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i UNIVERSIDADE EDUARDO MONDLANE FACULDADE DE LETRAS E CIÊNCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE ARQUEOLOGIA E ANTROPOLOGIA LICENCIATURA EM ANTROPOLOGIA Delinquência Juvenil na cidade de Maputo: Dinâmicas dos comportamentos desviantes praticados pelos jovens Autora: Madalena Eduardo Matola Supervisor: Alexandre Mate Maputo, Outubro de 2017

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UNIVERSIDADE EDUARDO MONDLANE

FACULDADE DE LETRAS E CIÊNCIAS SOCIAIS

DEPARTAMENTO DE ARQUEOLOGIA E ANTROPOLOGIA

LICENCIATURA EM ANTROPOLOGIA

Delinquência Juvenil na cidade de Maputo: Dinâmicas dos comportamentos

desviantes praticados pelos jovens

Autora: Madalena Eduardo Matola

Supervisor: Alexandre Mate

Maputo, Outubro de 2017

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Delinquência Juvenil na cidade de Maputo: Dinâmicas dos comportamentos

desviantes praticados pelos jovens

Autora

_________________________________

Madalena Eduardo Matola

Trabalho submetido ao Departamento de Arqueologia e Antropologia como

requisito parcial para a obtenção do Grau de Licenciatura em Antropologia na

Faculdade de Letras e Ciências Sociais na Universidade Eduardo Mondlane.

O Supervisor O Presidente O Oponente

________________ _________________ _________________

Maputo, Outubro de 2017

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Declaração

Declaro por minha honra que este relatório de pesquisa nunca foi apresentado na sua

essência para a obtenção de qualquer grau, e que o mesmo constitui o resultado da

minha investigação pessoal, e estão indicadas no texto e na bibliografia as fontes

utilizadas.

_________________________________

Madalena Eduardo Matola

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Dedicatória

Dedico este trabalho a minha família. Ao meu esposo Felisberto Lukanga e meu filho

Kwamenth Lukanga que estiveram sempre ao meu lado nos momentos bons e difíceis

da minha vida e durante a elaboração deste trabalho.

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Agradecimentos

Em primeiro lugar agradeço a Deus pela força, coragem e determinação que me deu

para vencer mais uma etapa na minha vida.

Agradeço ao meu supervisor, Mestre Alexandre Mate,pelo apoio incondicional que

prestou-me na orientação deste trabalho, como também pelos ensinamentos e conselhos

que partilhou comigo. A sua disponibilidade e paciência foram importantes para a

existência deste trabalho.

Aos meus pais Eduardo Matola (que descansa em paz) e Helena Alberto Chavo pelo

amor, carinho e apoio que transmitiram-me. Aos meus irmãos, Nelson Matola,

Fernando, Samuel da Silva e Grescy, pelo apoio incondicional nos momentos que mais

precisei.

Aos meus tios que estiveram envolvidos nesta fase da minha vida, oferecendo-me todo

o tipo de apoio de que necessitei. Aos meus padrinhos, Enoque e Aflora pelo incentivo

que me deram para vencer esta batalha.

À minha chefe, doutora Maria Abigail M. Marrengula pelo apoio partilhado, pela sua

presença, amizade, carinho e disponibilidade nos momentos que mais precisei. Aos meu

primo Idélcio Chavo pelo apoio que me deu.

Aos meus amigos Elsa Nhanombe, Deolinda Araújo, Lídia Maungue, Elisa Mavila

Mucave, Belmira Tembe, Julião Mawai, Aclémia Bombe, Hagy Suleimane, Justino

Cossa e Daniel Cossa pelas dicas e ideias partilhadas.

A todos os colegas do curso de Antropologia que participaram neste grande desafio

académico e a todos aqueles, directa ou indirectamente, contribuíram na realização

deste trabalho.

O meu muito obrigado.

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Resumo

O presente trabalho analisa as dinâmicas da delinquência juvenil na Cidade de Maputo.

Da literatura consultada compreendi que o assunto da delinquência juvenil é discutido a

partir de três perspectivas.

A primeira perspectiva defende que a delinquência juvenil surge como resultado das

fragilidades da família e da escola em educar e controlar os adolescentes e jovens. A

segunda perspectiva defende que os níveis de actuação dos comportamentos desviantes

no contexto da delinquência juvenil são baseados no género. Por seu lado, a terceira

perspectiva defende que o surgimento e o recrudescimento da delinquência juvenil é

resultado da desestruturação urbana.

As respectivas perspectivas permitem compreender a delinquência juvenil, primeiro,

como resultado da fraca educação e fraco controlo por parte da escola e da família,

segundo, num contexto de construção social dos pápeis de género e, terceiro, como

consequência da desestruturação do meio ambiente físico. Contudo, ao explicarem dessa

maneira, essas perspectivas não esclarecem situações em que a delinquência juvenil é

influenciado pelas redes sociais e pelas amizades.

Da análise e interpretação feitas aos dados recolhidos com o recurso ao método

etnográfico, foi possível compreender que as dinâmicas da delinquência juvenil entre

alguns jovens da cidade de Maputo resultam também da influência que a internet e redes

sociais exercem sobre os jovens e da interacção que estes estabelecem uns com os

outros e, não apenas por causa da fragilidade socializadora da escola e da família ou da

desestruturação urbana, como defendem as principais perspectivas.

Conceitos chave: delinquência juvenil, redes sociais, família e escola.

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Índice Declaração…………………………………………………………………………………………………………………………………i

Dedicatória……………………………………………………………………………………………………………………………….ii

Agradecimentos……………………………………………………………………………………………………………………….iii

Resumo……………………………………………………………………………………………………………………………………iv

1. Introdução ............................................................................................................................. 2

2. Revisão da Literatura ............................................................................................................ 4

2.1. Problemática .................................................................................................................. 8

3. Enquadramento teórico e conceptual .................................................................................. 10

3.1. Teoria .......................................................................................................................... 10

3.2. Conceptualização ........................................................................................................ 10

4. Metodologia ........................................................................................................................ 13

4.1. Método ........................................................................................................................ 13

4.2. Instrumentos e técnicas de recolha de dados ............................................................... 14

4.3. Universo dos participantes do estudo .......................................................................... 14

4.4. Critério de selecção dos participantes ......................................................................... 15

4.5. Procedimentos da realização do estudo ....................................................................... 15

4.6. Constrangimentos ........................................................................................................ 15

5. Sistematização e análise dos dados ..................................................................................... 17

5.1. Os processos de construção dos comportamentos delinquentes entre ......................... 17

5.2. Mecanismos de controlo e prevenção do comportamento delinquente ....................... 20

5.3. Delinquência juvenil como uma construção e busca de legitimação .......................... 23

6. Considerações finais ............................................................................................................ 28

7. Referências Bibliográficas .................................................................................................. 29

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1. Introdução

O presente estudo analisa as dinâmicas da delinquência juvenil na cidade de Maputo. De

acordo com a literatura consultada consta que o assunto é analisado a partir de três

perspectivas.

A primeira perspectiva defende que a escola e a família são responsáveis pelo

surgimento e recrudescimento da delinquência juvenil (Ferreira 1997; Formiga 2015). A

segunda perspectiva defende que, no contexto da delinquência juvenil, a actuação dos

rapazes é diferente da actuação das raparigas, pois os comportamentos de cada grupo

são moldados por construções sociais e por desigualidades de género (Granja 2014). A

terceira perspectiva defende que o surgimento e o desenvolvimento da delinquência

juvenil é influenciado pela desestruturação urbana (Dias et al. 2014).

As três perspectivas permitem compreender, primeiro, uma perspectiva que centra as

causas da delinquência juvenil nas fragilidades educacionais da família e da escola.

Segundo, permitem compreender a delinquência juvenil num contexto de construção

social dos papéis do género. E, terceiro, permitem compreender a delinquência juvenil

num contexto de desestruturação urbana.

Contudo, estas perspectivas deixam de fora contextos em que a delinquência juvenil é

resultado da interacção que os jovens estabelecem entre si e com o mundo virtual (redes

sociais) e, não necessariamente pela fragilidade socializadora da família e da escola, por

questões de género ou pela desestruturação urbana, como defendem as referidas

perspectivas.

Dadas essas limitações, o presente estudo analisa as dinâmicas da delinquência juvenil

em alguns bairros da cidade de Maputo nomeadamente, os bairros Ferroviário e de

Hulene. A respectiva análise foi possível realizar graças ao uso do método etnógrafico,

que permitiu fazer um levantamento exaustivo dos comportamentos e práticas

delinquentes feitas por alguns jovens.

O presente trabalho está estruturado em sete capítulos. No primeiro capítulo apresento a

introdução do estudo. Na mesma introdução apresento, de uma forma sintética, as três

perspectivas que sustentam este estudo, bem como as suas respectivas potencialidades e

limitações. No segundo capítulo apresento a revisão da literatura. Neste capítulo

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apresento o diálogo bibliográfico entre os principais autores que discutem a questão da

delinquência juvenil. No terceiro capítulo apresento o enquadramento teórico e

conceptual. Neste capítulo apresento e discuto a teoria e os conceitos que sustentam este

estudo.

O quarto capítulo ocupa-se em apresentar a metodologia utilizada neste trabalho, bem

como ocupa-se em apresentar os constrangimentos da elaboração do mesmo. O quinto

capítulo é reservado à sistematização, interpretação e análise dos dados. Este capítulo é

subdividido em secções complementares que orientam-nos ao argumento do estudo. No

sexto e último capítulo apresento as considerações finais deste estudo. E, por fim, no

sétimo capítulo apresento as referências bibliográficas.

1.1.Justificativa

A escolha do tema do presente trabalho foi motivado por dois momentos que se

complementaram ao longo do tempo. O primeiro momento foi concrectamente teórico,

uma vez que, durante as aulas da cadeira da Antropologia Urbana percebi que algumas

abordagens defendiam que a delinquência entre os jovens ou os comportamentos

desviantes eram fenómenos socialmente construídos e que a sua análise e compreensão

deveria ser feita de acordo com um determinado contexto.

Num segundo momento procurei observar algumas práticas e comportamentos de

delinquência que ocorrem diariamente em alguns contextos onde eu costumava esperar

para subir o chapa (transporte semi-colectivo de passageiros). Com a ajuda de algumas

pessoas conhecidas e estruturas de alguns bairros fui intensificando a observação e

entrevistas com algumas pessoas afectadas ou que praticam a delinquência. À medida

que recolhia os dados, também consultava a literatura sobre a delinquência juvenil.

Este último momento, de complementaridade entre a recolha de dados e revisão da

literatura, foi crucial para a escolha e análise deste tema. É que da literatura consultada

compreendi a existência de algumas limitações. Ou seja, a literatura analisada não

permite compreender o contexto no qual fiz a pesquisa. É essa limitação da literatura em

explicar alguns processos de delinquência juvenil que justifica a principal necessidade

de explorar este tema para poder compreender o significado deste fenómeno

(delinquência juvenil) entre um grupo de indivíduos no contexto pesquisado.

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2. Revisão da Literatura

Os comportamentos anti-sociais e delinquentes protagonizados por jovens têm

constituído, desde o início dos anos 90, objecto de crescente problematização ao nível

institucional e científico na Europa e resto do mundo e, os estudos internacionais

indicam que a delinquência juvenil tem vindo a aumentar e, sobretudo, que se inicia

mais precocemente e é mais violenta (Negreiros 2008).

Segundo Ferreira (1997) e Formiga (2015), a família e a escola estão no centro da

problemática em torno da delinquência juvenil pois, quanto maior afiliação dos jovens

com os pais e professores, menor a frequência na conduta anti-social e de delinquência.

Esta centralidade da família e da escola nasce da convicção de que a delinquência é

produto da incapacidade dessas duas estruturas de socialização de levarem, em muitos

casos, a bom termo as responsabilidades e os deveres que socialmente lhes competem

realizar (Ferreira, 1997).

Formiga (2014), ao estudar a dinâmica interna familiar e condutas desviantes, constatou

que a instituiçãoque se chama família é responsável pela educação dos jovens. Para este

autor, apesar da sugestionada fissura psicossocial que se tem destacado actualmente

sobre essa dinâmica, ainda se acredita que a família é importante no processo de

intervenção e inibição das condutas desviantes.

Para Ferreira (1997), a delinquência é vista como resultado de uma falta de controlo,

uma demissão do mundo adulto das suas responsabilidades em relação à geração mais

nova. Para este autor, a falta de acompanhamento e de supervisão ao longo do

desenvolvimento infantil e juvenil justifica o aparecimento de comportamentos que

muito se afastam daqueles que aos nossos olhos exprimem o conceito ideal de infância e

de juventude.

De acordo com Formiga (2014), a preocupação que se tem com a família e sua

dinâmica, refere-se à socialização da formação valorativa nas pessoas que dela fazem

parte e que podem ser capazes de transmitir, tanto dentro quanto fora dessa instituição, o

valor de uma conduta social convergente às normas sociais, principalmente, não

somente em relação ao ideal, mas, ao real da conduta na relação indivíduo-sociedade

(Formiga, 2015). Ainda de acordo com este autor, tal condição contribui para o

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movimento humano que ocorre dentro da própria família, especialmente, quando esse

objectivo é a integração das pessoas e da sociedade possibilitando um constante retorno

às soluções de conflitos que venham colocar a harmonia psicológica e social da família

em crise.

Possivelmente, todo jovem pratica ou já praticou algum tipo de conduta anti-social, o

que faz parte do repertório sócio-cognitivo deles, salientando como um desafio dos

padrões tradicionais da sociedade, evidenciando as normas da geração dos seus pais

(Formiga, 2015). Corroborando com o posicionamento de Formiga encontramos

Niquice (2013), que ao fazer um estudo da delinquência juvenil na cidade de Maputo

constatou que o cometimento de crimes entre os jovens esteve relacionado à satisfação

das necessidades básicas de sobrevivência no contexto das limitações socioeconómicas

e afectivas vividas no momento.

Entretanto, o aparente fracasso das estruturas de socialização convencionais e a eclosão

de comportamentos desviantes justificam a intervenção de outras instituições de

controlo social no processo educativo dos adolescentes e jovens (Lamar e Mark 1990).

O ponto de vista segundo o qual as crianças são diferentes dos adultos e devem, por

isso, ser tratadas de forma diferente é uma construção relativamente recente (Ariés

1973). Ainda segundo este autor, durante muitos séculos as crianças foram objecto de

um interesse bastante menor, normalmente tratadas com indiferença e, não raras vezes,

com crueldade.

Para Lamar e Mark (1990), as crianças foram olhadas mais como versões pequenas e

inadequadas dos adultos do que como seres com necessidades de protecção especial.

Para estes autores, foi só após a Europa ter começado a despertar da longa hibernação

intelectual e da estagnação social da Idade Média que uma filosofia moral começou a

questionar os costumes tradicionais de educar e de tratar as crianças (Lamar e Mark,

1990).

Ainda de acordo com Lamar e Mark (1990),os séculos seguintes, a tendência antiga

para ignorar e explorar as crianças foi substituída por uma preocupação intensa sobre o

seu “bem-estar”. Ainda de acordo com Lamar e Mark (1990), os cuidados familiares

substituíram o sistema de aprendizagem e a infância passou a ser vista como um período

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transitório no qual a protecção, mais do que a indulgência em relação às actividades

adultas, se tornou a regra.

Para Ferreira (1997), foi neste ambiente de mudança que emergiu o conceito moderno

de infância um conceito que sublinha a ideia de que as crianças são um valor em si

mesmas e que devido à sua fragilidade e simplicidade deviam ser objecto de protecção

enquanto não fossem devidamente preparadas para enfrentarem o mundo adulto.

Ainda segundo Ferreira (1997), parte do processo de descoberta da infância e de criação

da delinquência implicou a construção gradual de um conjunto de regras e de normas

sobre a educação e o controlo das crianças. Para este autor, em primeiro lugar, surgiu

um conjunto de regras informais que, antes de serem convertidas em leis, ajudaram a

criar uma imagem ideal de infância capaz de proporcionar orientações aos pais na

educação dos filhos. Embora esta imagem esteja actualmente a mudar, as regras sociais

que ajudaram a construir o seu carácter são ainda escassas.

Segundo Ariés (1973), como consequência do aparecimento de regras informais e da

aceitação generalizada de que a infância corresponde a um estado especial no ciclo de

vida, iniciou-se o processo de construção social da delinquência juvenil. Para o autor,

este processo começou a manifestar-se através da tendência para se considerarem com

maior tolerância os crimes cometidos por “menores”.

Embora sujeitos às mesmas leis dos adultos, as crianças e os jovens começaram a ser

vistos como não tendo a totalidade da responsabilidade criminal e, consequentemente,

sujeitos a penas atenuadas ou a perdão. Esse fenómeno pode se perceber, a partir de

alguns estudos de delinquência juvenil que chamam os jovens delinquentes de menores

em conflitos com a lei.

Por exemplo, num estudo feito na cidade de Maputo, Francisco e Barros (2014), ao

analisarema problemática dos adolescentes em conflito com a lei em Moçambique,por

um lado, e reflectirem sobre as medidas socioeducativas e limites para a sua aplicação

prática, por outro lado, constataram que os direitos desses jovens são sistematicamente

violados por parte de alguns membros da Polícia da República de Moçambique.

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A visão da delinquência como algo aplicável apenas a crianças ou a jovens foi ganhando

aceitação ao longo do tempo, mas foi só a partir do momento em que a sociedade criou

instituições directamente vocacionadas para lidarem com a delinquência que se deu a

sua consagração institucional (Lamar e Mark, 1990). Para estes autores, esta

institucionalização começou a partir da altura em que se tornou evidente a incapacidade

ou a desadequação dos controlos informais da família, da escola e da comunidade para

assegurarem a conformidade em relação às regras que se supunham desejáveis para as

crianças.

Nessa ordem de ideias, tornou-se importante, hipoteticamente, por dirigir o

funcionamento de uma uniformidade e organização na sociedade. A partir da lei, em

termos da formação psicossocial do indivíduo, estabeleceria um padrão de

comportamento, o qual, compartilhado com grupos de pertença ou de iguais, permitiria

ao sujeito uma aprendizagem e a manifestação de costumes, tradições, regras e valores.

Estes, por sua vez, ao serem aceites, a partir da assimilação das normas, esperar-se-ia

que o indivíduo agisse sobre esse padrão de conduta com o objectivo de beneficiar ao

outro e a sociedade (Licht, 2002; Maxwell, 1999; Sherif, 1936).

Por seu turno, autoras como Granja (2014) analisam a delinquência juvenil numa

perspectiva do género. Estaautora ao analisar as experiências e formas de envolvimento

das jovens em práticas violentas e delinquentes mostrou que existem convergências e

divergências entre o comportamento de rapazes e de raparigas e, as suas dissemelhanças

são moldadas porconstruções sociais e desigualdades de género.

A mesma autora mostra ainda que, enquanto a delinquência feminina tende a ser

praticada em contextos privados, envolvendo membros da família, conhecidos e amigos,

as práticas delinquentes mais danosas e graves são maioritariamente perpetradas por

rapazes em espaços públicos, atingindo tanto vítimas conhecidas como desconhecidas.

Por outro lado, Dias et al. (2014) associam o recrudescimento da delinquência juvenil

ao meio ambiente físico, isto é, à desestruturação do meio urbano. Segundo um estudo

realizado em Cabo Verde na cidade da Praia, estes autores concluíram que existem três

factores que concorrem para a existência da delinquência juvenil nomeadamente, a

precariedade socioeconómica, o aprofundamento das desigualdades sociais e a

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desestruturação familiar. Estes factores, por sua vez podem ser relacionados à

desestruturação urbana como constituintes das transgressões e da delinquência juvenil.

2.1.Problemática

De acordo com a revisão da literatura foi possível perceber que existem

inúmerasperspectivas que abordam a questão da delinquência juvenil. Por um lado,

existe uma perspectiva que centra as causas da delinquência juvenil nas fragilidades

educacionais da família e da escola. Segundo esta perspectiva, a família e a escola são

as instituições responsáveis pela existência da delinquência, pois ao não conseguirem

cumprir com o seu papel de socialização, criam condições para que os jovens desviem-

se negativamente nos seus comportamentos.

Por outro lado, existe uma perspectiva que foca mais as relações de género na

delinquência juvenil. Segundo esta perspectiva, a delinquência juvenil é um fenómeno

moldado por construções sociais e desigualdades baseadas nogénero. Ainda segundo

esta perspectiva, a delinquência juvenil feminina é mais restrita, pois, normalmente se

circunscreve dentro do espaço doméstico. Enquanto a delinquência juvenil masculina é

mais generalizada, pois ultrapassa as fronteiras do espaço doméstico.

Não menos importante, uma outra perspectiva explica os contornos da delinquência

juvenil e aponta para o meio ambiente físico urbanístico como causador desses

comportamentos. Segundo esta perspectiva, a desorganização urbana cria condições

para o recrudescimento da delinquência juvenil.

Estas perspectivas permitem compreender a delinquência juvenil, primeiro, num

contexto de fragilidade de socialização dos jovens pela família e pela escola. Segundo,

permitem compreender a delinquência juvenil num contexto de construção social dos

papéis do género. E, terceiro, permitem compreender a delinquência juvenil num

contexto de desestruturação urbana.

Contudo, estas perspectivas deixam de fora contextos em que a delinquência juvenil é

resultado da interacção que os jovens estabelecem entre si e com o mundo virtual (redes

sociais) e, não necessariamente pela fragilidade socializadora da família e da escola

como defende a primeira perspectiva.

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Na sequência da informação acima discutida, o presente estudo procura compreender:

quais são as dinâmicas da delinquência juvenil nos bairros de Hulene e Ferroviário, na

cidade de Maputo?

A pergunta de partida acima exposta conduz-nos a compreender, hipoteticamente, que a

delinquência juvenil entre alguns jovens da cidade de Maputo resulta da influência da

internet (redes sociais) a que esses jovens estão expostos no seu quotidiano e da

interacção que os mesmos estabelecem entre si.

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3. Enquadramento teórico e conceptual

3.1.Teoria

No presente estudo utilizo duas teorias, nomeadamente a teoria das representaçoes

sociais e a teoria da rotulagem.

A primeira teoria explica os processos através dos quais os indivíduos em interação

social constroem explicações sobre objetos sociais (Vala, 1996). Ou seja, o processo de

representar resulta em teorias do senso comum, elaboradas e partilhadas socialmente

(Wagner, 1998), ligadas a inserções específicas dentro de um conjunto de relações

sociais, isto é, a grupos sociais (Doise, 1985), que têm por funções explicar aspectos

relevantes da realidade, definir a identidade grupal, orientar práticas sociais e justificar

ações e tomadas de posição depois que elas são realizadas (Abric, 1998).

Para Moscovici (1961) e Doise (1984), a representação social é uma forma de

conhecimento que visa a transformar o que é estranho em familiar. Assim, para estes

autores, é possível lidar com processos intra-individuais, processos interindividuais e

situacionais, processos que sofrem influência de posições na esfera social, como

variáveis intervenientes, em situações de interação.

A segunda teoria defende que uma vez rotulado como delinquente, o jovem é

socialmente estigmatizado e socialmente levado a assumir esse rótulo, reincidindo na

prática desviante e mantendo-se no grupo. (Kelly 1978; Carvalho 2010). Desta feita,

essas duas perspectivas mostram-se relevantes para nos ajudar a explicar os contornos e

dinâmicas da delinquência juvenil, uma vez que no contexto em estudo, alguns jovens

constroem ideias delinquentes a partir da interacção que estabelecem entre si e, outros

constroem os comportamentos e práticas delinquentes a partir do estigma que sofrem da

sociedade como eles sendo criminosos.

3.2.Conceptualização

Delinquência juvenil

O conceito de delinquência juvenil surge como uma construção social e institucional em

torno do qual se reúnem definições e ideias sobre situações e comportamentos que

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contrastam com o conceito ideal que temos da infância e da juventude ou em que as

crianças ou adolescentes revelam comportamentos desviantes e desajustados da

realidade social do grupo etário a que pertencem. (Ferreira1997; Lamar e Mark 1990).

Para estes autores, a um determinado nível, a delinquência juvenil é definida a partir das

leis, das práticas e das crenças relativas ao comportamento das crianças e dos jovens

que governam as instituições responsáveis, social e legalmente, pelo controlo e

tratamento do comportamento considerado delinquente e de outros problemas juvenis.

A um outro nível, a delinquência juvenil é comportamento: o comportamento que os

jovens estabelecem com a família, os amigos e outros adultos nos espaços onde a

delinquência emerge (Ferreira, 1997).

Embora estes comportamentos desviantes e desajustados possam não constituir, em

rigor, infracções criminais, remetem, no entanto, para a mesma realidade social que o

conceito de delinquência juvenil procura descrever e analisar nesta pesquisa.

Redes sociais

Redes sociais tem como objecto as ligações relacionais entre actores sociais e, são

compreendidas como estruturas compostas por determinados actores conectados por um

conjunto de linhas, ou arestas, que correspondem aos laços entre os referidos

actores(Silva et al., 2006). Por seu turno, Hannerz (1980) defende que as redes sociais

são conjuntos mais ou menos complexos de relações. Neste estudo, porém, utiliza-se o

conceito de redes sociais defendido por Silva et al. (2006), uma vez que permite

compreender a conexão e laços existentes entre os jovens delinquentes.

Família

De acordo com Neves e Romanelli (2006), a família é uma unidade dinâmica, um grupo

social, um espaço de convivência fundamental ao desenvolvimento dos seus membros,

que possui características e funções próprias. Ainda de acordo com esses autores, a

família é um grupo primordial no âmbito de desenvolvimento de sujeitos psíquicos

singulares, bem como na formação ideológica dos cidadãos que a compõem (Neves e

Romanelli, 2006).

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Por seu turno, Osório (1996) define a família como uma unidade grupal onde se

desenvolvem três tipos de relações pessoais nomeadamente, a aliança (casal), filiação

(pais/filhos) e a consanguinidade (irmãos), eque, a partir dos objectivos genéricos de

preservar a espécie, nutrir e proteger a descendência e fornecer-lhe condições para a

aquisição de suas identidades pessoais, desenvolveu através dos tempos funções

diversificadas de transmissão de valores éticos, estéticos, religiosos e culturais.

O conceito de família definido por Osório mostra-se relevante para se enquadrar na

discussão da família patente neste estudo. Portanto, neste estudo entende-se família

como uma construção social onde um grupo activo forma e transforma os seus membros

em termos dos padrões culturais e afectivos.

Escola

O conceito de escola é definido por Stelko-Pereira e Williams (2010), como sendo uma

instituição ou contexto social que tem o papel de desenvolver o indivíduo e estimular

suas habilidades intelectuais, sociais e ajudá-lo na absorção crítica dos conhecimentos

produzidos em sociedade. Ainda segundo esses autores, a escola é uma instituição

social no qual o indivíduo pode se conhecer, conhecer aos seus próximos e a sociedade

em que vive, projectando como quer actuar no mundo.

Deste modo, no presente estudo utiliza-se a definição de escola acima referida para

explicar o papel que a escola desempenha no comportamento dos jovens delinquentes.

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4. Metodologia

Este estudo é de carácter exploratório. O mesmo analisa as formas pelas quais se

desenvolvem os comportamentos delinquentes entre alguns jovens. O estudo

proporcionará uma visão aproximativa sobre o quotidiano da delinquência juvenil.

A realização deste estudo obedeceu a três fases complementares. A primeira fase

consistiu na parte teórica, onde fez-se a revisão da literatura sobre as causas e contornos

da delinquência juvenil. Igualmente, foi nessa fase que identifiquei e operacionalizei os

conceitos chaves. Desta feita, esta fase acompanhou todo processo de produção deste

relatório de pesquisa. O material bibliográfico que suportou esta pesquisa foi recolhido

em algumas bibliotecas da cidade de Maputo, nomeadamente a Biblioteca Central

Brazão Mazula e a Biblioteca do Instituto Superior Maria Mãe de África, bem como nas

plataformas electrónicas.

A segunda fase foi etnográfica e consistiuna recolha de dados de campo, num contexto

mais prático do estudo. Na sequência recolhi informação relacionada com os

comportamentos de delinquência entre alguns jovens, bem como das suas causas e

contornos. Este processo de recolha de dados decorreude Julho à Outubro do ano de

2016 nos bairros de Hulene e Ferroviário. A terceira fase foi de análise de dados com

base na teoria das representações sociais, que me permitiu construir o argumento desta

pesquisa.

4.1.Método

O método utlizado neste estudo foi o etnográfico. Este método permite ao pesquisador

ver o que realmente acontece no local de pesquisa, estabelecer relações, seleccionar

informantes, transcrever textos e manter um diário (Geertz 1989). Neste contexto, a

prática etnográfica foi realizada em dois bairros da Cidade de Maputo nomeadamente,

bairro de Hulene e Ferroviário e alguns mercados como Xikelene e Expresso.

Este método permitiu-me vivenciar e captar as lógicas comportamentais da delinquência

juvenil praticada por alguns jovens e adolescentes.Na sequência apresentei-me como

estudante que tinha o objectivo pesquisar as causas da delinqência juvenil bem como o

significado que essas práticas são atribuidas entre as pessoas que com elas convivem.

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4.2.Instrumentos e técnicas de recolha de dados

Como forma de conservação do material etnográfico desta pesquisa, fiz o uso do diário

de campo. Um instrumento que para além da conservação do material, ajudou na

construção da história sobre a dinâmica do comportamento deliquente de alguns jovens

e no acompanhamento dos dados na medida em que, permitia ver o que faltava e desta

forma preparar guiões de questionário para compreender melhor a história e construir o

argumento da pesquisa.

No que diz respeito às técnicas de recolha de dados procedi ao uso das técnicas de

entrevistas semi-estruturadas, conversas abertas e histórias de vida. Estas técnicas

permitiram-me ouvir as diferentes opiniões e causas atribuídas à delinquência juvenil no

contexto em estudo.

Com base nas entrevistas semi-estruturadas e conversas abertas foi possível ouvir as

opiniões e discurso de alguns pais e encarregados de educação sobre a delinquência

juvenil. Por seu lado, as histórias de vida permitiram-me ouvir as trajectórias de alguns

jovens delinquentes e, consequentemente pude captar a relação entre entre essas

trajectórias e seus comportamentos.

Algumas entrevistas, conversas e relatos de histórias de vida foram feitas nas casas de

alguns pais e encarregados de educação de jovens delinquentes ou que já foram

delinquentes. Outras conversas e relatos de histórias de vida ocorreram algumas

barracas com alguns jovens que actuam como delinquentes e assumem.

4.3.Universo dos participantes do estudo

O universo da pesquisa é constituída por pessoas que directa ou indirectamente

convivem ou conviveram com o fenómeno delinquência no seu quotidiano. Essas

pessoas são pais, encarregados de educação de jovens envolvidos ou que já se

envolveram em delinquência, bem como os próprios jovens delinquentes. A idade dos

jovens entrevistados varia entre 16 e 28 anos de idade. Por seu lado, a idade dos pais e

encarregados de educação varia entre 35 e 50 anos de idade.

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Duma forma geral, o estudo tem um total de oito participantes dos quais cinco são pais e

encarregados de educação e, três são jovens delinquentes e/ou que já foram

delinquentes. Contudo, de modo a preservar a identidade dos entrevistados, a descrição

dos dados da pesquisa de campo será apresentada com o uso de nomes fictícios.

4.4.Critério de selecção dos participantes

O critério de selecção dos participantes obedeceu a dois momentos, nomeadamente o

momento da identificação das famílias que convivem ou conviveram com o fenómeno

de delinquência praticada por um membro da família, e o momento da selecção das

famílias e jovens delinquentes acessíveis (que mostraram-se confortáveis) para

conversar acerca desse assunto. A identificação das famílias e dos jovens foi possível

graças a técnica da bola de neve.

4.5.Procedimentos da realização do estudo

Num primeiro momento, de forma a não correr riscos de natureza ética, houve

necessidade de os participantes manifestarem o seu consentimento para participar do

estudo. Feito isto, decorreram conversas informais e entrevistas com os pais e

encarregados de educação. Esses depoimentos eram captados com um gravador de voz

e, as vezes, eram escritos em um caderno de campo. Entretanto as histórias de vida

foram todas gravadas.

Posteriromente, ainformação recolhida foi passada em um outro caderno, porém, fez-se

a selecção dos conteúdos relevantes em relação aos comportamentos de delinquência

juvenil. Não menos importante, da informação seleccionada, foi possível proceder a

uma sistematização dos dados onde consegui estabelecer as categorias de análise.

4.6.Constrangimentos

Vários são os desafios que encontrei e enfrentei durante a realização desta pesquisa.

Contudo, o destaque vai para a dificuldade que tive para encontrar famílias e jovens

delinquentes disponíveis para conversar acerca das suas experiências em relação à esse

fenómeno. Essa dificuldade fez com que eu levasse muito tempo à procurar o meu

objecto de estudo que era difícil encontrar. Entretanto, como forma de contornar esse

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constrangimento entrei em contacto com as estruturas dos bairros em estudo.

Apresentei-me e apresentei a minha preocupação e o meu objectivo. Estas estruturas,

por sua vez entraram em contacto com os chefes de alguns quarteirões e, estes

identificaram famílias acessíveis que estavam dispostas a participar do estudo.

O outro constrangimento foi o risco que corri para convecer alguns jovens delinquentes

a participar do estudo, pois estes pensavam que eu fosse uma agente da polícia que

pretendia prendê-los. Contudo, com a ajuda de um proprietário de um estabelicimento

comercial situado num desses bairros, que informou das minhas inteções, foi possível

conversar com esses indivíduos.

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5. Sistematização e análise dos dados

No presente capítulo pretendo descrever, analisar e interpretar os dados recolhidos no

campo. As respectivas análises serão feitas à luz da teoria das represantações sociais e

teoria da rotulagem.

5.1.Os processos de construção dos comportamentos delinquentes entreos

jovens

Na presente seccção pretendo descrever e explicar os diferentes contornos de construção

de comportamentos delinquentes entre alguns jovens. De acordo com as conversas que

tivemos com alguns pais, encarregados de educação e jovens delinquentes, pude

compreender que os comportamentos delinquentes são resultado da interacção que os

jovens estabelecem com as redes sociais, com os seus amigos e pelos estereótipos que

sofrem da sociedade.

Quanto à questão das redes sociais, no que diz respeito à interacção que os jovens

estabelecem com as mesmas, constatou-se que esses jovens são induzidos a praticar

comportamentos delinquentes a partir do acesso à internet. Ou seja, quanto mais os

jovens se ligam às redes sociais como Facebook e whatsapp, eles ficam expostos à

comportamentos de delinquência, tal como ilustra o depoimento abaixo:

Olha minha senhora, o meu filho era muito disciplinado e inteligente. Mas a

partir do momento em que lhe ofereci um telemóvel com acesso a internet, o

meu filho mudou. O meu filho começou a fumar drogas e beber álcool. E fui

descobrir que afinal ele utilizava a internet para fazer programas de encontros

para consumirem as drogas e bebidas. Eu lhe arranquei todo o material que

tinha acesso à internet (Carmelita, 35 anos, mãe e encarregada de educação de

um jovem delinquente).

Depoimento similar é proferido por outro participante do estudo que afirmou o seguinte:

A minha filha começou a mudar de comportamento, e eu como pai fiquei

preocupado. Vasculhei o telefone dela e descubro que trocava mensagens e

imagens via whatsapp com um grupo de meninose meninas delinquentes que

consomem álcool e praticam sexo em grupo. Não queria acreditar no que estava

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ver. Ela até tinha começado a roubar dinheiro e objectos para vender e poder

participar nessas festas de marginais. A internet estragou a minha filha (Jossias,

39 anos, pai e encarregado de educação).

Diante desses depoimentos é possível se compreender que as práticas e os

comportamentos delinquentes que caracterizam alguns jovens são resultado da

interacção que estes jovens estabelecem com as tecnologias de informação e

comunicação, com destaque para a internet. Neste caso, os smartphones e tablets, para

além de serem ferramentas de informação e comunicação, esses materiais são

promotores de comportamentos delinquentes.

Outro elemento que foi descrito como sendo o factor que influencia o comportamento

delinquente dos jovens são os relacionamentos que os mesmos estabelecem com os

amigos e colegas da escola, tal como demonstra o seguinte depoimento:

O meu sobrinho começou a ser bandido quando começou a brincar com alguns

jovens do bairro. Mesmo agora, aqui em casa comporta-se bem, mas quando sai

e se encontra com os seus amigos, tudo se estraga. Volta embriagado, as vezes

espancado. Às vezesrecebo problemas de que ele bateu em pessoas. Já fui lhe

tirar três vezes na esquadra por se meter em problemas. Mas o que lhe faz ter

esse comportamento são os seus amigos. Quando ele fica aqui em casa não cria

nenhum problema (Rosalina, 48 anos, tia e encarregada de educação).

Num outro depoimento foi me informado o seguinte:

A minha neta me cria muitos problemas de tensão, porque ela tem um grupo de

meninas que estudam com ela que são muito indisciplinadas. Eu sei que ela tem

bons professores, mas ela não aprende nada porque quando chega na escola só

começa a brincar e a fazer brigas juntamente com as colegas dela. Dizem que já

começou a fumar e tem um grupo de colegas que andam a ameaçar e

espancaras outras colegas. Eu não sei o que fazer para ela deixar de brincar

com essas colegas que lhe levam ao mau caminho (Maria, 50 anos, avó e

encarregada de educação).

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A informação acima exposta permite compreender um outro factor que influencia a

delinquência dos jovens, nomeadamente os tipos de amizades que os jovens

estabelecem na comunidade e na escola.

Não menos importante, segundo as conversas mantidas com alguns participantes

constatei que existe um outro elemento que influencia o comportamento dos jovens

delinquentes, que são os rótulos que alguns jovens sofrem por ter um comportamento

aparentemente diferente da maioria dos jovens. A propósito desse contexto um jovem

que trabalha como Modjeiro1 numa das paragens dos transportes semi-colectivos de

passageiros informou o seguinte:

Eu comecei a trabalhar como Modjeiro, mas sempre as pessoas me desprezaram

e sempre tiveram medo de mim e diziam que eu sou molwene2. Diziam que eu

roubo carteiras e telefones. Então eu comecei mesmo a roubar celulares e

carteiras de verdade, porque as pessoas sempre diziam que eu era bandido. Por

isso me tornei bandido de verdade. Mas não mato ninguém só roubo celulares e

carteiras nas paragens (Bernardo, 16 anos, jovem delinquente).

Em uma outra versão, Ernesto informou o seguinte:

Eu, meus irmãos e meus primos crescemos em casa dos nossos avós. Minha mãe

faleceu e o meu pai nunca tomou conta de nós. Faziamos biscates nas barracas

para sobreviver. Chamavam-nos de nomes. Tipo somos molwenes, ladrões e

acusavam-nos de roubar coisas. A partir desse momento eu comecei a roubar

dinheiro e bebidas nessas barracas. Porque mesmo sem roubar me chamavam

de ladrão por não ter pai e mãe. Depois fui para a África do sul e comecei a

trabalhar. Já não roubo (risos) (Paito, 25 anos, jovem que era delinquente).

Com base na informação acima apresentada é possível compreender que os estereótipos

também podem influenciar o surgimento de práticas e comportamentos de delinquência

juvenil, se considerarmos que os dois últimos depoimentos indicam que esses jovens só

1Modjeiro é um termo utilizado para denominar um indivíduo que trabalha como ajudante do cobrador do transporte semi-colectivo de passageiros.

2Molwene é um termo utilizado descrever alguém que se comporta como marginal.

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se tornaram delinquentes a partir do momento em que alguns membros da sociedade

rotularam-nos de delinquentes.

De um modo geral, nesta seccção descreveu-se e explicou-se os diferentes factores que

influenciam a delinquência juvenil no contexto estudado. Segundo a análise dos dados

constatou-se que a interacção permanente que alguns jovens estabelecem com a internet,

a influência das amizades na comunidade e na escola e os estereótipos que alguns

jovens sofrem dos membros da sociedade, são factores que propiciam a construção dos

comportamentos de delinquência no contexto estudado.

5.2.Mecanismos de controlo e prevenção do comportamento delinquente

Nesta secção analiso os mecanismos adoptados pelos pais e encarregaos de educação

para controlar e prevenir os comportamentos de delinquência juvenil praticados pelos

filhos, sobrinhos e netos.

Alguns desses pais e encarregados de educação desenvolveram um conjunto de

mecanismos que visam controlar a estancar os comportamentos delinquentes. As

medidas vão desde a disponibilização de um transporte escolar, a comunicação

frenquente com os professores e os limites do uso da internet.

No que diz respeito a disponibilização do transporte escolar, é ideia comum entre alguns

pais e encarregados de educação de que ao disponibilizar um transporte que desloque os

educandos de casa para escola e vice-versa poderia reduzir o risco de o jovem se

envolver em actos de delinquência.

Por exemplo, um encarregado de educação, na sua intervenção afirmou o seguinte:

A melhor coisa para que a criança não se envolva em bandidagem é não lhe dar

manobra de escapar. Paga um transporte escolar que lhe leve em casa e lhe

devolva. Aí não vai ter como fugir. Mas quando lhe deixa ir de chapa, aí

cuidado. Pode se envolver com bandidos e dizer que demorou chegar em casa

por causa da falta de chapas (Gopal, 46 anos, pai e encarregado de educação).

Numa outra intervenção, recolhi a seguinte informação:

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A melhor arma para controlar essas crianças é arranjar um carro e motorista

para acompanhá-las e ir buscá-las na escola. Não deixa elas apanhar o chapa

porque é aí onde se envolvem em malandrices e bandidagens. Eu desde que

descobri que o meu filho andava a se envolver com drogas e escândalos, já

acompanho todos os meus filhos para escola e vou buscá-los sempre para evitar

mais surpresas desagradáveis. Assim consigo controlar os passos deles

(Carmelita, 35 anos, mãe e encarregada de educação).

Com base nos depoimentos acima expostos pode-se perceber que perante os contornos

da delinquência juvenil que afectou algumas famílias, alguns pais e encarregados de

educação estabeleceram o transporte escolar como mecanismo de controlo das práticas e

comportamentos dos seus filhos e educandos.

Outro mecanismoque foi estabelecido pelos pais e encarregados de educação é a

comunicação permanente com os professores. Isto é, os encarregados criaram forma de

interagir com os professores, para que esses vigiassem e monitorassem os passos e

comportamentos dos seus educandos.

Neste contexto, os professores desempenham também o papel de controladores dos

comportamentos dos alunos e, caso estes manifestem algum comportamento

delinquente, os professores reportam aos respectivos pais e encarregados de educação.

Num depoimento relativo à este assunto tive a seguinte informação:

Eu mantenho contacto com o professor da minha neta. Ele sempre liga-me ou

me chama quando ela faz problemas na escola. Não sei como educar a minha

neta porque ela é influenciada pelas colegas para fazer indisciplina. Mas graças

a Deus o professor dela me ajuda a lhe controlar. Não sei o que seria da minha

vida se não fosse aquele professor (Maria, 50 anos, avó e encarregada de

educação).

Não menos importante encontramos o depoimento que refere o seguinte:

Eu já ouvi que o meu filho anda a se meter em confusões na escola. Dizem que

tem um grupo de amigos malandros que roubam e vendem celulares e

computadores. Quando lhe pergunto ele nega tudo, mas eu vejo que o

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comportamento dele já mudou. Já pedi para o DT (Director de turma) dele me

manter informado acerca do comportamento dele na escola, inclusive chamar-

lhe atenção se ver que está a cometer actos de bandidagem (Dona Joana, 42

anos, mãe e encarregada de educação).

Estes elementos remetem-nos a compreender que a cumplicidade entre os pais e

encarregados de educação e os professores constituem mecanismos de controlo de

práticas e comportamentos de delinquência entre os jovens.

Um último mecanismo que os pais e encarregados de educação adoptaram para

controlar e prevenir os comportamentos de delinquência entre os seus filhos são a

limitação e o controlo do uso da internet, tal como consta no seguinte depoimento:

Eu limitei à minha filha o uso da internet. Agora ela só usa internet no meu

computador e na minha presença. E só usa nos casos em que quer tratar um

assunto escolar. Faço isso porque compreendi que ela quando está sozinha faz o

mau uso da internet. Utiliza a internet para se envolver em comportamentos

desviantes. Desde que eu descobri que está no mundo das drogas via internet já

não a deixo utilizar de qualquer maneira (Jossias, 39 anos, pai e encarregado de

educação).

Por seu lado um jovem afirmou o seguinte:

Eu já não utilizo sempre a internet porque os meus pais me controlam. Eles

estabeleceram dias e horários em que eu devo ou não utilizar o celular e o

computador, desde que eles descobriram que eu me envolvia em drogas através

do whatsapp e facebook. Mas já me distanciei daqueles actos. Eu só fazia aquilo

por causa dos amigos (Carlitos, 18 anos, jovem que se comportava como

delinquente).

Nestas reacções podemos compreender que os pais estabeleceram também, como

mecanismo de controlo e prevenção da delinquência juvenil, a limitação do acesso à

internet por compreenderem que o acesso a esta plataforma influencia os

comportamentos de práticas delinquentes.

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Contudo, Lummertz chama a atenção em torno das relações que influenciam esses

comportamentos delinquentes. O autor defende que é impossível não considerar, no que

diz respeito a esse problema, a relação entre sociedade, jovem e conflitos, pois o

desenvolvimento destes, organiza, respectivamente, factores sociais e emocionais,

permitindo ligar jovem e condutas de risco ou não, a partir do contexto em que estão

inseridos e a sua relação com os pares na construção do comportamento socialmente

desejável (Lummertz 1997).

Em todo caso, pode-se perceber nesta secção, que os pais e encarregados de educação

criaram mecanismos de controlo e de respostas para previnir ou evitar atitudes, práticas

e comportamentos de delinquência no seio das suas famílias. O primeiromecanismo é a

disponibilização de um transporte escolar para os educandos de forma a que o pai ou

encarregado de educação controle a ida e a vinda desse educando da escola. O outro

mecanismo é manutenção permanente da comunicação entre os encarregados de

educação e os professores de forma a que estes últimos informem aos primeiros das

atitudes, práticas e comportamentos dos seus educandos no recinto ou nas imediações

da escola. O último mecanismo é a limitação e o controlo do uso da internet por parte

dos filhos. Esse mecanismo evita com que os jovens se envolvam em redes de crimes e

consumo de drogas via internet e redes sociais.

5.3.Delinquência juvenil como uma construção e busca de legitimaçãosocial

Nesta secção procuro explicar até que ponto os comportamentos delinquentes de alguns

jovens são processos de uma construção social em busca constante de um espaço de

reconhecimento e legitimação social. Alguns jovens sentem-se submetidos e sem espaço

para manifestar aquilo que são as suas crenças e valores em relação a uma determinada

coisa.

Esses jovens, por um lado sentem que na família são excluídos e controlados em relação

a determinados assuntos e comportamentos e, por outrolado, sentem que na escola há

uma padronização de comportamentos que não os permite ter liberdade. Face a esses

obstáculos que ocorrem na família e na escola os jovens procuram um espaço

intermédio onde possam manifestar as suas crenças e comportamentos e, estes serem

reconhecidos e legitimados pelo grupo.

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É neste contexto que apesar de reconhecer que o ser humano pode desviar-se das

normas impostas pela sociedade, seja por desconhecimento dessas normas, seja por

opção ou coerção, percebe-se que os jovens em estudo desviaram-se por opção. Penso

que existe comportamento desviante quando se regista o não cumprimento de algumas

ou todas as normas impostas ou aceites pela sociedade, como demonstrarei ainda ao

longo desse trabalho.

As necessidades de manifestarem o que sentem e o que pensamem relação à

determinadas coisas fazem com que esses jovens procurem pessoas que se identifiquem

com elas e, que consequentemente, partilham os mesmos valores e, daí se envolvem no

mundo de delinquência. Por exemplo, um participante informou o seguinte:

Na minha casa nunca perceberam minhas pauladas. Sempre me mandaram

fazer aquilo que acham que está correcto. Eu também penso, mas não

respeitavam a minha opinião. Nunca me senti bem em casa. Por isso sai a

procura de amigos que me entendem e que valorizavam a mim e as minha

ideias. Não interessava se fumavam ou bebiam, o importante é que nós nos

entendiamos. Conseguiamos compreender as pauladas e opiniões, um do outro.

Isso era o mais importante (Carlitos, 18 anos, jovem que se comportava como

delinquente).

Em uma outra reacção recebi a sequinte informação:

Antes de ir à África de sul eu vivia em casa dos meus avós. Lá não havia comida

mas gostavam de nos mandar muito. Eu fugi e fui viver com os meus amigos que

trabalhavam comigo nas barracas. Começamos a roubar mercadorias e

dinheiro nas barracas e dormiamos em casa de um outro amigo que vivia

sozinho. Faziamos bandidagem mas eu me sentia bem viver com os meus amigos

do que viver em casa dos meus avôs. Nós roubavamos mas nos entendiamos. Em

casa da minha avó não havia entendimento (Paito, 25 anos, jovem que se

comportava como delinquente).

Na mesma sequência encontra-se o seguinte depoimento:

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Eu na minha casa só volto de vez em quando. Na minha casa também já sabem

que sou molwene. E sabem que vivo com os outros molwenes, meus amigos que

partilhamos tudo. Esses são como irmãos para mim porque me entendem no que

faço eu também lhes entendo. Não me criticam como fazem em casa. Eles me

dão moral em tudo o que eu faço. Eles são a minha família(Bernardo, 16 anos,

Jovem delinquente).

Neste caso, a busca pela aceitação e legitimação social entre esses jovens surge como

resposta à pressão que os valores culturais exercem sobre a estrutura social, fazendo

com que os indivíduos deixem de actuar de acordo com as normas sociais pré-

estabelecidas.

A escola também é vista como uma interferência àquilo que são os desejos de

manifestação de comportamentos e valores de alguns jovens. Isso pode se constatar a

partir da seguinte afirmação:

Na escola também somos controlados. Não temos liberdade de fazermos e dizer

aquilo que queremos ou pensamos. Por isso eu fugia e gazetava as aulas para

me encontrar com os meus amigos porque com eles eu me sentia bem e livre

para fazer tudo o que eu queria sem ser impedido ou controlado. Para mim isso

era o mais importante também do que a escola (Carlitos, 18 anos, jovem que se

comportava como delinquente).

Um dos encarregados de educação referiu que:

Eu dou tudo ao meu filho. Dou-lhe atenção, dou-lhe dinheiro e compro o que ele

quer, desde que esteja ao meu alcance. E depois ouço que ele anda a roubar

coisas na escola e a agredir pessoas. Para o problema não é aqui em casa e

nem na escola. São os amigos dele que ele encontra lá fora e não é por causa

dos professores (Dona Joana, 42 anos, mãe e encarregada de educação).

Com os depoimentos acima apresentados pude perceber que o comportamento

delinquente de alguns jovens está associado com a procura de um espaço de

reconhecimento e legitimação social das suas atitudes, práticas e dos comportamentos.

Se por um lado a família e a escola constituem-se como barreiras de reconhecimento e

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legitimação social dos comportamentos sociais por proibirem esses comportamentos e

atitudes, por outro lado, a criação dos laços de amizades constitui alternativas para o

reconhecimento e legitimação social dos comportamentos sociais desses jovens.

Neste caso pode-se perceber que existe um outro espaço social de transmissão de

valores e normas, para além da escola e da família. Esse espaço social de transmissão de

valores e normas entre os jovens é o mesmo que legitima os comportamentos de

delinquência como padrões de convivência entre os jovens delinquentes em cada

contexto social em que estão inseridos. Portanto, o que se percebe é que as regras

sociais podem diferir de um grupo social para o outro e em função de divisões com base

na estratificação social.

Percebe-se ainda, de acordo com a análise dos dados, que o grau de aceitação ou

rejeição da marginalização e delinqência como comportamento social, pelos jovens, é

um factor essencial para a contenção ou promoção da violência colectiva. A

delinquência, neste contexto, caracteriza-se também como uma forma de reivindicação

de um estatuto valorizado pelos jovens.

Desta feita, se por um lado, alguns autores vêema delinquência juvenil como resultado

da perca dos valores sociais dentro de uma sociedade bem como pela incapacidade das

instituições (família e escola) em gerir os comportamentos socialmente aceites, por

outro lado, este estudo mostra que, mais do que a família e a escola, a interacção que os

jovens estabelecem entre si e com as redes sociais é que influencia a delinquência

juvenil. E, também alguns desses jovens estão cientes da delinquência que praticam e

classificam-na como uma reivindicação de uma aceitação e legitimação social.

A escola e a família apesar de, às vezes, serem espaços sociais onde ocorrem situações

de perca de controlo dos comportamentos dos jovens e, consequentemente espaços de

criação de jovens delinquentes são também espaços de convivência e de transmissão de

valores. E o palco de transmissão de comportamentos delinquentes e expressões

violentas não reside somente na família e na escola mas também, em outros espaços

como por exemplo, a interacção que os jovens estabelecem entre si e a interacção que

estes estabelecem com as redes sociais.

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Por isso, à luz da análise e interpretação dos dados deste estudo, compreendo que é

possível pensar que o comportamento delinquente dos jovens não seja atribuída somente

a um grupo de jovens em função de sua orientação familiar e educacional (Formiga,

2004; Torrente; Rodríguez, 2000), e, muito menos, justificá-la estritamente em função

da exclusão social ou falta de oportunidades quanto a dispor de bem-estar material

(Bengoa, 1996). É necessário também observar para outros contornos, como é o caso da

influência das redes sociais e da interacção entre eles.

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6. Considerações finais

O presente estudo analisou os contornos da delinquência juvenil praticada por jovens de

alguns bairros como Hulene e Ferroviário, na cidade de Maputo. De acordo com a

literatura os factores que originam a delinquência juvenil são a fraca a capacidade de

controlo da família e da escola sobre os jovens, a desestruturação urbana e a construção

social dos papéis do género.

Esses estudos permitem compreender a delinuência juvenil em contextos de

incapacidade das instituições sociais (escola e família) em socializar os jovens,

dedesagradação do meio urbano e de construção de papéis de género. Contudo, os

respectivos estudos não explicam contextos em que a delinquência juvenil é resultado

da influência das redes sociais, particularmente o acesso à internet.

Recorrendo à análise e interpretação dos dados recolhidos no campo com o recurso ao

método etnógrafico e com as técnicas de entrevistas, conversas abertas e histórias de

vida, percebi queexiste um outro espaço social de transmissão de valores e normas, para

além da escola e da família, pelo que estas duas instituições não podem ser vistas como

as únicas responsáveis pela delinquência juvenil.

Deste modo, o estudo mostra quea interacção que os jovens estabelecem entre eles e

com internet e redes sociais são potenciais veículos de transmissão de comportamentos

de delinquência para os mesmos jovens. Ou seja, no presente estudo compreendi que

não são necessariamente as fragilidades da educação familiar e educação escolar que

causam a delinquência juvenil, mas sim, a interacção que os mesmos jovens

estabelecem entre si e através de influências entre amigos e das redes sociais.

Neste contexto, o que se pretende enfatizar no presente trabalho é a compreensão dessas

condutas, não apenas a partir de padrões convencionais estabelecidos na escola e na

família, mas também depadrões que os próprios jovens delinquentes assumem como

válidos na sua construção do mundo. Tal como refere Formiga esses jovens

delinquentes procuram a obtenção de prestígio, que, mesmo com a disponibilidade de

recursos econômicos ou mesmo de apoio social, é, muitas vezes, alcançado através de

condutas permeadoras da quebra de normas sociaispara atender apenas aos seus

prazeres e satisfação(Formiga 2002).

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