussão sobre a dinamicidade da língua,
afirmando que a língua não é um sistema fixo. Um elemento que representa essa
flexibilidade é o léxico, porque apresenta a condição de ser variável e se mostra em
constante mudança. Sobre isso, Biderman afirma que:
O Léxico se expande, se altera e, às vezes, se contrai. As mudanças sociais e
culturais acarretam alterações nos usos vocabulares: daí resulta que unidades
ou setores completos do Léxico podem ser marginalizados, entrar em desuso
e vir a desaparecer. Inversamente, porém, podem ser ressuscitados termos
que voltam à circulação, geralmente com novas conotações. Enfim, novos
vocábulos, ou novas significações de vocábulos já existentes, surgem para
enriquecer o Léxico. (BIDERMAN, 2001, p. 139)
Por meio dos estudos lexicais é possível observar e investigar
cientificamente as unidades léxicas em uso por uma determinada sociedade,
representando as relações culturais de uma época e de uma comunidade. Isso é possível
porque cada lexia remete e carrega especificidades relacionadas ao período histórico em
que ocorre, ao espaço a que pertence, e ao seu uso social e cultural. O léxico carrega em
si as marcas de poder, das ideologias, dos comportamentos sociais que em seu contexto
eram discursos que ditavam leis, legitimavam hierarquias, perpetuavam ideias, algumas
que não são aceitas social e juridicamente, atualmente, como é o caso da escravidão,
abolida há 130 anos, mas que no recorte temporal dos documentos pesquisados aqui, a
escravização dos povos negros era aceita por lei e o léxico também testemunha esse
fato.
“Existem tipos diferentes de léxico de acordo com a situação social, idade e
instrução de cada falante. Assim o léxico é um processo contínuo de aquisição através
de vocabulário ativo (de uso) e passivo (de compreensão)” (CARVALHO, 2009, p. 41).
Desta forma, a aquisição do léxico é sempre contínua, porque o falante assimila novas e
distintas lexias durante toda a sua vida.
O termo lexia, citado pelo linguista francês Bernard Pottier para indicar a
unidade lexical memorizada, se distingue em lexias simples: pedra, siga, chega, ontem;
composta: primeiro-ministro, porta-luvas, saca-rolha; complexa: aquecimento global,
58
máquina de escrever; textual: “Nada como um dia após o outro”. As lexias selecionadas
para este trabalho são simples e compostas, e são analisadas dentro do contexto de
produção das escrituras.
Para não confundir, é preciso fazer uma distinção básica entre os termos
palavra, lexia e vocábulo. Pottier (1976) propõe que a lexia é uma unidade memorizada,
já o vocábulo é a lexia em estado de dicionário e a palavra, a ocorrência no texto. Nesse
trabalho usamos o termo lexia, porque seu conceito está mais próximo do que
desejamos construir como discurso na pesquisa, já que, como confirma Turazza:
(...) a lexia é o elemento oferecido aos interlocutores de uma língua natural
para a construção e detecção de visões de mundo, de ideologias, de sistemas
de valores: o lugar privilegiado das mutabilidades que permite a interação
contínua entre a língua, cultura, ideologia e sociedade. Assim, a lexia não
pode ser concebida como elemento portador de informações unicamente
linguísticas, nem objetos fechados sobre si mesmos, mas como estruturas
potenciais estáveis dentro de certos limites, visto tratar-se de estruturas
duráveis e evolutivas. (TURAZZA, 2005, p. 57)
Levando em conta que “Partindo do estudo do léxico pode-se explicar a
vida de uma sociedade” (CARVALHO, 2009, p. 36), descrevemos os contextos dos
documentos, com base nas lexias neles encontradas, abordando questões linguísticas e
históricas da província cearense nos oitocentos. Com isso, evidenciamos o diálogo entre
léxico, história e cultura.
Para Augusto (2006), a análise do léxico não deve dissociar-se do contexto
discursivo por ele gerado e do contexto sociocultural nele refletido. Procuramos, então,
manter a coerência quanto à análise do gênero textual escritura, os discursos presentes
nos documentos e o contexto em que eles foram produzidos.
Trazemos também contexto histórico do Ceará no século XIX, usando o
léxico empregado no corpus para investigar os termos que remetem à organização
administrativa da província cearense, as expressões que fazem referência ao
funcionamento do comércio de escravos na segunda parte daquele século, das lexias
usadas para caracterizar os sujeitos envolvidos no sistema jurídico que avaliava e
comercializava os escravizados e, desta forma, buscamos traços da história social da
época, do comportamento dos sujeitos do recorte temporal.
Esse estudo destaca o fator social da linguagem, perspectiva que atribui à
língua a função de refletir as práticas da história de uma sociedade. Coseriu (1987)
aborda essa perspectiva quando desenvolve o conceito de norma dentro da
59
Sociolinguística. Ao trazer para a Linguística o conceito de norma, Coseriu mostra que
o fator social não interfere apenas individualmente na realização linguística do falante,
mas coletivamente, nos usos dos grupos sociais.
Desta forma, a língua é um construto histórico-social e coletivo, tornando
comum o que determinada comunidade vivenciou linguisticamente. É, portanto, a
responsável por conduzir as experiências, os valores, as crenças e todas as práticas
sociais da comunidade que a usa, tanto no contexto de uso quanto para gerações futuras.
Por meio da leitura do nosso corpus é possível refletir sobre os discursos
desses documentos, quem eram os produtores desses textos e que lugar na sociedade da
época eles ocupavam. Nas escrituras, é predominante o discurso do tabelião e do
escrivão, revelando os sujeitos que detinham certos privilégios, como o da escrita. As
testemunhas, os vendedores e os compradores são indivíduos nomeados e positivamente
caracterizados nos documentos. Os sujeitos escravizados, no entanto, são classificados
enquanto bens materiais postos à comercialização, ou seja, esses indivíduos não têm seu
discurso exposto, já que são tratados como objetos.
É preciso, portanto, compreender quem tem o poder da palavra, da escrita.
Desta forma, entendemos que um lado da história foi silenciado, e as informações são
incompletas. Este estudo não pretende completar esses vazios, mas levantar hipóteses e
trazer uma problematização desse contexto que escravizava mulheres, homens e
crianças, analisando que discursos legitimavam essa ideologia e que leis e sujeitos
davam o suporte para concretização do comércio de cativos.
As lexias coletadas estão distribuídas em quatro categorias: 01. Elementos
que compõem o documento; 02. Locais citados nas escrituras; 03. Sujeitos envolvidos
no documento; 04. Caracterização dos sujeitos citados nos documentos. Dividimos as
categorias em quadros que constam da lexia e sua descrição, contexto de uso, com um
trecho da escritura em que a lexia selecionada é citada, e uma edição modernizada do
trecho retirado para contextualizar a escritura.
Selecionamos alguns dicionários de diferentes fases da língua portuguesa
para este estudo, devidamente identificados abaixo de acordo com seu ano de
publicação:
60
Quadro 5 - Dicionários usados para pesquisa dos significados das lexias.
Título Autor Ano
Diccionario da Lingua Portugueza
Antonio de Moraes Silva
1789
Grande Dicionário Portuguez ou
Thesouro da Lingua Portuguesa
Dr. Frei Domingos Vieira
1873
Novo Diccionário da Língua
Portuguesa
Candido de Figueiredo
1913
Diccionario da Lingua Brasileira
Luiz Maria da Silva Pinto
1832
Vocabulario Portuguez & Latino
Raphael Bluteau
1728
Fonte: elaborada pela autora a partir dos dicionários selecionados para a análise.
A escolha dos dicionários se deu, principalmente, pela variedade de
informações, visto que essas produções datam de diferentes períodos da língua
portuguesa e, também, pertencem a contextos anteriores ou ao mesmo recorte temporal
dos documentos aqui analisados. Não usamos somente dicionários, outras fontes serão
citadas na descrição das lexias, já que alguns remetem a instituições e órgãos públicos
que não encontramos em dicionários.
As lexias identificadas e as unidades que as integram serão dispostas em
quadros separados pelas categorias. Descrevendo os significados que as lexias foram
empregadas nos documentos, comentamos o que estas nos permitem conhecer acerca do
sistema econômico e social de escravidão ocorrido no Ceará nos oitocentos.
Quadro 6 - Categoria 01, Elementos que compõem o documento.
Lexia Descrição Contexto de uso Edição modernizada
Escritura
“Documento diplomático,
testemunhal de assentamento,
notarial. Registro autêntico de um
contrato ou de uma transação feito
por um oficial notarial”
(BELLOTTO, 2002, p. 67). No caso
das escrituras de compra e venda de
escravos o oficial notarial é o tabelião
e o documento oficializa a venda de
um ou mais escravizados.
“Escritura de venda de uma
escrava de nome Josefa que
á Tito...” (fl.1r)
“Escritura de venda de
uma escrava de nome
Josefa que a Tito...”
(fl.1r).
Rubrica “Assinatura em cifra, do nome não
escrito por extenso” (MORAES
SILVA, 1789, p. 648). Nas escrituras
aqui analisadas temos a rubrica do
“E vai numerado e
rubricado em todas as suas
folhas com a rubrica = JB
deVasconcellos = de que
“E vai numerado e
rubricado em todas as
suas folhas com a
rubrica = JB de
61
Juiz de Direito em todos os fólios
rectos conferindo autenticidade ao
documento.
uso” (termo de abertura do
livro)
Vasconcellos = de que
uso” (termo de
abertura do livro).
Instrumento
No caso das escrituras de compra e
venda de escravos a lexia é usada
como sinônimo de escritura. Moraes
Silva (1789, p. 168) também atribui o
significado de “Acta, auto, escritura
authentica, que serve de provar
alguma coisa em Juizo”.
“Vende como
effectivamente vendido
tem por meio deste
instrumento do
mencionado comprador
Galdino Caminha” (fl.21v)
“Vende como
efetivamente vendido
tem por meio deste
instrumento do
mencionado
comprador Galdino
Caminha” (fl.21v).
Procuração
“Documento diplomático
informativo, notarial. Instrumento
pelo qual uma pessoa recebe de
outros poderes para, em nome delas,
praticar atos ou administrar bens”
(BELLOTTO, 2002, p. 80). Algumas
escrituras de compra e venda de
cativos apresentam uma procuração
anexada.
“Pelo procurador do
vendedor foi-me
apresentada respectiva
procuração que é do teor
seguinte: Saibam quantos
este publico instrumento de
procuraçaõ (...)” (fl.22v)
“Pelo procurador do
vendedor foi me
apresentada respectiva
procuração que é do
teor seguinte: Saibam
quantos este público
instrumento de
procuração (...)”
(fl.22v).
Selo
“O signal que se põe em alguma
escritura, impresso em obreia, ou
lacre” (Silva Pinto, 1832, p. 122).
Nas escrituras o selo aparece no fim
do texto, abaixo ou em cima das
assinaturas. Alguns estão descolados
dos documentos, soltos no livro. É
importante destacar que esse
elemento corresponde a um dos
principais responsáveis por oferecer
autenticidade ao documento.
“Pagou o comprador o
sello devido de dous mil
reis em estampilhas, que
foram por mim
inutilisadas.” (fl.3r)
“Pagou o comprador o
selo devido de dois
mil reis em
estampilhas, que
foram por mim
inutilizadas.” (fl.3r).
Estampilha
As estampilhas eram usadas em
diversos meios de pagamento. Por lei
150/99, de 11 de setembro, que
estabeleceu o regulamento do
imposto de selo, foram abolidas as
estampilhas fiscais.
“Pagou e comprador o sello
devido de um mil reis em
estampilha que for por mim
inutilisada; assim mais
pagou na secçaõ de
arrecadaçaõ da Thezouraria
Provincial.” (fl.2v)
“Pagou e comprador o
selo devido de um mil
reis em estampilha
que for por mim
inutilizada; assim
mais pagou na seção
de arrecadação da
Thezouraria
Provincial.” (fl.2v).
Moeda
(corrente)
“Peça de metal ou de outra
substância, cunhada por autoridade
soberana, e representativa do valor
dos objetos que por ela se trocam”
(FIGUEIREDO, 1913, p. 1324). Réis
(singular: real) era a moeda corrente
no Brasil desde os tempos coloniais,
sendo substituída pelo cruzeiro em
1942.
“Em moeda corrente ele
vendedor confessa ja haver
recebido da mão do
comprador” (fl.4r)
“Em moeda corrente
ele vendedor confessa
já haver recebido da
mão do comprador”
(fl.4r).
Fonte: elaborado pela autora.
A escritura é o gênero textual analisado na pesquisa, documento público,
“auto athentico de qualquer contrato, feito com certas solemnidades” (Silva Pinto,
1832). No recorte temporal em que as escrituras de compra e venda de escravos foram
produzidas, a escritura era o documento que estabelecia os contratos de compra, venda e
doações. Era lavrada em cartório por um agente público, configurada, portanto, como
62
ato público. Desde a abolição da escravidão no Brasil, as escrituras de compra e venda
de escravos caíram em desuso. No entanto, o gênero escritura está em uso atualmente
como documento que formaliza juridicamente ações de compra, venda, permutas,
inventários, divórcios etc.
Nos documentos analisados a lexia instrumento funciona como sinônimo de
escritura. Em Moraes Silva (1789), instrumento significa “acta, auto, escritura
authentica, que serve de provar alguma coisa em Juizo”. Levando em conta que na
época da escrita do documento não havia um sistema de regras sobre os elementos
textuais, uma hipótese para o uso de sinônimos nas escrituras é a preocupação em não
repetir termos e aprimorar a leitura do texto.
A lexia selo se refere ao “signal que se põe em alguma escritura, impresso
em obreia, ou lacre” (Silva Pinto, 1832). Esse sinal servia para comprovar o pagamento
do imposto do selo, tributo cobrado pelo papel utilizado para o registro do documento.
Atualmente, os cartórios e outras instituições públicas e privadas usam o selo para
autenticar, fechar inviolavelmente e/ou marcar uma propriedade. Um exemplo de selo
usado como identificação oficial é o Selo Nacional, utilizado para autenticar
documentos oficiais e atos do governo. É usado também para autenticar diplomas e
certificados emitidos por unidades de ensino reconhecidas, provando que algumas ações
são verdadeiras tradições que resistem ao tempo e às mudanças sociais.
Outro elemento jurídico usado nas escrituras para oficializar a ação que
permanece até os dias atuais como meio de formalizar atos é a rubrica. O termo
significa uma forma de assinatura abreviada e, assim como a assinatura, é um
mecanismo de identificação pessoal utilizado no meio jurídico em diversas ocasiões
para dar garantia ao documento que está sendo assinado. Um contrato com diversas
páginas, por exemplo, deve ser assinado apenas na última folha e rubricado nas páginas
iniciais. No corpus, a assinatura se encontra no termo de abertura e as rubricas constam
nos fólios, no canto direito da parte superior.
Por moeda corrente, entende-se o dinheiro em circulação no país, seja
moeda e/ou células, emitido para ser usado como meio de pagamento. No Brasil,
durante o Império, o sistema monetário adotado era os réis, definido por Moraes Silva
(1789) como “a ultima especie de moeda, e ideal, em que se resolve o dinheiro, e de que
usamos no nosso modo de contas: vinte réis”. Silva Pinto (1832) assinala que réis, um
substantivo feminino utilizado em sua forma plural, é “contractação de reaes plural do
subst. Real”.
63
Na categoria 01, destacamos os elementos que dão autenticidade ao
documento e que oficializam a comercialização. Desta forma, percebemos como o
sistema de compra e venda de cativos funcionava no mesmo contexto de outras
transações públicas de comércios, como as de imóveis, móveis etc. Isso nos mostra no
contexto de produção dos textos, as relações históricas e sociais em que o negro
escravizado é um objeto, uma coisa pertencente a alguém, a um proprietário que repassa
para outrem por meio de um documento público reconhecido em cartório.
Quadro 7 - Categoria 02, Locais citados nas escrituras.
Lexia Descrição Contexto de uso Edição
modernizada
Freguesia
A freguesia é uma designação
portuguesa para o termo paróquia
como é conhecido atualmente. É um
território submetido à jurisdição
eclesiástica de um pároco que
também exerce a administração civil.
No Império do Brasil, as autoridades
das freguesias organizavam as
“eleições de paróquia”, as quais
escolhiam os eleitores que votavam
nas eleições provinciais e nacionais.
“Natural da Freguezia de
Santa Quiteria; e porque
o possui livre e
desembaraçado de
qualquer onus, vende
como effectivamente
vendido” (fl.3v)
“Natural da
Freguesia de Santa
Quitéria; e porque
o possui livre e
desembaraçado de
qualquer ônus,
vende como
efetivamente
vendido” (fl.3v).
Comarca
O termo comarca compreende a uma
divisão jurídica político-
administrativa que se encerra a
jurisdição de um Juiz de Direito. Em
geral, em Portugal, o que definia
uma comarca era a jurisdição de um
corregedor. No Brasil, a figura que
correspondia ao corregedor era o
ouvidor.
“Nesta Vila da
Independencia, Comarca
do Principe Imperial,
Provincia do Piauhy em
meu cartório.” (fl.10r)
“Nesta Vila da
Independência,
Comarca do
Príncipe Imperial,
Província do Piauí
em meu cartório.”
(fl.10r).
Província
Era uma antiga divisão político-
administrativa do Brasil que foi
substituída pelo atual que é o estado.
As capitanias brasileiras tornaram-se
províncias em 28 de fevereiro de
1821. A Constituição de 1824 não
alterou nenhuma das divisões entre
províncias, o que ocorreu nas
décadas posteriores. Com o advento
da República, em 1889, as
províncias passaram à atual
denominação de estados.
“Uma escrava de nome
Alexandrina, parda, de
vinte e dousannos de
idade, solteira, sem
officio e natural desta
Provincia” (fl.2v)
“Uma escrava de
nome Alexandrina,
parda, de vinte e
dois anos de idade,
solteira, sem ofício
e natural desta
Província” (fl.2v).
Cidade
“Povoação de graduação superior ás
vilas, ou concelhos, e povoações
grandes.” (MORAES SILVA, 1789,
p. 464).
“Morador nesta mesma
cidade, ambos
negociantes e bem
conhecidos de mim
Tabelião, de que dou fe.”
(fl.4r)
“Morador nesta
mesma cidade,
ambos negociantes
e bem conhecidos
de mim Tabelião,
de que dou fé.
(fl.4r).
“Casa onde se guardam cartas, e
notas públicas, títulos e papeis. Casa
de Tabelião, e de escrivão. Livros e
“Nesta cidade da
Fortalesa, Capital do
Ceará, em meu cartório
“Nesta cidade da
Fortaleza, Capital
do Ceará, em meu
64
Cartório assentos e mais papeis.” (MORAES
SILVA, 1789, p. 419). Nas
escrituras, um dos locais onde era
realizada a efetivação da compra e
venda dos cativos.
compareceram perante
mim e de duas
testemunhas assignadas”
(fl.4r)
cartório
compareceram
perante mim e de
duas testemunhas
assignadas” (fl.4r).
Vila
No contexto de produção dos
documentos, o termo vila também
designa uma organização político-
jurídica e administrativa que exerce
o poder sobre determinada
população. “Povoação, de categoria
inferior á de cidade e superior á de
aldeia” (FIGUEIREDO, 1913, p.
2087)
“Proprietario e morador
na Villa de Maria
Pereira, e apresentou as
procurações que vaõ
abaixo transcripta;”
(fl.11r)
“Proprietário e
morador na Villa
de Maria Pereira, e
apresentou as
procurações que
vão abaixo
transcritas”
(fl.11r).
Termo
É uma extensão territorial que
pertence a uma Vila. “Termo da
Villa ou cidade, o espaço a que
abrange a jurisdição dos seus juízes.”
(VIEIRA, 1871, p. 768).
“Comprador Jose
Correia dos Santos,
criador e morador no
termo de Aracaty todos
reconhecidos pelos
proprios por mim
Tabeliaõ” (fl.2r)
“Comprador Jose
Correia dos
Santos, criador e
morador no termo
de Aracati todos
reconhecidos pelos
próprios e por mim
Tabelião” (fl.2r).
Tesouraria
“Casa ou lugar, onde se guarda ou
administra o thesoiro público.
Repartição, onde funciona o
thesoireiro. Escritório de companhia
ou casa bancária, em que se realizam
transações monetárias.”
(FIGUEIREDO, 1913, p. 1970)
“Pagou o comprador o
sello devido de um mil
reis em estampilha que
foi por mim inutilisada,
assim mais pagou na
secção de arrecadação da
Thezouraria Provincial”
(fl.4v)
“Pagou o
comprador o selo
devido de um mil
reis em estampilha
que foi por mim
inutilizada, assim
mais pagou na
seção de
arrecadação da
Tesouraria
Provincial” (fl.4v).
Casa de
morada
Lugar “onde habita gente, morada,
habitação, prédio” (MORAES
SILVA, 1789, p. 420). Nos
documentos analisados aqui, casa de
morada faz referência à casa dos
negociantes que eram produzidas as
escrituras, mostrando que alguns
negociantes tinha o privilégio de não
precisar ir ao cartório.
“Nesta cidade da
Fortaleza, Capital do
Ceará, em casa de
morada de Dona Rosa
Candida de Figueiredo,
onde vim eu Tabelião á
chamado” (fl.12r)
“Nesta cidade da
Fortaleza, Capital
do Ceará, em casa
de morada de
Dona Rosa
Cândida de
Figueiredo, aonde
vim eu Tabelião á
chamado” (fl.12r).
Coletoria
“Lugar, onde se pagam os
impostos.” (FIGUEIREDO, 1913, p.
474)
“Pelo vendedor foi
apresentada certidão da
Collectoria da Telha, de
não estar matriculado o
escravinho vendido, por
morar fora dos limites da
Villa” (fl.80r)
“Pelo vendedor foi
apresentada
certidão da
Coletoria da Telha,
de não estar
matriculado o
escravinho
vendido, por morar
fora dos limites da
Vila” (fl.80r).
Município
“Cada uma das circunscrições
territoriais, em que se exerce a
jurisdição de uma vereação.”
(FIGUEIREDO, 1913, p. 1359)
“1ª Capitania da Secçaõ
da Guarda Nacional de
Reserva do Municipio de
Baturité, por nomeação
legal 11.” (fl.6v)
“1ª Capitania da
Seção da Guarda
Nacional de
Reserva do
Município de
Baturité, por
nomeação legal
11.” (fl.6v).
65
Distrito
Compreende uma povoação que
ainda não tem a autonomia de cidade
e que pertence a um território de um
município.
“Distrito na cidade de
Baturite em meu cartorio
compareceu Jose
Antonio Pereira e as
testemunhas abaixo
assignadas, no que dou
fe” (fl.22v)
“Distrito na cidade
de Baturité em
meu cartório
compareceu José
Antônio Pereira e
as testemunhas
abaixo assignadas,
no que dou fé”
(fl.22v).
Fonte: elaborado pela autora.
Nesta segunda categoria intitulada locais citados nos documentos,
separamos as localizações encontradas nas escrituras que têm relação com a transação
comercial.
As lexias cartório, casa de morada, thezouraria e collectoria estão ligadas
diretamente à comercialização dos cativos, pois tratam-se dos espaços de escrita e
oficialização do documento. A collectoria é o órgão governamental de arrecadação de
tributos; onde se pagam as coletas e os impostos. No caso das escrituras, a Coletoria
emite uma certidão de comprovação caso o cativo não esteja matriculado. Esta ação
ocorre após o pagamento da compra, como mostramos a seguir:
Pagou o comprador na Secção de arrecadação da Thezouraria Provincial
trinta mil reis de imposto, conforme o conhecimento que apresentou numero
1313 d’esta data. Pelo vendedor foi apresentada certidão da Collectoria da
Telha, de não estar matriculado o escravinho vendido, por morar fora dos
limites da Villa. (fl.79r)
A lexia Thezouraria faz referência à repartição pública responsável por
fiscalizar a renda e os impostos da comercialização do cativo, como mostramos no
exemplo:
E logo pelos compradores foi dito que aceita esta escritura de venda nos
termos em que está concebida e que ja estão de posse da predita escrava
Gonçala. Pagaram os compradores na secção de arrecadação da Thezouraria
Provincial trinta mil reis de imposto, conforme o conhecimento que
apresentaram, numero 1351 de data de 7 do corrente. (fl.79r)
As Tesourarias das Províncias, também conhecidas como Tesourarias da
Fazenda tinham como finalidades a administração, a arrecadação, a distribuição, a
contabilidade e a fiscalização de todas as rendas públicas da província respectiva. Com
o advento do regime republicano, as tesourarias da Fazenda e coletorias foram extintas
pela lei n. 23, de 30 de outubro de 1891, que reorganizou toda a administração federal.
66
A lexia cartório faz referência direta ao Cartório de Fortaleza, que tem
como responsável pelo expediente o 1º Tabelião Joaquim Feijó de Mello, como
mostramos no trecho a seguir:
Saibam quantos esta virem que sendo no anno do Nascimento de Nosso
Senhor Jesus Christo, de mil oitocentos setenta, aos deseseis dias do mez de
novembro, nesta cidade da Fortaleza, capital da Fortalesa, capital da
Provincia do Ceará, em meu cartorio compareceram perante mim e de duas
testemunhas abaixo assignadas. (fl.1v)
No entanto, algumas transações não foram feitas no cartório, mas na casa de
morada do negociante que, por algum motivo, não podia comparecer ao cartório. Desta
forma, o tabelião e as testemunhas iam até a residência para preparar a documentação de
compra e venda, como no exemplo abaixo:
Saibam quanto esta virem que sendo no anno do Nascimento de Nosso
Senhor Jesus Christo de mil oitocentas setenta e um, dos vinte sete dias do
mez de abril, nesta cidade da Fortaleza, capital do Ceará, em casa de morada
de Dona Mariana Caetana de Abreu, onde vim eu Tabeliaõ á chamado.
(fl.16r)
Atualmente, essa ação ainda é permitida. O tabelião de notas pode praticar
atos notariais fora de seu cartório. Escrituras, procurações, atas notariais, testamentos e
o que mais necessário for e que seja de competência do tabelião pode ser praticado em
diligência, na residência ou local de trabalho das partes interessadas, desde que o
tabelião ou seu preposto não ultrapasse os limites territoriais do município para o qual
recebeu a delegação segundo o art. 9º da Lei 8935/94.
Nas escrituras de compra e venda de escravos, notamos que as transações
comerciais efetuadas nas casas de morada são, em sua maioria, em casas de mulheres,
algumas descritas como viúvas. Foram 10 casos de compradoras ou vendedoras
mulheres em que o tabelião e as testemunhas vão até as suas residências para realizar a
comercialização. Há também dois capitães e dois coronéis que necessitam do serviço
domiciliar. A causa não é descrita na escritura, mas levantamos algumas hipóteses,
como caso de doença, velhice e, no caso das mulheres, o fato de que, na época, a vida
pública era mais acessível aos homens, mesmo se tratando de mulheres com
propriedades, estas viviam mais a vida privada. Portanto, lugares públicos eram mais
frequentados por homens.
67
Para compreender melhor as lexias citadas, a seguir, é importante
entendermos a organização administrativa do Brasil nos oitocentos. As províncias eram
divididas em municípios que por sua vez eram divididos em freguesias. As freguesias
correspondiam às paróquias e os bispos comandavam as dioceses, típica organização
administrativa eclesiástica que abrangiam geralmente diversos municípios, ou seja,
diversas freguesias. Nas escrituras, as freguesias como a de Santa Quitéria, Lavras,
Maranguape, Quixeramobim, Icó, Inhamuns, Jaguaribe Mirim, Missão Nova, Ipús,
Cascavel, Assaré, Tamboril, Imperatriz, Príncipe Imperial, Quixadá, Aracaru,
Sant’Anna, Aracati, Arneirós, Maria Pereira, Franga, Independência e Marrão
(Província do Piauí), Sobral, Milagres, São Bernardo, Telha, Saboeiro e Aquiraz são
citadas como local de origem do cativo comercializado.
As freguesias citadas acima faziam parte de municípios que, segundo Silva
& Alencar (2015, p. 60) eram numerosos no período imperial: “(...) foram instaladas no
Ceará 48 novas vilas desmembradas das 16 células administrativas originais da colônia,
somando um total de 64 municípios”. Nas escrituras, alguns cativos também tinham
suas origens descritas como villas, que são as unidades territoriais menores e com
relativa autonomia administrativa. São citadas, por exemplo, a vila de Canindé, Vila de
Santo Antônio da Barbalha, entre outras.
Sobre essa divisão político-administrativa, acrescentamos mais duas lexias
citadas nas escrituras que selecionamos na categoria locais: província, comarca e termo.
O território brasileiro estava dividido em províncias e essas se estruturavam em
limitações menores, as comarcas. Em Houaiss e Villar (2009), consta que o termo
comarca significa uma divisão territorial para fins jurídicos que está sob o poder legal
de juízes de direito.
Destacamos também a lexia termo, que corresponde a toda a extensão
territorial pertencente a uma vila, incluindo-se nela a sede da vila. Para ilustrar essa
divisão, destacamos o fólio 98v, em que a transação ocorre “n’esta Villa da Uniaõ,
termo da cidade do Aracaty, Provincia do Ceará”. Nesta descrição, temos as lexias villa,
termo e província.
Outra lexia presente nas escrituras é districto, definido em Moraes Silva
(1789) como “extensão, espaço de terreno dentro de certos limites, sujeita a certos
Magistrados, Prelados, Juízes”. No contexto administrativo da época, os distritos
estavam dentro dos limites territoriais das vilas ou cidades, que mesmo possuindo
sentidos semelhantes, apresentam um fator que diferencia as duas lexias. A cidade
68
apresenta um povoado de maiores proporções comparada às vilas. Nas escrituras, alguns
distritos foram citados na descrição do local de origem dos envolvidos na transação. A
saber: distrito de Marrecas, distrito de Mecejana/Messejana, distrito de Arneirós, distrito
do Acarape, distrito do Brejo Grande e distrito do Ibeassu.
Algumas lexias diferentes são usadas para destacar o mesmo local, como
cidade e vila, mostrando que por ser um momento de transição e mudança na
administração alguns elementos não são fixos, mesmo se tratando de um documento
oficial.
É possível observar a grande quantidade de cidades, vilas, distritos,
comarcas citadas nas escrituras, apontando para o fluxo dinâmico das transações que
ocorriam entre todas as regiões. O recorte de tempo dos documentos analisados é curto,
apenas três anos, no entanto, constatamos um grande número de regiões e sujeitos
citados nas escrituras.
Quadro 8 - Categoria 03, Sujeitos envolvidos no documento.
Lexia Descrição Contexto de uso Edição modernizada
Escravo (a)
“Cativo, reduzido à escravidão;
que está sem liberdade, sob o
domínio absoluto de um senhor,
assim chamado pela perfídia
humana.”; Escrava: “Mulher
cativa, que não é livre, que tem
um senhor” (MORAES SILVA,
1789, p. 815).
Na escravidão brasileira, mais
que privados de liberdade, esses
sujeitos eram vistos como
mercadorias passíveis dos mais
diversos negócios e direcionados
às funções escolhidas pelos seus
proprietários. Seus corpos, suas
vontades, suas relações afetivas,
eram violadas e limitadas.
Entretanto, no perfil do
escravizado do século XIX,
acrescentamos as vontades e
ações desses sujeitos em busca
da emancipação plena.
“Nomeado é senhor e
possuidor de um escravo
de nome Bazilio, preto,
de desoito annos de
idade, solteiro, sem
officio, e natural da
freguezia de Jaguaribe
Mirim” (fl.25v)
“Nomeado é senhor e
possuidor de um escravo
de nome Basílio, preto, de
dezoito anos de idade,
solteiro, sem ofício, e
natural da freguesia de
Jaguaribe Mirim” (fl.25v).
Comprador
O que compra para si, ou para
outrem, por sua conta ou por
conta alheia. (MORAES SILVA,
1789, p. 501).
“Como outorgado
comprador Jacob Cahn,
morador nesta cidade”
(fl.4v)
“Como outorgado
comprador Jacob Cahn,
morador nesta cidade”
(fl.4v).
Vendedor
“O que vende.” (FIGUEIREDO,
1913, p. 2072). Os negociantes
de escravos, comprando ou
vendendo, tratavam esse tipo de
comercialização como faziam
“E pelo procurador do
outorgante vendedor foi-
me dito perante as
mesmas
testemunhas.”(fl.10r)
“E pelo procurador do
outorgante vendedor foi
me dito perante as mesmas
testemunhas.” (fl.10r).
69
com os demais produtos que
negociavam, seja açúcar,
algodão, etc. priorizavam os
lucros.
Procurador
“Indivíduo, que tem procuração
para tratar negócios de outrem.
Interventor; mediador.
Administrador.” (FIGUEIREDO,
1913, p. 1640).
“Como procuradores do
outorgante vendedor
Bonifacio Texeira da
Costa, proprietario e
morador na Vila de
Maria Pereira” (fl.11r)
“Como procuradores do
outorgante vendedor
Bonifácio Teixeira da
Costa, proprietário e
morador na Vila de Maria
Pereira” (fl.11r).
Tabelião
“Notário, funcionário público
que faz escrituras e outros
instrumentos jurídicos, que
reconhece assinaturas, etc.”
(FIGUEIREDO, 1913, p. 1924).
“E eu Tabeliaõ como
pessoa publica a
outorguei e aceitei em
nome dos auzentes e
pessoas” (fl.11r)
“E eu Tabelião como
pessoa publica a outorguei
e aceitei em nome dos
ausentes e pessoas”
(fl.11r).
Testemunha
“Pessoa, que é chamada a assistir
a certos atos autênticos ou
solenes. Pessoa, que ouviu ou viu
alguma coisa. Pessoa, que dá
testemunho do que viu ou
ouviu.” (FIGUEIREDO, 1913, p.
1962).
“Sendo testemunhas a
tudo presentes Manoel da
Rocha Motta Junior e
Vicente Ferreira Barreto,
que assignaram com os
mesmos procuradores do
vendedor, comprador e
comigo Joaquim Feijó de
Mello Tabeliaõ que
escrevi.” (fl.12r)
“Sendo testemunhas a tudo
presentes Manoel da
Rocha Motia Junior e
Vicente Ferreira Barreto,
que assignaram com os
mesmos procuradores do
vendedor, comprador e
comigo Joaquim Feijó de
Mello Tabelião que
escrevi.” (fl.12r).
Escrivão
“Empregado de justiça, que
escreve os atos d’ante algum
magistrado, ou tribunal, etc.”
(MORAES SILVA, 1789, p.
816).
“Em Pedro Monteiro
Gondim Escrivão
Interino do juiz de Paz eu
subscrevi e assignei em
publico e raso seguinte
de que uso.” (fl.16v)
“Em Pedro Monteiro
Gondim, Escrivão Interino
do juiz de Paz, eu
subscrevi e assignei em
público e raso seguinte de
que uso.” (fl.16v).
Fonte: elaborado pela autora.
No caso das escrituras, todas as transações de posses constavam de alguém
que transferia sua posse, chamado de vendedor ou vendedora, enquanto aquele que
pagava por esses direitos era o comprador ou compradora. Entre essa troca de bens está
o sujeito escravizado, tratado nessa transação como peça, objeto, produto passível de
comércio. Colocado como propriedade de um senhor, não possui nenhum direito sobre
ele mesmo e sobre sua força de trabalho. No texto das escrituras percebemos que o
cativo não participava da transação, não opinava, não tinha nenhuma posição para
questionar preços, condições de vida com o novo senhor.
Analisando as lexias testemunha e procurador, a primeira refere-se à
“pessoa que assegura a verdade do ato ou fato que se quer provar”, segundo o
Dicionário Jurídico (SANTOS, 2001, p. 240) As testemunhas tinham apenas seu nome
registrado, sem a descrição de um perfil. No entanto, há um padrão observado em todas
as 174 escrituras analisadas: duas pessoas por escritura, sendo todas do sexo masculino.
A testemunha era uma figura imprescindível nas transações comerciais, pois
70
correspondia a um fator obrigatório para a validação pública da documentação. Nas
escrituras todas as testemunhas foram nomeadas na tessitura dos documentos e, ao final,
assinaram os registros, conforme mostramos neste exemplo:
Luis Rodrigues Samico Sobrinho que assignaram com os ditos procuradores
e comigo Joaquim Feijó de Mello Tabelião que escrevi Francisco Joaquim da
Rocha Jose Tavares de Miranda Maciel Viriato Ferreira Barreto Luis
Rodrigues Samico Sobrinho (fl. 45r)
O procurador representava “aquelle que em virtude da procuração de
alguem trata dos negócios delle em teu nome” (BLUTEAU, 1728). Desta forma, sua
presença na transação não era obrigatória, ele aparecia na falta de uma das partes. Ou
seja, quando o vendedor ou comprador não podia comparecer ao cartório, era necessária
a presença de um procurador para assinar o documento e ficar ciente de que a
comercialização desejada foi oficializada.
Analisamos também as lexias tabelião e escrivão, que correspondem a
importantes figuras na transação. O escrivão era um “funcionário que relata por escrito
os atos que se processam perante a autoridade pública de que é auxiliar” (HOUAISS e
VILLAR, 2009). Essa função era necessária nos serviços administrativos da época, bem
como o tabelião, que para Moraes Silva (1789), é o “oficial publico que faz as
escrituras, e instrumentos em que se requer authenticidade legal, e conserva os traslados
delas, nas notas; reconhece os sinaes etc.” O tabelião dava condição de registro público
aos documentos.
No século XIX, ler e escrever ainda eram considerados privilégios de
pessoas tradicionalmente ligadas ao saber e ao poder da escrita, como os religiosos, os
intelectuais e alguns profissionais, como os tabeliães e escrivães. Esses profissionais
possuíam o poder da escrita, de emitir e oficializar discursos, posições que, na época,
eram muito valorizadas. Portanto, os tabeliães e escrivães eram figuras respeitadas em
sociedade.
Em todas as escrituras podemos encontrar o tabelião responsável pelo
cartório Joaquim Feijó de Mello e em um caso o tabelião interino Miguel Francisco
Bastos Segundo, que corresponde a um cargo provisório.
Quadro 9 - Categoria 04, Caracterização dos sujeitos citados nos documentos.
Lexia Descrição Contexto de uso Edição modernizada
Crioulo (a) Era o negro nascido no Brasil. “Seu escravo de nome “Seu escravo de nome
71
(FAUSTO, 2013, p. 62). Termo
usado para designar escravos.
Há certa confusão na caracterização
dos sujeitos negros, escravos,
crioulos nas escrituras, o que dificulta
uma definição mais precisa.
Ambrozio, crioulo, de
vinte e dousannos de
idade, para o que lhe
concede aos ditos seus
procuradores todos
poderes” (fl.38r)
Ambrósio, crioulo, de
vinte e dois anos de
idade, para o que lhe
concede aos ditos seus
procuradores todos os
poderes” (fl.38r).
Livre
No contexto de produção das
escrituras, a lexia livre designava
pessoas que nunca foram
escravizadas. Livre é diferente de
liberto, lexia que designa a pessoa
que foi escravizada, mas liberta.
“Possuidor dos escravos
de nomes Veneranda,
parda, de vinte e sete
annos de idade, casada
com homem livre e do
qual vive separada e sem
officio (...)”(fl.89r)
“Possuidor dos escravos
de nomes Veneranda,
parda, de vinte e sete
anos de idade, casada
com homem livre e do
qual vive separada e sem
ofício (...)” (fl.89r).
Pardo (a)
“Que tem cor intermédia a preto e
branco, quase escuro. O mesmo que
mulato” (FIGUEIREDO, 1913, p.
1496).
“Escravo de nome
Reynaldo, pardo, de
trinta e cinco annos de
idade, solteiro, sem
officio.” (fl.2r)
“Escravo de nome
Reynaldo, pardo, de
trinta e cinco anos de
idade, solteiro, sem
ofício.” (fl.2r).
Mulato (a)
“Aquele que procede de pai branco e
mãe preta ou vice versa”
(FIGUEIREDO, 1913, p. 1355).
“O escravinho de nome
Luis, mulato, de sete
annos de idade, e natural
desta freguesia,
assignando a competente
escritura” (fl.11v)
“O escravinho de nome
Luís, mulato, de sete
anos de idade, e natural
desta freguesia,
assinando a competente
escritura” (fl.11v).
Caboclo (a)
“Aqueles descritos comumente como
sendo descendentes de índios e
europeus. Nesse contexto do Ceará
do século XIX talvez esses escravos
fossem indígenas de fato, ou
descendessem da mistura afro-
ameríndia”. (ASSUNÇÃO, 2002)
“Vender ou forrar o
escravinho d’esse
outorgante de nome
Izidro de oito a nove
annos, caboclo (...)”
fl.71r
“Vender ou forrar o
escravinho desse
outorgante de nome
Izidro de oito a nove
anos, caboclo (...)”
(fl.71r).
Acaboclado (a)
“Que tem origem, corou feições de
caboclo” (FIGUEIREDO, 1913, p.
14).
“É senhora e possuidora
do escravo de nome
Manoel, acaboclado, de
16 annos de idade”
(fl.59v)
“É senhora e possuidora
do escravo de nome
Manoel, acaboclado, de
16 anos de idade”
(fl.59v).
Fulo (a)
“Diz-se dos pretos, cuja cor é tirante
a amarelo” (FIGUEIREDO, 1913, p.
925).
“De uma filha desta de
nome Josefa, de cor fula,
de oito annos de idade”
(fl.4r)
“De uma filha desta de
nome Josefa, de cor fula,
de oito anos de idade”
(fl.4r).
Cabra
É um mestiço indefinido de negro,
índio ou branco, o de pele morena.
“Aos quais dá poderes
especiais para vender a
escrava Maria, cor cabra,
de vinte e dois annos de
idade, solteira, sem
officio.” (fl.11r)
“Aos quais dá poderes
especiais para vender a
escrava Maria, cor cabra,
de vinte e dois anos de
idade, solteira, sem
ofício.” (fl.11r).
Preto (a) Pessoa de pele escura, nascida ou não
em país africano, escravizado ou
livre. Nas escrituras analisadas, esse
termo é usado para designar sujeitos
escravizados.
“Escravo de nome
Marcelino, preto, de
vinte e nove annos de
idade, solteiro.” (fl.3v)
“Escravo de nome
Marcelino, preto, de
vinte e nove anos de
idade, solteiro.” (fl.3v).
Matriculado (a)
O cativo que constava numa lista de
matrícula de um determinado local.
Ao longo do século XIX, as
matrículas de escravos consistiram
num dos esforços para fiscalizar e
cobrar impostos sobre a população
cativa.
“O vendedor apresentou
documento provando naõ
estar matriculada a
escrava vendida por
viver fora dos limites
d’esta cidade, empregada
na lavoura.” (fl.99v)
“O vendedor apresentou
documento provando não
estar matriculada a
escrava vendida por
viver fora dos limites
desta cidade, empregada
na lavoura.” (fl.99v).
“Mulher, que sabe de costura, e que
exerce por ofício” (MORAES
“Escrava de nome
Celestina, mulata de
“Escrava de nome
Celestina, mulata de
72
Costureira SILVA, 1789, p. 558). vinte e quatro annos de
idade, solteira,
costureira, e natural desta
Provincia” (fl.6v)
vinte e quatro anos de
idade, solteira,
costureira, e natural desta
Província” (fl.6v).
Sem ofício
Levando em conta que ofício é um
“Cargo pessoal; profissão. Ocupação”
(FIGUEIREDO, 1913, p. 1421), uma
pessoa “sem ofício”, portanto, é
alguém sem profissão. No comércio
de escravos, o cativo sem ofício
poderia valer menos que um
escravizado que possuía alguma
profissão, ocupação. Designar um
cativo como “sem ofício” não
significava que ele não tinha
habilidades para os serviços.
“Escrava de nome Isabel,
de cor fula, de vinte e
nove digo vinte e nove
anos de idade, solteira,
sem officio, e natural da
Freguezia de
Maranguape” (fl.8v)
“Escrava de nome Isabel,
de cor fula, de vinte e
nove digo vinte e nove
anos de idade, solteira,
sem ofício, e natural da
Freguesia de
Maranguape” (fl.8v).
Solteiro (a)
“O que não casou” (FIGUEIREDO,
1913, p. 1886).
“Senhor e possuidor dos
escravos Jose de vinte e
dousannos de idade,
eLuisa de desoito, ambos
pretos solteiros, sem
officio” (fl.47v)
“Senhor e possuidor dos
escravos Jose de vinte e
dois anos de idade, e
Luísa de dezoito, ambos
pretos solteiros, sem
ofício” (fl.47v).
Casado (a)
“Aquele, a que foi conferido o
Sacramento do Matrimônio”
(BLUTEAU, 1728, 175).
“É senhor e possuidor
dos escravos Jose, preto,
de 45 annos de idade,
casado, e sem officio”
fl.32v
“É senhor e possuidor
dos escravos José, preto,
de 45 anos de idade,
casado, e sem ofício.”
(fl.32v).
Capitão
“Oficial militar cujo posto é
imediatamente superior ao de tenente
e inferior ao de major seja de
infantaria, de cavalaria ou de
artilharia, governa uma companhia.”
(MORAES SILVA, 1789, p. 405).
“Irmaõ e Jacob Cahn e
no Rio de Janeiro a Lion
Cahn e Capitaõ Antonio
da Silva Albano com
especialidade para por
elle outorgante vender
seus escravos” (fl.89r)
“Irmão e Jacob Cahn e
no Rio de Janeiro a Lion
Cahn e Capitão Antônio
da Silva Albano com
especialidade para por
ele outorgante vender
seus escravos” (fl.89r).
Curador
Curador, no contexto das escrituras, é
quem administrava e representava os
bens dos cativos. “Quem tem
cuidado, e administração dos bens do
orphão, do louco, prodigo, mudo, do
ausente, etc., em virtude da lei, ou
mando do magistrado. Tutor.”
(MORAES SILVA, 1789, p. 576).
"Concedida a autorização
requerida, respeitando-se
o que determina o artigo
2º do Decreto n° 1695 de
15 de setembro de 1868
O Curador Geral Parris
Portuga” (fl.20r)
"Concedida a autorização
requerida, respeitando-se
o que determina o artigo
2º do Decreto n° 1695 de
15 de setembro de 1868
O Curador Geral Parris
Portuga” (fl.20r).
Gerente
“Pessoa que gere ou administra
negócios” (FIGUEIREDO, 1913, p.
962).
“Os negociantes desta
praça Francisco Coelho
da Fonseca e Filho
representados pelo seus
gerente Francisco Coelho
da Fonseca como
procuradores” (fl.6v)
“Os negociantes desta
praça Francisco Coelho
da Fonseca e Filho.
representados pelo seu
gerente Francisco Coelho
da Fonseca como
procuradores” (fl.6v).
Lavrador
Pessoa “que trabalha em lavoira.
Aquele que possui propriedades
lavradias” (FIGUEIREDO, 1913, p.
1176).
“Como procurador do
outorgante vendedor
Felippe Barros Mary,
lavrador e morador nos
termo das Lavras”
(fl.21v)
“Como procurador do
outorgante vendedor
Felippe Barros Mary,
lavrador e morador nos
termo das Lavras”
(fl.21v).
Alferes
“A primeira patente de oficial, logo
abaixo de tenente.” (VIEIRA, 1871).
“Compareceu em propria
pessoa o Alferes Cicero
Bastos dos Santos,
conhecido de mim”
(fl.47r)
“Compareceu em própria
pessoa o Alferes Cícero
Bastos dos Santos,
conhecido de mim”
(fl.47r).
73
Proprietário (a)
“Quem tem a propriedade de alguma
coisa. Que é senhor de alguma coisa.
Que tem propriedades ou bens
imóveis”;
“Proprietária: Diz-se da mulhér, que
tem propriedades ou que é senhora de
certos bens” (FIGUEIREDO, 1913,
p.1648).
“Vendedor Fausto
Antonio Fernandes
proprietario e morador
no termo de
Quixeramobim” (fl.48r)
“Vendedor Fausto
Antônio Fernandes
proprietário e morador
no termo de
Quixeramobim” (fl.48r).
Negociante
“Pessoa, que exerce o comércio.
Pessoa, que trata de negócios”
(FIGUEIREDO, 1913, p.1383).
“Em meu cartorio foram
presentes mim e as duas
testemunhas abaixo
assignadas, de uma parte
o negociante desta praça
João Anastacio Gomes”
(fl.49v)
“Em meu cartório foram
presentes mim e as duas
testemunhas abaixo
assinadas, de uma parte o
negociante desta praça
João Anastácio Gomes”
(fl.49v).
Empregado
público
“O que exerce emprego em repartição
do estado” (MORAES SILVA, 1789,
p. 747).
“Comprador Antonio Por
Deus da Costa Lima,
Empregado Publico e
morador nesta cidade,
todos bem conhecidos de
mim Tabelião, do que
dou fe.” (fl.65r)
“Comprador Antônio Por
Deus da Costa Lima,
Empregado Público e
morador nesta cidade,
todos bem conhecidos de
mim Tabelião, do que
dou fé.” (fl.65r).
Conhecido (a)
“O que é, a que é do conhecimento de
alguém, ou do nosso”(MORAES
SILVA, 1789, p. 516). Nas escrituras,
é um termo padrão que se repete nos
exemplares fazendo referência aos
envolvidos na negociação e que o
tabelião e/ou escrivão reconhecem e
dão fé.
“Constituia a seus
procuradores João
Machado Freire,
negociante e morador
n’esta Povoação
conhecido de mim
Escrivão de Paz” (fl.73r)
“Constituía a seus
procuradores João
Machado Freire,
negociante e morador
nesta Povoação
conhecido de mim
Escrivão de Paz” (fl.73r).
Ausente
“Que está distante, longe de outrem,
ou de algum lugar” (MORAES
SILVA, 1789, p. 287). Nas
escrituras, é um termo padrão que se
repete nos exemplares fazendo
referência ao poder do Tabelião de
dar fé ao documento, inclusive em
nome de ausentes.
“E eu Tabelião como
pessoa publica a
outorguei e aceitei em
nome dos auzentes e
pessoas a que pertencer
possa” (fl.73v)
“E eu Tabelião como
pessoa pública a
outorguei e aceitei em
nome dos ausentes e
pessoas a que pertencer
possa” (fl.73v).
Cozinheiro (a)
“A mulher que cozinha”; “O homem
que cozinha” (MORAES SILVA,
1789, p. 490).
“Marcelino preto, de
desoito annos de idade,
cozinheiro, e natural
desta Provincia;” (fl.53v)
“Marcelino preto, de
dezoito anos de idade,
cozinheiro, e natural
desta Província” (fl.53v)
Agricultor
Pessoa “que lavra e cultiva,
aproveitar as terras. Que agriculta: os
povos agricultores” (MORAES
SILVA, 1789, p. 111).
“Como procurador do
outorgante vendedor
Manoel de Jesus da
Conceição Goes,
agricultor e morador no
termo de Milagres”
(fl.75r)
“Como procurador do
outorgante vendedor
Manoel de Jesus da
Conceição Góes,
agricultor e morador no
termo de Milagres”
(fl.75r)
Vigário
“Padre, que faz as vezes do Prelado.
Título do pároco em algumas
freguesias. Delegado do Prelado
diocesano, nalgumas povoações de
uma diocese” (FIGUEIREDO, 1913,
p. 2086).
“Como outorgante
vendedor o Vigario desta
freguezia Miguel
Francisco da Costa, e de
outra como compradora
Dona Anna Joaquina de
Freitas Barros” (fl.29v)
“Como outorgante
vendedor o Vigário desta
freguesia Miguel
Francisco da Costa, e de
outra como compradora
Dona Anna Joaquina de
Freitas Barros” (fl.29v).
Criador
Pessoa “Que cria, produz. Homem
criador de animais” (MORAES
SILVA, 1789, p. 567).
“Abel da Costa Pinheiro
como procurador do
outorgante vendedor
Joaquim Felicio Marques
“Abel da Costa Pinheiro
como procurador do
outorgante vendedor
Joaquim Felício Marques
74
Fonte: elaborado pela autora.
Segundo Paiva (2015, p. 127), eram classificados como qualidades os
seguintes termos: “índio, branco, negro, preto, crioulo/criollo, mestiço/mestizo,
de Oliveira, criador e
morador no termo do
Unido.” (fl.98r)
de Oliveira, criador e
morador no termo do
Unido.” (fl.98r).
Barão “Título da nobreza, imediatamente
inferior a visconde, e o menos
graduado na hierarquia dos titulares”
(MORAES SILVA, 1789, 317).
“Vende como
effectivamente vendido
tem por meio deste
instrumento ao
mencionado comprador
Barão de São Leonardo
pelo preço e quantia
certa de um conto e
duzentos mil reis”
(fl.77v)
“Vende como
efetivamente vendido
tem por meio deste
instrumento ao
mencionado comprador
Barão de São Leonardo
pelo preço e quantia
certa de um conto e
duzentos mil reis”
(fl.77v).
Viúva
“Mulher, a quem morreu o marido e
que ainda não casou de novo”
(FIGUEIREDO, 1913, p. 2096).
“Escritura de venda de
uma escrava de nome
Constancia, que tenho
vendido à viuva – Dona
Feliciana do Rego
Jatoby” (fl.6r)
“Escritura de venda de
uma escrava de nome
Constância, que tenho
vendido à viúva – Dona
Feliciana do Rego
Jatoby” (fl.6r).
Guarda livros
“Empregado comercial, que registra o
movimento do comércio em uma ou
mais casas.” (FIGUEIREDO, 1913,
p. 994). A função de guarda-livros
corresponde ao que hoje
denominamos de contabilistas.
“Gualter Rodrigues da
Silva, aquelle agricultor
e morador no termo de
Baturite, e este, guarda
livros e morador nesta
mesma cidade” (fl.49r)
“Gualter Rodrigues da
Silva, aquele agricultor e
morador no termo de
Baturité, e este, guarda
livros e morador nesta
mesma cidade” (fl.49r).
Guarda
Nacional
A Guarda Nacional foi uma força
militar organizada no Brasil em
agosto de 1831, durante o período
regencial. Sua criação se deu por
meio da lei de 18 de agosto de 1831
que "Cria as Guardas Nacionais e
extingue os corpos de milícias,
guardas municipais e ordenanças".
Diz a referida lei, em seu art. 1°, que
"As Guardas Nacionais são criadas
para defender a Constituição, a
liberdade, Independência, e
Integridade do Império; para manter a
obediência e a tranquilidade publica;
e auxiliar o Exército de Linha na
defesa das fronteiras e costas", tendo
como fundamento o art. 145
da Constituição de 1824. (Fonte: site
da câmara dos deputados do Brasil).
“Companhia do 5º
Batalhaõ de Guardas
Nacionais do Municipio
do Aquirás por
nomeação legal 11”
(fl.6r)
“Companhia do 5º
Batalhão de Guardas
Nacionais do Município
do Aquiraz por
nomeação legal 11”
(fl.6r).
Doutor
“O que recebeu o maior grau
acadêmico, com o direito de trazer as
insígnias de borla, e capelo, e de
ensinar na faculdade, em que é
doutor; ensinador, mestre.”
(MORAES SILVA, 1789, p. 713).
Nas escrituras, o termo fazia
referência aos negociantes com
diferentes profissões, como
advogado, médico entre outras.
“Pelo procurador do
vendedor foi me
apresentada a respectiva
procuraçaõ que é do teor
seguinte: Cornelio Jose
Fernandes. Doutor
formado pela Faculdade
de Medicina da Bahia
(...)” (fl.13v)
“Pelo procurador do
vendedor foi me
apresentada a respectiva
procuração que é do teor
seguinte: Cornélio José
Fernandes. Doutor
formado pela Faculdade
de Medicina da Bahia
(...)” (fl.13v).
75
mameluco, mulato, zambo, zambaigo, pardo, cuarterón, cabra, curiboca, coiote, chino”.
Nas escrituras analisadas, as lexias preto e crioulo trazem no bojo de suas significações
o sentido de locais de origem e/ou ascendência africana. Enquanto as lexias cabra,
mulato e pardo, podem significar miscigenações entre povos e/ou a cor de suas peles.
Encontramos 74 casos de escravos descritos com a lexia pretos, enquanto
algumas escrituras fazem referência aos cativos como crioulos, nominações que podem
significar que esses sujeitos escravizados têm origem/ascendência africana. Paiva
(2015) diz que a denominação preto poderia ser atribuída apenas no tocante à cor da
pele, sendo utilizado para referenciar os escravos cuja cor era muito escura. Aqui é
importante lembrar que os documentos analisados foram exarados no período de 1870 a
1873, sendo que em 04 de setembro de 1850 foi assinada a Lei Eusébio de Queirós que
punha fim ao tráfico internacional de escravos. Muitos historiadores destacam que
mesmo diante dessa proibição muitos escravos africanos chegaram aos portos
brasileiros, no entanto, o fluxo era mais escasso. Desta forma, o tráfico interno de
escravos para atender às demandas tornou-se uma opção mais viável.
Ressaltamos que as denominações dadas aos escravos podem não ser
confiáveis, como explica Paiva:
As nomeações sempre estiveram dependentes das conveniências, das
compreensões e percepções de escrivães, cronistas e testemunhos no geral,
por vezes bastante particulares, e das modificações nos significados ocorridas
no tempo e nos espaços. (PAIVA, 2015, p. 203)
As lexias encontradas para denominar aqueles que eram frutos da
miscigenação dos povos africanos, indígenas e portugueses são cabra, mulato e pardo.
Moraes Silva (1789) define cabra como sendo “filho, ou filha de pái mulato, e mãi
preta, ou as avessas”. Em concordância com essa nova acepção, Silva Pinto (1832)
entende mulato como sendo aquele que resultou do intercurso entre mulatos e negros.
Bluteau (1728) descreve mulato como filho de branco e negra ou vice-versa.
Moraes Silva (1789) diz que “Filhos, ou filha de preto com branca, ou ás avessas, ou de
mulato com branca até certo gráo”. Nas escrituras encontramos 49 escravos descritos
como mulatos entre homens, mulheres e crianças. Encontramos também 68 sujeitos
escravizados denominados como pardos que, segundo Moraes Silva (1789) corresponde
ao “de còr entre branco, e preto, como a do pardal”.
76
Encontramos ainda 14 casos de cativos descritos como fulos, 01 escravo
caboclo e 01 escravo descrito como acaboclado. Fulo, segundo Figueiredo (1924), é
relativo aos negros ou mestiços cuja pele é meio amarelada, cor opaca. Essa lexia
resultou no termo “negro fulo” e hoje usamos na expressão “fulo de raiva”, para indicar
palidez. As lexias caboclo e acaboclada, segundo Assunção (2002), remetem aos
escravos de forte ascendência indígena.
A lexia livre era usada nos documentos como referência aos escravos que
não fazem parte do processo de compra e venda relatado nas escrituras, mas têm alguma
relação com o cativo comercializado.
A lexia matrícula faz referência à matrícula dos escravos proposta pela
Resolução de 18328, cuja tentativa de aplicação se deu em âmbito nacional, como meio
de fiscalizar e arrecadar a meia sisa, através do livro da matrícula dos escravos que “há
de servir para se lançar nele uma geral e exata relação de todos os escravos que
houverem [sic] no distrito de cada um dos coletores”. A determinação da referida
Resolução era que os coletores iniciassem a matrícula, aplicando-a a todos os escravos
de seu distrito, “desde os recém nascidos até os de mais avançada idade, com bem
especificada declaração de suas qualidades, naturalidade, idade, sexo, oficio, ocupação,
ou préstimo”. O Art. 13 da resolução ainda dizia que a matrícula deveria ser feita com
declaração das pessoas a que pertenciam os escravos. Ao fim de cada trimestre os
coletores deveriam verificar se tinham ocorrido alterações referentes aos escravos
matriculados, registrando as devidas alterações no mesmo livro, no campo destinado às
observações.
Em relação à descrição das profissões fica evidente que as lexias usadas
para destacar o ofício dos vendedores/compradores são para enaltecer a figura desses
sujeitos, dando certo valor a sua posição na sociedade. Enquanto as lexias usadas para
descrever o ofício e/ou alguma habilidade dos cativos são para valorizar ou desvalorizar
seu preço na comercialização.
No que tange às atividades desempenhadas pelos homens escravizados,
identificamos uma lexia: cozinheiro, que aparece apenas uma vez. Em relação às
atividades desempenhadas pelas escravas mulheres, catalogamos apenas a lexia
costureira, que aparece uma vez. No restante dos casos os cativos são descritos como
sem officio.
8 Decreto Nº 4.835, de 1º de dezembro de 1871. Aprova o Regulamento para a matrícula especial dos
escravos e dos filhos livres de mulher escrava. Capítulo I: da matrícula dos escravos.
77
Na descrição dos perfis dos compradores e vendedores suas profissões
recebem um destaque maior. Encontramos 02 vendedores descritos com a profissão de
lavrador e 26 vendedores e 03 compradores com ofício de agricultor. As duas
profissões possuem significados semelhantes, o que se comprova ao contrastarmos as
duas definições. Segundo Moraes Silva (1789) agricultor é o “que lavra, e cultiva as
terras.” Ao definir lavrador, diz ser aquele “que lavra, e cultiva as terras, e não usa de
mester, ou officio mecanico”. Na profissão de criador encontramos 12 casos, sem
mencionar o produto que esses sujeitos criavam.
As lexias doutor e capitão aparecem muitas vezes nas escrituras,
principalmente para descrever os procuradores dos vendedores ou compradores, sendo
uma referência a médicos, dentistas, advogados etc. Entre compradores e vendedores
encontramos 06 Empregados Públicos, 02 guarda-livros, 04 vigários, 01 barão e um
procurador com o ofício de gerente. No caso das compradoras e/ou vendedoras
mulheres são descritas em sua maioria como proprietárias (encontramos 23 menções).
Sobre o estado civil dos compradores e vendedores não consta nas
escrituras, exceto a menção de quatro casos de viúvas. No caso dos cativos, temos as
lexias solteiro e casado. É importante dizer que, na época, o modelo de casamento
existente era apenas o religioso, realizado pela Igreja Católica. Encontramos 03
escravos casados, sendo que dois deles vendidos juntos à esposa e um vendido sem
menção à situação de sua companheira. No caso das mulheres cativas encontramos nas
escrituras 04 casos diferentes: uma escrava vendida junto ao marido, uma casada com
um escravo liberto (que não tem sua situação descrita), uma casada, vendida sem
menção à situação do marido e uma última casada com um homem livre, do qual vive
separada. Algumas escrituras não possuem a descrição do estado civil dos cativos, mas
a maioria dos documentos traz os escravizados comercializados descritos como
solteiros.
Sobre o casamento entre escravizados, Mattoso (2003) diz que o modelo de
família escrava visualizado no Brasil não era formado por pai, mãe e filhos. O direito à
família tinha sido retirado desses homens e mulheres, os quais buscaram mediante
novos tipos de relações em que sua família passasse a ser a comunidade escrava com
quem convivia, em que os laços afetivos foram estabelecidos no relacionamento com
seus vizinhos, com seus companheiros de trabalho e de suas associações religiosas.
Ressalta-se também que, até primeira metade do século XIX, o direito civil
não reconhecia o matrimônio religioso e os donos de escravos podiam assim separar os
78
casais e seus filhos, através da venda individual ou outros tipos de transações, como
doação, hipoteca, permuta, entre outros. Apenas em 1869 a legislação decreta que os
casais escravos não poderiam ser vendidos separadamente e, em 1871, com a
promulgação da Lei do Ventre Livre, pais e filhos menores de 12 anos também não
poderiam ser separados. No entanto, encontramos casos nas escrituras que podem
indicar o não cumprimento dessas normas, como veremos na próxima seção deste
trabalho.
A Guarda Nacional de determinada Província ou município é sempre citada
nas procurações, como podemos ver no exemplo a seguir, em que o capitão da Guarda
Nacional é o vendedor do cativo:
Pelo procurador do vendedor foi me apresentada a respectiva procuração que
é do teor seguinte: Manoel Thiago Maria de Araujo, Capital da Guarda
Nacional do Municipio do Acaracu por nomeação legal 11. Pela presente
procuração por mim feita e assignada constitui meu bastante procurador na
cidade da Fortalesa o Ilustrissimo Senhor Tenente Coronel Jose Fernandes de
Araujo Vianna e lhe dou os necessarios poderes para vender o escravinho
José de idade de oito para nove annos que me coube por herança de meu
fallecido pai (...) (fl. 29v).
A Guarda Nacional era responsável, principalmente, pelas atividades
policiais de ronda. Ressaltamos o objetivo do serviço policial no Brasil oitocentista e o
aval que a Guarda Nacional recebia para determinadas ações:
A criação da Guarda Nacional foi uma medida encontrada pelos estadistas
liberais do Império, que ascenderam ao poder após a abdicação de D. Pedro I,
para poder contar com uma força de coesão que lhes fosse confiável, pois
havia o temor de que o exército apoiasse o retorno do antigo monarca e
derrubasse, por força das armas, o governo que assume logo após o ocorrido
de sete de Abril de 1831. (JÚNIOR, 2011, p. 5)
A Guarda Nacional atendia aos interesses dos proprietários de terras e
escravos, pois a função institucional da milícia era manter a ordem interna. Desta forma,
compreendemos a importância jurídica de citar esse órgão no discurso de
comercialização dos escravizados.
Selecionamos 59 lexias, divididas em quatro categorias, voltadas à prática
da escravização, à organização do serviço notarial no Ceará da segunda metade do
século XIX e ao funcionamento do sistema de compra e venda de cativos.
Por fim, destacamos a importância da filologia para o estudo do léxico para
ampliar nosso conhecimento sobre nossa língua em tempos remotos e conhecer aspectos
79
socioculturais através dos textos escritos e seus discursos, fato que possibilita
compreender como a cultura se constrói através das práticas sociais. As relações entre
língua, cultura e história se mantêm vivas quando compartilhadas, e é através do léxico
que essa dinâmica acontece, graças a sua capacidade de traduzir, através dos signos
linguísticos, os elementos do mundo que os cerca.
80
4 “E LHE TRANSFERE TODO DOMÍNIO, SENHORIO E POSSE...”: ANÁLISE
SÓCIO-HISTÓRICA DAS ESCRITURAS
Nesta seção, lançamos olhar para o contexto histórico a partir dos dados
colhidos na seção anterior desta dissertação. Em um primeiro momento, trazemos um
apanhado de informações sobre o Ceará oitocentista e seu contexto escravocrata na
subseção intitulada Adentrando o Ceará no século XIX: um olhar para a escravidão.
No tópico que se segue, intitulado Algumas reflexões acerca da constituição
da família escrava, tratamos especialmente dos casos encontrados nas escrituras que
trazem situações de famílias de cativos, abrindo uma discussão sobre o tratamento dado
pelos senhores de escravos aos laços afetivos criados nas senzalas. Fazemos, ainda,
reflexões sobre a venda de crianças, levando em conta que a Lei do Ventre Livre
entrava em vigor no mesmo recorte temporal da produção dos documentos aqui
analisados.
Para encerrar esta seção, discorremos sobre fatos e questões levantadas a
partir dos dados colhidos na seção de análise das lexias sobre as transações comerciais
envolvendo cativos, evidenciando os sujeitos citados nas escrituras que merecem
atenção por terem destaque na historiografia cearense, algumas reflexões sobre os
preços e as quantidades de cativos comercializados, elementos que ajudam a ampliar as
informações que já temos sobre a história da escravidão do Ceará nesse período.
4.1 ADENTRANDO O CEARÁ NO SÉCULO XIX: UM OLHAR PARA A
ESCRAVIDÃO
Nesta subseção, realizamos uma breve discussão sobre o período
escravocrata no Ceará, estado que hoje é reconhecido como o primeiro a abolir a
escravidão. Há discursos e estudos mostrando que o período escravista na província
cearense foi brando, quando comparado às demais províncias brasileiras. Não nos
propomos a refutar esses estudos, mas refletir sobre a existência do comércio de cativos
no Ceará na segunda metade do século XIX, no mesmo período em que os movimentos
abolicionistas ganhavam força.
No Brasil, a escravidão foi um sistema que se estendeu por 300 anos, desde
o princípio da colonização portuguesa até o final do século XIX, mais precisamente em
13 de maio de 1888, com a data da assinatura da Lei Áurea, pela Princesa Isabel, a qual
81
abolia a escravidão no território brasileiro. Segundo estimativas apresentadas por Libby
e Paiva (2005), foram trazidos para a América, aproximadamente 12 milhões de negros,
sendo que, desse total, cerca de 38% (4,5 milhões) dos escravos foram encaminhados
para o Brasil, colocando-o como o país que detinha a maior população escrava até
meados do século XIX.
Os documentos aqui analisados datam de 1870 a 1873. O Ceará nesse
contexto contava, segundo o censo geral de 18729, com uma população de 689.773
pessoas livres e 31.913 pessoas escravizadas, aproximadamente 4,42%. Segundo Girão
(1984):
Este total de 31.913 não aumentaria mais. A lei do ventre livre viera estancar
a reprodução cativa e, pelo diploma legislativo provincial nº 1.254, de 28 de
dezembro de 1868, muitas manumissões se faziam todos os anos. Ao lado
disso, a exportação para o sul do País cada vez mais se incrementava com a
necessidade de braços na cultura do café. (GIRÃO, 1984, p.60)
Nesse mesmo período, iniciava-se um momento difícil para as terras
cearenses, em relação às dificuldades econômicas com a queda na exportação do
algodão, devido à restrição do mercado consumidor. Consequentemente, houve um
desequilíbrio na mão de obra escrava, o tráfico interno10
atingiu o seu auge e, segundo
Assunção (2002, p.13) “o Ceará passou a ser um dos maiores provedores de escravos
para o centro-sul do país. Entre 1872 e 1879, a província exportou, através do tráfico
interno, 9.753 cativos, perfazendo uma média de 1.219 escravos por ano”.
De modo geral, a produção econômica da província cearense no século XIX
era constituída pela pecuária bovina e a cultura algodoeira, ambas destinadas
principalmente para o mercado externo. A agricultura familiar voltada para a
subsistência tinha participação da cultura do feijão, do milho, da mandioca e pequenas
criações de animais. Historicamente, todas as atividades tinham a presença do
trabalhador escravo. Girão (2000) diz que o algodão "[...] famoso arbusto veio
constituir-se, ao lado do boi, a mais substancial fonte econômica da Capitania" e afirma
que "abrir-se-ia com o algodão o ciclo agropecuário do Ceará". (GIRÃO, 2000, p. 214).
Interrompidas as remessas da América do Norte, em virtude da guerra de sua
independência, sentia a Europa premente necessidade do algodão de outras
origens, valorizando-se assim dia a dia o seu preço, e que no Ceará eram
9 Ensaio Estatístico do Ceará apud. Raimundo Girão, 1984.
10 É importante destacar que o tráfico intraprovincial se refere ao comércio realizado entre regiões de
uma mesma província, já o tráfico entre províncias diferentes era chamado de tráfico interprovincial.
82
propícias à sua cultura as mais favoráveis condições de clima e a natureza do
solo. (GIRÃO, 2000, p. 216).
Como dito anteriormente, o trabalhador cativo estava presente em todas as
atividades do cenário econômico cearense, como confirma Funes:
A mão de obra escrava no Ceará se faz presente em todo o campo do
trabalho, seja no espaço rural ou no urbano. Se num primeiro momento, ainda
no século XVIII, as primeiras peças estavam sendo adquiridas para trabalhar
no projeto que frustrou, “as Minas de São José do Cariri”, posteriormente o
cativo foi incorporado ao setor produtivo estando presente na pecuária, na
agricultura, em serviços especializados, nos serviços domésticos, ou ainda
como escravo de aluguel e de ganho. (FUNES, 2007, p. 110)
Os interessados na compra desses cativos eram, em sua maioria, homens e
produtores rurais (agricultores e criadores). Nas escrituras, destacamos a presença de
alguns comerciantes, proprietários e homens com patentes militares. Esses senhores,
muitas vezes, possuíam apenas um escravo, como explica Rodrigues (2012):
[...] a inserção dos escravos no Ceará não se dava de uma forma homogênea.
A mão de obra cativa assumia, com efeito, uma importância social e
econômica razoável na sociedade cearense da segunda metade do século XIX
– não obstante a especulação envidada por negociantes negreiros. Aqui, como
já se antecipou, houve uma “escravidão miúda”, para usar a expressão de
Carlos Bacellar. Nesse sentido, os pequenos proprietários, às vezes donos de
apenas um cativo, procuravam atribuir-lhe o maior valor que pudessem.
Senhores de um único escravo, ou donos de plantéis “miúdos”, tendiam a
valorizar ainda mais essa mão de obra, na medida em que, por um lado,
esperavam dela a maior produtividade possível em diferentes trabalhos e, por
outro, ela por vezes constituía seu único bem. (RODRIGUES, 2012, p. 33)
O Brasil, na segunda metade do século XIX, vivia mudanças no sistema
administrativo, econômico, político, entre outras áreas. Essas transformações atingiram
o escravismo na promulgação de algumas leis como: A Lei Eusébio de Queiróz, de
1850, que proibia o tráfico de escravos para o Brasil, A Lei do Ventre Livre,
promulgada em 28 de setembro de 1871, que considerava livre todos os filhos de
mulheres escravas nascidos a partir da data da lei e a Lei dos Sexagenários, promulgada
em 28 de setembro de 1885, que concedia liberdade aos escravos com mais de 60 anos
de idade. Foram medidas que impactaram a demografia escrava e encaminharam o
processo que resultaria na abolição da escravatura.
No Ceará não foi diferente, esse período foi marcado pelos discursos a favor
da abolição e pelo enfraquecimento do comércio de escravos entre as províncias. A
província cearense apresentava um número de cativos considerado pequeno, e nos anos
83
finais dos oitocentos esse número diminui. Embora houvesse uma menor concentração
de cativos na província, o interesse por escravizados na zona urbana e rural alimentava
o tráfico, que sofreu mudanças de fluxo ao passar dos anos:
O trabalho escravo ao longo da história do Ceará não representou um peso
muito grande para a economia da província. De acordo com os dados dos
censos, a população escrava tendeu a decair depois da segunda metade do
século[XIX]. Em 1819, o percentual que era até então de cerca de 13% da
relação entre a população livre e escrava, cresceu para 28%. Muito embora
em 1860, os escravos de quatro freguesias cearenses, como Fortaleza,
Maranguape, Aquiraz e Cascavel chegaram a compor cerca de 30% da
população. Mais tarde, o índice geral do Ceará volta a decair, quando em
1872 o percentual chega ao patamar dos 4,4%. (ASSUNÇÃO, 2009, p. 148)
Apesar da diminuição de cativos na província nos anos finais da escravidão,
havia uma defesa à manutenção do escravismo que se apoiavam em argumentos
econômicos, sociais, culturais e até religiosos. A perpetuação desse regime era um
pensamento que tinha força na classe dominante e no cotidiano da sociedade como um
todo. A prática do tráfico interno de escravos se intensificou com a proibição do Tráfico
Atlântico, como solução para reposição de mão de obra escrava esse comércio foi
mantido até os dias finais da abolição da escravatura no país.
Distante de ser uma província em destaque no tráfico de escravos, o Ceará
não era dependente desse comércio, no entanto, esse fato não anula a presença da
província cearense nos longos anos de escravidão no Brasil nem ameniza o peso de
fazer parte desse momento cruel da história do país. Muitos negros foram
comercializados entre as regiões cearenses, na capital e entre o Ceará e outras
províncias. Os sujeitos escravizados eram vistos e tratados como mercadorias, no
entanto, formavam famílias que lutavam para mantê-las, construíam histórias e laços
afetivos que eram desfeitos por meio do tráfico.
Na subseção seguinte nos debruçamos sobre um importante fator
humanizador dos negros escravizados: a construção de laços afetivos.
4.2 ALGUMAS REFLEXÕES ACERCA DA CONSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA
ESCRAVA
Nesta subseção realizamos uma reflexão sobre informações encontradas no
corpus que retratam as famílias escravas e o tratamento dado a esses laços afetivos
durante as transações comerciais envolvendo os cativos. Servimo-nos de dados
84
coletados nas escrituras para compreender a posição do pai, da mãe, da esposa, do
marido e dos filhos em situação de escravização e comercialização, discorrendo sobre
como essas relações eram desfeitas em ocasião da venda de um dos componentes do
núcleo familiar.
Analisar aspectos sociais da escravidão é perceber diferentes perspectivas
sobre o ser escravizado, o relacionamento cativo X senhor e a dimensão econômica,
administrativa e política do país durante a escravidão. Entender o escravo enquanto
sujeito ativo do processo histórico, mesmo quando este é descrito apenas como produto
– como é o caso das escrituras de compra e venda de escravos – revela uma percepção
mais abrangente do contexto escravista.
Nas escrituras analisadas é possível observar a comercialização de famílias
inteiras de escravos: pai, mãe, filho (s) ou mãe e filhos. Outra situação é a venda de
crianças descritas como filhos de pais livres ou vendidas sozinhas. Nos documentos
passados em cartório, fica evidente que os senhores de escravos tratavam os cativos
como peças, objetos passíveis de venda, troca, leilão, doação, empréstimo entre outras
formas de comércio. No entanto, no mesmo discurso os escravizados eram descritos
como esposo, esposa, pai, mãe, filho e filha, ou seja, como pessoas que podem
constituir famílias e que fazem parte de uma. No trecho abaixo, podemos observar como
é descrita a posse dos cativos como peças comercializadas:
E logo pelo comprador foi dito que aceita esta escritura como é e está
constituida, e que ja está de posse dos referidos escravos Domingas e seu
filho Jeronimo. Pagou o comprador o sello devido de dous milreis em
estampilhas, que foram por mim inutilisidas: assim mais pagou na secçaõ de
arrecadaçaõ da Thezouraria Provincial sessenta mil reis de imposto conforme
o conhecimento nº21, desta data. (fl.3r)
As escrituras analisadas trazem casos de escravizados que possuíam uma
estrutura familiar que era desfeita após a venda de um dos membros do núcleo, seja a
mãe, seja o pai, sejam os filhos ainda criança. Alguns estudos, como o de Queiroz
(1998), compreendem esse fato como determinante na má vontade dos senhores em
relação aos casamentos entre cativos, sabendo que não ia mantê-los unidos no momento
da comercialização. Desta forma, as relações afetivas entre os cativos existiam, porém
não poderiam ser consideradas estáveis, pois estavam à mercê da vontade do senhor.
Entretanto, hipóteses diferentes são levantadas em relação à formação de
laços familiares na senzala. Uma delas é que a igreja achava positivo o casamento
85
religioso entre os cativos para tirá-los da “promiscuidade”. O senhorio também tinha
perspectivas positivas sobre a constituição de família entre os cativos, como a
possibilidade de fincar raízes num local e evitar ideias de fugas e rebeliões.
A família escrava, provavelmente, funcionava como um importante
“espaço” de acolhimento para lidar com as pressões psicológicas e os castigos físicos da
escravidão. Ao mesmo tempo, poderia significar um tipo de instrumento de controle
social, afinal era algo que o escravizado podia perder caso tomasse uma atitude que
desagradava ao seu senhor. Em seu estudo, Slenes (1999) mostra a família escrava
como uma forma de resistência ao cativeiro e se preocupa em expandir a questão da
família escrava para aspectos mais amplos, como o da identidade e o da rebeldia cativa:
(...) a família escrava – nuclear, extensa, intergeracional – contribuiu
decisivamente para a criação de uma comunidade escrava, dividida até certo
ponto pela política de incentivos dos senhores, que instaurava a competição
por recursos limitados, mas ainda assim unida em torno de experiências,
valores e memórias compartilhadas. Nesse sentido, a família minava
constantemente a hegemonia dos senhores, criando condições para a
subversão e a rebelião, por mais que parecesse reforçar seu domínio na rotina
cotidiana (SLENES, 1999, p.48).
O cativo via no casamento uma relação afetiva, sendo a união entre os que
tinham a mesma experiência uma maneira de fortalecer ideias, como a de liberdade.
Além do fato de um núcleo familiar ser considerado como ato de resistência, levando
em conta que os laços de afetos ajudavam a amenizar a crueldade vivenciada no sistema
escravista e possibilitava a transmissão de suas próprias histórias, culturas, experiências.
Segundo Chalhoub, “era comum que os escravos exercessem alguma forma de pressão
sobre seus senhores no momento crucial de sua venda” (CHALHOUB, 1990) para que
pudessem manter a família unida.
Levando em conta que as escrituras analisadas foram redigidas a partir de
1870, é relevante abordar a Lei do Ventre Livre, sancionada em setembro desse mesmo
ano, em que as crianças filhas de mães cativas ganhavam a condição de livre. Porém,
continuavam vivendo em escravarias junto aos familiares escravizados.
Nesse contexto, a lei11
definiu que os filhos de mulheres escravizadas que
nascessem no Império a partir da sua promulgação seriam considerados livres. As
11
Biblioteca Virtual de Direitos Humanos da USP (Universidade de São Paulo). Disponível em:
http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-Hist%C3%B3ricos-Brasileiros/lei-do-ventre
livre.html. Acesso em: 24 jul. 2018.
86
crianças, também chamadas de ingênuos12
, ficariam em poder dos senhores de suas
mães. Destacamos os parágrafos da lei:
§1.º- Os ditos filhos menores ficarão em poder ou sob a autoridade dos
senhores de suas mães, os quais terão a obrigação de criá-los e tratá-los até a
idade de oito anos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o
senhor da mãe terá opção, ou de receber do Estado a indenização de
600$000, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos
completos. No primeiro caso, o Governo receberá o menor e lhe dará destino,
em conformidade da presente lei.
Art. 2.º- O governo poderá entregar a associações, por ele autorizadas, os
filhos das escravas, nascidos desde a data desta lei, que sejam cedidos ou
abandonados pelos senhores delas, ou tirados do poder destes em virtude do
Art. 1.º- §6º.
§1.º- As ditas associações terão direito aos serviços gratuitos dos menores até
a idade de 21 anos completos, e poderão alugar esses serviços, mas serão
obrigadas: 1.º A criar e tratar os mesmos menores; 2.ºA constituir para cada
um deles um pecúlio, consistente na quota que para este fim for reservada nos
respectivos estatutos; - 3.º A procurar-lhes, findo o tempo de serviço,
apropriada colocação.
§2.º- A disposição deste artigo é aplicável às Casas dos Expostos, e às
pessoas a quem os juízes de órfãos encarregarem da educação dos ditos
menores, na falta de associações ou estabelecimentos criados para tal fim.
Nas escrituras analisadas, muitas crianças tiveram seus preços associados ao
valor de venda da mãe, como é o caso da comercialização da escrava Benedita, vendida
com o filho Pedro, de três anos de idade, por 1:250$000:
E pelo outorgante procurador do vendedor foi me dito perante as mesmas
testemunhas, que esses digo que seu constituinte á cima nomeado é senhor e
possuidor dos escravos Benedita, preta, de vinte e sete annos, solteira, sem
officio, e um filho desta de nome Pedro, preto de tresannos de idade e ambos
naturais desta Provincia, e porque as possui livre e desembaraçada de
qualquer onus, vende como effectivamente vendido tem por meio deste
instrumento os mencionados comprador Francisco Januario ambos pelo preço
e quantia certa de um conto duzentos cincoenta mil reis. (fl.27v)
Há três situações em que as crianças eram negociadas ou comercializadas:
desacompanhadas, acompanhadas de suas mães ou vendidas com suas famílias,
mostrando como a comercialização de crianças cativas era importante para a
manutenção do sistema escravista.
Chama a atenção nos documentos as escrituras que tratam da venda de
escravas acompanhadas dos seus respectivos filhos, contabilizando 17 comercializações
desses casos. Sendo menos recorrente, porém, os registros que se referem à venda de
casais de escravos com filhos, apenas 01 caso, 02 casos de comercialização da esposa e
12
Termo referente às crianças nascidas livres de mães escravas após a “Lei do Ventre Livre”.
87
marido sem filhos, cujas situações remetem a essa reflexão sobre a família escrava e ao
tipo de tratamento dado a essas relações pelos proprietários de cativos. Rocha (2004)
explica como alguns laços de parentescos se formavam entre os escravos:
[...] a vida em família e a formação e manutenção de redes de parentescos
representaram a conquista de um espaço próprio (muitas vezes representado
pelo acesso à terra), onde os escravos encontravam proteção e solidariedade
contra as agruras do cativeiro. Além disso, a família teria sido o locus
privilegiado de manutenção e transmissão de heranças culturais africanas
entre os cativos. Ao mesmo tempo, essa instituição dependia dos laços
verticais tecidos entre os senhores e escravos dentro da política paternalista
de controle social, que caracterizava a sociedade escravista. (ROCHA, 2004,
p. 48)
O texto das escrituras não deixa evidente a separação do núcleo familiar,
pois trata apenas da descrição do cativo vendido. Outros gêneros textuais, como os
inventários, ilustram melhor a separação da família escrava, já que trata da partilha de
bens entre familiares e, muitas vezes, uma família de cativos é desfeita, quando os
membros são divididos entre os beneficiados. Nas escrituras, há um caso da venda de
uma escrava criança que antes fazia parte da herança da vendedora, como vemos no
trecho a seguir:
E pelo outorgante vendedor foi-me dito perante as mesmas testemunhas que
esse é senhor e possuidor de uma escravinha de nome Raymunda, preta, de
dez a dose annos de idade, e natural de Acarape; a qual houve no inventario
do seu finado sogro Jose Bento Teixeira de Vasconcelos, e porque a possui a
livre e desembaraçada de qualquer ônus. (fl.13v).
Encontramos também casos de cativos menores de idade, muitas vezes
crianças, sendo vendidas com alusão à mãe e/ou pai, sem aprofundamento de
informações. A separação dos membros de uma família cativa era comum no período
escravista, como explica Reis:
A separação de indivíduos pertencentes a uma mesma família de escravos
aconteceu com muita frequência e das mais variadas formas. O comércio de
escravos, o aluguel de escravas para ama-de-leite e até mesmo a libertação de
um de seus membros promoveram muitas vezes a desagregação da família,
vitimando homens, mulheres e crianças. (REIS, 1998, p. 33)
Em nosso documento de análise, os escravos foram comercializados
sozinhos, na maioria dos casos. Ou seja, sem a companhia de outros escravos, fato que
pode revelar que o comércio de escravos, na província cearense na segunda metade do
88
século XIX, significava, de certo modo, a ruptura dos laços familiares construído entre
os cativos.
Um exemplo para ilustrar essa hipótese é o caso do escravo José, descrito
como preto, de apenas nove anos de idade, vendido sozinho por seu proprietário Manoel
Thiago Maria de Araújo ao comprador Antônio Xavier de Castro, em 19 de julho de
1871, por seiscentos mil réis. Não podemos afirmar que a separação tenha de fato
acontecido, talvez o novo senhor de José já estivesse de posse dos pais dele e a
transação comercial do menino estivesse, na verdade, unindo a família novamente.
Outro caso que podemos usar para levantar hipóteses é a compra da escrava Thomazia,
de quatro anos de idade, vendida sozinha, sem alusão ao pai e cuja mãe já é liberta,
como observamos no trecho abaixo:
E pelo outorgante vendedor foi- me dito perante ás mesmas testemunhas que
esse é senhor e possuidor da escravinha de nome Thomazia, parda, de quatro
annos de idade, e natural da Fregueziado Cascavel, e cuja mae ja hoje é
liberta. (fl.51r)
Thomazia estaria sendo comprada por senhores que facilitariam seu
reencontro com a mãe? Qual o interesse dos compradores em comprar um bebê que não
traria força de trabalho imediata? São diferentes possibilidades de interpretações que
podemos tomar. Se questionarmos o papel da lei do Ventre Livre nesse caso, faríamos
questionamentos sobre a eficiência dessas novas normas. Segundo Pena (2001, p. 26),
“No que tange ao costume e à lei travou-se um campo intenso de lutas, conflitos e
negociações entre senhores, escravos e autoridades públicas do Império, sobretudo a
partir da segunda metade do século XIX”.
Encontramos dois casos de comercialização de pais e filhos: um era sobre a
venda do cativo José, descrito como preto, 45 anos, sua esposa de nome Maria, parda,
28 anos, cozinheira e engomadeira, e suas filhas Maria (de nove anos, parda) e
Francisca (de dois anos, parda). Outro caso referente à venda do cativo Benedito,
descrito como preto, de 26 anos, junto à sua esposa Luísa, preta, 28 anos, e os filhos do
casal: José, de oito anos de idade, Maria, de seis anos, Antônio, de quatro anos, e
Florência, de dois anos, sendo todos naturais da província cearense. Nesses dois casos,
nos interessamos em refletir sobre a atitude do senhor em comprar a família inteira.
Seria a boa vontade em manter uma família unida? Seria interesse comercial em
comprar uma grande quantidade de cativos a um preço único de lote? Seria o interesse
89
na mão de obra que as crianças teriam quando ficassem maiores? Não sabemos ao certo,
mas levando em conta o funcionamento do comércio de cativos, é mais provável que
esse proprietário tivesse um pensamento voltado somente à mão de obra desses
escravizados.
No debate sobre as famílias escravas, destacamos o papel da mulher cativa,
que também era vista como mercadoria. Apenas a sua força de trabalho era valorizada,
como confirma Davis:
[...] as mulheres negras sempre trabalharam mais fora de casa do que suas
irmãs brancas. O enorme espaço que o trabalho ocupa hoje na vida das
mulheres negras reproduz um padrão estabelecido durante os primeiros anos
de escravidão. Como escravas, essas mulheres tinham todos os outros
aspectos de sua existência ofuscados pelo trabalho compulsório.
Aparentemente, portanto, o ponto de partida de qualquer exploração da vida
das mulheres negras na escravidão seria uma avaliação de seu papel como
trabalhadoras. (DAVIS, 2016, p. 17)
No século XIX, as mulheres, tanto brancas como negras, ainda eram
consideradas e tratadas como seres subordinados à figura masculina nas mais diversas
esferas sociais. As mulheres brancas detinham privilégios dentro do sistema vigente na
época, suas vidas não eram tratadas como peças passíveis a comércio, como as das
mulheres negras. As mulheres brancas e com dinheiro eram administradoras de
propriedades, casos mais comuns entre as mulheres viúvas. Algumas escrituras mostram
situações em que mulheres eram as compradoras ou vendedoras de cativos, com seus
perfis descritos sempre como proprietárias, como é o caso da viúva Isabel Antônia
Tavares, cuja comercialização foi realizada em sua residência. A viúva é moradora da
cidade de Fortaleza e faz a compra da cativa Delfina, de vinte anos de idade, solteira, e
da de sua filha de nome Joanna, dois anos de idade, sendo ambas naturais da freguesia
de Maranguape, vendidas por trezentos e trinta mil reis. Segundo Assunção (2011,
p.11), “as mulheres [branca] cearenses participavam da administração dos bens da
família, especialmente na falta dos seus esposos, exercendo atividades ligadas ao meio
rural: eram chefes de famílias, geriram fazendas, sítios, engenhos, e escravos”.
As mulheres escravizadas sofriam dupla violência, de gênero e raça, eram
submetidas a opressões que os homens escravos não estavam expostos. As formas de
trabalho exigidas eram diferentes dos homens cativos e variavam de acordo com o
espaço que viviam. Na zona urbana, as tarefas domésticas eram os mais exigidos.
Enquanto na zona rural, trabalhavam nas roças, dos afazeres da casa-grande e, em
90
muitos casos, se tornavam amas de leite. Mesmo assim, historicamente, os cativos do
sexo masculino eram mais valorizados comercialmente. A força física do homem negro
era fator determinante para aumentar seu preço em relação às mulheres cativas da
mesma idade, como veremos na subseção 4.3.
As mulheres escravizadas sofriam com os assédios dos senhores, tendo
casos de estupros e outras violências sexuais. Dessas relações de senhores com escravas,
aconteciam casos de filhos “bastardos” frutos desses relacionamentos. Nas escrituras, a
venda de uma escrava e de seu filho de cinco anos de idade descrito como branco chama
a nossa atenção. Não são dadas outras informações sobre a criança, o que nos dá
liberdade de usar esse exemplo para levantar hipóteses, como o fato de que existiam
casos de mulheres escravas negras que tinham filhos brancos, frutos de relacionamentos
com senhores brancos. Não podemos confirmar se esse é o caso do escravinho citado na
escritura do fólio 83, levando em conta que a mãe era uma escrava de 18 anos, solteira,
vendida junto aos seus filhos, sendo um branco e um mulato. A escritura não faz
menção ao pai das crianças.
O fato é que a vivência das mulheres escravizadas, em certos aspectos, era
diferente das experiências dos cativos homens. As mulheres que viviam em situação de
escravidão tinham estratégias de resistência próprias, por exemplo. Segundo Dias,
Entre as inúmeras formas encontradas pelas escravas para enfrentar as
adversidades, estava o recurso à religião e à magia. O acesso das escravas ao
mundo espiritual era feito através de plantas, folhas e raízes, colhidas
segundo costumes oriundos da África. Além de exercerem importante papel
como agregadoras da vida comunitária, mantenedoras e divulgadoras de
costumes culturais advindos da África, as escravas mais velhas atuavam
também como feiticeiras e curandeiras. Lançavam mão de ervas para
diversos fins, entre eles o de invocar os deuses. Eram elas também que
distribuíram entre as demais escravas os obi, os “trabalhos” a serem feitos
para agradar os deuses e garantir sua intervenção contra a violência dos
capatazes, impedir os estupros, fornecer alimentos para os filhos pequenos e
preservar sua saúde. Algumas acolhiam as mais jovens como afilhadas e as
iniciavam no culto aos deuses, com promessas, amuletos, intermediando todo
tipo de proteção sobrenatural. (DIAS, 2012, p.369)
Desta forma, as mulheres cativas eram grandes forças para manutenção e
perpetuação de costumes e crenças dos povos africanos e seus descendentes, sendo
agentes construtoras de suas histórias. Sendo assim, mesmo em meio às violências,
encontravam caminhos de legitimar suas vivências.
Trata-se de fragmentos da história dessas famílias, mas podemos perceber
que alguns desses cativos tiveram a possibilidade de se casar, gerar filhos, estabelecer
91
alianças. Essas relações afetivas demonstram que existiam laços de afetividade mesmo
com o tratamento desumano recebido pelos escravizados.
4.3 OS PROCESSOS DE COMPRA E VENDA DE ESCRAVOS NO CEARÁ NO
SÉCULO XIX
O Ceará dos oitocentos participava ativamente da manutenção do sistema
escravista no Brasil e, alguns documentos, como as escrituras de compra e venda de
escravos, são ricas fontes de informações sobre essa época, pois são documentos
jurídicos e autênticos, que abordam questões sociais e culturais desse período na então
província. As informações contidas nas certidões são legítimas e apresentam aspectos da
comercialização de sujeitos escravizados, revelando perfis de compradores, vendedores,
dos escravos envolvidos na transação comercial e, também, da sociedade da época.
A escritura pública de compra e venda de escravos na segunda metade do
século XIX representava a declaração pública de um negócio jurídico definitivo e
quitado, elaborada no momento da comercialização do cativo. Portanto, era válido como
documento oficial, assegurando os direitos do vendedor e do comprador, assim como o
pagamento dos impostos respectivos.
No livro de escrituras que analisamos neste trabalho, constam 211 cativos
entre adultos e crianças, sendo 109 do sexo masculino e 102 do sexo feminino. Nesses
documentos encontramos informações que serviram como base para análise dos dados:
data e local do registro da escritura; nomes completos do vendedor, do comprador e de
seus respectivos procuradores (quando havia); sexo (a partir do nome); profissão ou
patente; local de residência. Sobre os cativos, as informações constam do primeiro
nome; sexo (a partir do nome); idade; estado civil; cor; atividade produtiva; origem e/ou
naturalidade; presença ou não de filhos.
Na leitura dos documentos ainda retiramos informações sobre a forma de
aquisição do cativo, preço, a forma de pagamento, valor recolhido pelo imposto, em
alguns casos, a cópia da procuração, o fecho do Tabelião citando as testemunhas e as
devidas assinaturas do comprador, do vendedor, do procurador (se fosse o caso) e das
testemunhas. A seguir, mostramos a edição de uma das escrituras para exemplificar
esses aspectos registrados no texto:
92
fl.39r
Escritura de venda de um escravo de nome Silverio, que á
Dona Joaquina Moura Taborda faz Luis de Castro Silva, pela quantiade 500$
Saibam quantos esta virem que sendo no Anno do Nascimen=
to de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos setenta e um, aos sete dias do 5 mez de outubro, nesta cidade da Fortalesa, Capital do Ceará, em meu car-
torio compareceram perante mim e as duas testemunhas abaixo assi-
gnadas, de uma parte como outorgante vendedor Luis de Castro
Silva, lavrador e morador no termo do Cascavel e de outra como outorga=
da compradora Dona Joaquina Moura Taborda; proprietaria e moradora 10 nesta mesma cidade, ambos bem conhecidos de mim Tabelião, do que dou fé.
E pelo outorgante vendedor foi-me dito perante as mesmas testemu=
nhas que esse é senhor e possuidor do escravo de nome Silverio, mulato,
de trinta e dousannos de idade, solteiro, sem officio, e natural da
freguezia do Cascavel; e porque o possui livre e desembaraçado de 15 qualquer onus, vende como effectivamente vendido tem por meio deste
instrumento á mencionada compradora Dona Joaquina Taborda, pelo
preço e quantia certa de quinhentos mil reis, que, em moeda cor-
rente esse vendedor confessa ja haver recebido da mão da dita com-
pradora, pelo que da a esta plena e geral quitação de paga, 20 transferindo-lhe toda posse dominio e senhorio do mencionado escravo,
do qual pode o comprador tomar conta como seu que é e fica
sendo por bem deste instrumento. E logo pela compradora for dito que aceita
esta escritura de venda como lhe é feita e que ja está de posse do referido
escravo Silverio. Pagou a compradora o imposto devido de trinta mil reis, 25 na secção de arrecadação da Thezouraria Provincial conforme o conhecimento que
me apresentou numero 3290 desta data. Pelo vendedor foi-me apre-
sentada certidão do Collector da Villa do Cascavel provando ser
o referido escravo Silverio empregado na lavoura e morador fo-
ra dos limites d’aquella Villa, pelo que não fora matriculada. 30 Depois de feita esta escritura foi por mim lida perante esses
vendedor e compradora, os quais reciprocamente a aceitaram
por acharem-n’a como outorgado haviam, e eu Tabelião como pes-
soa publica a outorguei e aceitei em nome dos auzentes e pes-
soas a que pertencer possa, sendo testemunhas a tudo presentes 35 Manoel Roberto de Carvalho Guimarães e Leopoldo Leonel de
Alencar que assignaram com os mesmos vendedor, com
migo Joaquim Feijó de Mello Tabelião que escrevi
[Luis de Castro Silva]
[Joaquina Moura Taborda] 40 Testemunhas [Leopoldo Leonel de Alencar]
[Manoel Roberto de Carvalho Guimarães]
93
Logo no início, a escritura traz informações sobre os indivíduos que estão
envolvidos na transação, da mercadoria está sendo comercializada e de seu valor.
Podemos ainda notar que o tabelião aparece como mediador, fornecendo sua “fé” e
tornando o documento legal. No caso dos escravos, algumas escrituras fornecem mais
características do que outras.
É provável que o tabelião, sendo um profissional elitizado, deixasse suas
impressões quando escrevesse qualquer documento. O exemplo de compra e venda
trazida acima deixa claro as diferenciações sociais dos envolvidos na transação
comercial. A compradora era Dona Joaquina Taborda, ela não era somente Joaquina ou
Joaquina Taborda, ela era também Dona. É importante estar atento às formas que as
informações são colocadas pelo escrivão, pois podem expressar uma classificação de
status e prestígio social do período.
No discurso dos documentos percebemos uma preocupação no momento de
adquirir um escravo. Tanto os vendedores como os compradores buscam na escritura
pública um meio de legalizarem a transação e protegerem seu negócio.
Analisando o comércio de cativos, percebemos aspectos da época escravista,
e manifestações linguísticas, sobretudo lexicais, que demonstram as relações de poder,
as formas de opressão e como a transação comercial escravista era aceita judicial e
socialmente. Ao analisarmos o contexto de escravidão da então província cearense,
encontramos o tratamento dado aos escravizados no momento de sua comercialização e
como isso fazia parte dos jogos de poder do senhorio. As motivações para a compra e
venda desses sujeitos revela como a população negra era reduzida a coisa, peça.
Segundo Joaquim Nabuco apud Funes (2007) a escravidão:
[...] é a posse, o domínio, o sequestro de um homem – corpo, inteligência,
forças, movimentos, atividades – e só acaba com a morte. Como se há de
definir juridicamente o que o senhor pode sobre o escravo, ou que este não
pode, contra o senhor? Em regra o senhor pode tudo. (NABUCO apud
FUNES, 2007, p. 108)
O comércio de escravos foi dinâmico na realidade econômica do século
XIX, haja vista o grande número de escrituras de compras e vendas registradas nos
documentos cartoriais, tanto do Arquivo Público do Ceará como de outros arquivos do
estado, além das diversas escrituras tratando de hipotecas e penhoras de cativos em
diferentes circunstâncias.
94
Os cativos não participavam ativamente do processo de compra e venda, a
comercialização apresenta esses sujeitos como objeto de negociação, tendo suas
características físicas descritas como forma de apresentar o produto e suas habilidades
de trabalho como atributos que ajudam a valorar a venda. A descrição do perfil dos
escravos vendidos, as exigências de seus compradores e como era o processo ao qual
eram submetidos, mostram que os cativos não tinha qualquer autonomia, eram
considerados objetos negociáveis. Gorender (1985) explica que:
[...] idade, sexo e robustez constituíram fatores de influência permanente na
determinação do preço de compra do escravo. [...] A par das qualidades
intrínsecas, ou, em outras palavras, do valor de uso, influíam no preço do
escravo fatores propriamente mercantis, atuantes no lado da oferta e no lado
da demanda em sua oscilante correlação. (GORENDER, 1985, p. 186).
A população cativa no Ceará nos oitocentos era majoritariamente nascida no
Brasil. De acordo com Assunção (2009):
Os dados para esse período [primeira metade do século XIX] confirmam que
o processo de “crioulização” da população cativa começou a ocorrer no Ceará
bem antes do fechamento definitivo do tráfico internacional, em 1850. Muito
embora se perceba que a parcela composta por africanos não foi
insignificante, pois eles constituíram 25,1% do total, quando começa a haver
um declínio crescente deles em todas as décadas, chegando a representar
apenas 3,8% dos escravos inventariados na fase B [segunda metade do século
XIX]. Muitos dos africanos que viviam na província podem ter sido
deslocados no tráfico interno que se inicia intensamente no pós-1850.
(ASSUNÇÃO, 2009, p. 32)
As escrituras produzidas no recorte que compreende nosso trabalho não
registram nenhum caso de cativos africanos. Os documentos mostram um número maior
de cativos descritos como pretos, sendo 74 sujeitos. Em seguida, aparecem os cativos
descritos como pardos, 68 registros. Os descritos como mulatos contabilizam 49
escravizados no total. Registramos ainda 14 fulos, 01 acaboclado, 01 caboclo, 01 branco
e 03 cativos ser cor descrita em seu perfil. Os cativos comercializados nas escrituras
eram descritos como naturais da província cearense, exceto por 01 caso de uma cativa
natural do Maranhão, 03 casos de escravizados naturais da província do Rio Grande do
Norte, 02 cativos naturais da província de Pernambuco e 04 sujeitos cativos descritos
como sendo naturais da província de Piauí.
Nas escrituras analisadas, foi possível encontrar registros de compradores
que ganharam destaque na província na época. Eram comerciantes de grande
95
importância, como o francês Jacob Cahn, citado em diversas escrituras e que, segundo
Girão (1984), era um dos que anunciavam em jornais a compra de escravo, fato que não
causava nenhum escândalo.
O comprador de escravizados é caracterizado no documento com o nome
completo, algumas vezes acompanhado do local de origem e estado civil,
principalmente se for uma compradora mulher, geralmente viúva. O vendedor também
tem seu nome completo apresentado e seu ofício, são comumente agricultores e
comerciantes.
No quadro abaixo, apresentamos alguns compradores que são mais citados
nas escrituras:
Quadro 10 - Compradores em destaque nas escrituras analisadas.
Comprador Cativos comprados
Jacob Cahn 17 cativos
Luis Ribeiro da Cunha & Sobrinhos 30 cativos
Manoel Jose de Oliveira Figueiredo 03 cativos
Doutor Constantino Jose da Silva Braga 03 cativos
Fonte: elaborado a partir das escrituras pertencentes ao APEC.
Os senhores e senhoras de cativos provinham de regiões do interior da
província, da capital e alguns de fora da província. Por exemplo, o Barão de São
Leonardo, Coronel e Comandante Superior da Guarda Nacional da Província do
Amazonas, comprou Henrique, de cor fula, vinte e seis anos de idade, solteiro e natural
da província cearense. Girão (1984) explica como funcionava o mercado de cativos
entre os negociantes:
Faziam-se as vendas, na mor parte, para conveniência dos intermediários ou
traficantes, por meio de recibos passados a estes e de procuração que lhes
autorizava a venda no Rio de Janeiro. Se, no trajeto do sertão para Fortaleza,
alguém oferecesse vantagens compensadoras, transferia-lhe o traficante a
procuração e, desta forma, acontecia que o escravo, antes de chegar ao
destino, já estivera na posse de diversos donos, com lucros para cada qual,
mas prejuízo para a Fazenda da Província, que somente receberia a sisa por
ocasião da última barganha. (GIRÃO, 1984, p. 61)
Entre os compradores e vendedores damos destaque à existência de
empresas envolvidas no comércio da compra e/ou venda de escravos, cujas
denominações, em sua maioria, se referem a nomes e/ou sobrenomes de famílias. No
96
quadro a seguir, mostramos as empresas citadas e quantas negociações elas fizeram nos
documentos analisados:
Quadro 11 - Empresas em destaque nas escrituras como negociantes.
Empresa Cativos negociados
Pinheiro de Palma e Companhia Vendeu um cativo;
Moura Rolim & Sobrinhos Vendeu um cativo; comprou um cativo;
Luís Ribeiro da Cunha & Sobrinhos Comprou 30 cativos;
Farias & Sobrinhos Vendeu um cativo; comprou um cativo;
Fonseca & Irmão Comprou um cativo
Viúva Salgado Sousa & Companhia Vendeu 03 cativos
Fonte: elaborado pela autora a partir das escrituras pertencentes ao APEC.
A participação de empresas na comercialização de cativos era comum, seja
como compradoras, vendedoras ou na posição de procuradoras. Assunção (2009) faz
referência a duas firmas citadas no corpus:
A empresa Luis Ribeiro da Cunha & Sobrinhos atuava muito no porto, no
comércio de importação e exportação de produtos. A firma surge em vários
tipos de fontes negociando, comprando e vendendo escravos. Nos anos de
1870, eles viriam a se tornar um dos maiores e mais importantes exportadores
de escravos da província. Com relação aos outros grandes negociantes desta
série de 1868, disponho de mais algumas poucas considerações a fazer. A
firma Fonseca & Irmãos tinha como sócios os irmãos José da Fonseca
Barbosa e Joaquim da Fonseca Barbosa. O patriarca chamava-se Joaquim da
Fonseca Soares e Silva e a mãe deles era Thereza Barboza da Fonseca. No
inventário do pai dos irmãos, descobri que José e Joaquim Filho haviam
herdado muitos bens, entre os quais sobrados em Fortaleza e dois grandes
armazéns na Rua da Praia avaliados em 3 contos de réis cada um.
(ASSUNÇÃO, 2009, p. 104)
Como podemos ver, alguns negociantes eram sujeitos de destaque na
sociedade da época por serem donos de imóveis e comercializarem em nomes de
grandes firmas. No entanto, outros negociantes menores também aproveitaram os
negócios da escravidão, sendo agricultores donos de poucas terras ou comerciantes
donos de pequenos negócios, mas que possuíam escravos, muitas vezes apenas um ou
dois cativos.
Outros sujeitos citados nas escrituras como partes do processo de registro da
comercialização são as testemunhas, o escrivão e o tabelião. São os sujeitos referentes
ao âmbito jurídico, estão presentes em todas as escrituras e alguns nomes se repetem
97
com frequência. No caso do tabelião, algumas escrituras foram assinadas por um
substituto temporário, sendo Joaquim Feijó de Mello o oficial. O escrivão possuía as
habilidades da leitura e da escrita, pouquíssimas pessoas possuíam essas aptidões, fato
que agregava valor a esse profissional, situando-o na elite colonial e provincial e no
cenário administrativo-judiciário. O setor administrativo dispunha, segundo Salgado
(s.d., p. 76), “[...] de uma série de oficiais menores, que os auxiliavam no exercício de
suas funções, tais como escrivães (para escrever os autos dos processos), tabeliães (para
garantir a validade dos documentos) [...]”. Nas escrituras é possível confirmar o poder
do tabelião, como observamos no trecho abaixo:
Depois de feita esta escritura foi por mim lida presente esses vendedores,
comprador, os quais reciprocamente a aceitaram por acharem-n’a como
outorgado haviam e eu Tabelião como pessoa publica a outorguei e aceitei
em nome dos auzentes e pessoas a que pertencer possam semdo testemunhas
a tudo presentes Bernardo Jose Couto e Antonio Jose de Freitas, que
assignaram com o mesmos vendedores, comprador e comigo Joaquim Feijó
de Mello Tabeliaõ que escrevi = (fl. 2r)
Ressaltamos que no livro pesquisado no 1º Cartório de Fortaleza,
localizamos um total de 174 escrituras de compra e venda, envolvendo um número de
211 escravos, negociados em um intervalo de três anos, ou seja, entre 1870 e 1873, e em
cujo período constatou a existência de variados tipos e/ou formas de efetivação de
comercialização, dentre os quais predominaram as escrituras de vendas individuais de
escravos, sendo que também identificamos a ocorrência significativa de casos
envolvendo compras coletivas, ou seja, de vários escravos negociados em uma mesma
escritura, sendo 27 casos de cativos vendidos conjuntamente, como podemos visualizar
no quadro abaixo:
Quadro 12 - Quantidade de escravos por escrituras. Escravos por escrituras Escrituras
1 135
2 20
3 1
4 3
6 1
7 1
8 1
Fonte: elaborado a partir das escrituras pertencentes ao APEC.
Verificamos também a ocorrência de um caso de comercialização da metade
do escravo, como mostramos no trecho a seguir:
98
Pelos privilegios que me saõ concedidos, constituo por meu certo e legitimo
procurador ao Senhor José Eneas Cavalcante para que possa vender na
Capital desta Provincia ou onde lhe convier o escravo Sabino, crioulo, com
idade de desesete annos, pouco mais ou menos, em cujo escravo tenho a
metade de seu valor, pertencendo a outra metade ao mesmo procurador e a
um seu imaõ de nome Honorio Cavalcante de Mattos. (fl.96v)
Outra situação que consideramos incomum é a negociação de terça parte do
cativo: “Escritura de venda que fazem Pinheiro de Palma eCompanhia da terça parte
que possuem nas escravas Delfina e sua filha Joanna á viuva dona Isabel Antonia
Tavares pela quantia de 330$000 (fl.1r)”.
Esses são casos que consideramos exemplos absurdos do tratamento
desumano que os sujeitos escravizados recebiam. A venda de metade ou partes de um
ser humano como se fossem pedaços de terra divididos entre interessados na
produtividade. São situações que evidenciam a crueldade da escravidão e a visão que o
senhor tinha do escravo: propriedade, objeto, peça vendável. A única utilidade era sua
força de trabalho e a possibilidade de negociação para obter lucros sobre o “produto”.
Esse tipo de negociação aponta para a valorização do braço cativo, sendo
disputado parte a parte pelos interessados. Também é consequência de problemas que
poderiam ocorrer juridicamente em torno da posse do cativo, pois nem sempre os donos
dos escravizados negociavam amigavelmente as partes, principalmente em casos de
herança.
Também foram identificados outros casos, como a venda “condicional” de
um escravo, situação em que o cativo era entregue aos compradores durante parte ou
todo prazo do ajuste. Na escritura fl. 39v, a cláusula dava poder à vendedora para tomar
o escravizado dentro do prazo de três meses caso o pagamento total não fosse efetuado.
Outra reflexão feita a partir dos dados levantados diz respeito à diferença de
preços por sexo e faixa etária dos cativos. Os quadros abaixo mostram a média de preço
por faixa etária e os preços das vendas coletivas:
Quadro 13 - Mulheres cativas vendidas sozinhas.
Faixas etárias Número Preço médio (réis)
Menores de 10 anos 4 375$000
10 a 14 anos 9 588$889
15 a 39 anos 48 800$521
40 a 59 anos 1 400$000
60 ou mais 1 1:200$000
99
Fonte: elaborado pela autora a partir das escrituras pertencentes ao APEC.
Quadro 14 - Homens cativos vendidos sozinhos.
Faixas etárias Número Preço médio (réis)
Menores de 10 anos 7 550$000
10 a 14 anos 12 755$000
15 a 39 anos 50 966$000
40 a 59 anos 3 650$000
60 ou mais 0 - Fonte: elaborado pela autora a partir das escrituras pertencentes ao APEC.
Quadro 15 - Cativos vendidos em grupo. Compras coletivas (cativos e idade) Preço
Mãe (20) e filha (02) 330$000
Mãe (19) e filho (01) 1:070$000
Mãe (20) e filha (08) 1:100$000
Dois cativos sem parentesco descrito. Um homem
(28) e uma mulher (22)
2:300$000
Mãe (30) e três filhos (07) (05), (04) 1:400$000
Mãe (35) e filha (10) 600$000
Marido (26), esposa (28) e quatro filhos (08), (06),
(04) e (02)
3:000$000
Mãe (35) e filho (05) 650$000
Dois cativos sem parentesco descrito. Um homem
(12) e uma mulher (19)
1:070$000
Mãe (20) e dois filhos (04), (01). Mãe (20) e três
filhos (05), (03), (01)
1:600$000
Mãe (26) e filho (03) 1:250$000
Mãe (29) e filho (08) 1:500$000
Marido (45), esposa (28) e duas filhas (09), (02)
2:500$000
Mãe (34) e sete filhos (11), (10), (08) (07), (06),
(03), (05 meses)
2:600$000
Dois cativos sem parentesco descrito. Um homem
(22) e uma mulher (18)
2:000$000
Dois cativos sem parentesco descrito.
Dois homens (14), (12).
1:000$000
Mãe (25) e filho (02). Um terceiro escravo (20)
sem parentesco descrito
1800$000
Uma mãe (32) e três filhos (09), (07), (06) 2:000$000
Marido (42) e esposa (39) 1:200$000
Mãe (22) e filha (04) 1:000$000
Duas cativas sem parentesco descrito (18), (26)
1:400$000
100
Mãe (19) e filho (02) 920$000
Mãe (18) e filho (05) 616$000
Mãe (32) e filha (04) 700$000
Dois cativos sem parentesco descrito. Um homem
(28) e uma mulher (27)
1:500$000
Mãe (25) e filha (03) 1:000$000
Dois irmãos (19), (16) 1:900$000
Fonte: elaborado pela autora a partir das escrituras pertencentes ao APEC.
No quadro acima podemos observar que muitos cativos foram negociados
por lote com um preço único registrado nas escrituras. Sendo assim, não levamos em
conta os preços desses cativos ao calcular as médias, pois estas podiam se elevar, o que
levaria a distorção dos índices.
No que diz respeito ao preço dos cativos comercializados, Mattoso (2003)
explica que:
O preço do escravo é um jogo de variáveis, algumas das quais totalmente
alheias ao próprio escravo e outras, ao contrário, intimamente ligadas à sua
pessoa. O preço do escravo depende da concorrência, da distância entre o
porto de embarque e o ponto de venda, da especulação, da conjuntura
econômica, depende ainda de sua idade, sexo, saúde, de sua qualificação
profissional. A concorrência que as grandes potências fazem umas às outras
nos mercados de escravos representa papel determinante na formação do
preço do cativo. (MATTOSO, 2003, p. 77)
Observamos a frequência de preços iguais para escravos de mesma idade.
Os estudos destacam que a idade era uma das principais determinantes do valor do
cativo. Outro fator considerado para avaliação do preço era gênero, fato evidente
quando voltamos nossa atenção para os preços médios e notamos que os maiores preços
são referentes aos escravos do sexo masculino. Mattoso (2003, p. 86) explica que “O
preto é, pois, vendido, em geral e em condições comparáveis, mais caro do que a preta,
e o sexo é um elemento que não se pode desprezar na formação do preço do escravo. A
idade também é importante; talvez mais que o sexo [...]”.
Nas escrituras encontramos 47 crianças na faixa etária de 0 a 10 anos, sendo
18 do sexo feminino e 29 crianças do sexo masculino. Nesta categoria, podemos citar os
101
casos dos ingênuos, termo criado após a lei do Ventre Livre, de 1871. No trecho abaixo,
a criança de cinco meses, por exemplo, nasceu em 1871, ano da promulgação da lei:
Domingas, mulata, de trinta e quatro annos de idade, casada com liberto
Severino, e sem officio, e seus filhos Francisco de onze annos de idade,
Balbina de dez annos de idade, Severino de oito annos, Francelina de sete
annos, Miguel de seis annos, Benedito de tresannos, e Manoel de cinco
mezes, todos mulatos e naturais da freguezia de Maria Pereira; e porque os
possui livre e desembaraçados de qualquer onus, vende como effectivamente
vendido tem por meio deste instrumento aos mencionados compradores Luis
Ribeiro da Cunha & Sobrinho. (fl. 40r)
Em casos como esse, a criança era comercializada na companhia de sua mãe
e não vendida de fato, sendo uma compra de um único preço, o que poderia facilitar a
barganha. Desta forma, os proprietários usufruíam da força de trabalho da mãe e do
filho.
Na faixa etária de 60 anos ou mais encontramos apenas um caso, a venda da
cativa Josefa, preta, de sessenta anos de idade, solteira, sem ofício, e natural da
Província do Maranhão. A venda de escravizados idosos historicamente sempre foi
menor se compararmos com as demais faixas etárias. Comercialmente eram preteridos
devido à velhice e a incapacidade de mão de obra rápida e efetiva. Assunção (2009)
explica que:
Na faixa de idade dos “velhos”, correspondente aos escravos acima dos
quarenta e seis anos, há uma incidência maior de escravos com saúde
debilitada e os inválidos. No Ceará desse período o índice de mortalidade dos
velhos foi maior entre as mulheres. Escravas morriam mais na escravidão
cearense. Os “velhos” não eram tão valorizados no processo produtivo, mas
estiveram presentes, ainda que os preços nessas faixas indiquem uma queda
crescente que se eleva à medida que as idades avançam. (ASSUNÇÃO, 2009,
p.61)
Na segunda metade do século XIX, o tráfico de escravos era também uma
tentativa de manutenção da escravidão que, com os movimentos pró-abolição,
começava a enfraquecer. Os trabalhadores livres já estavam em grande número, como
explica Silva:
O cativo cearense desempenhou diversas funções socioeconômicas na
história do Ceará, dependendo do local onde trabalhava e a época em que
viveu. Em se tratando da segunda metade do século XIX, quando já era
numerosa a mão-de-obra livre disponível para os trabalhos agropastoris, a
posse deles pelos senhores era, muitas vezes, plenamente dispensável. Na
maioria das regiões do Ceará, não era força de trabalho insubstituível.
(SILVA, 2002, p. 104)
102
Em 1860, a comarca de Fortaleza apresentava um número total de 2.861
escravos. Já em 1872, o censo demonstra que havia 1.183 cativos13
. Esse recorte
temporal corresponde aos anos de produção das escrituras analisadas neste trabalho e
podemos observar a diminuição do número de cativos em Fortaleza. Esse número
diminui até os anos finais da escravidão. No entanto, através das escrituras e do fluxo
comercial de cativos entre as regiões da província cearense, percebemos que os
senhores de escravos tentavam manter esse sistema através da comercialização de
famílias cativas e de escravizados mais jovens.
Nos últimos anos da escravidão os casos de fuga dos cativos, alforrias e as
ações para validação das leis vigentes, como a do Ventre Livre, eram aliados para o
enfraquecimento do tráfico de escravos e para o que mais tarde resultaria na abolição da
escravatura.
Mattoso (2003) nos traz uma importante reflexão sobre o ser negro escravo
no Brasil:
Ser escravo no Brasil é buscar a superação das contradições entre esses dois
mundos [mundo dos homens livres e mundo dos escravos] e, ao mesmo
tempo, das tensões no grupo dos escravos. O negro deve abdicar de certas
formas de seu mundo anterior, mas sua vida nova, se ele se integra bem, pode
oferecer-lhe, como veremos, outras riquezas, ganhos libertadores, por serem
criadores de um novo pensar e, sobretudo, novos laços afetivos. [...] As
relações sociais no Brasil dos séculos XVII, XVIII e XIX são, pois,
complexas, bem mais do que a imagem simplificadora refletida pela clássica
oposição entre os homens livres dominantes e os homens pretos dominados
(MATTOSO, 2003, p. 123).
Entender essa complexidade é compreender que, mesmo no estado de
submissão que a escravidão destinava aos negros escravizados, esses homens e
mulheres também eram ativos, atuando na construção de suas próprias histórias e na
história da sociedade como um todo. Hoje podemos perceber essa influência no léxico,
na culinária, na religiosidade e nos costumes e práticas mais sutis da nossa sociedade,
percebendo que entre a crueldade das violências sofridas e a luta pela liberdade
existiram diferentes formas de resistências.
13
BRASIL, Tomás Pompeu de Souza. Ensaio estatístico da província do Ceará. Fortaleza: Fundação
Waldemar Alcântara, 1997.
103
5 “OUTORGUEI E ACEITEI”: CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao adentrarmos nas considerações finais, convém recordar os objetivos
listados no início de nosso trabalho. A saber: descrever a organização estrutural do
gênero documental escritura de compra e venda de escravos; analisar os aspectos
linguísticos-filológicos das escrituras, sobretudo, os aspectos lexicais que caracterizam
os sujeitos envolvidos nos textos; analisar os aspectos sócio-históricos e culturais da
sociedade escravocrata do Ceará no século XIX presentes nas escrituras. Ao final,
consideramos que nossas propostas iniciais foram alcançadas.
Através da edição semidiplomática, contribuímos para a recuperação de um
livro com 174 escrituras de compra e venda de escravos, colaborando com a
preservação de documentos que detêm informações sobre a história do Ceará. A partir
desses textos, iniciamos a dissertação buscando perceber a potencialidade informativa
desse gênero textual e suas possibilidades de análise.
Para percorrer os caminhos desejados no trabalho realizamos, à luz da
Filologia, um estudo diplomático das escrituras para compreender sua estrutura, sua
linguagem e os elementos que concedem veracidade às informações contidas nos textos.
Estabelecemos uma ponte entre a história, a cultura e a língua, aproximando os
elementos linguísticos e os aspectos sócio-históricos presentes nas escrituras.
Partindo da premissa de que o léxico é um aspecto linguístico que detém
muitos pontos de contato com a realidade extralinguística e, por isso, nos permite
acessar a história e a cultura de um povo, selecionamos e analisamos lexias voltadas
para a escravidão, especificamente, para a comercialização de cativos. As lexias
selecionadas e categorizadas revelaram informações sobre os cativos e suas condições
de vida, possibilitando o conhecimento de um pouco do cenário cearense nesse contexto
histórico, e da escravidão de modo geral. Permitindo, ainda, compreender a organização
do serviço notarial no final do século XIX e como se davam as práticas de compra e
venda de cativos.
O corpus usado como fonte primária nesse trabalho é composto por
documentos oficiais escritos por um setor da sociedade oitocentista que era conivente
com o sistema escravista. Desta forma, analisamos um discurso que argumentava a
favor da escravidão e objetivava legitimar, justificar e manter o regime escravocrata.
Não trabalhamos, por exemplo, com registros dos próprios escravos, o que nos impede
de acessar a perspectiva do escravizado sobre o funcionamento do comércio de cativos.
104
Os dados levantados apontaram questões sobre os impostos pagos, os pré-
requisitos para que os tabeliães pudessem lavrar as escrituras, os sujeitos envolvidos na
validação do documento e informações sobre o perfil e o preço dos sujeitos
comercializados. Quanto a isso, nossa análise revelou que, no recorte temporal que
compreende nosso trabalho, o fluxo de comércio de cativos era dinâmico e atingia
mulheres, homens e crianças. Registramos, ainda, casos de famílias cativas negociadas e
situações de separação do núcleo familiar, levantando uma discussão sobre o tratamento
dado a esses laços pelos senhores de escravos.
Na análise dos preços, concluímos, através das médias, que os cativos
homens eram mais valorizados comercialmente que as mulheres escravizadas,
confirmando outros estudos sobre o tema na historiografia brasileira. Os homens
também eram a maioria, numericamente. Esses dados foram importantes para avaliar o
momento histórico em que a província cearense vivia. Mesmo com os movimentos
abolicionistas ganhando apoiadores, o sistema escravista estava a todo vapor,
alimentando o tráfico de escravos e a própria ideia de perpetuação do escravismo.
No tocante aos discursos abolicionistas que mediam força com os de pró-
escravidão, é preciso destacar esse processo sob a perspectiva dos próprios cativos,
como as estratégias de sobrevivência e resistência criadas nas senzalas, as lutas para
comprar suas alforrias e as de seus familiares, as ações subversivas de fuga e vinganças,
foram elementos que ajudaram a enfraquecer a base que sustentava a escravidão na
província, no caso, o comércio de cativos. A abolição na província cearense não pode
ser atribuída somente aos abolicionistas, como uma boa ação de uma elite que desejava
a liberdade dos negros cativos.
Amparados nessa ideia de que os escravizados eram sujeitos ativos e
construtores de ideias e de ações, trazemos um discurso de compreensão desses
documentos mesmo com os silêncios que ele apresenta sobre as partes dos principais
envolvidos nas transações comerciais: os cativos. E, diante de tudo o que foi exposto,
esperamos ter contribuído para ampliar o debate historiográfico acerca da escravidão no
Brasil, especificamente sobre a comercialização dos sujeitos cativos no Ceará da
segunda metade do século XIX.
Acreditamos ter alcançado nossos objetivos no que diz respeito à análise,
por meio do léxico, de um pouco da história escravocrata ocorrida no Ceará oitocentista.
E também de cumprir o exercício de compreender a história envolta na escrita das
escrituras de compra e venda de escravos através de elementos da Filologia. Sendo
105
assim, esperamos que esta dissertação, bem como tantas outras pesquisas sobre este
momento da nossa história, seja instrumento de análise para futuros trabalhos e também
para ampliação das discussões sobre a escravidão dos negros ocorrida no Brasil, fato
histórico que tem reverberações até os dias atuais.
Sendo o racismo uma herança cruel da escravidão atualmente, é preciso
reconhecer o sistema escravista como algo vergonhoso e cruel, para que possamos
identificar as ações cotidianas que legitimam essa continuação da ideia de
hierarquização. Um passo importante para essa desconstrução é a apropriação de
conhecimentos sobre esse momento da nossa história, e é dessa forma que pretendemos
contribuir para esses diálogos, sendo fonte de informação sobre esse período e ajudando
na preservação da nossa memória. Mais que saber sobre nossa história é preciso
aprender com ela.
106
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