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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ FACULDADE DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS E LETRAS DO SERTÃO CENTRAL MESTRADO ACADÊMICO INTERDISCIPLINAR EM HISTÓRIA E LETRAS FRANCISCA LISIANI DA COSTA RODRIGUES ESTUDO LINGUÍSTICO-FILOLÓGICO E HISTÓRICO SOCIAL DE ESCRITURAS DE COMPRA E VENDA DE ESCRAVOS NO SÉCULO XIX (1870 1873) QUIXADÁ CEARÁ 2019

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

FACULDADE DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS E LETRAS DO SERTÃO

CENTRAL

MESTRADO ACADÊMICO INTERDISCIPLINAR EM HISTÓRIA E LETRAS

FRANCISCA LISIANI DA COSTA RODRIGUES

ESTUDO LINGUÍSTICO-FILOLÓGICO E HISTÓRICO SOCIAL DE

ESCRITURAS DE COMPRA E VENDA DE ESCRAVOS NO SÉCULO XIX

(1870 – 1873)

QUIXADÁ – CEARÁ

2019

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FRANCISCA LISIANI DA COSTA RODRIGUES

ESTUDO LINGUÍSTICO-FILOLÓGICO E HISTÓRICO SOCIAL DE ESCRITURAS

DE COMPRA E VENDA DE ESCRAVOS NO SÉCULO XIX (1870 – 1873)

Dissertação apresentada ao Curso de

Mestrado Acadêmico Interdisciplinar em

História e Letras da Faculdade de

Educação, Ciências e Letras do Sertão

Central da Universidade Estadual do

Ceará, como requisito parcial para a

obtenção do título de Mestre em História

e Letras. Áreas de concentração: Cultura,

Memória, Ensino e Linguagem.

Orientador: Prof. Dr. Expedito Eloísio

Ximenes

QUIXADÁ – CEARÁ

2019

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À memória de meu avô, João Paulo

Filho, que em vida mostrou o valor da

empatia e da humildade, prezou pela

educação transformadora e viveu pela

importância de buscar conhecimento.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha mãe, Liduina Rodrigues, que tanto me ensina sobre força, afeto e

sensibilidade para enxergar a felicidade no caminho.

Às minhas irmãs, Beatriz, Carliene e Lidiane, pelos ensinamentos, pelas mensagens de

conforto e encorajamento e pelas fotos e vídeos dos meus sobrinhos que me dão alegria

quando me faltam forças.

Ao meu querido orientador, professor Expedito Eloísio Ximenes, que, desde a

graduação, é um ponto de apoio e de aprendizagem. Obrigada pela orientação neste

trabalho, pelos livros emprestados, pelas sempre sábias palavras que me ajudaram na

escrita e me ensinaram tanto sobre a vida. Sua forma simples e sensível de enxergar o

outro me inspira.

Às minhas amigas e professoras Jaquelânia e Valdênia. Serei eternamente grata por me

acolherem com tanto afeto na casa e no abraço de vocês. A amizade das duas é um dos

melhores presentes que ganhei nessa vida.

Ao Anderson Lemos, meu ponto de calmaria nos dias turbulentos, meu ponto de amor

em todas as horas.

A toda minha família, representada pelo Andrade, que me ajudou de tantas formas até

aqui.

Às minhas amigas Lizandra, Alice e Mayara, severinas fortes e combatentes que

estavam comigo no Mestrado. Vocês representam a força que carrego de todas as

mulheres que lutaram para que hoje nós tenhamos acesso à educação e ao poder da

escrita.

Às minhas amigas Samyla, Kaline, Priscila, Sabrina, Larissa e Maiara que estão sempre

comigo. Estão nessas linhas todas as conversas que já tivemos sobre coragem, futuro e

crença em nós mesmas.

Aos meus amigos, Tiago, Ythalo, Guilherme e Alan que, cada um ao seu modo, me

ajudaram a tornar os dias difíceis mais prazerosos.

Aos professores do MIHL, em especial à Vânia Vasconcelos, minha eterna inspiração.

Aos colegas da turma 02 do MIHL, nossas conversas, nem sempre convergentes, me

ensinaram muito sobre individualidades e respeito.

À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), por

financiar o desenvolvimento desta pesquisa.

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Ao Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), que guarda as fontes desta pesquisa,

pela disponibilidade em atender os pesquisadores.

Ao grupo de pesquisa PRAETECE (Práticas de Edição de Textos do Estado do Ceará),

pelas boas viagens e reuniões com os colegas que compartilham do amor pela Filologia.

A todos que tornaram possível a realização deste trabalho, embora não tenham sido

citados diretamente.

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RESUMO

A presente dissertação é resultado do estudo que consiste na análise linguística e

histórica de documentos oitocentistas do Ceará, referentes à escravidão, especificamente

à transação comercial envolvendo os negros escravizados. Fundamentamo-nos na

Filologia, na Diplomática, no Léxico, na Cultura e na História Social, e percorremos os

seguintes caminhos: inicialmente, selecionamos cento e setenta e quatro escrituras de

compra e venda de escravos datadas do período de 1870 a 1873. Em sequência,

baseando-nos nas normas de edição reelaboradas pelo grupo de pesquisa Práticas de

Edição de Textos do Estado do Ceará (PRAETECE), editamos semidiplomaticamente

todos os documentos. Realizamos, a posteriori, o levantamento de lexias presentes nas

escrituras, mediante a observação do contexto de uso e quando esse não foi suficiente

para esclarecer o sentido, recorremos aos dicionários de Moraes Silva (1789), Silva

Pinto (1832), entre outros. Organizamos e analisamos as lexias a partir de categorias,

compreendendo seu sentido dentro do discurso social e jurídico sobre a escravidão,

descrevendo e levantando hipóteses sobre a comercialização de escravizados na

província cearense. Os resultados apontam que as lexias são capazes de conservar ou

modificar seus sentidos de acordo com as concepções ideológicas e culturais vigentes na

sociedade no momento em que são registradas. Na análise dos dados, constatamos que

os homens cativos eram mais procurados e mais valorizados no tráfico de escravizados,

identificamos, também, a venda de famílias escravas, bem como a separação desses

laços familiares, levantando uma discussão sobre o tratamento dado aos cativos e suas

relações afetivas. Estes aspectos ajudaram a compreender um pouco da história da nossa

língua e da história do Ceará nos oitocentos no que se refere à escravização de negros.

Palavras-chave: Filologia. Léxico. Cultura. Escravidão.

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RESUMEN

La presente disertación es resultado del estudio que consiste en el análisis lingüístico e

histórico de documentos ochocentistas de Ceará, referentes a la esclavitud,

específicamente a la transacción comercial involucrando a los negros esclavizados. Nos

basamos en la Filología, en la Diplomática, en el Léxico, en la Cultura y en la Historia

Social, y recorrimos los siguientes caminos: inicialmente, seleccionamos ciento setenta

y cuatro escrituras de compra y venta de esclavos fechadas en el período de 1870 a

1873. En secuencia, basándonos en las normas de edición reelaboradas por el grupo de

investigación Práticas de Edição de Textos do Estado do Ceará (PRAETECE), editamos

semidiplomáticamente todos los documentos. Realizamos, a posteriori, el levantamiento

de las lexías presentes en las escrituras, mediante la observación del contexto de uso y

cuando ese no fue suficiente para aclarar el sentido, recurrimos a los diccionarios de

Moraes Silva (1789), Silva Pinto (1832), entre otros. Organizamos y analizamos las

lexías a partir de categorías, comprendiendo su sentido dentro del discurso social y

jurídico acerca de la esclavitud, describiendo y levantando hipótesis acerca de la

comercialización de esclavizados en la provincia cearense. Los resultados apuntan que

las lexías son capaces de conservar o modificar sus sentidos de acuerdo con las

concepciones ideológicas y culturales vigentes en la sociedad en el momento en que se

registran. En el análisis de los datos, constatamos que los hombres cautivos eran más

buscados y más valorados en el tráfico de esclavizados, identificamos, también, la venta

de familias esclavas, así como la separación de esos lazos familiares, levantando una

discusión acerca del trato dado a los cautivos y sus relaciones afectivas. Estos aspectos

ayudaron a comprender un poco de la historia de nuestra lengua y de la historia de

Ceará en los ochocientos en lo que se refiere a la esclavización de los negros.

Palabras clave: Filología. Léxico. Cultura. Esclavitud.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Catalogação do livro de escrituras ........................................................... 20

Figura 2 - Fragmento de uma escritura de compra e venda de escravos ............... 20

Figura 3 - Fragmento de uma escritura de compra e venda de escravos ............... 21

Figura 4 - Edição fotográfica de uma escritura de compra e venda escravos ....... 22

Figura 5 - Fragmento de uma escritura de compra e venda de escravos ............... 27

Figura 6 - Fragmento de uma escritura de compra e venda de escravos ............... 27

Figura 7 - Capa do livro de escrituras ....................................................................... 44

Figura 8 - Contracapa do livro de escrituras ............................................................ 45

Figura 9 - Termo de abertura do livro de escrituras ................................................ 46

Figura 10 - Termo de encerramento do livro de escrituras ..................................... 47

Figura 11 - Rubrica do Juiz de Direito .................................................................... 48

Figura 12 - Edição fotográfica de uma escritura de compra e venda escravos com

alterações na foto ....................................................................................................... 53

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Divisão dos documentos diplomáticos ................................................... 43

Quadro 2 - Exemplo de uma análise diplomática ..................................................... 48

Quadro 3 - Exemplo de dados para uma análise diplomática ................................. 50

Quadro 4 - Análise diplomática de uma escritura de compra e venda de escravos

................................................................................................................................... 51

Quadro 5 - Dicionários usados para pesquisa dos significados das lexias ............. 60

Quadro 6 - Categoria 01, Elementos que compõem o documento ......................... 60

Quadro 7 - Categoria 02, Locais citados nas escrituras .......................................... 63

Quadro 8 - Categoria 03, Sujeitos citados no documento ....................................... 68

Quadro 9 - Categoria 04, Caracterização dos sujeitos citados nos documentos .... 70

Quadro 10 - Compradores em destaque nas escrituras analisadas ....................... 96

Quadro 11 - Empresas em destaque nas escrituras como negociantes ................... 97

Quadro 12 - Quantidade de escravos por escrituras ............................................... 98

Quadro 13 - Mulheres cativas vendidas sozinhas .................................................... 99

Quadro 14 - Homens cativos vendidos sozinhos .................................................... 100

Quadro 15 - Cativos vendidos em grupo.................................................................. 100

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SUMÁRIO

1 “POR MEIO DESTE INSTRUMENTO”: CONSIDERAÇÕES INICIAIS ....... 13

2 “ESCRITURA DE VENDA QUE FAZ...”: ASPECTOS METODOLÓGICOS

DA PESQUISA ................................................................................................... 19

2.1 DO TIPO DE PESQUISA ....................................................................................... 19

2.2 DO CORPUS ........................................................................................................... 20

2.3 DA EDIÇÃO E DAS NORMAS DE EDIÇÃO ...................................................... 28

2.4 DA ANÁLISE FILOLÓGICA E LINGUÍSTICA.................................................... 33

2.5 DA ANÁLISE HISTÓRICO-SOCIAL DO CEARÁ .............................................. 37

3 “SAIBAM QUANTOS ESTA VIREM...”: ANÁLISE FILOLÓGICA E

LINGUÍSTICA DAS ESCRITURAS ............................................................... 39

3.1 A FILOLOGIA COMO ESTUDO INTEGRAL DO TEXTO ................................ 39

3.2 A CONSTITUIÇÃO FORMAL DO TEXTO: UMA ANÁLISE DIPLOMÁTICA 43

3.3 ESTUDO LINGUÍSTICO DO TEXTO: O LÉXICO COMO FORMA DE

REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE SOCIAL ................................................ 55

4 “E LHE TRANSFERE TODO DOMÍNIO, SENHORIO E POSSE...”: ANÁLISE

SÓCIO-HISTÓRICA DAS ESCRITURAS ...................................................... 80

4.1 ADENTRANDO O CEARÁ NO SÉCULO XIX: UM OLHAR PARA A

ESCRAVIDÃO ...................................................................................................... 80

4.3 ALGUMAS REFLEXÕES ACERCA DA CONSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA

ESCRAVA.............................................................................................................. 83

4.2 OS PROCESSOS DE COMPRA E VENDA DE ESCRAVOS NO CEARÁ NO

SÉCULO XIX ........................................................................................................ 91

5 “OUTORGUEI E ACEITEI”: CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................ 104

REFERÊNCIAS ................................................................................................. 107

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1 “POR MEIO DESTE INSTRUMENTO”: CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A língua é um dos maiores bens de um povo e os estudos sobre ela oferecem

muitas possibilidades de análises. O ser humano não nasce com uma língua pré-

estabelecida, no entanto, nasce com a capacidade para aprender a utilizar uma língua

qualquer, o que só será possível por meio de estímulos recebidos pela interação social.

A invenção do alfabeto causou uma revolução na maneira como os

indivíduos interagem, possibilitando o registro impresso da fala, a representação de

ideias, além de permitir a produção de gêneros textuais que tinham determinado valor

social na época em que foram escritos. O impacto da escrita na história da humanidade

contribuiu para a descrição das sociedades que podem ser analisadas através dessas

produções.

Os documentos antigos revelam questões específicas de seu momento de

produção. São documentos pessoais, jurídicos, políticos, entre outros, que são fontes de

informações sobre épocas passadas e revelam as mudanças nas formas da sociedade se

relacionar e se comunicar. Muitos desses documentos se perderam, devido ao tempo e à

má preservação, entretanto, muitos outros foram armazenados e preservados em

arquivos públicos que são responsáveis por organizar esses gêneros textuais e colaborar

com o acesso de pesquisadores interessados no estudo desses escritos.

O Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC) guarda documentos dos

períodos colonial e imperial brasileiros. São diversos gêneros textuais que contam as

histórias dos indivíduos e de seus costumes, que ajudaram a construir a história social,

cultural e linguística do estado do Ceará e do Brasil. Autos, ofícios, editais, portarias,

correspondências, relatórios, mapas, processos, escrituras etc., que constituem fontes

para estudos. Diante da necessidade de recuperar esses textos para preservar as

memórias da história da nossa língua e da nossa cultura, escolhemos como objeto de

pesquisa as escrituras de compra e venda de escravos, datadas do século XIX, tendo

como objeto de estudo os elementos linguísticos do texto e as relações históricas e

sociais envolvendo as pessoas escravizadas do ponto de vista da sua comercialização.

Para direcionar nossa investigação, levantamos alguns questionamentos. O

que os aspectos diplomáticos revelam sobre a estrutura do gênero textual escrituras de

compra e venda de escravos? Levando em conta o léxico presente nos documentos, o

que as lexias revelam sobre o contexto de comercialização de cativos? Considerando o

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contexto sócio-histórico, o que podemos observar em relação à cultura e aos sujeitos

que faziam parte do processo de compra e venda de escravos?

Diante dessas questões, discutimos qual a relevância de uma pesquisa dessa

natureza, que investiga elementos da língua e da história social de uma época passada,

além de refletir sobre a necessidade de restaurar os documentos antigos.

Para responder as perguntas levantadas, temos como objetivo geral analisar

linguística e historicamente as escrituras de compra e venda de escravos do século XIX

(1870-1873). A partir dessa finalidade, elaboramos os seguintes objetivos específicos:

descrever a organização estrutural do gênero documental escritura de compra e venda

de escravos; analisar os aspectos linguísticos-filológicos das escrituras, sobretudo, os

aspectos lexicais que caracterizam os sujeitos envolvidos nos textos; analisar os

aspectos sócio-históricos e culturais da sociedade escravocrata do Ceará no século XIX

presentes nas escrituras.

Nossa dissertação está inserida na linha 01 de pesquisa – Memórias e

Historicidade – do Mestrado Interdisciplinar em História e Letras que se propõe a

recuperar vozes e/ou textos que representam sujeitos, para compreender as relações de

poder, as formações das culturas e das identidades e os processos históricos nos quais

atuaram e atuam. Insere-se também no grupo Práticas de Edição de Textos do Estado do

Ceará (PRAETECE) desde 2015, grupo de pesquisa que tem o interesse em preservar

nossa história e memória.

Durante o período da graduação em Letras/Português pela Universidade

Estadual do Ceará, fui bolsista de iniciação científica financiada pela FUNCAP, período

que possibilitou a realização do trabalho de edição dos documentos que integram o

projeto intitulado Edição de textos oficiais da capitania do Ceará dos séculos XVIII e

XIX para estudos da língua e da história-social1. Nesse primeiro contato foi possível

fazer leituras sobre o labor filológico e realizar o tratamento com os documentos,

editando-os e catalogando-os. Ao observar a potencialidade do teor informativo dos

textos, selecionei um livro com 174 escrituras de compra e venda de escravos, datadas

do período de 1870 a 1873, pertencentes ao Arquivo Público do Estado do Ceará

(APEC), para realizar o trabalho de análise que resultou nesta dissertação de mestrado.

1Projeto de iniciação científica (FUNCAP/IC) realizado por mim, Francisca Lisiani da Costa Rodrigues,

na Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central, no período de 2014 a 2016, orientado

pelo Professor Doutor Expedito Eloísio Ximenes.

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Os documentos antigos são permeados por informações que traduzem a

sociedade, os indivíduos e as questões discutidas na época de sua escritura. Estudar

esses documentos, portanto, é uma tarefa que nos conduz ao conhecimento da história

da língua, dos gêneros textuais e dos elementos culturais e sócio-históricos.

Ao explorar esses documentos em estudos linguísticos, o pesquisador se

insere em um mundo de linguagem que contribui para compreender a realidade

linguística que vivenciamos na atualidade. E ao se voltar para esses documentos como

um pesquisador historiador é possível analisar o contexto histórico e refletir as

vivências e as realidades da sociedade num tempo passado. Observamos que a história

de um povo está presente nos escritos produzidos em todas as épocas de sua existência,

são importantes relatos dos costumes e dos fatos. Os manuscritos aqui analisados

descrevem a atmosfera vivenciada por nossos antepassados e colaboram para a

recuperação de fatos da memória da sociedade cearense escravista.

No estado do Ceará, há alguns trabalhos de recuperação de documentos

relativos ao período da administração colonial que registram a história e a cultura do

povo cearense. A contribuição do estudo apresentado nesta dissertação irá se somar a

outras pesquisas de mestrado e de doutorado como os trabalhos de Ximenes (2004,

2009), que tem se dedicado aos estudos filológicos e linguísticos dos documentos

manuscritos do período colonial brasileiro. Em sua dissertação de mestrado, o

pesquisador estudou o comportamento dos pronomes clíticos em Autos de Querela

escritos no Ceará do século XIX. Em sua tese, voltou-se para as unidades fraseológicas

(UFs) da linguagem jurídico-criminal da capitania do Ceará, nos séculos XVIII e XIX,

além da elaboração de um glossário das UFs usadas nos processos jurídicos.

Outra contribuição para a preservação da memória documental vem de

Martins (2013) que em sua dissertação estudou o gênero bando, gênero específico da

administração colonial brasileira. Além da edição feita, oferecendo aos documentos o

trato filológico, fez uma interpretação dos elementos linguísticos e dos atores sociais

presentes nas fontes. Destacamos ainda o Programa de Pós-Graduação em Linguística

Aplicada (PosLA-UECE), que possui várias pesquisas destinadas à edição e análise de

documentos manuscritos do período colonial brasileiro. A dissertação de Josino (2015)

sobre autos de arrematação, a dissertação de Almeida (2015) sobre o gênero portaria, e

um estudo linguístico sobre as unidades fraseológicas em escrituras de compra e venda

de escravos, realizado por Pinto (2015), dentre outros. Os pesquisadores citados

também fazem parte do grupo PRAETECE, um grupo cearense destinado ao trabalho de

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recuperação e análise de manuscritos. Embora haja várias pesquisas no Ceará, no

entanto, muitos documentos não foram estudados, mesmo guardando ricas informações

sobre vivências da época de sua produção. O APEC conserva um acervo que nos

permite uma análise mais profunda da nossa história em todos os setores da vida. Editar

os textos é recuperar a memória de nosso povo e conhecer detalhes da vida nunca antes

revelados. Constitui também uma necessidade urgente, dado ao estado de conservação

em que o acervo se encontra.

Segundo Ximenes (2004), a maior parte dos documentos pertencentes ao

Arquivo Público do Estado do Ceará ainda não está sequer catalogada. Os

colaboradores do arquivo realizam um trabalho de preservação, todavia, são inúmeros

os documentos manuscritos a espera de catalogação e edição, que poderiam contribuir

para pesquisas e interpretações sobre momentos e sujeitos históricos. Nesta dissertação

mostramos a importância de trabalhar com a recuperação das informações contidas

nesses documentos e da relevância de preservar essas fontes.

Justifica-se, dessa maneira, a relevância acadêmica, linguística social do

presente trabalho, pois fornece excelente material para consulta à sociedade em geral e à

comunidade dos pesquisadores interessados nas informações linguísticas e históricas

contidas no códice2 em estudo, à medida que possibilita a leitura e a compreensão do

seu teor comunicativo por meio de edição dada aos documentos e por meio do estudo

dos aspectos linguísticos e históricos.

Compreendemos que a melhor e mais eficiente maneira de conhecer a

língua de uma comunidade é observar suas rotinas e hábitos linguísticos ao longo do

tempo, cuja maneira de conhecimento só pode ser feita por meio dos textos produzidos

por esta comunidade.

Para tanto, podemos traçar como interesse central da dissertação a análise

do léxico presente nas escrituras, visando compreender a relação das lexias com o

contexto sócio-histórico da época. Bem como a certificação de manter a veracidade do

documento editado, visando oferecer textos seguros para o estudo linguístico e sócio-

histórico do português do Brasil através da edição semidiplomática das escrituras.

Ainda se justifica pela relevância de trazer a recuperação de informações históricas

registradas nos documentos que revelam um período importante do Estado do Ceará,

como a escravidão e a comercialização de homens, mulheres e crianças na então

2 Conjunto de folhas de pergaminho manuscritas, unidas numa espécie de livro.

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província cearense. Além do estudo do gênero textual escritura de compra e venda de

escravos, documento legal que oficializava o comércio de cativos e que permite a

análise de diversos aspectos presentes no corpo do texto.

O corpus editado oferece uma contribuição aos pesquisadores das mais

diversas áreas do conhecimento com interesse em leituras e pesquisas. Citamos a área

do Direito, já que o gênero escritura está localizado na esfera jurídica, podendo ser feita

uma comparação com os documentos de compra e venda atuais; os historiadores terão

acesso a uma narrativa feita pelas mãos dos escribas que narram a história da antiga

província cearense, especificamente o funcionamento do comércio de escravos, nas

regiões que hoje divide-se como Sertão Central, Maciço de Baturité, Vale do Jaguaribe,

Vale do Cariri, Sertão do Inhamuns e Sertão de Sobral. As escrituras de compra e venda

de escravos trazem uma narração de como ocorriam a compra e a venda dos sujeitos

escravizados, bem como quem era os compradores e vendedores; a Sociologia poderá

dispor de riquíssimo material para o estudo, por exemplo, do poder que era conferido

aos escribas, elite intelectual da época, por deterem a habilidade da leitura e da escrita;

os linguistas e filólogos terão textos fidedignos de um momento pelo qual passou a

língua portuguesa, os quais contêm vários objetos para análise.

Realizar uma edição textual requer um aprimoramento teórico sobre leitura

e interpretação de textos. Textos antigos, por exemplo, sofrem com a má conservação,

com os efeitos do tempo, do clima, da ação dos insetos e do próprio uso inapropriado de

seus leitores, fatores que aceleram a corrosão desses textos e de suas informações. Os

rasgos, os borrões de tintas, as ações das traças degradam rapidamente esses

documentos, dificultando a leitura, criando a necessidade de uma edição urgente para

que esses dados históricos e linguísticos não se percam.

Diante das possibilidades de análise e da importância da recuperação dos

textos antigos, esta dissertação está direcionada à potencialidade de informações das

escrituras, descrevendo aspectos linguísticos e históricos revelados através do trato

filológico dado aos documentos.

A dissertação está dividida em três seções. A primeira, intitulada “Escritura

de venda que faz...”: aspectos metodológicos da pesquisa, aborda, como porta de

entrada desse estudo, a metodologia usada na dissertação, explicando as normas de

edição das escrituras, os fatores que influenciaram na seleção das lexias para análise

linguística e os métodos para análise dos dados históricos contidos nos documentos.

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Na segunda seção, que intitulamos “Saibam quantos esta virem...”: análise

filológica e linguística das escrituras, apresentamos os conceitos de Diplomática,

Filologia, Cultura e Léxico, sempre associados ao trabalho de análise linguística e

filológica proposta na seção. Na última subseção, Estudo linguístico do texto: o léxico

como forma de representação da realidade social, apresentamos as lexias registradas,

seus significados e comentários sobre o contexto de uso desses termos.

Na terceira seção, intitulada “E lhe transfere todo domínio, senhorio e

posse...”: análise sócio-histórica das escrituras, analisamos aspectos históricos do

Ceará oitocentista a partir de dados colhidos nas escrituras, refletindo sobre questões

sociais da escravidão, como a família escrava, os preços dos cativos e o contexto

histórico em que repercutiam fortes discursos de apoio ao fim do sistema escravista.

Assim, analisamos o discurso das escrituras de compra e venda de escravos

através do estudo do gênero textual, da leitura de narrativas expressas nos documentos e

da interpretação de fatos através do contexto e das referências. Desta forma, o leitor

encontra uma análise interdisciplinar de documentos que muito revelam sobre nossa

língua e nossa história.

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2 “ESCRITURA DE VENDA QUE FAZ...”: ASPECTOS METODOLÓGICOS

DA PESQUISA

A metodologia que seguimos nesta dissertação é baseada nos pressupostos

de Ximenes (2009), que sugere uma divisão metodológica em dois passos: “O primeiro

diz respeito à edição semidiplomática dos manuscritos coletados que formam o corpus

da pesquisa” (XIMENES, 2009, p. 24). É neste momento que o pesquisador situa seu

corpus no tempo e no espaço, analisando o contexto de produção, o suporte e outros

elementos estruturais dos textos. O segundo passo é a escolha de algum aspecto

linguístico para ser analisado, já que as informações contidas nos documentos abrem

uma gama de possibilidades de análise. Aqui, nos debruçamos sobre o léxico do texto e

as questões histórico-sociais.

No trato do corpus, primeiramente fizemos a edição semidiplomática dos

documentos, cuidamos do estudo linguístico, destacando o léxico que caracteriza os

sujeitos e alguns elementos que compõem o corpus e, em seguida, tratamos da

contextualização sócio-histórica das escrituras de compra e venda de escravos.

2.1 DO TIPO DE PESQUISA

Dentro do estudo feito por Gil (2008), sobre os tipos de pesquisa,

entendemos que, quanto aos objetivos, esta dissertação é explicativa e quali-

quantitativa. Explicativa, pois nos propomos a analisar as escrituras de compra e venda

de escravos, elucidando como os sujeitos envolvidos nessa comercialização são

descritos, analisando sob uma perspectiva linguística e histórica. Qualitativa, porque a

investigação pretende analisar os discursos e/ou silenciamentos dos sujeitos, para

interpretá-los de maneira a relacioná-los com o contexto de produção dos documentos

estudados. E quantitativa porque utilizamos técnicas estatísticas para quantificar as

informações presentes nas escrituras sobre os preços dos escravizados, a quantidade de

sujeitos envolvidos na transação comercial dos escravizados, as idades etc.

Quanto aos procedimentos técnicos, a pesquisa é documental, visto que as

escrituras são documentos oficiais da antiga província cearense (século XIX) e

analisamos as informações que esses documentos antigos nos proporcionam para o

estudo da língua e da história social da época, para correlacionar com o momento

presente.

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2.2 DO CORPUS

Nosso corpus constitui-se de cento e setenta e quatro documentos

manuscritos da esfera jurídico-administrativa. Esses documentos pertencem ao APEC e

estão registrados no livro de escrituras número 357, escritos no período de 16/11/1870 a

16/06/1873. O recorte temporal do livro de escrituras abrange um contexto que antecede

as mudanças jurídicas e administrativas que o Ceará sofreria com a abolição. Na

imagem abaixo, é possível verificar a catalogação do livro de escrituras:

Figura 1: Catalogação do livro de escrituras.

Fonte: APEC.

As escrituras de compra e venda de escravos são documentos produzidos

por escrivães e/ou tabeliães, em cartórios da antiga província do Ceará. Os manuscritos

apresentam escrita regular quanto ao traçado das letras, que possuem tamanho pequeno,

com alguns borrões e sem rasuras, respeito à pauta e às linhas imaginárias e

regularidade na inclinação da escrita, quase sempre à direita, como se observa no texto

abaixo:

Figura 2 - Fragmento de uma escritura de compra e venda de escravos.

Fonte: APEC.

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As escrituras são constituídas por uma estrutura textual semelhante. São

documentos oficiais que apresentam elementos jurídicos como selos, assinaturas de

testemunhas, texto padronizado que trazem os nomes de compradores, vendedores,

tabelião, escrivão, lugar de origem dos envolvidos, informações sobre o cartório onde

foi realizado o processo de compra e venda etc. Na imagem abaixo temos um exemplo

desses elementos:

Figura 3 - Fragmento de uma escritura de compra e venda de escravos.

Assinaturas dos negociantes. Fonte: APEC.

O gênero textual analisado se caracteriza por uma estrutura formal

específica, possui extensão de até dois fólios. São documentos que apresentam uma

estrutura rigidamente organizada, com um discurso linear, apresentam aspectos

linguísticos e sociais que revelam ideologias vigentes no contexto de produção, e se

configuram, portanto, como uma potencialidade informacional. Apresentamos a seguir

um exemplo de uma escritura fotografada:

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Figura 4 - Edição fotográfica de uma escritura de compra e venda escravos.

Fonte: APEC.

Sobre a edição semidiplomática, convém ressaltar que não foi feita a partir

do contato direto com os documentos, o que não é recomendado, uma vez que isto

poderia acelerar o processo de deterioração do suporte. Trabalhamos com a fotografia

dos documentos e recorremos aos manuscritos originais apenas em casos

extraordinários.

Todos os fólios estão preenchidos frente e verso. Na introdução do texto traz

uma apresentação da escritura, de alguns sujeitos envolvidos na compra e venda e o

preço do escravizado vendido. Vejamos um exemplo: “Escritura de venda que fazem os

negociantes desta praça Moura & Rolim & Sobrinho a José Correia dos Santos, de um

escravo de nome Reinaldo, pela quantia de 1.200$000 reis” (fl.2r).

No corpo do texto a compra e venda é efetivada e, para isso, a “peça”

negociada é descrita, seu preço é exposto e a posse é garantida, como podemos observar

no trecho abaixo:

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E pelos outorgantes vendedores foi dito perante as mesmas testemunhas que

sendo elles senhores e possuidores livre e desembaraçadamente da terça parte

da escrava Delfina, mulata, de vinte annos de idade, solteira, e sem officio, e

da de sua filha de nome joanna tambem mulata, de dousannos de idade, e

ambas naturais da freguezia de Maranguape, vende como effectivamente

vendido tem por meio deste instrumento á mencionadacompradora

DonaIsabel pelo preço e quantia certa de trezentos e trinta mil reis, que em

moeda corrente elles vendedores confessam ja haver recebido da maõ da dita

compradora, peloque dão a esta plena e geral quitação de paga, e lhe transfere

todo dominio, senhorio e posse das terças partes de referidas escravas,

podendo daquellas tomar posse como suas que saõ e ficam sendo por bem

deste instrumento. (fl.1r)

A conclusão das escrituras também apresenta estrutura semelhante, com a

apresentação das testemunhas, o termo de fé do tabelião e as assinaturas dos envolvidos

na transação comercial, como no exemplo a seguir:

Depois de feita esta escritura foi por mim lida presente esses vendedores,

comprador, os quais reciprocamente a aceitaram por acharem-n’a como

outorgado haviam e eu Tabelião como pessoa publica a outorguei e aceitei

em nome dos auzentes e pessoas a que pertencer possam sendo testemunhas a

tudo presentes Bernardo Jose Couto eAntonio Jose de Freitas, que

assignaram com o mesmos vendedores, comprador e comigo Joaquim Feijó

de Mello Tabeliaõ que escrevi =Termo testemunhas Moura Rolim Sobrinho

Jose Correia dos Santos Bernardo Jose Couto Antonio Jose de Freitas (fl.2r)

Algumas características são comuns em todos os fólios, como a letra, a cor

da tinta usada na escrita, o espaço que o texto ocupa no fólio, que preenche quase por

completo o fólio, deixando pouco espaço na margem superior, em que está localizada a

assinatura e o número do fólio.

A partir da fotografia desses documentos foi feita a leitura e a edição em

suporte Word, fonte Times New Roman, tamanho 11, espaçamento simples, alinhado à

esquerda. Essas regras pré-definidas são usadas para realizar uma edição responsável.

As normas foram estabelecidas pelo projeto Para a História do Português

Brasileiro (PHPB)3 adaptadas pelo grupo PRAETECE

4 que consistem em:

1. A transcrição será conservadora.

2. As abreviaturas, alfabéticas ou não, serão desenvolvidas, marcando-se, em

itálico e em negrito, as letras omitidas na abreviatura. No caso de variação

3 Projeto Para a História do Português Brasileiro (PHPB) foi fundado em 1997, sob a coordenação geral

do pesquisador Ataliba Teixeira Castilhos. Desenvolve estudos com base nos corpora levantados, com o

objetivo de conhecer e descrever a realidade linguística do português brasileiro. 4 Normas disponíveis no seguinte endereço eletrônico: http://praetece.wixsite.com/praetece

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(Deos e Deus) no próprio manuscrito ou em coetâneos, a opção será para a

forma mais frequente usada no documento.

3. Não será estabelecida fronteira de palavras que venham escritas juntas, (desde

que não haja nenhuma dúvida, em havendo, prefere-se separar as palavras),

não se introduzirá hífen ou apóstrofo onde não houver. Exemplos: eporser;

aellas; daPiedade; ominino; dosertão; mostrandoselhe; achandose; sesegue.

4. A pontuação original será rigorosamente mantida, assim como a

translineação.

5. A acentuação original será rigorosamente mantida, não se permitindo

qualquer alteração. Exemplos: aRepublica; decommercio; edemarcando

também lugar; Rey D. Jose; oRioPirahý; oexercicio; hé m.to convenientes.

6. Será respeitado o emprego de maiúsculas e minúsculas como se apresentam

no original, (desde que não haja dúvida, em havendo, prefere-se a forma

minúscula). No caso de alguma variação física dos sinais gráficos resultar de

fatores cursivos, não será considerada relevante. Assim, a comparação do

traçado da mesma letra deve propiciar a melhor solução.

7. Eventuais erros do escriba ou do copista serão remetidos para nota de rodapé,

onde se deixará registrada a lição por sua respectiva correção.

8. Inserções do escriba ou do copista, nas entrelinhas ou nas margens superior,

inferior ou laterais, bem como toda e qualquer intervenção de terceiros no

documento original, serão indicadas na edição em nota de rodapé.

9. No caso de repetição que o escriba ou o copista não suprimiu, passa a ser

indicada pelo editor que a coloca entre colchetes duplos. Exemplo:

fugi[[gi]]ram correndo [[correndo]] emdiração opaco.

10. Letras ou palavras não legíveis serão indicadas entre colchetes com a forma

[ilegível]. Da mesma forma letras ou palavras deterioradas serão indicadas

entre colchetes: [deteriorada].

11. Trecho de maior extensão não legível por deterioração receberá a indicação

[corridas + ou – 5 linhas]. Se for caso de trecho riscado ou inteiramente

anulado por borrão ou papel colado em cima, será registrada a informação

pertinente entre colchetes e sublinhada.

12. A disposição das linhas do documento original será mantida na edição, sem

necessidade de nenhuma marca. A mudança de fólio receberá a marcação

com o respectivo número na sequência, alinhado à direita da seguinte forma:

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fl.1v. fl.2r. fl.2v. fl.3r. Caso tenha rubrica será indicada abaixo do número do

fólio entre colchetes.

13. Na edição, as linhas serão numeradas de cinco em cinco a partir da quinta.

Essa numeração será encontrada à margem direita da mancha, à esquerda do

leitor. Será feita de maneira contínua por documento.

14. As assinaturas simples ou as rubricas do punho de quem assina serão

sublinhadas e indicados entre colchetes. Exemplos: assinatura simples:

Bernardo Jose de Lorena.

15. Quaisquer tipos de informação que o editor julgar significativas para a

compreensão do texto, quer digam respeito a aspectos da diagramação ou do

layout, serão indicadas em notas de rodapé.

A seguir, apresentamos um fólio do nosso corpus para exemplificar a edição

semidiplomática:

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fl.1r

JBVasconcelos

Escritura de venda que fazem Pinheiro de Palma eCompanhia

da terça parte que possuem nas escravas Delfina e sua filha Joanna á viu-

va dona Isabel Antonia Tavares pela quantia de 330$000. 5 Foram pagos os direitos devidos.

Saibam quantos esta virem que sendo no anno do Nascimento

de Nosso Senhor Jezus Christo de mil oitocentos setenta, aos desaseis dias do

mez de jun digo de Novembro, n’esta cidade da Fortaleza, capital da Provin=

cia do Ceará, em casa de morada da viúva Dona Isabel Antonia Tavares, on= 10 de vim eu Tabelião á chamado. ahi foram-me presentes perante mim

as duas testemunhas abaixo assignadas, de uma parte como outorgantes

vendedores Pinheiro da Palma eCompanhia negociantes e moradores nesta mesma

cidade representadas pelo socio Antonio Pinheiro da Palma, e de outra co=

mo outorgada compradora a mesma Dona Isabel, proprietaria e tambem mo- 15 radora nesta mesma cidade; todos bem reconhecidos em sua identidade por

mim Tabeliaõ do que dou fe. E pelos outorgantes vendedores foi dito peran=

te as mesmas testemunhas que sendo elles senhores e possuidores livre

e desembaraçadamente da terça parte da escrava Delfina, mulata, de

vinte annos de idade, solteira, e sem officio, e da de sua filha de nome joanna 20 tambem mulata, de dousannos de idade, e ambas naturais da freguezia

de Maranguape, vende como effectivamente vendido tem por meio deste

instrumento á mencionada compradora Dona Isabel pelo preço e quan=

tia certa de trezentos e trinta mil reis, que em moeda corrente elles vende-

dores confessam ja haver recebido da maõ da dita compradora, pelo 25 que dão a esta plena e geral quitação de paga, e lhe transfere todo

dominio, senhorio e posse das terças partes de referidas escravas, podendo

daquellas tomar posse como suas que saõ e ficam sendo por bem deste ins=

trumento. E logo pela compradora foi dito que acceita esta escritura de

venda como lhe é feita, e que já das terça parte das referidas escravas 30 Delfina e sua filha joanna esta de posse Pagou a compradora o sello devido de

quatrocentos reis em estampilha, que apresentou e foi por mim inutili=

sada; assim mais pagou na sessaõ de arrecadação da Thezouraria

Provincial vinte mil reis de imposto conforme o conhecimento numero 2716

desta data. Depois de feita esta escritura foi por mim lida perante 35 elles vendedores e compradora, os quais reciprocamente a acceitaram

por acharem-n’a como outorgado haviam, e eu Tabeliaõ como pessoa

publica a outorguei e acceitei em nome dos auzentes e pessoas a que per=

tencer possa, sendo testemunhas a tudo presentes Joze da Siveira

Dutra e Jose Samico, que assignaram com as mesmas vendedores 40 e compradora comigo Joaquim Feijó de Mello Tabeliaõ que escrevi=

[Pinheiro da Palma eCompanhia]

[Isabel Antonia Tavares]

Testemunhas=[Jose da Silveira Dutra]

[Jose Samico]45

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Alguns aspectos dificultam a edição conservadora, como os fólios que se

encontram deteriorados, soltos da encadernação, com manchas, borrões, folhas

amareladas e tinta quase apagada, elementos que dificultam a leitura, como nos

exemplos abaixo:

Figura 5 - Fragmento de uma escritura de compra e venda de escravos.

Fonte: APEC.

Figura 6 - Fragmento de uma escritura de compra e venda de escravos.

Fonte: APEC.

Diante desses elementos que dificultam o trabalho do filólogo, a

recuperação desses textos torna-se uma atividade árdua, todavia, percebemos a

relevância e a urgência de fazermos uma edição dessas fontes. Interpretamos, também,

os fatos linguísticos e históricos que os documentos oferecem, fato que estimula a

pesquisa por se tratar de uma atividade instigante. Compreender momentos e sujeitos

históricos através da leitura de textos é um exercício cansativo, entretanto, prazeroso,

como confirma Bacellar (2008) na perspectiva do historiador:

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O trabalho com fontes manuscritas é, de fato, interessante, e todo historiador

que entra por essa seara não se cansa de repetir como os momentos passados

em arquivos são agradáveis. Grandes obras historiográficas tiveram sua

origem nas salas de arquivo, onde muito suor e trabalho foram gastos, após

semanas ou meses de paciente e dedicada fase de pesquisa. O abnegado

historiador encanta-se ao ler os testemunhos de pessoas do passado, ao

perceber seus pontos de vista, seus sofrimentos, suas lutas cotidianas.

(BACELLAR, 2008, p. 24)

Acrescentamos que o exposto acima em relação ao historiador também se

aplica ao filólogo ou linguística dedicado ao trabalho de edição e análise dos textos

deixados por nossos antepassados. Tratar a fonte histórica como um artefato cultural

repleto de informações sobre um momento histórico de uma sociedade é enxergar

potencial para uma pesquisa responsável e uma oportunidade para produzir novos

discursos de compreensão sobre conceitos, visto que são produções culturais, carregadas

de sentido, fontes com informações explícitas e implícitas que incitam nossa capacidade

de reflexão e análise crítica.

2.3 DA EDIÇÃO E DAS NORMAS DE EDIÇÃO

A edição constitui um importante passo do labor filológico, pois a partir

dela os textos tornam-se acessíveis ao público leitor. É por meio da transcrição que

documentos antigos, sujeitos ao desgaste do tempo, podem ampliar sua vida útil,

permitindo que as informações neles contidas venham a ser acessadas por estudiosos de

diversas áreas.

Há tipos de edições que permitem atender às variadas vertentes de pesquisa

e aos diferentes públicos, cabe ao pesquisador filólogo escolher o modelo de edição que

melhor atende aos objetivos almejados em sua pesquisa. Cambraia (2005) divide as

edições em monotestemunhais (que apresentam apenas um registro textual) e

politestemunhais (que dispõem de mais de uma versão editada). As edições

monotestemunhais tomam por base o nível de mediação que o filólogo emprega na

reprodução do texto e se dividem em quatro tipos, a saber: a fac-similar, a diplomática,

a paleográfica e a interpretativa.

A primeira delas, edição fac-similar, também conhecida como fac-símile,

fac-similada ou mecânica, consiste na edição que mais se aproxima do original, sendo

uma reprodução efetuada por meios mecânicos, tais como: fotografias, xerografias etc.

Assim, neste tipo de edição, o editor pode observar com exatidão características

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peculiares do documento princeps, como: traçado das letras, ilustrações, margens,

coloração e tamanho.

Dentre esses outros tipos de edições, o que possui o menor grau de

mediação no documento é a edição diplomática, uma vez que prima por uma edição

conservadora no que tange a todos os elementos encontrados no texto, tais que:

abreviaturas, sinais de pontuação, separação vocabular, paragrafação e translineação.

Acerca dos benefícios encontrados nesse tipo de edição, Cambraia (2005, p. 94)

esclarece que:

Como vantagem deste tipo de edição, pode-se citar a facilitação de leitura

que propicia, pois dispensa o leitor da árdua tarefa de decifrar as formas

gráficas da escrita original do modelo, particularmente difíceis em

testemunhos manuscritos. Por outro lado, tem como desvantagem o fato de

também poder ser consultada fundamentalmente por especialistas, pois,

apesar da facilitação já mencionada, a manutenção de certas características –

em especial, os sinais abreviativos – exige certamente conhecimento

especializado, não dominado pelo grande público. Não se pode deixar de

lembrar ainda que mesmo sendo bastante rigorosa, uma edição diplomática já

constitui uma interpretação subjetiva, pois deriva da leitura que um

especialista faz do modelo. (CAMBRAIA, 2005, p.94)

Seguindo essa linha de conservação linguística, mas com a pretensão de

ampliar o seu público alvo, temos a edição paleográfica (conhecida também por

semidiplomática ou diplomático-interpretativa), que apresenta um nível médio de

intervenção do editor. Nesse tipo de edição objetiva-se, além de ofertar uma edição

fidedigna, facilitar a leitura do texto por parte daqueles que não possuem um

conhecimento especializado na área e retificar possíveis falhas identificadas no texto,

tais como supressão ou repetição de letras e palavras. E para que esses objetivos sejam

alcançados, Cambraia (2005, p. 95) assevera que: “[...] o editor atua de forma mais

interventiva, através de operações como desenvolvimento de sinais abreviativos,

inserção ou supressão de elementos por conjectura, dentre outros (embora qualquer uma

dessas operações fique explicitamente assinalada na reprodução).”

As edições interpretativas, às quais são atribuídas o grau máximo de

mediação que se possa admitir, além de desenvolverem as abreviaturas, realizam

uniformizações gráficas, conforme explica Cambraia:

Não se pode deixar de esclarecer que, neste tipo de edição, a uniformização é

Essencialmente gráfica: não se uniformizam variantes fonológicas,

morfológicas, sintáticas e lexicais (o que geralmente ocorre na chamada

edição modernizada). É evidente, porém, que certas uniformizações (de

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pontuação, paragrafação, etc.) acabam por fixar apenas uma das leituras

possíveis do testemunho, razão pela qual esse tipo recebe justamente o nome

de interpretativa. Como se vê, sua maior qualidade - a acessibilidade –

determina igualmente seu maior defeito – a subjetividade (CAMBRAIA,

2005, p. 97).

Neste trabalho usamos a edição paleográfica (ou semidiplomática) feita a

partir das fotografias das escrituras originais. De acordo com os nossos objetivos, a

edição semidiplomática é a que melhor se adequa, visto que preserva o estado da língua

em questão, o que se mostra primordial em nossa dissertação, por sua natureza

linguística. Além disso, permite o desenvolvimento das abreviaturas, ofertando uma

edição que poderá ser utilizada por pesquisadores de outras áreas que tenham pretensões

de realizar estudos relativos à escravidão, por exemplo. Fotografar os documentos

originais é um recurso do mundo moderno a favor da recuperação de textos históricos e

é um importante aliado do trabalho do filólogo, uma vez que os textos arquivados no

APEC e em outros arquivos públicos não podem ser levados para outros locais. Este

recurso permite que o editor faça consultas ao manuscrito onde e quando quiser, além

de permitir a conservação e reprodução desses textos em outros suportes.

Um dos objetivos da edição e análise das escrituras é tornar o documento

acessível a um público especializado, mas também a um público leigo e interessado na

área. Para tanto, a escolha da edição ganha uma grande relevância, ao escolher o tipo de

edição o filólogo precisa refletir sobre o tratamento ideal para os documentos

escolhidos. Cada edição tem seus métodos, portanto, os resultados serão diversos.

Diante de nossos objetivos, surge uma preocupação em oferecer transcrições fiéis o

mais próximo do original, para que não haja intervenção no sentido do texto e seja

mantida uma fonte genuína para pesquisas de estudiosos, todavia, desejamos esclarecer

questionamentos que possam surgir no decorrer da leitura do documento.

O trabalho de edição de um manuscrito não é uma tarefa fácil, uma vez que

diferentes fatores podem ter acarretado modificações nos textos. A edição escolhida

para esta dissertação foi a semidiplomática, que facilita a leitura por meio da

interferência do editor, como o desenvolvimento das abreviaturas. Spina (1994) explica

a diferença entre as edições diplomática e semidiplomática:

A transcrição puramente diplomática já constitui uma forma de interpretação,

pois elimina as dificuldades de natureza paleográficas suscitadas pela

escritura; a transcrição diplomática interpretativa (ou semidiplomática) vai

mais longe na interpretação do texto, pois já representa uma tentativa de

melhoramento do mesmo, com a divisão das palavras, o desdobramento das

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abreviaturas (trazendo as letras, que não figuram no original, colocadas entre

parênteses) e às vezes até com pontuação. (SPINA, 1994, p. 85)

Adotando a edição semidiplomática neste trabalho, temos textos próximos

aos originais, permitindo uma análise mais profunda da estrutura e dos elementos

linguísticos e sociais dos documentos, buscando respostas e abrindo possibilidades de

novos questionamentos. O foco neste tipo de edição é facilitar a leitura e não modificar

significativamente o conteúdo do texto, como explica Cambraia (2005, p. 95): “[...] no

processo de reprodução do modelo, realizam-se modificações para o tornar mais

apreensível por um público que não seria capaz de decodificar certas características

originais, tais como os sinais abreviativos”.

Assim, nosso trabalho contribui para os estudos filológicos no estado do

Ceará, analisando documentos pertencentes à antiga província que, segundo Ximenes:

(...) por muitos anos, ficou esquecida pelos colonizadores. As tribos

indígenas levavam sua vida conforme os seus costumes e viviam em toda a

extensão do território cearense sem o domínio europeu. A colonização dessa

terra só se concretizou após várias tentativas com mais de cem anos de atraso

em relação ao período de chegada dos colonizadores ao Brasil. (XIMENES,

2013, p. 14).

Etimologicamente, Filologia quer dizer “amigo da palavra”, mas o termo

não possui um conceito uniforme, e ao longo do tempo sofreu diversas variações em seu

significado. No século XX, Ferdinand Saussure traz uma nova leitura acerca desta

ciência, ele afirma que:

A língua não é o único objeto da filologia, que pretende, antes de tudo, fixar,

interpretar e comentar os textos; esse primeiro estudo faz com que ocupe

também com a história literária, costumes instituições etc. em toda parte ela

usa seu método próprio que é a crítica. Se aborda questões linguísticas é,

especialmente, para comparar textos de épocas diferentes, determinar a língua

particular de cada autor, designar e explicar incursões em uma língua arcaica

e obscura (SAUSSURE, [1916] 2012, p. 31)

Para este trabalho, nos interessamos nos conceitos que abarcam a análise

linguística e também a preocupação da Filologia com a interpretação dos elementos

históricos. Para Ximenes (2009, p. 33), “a Filologia é a ciência que tem como objeto de

trabalho a cultura dos povos através de seus textos [...]”. Desta forma, é uma ciência que

busca compreender o texto em todos os seus aspectos. A Filologia não se restringe

somente à língua, mas abrange o contexto de produção do texto. O documento pode

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revelar a sociedade e os atores sociais responsáveis por ideias e comportamentos

humanos que culminaram na produção daquele texto.

O trabalho filológico é árduo e minucioso, o pesquisador lida com

documentos produzidos em diferentes épocas, com linguagem específica e estruturas

situadas. Segundo Basseto (2001) o labor filológico nos proporciona a aquisição de

conhecimento e cultura, através da apreensão da palavra como expressão da inteligência

e do pensamento do outro. Para o autor, o ser filólogo manifesta uma ideia de

aprimoramento intelectual, de amplos conhecimentos e de cultura em geral.

Atualmente, a Filologia se preocupa com a interpretação das informações

contidas nos textos e em possibilitar o acesso a esse teor informativo. Neste trabalho,

usamos o conceito de Filologia para recuperação das escrituras de compra e venda,

fazendo a transcrição e a interpretação do teor do documento. O conceito de Filologia

dado por Castro (1992) engloba a ideia que nos propomos a seguir no presente trabalho,

que define a Filologia como:

Ciência que estuda a gênese e a escrita dos textos, a sua difusão e a

transformação dos textos no decurso de sua transmissão, as características

materiais e o modo de conservação dos suportes textuais, o modo de editar os

textos com respeito máximo pela intenção manifesta do autor. (CASTRO,

1992 apud XIMENES, 2013, p. 189).

Portanto, o trabalho de edição e análise desses documentos é de grande

importância no que diz respeito à atividade de recuperar e preservar a história do Ceará,

principalmente sobre a escravidão. As escrituras de compra e vendas de escravos são

documentos oficiais que fornecem informações sobre a história social do Ceará e

aspectos linguísticos fundamentais para abordar questões do funcionamento da língua

na época em que esses textos foram escritos. Logo, o estudo filológico desses

documentos está dentro da proposta do conceito dado por Lamas (2009, p. 25), segundo

o qual “(...) a atitude filológica corresponde plenamente ao estudo da Linguística do

Texto, em qualquer de suas modalidades ou manifestações particulares, atuais e

pretéritas (...)”.

A edição prima por conservar as informações conforme o original, fato que

traz complexidade ao labor do filólogo, tendo em vista que para se chegar a uma edição

que preserva a escrita contida no documento original, se faz necessário o conhecimento

de inúmeros fatores. É necessário que o filólogo busque conhecer o contexto histórico a

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que esses escritos dizem respeito. Em nosso caso, que lidamos com documentos

referentes à segunda metade dos oitocentos (1870-1873), é pertinente levantar algumas

questões na análise dos textos, tais como: Como o Brasil se organizava nesse período?

Que ideologias eram defendidas? Que práticas religiosas mais lhe representavam?

Como a província cearense se comportava nesse contexto?

2.4 DA ANÁLISE LINGUÍSTICA

Na perspectiva linguística, analisamos o léxico presente nos documentos e

apresentamos como as construções léxicas indicam traços da cultura daqueles que

vivenciaram o contexto do comércio de escravizados, com destaque para as lexias que

remontam à prática escravocrata e que permitem conhecer sob qual configuração ela se

deu.

Levando em conta que o léxico abarca as diversas experiências do ser

humano através das nomeações, analisamos as diferentes classificações feitas no

discurso das escrituras sobre os sujeitos envolvidos na compra e venda de cativos e as

lexias que caracterizam esse processo. O léxico de uma língua nos permite atribuir aos

seres, locais e coisas os conceitos que os qualificam no nosso sistema linguístico,

segundo Biderman (2006):

O léxico de uma língua constitui, portanto, uma forma de registrar o

conhecimento do universo. Ao dar nomes às entidades perceptíveis e

apreendidas no universo cognoscível, o homem as classifica

simultaneamente. Assim, a nomeação da realidade pode ser considerada

como a etapa primeira no percurso científico do espírito humano de

conhecimento do universo. Ao identificar semelhanças e, inversamente,

discriminar os traços distintivos que individualizam estes referentes em

entidades distintas, o homem foi estruturando o conhecimento do mundo que

o cerca, dando nomes (palavras e termos) a essas entidades discriminadas. É

esse processo de nomeação que gerou e gera o léxico das línguas naturais.

(BIDERMAN, 2006, p. 35)

O estudo do léxico nas escrituras recebe um tratamento mais aprofundado,

pois se tratam de documentos específicos de uma época e apresentam um discurso da

esfera jurídico-administrativa, ou seja, as lexias usadas no texto correspondem a esse

contexto. De modo específico, devido à temática envolta nesse estudo ser a escravidão,

faz-se imprescindível que se conheça, minimamente, questões gerais acerca dela. Em

virtude disso, o conhecimento prévio dessas questões é de grande valia para que

consigamos identificar lexias relacionadas à escravidão e que, atualmente, não são mais

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utilizadas frequentemente. As lexias apresentam relação com o universo jurídico, são

declarações, reconhecimento, obrigações que se repetem nas narrativas das escrituras e

configuram um modelo de estrutura.

São documentos que tratam da comercialização de escravizados, o léxico

usado para caracterizar os indivíduos envolvidos nesse processo revela informações

particulares sobre a transação comercial envolvendo os sujeitos cativos. Assim, fizemos

um levantamento das lexias relativas aos escravos que nos possibilitam entender um

pouco do cenário da comercialização de cativos e separamos os termos selecionados em

categorias, a saber: Elementos que compõem o documento; Locais citados nas

escrituras; Sujeitos citados no documento; Caracterização dos sujeitos citados nos

documentos.

Na pesquisa, a língua, especificamente o léxico, será um subsídio para

compreender os aspectos da transação comercial e quem eram os sujeitos envolvidos, ou

seja, compreendemos as relações sociais por meio de algumas lexias usadas nos

documentos. Neste momento, discorremos sobre os significados de cada uma das lexias

e das relações destas com as unidades pertencentes a sua categoria e com as demais

lexias identificadas.

Por exemplo, ao analisar a categoria dos sujeitos envolvidos nos documentos

apresentamos as lexias voltadas ao cativo, ao comprador e ao vendedor, além das

figuras jurídicas que participam da transação, como o tabelião, o escrivão e as

testemunhas. Na caracterização dos sujeitos citados nos documentos apresentamos

lexias tais como: africano, preto, crioulo, cabra, mulato, pardo, agricultor, lavrador,

cozinheiro, solteiro, casado, viúva etc.

Para tanto, com vistas a identificar inicialmente o sentido com o qual cada

lexia foi utilizada, observamos os seus contextos de uso, as definições dispostas nos

dicionários e referências historiográficas. Com relação aos dicionários, recorremos a

Moraes Silva (1789), Vieira (1873), Figueiredo (1913), Silva Pinto (1832) e Bluteau

(1728).

Mais do que observar as relações estabelecidas entre os itens lexicais de

cada grupo, buscamos examinar ainda as conexões firmadas entre as categorias lexicais

escolhidas para analisar, a fim de constatar em que medida cada categoria encontra-se

relacionada com a escravidão, foco principal desse estudo. Vale ressaltar que para a

seleção lexical, observamos os sentidos dessas lexias, mediante os seus contextos de uso

e por meio de consulta a obras lexicográficas e historiográficas no intuito de selecionar

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apenas aquelas relativas aos negros escravos e/ou que possibilitem conhecer a realidade

em que estes se encontravam.

No contexto de produção das escrituras não existiam normas ortográficas

estabelecidas, entretanto, entendemos que os documentos foram escritos considerando a

norma culta da época, já que eram poucos os que tinham acesso à leitura e à escrita. Isso

possibilita o contato com uma das fases pelas quais a língua portuguesa passou.

O conhecimento do sistema de escrita da época é importante para sabermos

como os sujeitos usavam a língua naquele contexto e como isso está presente no gênero

textual escrituras de compra e venda de escravos. As fontes analisadas datam do século

XIX, portanto, é relevante compreender os aspectos do sistema ortográfico pertencente

àquela época, segundo as gramáticas históricas, para contextualizarmos linguisticamente

o corpus.

Teyssier (1997, p. 6) diz que “Os primeiros textos escritos em português

surgem no século XIII”, isso significa que, por muito tempo, a ortografia da língua

portuguesa não possuía um sistema padrão de escrita, já que os primeiros acordos

ortográficos vieram ocorrer no século XX. Desde os primórdios, aos dias atuais, divide-

se a história da ortografia portuguesa em três períodos: o fonético, o pseudoetimológico

e o simplificado.

No primeiro período, que inicia com os primeiros documentos redigidos em

português, as palavras eram escritas como eram pronunciadas. Esse período coincide

com a fase arcaica do idioma, portanto, não havia um padrão uniforme na transcrição

das palavras, a escrita apresentava variação dentro do mesmo texto, não havia uma

sistematização reconhecida. O grafema h, por exemplo, podia indicar tonicidade da

vogal: he (é); a existência de hiato: sahida (sa-í-da), sabha (sabia); e, às vezes, era usado

sem função indefinida: hua (uma). Segundo Coutinho (1976), no período fonético se

escrevia pelo ouvido, ou seja, as palavras eram registradas de acordo com o som que se

ouvia:

Não havia um padrão uniforme na transcrição das palavras. Às vezes, em um

documento, aparecem os mesmos vocábulos grafados de modo diferente.

Para isso, concorriam as diferenças regionais que deram em resultado o

sincretismo das formas, a influência embora pequena do latim, a negligência

dos autores e copistas, e, em alguns casos, a grafia castelhana. O que porém,

não se pode negar-se a tendência manifestamente fonética do sistema então

em uso. Escrevia-se não para a vista, mas para o ouvido (COUTINHO, 1976,

p. 72).

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O período pseudoetimológico tem início delimitado no século XVI e vai até

o ano de 1904, quando a Ortografia Nacional de Gonçalves Viana foi publicada. Essa

grafia tem como principal característica o emprego de consoantes germinadas

(dobradas) e insonoras. A grafia etimológica ou pseudoetimológica consistia em

conservar as letras das palavras latinas ou gregas, mesmo que não possuíssem valor

fonético. Além das consoantes geminadas, há o emprego de grupos consonantais

impróprios como gn, ct, pt, dentre outros, numa forma de recuperar ou aproximar do

étimo da palavra, mesmo que em muitos casos fossem apenas criações infundadas, pois

quem escrevia queria mostrar erudição e aproximação com a cultura clássica greco-

romana. Segundo Ximenes (2009, p. 14), “esse período vem a lume com o

Renascimento e a volta da cultura clássica greco-latina que influenciou os espíritos a

adotarem a grafia supostamente etimológica de cuja origem seria o étimo daquelas

línguas”.

O terceiro período começa com as tentativas de Gonçalves Viana de

apresentar um sistema fixo de grafia, com base na história da língua. Dessa forma,

algumas regras ortográficas foram estabelecidas, como a redução das consoantes

dobradas e a regularização da acentuação gráfica. Felisbino diz que:

Assim, a sistematização da ortografia nesse momento vislumbrou um caráter

não apenas de simplificar e fixar a ortografia apresentava um eixo

nacionalista, sobretudo, com referência às marcas entre a pronúncia brasileira

em relação à pronúncia europeia, ampliando e intensificando, dessa forma, a

procura da identidade nacional por meio da criação de um sistema gráfico

brasileiro (FELISBINO, 2013, p. 10).

Podemos inferir que a ortografia dos documentos aqui estudados

cronologicamente tem sua vigência no final do século XIX, entretanto, a escrita ainda

guarda traços do período fonético, que era usado até o fim do século XVI. Muitos

grafemas são escritos tal qual eram pronunciados, o que não implica uma uniformidade

na escrita, pois cada indivíduo tem sua maneira de falar. Por outro lado, percebemos

traços da ortografia pseudoetimológica na qual “as palavras eram escritas de acordo

com a grafia de origem, reproduzindo todas as letras do étimo, embora não fossem

pronunciadas” (SILVA, 2010, p. 98).

Nas escrituras públicas de compra e venda de cativos percebemos a

presença de duas ortografias: a fonética e a pseudoetimológica. Isso implica em dados

diferentes, que podem revelar a liberdade de escrita do escrivão, responsável por redigir

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as escrituras. Isso também revela que, mesmo havendo uma separação de períodos, eles

não se anulam, ou seja, o início de um período ortográfico não elimina todos os aspectos

do antigo período vigente, os usuários da língua não vão aderir completamente ao novo

sistema e isso pode explicar porque encontramos traços de períodos anteriores à época

que estudamos.

Essas observações sobre a ortografia da época ajudam a compreender o

contexto linguístico que as escrituras foram produzidas, fato que auxilia na análise dos

elementos léxicos dos documentos.

2.5 DA ANÁLISE SOCIAL

A partir do levantamento das lexias, contextualizamos o social, o judicial, o

econômico e o administrativo da então província cearense, descrevendo o

funcionamento dos órgãos administrativos e os sujeitos que trabalhavam nesses espaços,

e como se organizava a economia no contexto que as escrituras foram produzidas.

Por meio de leituras já elaboradas sobre esse recorte temporal da história do

Ceará e a partir das hipóteses levantadas através dos dados apanhados na seção de

análise das lexias, realizamos um estudo sobre o comércio da época, a relação senhor e

cativo, a vivência do escravizado, a constituição da família escrava e como era

deslegitimada no processo de comercialização.

Tendo exposto todas as categorias lexicais identificadas, apresentamos os

significados com que estas foram empregadas nos documentos e o que estes nos

permitem conhecer acerca do sistema econômico e social de escravidão ocorrido na

província cearense nos oitocentos. Os significados das lexias categorizadas e

empregadas para qualificarem os escravos, por exemplo, trazem uma complexidade de

sentidos, podendo indicar seus locais de origem e fatores usados para estabelecer uma

diferença de preços no momento da transação comercial.

Compreender os sentidos dessas lexias permite-nos entender a importância

conferida às categorizações presentes nesses documentos públicos, responsáveis muitas

vezes por decretar as condições de vida a que os cativos estavam sujeitos ou

enfrentariam após sua compra e mudança de senhor. Para tanto, fizemos um

levantamento bibliográfico dos estudos já realizados sobre o período escravista no

Brasil, com recorte no Ceará, realizamos um estudo sobre o contexto da escravidão no

Ceará, trazendo aspectos levantados nos dados analisados a partir das lexias. Também

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nos debruçamos sobre o funcionamento da comercialização de cativos, da estrutura do

documento oficial de compra e venda, sobre a organização dos órgãos públicos

responsáveis pela transação e pela caracterização dos sujeitos que detinham o poder de

articular o comércio e oficializar a ação de compra e venda. Fizemos, ainda, uma

reflexão sobre condição da família escrava no contexto de escravidão no Ceará,

descrevendo os laços afetivos nas senzalas.

A partir das lexias analisadas investigamos qual era o lugar dos cativos

casados, como eram vendidas as crianças cativas (se junto ou separadas dos pais), a

situação das crianças vendidas, mesmo no contexto da promulgação da lei do Ventre

Livre5, levantamos hipóteses sobre a existência de filhos brancos de escravas pretas e

outras possibilidades de investigações feitas a partir das lexias categorizadas.

Desta forma, serão realizadas leituras acerca da escravidão no Brasil e no

Ceará, como os estudos de Gorender (1985), Girão (1984), Libby&Paiva (2005), Rocha

(2004), Funes (2007) entre tantos pesquisadores e escritores com pesquisas na área.

5 A Lei do Ventre Livre foi uma lei abolicionista, promulgada em 28 de setembro de 1871 (assinada pela

Princesa Isabel). Esta lei considerava livre todos os filhos de mulher escravas nascidos a partir da data da

lei.

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3 “SAIBAM QUANTOS ESTA VIREM”: ANÁLISE LINGUÍSTICA-

FILOLÓGICA DAS ESCRITURAS

Nesta seção apresentamos a análise lexical e os embasamentos teóricos de

que nos servimos para a realização deste trabalho, os quais centram-se, de modo basilar,

nos conceitos de Filologia, Diplomática, Léxico e Cultura. A finalidade é mostrar a

relação entre o léxico e a cultura explicada através de quatro categorias lexicais inclusas

nas escrituras de compra e venda analisadas. São elas: 1. Elementos que compõem o

documento; 2. Locais citados nas escrituras; 3. Sujeitos citados no documento; 4.

Caracterização dos sujeitos citados nos documentos. Essas categorias têm relação

central com o sistema de compra e venda de cativos. Refletimos, ainda, sobre o

processo de significação das palavras, entendendo a forma que elas foram empregadas

na construção do sentido, no contexto dos documentos, ou seja, sobre a escravidão,

especificamente sobre a comercialização dos sujeitos escravizados no Ceará

oitocentista.

Como procedimentos metodológicos, optamos pela descrição semântica das

lexias6, ou seja, a descrição do significado de cada item lexical encontrado em

dicionários ou em leituras já feitas sobre essas lexias, relacionando-as com a produção

de sentido no contexto de uso do texto.

Nas subseções a seguir, fizemos uma descrição dos conceitos das principais

áreas que estamos trabalhando na pesquisa. Na subseção 2.1 falamos sobre o importante

papel da Filologia para a restauração e preservação de textos antigos, além de falar da

contribuição que o labor filológico oferece para as análises dos processos históricos

vividos pelas sociedades passadas. Na subseção 2.2 temos como foco o estudo da

Diplomática, explicando a importância dessa ciência para a análise da estrutura interna e

da organização do documento e de sua autenticidade. Na subseção 2.3, por fim,

embasados nos conceitos de Léxico e de Cultura, trazemos as lexias encontradas nos

documentos e seus significados que nos interessam para analisar o contexto sob a

perspectiva histórica.

6 Lexia: Unidade do léxico (vocábulos, expressões idiomáticas, locuções etc.). Unidade funcional

significativa de comportamento lexical. Usamos o termo lexia e outros equivalentes, como item lexical.

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3.1 A FILOLOGIA COMO ESTUDO INTEGRAL DO TEXTO

Para o tratamento dos documentos nos embasamos nos princípios da

Filologia, área de estudo da linguagem humana que tem como foco a língua escrita em

qualquer suporte e em qualquer época histórica. Neste trabalho, adotamos a perspectiva

que compreende a Filologia como a ciência do texto, principalmente dos textos antigos.

O estudo filológico de um texto não se restringe somente a sua análise

linguística, oferecendo inúmeras possibilidades de investigação que podem interessar a

diversas áreas como a Linguística, a História, a Sociologia, o Direito entre outras.

O termo Filologia apresenta múltiplas definições e, também, divergências

quanto à sua atuação. O Dicionário Houaiss (2001, p. verbete filologia) destaca pelo

menos cinco definições para o termo. Entre elas, a que mais se aproxima da perspectiva

que adotamos nesta dissertação é a seguinte: Filologia é o “estudo rigoroso dos

documentos escritos antigos e de sua transmissão, para estabelecer, interpretar e editar

esses textos”. Ou seja, a Filologia faz um estudo amplo de documentos escritos,

preocupando-se com a edição, mas também com a transmissão das informações contidas

nesses escritos. Neste trabalho, nossos objetivos ultrapassam a edição de documentos,

pois trazemos uma interpretação histórica e linguística, sobretudo do léxico desses

textos.

A Filologia é uma ciência antiga, que ao longo dos séculos sofreu alterações

na sua significação. Não pretendemos descrever a história da Filologia, mas

compreender alguns conceitos que revelam a grandeza dessa área no que diz respeito à

investigação e à recuperação de textos.

Basseto (2001) explica o longo percurso histórico percorrido pela Filologia

na Grécia e Roma. Já no Renascimento, por exemplo, há um retorno ao classicismo e o

conceito ganha novos olhares:

Com os primeiros indícios do renascimento, na segunda metade do século

XIV, volta-se a estudar novamente os clássicos na Itália e depois em toda a

Europa. Reaparecem os filólogos, como os Escalígeros, Saumaíses,

Casaubon, Wolf, entre tantos outros nomes conhecidos, que estudam

comentam e editam os clássicos latinos e gregos. Com isso, se fixa o conceito

moderno, em sentido estrito, e filologia como a ciência do significado dos

textos; e em sentido mais amplo, como a pesquisa científica do

desenvolvimento e das características de um povo ou de uma cultura com

base em sua língua ou em sua literatura. (BASSETTO, 2001, p. 37).

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Nessa ótica mais ampla, a Filologia caminha até os dias atuais como a

ciência que estuda o texto e a língua escrita, considerando sua história, suas mudanças,

as influências recebidas por cada contexto e os fenômenos linguísticos. É a ciência que

também investiga, através dos discursos dos textos editados e/ou analisados, as

vivências de antigas e recentes sociedades, suas formas de vida, suas culturas expressas

por meio da língua.

É nessa perspectiva ampla da ciência que investiga as sociedades e suas

culturas através de seus textos que ancoramos nosso trabalho. Para além da análise dos

aspectos linguísticos, investigamos questões históricas, culturais, políticas, jurídicas e

administrativas do Ceará e do Brasil do século XIX, que ainda têm reflexos na

atualidade brasileira.

Na tarefa de investigar os documentos em uma perspectiva linguística e

histórica, recorremos a outras ciências que nos ajudam a compreender os sujeitos e seus

discursos. Uma delas é a Lexicologia, percebendo que através do léxico podemos

enveredar por diversos caminhos, pois estudar o léxico de uma língua também é estudar

a história de quem fala essa língua. Por meio do estudo das lexias registradas nas

escrituras, analisamos como a linguagem revela a história social da época.

Compreendemos que a maneira mais eficiente de conhecer o passado das

sociedades é conhecer os registros deixados por elas. A Filologia tem como um de seus

papeis principais a recuperação e a divulgação, por meio de edição, de produções

textuais de determinada época, fato que possibilita conhecer o modus vivendi de um

povo, a organização política, social, cultural etc. de determinada comunidade em épocas

passadas. Para Lamas (2009), os estudos filológicos devem integrar além das dimensões

linguísticas, os elementos culturais presentes nos escritos:

Trata-se, no fundo, de propor um modelo articulado em que se integrem o

cultural, o linguístico, o literário, porém em que também englobem as demais

dimensões da linguagem: a cognitiva, a gramatical e a semântica, a

sóciocomunicativa e a textual, a variação, a aplicação do linguístico a

qualquer das esferas da realidade prática, etc. E se trata, também, de um

modelo comum para a linguística sincrônica e para a diacrônica. (LAMAS,

2009, p. 24)

Ximenes (2012, p. 94) explica que o trabalho filológico, ou seja, “a leitura

cuidadosa, a recuperação, a edição e a interpretação dos textos” exige um olhar atento

que pode apontar para variados caminhos, quais sejam: da língua, da história, do plano

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social, temporal e ainda referente à natureza do documento selecionado, dando à

Filologia uma dimensão interdisciplinar.

Pelos objetivos que esta dissertação pretende atingir, podemos afirmar que

trilhamos perspectivas interdisciplinares, sendo a Linguística e a História as áreas mais

evidentes, mas trabalhando também com a linguagem do Direito, pois analisamos

documentos genuinamente jurídicos, e também a Sociologia, já que analisamos o

contexto escravocrata, descrevendo o comportamento dos sujeitos, suas ideias e as

consequências da conjuntura do contexto social da época e também de que forma isso

reverbera nas relações sociais atualmente.

Destacamos o papel crítico do filólogo em relação à autenticidade do

documento. É necessário primar pela verdade, analisar se o texto pertence de fato à

época e ao autor que lhe foram atribuídos, devendo estar preparado para identificar os

possíveis equívocos presentes no texto, tornar claros pontos de difícil compreensão

para, assim, restaurá-lo em sua forma genuína. Desta forma, o filólogo deve se basear

em informações diplomáticas e paleográficas. Ainda nessa perspectiva de

responsabilidade que o filólogo deve ter sobre o documento estudado, Spina (1994)

expõe que para ser denominado como filólogo, é preciso deter uma postura científica

ante o documento. Segundo ele, a Filologia que não emprega técnicas fundadas em

conhecimentos científicos torna-se puramente amadorismo.

Na interpretação das escrituras de compra e venda de cativos lidamos com o

contexto histórico em que o Brasil vivenciava a escravidão, as primeiras reinvindicações

pela abolição, os movimentos pró e contra a libertação dos escravos, convivendo ainda

com a comercialização de cativos entre as regiões cearenses e para outras províncias, e é

nesse contexto que mergulhamos por meio do trato filológico nas escrituras. Desta

forma, fazemos uma análise para além do texto, investigamos os cargos e as funções

administrativas e jurídicas citadas nos documentos, assim como as leis vigentes, a

organização diplomática do gênero textual, e tantos outros aspectos que englobam os

textos.

O labor filológico exige uma pesquisa responsável sobre o documento.

Através de leituras, buscamos informações diversas acerca da realidade que propiciou a

escrita desses textos, uma vez que eles foram produzidos em um espaço e um tempo

específicos, além de se tratar de um período importante da história do Brasil, momento

esse que abrange muitos discursos ideológicos e ações a serem investigadas. Nesses

textos, há informações sobre a organização territorial vigente da província cearense

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naquele período, um repertório lexical dedicado ao documento público, além da

descrição da prática comercial que se passa no cenário da escravidão. Essas leituras são

essenciais para construir uma pesquisa que pretende analisar dialogicamente o

repertório lexical e seus sentidos na história.

Partimos, a seguir, para uma explanação teórica sobre a Diplomática e sua

importância para compreender a organização, a função e o uso dos documentos oficiais.

3.2 A CONSTITUIÇÃO FORMAL DO TEXTO: UMA ANÁLISE DIPLOMÁTICA

Nesta subseção nos voltamos para a estrutura do documento, a forma com a

qual ele se apresenta. Desse modo, analisamos o texto do ponto de vista diplomático, ou

seja, sua organização formal. Esse processo também nos permite identificar elementos

que muito revelam sobre o contexto de produção das escrituras, como o tipo de escrita e

a linguagem usada na época, os elementos internos do texto, que remetem à sociedade,

como o papel que servia como suporte, as regras do sistema judicial e administrativo da

época que deveriam constar nos documentos públicos, entre tantos elementos que

podemos identificar nas informações contidas nas escrituras.

Bellotto (2004, p. 47) atribui o nascimento da Diplomática ao surgimento da

necessidade de verificar a fidedignidade de certos “diplomas” medievais, ou seja, a

investigação sobre a falsidade versus a veracidade desses papéis. Ainda segundo

Bellotto (2009), os documentos diplomáticos são os de natureza jurídica que refletem

ações e relações políticas, legais, sociais e administrativas entre o Estado e os cidadãos,

configurando, assim, os documentos públicos. E podem ser divididos em duas

categorias: dispositivos e testemunhas. Essas categorias apresentam subdivisões, a

saber:

Quadro 1 - Divisão dos documentos diplomáticos

Dispositivos Testemunhais

Normativos: normativos: lei, ordem de

serviço, regulamento etc.

De ajuste: tratado, convénio, contrato,

pacto etc.

De correspondência: intimação, circular,

edital, portaria, memorando, alva.

Assentamento: atas, termos, autos de

infração etc.

Comprobatórios: atestados, certidões,

traslados, cópias autenticadas.

Informativos: pareceres, informação,

relatórios etc.

Fonte: elaborado pela autora.

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As escrituras de compra e venda de escravos podem ser caracterizadas

como documentos comprobatórios, pois são certidões que comprovam a venda e a

compra de escravizados. Os documentos possuem a estrutura organizacional legal e

jurídica, com testemunhas, assinaturas, selos e termo de reconhecimento do tabelião.

Trata-se, portanto, de um documento que mostra a transação comercial de um bem que

era registrado em livros cartoriais. A escritura era pública, escrita por um burocrata

imperial e ficava sob controle do Estado. As certidões tinham o objetivo de tornar

públicos e legais as relações comerciais, sejam imóveis, móveis, terras, escravos etc.

A seguir, mostramos a capa e a contracapa do livro de escrituras de compra

e venda de escravos, que contém os documentos que analisamos aqui. O papel na base

da capa foi colado pelo Arquivo Público do Estado do Ceará como forma de

catalogação dos livros:

Figura 7 - Capa do livro de escrituras.

Fonte: APEC (Capa do livro de escrituras de compra e venda de escravos, Livro 357).

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Figura 8 - contracapa do livro de escrituras.

Fonte: APEC (Contracapa do livro de escrituras de compra e venda de escravos, Livro 357).

A encadernação em capa dura, de cor vermelha, possui uma etiqueta

amarelada colada na lombada semelhante à fita adesiva, aspectos que parecem

intervenções posteriores. Analisar o suporte é importante para verificar possíveis

intervenções e o que é considerado genuinamente pertencente à estrutura original do

documento.

Para Bellotto (2002, p. 19), o objeto da Diplomática “é a configuração

interna do documento, o estudo jurídico de suas partes e dos seus caracteres para atingir

sua autenticidade [...]”. Já para Richter (2004, p. 87), a Diplomática “é a ciência que

estuda a estrutura formal dos documentos antigos e contemporâneos e seus caracteres

externos (suporte, tinta, sinete, selos, carimbos) e internos (forma documental), com o

objetivo primeiro de verificar sua autenticidade e seu valor como fonte histórica”. De

acordo com a autora, “atualmente, a diplomática estuda também a tipologia

documental” (RICHTER, 2004, p. 88).

Cardoso (2008) afirma que, em todos os livros de registros documentais, era

obrigatório haver termo de abertura, termo de encerramento e a numeração em todas as

páginas, seguidas da rubrica de quem primeiro manuseou o livro. Ressalta ainda que

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isso deveria ser feito antes do primeiro registro. As numerações e rubricas aparecem no

início dos fólios7, ao lado direito e apenas no recto desses.

O livro de escrituras que analisamos possui termo de abertura e de

encerramento, bem como a rubrica de quem primeiro manuseou, como mostramos a

seguir:

Figura 9 - Termo de abertura do livro de escrituras.

Fonte: APEC. Livro de Escrituras.

Edição semidiplomática do termo de abertura:

7 Na Filologia utilizamos o termo fólio equivalente justamente a uma folha em que a parte frontal é

chamada de recto enquanto a dorsal denomina-se verso.

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Este livro servirá para n’elle lançar

o 1º Tabeliaõ Joaquim Feijó de Mello

as escripturas de compra e venda de es-

cravos; e vai numerado e rubricado em

todas as suas folhas com a rubrica = JB deVascon-

cellos = de que uso, levando no fim o

competente termo de encerramento.

Cidade da Fortaleza 16 de No

vembro de 1870 –

O Juiz de Direito daComarca

Julio Barbosa deVasconcelos

Figura 10 - Termo de encerramento do livro de escrituras.

Fonte: APEC. Livro de Escrituras.

Edição semidiplomática do termo de encerramento:

Tem este livro cento e quarenta e

oito folhas, os quais ficam todas por

mim numeradas e rubricadas com a

rubrica = JBdeVasconcellos = de que

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uso e no principio o competente

termo de abertura –

Cidade da Fortaleza 16 de

Novembro de 1870 –

O Juiz de Direito daComarca

Julio Barbosa deVasconcelos

Figura 11 - Rubrica do Juiz de Direito.

Fonte: APEC. Livro de Escrituras.

Esses elementos diplomáticos auxiliam na busca por informações textuais, o

que é importante para legitimar o discurso como sendo jurídico e legal e também para

compreender aspectos próprios do contexto linguístico e administrativo da época.

A Diplomática ajuda na identificação de elementos externos, extrínsecos,

físicos nos documentos. Segundo Bellotto (2015, p. 01), “a Diplomática fornece os

elementos que sustentam a teoria arquivística em seus princípios básicos: o da

proveniência; o da organicidade; o da unicidade e o da indivisibilidade/integridade”.

Dessa forma, esta ciência compreende o documento como um todo, investigando desde

antes de sua criação.

Bellotto (2002) apresenta uma estrutura de documentos diplomáticos

dividida em três partes: o protocolo inicial, o texto e o protocolo final que os

documentos públicos podem apresentar:

Quadro 2 - Exemplo de uma análise diplomática.

(continua)

Parte do texto Discurso analisado

Protocolo Inicial

Este elemento pode ou deve ter quatro

subdivisões:

Invocação divina, às vezes, em forma

abreviada (“em nome da Santíssima

Trindade...”, “In Dei nomine...”);

Titulação, compreendendo o nome e

titulo do autor;

Direção, destinatário, que pode ser

individual ou coletivo;

Saudação breve, nem sempre, muitas

vezes, regida de forma abreviada (“Vos

envio muita saúde”; “S” = Saúde).

É o corpo, a alma do documento. Constitui-se das

seguintes partes:

Preâmbulo: tido como um ornamento, de

aspecto literário, para chamar a atenção

sobre a utilidade do documento, também

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Texto

denominado “arenga” (conversa fiada);

Notificação: dá conhecimento a uma ou

várias pessoas;

Exposição ou narratio: mostra as causas

que tornaram necessário o ato;

Dispositivo: parte mais importante,

essência do documento, expressa a

vontade do autor;

Sanção: cláusulas finais expressando uma

punição, explicitando a pena em que se

vai incorrer (espiritual ou penal, uma

maldição);

Corroboração: expressa o empenho de

bens em garantia. Também pode ter o

sentido de renúncia a determinadas coisas

ou de corroboração, quando a pessoa que

recebe o documento é obrigada a divulgá-

los.

Protocolo

Final ou

Escatocolo

É a parte final do documento. Divide-se em:

Subscrição ou assinatura – do autor;

Datação: consiste na localização do

documento no tempo e espaço (dia, mês,

ano, era, às vezes, hora, cidade, vila,

tec.). A datação consiste nas datas tópica

e cronológica.

Precação: constituída por dois elementos:

- assinatura de testemunhas ou a quem foi

delegada a execução do ato; - sinais de

validação: selo e carimbos.

Fonte: Bellotto (2002).

Ainda segundo Bellotto, no protocolo final podemos verificar a subscrição

ou assinatura do autor que atesta o ato ou fato ocorrido, as datas que atestam o tempo e

o lugar onde foi produzido o documento e os selos e/ou carimbos que validam

judicialmente o texto. Esses elementos diplomáticos são primordiais para selar a

autenticidade do documento.

Devemos lembrar que nem todo documento diplomático apresenta todas as

partes supracitadas, alguns não apresentam o protocolo inicial ou final, por exemplo.

Este fato não impede que a análise seja feita e pode evidenciar a falta de padronização

na produção de documentos, mesmos os públicos.

Todas as escrituras de compra e venda de escravos aqui analisadas

apresentam uma estrutura padrão. Por esta razão, usamos como exemplo apenas uma

escritura para realizar uma análise diplomática. A partir de uma proposta de análise

elaborada por Tognoli (2013) mostramos que a estrutura das escrituras segue um

modelo diferente do proposto por Bellotto (2002), no entanto, o documento é

diplomático e suas características internas e externas nos permitem fazer uma análise

diplomática.

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Tognoli e Guimarães (2011) propõem uma construção analítica unificada

dos elementos essenciais que compõem os métodos estudados e que, teoricamente,

funciona como uma síntese metodológica para analisar documentos de qualquer

natureza (jurídica ou não/público ou privado), em qualquer ambiente

(tradicional/eletrônico), em qualquer época (medieval, moderna, contemporânea), para

verificar o comportamento dos elementos comuns que compõem os métodos, ao longo

dos anos. Para isso, os autores esclarecem o objeto de estudo da Diplomática:

Entendemos, portanto, a informação orgânica registrada em uma forma

escrita determinada, produzida e/ou recebida por uma pessoa física ou

jurídica no desenvolvimento de uma atividade específica, variável com

relação ao lugar e à época, de natureza jurídica ou não. (TOGNOLI e

GUIMARÃES, 2011, p. 9)

A seguir, mostramos o modelo de análise diplomática elaborado por Tognoli

(2013):

Quadro 3 - Exemplo de dados para uma análise diplomática.

(continua)

Espécie documental

Tipo documental

Categoria Documental:

Dispositivo

Probatório

Informativo

Natureza do ato:

Público

Privado

Elementos externos:

Material

Tipo de escrita

Qualidade de impressão (visualização, integridade do documento)

Meio de registro

Selos e Sinais

Elementos internos:

Língua

Estilo de linguagem

Protocolo Inicial: (Título/Assunto/Datas/Invocação/Titulação – nome e

predicado do autor e destinatário/Saudação inicial)

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Texto (preâmbulo/exposição/notificação/dispositivo/sanção/corroboração /

anúncio dos sinais de validação)

Protocolo Final (precação/Saudação final/datas/subscrição)

Pessoas envolvidas na criação do documento:

Autor da ação

Autor do documento

Destinatário da ação

Destinatário do documento

Escritor

Testemunhas envolvidas

Estado de transmissão:

Pré-original

Original

Pós-original

Informações complementares:

Fundo produtor/recebedor

Grupo

Série

Notação

Fonte: Tognoli (2013).

O livro de documentos usado como fonte neste trabalho é composto por

escrituras que seguem uma estrutura similar, divergindo apenas em alguns elementos do

texto, como os sujeitos envolvidos e seus perfis, os preços negociados e pequenas

alterações na escrita. Como trabalhamos com 174 documentos, optamos pela análise

diplomática de um exemplar para que a leitura não se torne repetitiva e por acreditar que

os aspectos analisados em uma escritura permitam uma compreensão de um quadro

geral das informações contidas no corpus.

Abaixo, mostramos um quadro elaborado a partir do método de Tognoli

(2013) com as informações encontradas na escritura (fl.47v) usada como exemplo para

análise:

Quadro 4 - Análise diplomática de uma escritura de compra e venda de escravos.

Padrão ideal de análise diplomática para

documentos de arquivo

Informações das Escrituras de compra e venda

de escravos

Espécie documental Escritura

Tipo documental Escritura de compra e venda de escravos

Categoria Documental Probatório

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Natureza do ato Público

Elementos externos

Material: papel;

Tipo de escrita: a escrita utilizada,

predominantemente, foi a escrita

humanística cursiva ou italiana (Spina,

1994), a forma de registrar a mão corrida,

bastante cuidadosa, as letras pequena

inclinada para a direita, apresentando

traçado regular;

Qualidade de impressão: visualização

com baixa qualidade, devida a tinta azul

um pouco apagada;

Contém selo [no final].

Elementos internos

Língua: língua portuguesa;

Estilo de linguagem: jurídica;

Ementa: “Escritura de venda sob a

condiçaõ reta de um escravinho de nome

Sebastiaõ que á Moura Rolim &

Sobrinhos faz Manoel Joaquim Pereira

juntos pela quantia de 800$000 reis.”;

Protocolo inicial: “Saibam quantos estas

virem que sendo no Anno do Nascimento

e Nosso Senhor Jesus Christo de mil

oitocentos setenta e um ao primeiro dia

do mez de julho, n’esta cidade da

Fortaleza, do Ceará.”;

Texto: “(...) em meu cartorio

compareceram perante mim e as duas

testemunhas abaixo assignadas, de uma

parte como outorgante vendedor o

Tenente Coronel Andre Epifanio Ferreira

Lima, agricultor e morador no termo de

Baturite e de outra como outorgados

compradores Luis Ribeiro da Cunha &

Sobrinhos, negociantes e moradores nesta

mesma cidade, todos bem conhecidos de

mim Tabelião, do que doufe”;

Protocolo final: “Depois de feita esta

escritura foi por mim lida perante eles

vendedor e comprador, os quais

reciprocamente a aceitaram, e eu Tabeliaõ

como pessoa publica a outorguei e aceitei,

sendo testemunhas a tudo presentes

Viriato Ferreira Barreto e Fellipe José de

Santiago com os mesmos vendedores e

compradores e comigo Joaquim de Mello

Tabeliaõ que escrevi =”.

Pessoas envolvidas na criação do documento

Autor da ação: Tabelião Joaquim Feijó de

Mello;

Destinatário da ação: Moura Rolim &

Sobrinhos;

Destinatário do documento: Cartório de

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Fortaleza;

Testemunhas: Viriato Ferreira Barreto e

Felippe José de Santiago.

Estado de transmissão Original

Fonte: autora (a partir do modelo proposto por Tognoli (2013)).

Na escritura que analisamos acima podemos perceber que o protocolo final

não traz a assinatura do autor, apenas sua apresentação, bem como não atestam o tempo

e lugar onde foi produzido o documento. No entanto, encontramos essas informações no

protocolo inicial. A seguir, mostramos a foto da escritura com algumas observações

inseridas para melhor visualizar as informações diplomáticas, seguida da edição:

Figura 12 - Edição fotográfica de uma escritura de compra e venda escravos

com alterações na foto.

Fonte: APEC.

A seguir, apresentamos a edição semidiplomática da escritura analisada:

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fl.47v

Escritura de venda que faz o Tenente Coronel André Epifanio

Ferreira Lima de seus escravos José e Luisa á Luis Ribeiro da Cunha

& Sobrinhos, pela quantia ambos de 2:000$000 reis, como abaixo se declara

Saibam quantos esta virem que sendo no Anno do Nas- 5 cimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos setenta e dous,

aos vinte e cinco dias do mez de janeiro, nesta cidade da Fortalesa,

Capital do Ceará, em meu cartorio compareceram perante mim e as

duas testemunhas abaixo assignadas, de uma parte como outorgante

vendedor o Tenente Coronel Andre Epifanio Ferreira Lima, agricultor e 10 morador no termo de Baturite e de outra como outorgados compra-

dores Luis Ribeiro da Cunha & Sobrinhos, negociantes e moradores nesta

mesma cidade, todos bem conhecidos de mim Tabelião, do que

doufe. E pelo outorgante vendedor foi-me dito perante as mesmas

testemunhas que esse é senhor e possuidor dos escravos Jose de 15 vinte e dousannos de idade, e Luisa de desoito, ambos pretos

solteiros, sem officio, e naturais desta Provincia; e porque os pos-

sui livre e desembaraçados de qualquer onus, vende com effectiva-

mente vendido tem por meio deste instrumento aos mencionados

compradores, pelo que digo aos mencionados compradores Luis 20 Ribeiro da Cunha & Sobrinhos, pelo preço e quantia certa ambos de

dous contos de reis, que, em moeda corrente, esse vendedor con-

fessa ja haver recebido dos compradores, pelo que lhe dá plena

e geral quitação de paga, e lhes transfere toda posse, dominio e

senhorio dos referidos escravos, dos quais podem esses compradores 25 tomar conta como seus que são e ficam sendo por bem deste instru-

mento. E logo pelos compradores for dito que aceitam a presente es-

critura nos termos em que está concebida e que ja estão de posse

dos referidos escravo Jose e Luisa. Pagaram os compradores na Sec-

ção de Arrecadação da Thezouraria Provincial desta cidade, a quantia 30 de seiscentos mil reis, conforme o conhecimento que me apresentaram

numero 199 desta data. Depois de feita esta escritura foi por

mim lida perante esses vendedor e compradores, os quais reciprocamen-

te a aceitaram por acharem-n’a como outorgado haviam, e eu Ta-

belião como pessoa publica a outorguei e aceitei em nome dos au- 35 zentes e pessoas a que pertencer possa, sendo testemunhas a tudo pre-

sentes Viriato Ferreira Barreto e Antonio Jose de Britto

que assignaram com os mesmos vendedor compradores e comigo

Joaquim Feijó de Mello Tabelião que escrevi =

[AndreEpifanio Ferreira de Lima] 40 [Luis Ribeiro da Cunha Sobrinhos]

Testemunhas [Viriato Ferreira da Cunha]

[Antonio Jose de Britto]

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As escrituras de compra e venda de escravos iniciam por uma ementa,

espécie de introdução contendo uma apresentação do gênero textual, o nome do cativo,

seu preço e, na maioria dos documentos, a expressão “como abaixo se declara”, que

funciona como texto introdutório para o protocolo inicial.

No que diz respeito ao aspecto estilístico das escrituras públicas, nota-se que

foram elaboradas em uma linguagem formal. São textos expositivos e descritivos e

apresentam frases padronizadas.

A falta de algum elemento diplomático se explica pela natureza jurídica do

instrumento, pelas especificidades de cada gênero textual e pela época que ele é

produzido. Na escritura de compra e venda de escravos, notamos que a datação vem

explícita no protocolo inicial, quando na maioria dos documentos jurídicos esse

elemento é exposto no protocolo final.

A ausência de algumas características diplomáticas não é um problema,

apenas mostra que os gêneros textuais tinham estruturas diferentes, mesmo sendo

documentos públicos, oficiais. Atualmente, os documentos da esfera pública também

devem respeitar protocolos e apresentarem características diplomáticas, o que não

significa que todos tenham a mesma estrutura.

3.3 ESTUDO LINGUÍSTICO DO TEXTO: O LÉXICO COMO FORMA DE

REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE SOCIAL

Nesta subseção, apresentamos os conhecimentos teóricos sobre léxico e

sociedade, mostrando a relação de interdependência estabelecida entre estes conceitos.

Nesta última parte da seção também apresentamos a análise das lexias encontradas no

corpus, separadas em categorias. Para tanto, apresentamos um quadro por cada

categoria de lexias, constando seu significado, um exemplo do contexto de uso na

escritura com a indicação do fólio em que se localiza e uma edição modernizada do

trecho da escritura para leitura mais fácil do texto. Em sequência, analisamos com quais

sentidos as lexias foram utilizadas.

Estudar o léxico de uma língua é enveredar por um mundo de costumes,

valores, ideologias de um povo, e também de um período histórico e de um espaço

específico. Logo, o estudo lexical é também um estudo sobre a história de uma língua e

da cultura de um povo, de um lugar, de um tempo.

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Neste trabalho, os estudos do léxico e da cultura caminham juntos, fazemos

uma relação das lexias levantadas nos documentos, sempre relacionando com o contexto

de produção das escrituras de compra e venda de escravos. Antes, vamos visitar alguns

conceitos de cultura e de léxico e a relação entre essas duas áreas.

O conceito de cultura não é unânime, sua definição é sempre revisitada e

atualizada. Raymond Williams (1969), por exemplo, contribuiu bastante para a

compreensão desse conceito. Na obra “Cultura e sociedade”, o autor faz um panorama

das definições distintas atribuídas ao sentido de cultura. Para ele, o conceito de cultura e

a própria palavra surgiram no pensamento inglês, no período da Revolução Industrial.

Nesse olhar histórico, Williams estuda o processo das mudanças que

ocorreram no conceito de cultura e relaciona essas definições às transformações

históricas, seja nas formas de trabalho, na política, nas classes sociais, nas produções

culturais, como a literatura e na arte, entre outras.

Williams dialoga sobre o que seria uma cultura em comum, a qual ele

relaciona a verdadeira democracia à possibilidade de viabilizar o acesso a “todas as

formas” de cultura a todas as pessoas. Para ele:

Uma cultura comum não é, em nenhum nível, uma cultura igual. Mas

pressupõe, sempre, a igualdade do ser, sem a qual a experiência comum não

pode ser valorizada. Uma cultura comum não pode opor restrições absolutas

ao acesso a qualquer das suas atividades: este é o sentido real do princípio de

igualdade de oportunidades. (WILLIAMS, 1969, p. 326)

Apropriando-nos deste conceito, refletimos sobre o momento histórico em

que o Brasil vivia na época de produção das escrituras de compra e venda de escravos,

e refletimos sobre a relação citada por Williams de política e cultura. Interessa-nos

compreender de que maneira as relações de poder eram estabelecidas e como esses

discursos eram formas de manutenção de uma cultura que excluía e escravizava.

Desta forma, com o cuidado de não cometer anacronismo, estamos na

posição de análise de fatos passados e não podemos deixar de adotar uma postura crítica

em nosso estudo, entendendo que essa posição se torna necessária quando podemos

confirmar as reverberações da escravidão no Brasil até os dias atuais, citando o racismo

e outras posições excludentes.

A perpetuação desse tipo de ideia/ação é feita, principalmente, através do

discurso. A língua é cultura, é também um instrumento de transmissão de cultura, de

ideologias, de experiências, de costumes, de comportamentos etc. Fiorin (2003)

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concorda que “não existe cultura sem língua” e Fonseca (2012) acrescenta que “a língua

forma o espectro mais amplo da constituição do conhecimento de si e do outro”. Ou

seja, a língua é a ponte para conhecer a nós mesmos e o que nos rodeia, incluindo as

experiências de outros. Desta forma, é a responsável por construir os laços entre os

tempos e as ideias.

Biderman (2001) faz uma discussão sobre a dinamicidade da língua,

afirmando que a língua não é um sistema fixo. Um elemento que representa essa

flexibilidade é o léxico, porque apresenta a condição de ser variável e se mostra em

constante mudança. Sobre isso, Biderman afirma que:

O Léxico se expande, se altera e, às vezes, se contrai. As mudanças sociais e

culturais acarretam alterações nos usos vocabulares: daí resulta que unidades

ou setores completos do Léxico podem ser marginalizados, entrar em desuso

e vir a desaparecer. Inversamente, porém, podem ser ressuscitados termos

que voltam à circulação, geralmente com novas conotações. Enfim, novos

vocábulos, ou novas significações de vocábulos já existentes, surgem para

enriquecer o Léxico. (BIDERMAN, 2001, p. 139)

Por meio dos estudos lexicais é possível observar e investigar

cientificamente as unidades léxicas em uso por uma determinada sociedade,

representando as relações culturais de uma época e de uma comunidade. Isso é possível

porque cada lexia remete e carrega especificidades relacionadas ao período histórico em

que ocorre, ao espaço a que pertence, e ao seu uso social e cultural. O léxico carrega em

si as marcas de poder, das ideologias, dos comportamentos sociais que em seu contexto

eram discursos que ditavam leis, legitimavam hierarquias, perpetuavam ideias, algumas

que não são aceitas social e juridicamente, atualmente, como é o caso da escravidão,

abolida há 130 anos, mas que no recorte temporal dos documentos pesquisados aqui, a

escravização dos povos negros era aceita por lei e o léxico também testemunha esse

fato.

“Existem tipos diferentes de léxico de acordo com a situação social, idade e

instrução de cada falante. Assim o léxico é um processo contínuo de aquisição através

de vocabulário ativo (de uso) e passivo (de compreensão)” (CARVALHO, 2009, p. 41).

Desta forma, a aquisição do léxico é sempre contínua, porque o falante assimila novas e

distintas lexias durante toda a sua vida.

O termo lexia, citado pelo linguista francês Bernard Pottier para indicar a

unidade lexical memorizada, se distingue em lexias simples: pedra, siga, chega, ontem;

composta: primeiro-ministro, porta-luvas, saca-rolha; complexa: aquecimento global,

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máquina de escrever; textual: “Nada como um dia após o outro”. As lexias selecionadas

para este trabalho são simples e compostas, e são analisadas dentro do contexto de

produção das escrituras.

Para não confundir, é preciso fazer uma distinção básica entre os termos

palavra, lexia e vocábulo. Pottier (1976) propõe que a lexia é uma unidade memorizada,

já o vocábulo é a lexia em estado de dicionário e a palavra, a ocorrência no texto. Nesse

trabalho usamos o termo lexia, porque seu conceito está mais próximo do que

desejamos construir como discurso na pesquisa, já que, como confirma Turazza:

(...) a lexia é o elemento oferecido aos interlocutores de uma língua natural

para a construção e detecção de visões de mundo, de ideologias, de sistemas

de valores: o lugar privilegiado das mutabilidades que permite a interação

contínua entre a língua, cultura, ideologia e sociedade. Assim, a lexia não

pode ser concebida como elemento portador de informações unicamente

linguísticas, nem objetos fechados sobre si mesmos, mas como estruturas

potenciais estáveis dentro de certos limites, visto tratar-se de estruturas

duráveis e evolutivas. (TURAZZA, 2005, p. 57)

Levando em conta que “Partindo do estudo do léxico pode-se explicar a

vida de uma sociedade” (CARVALHO, 2009, p. 36), descrevemos os contextos dos

documentos, com base nas lexias neles encontradas, abordando questões linguísticas e

históricas da província cearense nos oitocentos. Com isso, evidenciamos o diálogo entre

léxico, história e cultura.

Para Augusto (2006), a análise do léxico não deve dissociar-se do contexto

discursivo por ele gerado e do contexto sociocultural nele refletido. Procuramos, então,

manter a coerência quanto à análise do gênero textual escritura, os discursos presentes

nos documentos e o contexto em que eles foram produzidos.

Trazemos também contexto histórico do Ceará no século XIX, usando o

léxico empregado no corpus para investigar os termos que remetem à organização

administrativa da província cearense, as expressões que fazem referência ao

funcionamento do comércio de escravos na segunda parte daquele século, das lexias

usadas para caracterizar os sujeitos envolvidos no sistema jurídico que avaliava e

comercializava os escravizados e, desta forma, buscamos traços da história social da

época, do comportamento dos sujeitos do recorte temporal.

Esse estudo destaca o fator social da linguagem, perspectiva que atribui à

língua a função de refletir as práticas da história de uma sociedade. Coseriu (1987)

aborda essa perspectiva quando desenvolve o conceito de norma dentro da

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Sociolinguística. Ao trazer para a Linguística o conceito de norma, Coseriu mostra que

o fator social não interfere apenas individualmente na realização linguística do falante,

mas coletivamente, nos usos dos grupos sociais.

Desta forma, a língua é um construto histórico-social e coletivo, tornando

comum o que determinada comunidade vivenciou linguisticamente. É, portanto, a

responsável por conduzir as experiências, os valores, as crenças e todas as práticas

sociais da comunidade que a usa, tanto no contexto de uso quanto para gerações futuras.

Por meio da leitura do nosso corpus é possível refletir sobre os discursos

desses documentos, quem eram os produtores desses textos e que lugar na sociedade da

época eles ocupavam. Nas escrituras, é predominante o discurso do tabelião e do

escrivão, revelando os sujeitos que detinham certos privilégios, como o da escrita. As

testemunhas, os vendedores e os compradores são indivíduos nomeados e positivamente

caracterizados nos documentos. Os sujeitos escravizados, no entanto, são classificados

enquanto bens materiais postos à comercialização, ou seja, esses indivíduos não têm seu

discurso exposto, já que são tratados como objetos.

É preciso, portanto, compreender quem tem o poder da palavra, da escrita.

Desta forma, entendemos que um lado da história foi silenciado, e as informações são

incompletas. Este estudo não pretende completar esses vazios, mas levantar hipóteses e

trazer uma problematização desse contexto que escravizava mulheres, homens e

crianças, analisando que discursos legitimavam essa ideologia e que leis e sujeitos

davam o suporte para concretização do comércio de cativos.

As lexias coletadas estão distribuídas em quatro categorias: 01. Elementos

que compõem o documento; 02. Locais citados nas escrituras; 03. Sujeitos envolvidos

no documento; 04. Caracterização dos sujeitos citados nos documentos. Dividimos as

categorias em quadros que constam da lexia e sua descrição, contexto de uso, com um

trecho da escritura em que a lexia selecionada é citada, e uma edição modernizada do

trecho retirado para contextualizar a escritura.

Selecionamos alguns dicionários de diferentes fases da língua portuguesa

para este estudo, devidamente identificados abaixo de acordo com seu ano de

publicação:

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Quadro 5 - Dicionários usados para pesquisa dos significados das lexias.

Título Autor Ano

Diccionario da Lingua Portugueza

Antonio de Moraes Silva

1789

Grande Dicionário Portuguez ou

Thesouro da Lingua Portuguesa

Dr. Frei Domingos Vieira

1873

Novo Diccionário da Língua

Portuguesa

Candido de Figueiredo

1913

Diccionario da Lingua Brasileira

Luiz Maria da Silva Pinto

1832

Vocabulario Portuguez & Latino

Raphael Bluteau

1728

Fonte: elaborada pela autora a partir dos dicionários selecionados para a análise.

A escolha dos dicionários se deu, principalmente, pela variedade de

informações, visto que essas produções datam de diferentes períodos da língua

portuguesa e, também, pertencem a contextos anteriores ou ao mesmo recorte temporal

dos documentos aqui analisados. Não usamos somente dicionários, outras fontes serão

citadas na descrição das lexias, já que alguns remetem a instituições e órgãos públicos

que não encontramos em dicionários.

As lexias identificadas e as unidades que as integram serão dispostas em

quadros separados pelas categorias. Descrevendo os significados que as lexias foram

empregadas nos documentos, comentamos o que estas nos permitem conhecer acerca do

sistema econômico e social de escravidão ocorrido no Ceará nos oitocentos.

Quadro 6 - Categoria 01, Elementos que compõem o documento.

Lexia Descrição Contexto de uso Edição modernizada

Escritura

“Documento diplomático,

testemunhal de assentamento,

notarial. Registro autêntico de um

contrato ou de uma transação feito

por um oficial notarial”

(BELLOTTO, 2002, p. 67). No caso

das escrituras de compra e venda de

escravos o oficial notarial é o tabelião

e o documento oficializa a venda de

um ou mais escravizados.

“Escritura de venda de uma

escrava de nome Josefa que

á Tito...” (fl.1r)

“Escritura de venda de

uma escrava de nome

Josefa que a Tito...”

(fl.1r).

Rubrica “Assinatura em cifra, do nome não

escrito por extenso” (MORAES

SILVA, 1789, p. 648). Nas escrituras

aqui analisadas temos a rubrica do

“E vai numerado e

rubricado em todas as suas

folhas com a rubrica = JB

deVasconcellos = de que

“E vai numerado e

rubricado em todas as

suas folhas com a

rubrica = JB de

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Juiz de Direito em todos os fólios

rectos conferindo autenticidade ao

documento.

uso” (termo de abertura do

livro)

Vasconcellos = de que

uso” (termo de

abertura do livro).

Instrumento

No caso das escrituras de compra e

venda de escravos a lexia é usada

como sinônimo de escritura. Moraes

Silva (1789, p. 168) também atribui o

significado de “Acta, auto, escritura

authentica, que serve de provar

alguma coisa em Juizo”.

“Vende como

effectivamente vendido

tem por meio deste

instrumento do

mencionado comprador

Galdino Caminha” (fl.21v)

“Vende como

efetivamente vendido

tem por meio deste

instrumento do

mencionado

comprador Galdino

Caminha” (fl.21v).

Procuração

“Documento diplomático

informativo, notarial. Instrumento

pelo qual uma pessoa recebe de

outros poderes para, em nome delas,

praticar atos ou administrar bens”

(BELLOTTO, 2002, p. 80). Algumas

escrituras de compra e venda de

cativos apresentam uma procuração

anexada.

“Pelo procurador do

vendedor foi-me

apresentada respectiva

procuração que é do teor

seguinte: Saibam quantos

este publico instrumento de

procuraçaõ (...)” (fl.22v)

“Pelo procurador do

vendedor foi me

apresentada respectiva

procuração que é do

teor seguinte: Saibam

quantos este público

instrumento de

procuração (...)”

(fl.22v).

Selo

“O signal que se põe em alguma

escritura, impresso em obreia, ou

lacre” (Silva Pinto, 1832, p. 122).

Nas escrituras o selo aparece no fim

do texto, abaixo ou em cima das

assinaturas. Alguns estão descolados

dos documentos, soltos no livro. É

importante destacar que esse

elemento corresponde a um dos

principais responsáveis por oferecer

autenticidade ao documento.

“Pagou o comprador o

sello devido de dous mil

reis em estampilhas, que

foram por mim

inutilisadas.” (fl.3r)

“Pagou o comprador o

selo devido de dois

mil reis em

estampilhas, que

foram por mim

inutilizadas.” (fl.3r).

Estampilha

As estampilhas eram usadas em

diversos meios de pagamento. Por lei

150/99, de 11 de setembro, que

estabeleceu o regulamento do

imposto de selo, foram abolidas as

estampilhas fiscais.

“Pagou e comprador o sello

devido de um mil reis em

estampilha que for por mim

inutilisada; assim mais

pagou na secçaõ de

arrecadaçaõ da Thezouraria

Provincial.” (fl.2v)

“Pagou e comprador o

selo devido de um mil

reis em estampilha

que for por mim

inutilizada; assim

mais pagou na seção

de arrecadação da

Thezouraria

Provincial.” (fl.2v).

Moeda

(corrente)

“Peça de metal ou de outra

substância, cunhada por autoridade

soberana, e representativa do valor

dos objetos que por ela se trocam”

(FIGUEIREDO, 1913, p. 1324). Réis

(singular: real) era a moeda corrente

no Brasil desde os tempos coloniais,

sendo substituída pelo cruzeiro em

1942.

“Em moeda corrente ele

vendedor confessa ja haver

recebido da mão do

comprador” (fl.4r)

“Em moeda corrente

ele vendedor confessa

já haver recebido da

mão do comprador”

(fl.4r).

Fonte: elaborado pela autora.

A escritura é o gênero textual analisado na pesquisa, documento público,

“auto athentico de qualquer contrato, feito com certas solemnidades” (Silva Pinto,

1832). No recorte temporal em que as escrituras de compra e venda de escravos foram

produzidas, a escritura era o documento que estabelecia os contratos de compra, venda e

doações. Era lavrada em cartório por um agente público, configurada, portanto, como

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62

ato público. Desde a abolição da escravidão no Brasil, as escrituras de compra e venda

de escravos caíram em desuso. No entanto, o gênero escritura está em uso atualmente

como documento que formaliza juridicamente ações de compra, venda, permutas,

inventários, divórcios etc.

Nos documentos analisados a lexia instrumento funciona como sinônimo de

escritura. Em Moraes Silva (1789), instrumento significa “acta, auto, escritura

authentica, que serve de provar alguma coisa em Juizo”. Levando em conta que na

época da escrita do documento não havia um sistema de regras sobre os elementos

textuais, uma hipótese para o uso de sinônimos nas escrituras é a preocupação em não

repetir termos e aprimorar a leitura do texto.

A lexia selo se refere ao “signal que se põe em alguma escritura, impresso

em obreia, ou lacre” (Silva Pinto, 1832). Esse sinal servia para comprovar o pagamento

do imposto do selo, tributo cobrado pelo papel utilizado para o registro do documento.

Atualmente, os cartórios e outras instituições públicas e privadas usam o selo para

autenticar, fechar inviolavelmente e/ou marcar uma propriedade. Um exemplo de selo

usado como identificação oficial é o Selo Nacional, utilizado para autenticar

documentos oficiais e atos do governo. É usado também para autenticar diplomas e

certificados emitidos por unidades de ensino reconhecidas, provando que algumas ações

são verdadeiras tradições que resistem ao tempo e às mudanças sociais.

Outro elemento jurídico usado nas escrituras para oficializar a ação que

permanece até os dias atuais como meio de formalizar atos é a rubrica. O termo

significa uma forma de assinatura abreviada e, assim como a assinatura, é um

mecanismo de identificação pessoal utilizado no meio jurídico em diversas ocasiões

para dar garantia ao documento que está sendo assinado. Um contrato com diversas

páginas, por exemplo, deve ser assinado apenas na última folha e rubricado nas páginas

iniciais. No corpus, a assinatura se encontra no termo de abertura e as rubricas constam

nos fólios, no canto direito da parte superior.

Por moeda corrente, entende-se o dinheiro em circulação no país, seja

moeda e/ou células, emitido para ser usado como meio de pagamento. No Brasil,

durante o Império, o sistema monetário adotado era os réis, definido por Moraes Silva

(1789) como “a ultima especie de moeda, e ideal, em que se resolve o dinheiro, e de que

usamos no nosso modo de contas: vinte réis”. Silva Pinto (1832) assinala que réis, um

substantivo feminino utilizado em sua forma plural, é “contractação de reaes plural do

subst. Real”.

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63

Na categoria 01, destacamos os elementos que dão autenticidade ao

documento e que oficializam a comercialização. Desta forma, percebemos como o

sistema de compra e venda de cativos funcionava no mesmo contexto de outras

transações públicas de comércios, como as de imóveis, móveis etc. Isso nos mostra no

contexto de produção dos textos, as relações históricas e sociais em que o negro

escravizado é um objeto, uma coisa pertencente a alguém, a um proprietário que repassa

para outrem por meio de um documento público reconhecido em cartório.

Quadro 7 - Categoria 02, Locais citados nas escrituras.

Lexia Descrição Contexto de uso Edição

modernizada

Freguesia

A freguesia é uma designação

portuguesa para o termo paróquia

como é conhecido atualmente. É um

território submetido à jurisdição

eclesiástica de um pároco que

também exerce a administração civil.

No Império do Brasil, as autoridades

das freguesias organizavam as

“eleições de paróquia”, as quais

escolhiam os eleitores que votavam

nas eleições provinciais e nacionais.

“Natural da Freguezia de

Santa Quiteria; e porque

o possui livre e

desembaraçado de

qualquer onus, vende

como effectivamente

vendido” (fl.3v)

“Natural da

Freguesia de Santa

Quitéria; e porque

o possui livre e

desembaraçado de

qualquer ônus,

vende como

efetivamente

vendido” (fl.3v).

Comarca

O termo comarca compreende a uma

divisão jurídica político-

administrativa que se encerra a

jurisdição de um Juiz de Direito. Em

geral, em Portugal, o que definia

uma comarca era a jurisdição de um

corregedor. No Brasil, a figura que

correspondia ao corregedor era o

ouvidor.

“Nesta Vila da

Independencia, Comarca

do Principe Imperial,

Provincia do Piauhy em

meu cartório.” (fl.10r)

“Nesta Vila da

Independência,

Comarca do

Príncipe Imperial,

Província do Piauí

em meu cartório.”

(fl.10r).

Província

Era uma antiga divisão político-

administrativa do Brasil que foi

substituída pelo atual que é o estado.

As capitanias brasileiras tornaram-se

províncias em 28 de fevereiro de

1821. A Constituição de 1824 não

alterou nenhuma das divisões entre

províncias, o que ocorreu nas

décadas posteriores. Com o advento

da República, em 1889, as

províncias passaram à atual

denominação de estados.

“Uma escrava de nome

Alexandrina, parda, de

vinte e dousannos de

idade, solteira, sem

officio e natural desta

Provincia” (fl.2v)

“Uma escrava de

nome Alexandrina,

parda, de vinte e

dois anos de idade,

solteira, sem ofício

e natural desta

Província” (fl.2v).

Cidade

“Povoação de graduação superior ás

vilas, ou concelhos, e povoações

grandes.” (MORAES SILVA, 1789,

p. 464).

“Morador nesta mesma

cidade, ambos

negociantes e bem

conhecidos de mim

Tabelião, de que dou fe.”

(fl.4r)

“Morador nesta

mesma cidade,

ambos negociantes

e bem conhecidos

de mim Tabelião,

de que dou fé.

(fl.4r).

“Casa onde se guardam cartas, e

notas públicas, títulos e papeis. Casa

de Tabelião, e de escrivão. Livros e

“Nesta cidade da

Fortalesa, Capital do

Ceará, em meu cartório

“Nesta cidade da

Fortaleza, Capital

do Ceará, em meu

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Cartório assentos e mais papeis.” (MORAES

SILVA, 1789, p. 419). Nas

escrituras, um dos locais onde era

realizada a efetivação da compra e

venda dos cativos.

compareceram perante

mim e de duas

testemunhas assignadas”

(fl.4r)

cartório

compareceram

perante mim e de

duas testemunhas

assignadas” (fl.4r).

Vila

No contexto de produção dos

documentos, o termo vila também

designa uma organização político-

jurídica e administrativa que exerce

o poder sobre determinada

população. “Povoação, de categoria

inferior á de cidade e superior á de

aldeia” (FIGUEIREDO, 1913, p.

2087)

“Proprietario e morador

na Villa de Maria

Pereira, e apresentou as

procurações que vaõ

abaixo transcripta;”

(fl.11r)

“Proprietário e

morador na Villa

de Maria Pereira, e

apresentou as

procurações que

vão abaixo

transcritas”

(fl.11r).

Termo

É uma extensão territorial que

pertence a uma Vila. “Termo da

Villa ou cidade, o espaço a que

abrange a jurisdição dos seus juízes.”

(VIEIRA, 1871, p. 768).

“Comprador Jose

Correia dos Santos,

criador e morador no

termo de Aracaty todos

reconhecidos pelos

proprios por mim

Tabeliaõ” (fl.2r)

“Comprador Jose

Correia dos

Santos, criador e

morador no termo

de Aracati todos

reconhecidos pelos

próprios e por mim

Tabelião” (fl.2r).

Tesouraria

“Casa ou lugar, onde se guarda ou

administra o thesoiro público.

Repartição, onde funciona o

thesoireiro. Escritório de companhia

ou casa bancária, em que se realizam

transações monetárias.”

(FIGUEIREDO, 1913, p. 1970)

“Pagou o comprador o

sello devido de um mil

reis em estampilha que

foi por mim inutilisada,

assim mais pagou na

secção de arrecadação da

Thezouraria Provincial”

(fl.4v)

“Pagou o

comprador o selo

devido de um mil

reis em estampilha

que foi por mim

inutilizada, assim

mais pagou na

seção de

arrecadação da

Tesouraria

Provincial” (fl.4v).

Casa de

morada

Lugar “onde habita gente, morada,

habitação, prédio” (MORAES

SILVA, 1789, p. 420). Nos

documentos analisados aqui, casa de

morada faz referência à casa dos

negociantes que eram produzidas as

escrituras, mostrando que alguns

negociantes tinha o privilégio de não

precisar ir ao cartório.

“Nesta cidade da

Fortaleza, Capital do

Ceará, em casa de

morada de Dona Rosa

Candida de Figueiredo,

onde vim eu Tabelião á

chamado” (fl.12r)

“Nesta cidade da

Fortaleza, Capital

do Ceará, em casa

de morada de

Dona Rosa

Cândida de

Figueiredo, aonde

vim eu Tabelião á

chamado” (fl.12r).

Coletoria

“Lugar, onde se pagam os

impostos.” (FIGUEIREDO, 1913, p.

474)

“Pelo vendedor foi

apresentada certidão da

Collectoria da Telha, de

não estar matriculado o

escravinho vendido, por

morar fora dos limites da

Villa” (fl.80r)

“Pelo vendedor foi

apresentada

certidão da

Coletoria da Telha,

de não estar

matriculado o

escravinho

vendido, por morar

fora dos limites da

Vila” (fl.80r).

Município

“Cada uma das circunscrições

territoriais, em que se exerce a

jurisdição de uma vereação.”

(FIGUEIREDO, 1913, p. 1359)

“1ª Capitania da Secçaõ

da Guarda Nacional de

Reserva do Municipio de

Baturité, por nomeação

legal 11.” (fl.6v)

“1ª Capitania da

Seção da Guarda

Nacional de

Reserva do

Município de

Baturité, por

nomeação legal

11.” (fl.6v).

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Distrito

Compreende uma povoação que

ainda não tem a autonomia de cidade

e que pertence a um território de um

município.

“Distrito na cidade de

Baturite em meu cartorio

compareceu Jose

Antonio Pereira e as

testemunhas abaixo

assignadas, no que dou

fe” (fl.22v)

“Distrito na cidade

de Baturité em

meu cartório

compareceu José

Antônio Pereira e

as testemunhas

abaixo assignadas,

no que dou fé”

(fl.22v).

Fonte: elaborado pela autora.

Nesta segunda categoria intitulada locais citados nos documentos,

separamos as localizações encontradas nas escrituras que têm relação com a transação

comercial.

As lexias cartório, casa de morada, thezouraria e collectoria estão ligadas

diretamente à comercialização dos cativos, pois tratam-se dos espaços de escrita e

oficialização do documento. A collectoria é o órgão governamental de arrecadação de

tributos; onde se pagam as coletas e os impostos. No caso das escrituras, a Coletoria

emite uma certidão de comprovação caso o cativo não esteja matriculado. Esta ação

ocorre após o pagamento da compra, como mostramos a seguir:

Pagou o comprador na Secção de arrecadação da Thezouraria Provincial

trinta mil reis de imposto, conforme o conhecimento que apresentou numero

1313 d’esta data. Pelo vendedor foi apresentada certidão da Collectoria da

Telha, de não estar matriculado o escravinho vendido, por morar fora dos

limites da Villa. (fl.79r)

A lexia Thezouraria faz referência à repartição pública responsável por

fiscalizar a renda e os impostos da comercialização do cativo, como mostramos no

exemplo:

E logo pelos compradores foi dito que aceita esta escritura de venda nos

termos em que está concebida e que ja estão de posse da predita escrava

Gonçala. Pagaram os compradores na secção de arrecadação da Thezouraria

Provincial trinta mil reis de imposto, conforme o conhecimento que

apresentaram, numero 1351 de data de 7 do corrente. (fl.79r)

As Tesourarias das Províncias, também conhecidas como Tesourarias da

Fazenda tinham como finalidades a administração, a arrecadação, a distribuição, a

contabilidade e a fiscalização de todas as rendas públicas da província respectiva. Com

o advento do regime republicano, as tesourarias da Fazenda e coletorias foram extintas

pela lei n. 23, de 30 de outubro de 1891, que reorganizou toda a administração federal.

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A lexia cartório faz referência direta ao Cartório de Fortaleza, que tem

como responsável pelo expediente o 1º Tabelião Joaquim Feijó de Mello, como

mostramos no trecho a seguir:

Saibam quantos esta virem que sendo no anno do Nascimento de Nosso

Senhor Jesus Christo, de mil oitocentos setenta, aos deseseis dias do mez de

novembro, nesta cidade da Fortaleza, capital da Fortalesa, capital da

Provincia do Ceará, em meu cartorio compareceram perante mim e de duas

testemunhas abaixo assignadas. (fl.1v)

No entanto, algumas transações não foram feitas no cartório, mas na casa de

morada do negociante que, por algum motivo, não podia comparecer ao cartório. Desta

forma, o tabelião e as testemunhas iam até a residência para preparar a documentação de

compra e venda, como no exemplo abaixo:

Saibam quanto esta virem que sendo no anno do Nascimento de Nosso

Senhor Jesus Christo de mil oitocentas setenta e um, dos vinte sete dias do

mez de abril, nesta cidade da Fortaleza, capital do Ceará, em casa de morada

de Dona Mariana Caetana de Abreu, onde vim eu Tabeliaõ á chamado.

(fl.16r)

Atualmente, essa ação ainda é permitida. O tabelião de notas pode praticar

atos notariais fora de seu cartório. Escrituras, procurações, atas notariais, testamentos e

o que mais necessário for e que seja de competência do tabelião pode ser praticado em

diligência, na residência ou local de trabalho das partes interessadas, desde que o

tabelião ou seu preposto não ultrapasse os limites territoriais do município para o qual

recebeu a delegação segundo o art. 9º da Lei 8935/94.

Nas escrituras de compra e venda de escravos, notamos que as transações

comerciais efetuadas nas casas de morada são, em sua maioria, em casas de mulheres,

algumas descritas como viúvas. Foram 10 casos de compradoras ou vendedoras

mulheres em que o tabelião e as testemunhas vão até as suas residências para realizar a

comercialização. Há também dois capitães e dois coronéis que necessitam do serviço

domiciliar. A causa não é descrita na escritura, mas levantamos algumas hipóteses,

como caso de doença, velhice e, no caso das mulheres, o fato de que, na época, a vida

pública era mais acessível aos homens, mesmo se tratando de mulheres com

propriedades, estas viviam mais a vida privada. Portanto, lugares públicos eram mais

frequentados por homens.

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Para compreender melhor as lexias citadas, a seguir, é importante

entendermos a organização administrativa do Brasil nos oitocentos. As províncias eram

divididas em municípios que por sua vez eram divididos em freguesias. As freguesias

correspondiam às paróquias e os bispos comandavam as dioceses, típica organização

administrativa eclesiástica que abrangiam geralmente diversos municípios, ou seja,

diversas freguesias. Nas escrituras, as freguesias como a de Santa Quitéria, Lavras,

Maranguape, Quixeramobim, Icó, Inhamuns, Jaguaribe Mirim, Missão Nova, Ipús,

Cascavel, Assaré, Tamboril, Imperatriz, Príncipe Imperial, Quixadá, Aracaru,

Sant’Anna, Aracati, Arneirós, Maria Pereira, Franga, Independência e Marrão

(Província do Piauí), Sobral, Milagres, São Bernardo, Telha, Saboeiro e Aquiraz são

citadas como local de origem do cativo comercializado.

As freguesias citadas acima faziam parte de municípios que, segundo Silva

& Alencar (2015, p. 60) eram numerosos no período imperial: “(...) foram instaladas no

Ceará 48 novas vilas desmembradas das 16 células administrativas originais da colônia,

somando um total de 64 municípios”. Nas escrituras, alguns cativos também tinham

suas origens descritas como villas, que são as unidades territoriais menores e com

relativa autonomia administrativa. São citadas, por exemplo, a vila de Canindé, Vila de

Santo Antônio da Barbalha, entre outras.

Sobre essa divisão político-administrativa, acrescentamos mais duas lexias

citadas nas escrituras que selecionamos na categoria locais: província, comarca e termo.

O território brasileiro estava dividido em províncias e essas se estruturavam em

limitações menores, as comarcas. Em Houaiss e Villar (2009), consta que o termo

comarca significa uma divisão territorial para fins jurídicos que está sob o poder legal

de juízes de direito.

Destacamos também a lexia termo, que corresponde a toda a extensão

territorial pertencente a uma vila, incluindo-se nela a sede da vila. Para ilustrar essa

divisão, destacamos o fólio 98v, em que a transação ocorre “n’esta Villa da Uniaõ,

termo da cidade do Aracaty, Provincia do Ceará”. Nesta descrição, temos as lexias villa,

termo e província.

Outra lexia presente nas escrituras é districto, definido em Moraes Silva

(1789) como “extensão, espaço de terreno dentro de certos limites, sujeita a certos

Magistrados, Prelados, Juízes”. No contexto administrativo da época, os distritos

estavam dentro dos limites territoriais das vilas ou cidades, que mesmo possuindo

sentidos semelhantes, apresentam um fator que diferencia as duas lexias. A cidade

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apresenta um povoado de maiores proporções comparada às vilas. Nas escrituras, alguns

distritos foram citados na descrição do local de origem dos envolvidos na transação. A

saber: distrito de Marrecas, distrito de Mecejana/Messejana, distrito de Arneirós, distrito

do Acarape, distrito do Brejo Grande e distrito do Ibeassu.

Algumas lexias diferentes são usadas para destacar o mesmo local, como

cidade e vila, mostrando que por ser um momento de transição e mudança na

administração alguns elementos não são fixos, mesmo se tratando de um documento

oficial.

É possível observar a grande quantidade de cidades, vilas, distritos,

comarcas citadas nas escrituras, apontando para o fluxo dinâmico das transações que

ocorriam entre todas as regiões. O recorte de tempo dos documentos analisados é curto,

apenas três anos, no entanto, constatamos um grande número de regiões e sujeitos

citados nas escrituras.

Quadro 8 - Categoria 03, Sujeitos envolvidos no documento.

Lexia Descrição Contexto de uso Edição modernizada

Escravo (a)

“Cativo, reduzido à escravidão;

que está sem liberdade, sob o

domínio absoluto de um senhor,

assim chamado pela perfídia

humana.”; Escrava: “Mulher

cativa, que não é livre, que tem

um senhor” (MORAES SILVA,

1789, p. 815).

Na escravidão brasileira, mais

que privados de liberdade, esses

sujeitos eram vistos como

mercadorias passíveis dos mais

diversos negócios e direcionados

às funções escolhidas pelos seus

proprietários. Seus corpos, suas

vontades, suas relações afetivas,

eram violadas e limitadas.

Entretanto, no perfil do

escravizado do século XIX,

acrescentamos as vontades e

ações desses sujeitos em busca

da emancipação plena.

“Nomeado é senhor e

possuidor de um escravo

de nome Bazilio, preto,

de desoito annos de

idade, solteiro, sem

officio, e natural da

freguezia de Jaguaribe

Mirim” (fl.25v)

“Nomeado é senhor e

possuidor de um escravo

de nome Basílio, preto, de

dezoito anos de idade,

solteiro, sem ofício, e

natural da freguesia de

Jaguaribe Mirim” (fl.25v).

Comprador

O que compra para si, ou para

outrem, por sua conta ou por

conta alheia. (MORAES SILVA,

1789, p. 501).

“Como outorgado

comprador Jacob Cahn,

morador nesta cidade”

(fl.4v)

“Como outorgado

comprador Jacob Cahn,

morador nesta cidade”

(fl.4v).

Vendedor

“O que vende.” (FIGUEIREDO,

1913, p. 2072). Os negociantes

de escravos, comprando ou

vendendo, tratavam esse tipo de

comercialização como faziam

“E pelo procurador do

outorgante vendedor foi-

me dito perante as

mesmas

testemunhas.”(fl.10r)

“E pelo procurador do

outorgante vendedor foi

me dito perante as mesmas

testemunhas.” (fl.10r).

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69

com os demais produtos que

negociavam, seja açúcar,

algodão, etc. priorizavam os

lucros.

Procurador

“Indivíduo, que tem procuração

para tratar negócios de outrem.

Interventor; mediador.

Administrador.” (FIGUEIREDO,

1913, p. 1640).

“Como procuradores do

outorgante vendedor

Bonifacio Texeira da

Costa, proprietario e

morador na Vila de

Maria Pereira” (fl.11r)

“Como procuradores do

outorgante vendedor

Bonifácio Teixeira da

Costa, proprietário e

morador na Vila de Maria

Pereira” (fl.11r).

Tabelião

“Notário, funcionário público

que faz escrituras e outros

instrumentos jurídicos, que

reconhece assinaturas, etc.”

(FIGUEIREDO, 1913, p. 1924).

“E eu Tabeliaõ como

pessoa publica a

outorguei e aceitei em

nome dos auzentes e

pessoas” (fl.11r)

“E eu Tabelião como

pessoa publica a outorguei

e aceitei em nome dos

ausentes e pessoas”

(fl.11r).

Testemunha

“Pessoa, que é chamada a assistir

a certos atos autênticos ou

solenes. Pessoa, que ouviu ou viu

alguma coisa. Pessoa, que dá

testemunho do que viu ou

ouviu.” (FIGUEIREDO, 1913, p.

1962).

“Sendo testemunhas a

tudo presentes Manoel da

Rocha Motta Junior e

Vicente Ferreira Barreto,

que assignaram com os

mesmos procuradores do

vendedor, comprador e

comigo Joaquim Feijó de

Mello Tabeliaõ que

escrevi.” (fl.12r)

“Sendo testemunhas a tudo

presentes Manoel da

Rocha Motia Junior e

Vicente Ferreira Barreto,

que assignaram com os

mesmos procuradores do

vendedor, comprador e

comigo Joaquim Feijó de

Mello Tabelião que

escrevi.” (fl.12r).

Escrivão

“Empregado de justiça, que

escreve os atos d’ante algum

magistrado, ou tribunal, etc.”

(MORAES SILVA, 1789, p.

816).

“Em Pedro Monteiro

Gondim Escrivão

Interino do juiz de Paz eu

subscrevi e assignei em

publico e raso seguinte

de que uso.” (fl.16v)

“Em Pedro Monteiro

Gondim, Escrivão Interino

do juiz de Paz, eu

subscrevi e assignei em

público e raso seguinte de

que uso.” (fl.16v).

Fonte: elaborado pela autora.

No caso das escrituras, todas as transações de posses constavam de alguém

que transferia sua posse, chamado de vendedor ou vendedora, enquanto aquele que

pagava por esses direitos era o comprador ou compradora. Entre essa troca de bens está

o sujeito escravizado, tratado nessa transação como peça, objeto, produto passível de

comércio. Colocado como propriedade de um senhor, não possui nenhum direito sobre

ele mesmo e sobre sua força de trabalho. No texto das escrituras percebemos que o

cativo não participava da transação, não opinava, não tinha nenhuma posição para

questionar preços, condições de vida com o novo senhor.

Analisando as lexias testemunha e procurador, a primeira refere-se à

“pessoa que assegura a verdade do ato ou fato que se quer provar”, segundo o

Dicionário Jurídico (SANTOS, 2001, p. 240) As testemunhas tinham apenas seu nome

registrado, sem a descrição de um perfil. No entanto, há um padrão observado em todas

as 174 escrituras analisadas: duas pessoas por escritura, sendo todas do sexo masculino.

A testemunha era uma figura imprescindível nas transações comerciais, pois

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70

correspondia a um fator obrigatório para a validação pública da documentação. Nas

escrituras todas as testemunhas foram nomeadas na tessitura dos documentos e, ao final,

assinaram os registros, conforme mostramos neste exemplo:

Luis Rodrigues Samico Sobrinho que assignaram com os ditos procuradores

e comigo Joaquim Feijó de Mello Tabelião que escrevi Francisco Joaquim da

Rocha Jose Tavares de Miranda Maciel Viriato Ferreira Barreto Luis

Rodrigues Samico Sobrinho (fl. 45r)

O procurador representava “aquelle que em virtude da procuração de

alguem trata dos negócios delle em teu nome” (BLUTEAU, 1728). Desta forma, sua

presença na transação não era obrigatória, ele aparecia na falta de uma das partes. Ou

seja, quando o vendedor ou comprador não podia comparecer ao cartório, era necessária

a presença de um procurador para assinar o documento e ficar ciente de que a

comercialização desejada foi oficializada.

Analisamos também as lexias tabelião e escrivão, que correspondem a

importantes figuras na transação. O escrivão era um “funcionário que relata por escrito

os atos que se processam perante a autoridade pública de que é auxiliar” (HOUAISS e

VILLAR, 2009). Essa função era necessária nos serviços administrativos da época, bem

como o tabelião, que para Moraes Silva (1789), é o “oficial publico que faz as

escrituras, e instrumentos em que se requer authenticidade legal, e conserva os traslados

delas, nas notas; reconhece os sinaes etc.” O tabelião dava condição de registro público

aos documentos.

No século XIX, ler e escrever ainda eram considerados privilégios de

pessoas tradicionalmente ligadas ao saber e ao poder da escrita, como os religiosos, os

intelectuais e alguns profissionais, como os tabeliães e escrivães. Esses profissionais

possuíam o poder da escrita, de emitir e oficializar discursos, posições que, na época,

eram muito valorizadas. Portanto, os tabeliães e escrivães eram figuras respeitadas em

sociedade.

Em todas as escrituras podemos encontrar o tabelião responsável pelo

cartório Joaquim Feijó de Mello e em um caso o tabelião interino Miguel Francisco

Bastos Segundo, que corresponde a um cargo provisório.

Quadro 9 - Categoria 04, Caracterização dos sujeitos citados nos documentos.

Lexia Descrição Contexto de uso Edição modernizada

Crioulo (a) Era o negro nascido no Brasil. “Seu escravo de nome “Seu escravo de nome

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71

(FAUSTO, 2013, p. 62). Termo

usado para designar escravos.

Há certa confusão na caracterização

dos sujeitos negros, escravos,

crioulos nas escrituras, o que dificulta

uma definição mais precisa.

Ambrozio, crioulo, de

vinte e dousannos de

idade, para o que lhe

concede aos ditos seus

procuradores todos

poderes” (fl.38r)

Ambrósio, crioulo, de

vinte e dois anos de

idade, para o que lhe

concede aos ditos seus

procuradores todos os

poderes” (fl.38r).

Livre

No contexto de produção das

escrituras, a lexia livre designava

pessoas que nunca foram

escravizadas. Livre é diferente de

liberto, lexia que designa a pessoa

que foi escravizada, mas liberta.

“Possuidor dos escravos

de nomes Veneranda,

parda, de vinte e sete

annos de idade, casada

com homem livre e do

qual vive separada e sem

officio (...)”(fl.89r)

“Possuidor dos escravos

de nomes Veneranda,

parda, de vinte e sete

anos de idade, casada

com homem livre e do

qual vive separada e sem

ofício (...)” (fl.89r).

Pardo (a)

“Que tem cor intermédia a preto e

branco, quase escuro. O mesmo que

mulato” (FIGUEIREDO, 1913, p.

1496).

“Escravo de nome

Reynaldo, pardo, de

trinta e cinco annos de

idade, solteiro, sem

officio.” (fl.2r)

“Escravo de nome

Reynaldo, pardo, de

trinta e cinco anos de

idade, solteiro, sem

ofício.” (fl.2r).

Mulato (a)

“Aquele que procede de pai branco e

mãe preta ou vice versa”

(FIGUEIREDO, 1913, p. 1355).

“O escravinho de nome

Luis, mulato, de sete

annos de idade, e natural

desta freguesia,

assignando a competente

escritura” (fl.11v)

“O escravinho de nome

Luís, mulato, de sete

anos de idade, e natural

desta freguesia,

assinando a competente

escritura” (fl.11v).

Caboclo (a)

“Aqueles descritos comumente como

sendo descendentes de índios e

europeus. Nesse contexto do Ceará

do século XIX talvez esses escravos

fossem indígenas de fato, ou

descendessem da mistura afro-

ameríndia”. (ASSUNÇÃO, 2002)

“Vender ou forrar o

escravinho d’esse

outorgante de nome

Izidro de oito a nove

annos, caboclo (...)”

fl.71r

“Vender ou forrar o

escravinho desse

outorgante de nome

Izidro de oito a nove

anos, caboclo (...)”

(fl.71r).

Acaboclado (a)

“Que tem origem, corou feições de

caboclo” (FIGUEIREDO, 1913, p.

14).

“É senhora e possuidora

do escravo de nome

Manoel, acaboclado, de

16 annos de idade”

(fl.59v)

“É senhora e possuidora

do escravo de nome

Manoel, acaboclado, de

16 anos de idade”

(fl.59v).

Fulo (a)

“Diz-se dos pretos, cuja cor é tirante

a amarelo” (FIGUEIREDO, 1913, p.

925).

“De uma filha desta de

nome Josefa, de cor fula,

de oito annos de idade”

(fl.4r)

“De uma filha desta de

nome Josefa, de cor fula,

de oito anos de idade”

(fl.4r).

Cabra

É um mestiço indefinido de negro,

índio ou branco, o de pele morena.

“Aos quais dá poderes

especiais para vender a

escrava Maria, cor cabra,

de vinte e dois annos de

idade, solteira, sem

officio.” (fl.11r)

“Aos quais dá poderes

especiais para vender a

escrava Maria, cor cabra,

de vinte e dois anos de

idade, solteira, sem

ofício.” (fl.11r).

Preto (a) Pessoa de pele escura, nascida ou não

em país africano, escravizado ou

livre. Nas escrituras analisadas, esse

termo é usado para designar sujeitos

escravizados.

“Escravo de nome

Marcelino, preto, de

vinte e nove annos de

idade, solteiro.” (fl.3v)

“Escravo de nome

Marcelino, preto, de

vinte e nove anos de

idade, solteiro.” (fl.3v).

Matriculado (a)

O cativo que constava numa lista de

matrícula de um determinado local.

Ao longo do século XIX, as

matrículas de escravos consistiram

num dos esforços para fiscalizar e

cobrar impostos sobre a população

cativa.

“O vendedor apresentou

documento provando naõ

estar matriculada a

escrava vendida por

viver fora dos limites

d’esta cidade, empregada

na lavoura.” (fl.99v)

“O vendedor apresentou

documento provando não

estar matriculada a

escrava vendida por

viver fora dos limites

desta cidade, empregada

na lavoura.” (fl.99v).

“Mulher, que sabe de costura, e que

exerce por ofício” (MORAES

“Escrava de nome

Celestina, mulata de

“Escrava de nome

Celestina, mulata de

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72

Costureira SILVA, 1789, p. 558). vinte e quatro annos de

idade, solteira,

costureira, e natural desta

Provincia” (fl.6v)

vinte e quatro anos de

idade, solteira,

costureira, e natural desta

Província” (fl.6v).

Sem ofício

Levando em conta que ofício é um

“Cargo pessoal; profissão. Ocupação”

(FIGUEIREDO, 1913, p. 1421), uma

pessoa “sem ofício”, portanto, é

alguém sem profissão. No comércio

de escravos, o cativo sem ofício

poderia valer menos que um

escravizado que possuía alguma

profissão, ocupação. Designar um

cativo como “sem ofício” não

significava que ele não tinha

habilidades para os serviços.

“Escrava de nome Isabel,

de cor fula, de vinte e

nove digo vinte e nove

anos de idade, solteira,

sem officio, e natural da

Freguezia de

Maranguape” (fl.8v)

“Escrava de nome Isabel,

de cor fula, de vinte e

nove digo vinte e nove

anos de idade, solteira,

sem ofício, e natural da

Freguesia de

Maranguape” (fl.8v).

Solteiro (a)

“O que não casou” (FIGUEIREDO,

1913, p. 1886).

“Senhor e possuidor dos

escravos Jose de vinte e

dousannos de idade,

eLuisa de desoito, ambos

pretos solteiros, sem

officio” (fl.47v)

“Senhor e possuidor dos

escravos Jose de vinte e

dois anos de idade, e

Luísa de dezoito, ambos

pretos solteiros, sem

ofício” (fl.47v).

Casado (a)

“Aquele, a que foi conferido o

Sacramento do Matrimônio”

(BLUTEAU, 1728, 175).

“É senhor e possuidor

dos escravos Jose, preto,

de 45 annos de idade,

casado, e sem officio”

fl.32v

“É senhor e possuidor

dos escravos José, preto,

de 45 anos de idade,

casado, e sem ofício.”

(fl.32v).

Capitão

“Oficial militar cujo posto é

imediatamente superior ao de tenente

e inferior ao de major seja de

infantaria, de cavalaria ou de

artilharia, governa uma companhia.”

(MORAES SILVA, 1789, p. 405).

“Irmaõ e Jacob Cahn e

no Rio de Janeiro a Lion

Cahn e Capitaõ Antonio

da Silva Albano com

especialidade para por

elle outorgante vender

seus escravos” (fl.89r)

“Irmão e Jacob Cahn e

no Rio de Janeiro a Lion

Cahn e Capitão Antônio

da Silva Albano com

especialidade para por

ele outorgante vender

seus escravos” (fl.89r).

Curador

Curador, no contexto das escrituras, é

quem administrava e representava os

bens dos cativos. “Quem tem

cuidado, e administração dos bens do

orphão, do louco, prodigo, mudo, do

ausente, etc., em virtude da lei, ou

mando do magistrado. Tutor.”

(MORAES SILVA, 1789, p. 576).

"Concedida a autorização

requerida, respeitando-se

o que determina o artigo

2º do Decreto n° 1695 de

15 de setembro de 1868

O Curador Geral Parris

Portuga” (fl.20r)

"Concedida a autorização

requerida, respeitando-se

o que determina o artigo

2º do Decreto n° 1695 de

15 de setembro de 1868

O Curador Geral Parris

Portuga” (fl.20r).

Gerente

“Pessoa que gere ou administra

negócios” (FIGUEIREDO, 1913, p.

962).

“Os negociantes desta

praça Francisco Coelho

da Fonseca e Filho

representados pelo seus

gerente Francisco Coelho

da Fonseca como

procuradores” (fl.6v)

“Os negociantes desta

praça Francisco Coelho

da Fonseca e Filho.

representados pelo seu

gerente Francisco Coelho

da Fonseca como

procuradores” (fl.6v).

Lavrador

Pessoa “que trabalha em lavoira.

Aquele que possui propriedades

lavradias” (FIGUEIREDO, 1913, p.

1176).

“Como procurador do

outorgante vendedor

Felippe Barros Mary,

lavrador e morador nos

termo das Lavras”

(fl.21v)

“Como procurador do

outorgante vendedor

Felippe Barros Mary,

lavrador e morador nos

termo das Lavras”

(fl.21v).

Alferes

“A primeira patente de oficial, logo

abaixo de tenente.” (VIEIRA, 1871).

“Compareceu em propria

pessoa o Alferes Cicero

Bastos dos Santos,

conhecido de mim”

(fl.47r)

“Compareceu em própria

pessoa o Alferes Cícero

Bastos dos Santos,

conhecido de mim”

(fl.47r).

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73

Proprietário (a)

“Quem tem a propriedade de alguma

coisa. Que é senhor de alguma coisa.

Que tem propriedades ou bens

imóveis”;

“Proprietária: Diz-se da mulhér, que

tem propriedades ou que é senhora de

certos bens” (FIGUEIREDO, 1913,

p.1648).

“Vendedor Fausto

Antonio Fernandes

proprietario e morador

no termo de

Quixeramobim” (fl.48r)

“Vendedor Fausto

Antônio Fernandes

proprietário e morador

no termo de

Quixeramobim” (fl.48r).

Negociante

“Pessoa, que exerce o comércio.

Pessoa, que trata de negócios”

(FIGUEIREDO, 1913, p.1383).

“Em meu cartorio foram

presentes mim e as duas

testemunhas abaixo

assignadas, de uma parte

o negociante desta praça

João Anastacio Gomes”

(fl.49v)

“Em meu cartório foram

presentes mim e as duas

testemunhas abaixo

assinadas, de uma parte o

negociante desta praça

João Anastácio Gomes”

(fl.49v).

Empregado

público

“O que exerce emprego em repartição

do estado” (MORAES SILVA, 1789,

p. 747).

“Comprador Antonio Por

Deus da Costa Lima,

Empregado Publico e

morador nesta cidade,

todos bem conhecidos de

mim Tabelião, do que

dou fe.” (fl.65r)

“Comprador Antônio Por

Deus da Costa Lima,

Empregado Público e

morador nesta cidade,

todos bem conhecidos de

mim Tabelião, do que

dou fé.” (fl.65r).

Conhecido (a)

“O que é, a que é do conhecimento de

alguém, ou do nosso”(MORAES

SILVA, 1789, p. 516). Nas escrituras,

é um termo padrão que se repete nos

exemplares fazendo referência aos

envolvidos na negociação e que o

tabelião e/ou escrivão reconhecem e

dão fé.

“Constituia a seus

procuradores João

Machado Freire,

negociante e morador

n’esta Povoação

conhecido de mim

Escrivão de Paz” (fl.73r)

“Constituía a seus

procuradores João

Machado Freire,

negociante e morador

nesta Povoação

conhecido de mim

Escrivão de Paz” (fl.73r).

Ausente

“Que está distante, longe de outrem,

ou de algum lugar” (MORAES

SILVA, 1789, p. 287). Nas

escrituras, é um termo padrão que se

repete nos exemplares fazendo

referência ao poder do Tabelião de

dar fé ao documento, inclusive em

nome de ausentes.

“E eu Tabelião como

pessoa publica a

outorguei e aceitei em

nome dos auzentes e

pessoas a que pertencer

possa” (fl.73v)

“E eu Tabelião como

pessoa pública a

outorguei e aceitei em

nome dos ausentes e

pessoas a que pertencer

possa” (fl.73v).

Cozinheiro (a)

“A mulher que cozinha”; “O homem

que cozinha” (MORAES SILVA,

1789, p. 490).

“Marcelino preto, de

desoito annos de idade,

cozinheiro, e natural

desta Provincia;” (fl.53v)

“Marcelino preto, de

dezoito anos de idade,

cozinheiro, e natural

desta Província” (fl.53v)

Agricultor

Pessoa “que lavra e cultiva,

aproveitar as terras. Que agriculta: os

povos agricultores” (MORAES

SILVA, 1789, p. 111).

“Como procurador do

outorgante vendedor

Manoel de Jesus da

Conceição Goes,

agricultor e morador no

termo de Milagres”

(fl.75r)

“Como procurador do

outorgante vendedor

Manoel de Jesus da

Conceição Góes,

agricultor e morador no

termo de Milagres”

(fl.75r)

Vigário

“Padre, que faz as vezes do Prelado.

Título do pároco em algumas

freguesias. Delegado do Prelado

diocesano, nalgumas povoações de

uma diocese” (FIGUEIREDO, 1913,

p. 2086).

“Como outorgante

vendedor o Vigario desta

freguezia Miguel

Francisco da Costa, e de

outra como compradora

Dona Anna Joaquina de

Freitas Barros” (fl.29v)

“Como outorgante

vendedor o Vigário desta

freguesia Miguel

Francisco da Costa, e de

outra como compradora

Dona Anna Joaquina de

Freitas Barros” (fl.29v).

Criador

Pessoa “Que cria, produz. Homem

criador de animais” (MORAES

SILVA, 1789, p. 567).

“Abel da Costa Pinheiro

como procurador do

outorgante vendedor

Joaquim Felicio Marques

“Abel da Costa Pinheiro

como procurador do

outorgante vendedor

Joaquim Felício Marques

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74

Fonte: elaborado pela autora.

Segundo Paiva (2015, p. 127), eram classificados como qualidades os

seguintes termos: “índio, branco, negro, preto, crioulo/criollo, mestiço/mestizo,

de Oliveira, criador e

morador no termo do

Unido.” (fl.98r)

de Oliveira, criador e

morador no termo do

Unido.” (fl.98r).

Barão “Título da nobreza, imediatamente

inferior a visconde, e o menos

graduado na hierarquia dos titulares”

(MORAES SILVA, 1789, 317).

“Vende como

effectivamente vendido

tem por meio deste

instrumento ao

mencionado comprador

Barão de São Leonardo

pelo preço e quantia

certa de um conto e

duzentos mil reis”

(fl.77v)

“Vende como

efetivamente vendido

tem por meio deste

instrumento ao

mencionado comprador

Barão de São Leonardo

pelo preço e quantia

certa de um conto e

duzentos mil reis”

(fl.77v).

Viúva

“Mulher, a quem morreu o marido e

que ainda não casou de novo”

(FIGUEIREDO, 1913, p. 2096).

“Escritura de venda de

uma escrava de nome

Constancia, que tenho

vendido à viuva – Dona

Feliciana do Rego

Jatoby” (fl.6r)

“Escritura de venda de

uma escrava de nome

Constância, que tenho

vendido à viúva – Dona

Feliciana do Rego

Jatoby” (fl.6r).

Guarda livros

“Empregado comercial, que registra o

movimento do comércio em uma ou

mais casas.” (FIGUEIREDO, 1913,

p. 994). A função de guarda-livros

corresponde ao que hoje

denominamos de contabilistas.

“Gualter Rodrigues da

Silva, aquelle agricultor

e morador no termo de

Baturite, e este, guarda

livros e morador nesta

mesma cidade” (fl.49r)

“Gualter Rodrigues da

Silva, aquele agricultor e

morador no termo de

Baturité, e este, guarda

livros e morador nesta

mesma cidade” (fl.49r).

Guarda

Nacional

A Guarda Nacional foi uma força

militar organizada no Brasil em

agosto de 1831, durante o período

regencial. Sua criação se deu por

meio da lei de 18 de agosto de 1831

que "Cria as Guardas Nacionais e

extingue os corpos de milícias,

guardas municipais e ordenanças".

Diz a referida lei, em seu art. 1°, que

"As Guardas Nacionais são criadas

para defender a Constituição, a

liberdade, Independência, e

Integridade do Império; para manter a

obediência e a tranquilidade publica;

e auxiliar o Exército de Linha na

defesa das fronteiras e costas", tendo

como fundamento o art. 145

da Constituição de 1824. (Fonte: site

da câmara dos deputados do Brasil).

“Companhia do 5º

Batalhaõ de Guardas

Nacionais do Municipio

do Aquirás por

nomeação legal 11”

(fl.6r)

“Companhia do 5º

Batalhão de Guardas

Nacionais do Município

do Aquiraz por

nomeação legal 11”

(fl.6r).

Doutor

“O que recebeu o maior grau

acadêmico, com o direito de trazer as

insígnias de borla, e capelo, e de

ensinar na faculdade, em que é

doutor; ensinador, mestre.”

(MORAES SILVA, 1789, p. 713).

Nas escrituras, o termo fazia

referência aos negociantes com

diferentes profissões, como

advogado, médico entre outras.

“Pelo procurador do

vendedor foi me

apresentada a respectiva

procuraçaõ que é do teor

seguinte: Cornelio Jose

Fernandes. Doutor

formado pela Faculdade

de Medicina da Bahia

(...)” (fl.13v)

“Pelo procurador do

vendedor foi me

apresentada a respectiva

procuração que é do teor

seguinte: Cornélio José

Fernandes. Doutor

formado pela Faculdade

de Medicina da Bahia

(...)” (fl.13v).

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75

mameluco, mulato, zambo, zambaigo, pardo, cuarterón, cabra, curiboca, coiote, chino”.

Nas escrituras analisadas, as lexias preto e crioulo trazem no bojo de suas significações

o sentido de locais de origem e/ou ascendência africana. Enquanto as lexias cabra,

mulato e pardo, podem significar miscigenações entre povos e/ou a cor de suas peles.

Encontramos 74 casos de escravos descritos com a lexia pretos, enquanto

algumas escrituras fazem referência aos cativos como crioulos, nominações que podem

significar que esses sujeitos escravizados têm origem/ascendência africana. Paiva

(2015) diz que a denominação preto poderia ser atribuída apenas no tocante à cor da

pele, sendo utilizado para referenciar os escravos cuja cor era muito escura. Aqui é

importante lembrar que os documentos analisados foram exarados no período de 1870 a

1873, sendo que em 04 de setembro de 1850 foi assinada a Lei Eusébio de Queirós que

punha fim ao tráfico internacional de escravos. Muitos historiadores destacam que

mesmo diante dessa proibição muitos escravos africanos chegaram aos portos

brasileiros, no entanto, o fluxo era mais escasso. Desta forma, o tráfico interno de

escravos para atender às demandas tornou-se uma opção mais viável.

Ressaltamos que as denominações dadas aos escravos podem não ser

confiáveis, como explica Paiva:

As nomeações sempre estiveram dependentes das conveniências, das

compreensões e percepções de escrivães, cronistas e testemunhos no geral,

por vezes bastante particulares, e das modificações nos significados ocorridas

no tempo e nos espaços. (PAIVA, 2015, p. 203)

As lexias encontradas para denominar aqueles que eram frutos da

miscigenação dos povos africanos, indígenas e portugueses são cabra, mulato e pardo.

Moraes Silva (1789) define cabra como sendo “filho, ou filha de pái mulato, e mãi

preta, ou as avessas”. Em concordância com essa nova acepção, Silva Pinto (1832)

entende mulato como sendo aquele que resultou do intercurso entre mulatos e negros.

Bluteau (1728) descreve mulato como filho de branco e negra ou vice-versa.

Moraes Silva (1789) diz que “Filhos, ou filha de preto com branca, ou ás avessas, ou de

mulato com branca até certo gráo”. Nas escrituras encontramos 49 escravos descritos

como mulatos entre homens, mulheres e crianças. Encontramos também 68 sujeitos

escravizados denominados como pardos que, segundo Moraes Silva (1789) corresponde

ao “de còr entre branco, e preto, como a do pardal”.

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76

Encontramos ainda 14 casos de cativos descritos como fulos, 01 escravo

caboclo e 01 escravo descrito como acaboclado. Fulo, segundo Figueiredo (1924), é

relativo aos negros ou mestiços cuja pele é meio amarelada, cor opaca. Essa lexia

resultou no termo “negro fulo” e hoje usamos na expressão “fulo de raiva”, para indicar

palidez. As lexias caboclo e acaboclada, segundo Assunção (2002), remetem aos

escravos de forte ascendência indígena.

A lexia livre era usada nos documentos como referência aos escravos que

não fazem parte do processo de compra e venda relatado nas escrituras, mas têm alguma

relação com o cativo comercializado.

A lexia matrícula faz referência à matrícula dos escravos proposta pela

Resolução de 18328, cuja tentativa de aplicação se deu em âmbito nacional, como meio

de fiscalizar e arrecadar a meia sisa, através do livro da matrícula dos escravos que “há

de servir para se lançar nele uma geral e exata relação de todos os escravos que

houverem [sic] no distrito de cada um dos coletores”. A determinação da referida

Resolução era que os coletores iniciassem a matrícula, aplicando-a a todos os escravos

de seu distrito, “desde os recém nascidos até os de mais avançada idade, com bem

especificada declaração de suas qualidades, naturalidade, idade, sexo, oficio, ocupação,

ou préstimo”. O Art. 13 da resolução ainda dizia que a matrícula deveria ser feita com

declaração das pessoas a que pertenciam os escravos. Ao fim de cada trimestre os

coletores deveriam verificar se tinham ocorrido alterações referentes aos escravos

matriculados, registrando as devidas alterações no mesmo livro, no campo destinado às

observações.

Em relação à descrição das profissões fica evidente que as lexias usadas

para destacar o ofício dos vendedores/compradores são para enaltecer a figura desses

sujeitos, dando certo valor a sua posição na sociedade. Enquanto as lexias usadas para

descrever o ofício e/ou alguma habilidade dos cativos são para valorizar ou desvalorizar

seu preço na comercialização.

No que tange às atividades desempenhadas pelos homens escravizados,

identificamos uma lexia: cozinheiro, que aparece apenas uma vez. Em relação às

atividades desempenhadas pelas escravas mulheres, catalogamos apenas a lexia

costureira, que aparece uma vez. No restante dos casos os cativos são descritos como

sem officio.

8 Decreto Nº 4.835, de 1º de dezembro de 1871. Aprova o Regulamento para a matrícula especial dos

escravos e dos filhos livres de mulher escrava. Capítulo I: da matrícula dos escravos.

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Na descrição dos perfis dos compradores e vendedores suas profissões

recebem um destaque maior. Encontramos 02 vendedores descritos com a profissão de

lavrador e 26 vendedores e 03 compradores com ofício de agricultor. As duas

profissões possuem significados semelhantes, o que se comprova ao contrastarmos as

duas definições. Segundo Moraes Silva (1789) agricultor é o “que lavra, e cultiva as

terras.” Ao definir lavrador, diz ser aquele “que lavra, e cultiva as terras, e não usa de

mester, ou officio mecanico”. Na profissão de criador encontramos 12 casos, sem

mencionar o produto que esses sujeitos criavam.

As lexias doutor e capitão aparecem muitas vezes nas escrituras,

principalmente para descrever os procuradores dos vendedores ou compradores, sendo

uma referência a médicos, dentistas, advogados etc. Entre compradores e vendedores

encontramos 06 Empregados Públicos, 02 guarda-livros, 04 vigários, 01 barão e um

procurador com o ofício de gerente. No caso das compradoras e/ou vendedoras

mulheres são descritas em sua maioria como proprietárias (encontramos 23 menções).

Sobre o estado civil dos compradores e vendedores não consta nas

escrituras, exceto a menção de quatro casos de viúvas. No caso dos cativos, temos as

lexias solteiro e casado. É importante dizer que, na época, o modelo de casamento

existente era apenas o religioso, realizado pela Igreja Católica. Encontramos 03

escravos casados, sendo que dois deles vendidos juntos à esposa e um vendido sem

menção à situação de sua companheira. No caso das mulheres cativas encontramos nas

escrituras 04 casos diferentes: uma escrava vendida junto ao marido, uma casada com

um escravo liberto (que não tem sua situação descrita), uma casada, vendida sem

menção à situação do marido e uma última casada com um homem livre, do qual vive

separada. Algumas escrituras não possuem a descrição do estado civil dos cativos, mas

a maioria dos documentos traz os escravizados comercializados descritos como

solteiros.

Sobre o casamento entre escravizados, Mattoso (2003) diz que o modelo de

família escrava visualizado no Brasil não era formado por pai, mãe e filhos. O direito à

família tinha sido retirado desses homens e mulheres, os quais buscaram mediante

novos tipos de relações em que sua família passasse a ser a comunidade escrava com

quem convivia, em que os laços afetivos foram estabelecidos no relacionamento com

seus vizinhos, com seus companheiros de trabalho e de suas associações religiosas.

Ressalta-se também que, até primeira metade do século XIX, o direito civil

não reconhecia o matrimônio religioso e os donos de escravos podiam assim separar os

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casais e seus filhos, através da venda individual ou outros tipos de transações, como

doação, hipoteca, permuta, entre outros. Apenas em 1869 a legislação decreta que os

casais escravos não poderiam ser vendidos separadamente e, em 1871, com a

promulgação da Lei do Ventre Livre, pais e filhos menores de 12 anos também não

poderiam ser separados. No entanto, encontramos casos nas escrituras que podem

indicar o não cumprimento dessas normas, como veremos na próxima seção deste

trabalho.

A Guarda Nacional de determinada Província ou município é sempre citada

nas procurações, como podemos ver no exemplo a seguir, em que o capitão da Guarda

Nacional é o vendedor do cativo:

Pelo procurador do vendedor foi me apresentada a respectiva procuração que

é do teor seguinte: Manoel Thiago Maria de Araujo, Capital da Guarda

Nacional do Municipio do Acaracu por nomeação legal 11. Pela presente

procuração por mim feita e assignada constitui meu bastante procurador na

cidade da Fortalesa o Ilustrissimo Senhor Tenente Coronel Jose Fernandes de

Araujo Vianna e lhe dou os necessarios poderes para vender o escravinho

José de idade de oito para nove annos que me coube por herança de meu

fallecido pai (...) (fl. 29v).

A Guarda Nacional era responsável, principalmente, pelas atividades

policiais de ronda. Ressaltamos o objetivo do serviço policial no Brasil oitocentista e o

aval que a Guarda Nacional recebia para determinadas ações:

A criação da Guarda Nacional foi uma medida encontrada pelos estadistas

liberais do Império, que ascenderam ao poder após a abdicação de D. Pedro I,

para poder contar com uma força de coesão que lhes fosse confiável, pois

havia o temor de que o exército apoiasse o retorno do antigo monarca e

derrubasse, por força das armas, o governo que assume logo após o ocorrido

de sete de Abril de 1831. (JÚNIOR, 2011, p. 5)

A Guarda Nacional atendia aos interesses dos proprietários de terras e

escravos, pois a função institucional da milícia era manter a ordem interna. Desta forma,

compreendemos a importância jurídica de citar esse órgão no discurso de

comercialização dos escravizados.

Selecionamos 59 lexias, divididas em quatro categorias, voltadas à prática

da escravização, à organização do serviço notarial no Ceará da segunda metade do

século XIX e ao funcionamento do sistema de compra e venda de cativos.

Por fim, destacamos a importância da filologia para o estudo do léxico para

ampliar nosso conhecimento sobre nossa língua em tempos remotos e conhecer aspectos

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socioculturais através dos textos escritos e seus discursos, fato que possibilita

compreender como a cultura se constrói através das práticas sociais. As relações entre

língua, cultura e história se mantêm vivas quando compartilhadas, e é através do léxico

que essa dinâmica acontece, graças a sua capacidade de traduzir, através dos signos

linguísticos, os elementos do mundo que os cerca.

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4 “E LHE TRANSFERE TODO DOMÍNIO, SENHORIO E POSSE...”: ANÁLISE

SÓCIO-HISTÓRICA DAS ESCRITURAS

Nesta seção, lançamos olhar para o contexto histórico a partir dos dados

colhidos na seção anterior desta dissertação. Em um primeiro momento, trazemos um

apanhado de informações sobre o Ceará oitocentista e seu contexto escravocrata na

subseção intitulada Adentrando o Ceará no século XIX: um olhar para a escravidão.

No tópico que se segue, intitulado Algumas reflexões acerca da constituição

da família escrava, tratamos especialmente dos casos encontrados nas escrituras que

trazem situações de famílias de cativos, abrindo uma discussão sobre o tratamento dado

pelos senhores de escravos aos laços afetivos criados nas senzalas. Fazemos, ainda,

reflexões sobre a venda de crianças, levando em conta que a Lei do Ventre Livre

entrava em vigor no mesmo recorte temporal da produção dos documentos aqui

analisados.

Para encerrar esta seção, discorremos sobre fatos e questões levantadas a

partir dos dados colhidos na seção de análise das lexias sobre as transações comerciais

envolvendo cativos, evidenciando os sujeitos citados nas escrituras que merecem

atenção por terem destaque na historiografia cearense, algumas reflexões sobre os

preços e as quantidades de cativos comercializados, elementos que ajudam a ampliar as

informações que já temos sobre a história da escravidão do Ceará nesse período.

4.1 ADENTRANDO O CEARÁ NO SÉCULO XIX: UM OLHAR PARA A

ESCRAVIDÃO

Nesta subseção, realizamos uma breve discussão sobre o período

escravocrata no Ceará, estado que hoje é reconhecido como o primeiro a abolir a

escravidão. Há discursos e estudos mostrando que o período escravista na província

cearense foi brando, quando comparado às demais províncias brasileiras. Não nos

propomos a refutar esses estudos, mas refletir sobre a existência do comércio de cativos

no Ceará na segunda metade do século XIX, no mesmo período em que os movimentos

abolicionistas ganhavam força.

No Brasil, a escravidão foi um sistema que se estendeu por 300 anos, desde

o princípio da colonização portuguesa até o final do século XIX, mais precisamente em

13 de maio de 1888, com a data da assinatura da Lei Áurea, pela Princesa Isabel, a qual

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abolia a escravidão no território brasileiro. Segundo estimativas apresentadas por Libby

e Paiva (2005), foram trazidos para a América, aproximadamente 12 milhões de negros,

sendo que, desse total, cerca de 38% (4,5 milhões) dos escravos foram encaminhados

para o Brasil, colocando-o como o país que detinha a maior população escrava até

meados do século XIX.

Os documentos aqui analisados datam de 1870 a 1873. O Ceará nesse

contexto contava, segundo o censo geral de 18729, com uma população de 689.773

pessoas livres e 31.913 pessoas escravizadas, aproximadamente 4,42%. Segundo Girão

(1984):

Este total de 31.913 não aumentaria mais. A lei do ventre livre viera estancar

a reprodução cativa e, pelo diploma legislativo provincial nº 1.254, de 28 de

dezembro de 1868, muitas manumissões se faziam todos os anos. Ao lado

disso, a exportação para o sul do País cada vez mais se incrementava com a

necessidade de braços na cultura do café. (GIRÃO, 1984, p.60)

Nesse mesmo período, iniciava-se um momento difícil para as terras

cearenses, em relação às dificuldades econômicas com a queda na exportação do

algodão, devido à restrição do mercado consumidor. Consequentemente, houve um

desequilíbrio na mão de obra escrava, o tráfico interno10

atingiu o seu auge e, segundo

Assunção (2002, p.13) “o Ceará passou a ser um dos maiores provedores de escravos

para o centro-sul do país. Entre 1872 e 1879, a província exportou, através do tráfico

interno, 9.753 cativos, perfazendo uma média de 1.219 escravos por ano”.

De modo geral, a produção econômica da província cearense no século XIX

era constituída pela pecuária bovina e a cultura algodoeira, ambas destinadas

principalmente para o mercado externo. A agricultura familiar voltada para a

subsistência tinha participação da cultura do feijão, do milho, da mandioca e pequenas

criações de animais. Historicamente, todas as atividades tinham a presença do

trabalhador escravo. Girão (2000) diz que o algodão "[...] famoso arbusto veio

constituir-se, ao lado do boi, a mais substancial fonte econômica da Capitania" e afirma

que "abrir-se-ia com o algodão o ciclo agropecuário do Ceará". (GIRÃO, 2000, p. 214).

Interrompidas as remessas da América do Norte, em virtude da guerra de sua

independência, sentia a Europa premente necessidade do algodão de outras

origens, valorizando-se assim dia a dia o seu preço, e que no Ceará eram

9 Ensaio Estatístico do Ceará apud. Raimundo Girão, 1984.

10 É importante destacar que o tráfico intraprovincial se refere ao comércio realizado entre regiões de

uma mesma província, já o tráfico entre províncias diferentes era chamado de tráfico interprovincial.

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propícias à sua cultura as mais favoráveis condições de clima e a natureza do

solo. (GIRÃO, 2000, p. 216).

Como dito anteriormente, o trabalhador cativo estava presente em todas as

atividades do cenário econômico cearense, como confirma Funes:

A mão de obra escrava no Ceará se faz presente em todo o campo do

trabalho, seja no espaço rural ou no urbano. Se num primeiro momento, ainda

no século XVIII, as primeiras peças estavam sendo adquiridas para trabalhar

no projeto que frustrou, “as Minas de São José do Cariri”, posteriormente o

cativo foi incorporado ao setor produtivo estando presente na pecuária, na

agricultura, em serviços especializados, nos serviços domésticos, ou ainda

como escravo de aluguel e de ganho. (FUNES, 2007, p. 110)

Os interessados na compra desses cativos eram, em sua maioria, homens e

produtores rurais (agricultores e criadores). Nas escrituras, destacamos a presença de

alguns comerciantes, proprietários e homens com patentes militares. Esses senhores,

muitas vezes, possuíam apenas um escravo, como explica Rodrigues (2012):

[...] a inserção dos escravos no Ceará não se dava de uma forma homogênea.

A mão de obra cativa assumia, com efeito, uma importância social e

econômica razoável na sociedade cearense da segunda metade do século XIX

– não obstante a especulação envidada por negociantes negreiros. Aqui, como

já se antecipou, houve uma “escravidão miúda”, para usar a expressão de

Carlos Bacellar. Nesse sentido, os pequenos proprietários, às vezes donos de

apenas um cativo, procuravam atribuir-lhe o maior valor que pudessem.

Senhores de um único escravo, ou donos de plantéis “miúdos”, tendiam a

valorizar ainda mais essa mão de obra, na medida em que, por um lado,

esperavam dela a maior produtividade possível em diferentes trabalhos e, por

outro, ela por vezes constituía seu único bem. (RODRIGUES, 2012, p. 33)

O Brasil, na segunda metade do século XIX, vivia mudanças no sistema

administrativo, econômico, político, entre outras áreas. Essas transformações atingiram

o escravismo na promulgação de algumas leis como: A Lei Eusébio de Queiróz, de

1850, que proibia o tráfico de escravos para o Brasil, A Lei do Ventre Livre,

promulgada em 28 de setembro de 1871, que considerava livre todos os filhos de

mulheres escravas nascidos a partir da data da lei e a Lei dos Sexagenários, promulgada

em 28 de setembro de 1885, que concedia liberdade aos escravos com mais de 60 anos

de idade. Foram medidas que impactaram a demografia escrava e encaminharam o

processo que resultaria na abolição da escravatura.

No Ceará não foi diferente, esse período foi marcado pelos discursos a favor

da abolição e pelo enfraquecimento do comércio de escravos entre as províncias. A

província cearense apresentava um número de cativos considerado pequeno, e nos anos

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finais dos oitocentos esse número diminui. Embora houvesse uma menor concentração

de cativos na província, o interesse por escravizados na zona urbana e rural alimentava

o tráfico, que sofreu mudanças de fluxo ao passar dos anos:

O trabalho escravo ao longo da história do Ceará não representou um peso

muito grande para a economia da província. De acordo com os dados dos

censos, a população escrava tendeu a decair depois da segunda metade do

século[XIX]. Em 1819, o percentual que era até então de cerca de 13% da

relação entre a população livre e escrava, cresceu para 28%. Muito embora

em 1860, os escravos de quatro freguesias cearenses, como Fortaleza,

Maranguape, Aquiraz e Cascavel chegaram a compor cerca de 30% da

população. Mais tarde, o índice geral do Ceará volta a decair, quando em

1872 o percentual chega ao patamar dos 4,4%. (ASSUNÇÃO, 2009, p. 148)

Apesar da diminuição de cativos na província nos anos finais da escravidão,

havia uma defesa à manutenção do escravismo que se apoiavam em argumentos

econômicos, sociais, culturais e até religiosos. A perpetuação desse regime era um

pensamento que tinha força na classe dominante e no cotidiano da sociedade como um

todo. A prática do tráfico interno de escravos se intensificou com a proibição do Tráfico

Atlântico, como solução para reposição de mão de obra escrava esse comércio foi

mantido até os dias finais da abolição da escravatura no país.

Distante de ser uma província em destaque no tráfico de escravos, o Ceará

não era dependente desse comércio, no entanto, esse fato não anula a presença da

província cearense nos longos anos de escravidão no Brasil nem ameniza o peso de

fazer parte desse momento cruel da história do país. Muitos negros foram

comercializados entre as regiões cearenses, na capital e entre o Ceará e outras

províncias. Os sujeitos escravizados eram vistos e tratados como mercadorias, no

entanto, formavam famílias que lutavam para mantê-las, construíam histórias e laços

afetivos que eram desfeitos por meio do tráfico.

Na subseção seguinte nos debruçamos sobre um importante fator

humanizador dos negros escravizados: a construção de laços afetivos.

4.2 ALGUMAS REFLEXÕES ACERCA DA CONSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA

ESCRAVA

Nesta subseção realizamos uma reflexão sobre informações encontradas no

corpus que retratam as famílias escravas e o tratamento dado a esses laços afetivos

durante as transações comerciais envolvendo os cativos. Servimo-nos de dados

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coletados nas escrituras para compreender a posição do pai, da mãe, da esposa, do

marido e dos filhos em situação de escravização e comercialização, discorrendo sobre

como essas relações eram desfeitas em ocasião da venda de um dos componentes do

núcleo familiar.

Analisar aspectos sociais da escravidão é perceber diferentes perspectivas

sobre o ser escravizado, o relacionamento cativo X senhor e a dimensão econômica,

administrativa e política do país durante a escravidão. Entender o escravo enquanto

sujeito ativo do processo histórico, mesmo quando este é descrito apenas como produto

– como é o caso das escrituras de compra e venda de escravos – revela uma percepção

mais abrangente do contexto escravista.

Nas escrituras analisadas é possível observar a comercialização de famílias

inteiras de escravos: pai, mãe, filho (s) ou mãe e filhos. Outra situação é a venda de

crianças descritas como filhos de pais livres ou vendidas sozinhas. Nos documentos

passados em cartório, fica evidente que os senhores de escravos tratavam os cativos

como peças, objetos passíveis de venda, troca, leilão, doação, empréstimo entre outras

formas de comércio. No entanto, no mesmo discurso os escravizados eram descritos

como esposo, esposa, pai, mãe, filho e filha, ou seja, como pessoas que podem

constituir famílias e que fazem parte de uma. No trecho abaixo, podemos observar como

é descrita a posse dos cativos como peças comercializadas:

E logo pelo comprador foi dito que aceita esta escritura como é e está

constituida, e que ja está de posse dos referidos escravos Domingas e seu

filho Jeronimo. Pagou o comprador o sello devido de dous milreis em

estampilhas, que foram por mim inutilisidas: assim mais pagou na secçaõ de

arrecadaçaõ da Thezouraria Provincial sessenta mil reis de imposto conforme

o conhecimento nº21, desta data. (fl.3r)

As escrituras analisadas trazem casos de escravizados que possuíam uma

estrutura familiar que era desfeita após a venda de um dos membros do núcleo, seja a

mãe, seja o pai, sejam os filhos ainda criança. Alguns estudos, como o de Queiroz

(1998), compreendem esse fato como determinante na má vontade dos senhores em

relação aos casamentos entre cativos, sabendo que não ia mantê-los unidos no momento

da comercialização. Desta forma, as relações afetivas entre os cativos existiam, porém

não poderiam ser consideradas estáveis, pois estavam à mercê da vontade do senhor.

Entretanto, hipóteses diferentes são levantadas em relação à formação de

laços familiares na senzala. Uma delas é que a igreja achava positivo o casamento

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religioso entre os cativos para tirá-los da “promiscuidade”. O senhorio também tinha

perspectivas positivas sobre a constituição de família entre os cativos, como a

possibilidade de fincar raízes num local e evitar ideias de fugas e rebeliões.

A família escrava, provavelmente, funcionava como um importante

“espaço” de acolhimento para lidar com as pressões psicológicas e os castigos físicos da

escravidão. Ao mesmo tempo, poderia significar um tipo de instrumento de controle

social, afinal era algo que o escravizado podia perder caso tomasse uma atitude que

desagradava ao seu senhor. Em seu estudo, Slenes (1999) mostra a família escrava

como uma forma de resistência ao cativeiro e se preocupa em expandir a questão da

família escrava para aspectos mais amplos, como o da identidade e o da rebeldia cativa:

(...) a família escrava – nuclear, extensa, intergeracional – contribuiu

decisivamente para a criação de uma comunidade escrava, dividida até certo

ponto pela política de incentivos dos senhores, que instaurava a competição

por recursos limitados, mas ainda assim unida em torno de experiências,

valores e memórias compartilhadas. Nesse sentido, a família minava

constantemente a hegemonia dos senhores, criando condições para a

subversão e a rebelião, por mais que parecesse reforçar seu domínio na rotina

cotidiana (SLENES, 1999, p.48).

O cativo via no casamento uma relação afetiva, sendo a união entre os que

tinham a mesma experiência uma maneira de fortalecer ideias, como a de liberdade.

Além do fato de um núcleo familiar ser considerado como ato de resistência, levando

em conta que os laços de afetos ajudavam a amenizar a crueldade vivenciada no sistema

escravista e possibilitava a transmissão de suas próprias histórias, culturas, experiências.

Segundo Chalhoub, “era comum que os escravos exercessem alguma forma de pressão

sobre seus senhores no momento crucial de sua venda” (CHALHOUB, 1990) para que

pudessem manter a família unida.

Levando em conta que as escrituras analisadas foram redigidas a partir de

1870, é relevante abordar a Lei do Ventre Livre, sancionada em setembro desse mesmo

ano, em que as crianças filhas de mães cativas ganhavam a condição de livre. Porém,

continuavam vivendo em escravarias junto aos familiares escravizados.

Nesse contexto, a lei11

definiu que os filhos de mulheres escravizadas que

nascessem no Império a partir da sua promulgação seriam considerados livres. As

11

Biblioteca Virtual de Direitos Humanos da USP (Universidade de São Paulo). Disponível em:

http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-Hist%C3%B3ricos-Brasileiros/lei-do-ventre

livre.html. Acesso em: 24 jul. 2018.

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crianças, também chamadas de ingênuos12

, ficariam em poder dos senhores de suas

mães. Destacamos os parágrafos da lei:

§1.º- Os ditos filhos menores ficarão em poder ou sob a autoridade dos

senhores de suas mães, os quais terão a obrigação de criá-los e tratá-los até a

idade de oito anos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o

senhor da mãe terá opção, ou de receber do Estado a indenização de

600$000, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos

completos. No primeiro caso, o Governo receberá o menor e lhe dará destino,

em conformidade da presente lei.

Art. 2.º- O governo poderá entregar a associações, por ele autorizadas, os

filhos das escravas, nascidos desde a data desta lei, que sejam cedidos ou

abandonados pelos senhores delas, ou tirados do poder destes em virtude do

Art. 1.º- §6º.

§1.º- As ditas associações terão direito aos serviços gratuitos dos menores até

a idade de 21 anos completos, e poderão alugar esses serviços, mas serão

obrigadas: 1.º A criar e tratar os mesmos menores; 2.ºA constituir para cada

um deles um pecúlio, consistente na quota que para este fim for reservada nos

respectivos estatutos; - 3.º A procurar-lhes, findo o tempo de serviço,

apropriada colocação.

§2.º- A disposição deste artigo é aplicável às Casas dos Expostos, e às

pessoas a quem os juízes de órfãos encarregarem da educação dos ditos

menores, na falta de associações ou estabelecimentos criados para tal fim.

Nas escrituras analisadas, muitas crianças tiveram seus preços associados ao

valor de venda da mãe, como é o caso da comercialização da escrava Benedita, vendida

com o filho Pedro, de três anos de idade, por 1:250$000:

E pelo outorgante procurador do vendedor foi me dito perante as mesmas

testemunhas, que esses digo que seu constituinte á cima nomeado é senhor e

possuidor dos escravos Benedita, preta, de vinte e sete annos, solteira, sem

officio, e um filho desta de nome Pedro, preto de tresannos de idade e ambos

naturais desta Provincia, e porque as possui livre e desembaraçada de

qualquer onus, vende como effectivamente vendido tem por meio deste

instrumento os mencionados comprador Francisco Januario ambos pelo preço

e quantia certa de um conto duzentos cincoenta mil reis. (fl.27v)

Há três situações em que as crianças eram negociadas ou comercializadas:

desacompanhadas, acompanhadas de suas mães ou vendidas com suas famílias,

mostrando como a comercialização de crianças cativas era importante para a

manutenção do sistema escravista.

Chama a atenção nos documentos as escrituras que tratam da venda de

escravas acompanhadas dos seus respectivos filhos, contabilizando 17 comercializações

desses casos. Sendo menos recorrente, porém, os registros que se referem à venda de

casais de escravos com filhos, apenas 01 caso, 02 casos de comercialização da esposa e

12

Termo referente às crianças nascidas livres de mães escravas após a “Lei do Ventre Livre”.

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marido sem filhos, cujas situações remetem a essa reflexão sobre a família escrava e ao

tipo de tratamento dado a essas relações pelos proprietários de cativos. Rocha (2004)

explica como alguns laços de parentescos se formavam entre os escravos:

[...] a vida em família e a formação e manutenção de redes de parentescos

representaram a conquista de um espaço próprio (muitas vezes representado

pelo acesso à terra), onde os escravos encontravam proteção e solidariedade

contra as agruras do cativeiro. Além disso, a família teria sido o locus

privilegiado de manutenção e transmissão de heranças culturais africanas

entre os cativos. Ao mesmo tempo, essa instituição dependia dos laços

verticais tecidos entre os senhores e escravos dentro da política paternalista

de controle social, que caracterizava a sociedade escravista. (ROCHA, 2004,

p. 48)

O texto das escrituras não deixa evidente a separação do núcleo familiar,

pois trata apenas da descrição do cativo vendido. Outros gêneros textuais, como os

inventários, ilustram melhor a separação da família escrava, já que trata da partilha de

bens entre familiares e, muitas vezes, uma família de cativos é desfeita, quando os

membros são divididos entre os beneficiados. Nas escrituras, há um caso da venda de

uma escrava criança que antes fazia parte da herança da vendedora, como vemos no

trecho a seguir:

E pelo outorgante vendedor foi-me dito perante as mesmas testemunhas que

esse é senhor e possuidor de uma escravinha de nome Raymunda, preta, de

dez a dose annos de idade, e natural de Acarape; a qual houve no inventario

do seu finado sogro Jose Bento Teixeira de Vasconcelos, e porque a possui a

livre e desembaraçada de qualquer ônus. (fl.13v).

Encontramos também casos de cativos menores de idade, muitas vezes

crianças, sendo vendidas com alusão à mãe e/ou pai, sem aprofundamento de

informações. A separação dos membros de uma família cativa era comum no período

escravista, como explica Reis:

A separação de indivíduos pertencentes a uma mesma família de escravos

aconteceu com muita frequência e das mais variadas formas. O comércio de

escravos, o aluguel de escravas para ama-de-leite e até mesmo a libertação de

um de seus membros promoveram muitas vezes a desagregação da família,

vitimando homens, mulheres e crianças. (REIS, 1998, p. 33)

Em nosso documento de análise, os escravos foram comercializados

sozinhos, na maioria dos casos. Ou seja, sem a companhia de outros escravos, fato que

pode revelar que o comércio de escravos, na província cearense na segunda metade do

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século XIX, significava, de certo modo, a ruptura dos laços familiares construído entre

os cativos.

Um exemplo para ilustrar essa hipótese é o caso do escravo José, descrito

como preto, de apenas nove anos de idade, vendido sozinho por seu proprietário Manoel

Thiago Maria de Araújo ao comprador Antônio Xavier de Castro, em 19 de julho de

1871, por seiscentos mil réis. Não podemos afirmar que a separação tenha de fato

acontecido, talvez o novo senhor de José já estivesse de posse dos pais dele e a

transação comercial do menino estivesse, na verdade, unindo a família novamente.

Outro caso que podemos usar para levantar hipóteses é a compra da escrava Thomazia,

de quatro anos de idade, vendida sozinha, sem alusão ao pai e cuja mãe já é liberta,

como observamos no trecho abaixo:

E pelo outorgante vendedor foi- me dito perante ás mesmas testemunhas que

esse é senhor e possuidor da escravinha de nome Thomazia, parda, de quatro

annos de idade, e natural da Fregueziado Cascavel, e cuja mae ja hoje é

liberta. (fl.51r)

Thomazia estaria sendo comprada por senhores que facilitariam seu

reencontro com a mãe? Qual o interesse dos compradores em comprar um bebê que não

traria força de trabalho imediata? São diferentes possibilidades de interpretações que

podemos tomar. Se questionarmos o papel da lei do Ventre Livre nesse caso, faríamos

questionamentos sobre a eficiência dessas novas normas. Segundo Pena (2001, p. 26),

“No que tange ao costume e à lei travou-se um campo intenso de lutas, conflitos e

negociações entre senhores, escravos e autoridades públicas do Império, sobretudo a

partir da segunda metade do século XIX”.

Encontramos dois casos de comercialização de pais e filhos: um era sobre a

venda do cativo José, descrito como preto, 45 anos, sua esposa de nome Maria, parda,

28 anos, cozinheira e engomadeira, e suas filhas Maria (de nove anos, parda) e

Francisca (de dois anos, parda). Outro caso referente à venda do cativo Benedito,

descrito como preto, de 26 anos, junto à sua esposa Luísa, preta, 28 anos, e os filhos do

casal: José, de oito anos de idade, Maria, de seis anos, Antônio, de quatro anos, e

Florência, de dois anos, sendo todos naturais da província cearense. Nesses dois casos,

nos interessamos em refletir sobre a atitude do senhor em comprar a família inteira.

Seria a boa vontade em manter uma família unida? Seria interesse comercial em

comprar uma grande quantidade de cativos a um preço único de lote? Seria o interesse

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na mão de obra que as crianças teriam quando ficassem maiores? Não sabemos ao certo,

mas levando em conta o funcionamento do comércio de cativos, é mais provável que

esse proprietário tivesse um pensamento voltado somente à mão de obra desses

escravizados.

No debate sobre as famílias escravas, destacamos o papel da mulher cativa,

que também era vista como mercadoria. Apenas a sua força de trabalho era valorizada,

como confirma Davis:

[...] as mulheres negras sempre trabalharam mais fora de casa do que suas

irmãs brancas. O enorme espaço que o trabalho ocupa hoje na vida das

mulheres negras reproduz um padrão estabelecido durante os primeiros anos

de escravidão. Como escravas, essas mulheres tinham todos os outros

aspectos de sua existência ofuscados pelo trabalho compulsório.

Aparentemente, portanto, o ponto de partida de qualquer exploração da vida

das mulheres negras na escravidão seria uma avaliação de seu papel como

trabalhadoras. (DAVIS, 2016, p. 17)

No século XIX, as mulheres, tanto brancas como negras, ainda eram

consideradas e tratadas como seres subordinados à figura masculina nas mais diversas

esferas sociais. As mulheres brancas detinham privilégios dentro do sistema vigente na

época, suas vidas não eram tratadas como peças passíveis a comércio, como as das

mulheres negras. As mulheres brancas e com dinheiro eram administradoras de

propriedades, casos mais comuns entre as mulheres viúvas. Algumas escrituras mostram

situações em que mulheres eram as compradoras ou vendedoras de cativos, com seus

perfis descritos sempre como proprietárias, como é o caso da viúva Isabel Antônia

Tavares, cuja comercialização foi realizada em sua residência. A viúva é moradora da

cidade de Fortaleza e faz a compra da cativa Delfina, de vinte anos de idade, solteira, e

da de sua filha de nome Joanna, dois anos de idade, sendo ambas naturais da freguesia

de Maranguape, vendidas por trezentos e trinta mil reis. Segundo Assunção (2011,

p.11), “as mulheres [branca] cearenses participavam da administração dos bens da

família, especialmente na falta dos seus esposos, exercendo atividades ligadas ao meio

rural: eram chefes de famílias, geriram fazendas, sítios, engenhos, e escravos”.

As mulheres escravizadas sofriam dupla violência, de gênero e raça, eram

submetidas a opressões que os homens escravos não estavam expostos. As formas de

trabalho exigidas eram diferentes dos homens cativos e variavam de acordo com o

espaço que viviam. Na zona urbana, as tarefas domésticas eram os mais exigidos.

Enquanto na zona rural, trabalhavam nas roças, dos afazeres da casa-grande e, em

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muitos casos, se tornavam amas de leite. Mesmo assim, historicamente, os cativos do

sexo masculino eram mais valorizados comercialmente. A força física do homem negro

era fator determinante para aumentar seu preço em relação às mulheres cativas da

mesma idade, como veremos na subseção 4.3.

As mulheres escravizadas sofriam com os assédios dos senhores, tendo

casos de estupros e outras violências sexuais. Dessas relações de senhores com escravas,

aconteciam casos de filhos “bastardos” frutos desses relacionamentos. Nas escrituras, a

venda de uma escrava e de seu filho de cinco anos de idade descrito como branco chama

a nossa atenção. Não são dadas outras informações sobre a criança, o que nos dá

liberdade de usar esse exemplo para levantar hipóteses, como o fato de que existiam

casos de mulheres escravas negras que tinham filhos brancos, frutos de relacionamentos

com senhores brancos. Não podemos confirmar se esse é o caso do escravinho citado na

escritura do fólio 83, levando em conta que a mãe era uma escrava de 18 anos, solteira,

vendida junto aos seus filhos, sendo um branco e um mulato. A escritura não faz

menção ao pai das crianças.

O fato é que a vivência das mulheres escravizadas, em certos aspectos, era

diferente das experiências dos cativos homens. As mulheres que viviam em situação de

escravidão tinham estratégias de resistência próprias, por exemplo. Segundo Dias,

Entre as inúmeras formas encontradas pelas escravas para enfrentar as

adversidades, estava o recurso à religião e à magia. O acesso das escravas ao

mundo espiritual era feito através de plantas, folhas e raízes, colhidas

segundo costumes oriundos da África. Além de exercerem importante papel

como agregadoras da vida comunitária, mantenedoras e divulgadoras de

costumes culturais advindos da África, as escravas mais velhas atuavam

também como feiticeiras e curandeiras. Lançavam mão de ervas para

diversos fins, entre eles o de invocar os deuses. Eram elas também que

distribuíram entre as demais escravas os obi, os “trabalhos” a serem feitos

para agradar os deuses e garantir sua intervenção contra a violência dos

capatazes, impedir os estupros, fornecer alimentos para os filhos pequenos e

preservar sua saúde. Algumas acolhiam as mais jovens como afilhadas e as

iniciavam no culto aos deuses, com promessas, amuletos, intermediando todo

tipo de proteção sobrenatural. (DIAS, 2012, p.369)

Desta forma, as mulheres cativas eram grandes forças para manutenção e

perpetuação de costumes e crenças dos povos africanos e seus descendentes, sendo

agentes construtoras de suas histórias. Sendo assim, mesmo em meio às violências,

encontravam caminhos de legitimar suas vivências.

Trata-se de fragmentos da história dessas famílias, mas podemos perceber

que alguns desses cativos tiveram a possibilidade de se casar, gerar filhos, estabelecer

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alianças. Essas relações afetivas demonstram que existiam laços de afetividade mesmo

com o tratamento desumano recebido pelos escravizados.

4.3 OS PROCESSOS DE COMPRA E VENDA DE ESCRAVOS NO CEARÁ NO

SÉCULO XIX

O Ceará dos oitocentos participava ativamente da manutenção do sistema

escravista no Brasil e, alguns documentos, como as escrituras de compra e venda de

escravos, são ricas fontes de informações sobre essa época, pois são documentos

jurídicos e autênticos, que abordam questões sociais e culturais desse período na então

província. As informações contidas nas certidões são legítimas e apresentam aspectos da

comercialização de sujeitos escravizados, revelando perfis de compradores, vendedores,

dos escravos envolvidos na transação comercial e, também, da sociedade da época.

A escritura pública de compra e venda de escravos na segunda metade do

século XIX representava a declaração pública de um negócio jurídico definitivo e

quitado, elaborada no momento da comercialização do cativo. Portanto, era válido como

documento oficial, assegurando os direitos do vendedor e do comprador, assim como o

pagamento dos impostos respectivos.

No livro de escrituras que analisamos neste trabalho, constam 211 cativos

entre adultos e crianças, sendo 109 do sexo masculino e 102 do sexo feminino. Nesses

documentos encontramos informações que serviram como base para análise dos dados:

data e local do registro da escritura; nomes completos do vendedor, do comprador e de

seus respectivos procuradores (quando havia); sexo (a partir do nome); profissão ou

patente; local de residência. Sobre os cativos, as informações constam do primeiro

nome; sexo (a partir do nome); idade; estado civil; cor; atividade produtiva; origem e/ou

naturalidade; presença ou não de filhos.

Na leitura dos documentos ainda retiramos informações sobre a forma de

aquisição do cativo, preço, a forma de pagamento, valor recolhido pelo imposto, em

alguns casos, a cópia da procuração, o fecho do Tabelião citando as testemunhas e as

devidas assinaturas do comprador, do vendedor, do procurador (se fosse o caso) e das

testemunhas. A seguir, mostramos a edição de uma das escrituras para exemplificar

esses aspectos registrados no texto:

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fl.39r

Escritura de venda de um escravo de nome Silverio, que á

Dona Joaquina Moura Taborda faz Luis de Castro Silva, pela quantiade 500$

Saibam quantos esta virem que sendo no Anno do Nascimen=

to de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos setenta e um, aos sete dias do 5 mez de outubro, nesta cidade da Fortalesa, Capital do Ceará, em meu car-

torio compareceram perante mim e as duas testemunhas abaixo assi-

gnadas, de uma parte como outorgante vendedor Luis de Castro

Silva, lavrador e morador no termo do Cascavel e de outra como outorga=

da compradora Dona Joaquina Moura Taborda; proprietaria e moradora 10 nesta mesma cidade, ambos bem conhecidos de mim Tabelião, do que dou fé.

E pelo outorgante vendedor foi-me dito perante as mesmas testemu=

nhas que esse é senhor e possuidor do escravo de nome Silverio, mulato,

de trinta e dousannos de idade, solteiro, sem officio, e natural da

freguezia do Cascavel; e porque o possui livre e desembaraçado de 15 qualquer onus, vende como effectivamente vendido tem por meio deste

instrumento á mencionada compradora Dona Joaquina Taborda, pelo

preço e quantia certa de quinhentos mil reis, que, em moeda cor-

rente esse vendedor confessa ja haver recebido da mão da dita com-

pradora, pelo que da a esta plena e geral quitação de paga, 20 transferindo-lhe toda posse dominio e senhorio do mencionado escravo,

do qual pode o comprador tomar conta como seu que é e fica

sendo por bem deste instrumento. E logo pela compradora for dito que aceita

esta escritura de venda como lhe é feita e que ja está de posse do referido

escravo Silverio. Pagou a compradora o imposto devido de trinta mil reis, 25 na secção de arrecadação da Thezouraria Provincial conforme o conhecimento que

me apresentou numero 3290 desta data. Pelo vendedor foi-me apre-

sentada certidão do Collector da Villa do Cascavel provando ser

o referido escravo Silverio empregado na lavoura e morador fo-

ra dos limites d’aquella Villa, pelo que não fora matriculada. 30 Depois de feita esta escritura foi por mim lida perante esses

vendedor e compradora, os quais reciprocamente a aceitaram

por acharem-n’a como outorgado haviam, e eu Tabelião como pes-

soa publica a outorguei e aceitei em nome dos auzentes e pes-

soas a que pertencer possa, sendo testemunhas a tudo presentes 35 Manoel Roberto de Carvalho Guimarães e Leopoldo Leonel de

Alencar que assignaram com os mesmos vendedor, com

migo Joaquim Feijó de Mello Tabelião que escrevi

[Luis de Castro Silva]

[Joaquina Moura Taborda] 40 Testemunhas [Leopoldo Leonel de Alencar]

[Manoel Roberto de Carvalho Guimarães]

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Logo no início, a escritura traz informações sobre os indivíduos que estão

envolvidos na transação, da mercadoria está sendo comercializada e de seu valor.

Podemos ainda notar que o tabelião aparece como mediador, fornecendo sua “fé” e

tornando o documento legal. No caso dos escravos, algumas escrituras fornecem mais

características do que outras.

É provável que o tabelião, sendo um profissional elitizado, deixasse suas

impressões quando escrevesse qualquer documento. O exemplo de compra e venda

trazida acima deixa claro as diferenciações sociais dos envolvidos na transação

comercial. A compradora era Dona Joaquina Taborda, ela não era somente Joaquina ou

Joaquina Taborda, ela era também Dona. É importante estar atento às formas que as

informações são colocadas pelo escrivão, pois podem expressar uma classificação de

status e prestígio social do período.

No discurso dos documentos percebemos uma preocupação no momento de

adquirir um escravo. Tanto os vendedores como os compradores buscam na escritura

pública um meio de legalizarem a transação e protegerem seu negócio.

Analisando o comércio de cativos, percebemos aspectos da época escravista,

e manifestações linguísticas, sobretudo lexicais, que demonstram as relações de poder,

as formas de opressão e como a transação comercial escravista era aceita judicial e

socialmente. Ao analisarmos o contexto de escravidão da então província cearense,

encontramos o tratamento dado aos escravizados no momento de sua comercialização e

como isso fazia parte dos jogos de poder do senhorio. As motivações para a compra e

venda desses sujeitos revela como a população negra era reduzida a coisa, peça.

Segundo Joaquim Nabuco apud Funes (2007) a escravidão:

[...] é a posse, o domínio, o sequestro de um homem – corpo, inteligência,

forças, movimentos, atividades – e só acaba com a morte. Como se há de

definir juridicamente o que o senhor pode sobre o escravo, ou que este não

pode, contra o senhor? Em regra o senhor pode tudo. (NABUCO apud

FUNES, 2007, p. 108)

O comércio de escravos foi dinâmico na realidade econômica do século

XIX, haja vista o grande número de escrituras de compras e vendas registradas nos

documentos cartoriais, tanto do Arquivo Público do Ceará como de outros arquivos do

estado, além das diversas escrituras tratando de hipotecas e penhoras de cativos em

diferentes circunstâncias.

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Os cativos não participavam ativamente do processo de compra e venda, a

comercialização apresenta esses sujeitos como objeto de negociação, tendo suas

características físicas descritas como forma de apresentar o produto e suas habilidades

de trabalho como atributos que ajudam a valorar a venda. A descrição do perfil dos

escravos vendidos, as exigências de seus compradores e como era o processo ao qual

eram submetidos, mostram que os cativos não tinha qualquer autonomia, eram

considerados objetos negociáveis. Gorender (1985) explica que:

[...] idade, sexo e robustez constituíram fatores de influência permanente na

determinação do preço de compra do escravo. [...] A par das qualidades

intrínsecas, ou, em outras palavras, do valor de uso, influíam no preço do

escravo fatores propriamente mercantis, atuantes no lado da oferta e no lado

da demanda em sua oscilante correlação. (GORENDER, 1985, p. 186).

A população cativa no Ceará nos oitocentos era majoritariamente nascida no

Brasil. De acordo com Assunção (2009):

Os dados para esse período [primeira metade do século XIX] confirmam que

o processo de “crioulização” da população cativa começou a ocorrer no Ceará

bem antes do fechamento definitivo do tráfico internacional, em 1850. Muito

embora se perceba que a parcela composta por africanos não foi

insignificante, pois eles constituíram 25,1% do total, quando começa a haver

um declínio crescente deles em todas as décadas, chegando a representar

apenas 3,8% dos escravos inventariados na fase B [segunda metade do século

XIX]. Muitos dos africanos que viviam na província podem ter sido

deslocados no tráfico interno que se inicia intensamente no pós-1850.

(ASSUNÇÃO, 2009, p. 32)

As escrituras produzidas no recorte que compreende nosso trabalho não

registram nenhum caso de cativos africanos. Os documentos mostram um número maior

de cativos descritos como pretos, sendo 74 sujeitos. Em seguida, aparecem os cativos

descritos como pardos, 68 registros. Os descritos como mulatos contabilizam 49

escravizados no total. Registramos ainda 14 fulos, 01 acaboclado, 01 caboclo, 01 branco

e 03 cativos ser cor descrita em seu perfil. Os cativos comercializados nas escrituras

eram descritos como naturais da província cearense, exceto por 01 caso de uma cativa

natural do Maranhão, 03 casos de escravizados naturais da província do Rio Grande do

Norte, 02 cativos naturais da província de Pernambuco e 04 sujeitos cativos descritos

como sendo naturais da província de Piauí.

Nas escrituras analisadas, foi possível encontrar registros de compradores

que ganharam destaque na província na época. Eram comerciantes de grande

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importância, como o francês Jacob Cahn, citado em diversas escrituras e que, segundo

Girão (1984), era um dos que anunciavam em jornais a compra de escravo, fato que não

causava nenhum escândalo.

O comprador de escravizados é caracterizado no documento com o nome

completo, algumas vezes acompanhado do local de origem e estado civil,

principalmente se for uma compradora mulher, geralmente viúva. O vendedor também

tem seu nome completo apresentado e seu ofício, são comumente agricultores e

comerciantes.

No quadro abaixo, apresentamos alguns compradores que são mais citados

nas escrituras:

Quadro 10 - Compradores em destaque nas escrituras analisadas.

Comprador Cativos comprados

Jacob Cahn 17 cativos

Luis Ribeiro da Cunha & Sobrinhos 30 cativos

Manoel Jose de Oliveira Figueiredo 03 cativos

Doutor Constantino Jose da Silva Braga 03 cativos

Fonte: elaborado a partir das escrituras pertencentes ao APEC.

Os senhores e senhoras de cativos provinham de regiões do interior da

província, da capital e alguns de fora da província. Por exemplo, o Barão de São

Leonardo, Coronel e Comandante Superior da Guarda Nacional da Província do

Amazonas, comprou Henrique, de cor fula, vinte e seis anos de idade, solteiro e natural

da província cearense. Girão (1984) explica como funcionava o mercado de cativos

entre os negociantes:

Faziam-se as vendas, na mor parte, para conveniência dos intermediários ou

traficantes, por meio de recibos passados a estes e de procuração que lhes

autorizava a venda no Rio de Janeiro. Se, no trajeto do sertão para Fortaleza,

alguém oferecesse vantagens compensadoras, transferia-lhe o traficante a

procuração e, desta forma, acontecia que o escravo, antes de chegar ao

destino, já estivera na posse de diversos donos, com lucros para cada qual,

mas prejuízo para a Fazenda da Província, que somente receberia a sisa por

ocasião da última barganha. (GIRÃO, 1984, p. 61)

Entre os compradores e vendedores damos destaque à existência de

empresas envolvidas no comércio da compra e/ou venda de escravos, cujas

denominações, em sua maioria, se referem a nomes e/ou sobrenomes de famílias. No

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quadro a seguir, mostramos as empresas citadas e quantas negociações elas fizeram nos

documentos analisados:

Quadro 11 - Empresas em destaque nas escrituras como negociantes.

Empresa Cativos negociados

Pinheiro de Palma e Companhia Vendeu um cativo;

Moura Rolim & Sobrinhos Vendeu um cativo; comprou um cativo;

Luís Ribeiro da Cunha & Sobrinhos Comprou 30 cativos;

Farias & Sobrinhos Vendeu um cativo; comprou um cativo;

Fonseca & Irmão Comprou um cativo

Viúva Salgado Sousa & Companhia Vendeu 03 cativos

Fonte: elaborado pela autora a partir das escrituras pertencentes ao APEC.

A participação de empresas na comercialização de cativos era comum, seja

como compradoras, vendedoras ou na posição de procuradoras. Assunção (2009) faz

referência a duas firmas citadas no corpus:

A empresa Luis Ribeiro da Cunha & Sobrinhos atuava muito no porto, no

comércio de importação e exportação de produtos. A firma surge em vários

tipos de fontes negociando, comprando e vendendo escravos. Nos anos de

1870, eles viriam a se tornar um dos maiores e mais importantes exportadores

de escravos da província. Com relação aos outros grandes negociantes desta

série de 1868, disponho de mais algumas poucas considerações a fazer. A

firma Fonseca & Irmãos tinha como sócios os irmãos José da Fonseca

Barbosa e Joaquim da Fonseca Barbosa. O patriarca chamava-se Joaquim da

Fonseca Soares e Silva e a mãe deles era Thereza Barboza da Fonseca. No

inventário do pai dos irmãos, descobri que José e Joaquim Filho haviam

herdado muitos bens, entre os quais sobrados em Fortaleza e dois grandes

armazéns na Rua da Praia avaliados em 3 contos de réis cada um.

(ASSUNÇÃO, 2009, p. 104)

Como podemos ver, alguns negociantes eram sujeitos de destaque na

sociedade da época por serem donos de imóveis e comercializarem em nomes de

grandes firmas. No entanto, outros negociantes menores também aproveitaram os

negócios da escravidão, sendo agricultores donos de poucas terras ou comerciantes

donos de pequenos negócios, mas que possuíam escravos, muitas vezes apenas um ou

dois cativos.

Outros sujeitos citados nas escrituras como partes do processo de registro da

comercialização são as testemunhas, o escrivão e o tabelião. São os sujeitos referentes

ao âmbito jurídico, estão presentes em todas as escrituras e alguns nomes se repetem

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com frequência. No caso do tabelião, algumas escrituras foram assinadas por um

substituto temporário, sendo Joaquim Feijó de Mello o oficial. O escrivão possuía as

habilidades da leitura e da escrita, pouquíssimas pessoas possuíam essas aptidões, fato

que agregava valor a esse profissional, situando-o na elite colonial e provincial e no

cenário administrativo-judiciário. O setor administrativo dispunha, segundo Salgado

(s.d., p. 76), “[...] de uma série de oficiais menores, que os auxiliavam no exercício de

suas funções, tais como escrivães (para escrever os autos dos processos), tabeliães (para

garantir a validade dos documentos) [...]”. Nas escrituras é possível confirmar o poder

do tabelião, como observamos no trecho abaixo:

Depois de feita esta escritura foi por mim lida presente esses vendedores,

comprador, os quais reciprocamente a aceitaram por acharem-n’a como

outorgado haviam e eu Tabelião como pessoa publica a outorguei e aceitei

em nome dos auzentes e pessoas a que pertencer possam semdo testemunhas

a tudo presentes Bernardo Jose Couto e Antonio Jose de Freitas, que

assignaram com o mesmos vendedores, comprador e comigo Joaquim Feijó

de Mello Tabeliaõ que escrevi = (fl. 2r)

Ressaltamos que no livro pesquisado no 1º Cartório de Fortaleza,

localizamos um total de 174 escrituras de compra e venda, envolvendo um número de

211 escravos, negociados em um intervalo de três anos, ou seja, entre 1870 e 1873, e em

cujo período constatou a existência de variados tipos e/ou formas de efetivação de

comercialização, dentre os quais predominaram as escrituras de vendas individuais de

escravos, sendo que também identificamos a ocorrência significativa de casos

envolvendo compras coletivas, ou seja, de vários escravos negociados em uma mesma

escritura, sendo 27 casos de cativos vendidos conjuntamente, como podemos visualizar

no quadro abaixo:

Quadro 12 - Quantidade de escravos por escrituras. Escravos por escrituras Escrituras

1 135

2 20

3 1

4 3

6 1

7 1

8 1

Fonte: elaborado a partir das escrituras pertencentes ao APEC.

Verificamos também a ocorrência de um caso de comercialização da metade

do escravo, como mostramos no trecho a seguir:

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Pelos privilegios que me saõ concedidos, constituo por meu certo e legitimo

procurador ao Senhor José Eneas Cavalcante para que possa vender na

Capital desta Provincia ou onde lhe convier o escravo Sabino, crioulo, com

idade de desesete annos, pouco mais ou menos, em cujo escravo tenho a

metade de seu valor, pertencendo a outra metade ao mesmo procurador e a

um seu imaõ de nome Honorio Cavalcante de Mattos. (fl.96v)

Outra situação que consideramos incomum é a negociação de terça parte do

cativo: “Escritura de venda que fazem Pinheiro de Palma eCompanhia da terça parte

que possuem nas escravas Delfina e sua filha Joanna á viuva dona Isabel Antonia

Tavares pela quantia de 330$000 (fl.1r)”.

Esses são casos que consideramos exemplos absurdos do tratamento

desumano que os sujeitos escravizados recebiam. A venda de metade ou partes de um

ser humano como se fossem pedaços de terra divididos entre interessados na

produtividade. São situações que evidenciam a crueldade da escravidão e a visão que o

senhor tinha do escravo: propriedade, objeto, peça vendável. A única utilidade era sua

força de trabalho e a possibilidade de negociação para obter lucros sobre o “produto”.

Esse tipo de negociação aponta para a valorização do braço cativo, sendo

disputado parte a parte pelos interessados. Também é consequência de problemas que

poderiam ocorrer juridicamente em torno da posse do cativo, pois nem sempre os donos

dos escravizados negociavam amigavelmente as partes, principalmente em casos de

herança.

Também foram identificados outros casos, como a venda “condicional” de

um escravo, situação em que o cativo era entregue aos compradores durante parte ou

todo prazo do ajuste. Na escritura fl. 39v, a cláusula dava poder à vendedora para tomar

o escravizado dentro do prazo de três meses caso o pagamento total não fosse efetuado.

Outra reflexão feita a partir dos dados levantados diz respeito à diferença de

preços por sexo e faixa etária dos cativos. Os quadros abaixo mostram a média de preço

por faixa etária e os preços das vendas coletivas:

Quadro 13 - Mulheres cativas vendidas sozinhas.

Faixas etárias Número Preço médio (réis)

Menores de 10 anos 4 375$000

10 a 14 anos 9 588$889

15 a 39 anos 48 800$521

40 a 59 anos 1 400$000

60 ou mais 1 1:200$000

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Fonte: elaborado pela autora a partir das escrituras pertencentes ao APEC.

Quadro 14 - Homens cativos vendidos sozinhos.

Faixas etárias Número Preço médio (réis)

Menores de 10 anos 7 550$000

10 a 14 anos 12 755$000

15 a 39 anos 50 966$000

40 a 59 anos 3 650$000

60 ou mais 0 - Fonte: elaborado pela autora a partir das escrituras pertencentes ao APEC.

Quadro 15 - Cativos vendidos em grupo. Compras coletivas (cativos e idade) Preço

Mãe (20) e filha (02) 330$000

Mãe (19) e filho (01) 1:070$000

Mãe (20) e filha (08) 1:100$000

Dois cativos sem parentesco descrito. Um homem

(28) e uma mulher (22)

2:300$000

Mãe (30) e três filhos (07) (05), (04) 1:400$000

Mãe (35) e filha (10) 600$000

Marido (26), esposa (28) e quatro filhos (08), (06),

(04) e (02)

3:000$000

Mãe (35) e filho (05) 650$000

Dois cativos sem parentesco descrito. Um homem

(12) e uma mulher (19)

1:070$000

Mãe (20) e dois filhos (04), (01). Mãe (20) e três

filhos (05), (03), (01)

1:600$000

Mãe (26) e filho (03) 1:250$000

Mãe (29) e filho (08) 1:500$000

Marido (45), esposa (28) e duas filhas (09), (02)

2:500$000

Mãe (34) e sete filhos (11), (10), (08) (07), (06),

(03), (05 meses)

2:600$000

Dois cativos sem parentesco descrito. Um homem

(22) e uma mulher (18)

2:000$000

Dois cativos sem parentesco descrito.

Dois homens (14), (12).

1:000$000

Mãe (25) e filho (02). Um terceiro escravo (20)

sem parentesco descrito

1800$000

Uma mãe (32) e três filhos (09), (07), (06) 2:000$000

Marido (42) e esposa (39) 1:200$000

Mãe (22) e filha (04) 1:000$000

Duas cativas sem parentesco descrito (18), (26)

1:400$000

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100

Mãe (19) e filho (02) 920$000

Mãe (18) e filho (05) 616$000

Mãe (32) e filha (04) 700$000

Dois cativos sem parentesco descrito. Um homem

(28) e uma mulher (27)

1:500$000

Mãe (25) e filha (03) 1:000$000

Dois irmãos (19), (16) 1:900$000

Fonte: elaborado pela autora a partir das escrituras pertencentes ao APEC.

No quadro acima podemos observar que muitos cativos foram negociados

por lote com um preço único registrado nas escrituras. Sendo assim, não levamos em

conta os preços desses cativos ao calcular as médias, pois estas podiam se elevar, o que

levaria a distorção dos índices.

No que diz respeito ao preço dos cativos comercializados, Mattoso (2003)

explica que:

O preço do escravo é um jogo de variáveis, algumas das quais totalmente

alheias ao próprio escravo e outras, ao contrário, intimamente ligadas à sua

pessoa. O preço do escravo depende da concorrência, da distância entre o

porto de embarque e o ponto de venda, da especulação, da conjuntura

econômica, depende ainda de sua idade, sexo, saúde, de sua qualificação

profissional. A concorrência que as grandes potências fazem umas às outras

nos mercados de escravos representa papel determinante na formação do

preço do cativo. (MATTOSO, 2003, p. 77)

Observamos a frequência de preços iguais para escravos de mesma idade.

Os estudos destacam que a idade era uma das principais determinantes do valor do

cativo. Outro fator considerado para avaliação do preço era gênero, fato evidente

quando voltamos nossa atenção para os preços médios e notamos que os maiores preços

são referentes aos escravos do sexo masculino. Mattoso (2003, p. 86) explica que “O

preto é, pois, vendido, em geral e em condições comparáveis, mais caro do que a preta,

e o sexo é um elemento que não se pode desprezar na formação do preço do escravo. A

idade também é importante; talvez mais que o sexo [...]”.

Nas escrituras encontramos 47 crianças na faixa etária de 0 a 10 anos, sendo

18 do sexo feminino e 29 crianças do sexo masculino. Nesta categoria, podemos citar os

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101

casos dos ingênuos, termo criado após a lei do Ventre Livre, de 1871. No trecho abaixo,

a criança de cinco meses, por exemplo, nasceu em 1871, ano da promulgação da lei:

Domingas, mulata, de trinta e quatro annos de idade, casada com liberto

Severino, e sem officio, e seus filhos Francisco de onze annos de idade,

Balbina de dez annos de idade, Severino de oito annos, Francelina de sete

annos, Miguel de seis annos, Benedito de tresannos, e Manoel de cinco

mezes, todos mulatos e naturais da freguezia de Maria Pereira; e porque os

possui livre e desembaraçados de qualquer onus, vende como effectivamente

vendido tem por meio deste instrumento aos mencionados compradores Luis

Ribeiro da Cunha & Sobrinho. (fl. 40r)

Em casos como esse, a criança era comercializada na companhia de sua mãe

e não vendida de fato, sendo uma compra de um único preço, o que poderia facilitar a

barganha. Desta forma, os proprietários usufruíam da força de trabalho da mãe e do

filho.

Na faixa etária de 60 anos ou mais encontramos apenas um caso, a venda da

cativa Josefa, preta, de sessenta anos de idade, solteira, sem ofício, e natural da

Província do Maranhão. A venda de escravizados idosos historicamente sempre foi

menor se compararmos com as demais faixas etárias. Comercialmente eram preteridos

devido à velhice e a incapacidade de mão de obra rápida e efetiva. Assunção (2009)

explica que:

Na faixa de idade dos “velhos”, correspondente aos escravos acima dos

quarenta e seis anos, há uma incidência maior de escravos com saúde

debilitada e os inválidos. No Ceará desse período o índice de mortalidade dos

velhos foi maior entre as mulheres. Escravas morriam mais na escravidão

cearense. Os “velhos” não eram tão valorizados no processo produtivo, mas

estiveram presentes, ainda que os preços nessas faixas indiquem uma queda

crescente que se eleva à medida que as idades avançam. (ASSUNÇÃO, 2009,

p.61)

Na segunda metade do século XIX, o tráfico de escravos era também uma

tentativa de manutenção da escravidão que, com os movimentos pró-abolição,

começava a enfraquecer. Os trabalhadores livres já estavam em grande número, como

explica Silva:

O cativo cearense desempenhou diversas funções socioeconômicas na

história do Ceará, dependendo do local onde trabalhava e a época em que

viveu. Em se tratando da segunda metade do século XIX, quando já era

numerosa a mão-de-obra livre disponível para os trabalhos agropastoris, a

posse deles pelos senhores era, muitas vezes, plenamente dispensável. Na

maioria das regiões do Ceará, não era força de trabalho insubstituível.

(SILVA, 2002, p. 104)

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102

Em 1860, a comarca de Fortaleza apresentava um número total de 2.861

escravos. Já em 1872, o censo demonstra que havia 1.183 cativos13

. Esse recorte

temporal corresponde aos anos de produção das escrituras analisadas neste trabalho e

podemos observar a diminuição do número de cativos em Fortaleza. Esse número

diminui até os anos finais da escravidão. No entanto, através das escrituras e do fluxo

comercial de cativos entre as regiões da província cearense, percebemos que os

senhores de escravos tentavam manter esse sistema através da comercialização de

famílias cativas e de escravizados mais jovens.

Nos últimos anos da escravidão os casos de fuga dos cativos, alforrias e as

ações para validação das leis vigentes, como a do Ventre Livre, eram aliados para o

enfraquecimento do tráfico de escravos e para o que mais tarde resultaria na abolição da

escravatura.

Mattoso (2003) nos traz uma importante reflexão sobre o ser negro escravo

no Brasil:

Ser escravo no Brasil é buscar a superação das contradições entre esses dois

mundos [mundo dos homens livres e mundo dos escravos] e, ao mesmo

tempo, das tensões no grupo dos escravos. O negro deve abdicar de certas

formas de seu mundo anterior, mas sua vida nova, se ele se integra bem, pode

oferecer-lhe, como veremos, outras riquezas, ganhos libertadores, por serem

criadores de um novo pensar e, sobretudo, novos laços afetivos. [...] As

relações sociais no Brasil dos séculos XVII, XVIII e XIX são, pois,

complexas, bem mais do que a imagem simplificadora refletida pela clássica

oposição entre os homens livres dominantes e os homens pretos dominados

(MATTOSO, 2003, p. 123).

Entender essa complexidade é compreender que, mesmo no estado de

submissão que a escravidão destinava aos negros escravizados, esses homens e

mulheres também eram ativos, atuando na construção de suas próprias histórias e na

história da sociedade como um todo. Hoje podemos perceber essa influência no léxico,

na culinária, na religiosidade e nos costumes e práticas mais sutis da nossa sociedade,

percebendo que entre a crueldade das violências sofridas e a luta pela liberdade

existiram diferentes formas de resistências.

13

BRASIL, Tomás Pompeu de Souza. Ensaio estatístico da província do Ceará. Fortaleza: Fundação

Waldemar Alcântara, 1997.

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103

5 “OUTORGUEI E ACEITEI”: CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao adentrarmos nas considerações finais, convém recordar os objetivos

listados no início de nosso trabalho. A saber: descrever a organização estrutural do

gênero documental escritura de compra e venda de escravos; analisar os aspectos

linguísticos-filológicos das escrituras, sobretudo, os aspectos lexicais que caracterizam

os sujeitos envolvidos nos textos; analisar os aspectos sócio-históricos e culturais da

sociedade escravocrata do Ceará no século XIX presentes nas escrituras. Ao final,

consideramos que nossas propostas iniciais foram alcançadas.

Através da edição semidiplomática, contribuímos para a recuperação de um

livro com 174 escrituras de compra e venda de escravos, colaborando com a

preservação de documentos que detêm informações sobre a história do Ceará. A partir

desses textos, iniciamos a dissertação buscando perceber a potencialidade informativa

desse gênero textual e suas possibilidades de análise.

Para percorrer os caminhos desejados no trabalho realizamos, à luz da

Filologia, um estudo diplomático das escrituras para compreender sua estrutura, sua

linguagem e os elementos que concedem veracidade às informações contidas nos textos.

Estabelecemos uma ponte entre a história, a cultura e a língua, aproximando os

elementos linguísticos e os aspectos sócio-históricos presentes nas escrituras.

Partindo da premissa de que o léxico é um aspecto linguístico que detém

muitos pontos de contato com a realidade extralinguística e, por isso, nos permite

acessar a história e a cultura de um povo, selecionamos e analisamos lexias voltadas

para a escravidão, especificamente, para a comercialização de cativos. As lexias

selecionadas e categorizadas revelaram informações sobre os cativos e suas condições

de vida, possibilitando o conhecimento de um pouco do cenário cearense nesse contexto

histórico, e da escravidão de modo geral. Permitindo, ainda, compreender a organização

do serviço notarial no final do século XIX e como se davam as práticas de compra e

venda de cativos.

O corpus usado como fonte primária nesse trabalho é composto por

documentos oficiais escritos por um setor da sociedade oitocentista que era conivente

com o sistema escravista. Desta forma, analisamos um discurso que argumentava a

favor da escravidão e objetivava legitimar, justificar e manter o regime escravocrata.

Não trabalhamos, por exemplo, com registros dos próprios escravos, o que nos impede

de acessar a perspectiva do escravizado sobre o funcionamento do comércio de cativos.

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104

Os dados levantados apontaram questões sobre os impostos pagos, os pré-

requisitos para que os tabeliães pudessem lavrar as escrituras, os sujeitos envolvidos na

validação do documento e informações sobre o perfil e o preço dos sujeitos

comercializados. Quanto a isso, nossa análise revelou que, no recorte temporal que

compreende nosso trabalho, o fluxo de comércio de cativos era dinâmico e atingia

mulheres, homens e crianças. Registramos, ainda, casos de famílias cativas negociadas e

situações de separação do núcleo familiar, levantando uma discussão sobre o tratamento

dado a esses laços pelos senhores de escravos.

Na análise dos preços, concluímos, através das médias, que os cativos

homens eram mais valorizados comercialmente que as mulheres escravizadas,

confirmando outros estudos sobre o tema na historiografia brasileira. Os homens

também eram a maioria, numericamente. Esses dados foram importantes para avaliar o

momento histórico em que a província cearense vivia. Mesmo com os movimentos

abolicionistas ganhando apoiadores, o sistema escravista estava a todo vapor,

alimentando o tráfico de escravos e a própria ideia de perpetuação do escravismo.

No tocante aos discursos abolicionistas que mediam força com os de pró-

escravidão, é preciso destacar esse processo sob a perspectiva dos próprios cativos,

como as estratégias de sobrevivência e resistência criadas nas senzalas, as lutas para

comprar suas alforrias e as de seus familiares, as ações subversivas de fuga e vinganças,

foram elementos que ajudaram a enfraquecer a base que sustentava a escravidão na

província, no caso, o comércio de cativos. A abolição na província cearense não pode

ser atribuída somente aos abolicionistas, como uma boa ação de uma elite que desejava

a liberdade dos negros cativos.

Amparados nessa ideia de que os escravizados eram sujeitos ativos e

construtores de ideias e de ações, trazemos um discurso de compreensão desses

documentos mesmo com os silêncios que ele apresenta sobre as partes dos principais

envolvidos nas transações comerciais: os cativos. E, diante de tudo o que foi exposto,

esperamos ter contribuído para ampliar o debate historiográfico acerca da escravidão no

Brasil, especificamente sobre a comercialização dos sujeitos cativos no Ceará da

segunda metade do século XIX.

Acreditamos ter alcançado nossos objetivos no que diz respeito à análise,

por meio do léxico, de um pouco da história escravocrata ocorrida no Ceará oitocentista.

E também de cumprir o exercício de compreender a história envolta na escrita das

escrituras de compra e venda de escravos através de elementos da Filologia. Sendo

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105

assim, esperamos que esta dissertação, bem como tantas outras pesquisas sobre este

momento da nossa história, seja instrumento de análise para futuros trabalhos e também

para ampliação das discussões sobre a escravidão dos negros ocorrida no Brasil, fato

histórico que tem reverberações até os dias atuais.

Sendo o racismo uma herança cruel da escravidão atualmente, é preciso

reconhecer o sistema escravista como algo vergonhoso e cruel, para que possamos

identificar as ações cotidianas que legitimam essa continuação da ideia de

hierarquização. Um passo importante para essa desconstrução é a apropriação de

conhecimentos sobre esse momento da nossa história, e é dessa forma que pretendemos

contribuir para esses diálogos, sendo fonte de informação sobre esse período e ajudando

na preservação da nossa memória. Mais que saber sobre nossa história é preciso

aprender com ela.

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