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Muitos observadores franceses ficaram surpresos com as rebeliões urbanas que, em novembro de 2005, se seguiram à morte de dois jovens da periferia parisiense – ambos de 15 anos, filhos de imigrados malineses e tunisianos (lixeiros em Paris) – que, perseguidos pela polícia quando voltavam de um jogo de futebol, se refugiaram em uma central elétrica, onde morreram ele- trocutados. Tendo publicado, em 2003, o livro Violences urbaines, violence sociale [Violências urbanas, violência social], cujo ponto de partida foi uma “rebelião urbana” em Montbéliard, esses acontecimentos não poderiam ser uma surpresa para nós. As últimas frases do livro evocavam a amplitude das discriminações sofridas pelos jovens franceses filhos de imigrados e se inter- rogavam sobre as conseqüências sociais do impossível acesso, para a maioria deles, a um emprego estável. E o livro terminava com estas palavras: “Quantas bombas de efeito retardado!”. Não era necessário ser adivinho para antecipar o futuro, pois a recorrência de rebeliões urbanas na França, nos últimos quinze anos, está inscrita em uma “ordem das coisas” que remete a fenôme- nos estruturais: o desemprego dos jovens com baixa escolaridade, a precari- zação sem saída, o agravamento da segregação urbana, o fracasso escolar, a pauperização e a desestruturação das famílias populares nos conjuntos habi- tacionais HLM 1 , a discriminação no recrutamento, o racismo ordinário etc. São fenômenos que produzem, no correr do tempo, uma violência social multiforme nem sempre visível, mas que, condensada e coagulada, pode Rebeliões urbanas e a desestruturação das classes populares (França, 2005) Stéphane Beaud e Michel Pialoux Tradução de Vera Telles Revisão técnica de Sergio Miceli 1. HLM: Habitação de Locação Moderada. Conjuntos habitacio- nais construídos pelo go- verno francês nos mar- cos de um amplo progra- ma social de moradia destinado às classes po- pulares. Diferente da situação brasileira, esse foi o padrão de moradia para a grande maioria das classes populares, em particular dos enormes contingentes de traba- lhadores que se instala- ram nas periferias urba- nas a partir do pós-guer- ra. O acesso à proprie- dade da moradia só co- meça a se generalizar em meados dos anos de 1980, mais intensamen- te no início da década de

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Muitos observadores franceses ficaram surpresos com as rebeliões urbanasque, em novembro de 2005, se seguiram à morte de dois jovens da periferiaparisiense – ambos de 15 anos, filhos de imigrados malineses e tunisianos(lixeiros em Paris) – que, perseguidos pela polícia quando voltavam de umjogo de futebol, se refugiaram em uma central elétrica, onde morreram ele-trocutados. Tendo publicado, em 2003, o livro Violences urbaines, violencesociale [Violências urbanas, violência social], cujo ponto de partida foi uma“rebelião urbana” em Montbéliard, esses acontecimentos não poderiam seruma surpresa para nós. As últimas frases do livro evocavam a amplitude dasdiscriminações sofridas pelos jovens franceses filhos de imigrados e se inter-rogavam sobre as conseqüências sociais do impossível acesso, para a maioriadeles, a um emprego estável. E o livro terminava com estas palavras: “Quantasbombas de efeito retardado!”. Não era necessário ser adivinho para anteciparo futuro, pois a recorrência de rebeliões urbanas na França, nos últimosquinze anos, está inscrita em uma “ordem das coisas” que remete a fenôme-nos estruturais: o desemprego dos jovens com baixa escolaridade, a precari-zação sem saída, o agravamento da segregação urbana, o fracasso escolar, apauperização e a desestruturação das famílias populares nos conjuntos habi-tacionais HLM1, a discriminação no recrutamento, o racismo ordinário etc.São fenômenos que produzem, no correr do tempo, uma violência socialmultiforme nem sempre visível, mas que, condensada e coagulada, pode

Rebeliões urbanas e a desestruturaçãodas classes populares (França, 2005)

Stéphane Beaud e Michel PialouxTradução de Vera Telles

Revisão técnica de Sergio Miceli

1.HLM: Habitação deLocação Moderada.Conjuntos habitacio-nais construídos pelo go-verno francês nos mar-cos de um amplo progra-ma social de moradiadestinado às classes po-pulares. Diferente dasituação brasileira, essefoi o padrão de moradiapara a grande maioria dasclasses populares, emparticular dos enormescontingentes de traba-lhadores que se instala-ram nas periferias urba-nas a partir do pós-guer-ra. O acesso à proprie-dade da moradia só co-meça a se generalizar emmeados dos anos de1980, mais intensamen-te no início da década de

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eclodir de uma hora para outra. Basta um detonador. Para conferir sentido auma rebelião urbana, que sempre produz um efeito de surpresa, por vezesestupefação, é preciso, antes de tudo, colocar em evidência essa violênciainvisível, pouco espetacular – se bem que não é pouco o quanto dela se falanas mídias. Apenas essa violência social pode explicar a espécie de raiva auto-destrutiva que caracteriza tais rebeliões.

A falsa oposição entre “ralé” e “verdadeiros jovens”

Essa perspectiva sociológica supõe necessariamente passar pela história epela compreensão da gênese das disposições. Ao contrário disso, o discursosobre as violências urbanas proferido pelos representantes das instituições(polícia, justiça, escola), ou pelos homens políticos, volta-se, quase sempre,para a busca e a designação dos “culpados” – os “arruaceiros” (casseurs) ou os“delinqüentes”, como diz Sarkozy –, esses que teriam participado ativamen-te do movimento e que seria preciso neutralizar o quanto antes. Passam aimpressão de que, para restabelecer a calma e pacificar os bairros populares,bastaria focalizar os “microgrupos” que se constituem em torno de seuslíderes (os caïds) e isolá-los de uma vez por todas. Esse discurso policialescotem a particularidade de ocultar a gênese das atitudes e dos grupos rotula-dos como desviantes. É um discurso que se alimenta de uma etiologia su-mária do fenômeno da violência e que se apóia numa dicotomia apazigua-dora: de um lado, um núcleo de “violentos”, “irredutíveis” e “selvagens”,dos quais não se ousa dizer que são irrecuperáveis e não reeducáveis (mas é,no entanto, o que pensam muitos dos responsáveis políticos), e, de outro,os jovens “não violentos” que se deixam levar e que seria preciso protegercontra a contaminação dos demais.

Podemos reconhecer aí as grandes linhas do discurso do ministro doInterior, que, ao endurecer a linguagem, parece reativar o vocabulário dasclasses dominantes do século XIX confrontadas com as rebeliões populares.Assim, desde os primeiros dias, os revoltosos foram rebatizados por Sarkozy,em uma lógica de provocação calculada, com o nome de “ralé”. A expressãoteve um papel decisivo na difusão das “rebeliões” de Clichy-sous-Bois paraa região parisiense e para toda a França. Essa “semântica guerreira”, pararetomar as palavras de outro ministro (Azouz Begag), pretende fazer acredi-tar que havia, de um lado, os “delinqüentes” e “arruaceiros”, e, de outro, os“bons jovens” (os “verdadeiros jovens”, como disse certa vez o ministro natelevisão). Como se fosse suficiente separar o joio do trigo2. Ainda resta

1990, quando entra emvigor uma política deli-berada do governo fran-cês no sentido de facili-tar o crédito e a aquisi-ção da moradia própria,em grande parte peque-nos prédios de aparta-mento construídos emloteamentos afastadosdos grandes conjuntoshabitacionais. Esse foium fator considerávelpara a fuga das camadassociais mais estáveis ecom maior renda dosgrandes conjuntos. Nocorrer desses anos, essesconjuntos terminarampor concentrar justa-mente os trabalhadoresmais precarizados, so-bretudo as famílias imi-gradas e a geração de seusfilhos já nascidos em ter-ritório francês. A respei-to, ver o artigo de OliverMasclet incluído nestenúmero da revista Tem-po Social (N. T.).

2.Como prova de suainterpretação das rebe-liões – bandos de “pi-lantras” que semeiam adesordem nos bairrospopulares –, o ministrodo Interior tirou do cha-péu dados estatísticosque estabeleciam que80% dos jovens apre-sentados à Justiça se-riam “bem conhecidosdos serviços de polícia”.Essa estatística, brandi-

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fazer a sociologia dos jovens denunciados à Justiça (perto de 3 mil). Porém,os dados das audiências mostram que, ao contrário das declarações do mi-nistro do Interior, trata-se de jovens “comuns”, que pertencem aos meiospopulares: alguns já terminaram seus estudos, outros fazem bicos (empre-gos temporários, vendedores ou ajudantes de cozinha) e outros ainda estãoestudando. Sem ficha judiciária, eles mergulharam no movimento, atraídospela efervescência do momento, levados pelo mesmo sentimento de revolta,em meio a uma experiência compartilhada das mesmas condições sociais deexistência, conscientes de pertencer a uma mesma geração sacrificada. Quantoaos menores, o juiz Jean-Pierre Rosenczveig constatou que, no tribunal deBobigny, dos 95 menores apresentados apenas dezessete eram conhecidosda Justiça: “Alguns eram conhecidos não por terem cometido algum ato dedelinqüência, mas porque eram objeto de alguma medida de assistênciaeducativa para crianças em situação de risco” (Le Figaro, 19/11/2005).

A comunidade de experiência dos jovens dos conjuntos habitacionais

Esses dados contradizem a cômoda tese que imputa as rebeliões urbanasà ação perniciosa exclusiva da “ralé”. É preciso, primeiro, compreender quea juventude das periferias francesas constitui um universo social diferencia-do. E, depois, analisar as razões que podem levar jovens “comuns” a se jun-tar ao movimento lançado pela fração potencialmente mais violenta.

Contrariamente às representações correntes, essa juventude não se reduzapenas à sua fração mais visível no espaço público, qual seja o núcleo duro dejovens desempregados (em certas regiões populares, chegam a 40% entre osjovens de 15 a 25 anos). Esse grupo social inclui, de um lado, os jovens quetrabalham, principalmente operários ou empregados, quase sempre em em-pregos temporários ou com contratos de curta duração, e, de outro, um con-tingente de jovens escolarizados, entre os quais estudantes orientados paracarreiras (ensino técnico ou profissional) que eles percebem como de relega-ção escolar, alunos em liceus de ensino geral, bem como estudantes de facul-dade ou ainda dos cursos técnicos superiores (muito raramente nos cursospreparatórios para as Grandes Escolas do ensino superior). Além desses, umaminoria de jovens com profissões intermediárias (professores do segundograu, educadores, animadores etc.) que continuam a viver com seus pais ouque preferiram continuar morando nos mesmos conjuntos habitacionais.

Existem clivagens fundas entre esses grupos, sobretudo entre as fraçõescontrastantes: de um lado, os estudantes bem situados em sua busca de

da como troféu e repe-tida à exaustão pelasmídias audiovisuais, éinaceitável. As primeirasaudiências dos “revolto-sos” no tribunal de Bo-bigny mostraram que amaioria deles não temantecedentes judiciáriose não podem ser rotu-lados como “delinqüen-tes”. A pena mais pesa-da até agora pronuncia-da (quatro anos de pri-são para um incendiáriode uma grande loja detapetes) diz respeito aum jovem de 20 anos,trabalhador temporário,titular de um diplomatécnico de pintura, filhode um operário francêsmorador da periferia deArras.

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diplomas e, de outro, os jovens desempregados ou os estudantes empurra-dos para as escolas profissionais que eles próprios não escolheram, e que sepercebem sem futuro. São principalmente estes que, com mais tempo dis-ponível, formam bandos que se reúnem na frente dos prédios para discutir,passar o tempo, fumar seus “baseados”, “delirar” um tanto, tudo isso emmeio a um sentimento intenso de autodepreciação. Esses bandos não sãomundos fechados e estanques: em certos momentos e conforme as circuns-tâncias, a eles se juntam jovens mais escolarizados que aí encontram o pra-zer do convívio masculino. Para além das diferenças internas de status, existeuma grande porosidade entre as diversas frações dessa juventude. E isso éfundamental de ser bem compreendido. É essa porosidade que permite,por exemplo, que um jovem situado nos postos mais elevados e mais valori-zados do sistema de ensino, mas que sofreu uma forte discriminação em suabusca por um estágio, possa se juntar pontualmente ao combate de seuscompanheiros de infortúnio, muito freqüentemente pouco escolarizados.Em certos momentos, o que os aproxima é mais forte do que aquilo que ossepara. Esses rapazes cresceram juntos nos mesmos locais de moradia e par-tilham uma comunidade de experiências que cria laços muitos fortes entreeles (“para toda a vida, até a morte”). Comunidade de experiências vividafreqüentemente na forma de gangues, marcada pela mesma privação mate-rial, pelas mesmas humilhações derivadas de uma pobreza endêmica, e as-sociada à cor da pele (controles pessoais reiterados, polícia cada vez maisagressiva e brutal com os negros e os árabes, que são a grande maioria dosmoradores dos conjuntos habitacionais na região parisiense). São estigmasque não se apagam. Não se pode, por exemplo, compreender a recente eenérgica manifestação de Lilian Thuram, “miliardário do futebol”, contraas declarações de Sarkozy (“É preciso saber por que as pessoas ficam assim!Não existe agressividade gratuita, não acredito nisso. É preciso ir mais lon-ge”) sem levar em conta que a sua consciência política foi forjada no conví-vio com essa juventude, em contato com as discriminações e com o racismoque eram o pão cotidiano de sua vida então. São estigmas que não se apa-gam, qualquer que seja o nível de renda conquistado, ao contrário do quepensa o ministro que pretendeu desqualificar as declarações do jogador defutebol com ironias a respeito de seu elevado padrão de vida.

A verdadeira questão sociológica suscitada por essas revoltas é a seguinte:como explicar a participação dos jovens “comuns” nesses acontecimentos? Écomo se os comportamentos de autodestruição, até então reservados à fraçãomais humilhada dessa juventude, tivessem progressivamente se difundido

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entre aqueles que, até pouco tempo atrás, esperavam conseguir se arranjar navida por meio da escola, ou então pelo empenho no trabalho. Talvez estejanisso a verdadeira novidade desse movimento: a desesperança social, antesreservada aos membros mais dominados da juventude – e que se expressanotadamente no uso de drogas, nos comportamentos de risco (roubos, dirigircomo “loucos” ao volante dos carros) –, parece ter atingido os jovens operáriose os mais escolarizados (bacheliers)3, até agora menos afetados por esse infor-túnio. Entre eles, muitos perderam a paciência e a esperança, à força de tantobater contra o muro da discriminação e do racismo, acumulando, assim, nocorrer do tempo, um enorme ressentimento. De fato, o futuro objetivo dessesjovens, de todos eles, ficou dramaticamente mais sombrio nos últimos anos.Ninguém ignora que a situação dos empregos degradou-se a partir de 2000.Porém, o que talvez não se conheça tão bem é o fato de que essa degradaçãoatingiu em cheio os jovens desses conjuntos. Entre os diplomados do secun-dário, que penam para encontrar um lugar no mercado de trabalho, a discri-minação na hora do recrutamento pesa duramente, e acaba rebatendo comviolência naqueles diretamente afetados, ainda mais quando os refúgios (con-tratos subsidiados, empregos para jovens) antes oferecidos a esses estudantesforam aos poucos se inviabilizando. É preciso insistir sobre a extinção dos“empregos para jovens”4, pois de alguma forma eles permitiam a esses estu-dantes se reerguer e recuperar a confiança em si depois do fracasso em seusestudos superiores, lhes oferecendo uma situação, uma renda, possibilidadesde se estabelecer e sonhar com um futuro melhor. Entre os jovens operários, aprecariedade aumentou grandemente nos empregos não-qualificados, parachegar a essa obra-prima da desregulamentação do mercado de trabalho quesão os chamados contratos “novos-empregos”. Na região parisiense, onde aspossibilidades de emprego são maiores (fábricas, construção, hotelaria e res-taurantes, terciário não-qualificado), uma parte considerável desses jovenstrabalha em empregos manuais: em fábricas, no aeroporto de Roissy, noterciário não-qualificado (triagem postal, telemarketing etc.). Porém, depoisdo 11 de setembro, Roissy, que era um grande empregador de jovens mora-dores dos conjuntos habitacionais, parece ter feito a “limpeza”, por conta dostemores de ameaça terrorista. Citröen Aulnay dispensou recentemente seis-centos trabalhadores temporários, e Roissy anunciou 550 dispensas de tem-porários, em 2005. As pequenas melhorias do mercado de trabalho não dura-ram muito, o mau tempo está de volta. A degradação também afetou ascondições de trabalho. Estresse, fadiga, “ambiente apodrecido”, essas são aspalavras que voltam freqüentemente quando eles falam dos novos serviços ou

3.Bachelier, o estudan-te titular de um bacca-lauréat, ou bac: trata-sede um diploma confe-rido aos que passam porum exame aplicado apósa conclusão do secundá-rio e que os credencia aseguir o ensino univer-sitário. Corresponde aoprimeiro estágio univer-sitário (N. T.).

4.Uma entre as váriasformas de empregossubsidiados (os chama-dos emplois-aidés, literal-mente, empregos-ajuda-dos) estimulados pelogoverno francês nosmarcos de políticas deemprego praticadas des-de os anos finais da dé-cada de 1980 e mais am-plamente nos anos de1990 (N. T.).

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das fábricas em fluxo-contínuo. Entre os jovens que trabalham, muitos per-cebem sua situação como um fracasso: não conseguem escapar dos empregosprecários, com contratos de curta duração ou como temporários. Ainda quenão empreguem essa palavra, eles são “operários” sem qualificação com gran-des chances de assim permanecer. Não terão meios de melhorar sua condiçãosocial e serão obrigados a reproduzir o modelo paterno do qual quiseramquase sempre se livrar. Como disse um rapaz em uma reportagem do “EnvoyéSpécial”, “nós somos manuais... como nossos pais [sorriso triste], com umacoisinha a mais, e é tudo”. Para eles, o insuportável é esse sentimento de estardestinado a ficar no mesmo lugar, uma recusa visceral de aceitar essa condiçãooperária doravante associada à iniqüidade.

É preciso ainda lembrar que as experiências de trabalho desses jovenspodem ser muito difíceis de serem vividas. A condição dos filhos de imigra-dos tornou-se infinitamente mais complicada com o aumento do terroris-mo praticado pelo islamismo radical. Os controles multiplicaram-se no es-paço público, mas também nas fábricas. Um beur5 é um suspeito por natureza:seja como potencial aliado das ações terroristas, seja como “muçulmano”contrário à lei do véu etc. Assim, Karim, 22 anos, conta que seus colegas detrabalho nunca são chamados pelo nome, mas por um apelido que provocao riso a cada vez que é pronunciado: “Al Quaeda”. Um estudante de Nantesconta que um amigo, temporário como ele em Saint-Nazaire, de nomeFarid, foi brindado pelo seu chefe com o apelido “Petit Popaul”6 – e é assimque foi chamado durante os seis meses de trabalho temporário. Seria possí-vel multiplicar esses exemplos que mostram o custo elevado a ser pago poresses jovens por conta de sua integração profissional. Essas experiências detrabalho, esses casos circulam o tempo todo nos conjuntos habitacionais.Uma vez transposta, timidamente, a porta da empresa, além da discrimina-ção há também a hostilidade surda, por vezes o racismo aberto, tudo issotendo de ser enfrentado por eles. Esses jovens têm a impressão de não serembem-vindos no mundo do trabalho. Talvez essa seja uma grande diferençaem relação aos operários veteranos, que entraram em um mundo operáriotalvez também reticente e inclusive hostil em relação aos “jovens árabes”,mas que era mais estruturado, mais marcado pela presença sindical. O mundooperário após a “classe operária” é mais anômico, minado pela precariedade,mas também pelas invejas e pela concorrência interna exacerbadas pelasnovas formas de organização do trabalho. Conseqüência: para esses jovens,conquistar um lugar no mercado de trabalho exige sempre mais esforço,mais abnegação, mais comedimento... Porém, eles pertencem a uma gera-

5.Designação dos des-cendentes de imigrantesmagrebinos (do Ma-greb, norte da África:Marrocos, Argélia e Tu-nísia, ex-colônias france-sas) nascidos na França(N. T.).

6.Diminutivo do nomepróprio Paul. Designa-tivo utilizado para crian-ças ou jovens francesesbrancos. Quando utili-zado para um jovemdescendente de árabes,ganha um significadopejorativo, querendoconvertê-lo em algo queele não é (N. T.).

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ção social que foi marcada pela vida nos conjuntos habitacionais, a qual nãoquer desempenhar o papel de “rebaixados” e tampouco reproduzir a lógicadas humilhações vividas pelos pais.

As experiências vividas pelos rapazes – no trabalho, no espaço público,na relação com a polícia (ponto essencial que não será aqui tratado) – circu-lam o tempo todo nas conversas entre os grupos de jovens e também nointerior das famílias. Não é de espantar, portanto, que as meninas, apesarde sofrerem formas cotidianas, por vezes violentas, de dominação masculinaexercida pelos rapazes (uma delas falou com graça a um jornalista de Politis:“Nós, no conjunto, vivemos em permanente toque de recolher”), não dei-xaram de exprimir uma solidariedade muda para com os garotos nas revol-tas de 2005: elas vivem, no cotidiano, a degradação das condições materiaisde existência nesses conjuntos e também sabem, por experiência própria,que o racismo é sexuado e atinge mais duramente os meninos. Podem con-denar a violência gratuita, notadamente contra as escolas, mas não deixamde compreender a desesperança de seus irmãos. Tampouco é de espantarque os pais imigrados, pais e mães igualmente, tenham manifestado umaenorme ambivalência diante da revolta de seus filhos. Pudemos observarque a forte condenação moral da violência (pois “isso não é uma solução”) émuitas vezes arrefecida, quase que no mesmo movimento, pela tímida evo-cação das “circunstâncias atenuantes”, a saber, o desemprego, o racismo, adiscriminação. Não é de espantar, enfim, que os caçulas das famílias imigra-das, que vêem diariamente a situação dos irmãos mais velhos – de 25 a 30anos, que ainda moram na casa dos pais, passando de um contrato precárioa outro, sem esperança de um emprego estável –, tendam a radicalizar-seprecocemente. São garotos que descrevem os conjuntos como um lugar cadavez mais “difícil de viver”. Trata-se de uma geração social que cresceu emmeio à crise e à precariedade, e que amiúde testemunhou o “desastre” ins-taurado em suas famílias: desqualificação social dos pais, divórcio ou sepa-ração, desemprego recorrente dos irmãos mais velhos e impossibilidade de“fazer sua própria vida”, prisão ou internamento psiquiátrico, suicídio etc.

Para compreender as rebeliões urbanas de novembro de 2005, é precisomedir e sentir o quanto é decisiva a experiência vivida, cada vez mais cedo,da desesperança social nos meios populares. É preciso, portanto, não res-tringir a análise apenas ao que acontece nos locais de moradia, em particu-lar nos conjuntos habitacionais, e inscrever tais acontecimentos no quadromais amplo da desestruturação das classes populares francesas. Para colocarem outros termos: é preciso tentar compreender o que vem ser a condição

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operária “após a classe operária”. Essa é, a nosso ver, a questão central a serbem entendida. E essa é justamente uma questão que se impôs ao longo deuma pesquisa que desenvolvemos por mais de quinze anos na região deSochaux-Montbéliard, onde está instalada a sede da automobilística Peu-geot7, e que resultou em nosso livro Retour sur la condition ouvrière (Fayard,1999).

Os operários após a “classe operária”

Em novembro de 1999, quando preparávamos a publicação do livroRetour sur la condition ouvrière, chegamos a propor, em um primeiro momen-to, o título “Operários após a classe operária”. Essa formulação correspondiaao propósito teórico subjacente ao livro8 e sugeria uma questão política paranós essencial: em que se transformaram os operários sem o suporte material esimbólico que a “classe operária”, por muito tempo, lhes ofereceu, isto é, a“classe” organizada sindicalmente (sobretudo por meio da CGT – Confede-ração Geral do Trabalho) e politicamente (sobretudo o PCF – Partido Comu-nista Francês – e nas organizações políticas guiadas pelo socialismo)? O pode-roso capital coletivo, material e simbólico, acumulado durante décadas delutas sociais por meio do movimento operário (em sentido amplo), permitiuao grupo operário se estruturar em “classe mobilizada”, e esta, por sua vez,facilitou enormemente o trabalho cotidiano de representação social e políticado grupo pelos sindicatos e partidos, bem como por várias associações locais.

Ao cabo de quinze anos de pesquisas e publicações diversas, quando olivro foi publicado, em 1999, nos parecia evidente que uma página da his-tória havia sido virada. Estávamos diante de outra configuração histórica: a“classe operária” (para retomar provisoriamente a expressão) estava na defen-siva – “estamos sempre recuando”, no linguajar dos militantes –, enfraque-cida, amplamente desarmada e muito desmoralizada. Com o recuo do tem-po, poder-se-ia mesmo dizer que esse período (iniciado com a emergência,na cena política e sindical, da “geração singular” da época da Frente Popu-lar), de 1936 a 1980, constitui apenas um parêntese em uma história delonga duração do movimento operário francês: um período, a mais de umtítulo excepcional, em que a “classe operária”, com a sustentação do EstadoSocial imposto pelas forças da Resistência, cresceu continuamente em nú-mero e se reforçou politicamente, arrancando das classes dominantes umasérie de direitos sociais, as ditas “vantagens sociais” que os últimos anos nãocessam de colocar em questão.

7.Michel Pialoux deuinício à pesquisa emSochaux em 1983. Sté-phane Beaud chegou aocampo pela primeira vezem 1988.

8.Nosso livro inscreve-se no quadro de umafiliação teórica, a da so-ciologia de Pierre Bour-dieu e do centro de pes-quisa que ele dirigiu portrinta anos. Na França,a análise das classes so-ciais progrediu graças aoaporte de uma aborda-gem relacional e “cons-trutivista”, amplamenteiniciada pelos trabalhosde P. Bourdieu e L.Boltanski, e depois rea-propriada por historia-dores (como G. Noiriel)e policólogos (como B.Pudal). Para esses auto-res, os grupos sociais nãosão substancializadoscomo nas análises mar-xistas; são, ao contrário,pensados e analisadoscomo uma realidade so-ciohistórica, produzidano tempo, notadamen-te por um trabalho sim-bólico e político de re-presentação (por isso,pode-se dizer que essesgrupos foram “construí-dos”). Nesse quadro teó-rico, a luta de classes nãoocorre apenas no planodas relações de produ-ção (ou das fábricas),mas também mediante

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Stéphane Beaud e Michel Pialoux

Nesse livro, tratávamos de compreender um processo central na históriada sociedade francesa: a desestruturação da antiga “classe operária”, tal comoela se constituiu ao longo do tempo. Para tanto, era preciso dar conta nãoapenas de seu (relativo) enfraquecimento numérico, mas sobretudo de seuenfraquecimento político, e que se traduz por aquilo que poderíamos cha-mar de perda da autonomia simbólica tão característica dos últimos vinteanos. Enfim, tratava-se de compreender como foi possível, em duas décadas,passar tendencialmente de uma situação na qual a “classe operária” era obje-to de todas as atenções sociais e políticas – notadamente da parte dos inte-lectuais (cf. a legendária foto de Sartre discursando sobre um caixote emBillancourt) – para outra em que, ao final dos anos de 1990, não suscitava ointeresse de mais ninguém, uma situação na qual, à força do reiterado adeusao proletariado por parte dos intelectuais que dela haviam feito uma causasagrada em seus anos de juventude, passa-se a acreditar até mesmo que elahavia desaparecido das estatísticas9. Enfim, uma classe que não fala mais ou,pior, que se tornou objeto de um discurso de comiseração. Essa questão dedenominação, das palavras sociais, nos coloca ante um problema central naconstrução social do grupo operário10. Por exemplo, as palavras empregadaspara designar os operários contribuem, a seu modo, para construir a realida-de. Falar, como antes, de OS (operário especializado) e de “operários não-qualificados”, ou, agora, de “operadores” e de “BNQ” (baixo nível de quali-ficação), não é exatamente a mesma coisa. As mudanças nas palavras envolvemtoda uma relação com o mundo. Antes, nos anos de 1960 e 1970, a palavra“operário” era forte e evocadora. Depois, para dizê-lo um tanto esquematica-mente, quanto mais a classe operária se enfraquece simbolicamente, tantomenos ela consegue se nomear a si mesma, e tanto mais o termo “operário”fica desvalorizado no mercado lingüístico das profissões, justo o contráriodo termo forte e evocador daqueles anos. Na medida em que a classe operá-ria deixa de atemorizar e de falar por intermédio de seus próprios porta-vozes, tanto mais os diferentes formadores de opinião conseguem, para de-signá-la, impor nomes cuja função é eufemizar e “encantar” a realidade dacondição operária, ao mesmo tempo em que essa realidade é vivida de ma-neira cada vez mais dolorosa pelos próprios operários.

Assim, é importante estabelecer a relação entre esse processo de deses-truturação da classe operária e as mudanças ocorridas não apenas no sistemade relações econômicas (eis o aporte da tradição marxista), mas também emoutras esferas da atividade social (escola, moradia, família). Dessa forma, noRetour..., em um primeiro momento, na parte consagrada à fábrica de

lutas de classificação so-cial em torno da repre-sentação dos grupos so-ciais e, portanto, dassuas formas de visibili-dade no espaço público.Trata-se, portanto, dearticular, na análise, aquestão das relações dedominação que se estru-turam nos locais de tra-balho e as lutas simbó-licas, em particular asque se processam nocampo intelectual.

9.Poucas passagens dolivro chamaram tanto aatenção como aquelasnas quais comentamos,logo nas primeiras pági-nas, que os estudantes desociologia estimavam onúmero de operários naFrança em alguns mi-lhares (entre 300 e 600mil). Vários jornalistasnos disseram terem fei-to, de improviso e emuma espécie de jogo, amesma pergunta a seuscolegas de trabalho. Asrespostas foram sempreno mesmo patamar, osnúmeros nunca ultra-passando 1 milhão. Nãodeixa de suscitar umaimensa interrogação ofato da subestimação nonúmero real de operáriosatingir essa amplitude.

10.Os historiadores (E.P. Thompson, W. H.Sewel, G. Noiriel) e,depois, os policólogos

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Sochaux, buscamos colocar em evidência a maneira como as lógicas de do-minação e de exploração se perpetuam ou se renovam no trabalho, podendoser, hoje, ainda piores do que antes11. Certamente, uma questão que jamaispoderia ser apreendida sob o ponto de vista dos gestores e dos managers, eque passa amplamente despercebida pelos autores que fizeram suas pesqui-sas sob a ótica da racionalidade gestionária imperante nas empresas. Emum segundo momento, adotamos uma postura de pesquisa que, na linha-gem das investigações teóricas e empíricas de Bourdieu, indo além dessetipo de abordagem “marxista”, busca levar em conta outras mudanças quenos parecem decisivas, pertinentes às transformações das relações intergera-cionais e à construção da estima de si em um espaço social que, ele próprio,se transforma o tempo todo.

Daí a ênfase, em nossa pesquisa, no que se passa na escola – não nasfileiras mais nobres do ensino, mas em seus segmentos (tornados) desva-lorizados, como é o caso do ensino profissional. Hoje, é possível reconhe-cer: a política voluntarista de democratização escolar – com a legião defalsas aparências – terminou por supervalorizar o ensino geral, que se tor-nou, na boca dos alunos, a “via normal”. No entanto, essa é uma via cheiade emboscadas e armadilhas para os jovens do meio popular, que não têmos “códigos” para o sucesso escolar. As dificuldades da democratizaçãoescolar não tardaram a aparecer aos olhos das famílias envolvidas na novacompetição escolar. Mas apareceram depois, quer dizer, quando seus fi-lhos, aos 22 ou 24 anos, perceberam que os resultados nem sempre cor-respondiam às promessas. Essa política teve também um pesado custopara o mundo operário, pois, sem garantir o sucesso no ensino geral,também acabou privando esses jovens de um apoio que, apesar de tudo,era bastante sólido: o credenciamento escolar e o reforço da confiança emsi operado nas escolas profissionais. Porém, no sistema atual, o que nosparece amplamente subestimado, talvez “esquecido”, pela sociologia daeducação dos anos de 1980 e 1990, pós-Bourdieu-Passeron12, é a emer-gência de uma forma renovada (e desconhecida) de dominação, que setraduz em formas de humilhação escolar e, para os alunos relegados àsfileiras escolares menos cotadas, um sentimento muito vivo de rejeição,de ter sido descartado, colocado de lado (quase que “para toda a vida”).Inútil procurar mais longe a origem da “violência escolar” de hoje. Fun-damentalmente, ela se enraíza nesse processo de descarte precoce e debanimento social dos que se deram mal no sistema escolar (a saber, majo-ritariamente, os filhos das famílias mais proletarizadas).

(M. Offerlé, B.Pudal)sempre levantaram, emseus trabalhos, essa ques-tão e trouxeram respos-tas que fizeram avançargrandemente a sociolo-gia histórica da classeoperária. Entre outras, aimportância da lingua-gem para compreendera constituição de umgrupo social.

11.Um pouco como C.Dejours fez com suaequipe de psicodinâmi-ca do trabalho.

12.São trabalhos gran-demente construídoscontra essa sociologiapercebida como “deter-minista” e “derrotista”.Por medo de tratar dequestões como a domi-nação ou as relações declasse na escola, essa novasociologia terminou porse transformar em umasociologia da escola (ouda instituição escolar) ouuma sociologia da ava-liação: uma de suas prin-cipais características é sermuito pouco atenta aoque se passa fora do sis-tema escolar.

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Assim, para compreender as transformações do mundo operário, é pre-ciso ter sempre em mente o quanto isso tem a ver com a relação das famíliascom a escola. Sem fazer disso uma explicação primordial, é certo que, noentrecruzamento dessas mudanças, desapareceu grande parte do que antesfazia o “sentido de classe” dos operários. Os militantes operários do iníciodo século XX eram melhores sociólogos do que se imagina, ao resistir àdifusão da cultura escolar em meio operário, ou então “sem hesitar em semostrar reticentes ou mesmo críticos perante a ‘escola secundária’”. O regi-me de estudos prolongados produziu certo tipo de aculturação escolar noqual o que se perde, entre os “filhos da democratização” (cf. Beaud, 2002),é certa forma de cultura operária, que era em parte feita de atitudes deoposição e disposições rebeldes (para os filhos da fração politizada da classeoperária). A passagem por um regime de estudos prolongados contribuiupara desqualificar a experiência operária e pode produzir efeitos de vergo-nha social entre os alunos “médios”, que são “desaculturados” (perda dacultura operária de origem), mas não verdadeiramente aculturados em ter-mos escolares, flutuando assim entre diversas referências de pertencimento.

As transformações na escola, ocorridas na França a partir do início dosanos de 1980 – desvalorização do ensino profissional e promoção de ummodelo de estudos prolongados no ensino geral, lógica de alternância, au-mento do aprendizado, alongamento da escolaridade etc. –, tiveram, nocorrer do tempo, múltiplas conseqüências, amplamente despercebidas, emespecial no mundo operário. Portanto, a questão das gerações (e a rupturaentre as gerações) é central, e é isso o que permite e nos permitiu articularestreitamente a questão das transformações do trabalho operário, da escola ea crise da herança operária. De fato, o processo estrutural de desvalorizaçãooperária na fábrica foi, ao longo desses quinze anos, redobrado por outrosprocessos de “desoperarização” fora da fábrica, sobretudo por meio de mu-danças nas aspirações escolares e profissionais das famílias operárias, da des-valorização das práticas “tradicionais” que afeta tanto a maneira de educar osfilhos, como também tudo o que poderíamos chamar de “senso de classe”.Em nossa pesquisa, surgiu uma questão que é, hoje, central para as famíliasoperárias: a dificuldade ou a impossibilidade de transmitir uma herança. Àdiferença do que se passa entre outros tipos de família, ainda mais entre asfamílias burguesas, os pais do meio operário parecem não mais saber o quêtransmitir a seus filhos, seja no plano individual, seja no plano familiar oucoletivo. Essa situação é portadora de um forte dilaceramento no interiordessas famílias.

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Mas qual herança operária? Sobretudo, assim nos parece, uma herançapolítica. Por muito tempo, era própria dos operários a possibilidade detransmitir essa herança. Seria mesmo possível dizer que o “orgulho operá-rio” procedia, em grande parte, dessa herança política. É claro, não se tratade dizer que esse orgulho desapareceu inteiramente. Dele ainda sobrarambelos vestígios em certos ramos profissionais (o que resta dos operários grá-ficos, dos ferroviários, dos operários altamente qualificados...), da mesmamaneira como existem formas de solidariedade de chão de fábrica ou deseção. Poderíamos também nos perguntar se não subsiste uma herança pro-priamente operária, institucional e política – uma herança objetivada – quepode ser utilizada, reativada, como podemos ver, agora, com a criação re-cente de seções sindicais em algumas das novas pequenas ou médias empre-sas de subcontratação implantadas na região de Montbéliard.

Com essa questão da herança operária, o livro também trata da questão daautonomia simbólica do grupo operário. É aí que se encontra a questão dopapel dos operários profissionais (OP) na unificação do grupo operário e navalorização de certo tipo de experiência operária13. Os OP tinham, com ousem razão, um forte sentimento do seu valor, em função de sua própria profis-são (uma formação propriamente operária, o certificado de qualificação, ovirtuosismo manual, os estágios, a agilidade, o gosto ou o dom da bricolagem,o trabalho das “mãos” etc.), e, de outro lado, por força da fé por eles assumidanos valores do socialismo.

As transformações do trabalho operário: o que o campo faz “ver”

Ao realizar nossa pesquisa, pudemos constatar, de partida e logo no seuinício, uma imensa defasagem entre, de um lado, o que observávamos nocampo – a intensificação do trabalho, essa espécie de guerra social no inte-rior das fábricas em nome da exigência de ganhos de tempo e de produtivi-dade, a violência cotidianamente sentida pelos operários etc. – e, de outro,a representação dominante então corrente sobre a realidade operária – aconversão ao neo-management, a robotização e as novas tecnologias que pa-reciam fazer desaparecer, por milagre tecnológico, a velha e incômoda ques-tão operária14. Não podíamos deixar de nos espantar com a imensa defasa-gem entre o que então diziam os porta-vozes do mundo operário (sindicalistasdos escalões mais elevados, os delegados permanentes etc.) e o que a “base”vivia, sua dificuldade cada vez maior de dizer o que havia a ser dito e, sobre-tudo, a dificuldade de ser ouvida, inclusive por aqueles que poderiam ser

13.Certamente, essetema precisa ser situadosob a perspectiva da his-tória da classe operária.A respeito, ver o novoprefácio de Noiriel(2002) à reedição de seulivro, já um clássico.

14.Encontramos-nosna mesma posição deNoiriel (2002), historia-dor, quando evoca omomento em que come-çou sua pesquisa sobreLongwy, em 1979: “Nocurso da luta de [Lon-gwy], de 1979-1980,espantei-me com a am-plitude do sentimentode incompreensão queos operários em greve en-tão exprimiam. O dis-curso dos porta-vozesexteriores (sejam osgovernantes, dirigentessindicais ‘recentrados’,jornalistas, sociólogos ououtros) ilustrava sua ig-norância sobre as reali-dades sociais e históricaslocais. Disso tirei a con-clusão de que a melhorajuda que eu poderiaoferecer aos dominadosconsistia não em falar emseu lugar, tampouco afir-mar peremptoriamenteo que seria necessáriofazer para resolver os‘seus’ problemas. Maismodestamente, tratava-se de me empenhar emexpor a lógica de suaspráticas sociais para ten-

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tomados como seus defensores naturais (“históricos”). De fato, o mundooperário, desde o início dos anos de 1960, sempre se sustentou em doispilares: a CGT (Confederação Geral do Trabalho) e a CFDT (ConfederaçãoFrancesa Democrática do Trabalho). A CFDT representava todo um ladodo mundo rural, que havia, com freqüência, passado pela JOC (JuventudeOperária Cristã). Na medida em que a CFDT começou a se afastar emdireção a outras paragens, o mundo operário terminou por perder uma desuas forças de sustentação. E isso desestabilizou profundamente o sindica-lismo operário que se alimentava dessa rivalidade, mas também da emula-ção entre a CGT e CFDT.

Mas é preciso também dizer – e enfatizar – que essas questões só pude-ram e só poderiam ser apreendidas com base numa pesquisa empírica, so-bretudo de longa duração, com presença prolongada no meio social pesqui-sado. A tomar como ponto de partida as questões abstratas tais como foram“trabalhadas” pela sociologia das classes sociais15 (em particular, na França,a sociologia da “classe operária”), preferimos nos lançar, desde o início, emuma análise do material do campo. Procuramos encontrar o ponto de vistada experiência operária, as visões de mundo (e também as práticas), fazendoouvir, o mais possível, certa palavra operária.

Na nova paisagem ideológica dos anos de 1980, muitos foram os soció-logos ou economistas do trabalho que tomaram por tema a modernizaçãodas empresas, mais precisamente a informatização da produção, as novasformas de organização do trabalho e de gestão da produção (fluxo-contí-nuo, just-in-time, flexibilidade e exigências de qualidade) difundidas nasempresas francesas nos últimos quinze anos. Por mais interessantes que seapresentem, essas análises são, no entanto, caracterizadas por um economi-cismo implícito e, com muita freqüencia, pela ausência de uma verdadeiraperspectiva histórica (notadamente do ponto de vista da história dos gru-pos profissionais e sociais). Quisemos estudar a forma como as transforma-ções da organização do trabalho foram vividas, no correr dos anos, pelo“grupo” dos operários no próprio chão de fábrica, sem omitir, no entanto,os diversos pontos de vista sobre nosso objeto. Por meio de entrevistas apro-fundadas, procuramos situar no centro de nosso dispositivo de pesquisa arestituição dos diferentes pontos de vista dos assalariados, em particular dosoperários das seções de carroceria da fábrica de Sochaux. A reflexão sobre otrabalho operário não pode ser isolada das condições concretas nas quais seefetua a cooperação operária: o trabalho operário supõe formas de coopera-ção, a construção de relações coletivas, de onde a valorização da auto-ajuda

tar explicá-la aos que nãoa compreendem porquenão a vivenciam; o quesupõe uma proximida-de geográfica e socialcom o universo tomadocomo objeto de estudo”.

15.Em boa medida, es-sas questões, tais comoformuladas, pareciamconter o risco de nos fe-char em um debate pré-construído, em que asrespostas já estão previa-mente dadas. O que nãoquer dizer, longe disso,que sejam desprovidasde sentido. Mas conside-ramos que deveriam serretomadas com base emum material empírico.

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e da solidariedade16. Mesmo que essas “realidades” tenham sido deturpadas(pela gestão dita “participativa”), não deixaram de ser menos incontornáveis.Tratamos, portanto, de lidar com os diferentes temas desenvolvidos pelospesquisadores nos anos de 1990, porém sob outras perspectivas e ocupandolugares distintos no universo político. A pesquisa monográfica permitiaabordar sucessivamente objetos muito diferentes, dando, assim, uma visãocaleidoscópica do mundo operário local. Por outro lado, tratávamos de se-guir as coisas no tempo: apenas dessa maneira é possível apreender os dife-rentes ritmos e as diversas temporalidades sociais. É a combinação dessesdois procedimentos de pesquisa que permite dar espessura – temporal e“humana” – ao material pesquisado. Eis o que também permite refletirsobre aquilo que poderíamos chamar, em um primeiro momento, de “defa-sagem” e, em seguida, indagar a respeito dos grupos que permitem que algocomo um “ajustamento” ou equilíbrio possa se produzir.

As transformações do mundo operário no âmbitode um capitalismo selvagem renovado

A partir de 2001, a situação de desemprego em massa e de precariedadeapenas se agravou. A desmoralização do grupo operário ficou ainda maisacentuada. E isso se manifestou por inteiro no primeiro turno das eleiçõespresidenciais de abril de 2002: mais marcante do que o voto operário em LePen, foi o enorme crescimento do abstencionismo. A única, e notável, in-versão de tendência foi o fato de que os operários passaram novamente parao centro das atenções públicas, ganharam atualidade, em função do recentefechamento selvagem de fábricas e das demissões em massa que então seseguiram. Filmes (ficção ou documentários17) e livros sobre a condição ope-rária são cada vez mais freqüentes. Talvez essa retomada de interesse sejaparecida com a que desperta a “beleza do morto”. De toda forma, vale insis-tir em alguns pontos das tendências recentes.

Além do medo do desemprego e da precariedade, verdadeira espada deDâmocles sobre a cabeça dos assalariados menos escolarizados, nesses últi-mos anos vem se acentuando a agressão social sobre os operários: demissões“econômicas”, aumento dos acidentes de trabalho, disparada das doençasprofissionais derivadas da aceleração desenfreada das cadências do trabalho(os médicos do trabalho têm dado, sem sucesso, o sinal de alarme sobre esseproblema de saúde pública), competição institucionalizada entre assalaria-dos, novas formas de dominação no trabalho, culpabilização dos assalaria-

16.É possível, aqui, re-tomar a análise sintéticaproposta por Pudal(2001, p. 517): “Sen-do uma relação com amatéria, o trabalho ope-rário supõe tambémuma relação coletiva,uma eficaz ciência dacooperação e do grupo.Daí esse culto da solida-riedade, da auto-ajuda,da camaradagem, basecomum de sustentaçãodo militantismo operá-rio e de numerosas ou-tras práticas de classe.Jogo, festa, atividadesvárias, linguagem: a lin-guagem operária se ca-racteriza pela riqueza deléxicos da profissão etambém por um uso ex-tensivo de figuras e me-táforas relativas ao cor-po, quase sem recorrer àeufemização que é umaforma de se colocar adistância. Exprime-sede preferência por meiode certos gêneros, comoa piada ou a gozação,bem como mediante re-pertórios anedóticosque tematizam a vidade classe e dela extraemlições de forma menosrígida que os ditados eprovérbios.

17.Por exemplo, o livroRetour... serviu de “guia”para o filme de PatrickJan, “Ouvrier, c’est pasla classe” (Operário, não

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dos, pressão moral etc. Entre as empresas de equipamentos automobilísti-cos, tipo-ideal dos novos dispositivos produtivos celebrados pela imprensagerencial, essas situações se repetem de forma evidente e o quadro das con-dições de trabalho é extremamente sombrio. Quanto às pequenas e médiasempresas, o seu desenvolvimento vem trazendo um verdadeiro florescimentode novas formas de sweat shop18 isoladas em zonas rurais desertas ou emnovas zonas industriais afastadas da cidade e de suas redes de sociabilidade,interditadas à visão externa.

Desde 1999, os traços do capitalismo acionário, ou melhor, de um ca-pitalismo selvagem renovado (os “patrões delinqüentes” – licenciamentosselvagens, sem plano social e escassa consideração pelos direitos do traba-lho, desprezo pelos sindicatos, aniquilamento dos assalariados mais vulne-ráveis, caça aos doentes e licenciados, aumento das doenças profissionais)suscitam a interrogação: nesses anos mais recentes, haveria o retorno deuma forma de experiência comum, um sentimento partilhado e intenso dedespossessão? Questão pertinente não apenas aos operários pouco ou nadaqualificados, mas também a muitos dos empregado(a)s e frações qualifica-das do grupo operário, antes mais próximas das classes médias. Como dizDanièle Linhart,

[...] o sentimento de exploração, que sempre foi a base da identidade operária, persiste;

há um profundo sentimento de injustiça, porém vivido como sentimento privado, sem

conseguir ganhar forma em termos coletivos. No entanto, trata-se de destinos coletivos.

Para todos, a centralidade do emprego aparece de forma dramática após uma demissão:

além da perda do emprego, o selo da obsolescência que os atinge e a desqualificação

profissional, social e pessoal. Percebem muito bem o sentido desse “mundo moderno”

ao qual são remetidos: o mundo da adaptabilidade, da competitividade, da assim

chamada iniciativa individual, em que cada trabalhador é constrangido a fixar ele

mesmo os objetivos e obter de si o melhor rendimento possível. Na realidade, esse

suposto mundo moderno significa a desqualificação de populações inteiras (Linhart e

Pialoux, 2004).

Para além dessas evoluções negativas, é preciso também ter em mente oque dizem muitos dos operários entre 40 e 50 anos (os “antigos” nas fábricas),a saber: o que eles chamam de “antiga moral operária” foi de algum modocorrompida pelas novas formas de gestão nas empresas. Esse é um ponto quenos parece essencial, muito freqüentemente despercebido nas análises sobreo mundo operário, apenas porque muitos jornalistas e sociólogos desistiram

é a classe), 2002. Roda-do em Sochaux no mo-mento de uma retoma-da econômica, em 2001,constitui um preciosodocumento para com-preender a nova paisa-gem industrial da região,o pleno emprego precá-rio e as relações entre asgerações operárias.

18.Designação para fá-bricas ou oficinas quemantinham, na Revolu-ção Industrial, um ritmoextremamente intenso,fazendo o operário ouoperária trabalhar mui-tas horas ao longo deuma jornada, sem des-canso e ganhando mui-to pouco. Literalmente,a expressão poderia sertraduzida como “sua-douros”.

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de verificar o que se passa nesses locais de trabalho subtraídos dos olharesexteriores19 (cineastas documentaristas vêm tentando, por vezes, ocupar olugar dos sociólogos para forçar a entrada nesse universo). Mas ainda não seavaliou suficientemente o medo, a multiplicação de formas de pressão, a ne-cessidade de se desrecalcar sobre os outros... Para compreender o caráter deprotesto desesperado que muitas vezes assume, nos meios populares, o votona Frente Nacional, é preciso considerar essa degradação multiforme das con-dições de trabalho, a forma máxima da insegurança da qual tanto se fala.

Nos últimos vinte anos, o que desapareceu de todo foi a figura do “traba-lhador” – orgulhoso de seu trabalho e de sua contribuição à produção – ou ado operário, apoiado e sustentado pela “classe”, portadora de história e deesperanças políticas. Outra imagem foi construída, a do “assalariado da pre-cariedade” (Paugam), do operador, do operário maleável e usado conforme asconveniências de cada momento, reduzido à sua condição de operário inter-cambiável, sem consciência de si. É possível ver, no voto do 21 de abril de2002, uma revolta da França laboriosa, a que trabalha duro cada vez mais paraganhar cada vez menos (o salário mínimo como horizonte insuperável dosalário operário?), essa França que foi formada na antiga moral do trabalho ecujos rudimentos de moral popular bastavam para ditar uma linha de condu-ta, uma “conduta de vida”, como diria Max Weber (esses valores morais con-siderados simples: trabalho, honestidade, respeito pelos outros, posse de al-guns bens). É preciso insistir sobre a incapacidade dos responsáveis políticosem medir o que a precariedade significa concretamente para as famílias popu-lares20: encolhimento do horizonte temporal, redução das possibilidades deprever e calcular o futuro (essa previsibilidade e calculabilidade foram histo-ricamente comportamentos característicos das frações operárias que se desta-caram do “subproletariado”), medo e inquietação em relação à saúde, exposi-ção crescente aos riscos de trabalho.

Um mundo operário desarmado

Lembrete histórico: na França, a politização operária passou fundamen-talmente pela mediação dos militantes. Agora, esses militantes são cada vezmenos numerosos. A espécie de guerra social desenvolvida nesses últimosvinte anos para reduzir o movimento operário trouxe seus frutos, em grandeescala. A batalha travada nas empresas para atingir, desmoralizar e demitiros “delegados” – esses empecilhos à tranqüila exploração da mão-de-obra –foi muito bem-sucedida, até mesmo além das esperanças patronais (a ponto

19.Para uma descriçãoparcial desses universos,ver Pialoux e Beaud(2003).

20.Em seu Carnets d’uninterimaire, DanielMartinez (2003) ofere-ce um apaixonante tes-temunho, escrito emprimeira pessoa por umtrabalhador temporáriocom pouco mais de 40anos, da região de Bor-deaux.

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de que, hoje, se lamenta a ausência de representantes sindicais). No entan-to, nos salões da República, isso é algo que ninguém quer reconhecer, ape-sar dos gritos de alarme lançados pelos inspetores de trabalho. Os pedidosde socorro dos sindicalistas de empresa mal foram ouvidos. Então, por quetamanha indiferença? Por certo, há razões conjunturais. Porém, mais funda-mentalmente, trata-se de uma enorme incompreensão do que representouessa figura social do militante operário e um não menor desconhecimentodo papel e da função social dos “delegados” nas fábricas. É possível ver nissouma forma de desprezo social em relação ao delegado operário. E seria tam-bém possível dizer que esse desprezo tem uma história intimamente ligadaà do PCF, a seu êxito histórico: assegurar uma representação operária encar-nada nos eleitos do povo21, impor aos “dominantes” a presença operária nacena pública. Ao destruir os antigos bastiões industriais e um amplo seg-mento do grupo dos operários profissionais, a crise pulverizou a representa-ção operária em grande parte garantida pelo PCF e pela CGT, mas tambémpela CFDT e pelas diferentes correntes do catolicismo de esquerda. Nocurso desses anos de modernização conservadora, essa quase revanche declasse se expressou no plano simbólico mediante um empenho sistemáticode desvalorização dos representantes operários (para tomar apenas um exem-plo, o modo como os sindicalistas foram caricaturados no Les guignols del’info22 nos anos de 1990).

É preciso dizer com todas as letras: o enfraquecimento do mundo operáriotem causas que não se reduzem apenas à dimensão econômica, às causas “ob-jetivas”, como se diz. Explica-se também por transformações importantes naimagem construída de si mesmo, que tem estreita relação com transforma-ções do campo intelectual. Para dizê-lo de modo brutal: o movimento operá-rio foi também desarmado por análises semi-esclarecidas e pela cegueira nãoapenas dos intelectuais mediáticos, mas também de pesquisadores sorvidospela “modernidade”. Nesse quadro, não se pode deixar de considerar o queocorreu no seio do PS (Partido Socialista) e da CFDT. Esta última operouuma guinada de orientação motivada em grande medida por uma falsa profe-cia – o desaparecimento inelutável dos operários – e por uma visão olímpicado movimento operário, com base na rejeição de tudo o que poderia lembraras atitudes “classistas” da CGT. De fato, a doxa de ampla circulação nas altasesferas da esquerda intelectual proclamava que os operários são arcaicos, têmuma mentalidade ultrapassada, não conseguem ou não querem se adaptar aosnovos tempos, e seriam simplesmente marginalizados na medida em que anova terceira revolução industrial anunciava a sua rápida extinção. Na relação

21.Sobre essa questão,ver o livro fundamen-tal de Bernard Pudal(1989).

22.Emissão satírica demarionetes difundida nacadeia televisiva francesa,fazendo a caricatura donoticiário dos principaistelejornais.

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que o PS e a CFTD mantiveram com o movimento operário, pesou de modoconsiderável certa obsessão anticomunista, que chegou à exasperação entrealguns intelectuais orgânicos da CFDT. No seu conjunto, tudo isso teve umpapel importante no modo como os operários se viram desarmados intelec-tualmente, “empurrados para o recuo” justo no momento de encetar comba-tes decisivos. Trata-se, aqui, de uma desqualificação bem francesa do mundooperário, que se realiza por meio da tentativa de liquidação das “vantagenssociais”, materiais e simbólicas, das lutas operárias de um período de PCFforte, de uma CGT potente, de uma CFDT operária. Mal ou bem, o sistemade representação dos anos de 1950 e 1960, que se pode qualificar de “stalinis-ta”, assegurou à “base” operária uma notável qualidade moral e uma forteautonomia simbólica, e foi capaz de produzir militantes de estatura, que “seimpunham”. Mas tudo isso foi esquecido, é agora visto como peças de museuda História.

O descolamento das classes populares no espaço social

A desvalorização do grupo operário deve ser analisada tanto objetiva-mente, por intermédio de indicadores econômicos (salários, renda, bens,trajetória dos filhos), como relacionalmente, isto é, por referência à situaçãodos outros grupos socioprofissionais que também compõem o meio popu-lar. É preciso levar em conta a constelação dos outros grupos sociais com osquais os operários coexistem e com os quais comparam suas condições deexistência, notadamente os pequenos funcionários, os operários das empre-sas estatais, os funcionários municipais etc. Nos últimos vinte anos, produ-ziu-se um duplo movimento: primeiro, o “descolamento” das classes popu-lares no espaço social; segundo, uma clivagem cada vez mais acentuadaentre, de um lado, sua fração numericamente mais importante, ligada aosetor privado (os operários fabris, os empregados de serviço), sempre maispressionada e submetida ao “chicote” do mercado e às arbitrariedades dos“chefes” nos locais de trabalho, e, de outro, a fração do setor protegido nomercado de trabalho, que mal ou bem se beneficia de uma segurança deemprego, que é fortemente sindicalizada e a qual consegue defender-se (fer-roviários, empregados dos correios, operários das empresas estatais, peque-nos funcionários). Disso resulta uma rivalidade crescente no espaço social,perceptível nas conversas e nos comentários crivados de pesada ironia críti-ca, que circulam entre os primeiros, muito freqüentemente tendo em miraesses que são considerados os “privilegiados” nos serviços públicos. Quer

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nos parecer que houve uma interpretação exagerada da greve dos ferroviári-os de 1995. Por certo, ela foi importante, conseguiu vitórias e impôs asuspensão temporária dos projetos da direita. Porém, não chegou a se di-fundir no setor privado, e beneficiou pouco ou quase nada os demais operá-rios. Pode ser que tenha existido um sentimento de greve por procuração,mas de fato não houve greves no setor privado. Por outro lado, terminoupor colocar em evidência a distância crescente das condições entre os doisgrupos e forneceu uma medida da enorme vantagem da garantia de empre-go. Os operários das empresas públicas escaparam da lógica da concorrên-cia que atingiu fortemente os trabalhadores do setor privado. É como se amecânica de difusão dos benefícios sociais, do ganho das lutas que antesunificava e homogeneizava relativamente as classes populares (cf. o casosempre evocado dos operários da Renault), tenha sido sustada nas duasúltimas décadas.

Por conseguinte, as lógicas de identificação, apoiadas em uma crença noprogresso, que por muito tempo contribuíram para a unificação das classespopulares, não podem mais se desenvolver como antes. Elas estão travadas,em pane, como o antigo sistema de promoção operária. Na configuraçãosocial do pós-guerra, existia um sistema de promoção que, hoje, está intei-ramente rompido. A reestruturação das empresas permitiu contornar asantigas fortalezas operárias, levou à atomização da mão-de-obra nas peque-nas e médias empresas, quase sempre subcontratadas, e terminou por fazersurgir um mundo marcado pela clivagem entre, de um lado, os técnicos e,de outro, os operadores sob pressão constante e em permanente concorrên-cia nos postos de trabalho. Hoje, não existe mais uma elite operária. Osnovos operários qualificados têm um perfil técnico e suas aspirações voltam-se sobretudo para as classes médias, tentando se diferenciar de tudo o quepossa evocar ou lembrar a “condição” operária (recusam a palavra “operário”para se autodefinir). No início da década de 1990, os operários com diplo-ma técnico ainda conseguiam se identificar com os operários profissionais(eram “franceses”, tinham estudado, eram relativamente orgulhosos de seusdiplomas e, por vezes, assumiram combates comuns, como no caso da grevede Belfort-Alstom, de 1993). Mas as coisas evoluíram depressa: esses diplo-mas foram desvalorizados e os liceus profissionais são cada vez mais freqüen-tados pelos jovens mais desqualificados socialmente, em grande parte filhosde famílias imigradas. Por outro lado, o sentimento de descolamento e dedesclassificação é tão forte que essas frações inferiores do grupo operário sesentem enganadas pelo Estado Providência e ameaçadas pela sua proximi-

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dade, objetiva, com os “excluídos” e os Rmistes23. Daí também a preocupa-ção em se diferenciar desses últimos, muitas vezes acusados de “falsos de-sempregados” ou “preguiçosos”.

A recorrência do expressivo desempenho eleitoral da FN (Frente Nacio-nal)24 nos últimos quinze anos serve de prova: um racismo duradouro seinstala no mundo das classes populares francesas. Ele existe de formas di-versas: desde aquele declarado e assumido, até aquele negado ou oculto.Mas é um racismo que muito dificilmente irá diminuir. De um lado, nomeio operário, é alimentado pelo sofrimento no trabalho e pelo “medo” (dodesemprego, da desclassificação, do futuro). De outro, é um racismo maci-çamente legitimado pelo desempenho eleitoral da FN, portanto aberto,declarado, às vezes ostensivo. É um racismo também alimentado pelos acon-tecimentos do Oriente Médio, cujas repercussões são imediatas na vida dasperiferias, mais ainda nos conjuntos habitacionais. É preciso interrogar-sepelas razões dessa queda parcial do tabu do racismo nos meios populares(por certo existe um racismo ideológico, que é bem diferente, praticadopela extrema-direita nacionalista, e do qual não tratamos aqui). São ques-tões complexas, que merecem um exame etnográfico detalhado, mas quedevem ser analisadas à luz de um duplo processo: primeiro, a “transferênciada memória” e o impensado da questão colonial na sociedade francesa; se-gundo, as formas concretas do racismo antimagrebino e do contra-racismoque surgiu em reação nesses últimos vinte anos.

Merece igual atenção o voto da juventude popular na FN – no segundoturno das eleições de 2002, 21% na faixa dos 18 aos 24 anos, 22% entre os 25e os 34 anos. Para compreender esse voto, é preciso levar em conta questõespertinentes à socialização escolar e residencial. Esses jovens que votaram naFN freqüentemente passaram pelas fileiras mais desvalorizadas do sistemaescolar e, nas escolas, se viram confrontados com os jovens dos conjuntoshabitacionais e que têm, a seu favor, a força do número. Sentiram-se em mi-noria e foram, por vezes, roubados e agredidos. São os mesmos que, quandoadultos – operários, precários ou desempregados –, se encontram em situa-ção de concorrência com eles; alguns podem tender a se vingar das humilha-ções sofridas na escola e no espaço público por um voto cada vez menos camu-flado na FN. Por outro lado, parte da explicação também pode estar no fato deque esses jovens, tendo crescido nos loteamentos destinados à moradia pró-pria, a partir de certo momento perceberam que a fuga dos conjuntos habita-cionais e a “redenção” residencial pelo acesso à propriedade não significamuma total ruptura com os problemas das periferias25.

23.Forma abreviada ecorrente para designar osbeneficiários de um am-plo programa de rendamínima de inserção alo-cado aos chamados “no-vos pobres”, implantadona França no final dosanos de 1980 (N. T.).

24.Partido de extrema-direita fundado porJean-Marie Le Pen em1972 e que passa a ga-nhar força política e elei-toral no correr dos anosde 1980 (N. T.).

25.Problema que se co-loca na medida mesmaem que o acesso à pro-priedade e a urbanizaçãoperiférica se difundemcada vez mais entre asfamílias migradas quequerem fugir dos con-juntos habitacionais. Osgeógrafos, por ocasiãodas eleições de abril de2002, verificaram umacentuado aumento dovoto na FN nas zonasperiféricas da “terceiracoroa” parisiense (Oise,Eure e Loir). Seus habi-tantes avaliam, agora, ocusto econômico e socialdo acesso à propriedadee se dão conta de quenem por isso se viramlivres dos problemas so-ciais que quiseram evitarao deixar a periferia.

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Stéphane Beaud e Michel Pialoux

Finalmente, é preciso voltar atrás e também levar em conta o que se pas-sou, nessas duas últimas décadas, na escola e na relação entre os educadores eos operários. De fato, criou-se uma enorme distância entre esses dois univer-sos: parte considerável dos educadores ignora inteiramente a transformaçãodo trabalho nas fábricas, tem representações equivocadas sobre a vida operá-ria, um número crescente deles parece estar à distância da tarefa emancipató-ria antes assumida como sua missão e alguns chegam a desenvolver, nas esco-las “difíceis”, um discurso bastante reacionário (cf. o sensível deslizamento àdireita do voto dos educadores no primeiro turno das eleições presidenciais).De outro lado, os operários entrevistados em nossas pesquisas tendem a umapercepção cada vez mais negativa dos educadores: são vistos como “pequenosburgueses” instalados em sua história e em seu conforto material, indiferen-tes à sorte dos mais desfavorecidos, com uma irritante tendência a “dar liçõesde moral”. É bem relevante o que está em jogo nessa relação entre educadorese operários: a decepção em relação à escola e as desilusões com a chamadapolítica de democratização do ensino terminaram por alimentar uma pro-funda desconfiança em relação aos ideais de esquerda, ao mesmo tempo emque os educadores não se consideram mais, “naturalmente”, como “esclarece-dores”, intermediários culturais encarregados de transmitir uma culturamoral e política aos jovens das classes populares.

Conclusão

O grupo operário é um grupo social com perda de velocidade, cujos mem-bros, individual e coletivamente, têm a impressão de terem sido, ao mesmotempo, as vítimas e os enganados da história recente. Vale dizer que muitosdos operários eleitores da FN se declaram, no entanto, de “esquerda”. Hánisso justamente o peso dessa decepção e, para os mais engajados (algunsmilitantes), um sentimento muito intenso de “traição”. É preciso, portanto,enfatizar o chão social no qual se enraíza o voto operário nos extremos: a fundadesestabilização das antigas identidades operárias. Os acontecimentos dacena política nesses últimos vinte anos não são mais do que a tradução desseprocesso central que é a perda da sustentação da “classe” para os operários.Além de lhes assegurar proteção social, ela possuía uma enorme força de iden-tificação. Essas lógicas e esses modelos de identificação foram rompidos.Estamos assistindo a um embaralhamento completo das oposições que estru-turavam o mundo operário, e a mais forte delas era aquela que separava obje-tivamente os operários qualificados dos não-qualificados. Na medida em que

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se desfazem as forças de identificação coletiva (os militantes de fábrica, asassociações locais, os partidos) e que o grupo operário, disperso no espaçogeográfico, se vê confrontado com o mundo das classes médias nas zonasresidenciais, cada vez mais os operários tendem a se identificar socialmentepor meio do consumo (a casa, o automóvel, as férias, as marcas de roupa etc.)e são, por isso mesmo, “trabalhados” pelo fantasma da desclassificação social.Tais processos de desestruturação do grupo operário e, mais amplamente, dasclasses populares são fenômenos de envergadura. Não basta tomar consciên-cia do problema a fim de amortecer seu impacto, muito menos a denúnciamoral. Será preciso reduzir a distância ou refazer as pontes entre as fraçõesprogressistas da classe média e as classes populares, sobretudo pela reduçãodos diferenciais de salário entre os funcionários e os assalariados manuais,protegendo o mundo do trabalho contra os efeitos de implosão das novasformas de capitalismo selvagem, bem como recuperando o poder emancipa-dor da escola.

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Resumo

Rebeliões urbanas e a desestruturação das classes populares (França, 2005)

Tomando como ponto de partida a rebelião urbana ocorrida na França em outubro-

novembro de 2005, os autores chamam a atenção para o que consideram novidade em

relação às outras ocorridas na França nas últimas décadas: a participação de jovens “ordiná-

rios”, por vezes bem situados no sistema de ensino e integrados no mercado de trabalho,

porém quase sempre em situações precárias e instáveis, sem chances de evoluir socialmente.

Evidência primeira de uma profunda degradação das condições de trabalho nos últimos

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Stéphane Beaud e Michel Pialoux

anos, os autores tecem um quadro social em que se articulam desemprego, trabalho precário

e fechamento de horizontes de futuro, situações de fracasso escolar e agravamento da

segregação urbana, junto com formas abertas de racismo que atingem diretamente os

jovens filhos de famílias imigrantes, em boa parte moradores dos conjuntos habitacionais.

A questão proposta pelos autores é a necessidade de inscrever esses acontecimentos no

quadro mais amplo da desestruturação das classes populares francesas, ou seja: a questão

importante a ser compreendida é a condição operária “após a classe operária”. Os autores

retomam discussões de seu livro Retour sur la condition ouvrière (1999), com o agravamento

da condição operária nos anos mais recentes, da qual os sinais de racismo no meio operário

são ao mesmo tempo sintoma e efeito.

Palavras-chave: Rebeliões urbanas na França; Decomposição da classe operária; Ruptura

de gerações; Degradação da condição operária; Dessolidarização das classes populares.

Abstract

Urban revolts and the destructuring of the working class (France 2005)

Taking as a starting point the urban revolts that exploded in France in October-November

2005, the authors call attention to a new aspect distinguishing these events from other

forms of civil protest in France during the last few decades: the involvement of ‘ordinary’

youths, often well placed within the educational system and integrated in the work mar-

ket, but almost always in precarious and unstable situations, without chances to evolve

socially. Providing primary evidence of a profound deterioration in working conditions

over recent years, the authors describe a social setting that combines unemployment,

precarious work and the closure of future prospects, failures in schooling and the worsen-

ing of urban segregation, alongside open forms of racism that directly affect the young

children of immigrant families, in large part residents of housing estates. The question

proposed by the authors is the need to locate these events within the broader setting of the

destructuring of the French working class. The key question to be understood is the

working condition “after the working class.” The authors resume discussions found in

their book Retour sur la condition ouvrière (1999), analyzing the worsening of working

conditions in more recent years and noting that the signs of racism in the working class

environment are both a symptom and an effect.

Keywords: Urban unrest in France; Decomposition of the working class; Rupture of

generations; Degradation of working conditions; Loss of working class solidarity.

Texto recebido e apro-vado em 10/4/2006.

Stéphane Beaud é pro-fessor de sociologia daUniversidade de Nan-tes. E-mail: [email protected].

Michel Pialoux é pesqui-sador do Centro de So-ciologia Européia,CNRS. E-mail: [email protected].