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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Instituto de Psicologia
Angélica Cantarella Tironi
O que as psicoses ordinárias ensinam?
Rio de Janeiro
2012
Angélica Cantarella Tironi
O que as psicoses ordinárias ensinam?
Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Orientador (a): Prof.a Dra. Marcia Mello de Lima
Rio de Janeiro
2012
CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A
Autorizo apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese. _________________________________ ______________________ Assinatura Data
A663 Tironi, Angélica Cantarella.
O que as psicoses ordinárias ensinam? / Angélica Cantarella Tironi. – 2012.
189 f.
Orientadora: Marcia Mello de Lima. Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Psicologia.
1. Memória social – Teses. 2. Memória autobiográfica – Teses. 3. Aragão, Maria, 1910-1991 – Habilidades sociais. 4. Psicologia social – Teses. I. Vilela, Ana Maria Jacó. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III. Título.
rc CDU 616.89
Angélica Cantarella Tironi
O que as psicoses ordinárias ensinam?
Tese apresentada, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós Graduação em Psicanálise, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Pesquisa e Clínica em Psicanálise.
Aprovada em 25 de julho de 2012. Banca Examinadora:
___________________________________________ Prof.ª Dra. Marcia Mello de Lima (orientadora) Instituto de Psicologia - UERJ _____________________________________________ Prof. Dr. Marcus André Vieira Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro _____________________________________________ Prof.ª Dra. Vera Lopes Besset Universidade Federal do Rio de Janeiro _____________________________________________ Prof.ª Dra. Ana Cristina Figueiredo Instituto de Psicologia - UERJ _____________________________________________ Prof.ª Dra. Heloisa Caldas Instituto de Psicologia - UERJ
Rio de Janeiro
2012
AGRADECIMENTOS
À Marcia Mello de Lima, que me acompanha há mais de uma década no difícil
exercício de escrita. Obrigada pelo seu carinho e por me orientar a encontrar o meu próprio
estilo.
À Heloisa Caldas, pela profícua transferência de trabalho em mais um desafio.
À Vera Besset, pelo espaço de discussão na UFRJ que me permitiu avançar em
direção à Tese.
À Ana Cristina Figueiredo e ao Marcus André Vieira, pela disponibilidade em ler este
trabalho e acrescentá-lo com importantes considerações.
À minha família, que me faz entender a positividade da frase de Lacan “Todo mundo é
louco, ou seja, delirante”. À minha mãe, com quem aprendi o prazer pela literatura, ao meu
pai, pelo amor à transmissão, e ao meu irmão, pelos olhos de orgulho e curiosidade que me
fazem ir adiante.
Aos amigos Carla Panetti, Emerson Moraes, Magda Biassutti Delecave, Maurício
Scalzilli de Souza, Rodrigo Simas e Sandra Falcucci, que cuidaram de nossa amizade
enquanto estive absorvida pelo esforço desta Tese.
Aos amigos e colegas da Escola Brasileira de Psicanálise, pela transmissão da
orientação lacaniana. Em especial, à Elisa Monteiro, Vera Avelar, Maria Ângela Maia e Inês
Autran, por me ensinarem a trabalhar com textos. E para Lenita Bentes, Eliana Bentes, e
Nelson Riedel, pelo Cartel sobre psicose ordinária que me ajudou muito na escrita da Tese.
À FAPERJ, pela bolsa de doutorado que facilitou o empenho em meus estudos.
Enfim, à Lêda Guimarães, pelo apreço ao “Mais-Ninguém”, que me permite percorrer com
segurança o singular do meu delírio.
Estranha relação é a que temos com as palavras. Aprendemos de pequenos umas
quantas, ao longo da existência vamos recolhendo outras que vêm até nós pela instrução, pela
conversação, pelo trato com os livros, e, no entanto, em comparação, são pouquíssimas
aquelas sobre cujas significações, acepções, e sentidos não teríamos nenhumas dúvidas se
algum dia nos perguntássemos seriamente se as temos. Assim afirmamos e negamos, assim
convencemos e somos convencidos, assim argumentamos, deduzimos e concluímos,
discorrendo impávidos à superfície de conceitos sobre os quais só temos ideias muito vagas,
e, apesar da falsa segurança que em geral aparentamos enquanto tacteamos o caminho no
meio da cerração verbal, melhor ou pior lá nos vamos entendendo, e às vezes, até,
encontrando.
José Saramago
RESUMO
TIRONI, Angélica Cantarella. O que as psicoses ordinárias ensinam? 2012. 195f. Tese (Doutorado em Psicanálise) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.
A psicose ordinária se insere em um programa de investigação do Campo freudiano que relê a transmissão de Lacan a partir das ferramentas teóricas de seu último ensino. Ela se apoia na constatação de casuísticas onde não acontece o desencadeamento clássico e ruidoso, tal como o da psicose extraordinária. Ao contrário, a sintomatologia é discreta e exige do psicanalista uma atenção redobrada em relação à referência estrutural de uma psicose clássica.
Partimos da investigação desta clínica estruturalista das psicoses, do primeiro ensino de Lacan, e avaliamos se o significante Nome-do-Pai persiste como operador único no diagnóstico diferencial. Ou se, desde as modificações introduzidas por Lacan a partir da pluralização do Nome-do-Pai, da inserção dos conceitos de lalíngua e falasser, e da valorização do gozo na clínica mais fluída, borromeana, o operador em questão pode ser substituído pelo sinthoma. A categoria de psicose ordinária reconsidera de uma forma diferenciada a foraclusão deste significante a partir do objeto de gozo, e esclarece a pluralidade de significantes-mestres, que falam do sujeito fora do discurso estabelecido pelo Nome-do-Pai.
Em seguida, estudamos dois aforismos lacanianos. O primeiro, “todo mundo é louco, isto é, delirante”, convoca uma clínica ordenada pela foraclusão generalizada, na qual se inscreve algo da ordem de um não orientado. O segundo, o aforismo “a relação sexual não existe”, causa impasse em todos os sujeitos. Ambos requerem a resposta do falasser face ao indizível e a construção de uma saída singular, que não passa de um delírio apreendido em uma positividade. Afinal, se a psicanálise de orientação lacaniana institui que todos os discursos são defesas contra o real, e todas as construções da realidade são delirantes, é necessário que cada um invente um modo de saber-fazer com o real.
Palavras-chave: Psicose ordinária. Pluralização do Nome-do-Pai. Foraclusão generalizada. Clínica universal do delírio.
ABSTRACT
Ordinary Psychosis is part of a research program in the Freudian Field to reconsider Lacanian ideas, specially the theoretical concepts of his last teaching. It is supported by clinical case observations, when there is not a classical and evident triggering, as it happens with extraordinary psychotic cases. On the contrary, symptomatology is discreet and demands from the analyst double attention regarding to a structural reference of classical psychosis.
We start from the investigation of psychotic structural clinic, from Lacanian first teaching, to evaluate if the Name-of-the-Father persists as a unique reference for the differential diagnosis or if it can be replaced by the sinthome, according to the modifications Lacan introduces when he proposes plural names of the father, as well as the concepts of lalangue and speaking being more coherent to a fluid and Borromean clinical evaluation. Such category of ordinary psychosis reconsiders, in a different way, the significant foreclosure in terms of the jouissance object and also clarifies the pluralization of master significants which stand for the subject outside the discourse established by the Name-of-the-Father.
Next, we studied two Lacanian aphorisms. The former, “Everyone is mad, that is, delirious” invites to a clinical approach coordinated by a generalization of foreclosure in which something disoriented is inscribed. The latter, the aphorism “the sexual relation does not exist” causes impasse for all subjects. Both require from the speaking being an answer facing what is impossible of being said and the construction of a singular way out which cannot be positively apprehended as anything else but a delusion. Nevertheless, if Lacanian oriented psychoanalysis institutes that all discourses are defences to the real and all constructions of reality are delirious, it is necessary for everyone to invent their know how to do with the real.
Key words: Ordinary psychosis. Pluralization of the names of the father. Generalization of foreclosure. Clinic of the universal delusion.
RÉSUMÉ
La psychose ordinaire s’inscrit dans un programme d’investigation du Champ
freudien, qui relit la transmission de Lacan a partir des outils théoriques de son dernier enseignement. Elle est assise en la constatation des cas où n’arrivent pas le déclanchement classique et bruyant, comme dans les psychoses extraordinaires. Au contraire, la symptomatologie est discrete, et exige du psychanalyste une attention rédoublé sur la référence structurel d’une psychose classique.
Nous avons parti de l’investigation de cette clinique structuraliste de las psychoses du premier enseignement de Lacan, et nous évaluons si le signifiant Nom-du-Père persiste comme l’opérateur unique dans le diagnostic différentiel. Ou bien, depuis les modifications introduites par Lacan, la pluralisation du Nom-du-Père, de l’insertion des concepts, lalangue
et parlêtre, de la valorisation de la jouissance dans la clinique plus floue, borroméanne, si l’opérateur en question peut être substitué pour le sinthome. La catégorie de la psychose
ordinaire, elle considére de nouveaux et d’une forme différenciée, la forclusion de ce signifiant a partir de l’objet de la jouissance, et elle éclaire la pluralité des signifiants-maîtres, qui parlent du sujet hors du discours établi par le Nom-du-Père.
Ensuite, nous avons étudié les deux aforismes lacaniens. Le premier, “tout le monde est fou, a savoir, délirant”, convoque une clinique ordonnée par la forclusion généralisée, dans laquelle s’inscrit quelque chose de l’ordre d’un non-orienté. Le deuxième, l’aforisme “le rapport sexuel n’éxiste pas”, cause l’impasse en tous les sujets. Les deux aforismes éxigent la réponse du parlêtre à l’indicible, et la construction d’une sortie singulière, en ce sens, un délire positif. Enfin, si la psychanalyse, dans la orientation lacanniene, institue que tous les discours sont défenses contre le réel, et toutes les constructions de la réalité sont délirantes, il faut que chacun invente une manière de savoir-faire avec le réel.
Mots-clefs: Psychose ordinaire. Pluralisation du Nom-du-Père. Forclusion généralisée. Clinique universel du délire.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..............................................................................................13
1 AS PSICOSES NA OBRA FREUDIANA .................................................... 25
1.1 A classificação freudiana das psicoses ......................................................... 26
1.2 O caso Schreber escrito por Freud e retomado por Lacan ....................... 39
1.3 Sobe o diagnóstico do Homem dos Lobos ................................................... 45
1.3.1 As primeiras expressões da neurose infantil ................................................... 48
1.3.2 Histeria de angústia na forma de uma fobia animal ........................................ 54
1.3.3 Uma neurose obsessiva de conteúdo religioso ................................................ 58
1.3.4 A guisa de conclusão ...................................................................................... 63
2 UMA LEITURA LACANIANA DAS PSICOSES ..................................... 67
2.1 Os dois ensinos de Lacan: uma delimitação didática ................................. 68
2.2 A psicose extraordinária na clínica estrutural ............................................ 72
2.2.1 Sobre o desencadeamento de uma psicose ...................................................... 78
2.2.2 Os fenômenos elementares como manifestações da Verwerfung .................... 83
2.2.3 O manejo da transferência em casos de psicose extraordinária ...................... 93
2.3 Lacan e a clínica dos nós ............................................................................. 101
2.3.1 Suplências, suturas e emendas: o sinthoma na análise .................................. 104
2.3.2 Joyce com Lacan ........................................................................................... 109
2.3.3 O objeto a-voz joyceano ................................................................................ 113
3 AS PSICOSES ORDINÁRIAS NA PERSPECTIVA BORROMEANA .120
3.1 Do inclassificável à psicose ordinária ........................................................ 124
3.2 A singularidade, uma condição fundamental ........................................... 126
3.3 O caso único e a arte do diagnóstico em psicanálise .................................129
3.4 Alguns elementos pertinentes às psicoses ordinárias ............................... 132
3.4.1 Neodesencadeamento .................................................................................... 134
3.4.2 Neoconversão ................................................................................................ 140
3.4.2.1 O acontecimento de corpo como índice da neoconversão ............................. 142
3.4.2.2 Os fenômenos psicossomáticos e as neoconversões ..................................... 150
3.4.3 Neotransferência ............................................................................................ 156
3.5 Do Um ao múltiplo ...................................................................................... 160
3.6 As consequências do aforismo “Todo mundo é louco” ............................ 163
4 CONCLUSÕES ........................................................................................... 174
REFERÊNCIAS .......................................................................................... 180
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INTRODUÇÃO
É fácil constatar que atualmente vivemos em um mundo diferente daquele de alguns
anos atrás. A internet e as redes sociais modificam substancialmente a maneira de viver, a
relação com o tempo, a economia de mercado e a arquitetura do laço social, inclusive com o
parceiro, são fatores implicados nessa mudança. Podemos explorar as consequências dessas
questões na atualidade.
Os celulares acoplados à internet são ferramentas cotidianas que facilitam o sujeito
estar sempre atualizado em relação ao mundo globalizado e acompanhar em tempo real as
notícias do planeta. Eles transformam de forma radical o acesso a dados e a documentos, e a
quantidade de informações que chegam o tempo todo a cada um de nós. As redes sociais na
internet agrupam em torno de 29 milhões de brasileiros por mês, ou seja, oito em cada dez
pessoas conectadas no Brasil têm um perfil inserido em algum site de relacionamentos. O
Facebook, por exemplo, lançado em fevereiro de 2004, em apenas oito anos contabiliza mais
de 845 milhões de usuários ativos. Essas redes oferecem uma nova dimensão de acesso às
informações, à produção de conhecimento e ao próprio lazer, na medida em que permitem
realizar negócios, conhecer pessoas e manter contato com amigos.
No entanto, concomitante aos diversos benefícios ofertados por elas, surge um
imperativo que impele o sujeito a ficar sempre plugado para evitar a impressão de estar
perdendo algo. O fluxo constante de informações pessoais cria um paradoxo: ao mesmo
tempo em que ele é necessário para cativar a atenção dos amigos virtuais, pode colocar em
risco a imagem pública do internauta. Significa dizer que, no mundo contemporâneo, o limite
entre o público e o privado se tornou bastante rarefeito, ou seja, ele não é mais como
antigamente.
Estudiosos de diversas áreas como psicanalistas, filósofos, historiadores, sociólogos,
analisam os fenômenos sociais de nosso tempo e destacam a relevância da globalização e dos
desenvolvimentos técnico-científicos para as transformações sociais. Dentre os fatores
responsáveis por essas mudanças, ressaltam a quebra dos valores tradicionais ocorrida no
decorrer do século XX e a busca de êxito e de sucesso promovida pelo discurso da ciência
associado ao discurso do capitalista.
Através da mídia, os dizeres científicos passam a ocupar o lugar da verdade antes
concedido aos valores tradicionais, religiosos, éticos ou políticos. Tomaram seu lugar a
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liberação da sexualidade, o feminismo, o conflito de gerações e os novos vínculos afetivos. Os
antigos valores foram rescritos no triunfo cientificista.
As pesquisas e os índices estatísticos veiculados pelos meios de comunicação alertam
sobre as formas de adoecimento mais comuns em nosso tempo. Investigações recentes
descrevem pormenorizadamente doenças contemporâneas, destacando a síndrome do pânico,
as depressões, as doenças psicossomáticas, as compulsões, o fracasso escolar, etc. São
patologias onde prevalece o excesso, tal como a obsessão nos cuidados com o corpo baseada
em uma preocupação higienista que preconiza a melhora da saúde, e consequentemente, da
qualidade de vida.
Além disso, constata-se um aumento significativo no reconhecimento de doenças
legitimadas pela Classificação Internacional das Doenças Mentais (CID) e pelo Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), que encontra-se em via de
lançamento de sua quinta versão. Ao lado desse reconhecimento, uma série de programas de
orientação em relação a dietas saudáveis e aos cuidados com o corpo, disponíveis a todas as
faixas etárias. Aos que não respondem aos programas, ofertam-se diversos tipos de tratamento
que prometem ser rápidos e eficazes.
Nesse contexto, as psicopatologias contemporâneas são interpretadas como um
fracasso psíquico diante de novos ideais, tais como o mundo idealizado das imagens, o
sucesso profissional, o máximo de eficácia e o culto narcísico. Se o sujeito não atinge os
ideais proclamados pela sociedade, ele se encontra na condição de exclusão e de doente.
Todo o aparato de tratamento dispensado ao sujeito evidencia que a civilização
contemporânea reduziu o sintoma – tal como Freud o definiu – a um transtorno. Ao substituir
as doenças da psiquiatria clássica por transtornos, opta-se pela descrição e pela comunicação
desses fenômenos em detrimento de uma clínica centrada no caso a caso, tal como preza a
psicanálise. Os atuais manuais diagnósticos estão preocupados em constituir uma língua
universal que possa acabar com o mal-entendido próprio à comunicação. Baseados no ideal da
transparência e da precisão, eles pretendem ser um instrumento que associa o máximo da
descrição a uma margem mínima de erro.
Fundar uma prática diagnóstica baseada no consenso estatístico é estar a serviço de
resultados previamente estabelecidos pela lógica do mercado psicofarmacológico. Por meio
dele, o real com o qual o sujeito tropeça – conforme conceituado por Jacques Lacan – é
tratado com medicamentos cada vez mais ajustados. Mesmo assim, este real continua
existindo como resíduo e se torna objeto de tratamentos de apoio por meio de uma escuta
protocolar, de puro semblante, como ocorre na terapia cognitivo-comportamental.
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dos paradigmas edipianos que ordenava a sociedade tradicional e seus efeitos, tais como a
inexistência do Outro como operador simbólico, e, na ausência deste, a elevação do objeto de
gozo ao zênite social. Essas transformações resumem o fato de a época atual não apenas
colocar em evidência a inconsistência do Outro, como também convertê-la em ideal. A
consequência clínica dessa idealização é o fato de encontrarmos loucuras neuróticas e
psicoses atuais em uma proporção bem maior que em outros momentos.
Se pudermos adiantar uma das teorizações que será discutida nesta Tese, dizemos que
a configuração simbólica atual propicia modificações nas sintomatologias, acarretando
dificuldades no diagnóstico clínico. Pois as loucuras neuróticas aparecem caracterizadas pela
elisão fálica, apesar de a inscrição do significante Nome-do-Pai – operador que distingue as
estruturas clínicas – estar presente. Ao lado disso, as psicoses atuais denotam a conservação
da significação fálica, mesmo que o Nome-do-Pai esteja foracluído, o que permite a inserção
do sujeito no Outro social de forma operativa. É o caso das psicoses ordinárias, sobre as quais
trataremos nessa Tese de Doutorado.
A relação do sujeito com o tempo é outro fator que revela uma mudança na ordem
simbólica atual. Estamos vivendo em uma época na qual o imediato impera por meio da
ligação permanente a dispositivos dessubjetivantes, tais como os telefones portáteis e os
sistemas de comunicação virtual que chamam a atenção do sujeito para além do si mesmo,
sem que isso se conclua em laços. As pessoas estão sempre correndo de um lado para o outro,
se queixando que o tempo é escasso para realizarem todos os compromissos listados na
agenda. E quando o tempo sobra, estão tão cansadas que não sabem como utilizá-lo, a não ser
se alienando na frente da televisão ou respondendo às pendências que se acumularam no
mundo virtual.
Trata-se de uma época marcada pela hiperatividade e pela exigência do tempo fixado
no instante de ver. O aumento radical dos transtornos de atenção em crianças e jovens em
período escolar evidencia que eles estão permanentemente agitados, a tal ponto que, em
determinados locais das Américas, um terço da população jovem é diagnosticado como
hiperativo e submetido a tratamentos com o uso de Ritalina. Ao lado dessa agitação, nota-se,
sobretudo nos países asiáticos, o aumento vertiginoso das estatísticas de suicídio entre os
jovens. As chamadas fobias escolares, que antes eram dados marginais da educação, se
tornaram fenômenos de massa em determinadas regiões.
Vale notar que o discurso capitalista associado ao discurso científico interfere de
forma radical na maneira como o sujeito se relaciona com o objeto na atualidade. O comércio
segmenta os compradores e aprimora a apresentação dos objetos expostos nas vitrines das
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supereu como imperativo de gozo. Nesse sentido, é possível concluir que a época da verdade
foi substituída pela época de gozo.
A globalização suscita um afrouxamento do laço do sujeito com o lugar da autoridade
simbólica e acarreta uma maior liberdade para o gozo individual através de uma enorme oferta
de novos serviços e produtos. Consequentemente, o sujeito contemporâneo se vê livre diante
de uma multiplicidade de escolhas em relação às quais necessita tomar decisões. Se
anteriormente ele estava orientado por uma sociedade regida pelo ideal, pelo universal, ao
mesmo tempo coletivista, hoje se sente desorientado em função da multiplicidade que têm ao
seu dispor.
Portanto, sob este fundo de multiplicação infindável, o sujeito estanca frente ao
imperativo sedutor do tudo desejar e ter. No lugar da singularidade, vemos emergir uma
epidemia de angústia que faz as pessoas recuarem a portos supostamente seguros, tais como
as religiões, os livros de autoajuda e a medicina baseada em evidências com sua ideologia de
que na vida tudo tem remédio.
Se no discurso do mestre a verdade do sujeito determina os significantes orientadores,
no do capitalista o sujeito aparece dirigindo suas próprias identificações. Atinge o ponto de
fundar no sujeito contemporâneo uma pretensão mais radical, qual seja, a de poder eleger tudo
sem limitações. Inclusive a aspiração de abolir o determinismo envolve o rechaço de toda
classificação em relação às categorias sexuais, raciais e ideológicas. Esse rechaço acompanha
o desejo do sujeito em se autodesignar à margem de qualquer operação simbólica
estabelecida. Trata-se do sujeito determinando sua própria verdade, ou seja, o triunfo do
narcisismo e a adoração da própria personalidade.
Contudo, evidencia-se um paradoxo. Se no século passado o conformismo implicava
em fazer como todo mundo, atualmente, ao contrário, há uma exigência de cada um fazer ao
seu modo. Ao mesmo tempo em que se exige do homem uma diferença absoluta, uma
invenção para não ser igual a todo mundo, mesmo assim acaba por incluí-lo em um processo
comum. Vale ressaltar que esta invenção, por assim dizer efêmera, é também um modo de
conformismo, uma variante paradoxal do supereu sob medida que faz com que cada um se
dirija ao mais-de-gozar sem o apoio de um discurso que ampare. Portanto, os ideais que
funcionavam como moderadores do modo-de-gozar não predominam nas organizações sociais
como anteriormente, pois eles foram substituídos por uma multiplicidade de ideais que não
produzem identificações orientadoras, ou as fazem de forma bastante frágil.
A psicanálise de orientação lacaniana constata que, frente ao déficit simbólico, os
sujeitos recorrem a identificações imaginárias que operam muitas vezes de forma precária.
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Essa é uma questão atual, pois permite circunscrever alguns fenômenos nomeados de
sintomas contemporâneos. Eles são definidos como expressões desmedidas do mais-de-gozar
inscrito no corpo e que não comportam um efeito de sentido capaz de remeter o sujeito a um
saber. Esses sintomas acarretam dificuldades em relação ao diagnóstico e fazem com que
alguns casos pareçam inclassificáveis.
Os casos inclassificáveis surgem na clínica psicanalítica no momento em que a
inexistência do Outro é sentida de forma nunca antes vista. Eles se tornam o ponto de partida
para a discussão da categoria de psicose ordinária, inventada por Jacques-Alain Miller como
um programa de investigação que tinha como objetivo inicial isolar as especificidades dos
casos clínicos que surpreendiam os analistas em relação ao diagnóstico. Nesse percurso,
perceberam que eles eram mais frequentes do que inicialmente se supunha e, resistentes à
classificação, indicavam um mais além da perspectiva estritamente estruturalista.
A importância da investigação sobre as psicoses ordinárias decorre do fato de que
nessas casuísticas não ocorre o desencadeamento clássico e não estão presentes os traços
comuns das psicoses extraordinárias, tais como os distúrbios de linguagem e as alterações do
pensamento. Ao contrário, as manifestações fenomenológicas são bastante discretas e exige
do psicanalista uma atenção redobrada em relação às referências estruturais das psicoses.
Portanto, a psicose ordinária não deve ser abordada simplesmente pela clínica
fundamentada na foraclusão do Nome-do-Pai; a ela se acrescenta o reconhecimento de
pequenos índices variados de desordem na junção mais íntima do sentimento de vida no
sujeito. Eles são localizados pela forma com que o sujeito se identifica a uma função social,
na maneira que se utiliza de laços artificiais para apropriar-se de seu corpo e na subjetividade,
pela fixidez especial que experimenta o vazio, cuja natureza não é passível de dialética.
Portanto, foi necessário realizar um alargamento da clínica das psicoses que permitisse
questionar o significante Nome-do-Pai como única referência operativa para o diagnóstico
diferencial. Quando se pensava em termos de presença-ausência desse significante, deparava-
se com uma clínica estritamente binária, dividida entre neurose e psicose, respectivamente.
No entanto, a categoria de psicose ordinária permite reconsiderar os efeitos da
foraclusão do significante Nome-do-Pai a partir do objeto de gozo, que Lacan denomina de
objeto pequeno a. Essa categoria evidencia que o Nome-do-Pai não existe a não ser como
predicado, um elemento específico dentre outros que, para determinado sujeito, cumpre a
função de ordenação simbólica e fornece sentido à vida. O Nome-do-Pai passa a ser
considerado um elemento de compensação no qual o sujeito crê para constituir seu mundo e
experimentar a vida com certa estabilidade.
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Quando se introduz uma mudança de estatuto no Nome-do-Pai, a constituição da
ordem simbólica se torna delirante, pois a vida como tal não tem nenhum sentido. Ela
flexibiliza a rigidez da clínica binária e facilita o diagnóstico de casos estruturados por outros
elementos que não sejam os significantes-mestres tradicionais.
Nesse sentido, a noção de psicose ordinária se torna crucial na clínica da atualidade,
visto que novas modalidades de apresentação das psicoses estão cada vez mais frequentes no
dispositivo analítico. Ela permite elucidar que a passagem do discurso mestre ao discurso da
ciência, associado ao do capitalismo, acarretou consequências no tipo de soluções encontradas
pelos psicóticos para fazer face à foraclusão do Nome-do-Pai.
Vale ressaltar que a psicose ordinária não é uma categoria de Lacan, mas uma
ferramenta clínica extraída de seu último ensino, que permite reler os primeiros anos de sua
transmissão. Trata-se de uma maneira epistemológica de abordar a nosografia de acordo com
a definição de sujeito que Lacan fornece após os anos 40, ou seja, o louco é o homem normal.
Além disso, há outra consequência dessa orientação. A enunciação de Lacan, em 1978,
de que “Todo mundo é louco, ou seja, delirante”, sugere uma generalização que abarca mais
além das psicoses. Se todos têm direito ao gozo, o sujeito o busca a seu modo. É a loucura na
época da democracia, no tempo do Outro que não existe, cada um apresenta um estilo pessoal
de tratamento de gozo, contando menos com os suportes tradicionais.
Então, são pertinentes algumas questões, vetores desta Tese. Como definir a psicose
ordinária? De que forma essa nova categoria representa um recurso clínico indispensável na
atualidade? Como diferenciar a psicose ordinária da psicose extraordinária tradicional? A
psicose ordinária pode ser desencadeada? Ou, como sustento nesta Tese, o termo inventado
por Miller só é utilizado quando não houver desencadeamento?
Essa Tese de Doutorado é composta de três capítulos. O primeiro, intitulado “As
psicoses na Obra freudiana”, é desdobrado seguindo o percurso adotado por Sigmund Freud.
Inicialmente ele se ateve em delimitar, não sem dificuldade, as formulações que envolviam as
neuroses e as psicoses como estruturas clínicas diferentes. Isso porque, no período inicial de
sua Obra, centrado no processo de defesa contra as representações incompatíveis, ele insere as
psicoses como neuroses e nomeia de formas mistas determinadas entidades clínicas que
combinam ambas em uma só tipologia.
A pesquisa começa pela primeira tópica, especificamente pelos anos de 1894 a 1896,
em que Freud realiza uma primeira classificação, delimitando dois grupos bastante distintos:
as psiconeuroses, também chamadas de neuroses de defesa, englobam a histeria, a neurose
obsessiva e certos casos de confusão alucinatória aguda; e as neuroses atuais, posteriormente
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chamadas de neuroses simples, comportam a neurastenia e as neuroses de angústia, como a
fobia, e a hipocondria.
Nessa época, Freud apresenta a teoria do recalcamento para explicar o mecanismo de
defesa próprio às neuroses e às psicoses. No entanto, a noção de rechaço permite uma
oposição entre elas, mesmo considerando ambas como sintomas do retorno do recalcado. Nos
desdobramentos de sua investigação clínica, ele acrescenta ao recalque a divisão da
consciência, a formação de grupos psíquicos separados e os mecanismos de defesa utilizados
pelo eu para lidar com representações incompatíveis. Além disso, prevê a perda da realidade
na neurose e na psicose – questão que será ampliada em 1923-1924.
Em torno de 1905, algumas vias sobre as quais Freud se orientava foram modificadas.
Ele abandonara a teoria da sedução, a insistência no elemento traumático nas vivências
sexuais infantis e a ênfase nas influências acidentais sobre a sexualidade. Quando os traumas
sexuais infantis são substituídos pelo infantilismo da sexualidade, ele prioriza as fantasias na
causação das afecções mentais, o estudo dos mecanismos de defesa, o recalcamento e a teoria
pulsional. Esses elementos modificam a compreensão da formação dos sintomas e permitem
Freud realizar pontuações fundamentais sobre a clínica das psicoses, na medida em que o
delírio deixa de ser apenas um fenômeno patológico e se torna uma tentativa de
restabelecimento do sujeito.
No entanto, na segunda tópica, Freud ressalta a dinâmica da transferência e a
importância do início do tratamento como orientação para o diagnóstico diferencial. Surge
uma nova classificação, considerada a partir de o estatuto da transferência e da influência da
psicanálise sobre o paciente. As neuroses de transferência – que englobam a histeria, a fobia e
a neurose obsessiva – são aquelas a quem a psicanálise pode oferecer êxito no tratamento pela
sua terapêutica. Por outro lado, as neuroses narcísicas – que reúnem a parafrenia (demência
precoce e paranoia), a melancolia-mania e a esquizofrenia – incapacitam uma promessa de
cura pela impossibilidade destes pacientes estabelecerem uma transferência.
Levanta-se a hipótese de que a dificuldade freudiana decorre de sua própria
metapsicologia, sustentada no pressuposto de que a neurose é a base de toda estrutura
psíquica. Como Freud investiga as psicoses a partir das proposições neuróticas, ele fica
impedido de avançar para além do recalque e estabelecer um mecanismo operatório próprio às
psicoses. Desta forma, ele não pode conceber uma especificidade da estrutura subjetiva do
psicótico, apesar de, em diversos momentos, ter apresentado elaborações que pudessem levá-
lo nessa direção. Sem estes elementos ele não pôde recomendar o tratamento analítico
20
aplicado às psicoses, afinal, fazê-lo sobre os parâmetros da neurose, implicaria a neurotização
do psicótico.
Os esclarecimentos teóricos adquiridos durante o percurso pelos textos freudianos
permitem localizar a categoria de psicose ordinária na clínica freudiana, especialmente em
relação ao Homem dos Lobos, caso paradigmático em que não se verifica a presença de
alucinações típicas ou transtornos de linguagem tão comuns em casos de psicoses
desencadeadas. Além disso, o sintoma hipocondríaco do Presidente Schreber fornece indícios
de uma estrutura psicótica antes mesmo da eclosão delirante, sem ser possível afirmar que,
pelo fato de ter havido um período sem desencadeamento, que Schreber seja considerado
dentro daquela categoria.
O segundo capítulo da Tese, nomeado “Uma leitura lacaniana das psicoses”, consiste
em um vasto elenco das principais contribuições de Lacan sobre a teoria das psicoses.
Partimos da distinção proposta por Jacques-Alain Miller em vários textos: o ensino de Lacan
periodicizado de acordo com a primazia do imaginário, do simbólico e do real em diferentes
momentos. Distinção necessária porque acompanha as modificações que vão sendo
introduzidas por Lacan. Se no primeiro ensino, o do retorno a Freud, Lacan define as
psicoses a partir dos postulados freudianos, ele jamais deixou de considerá-las como estrutura
de base.
Depois, partindo da clínica borromeana do segundo ensino de Lacan, destacamos a
topologia dos nós. Em O seminário, livro 23: o sinthoma, Lacan resgata a escrita de James
Joyce, em Finnegans Wake, para interrogar: Joyce é louco? Não obstante a resposta ser
imprecisa neste seminário, o mais importante é o fato de, na orientação de Lacan, Joyce
construir uma obra como suplência à carência paterna. Portanto, neste segundo capítulo,
coube se servir de Joyce para investigar o conceito de sinthoma e o modo com este amarra os
três registros. Contudo, entendemos que a psicose de Joyce pode ser revelada através de
certos indícios, tais como a suspeita de que Joyce é, ou se toma, pelo que ele próprio chama
de Redentor, a articulação de Lacan entre a trama da redenção e a Verwerfung, e o lugar de
Lucia como prolongamento do sintoma de Joyce, porque ele não só decodifica os signos da
fala da filha, como também incorpora, ele próprio, a fala imposta.
No terceiro capítulo, intitulado “As psicoses ordinárias na perspectiva borromeana”,
trabalhamos diretamente a categoria proposta por Miller, ressaltando que ela decorre de casos
inclassificáveis pelas estruturas clínicas formalizadas por Lacan. Eles evidenciavam o
fracasso em apreender uma dada realidade clínica e ameaçavam alguns pilares analíticos
21
determinantes, tal como a posição do analista, a direção do tratamento e o diagnóstico em
psicanálise.
Consideramos o inclassificável em duas vertentes: uma negativa e outra positiva. A
primeira diz respeito aos limites de uma classificação que precisam ser extirpados do sistema
classificatório. Isso fica claro nas constantes revisões dos manuais psiquiátricos que almejam
evitar que alguns casos restem fora do sistema. Desta forma, pretendem a uniformização que
garanta uma comunicação mais confiável entre clínicos e pesquisadores e a padronização
medicamentosa.
A vertente positiva diz respeito ao fato de, na experiência analítica, o inclassificável
ser a expressão do irredutível do sintoma que escapa a qualquer classificação diagnóstica.
Apesar de ser uma ferramenta fundamental, a psicanálise está atenta ao fato de que toda
classificação diagnóstica contém algo de artificial, pois ameaça excluir o singular de cada
caso.
Para que os inclassificáveis fossem incluídos na clínica estrutural formalizada por
Lacan, os analistas inventaram os termos neodesencadeamento, neoconversão e
neotransferência, para circunscrever as especificidades do desencadeamento, dos fenômenos
de corpo e da transferência nos casos de psicose ordinária, respectivamente.
Por fim, tomando a clínica das psicoses como paradigma da experiência analítica, a
formulação de Lacan “todo mundo é louco, isto é, delirante”, convoca uma clínica ordenada
pelos conceitos de pluralização do Nome-do-Pai e pela foraclusão generalizada. Esta
formulação converge todo ser falante a uma referência vazia – nomeada por Lacan com o
aforismo a relação sexual não existe. Essa inexistência evidencia o que há de mais íntimo em
cada um, pois não há sentido comum que sirva a todos. Trata-se de um aforismo que inscreve
um não-orientável desde a ordenação do Nome-do-Pai, e permite considerar que a resposta
singular diante do indizível é uma construção, ou seja, não passa de um delírio.
Nessa via, a função do sintoma como modo-de-gozo singular se torna um ponto
decisivo no dispositivo analítico. Na medida em que sentido e real se opõem, o delírio é
apreendido como uma positividade, pois delirar equivale à resposta possível face ao real.
Afinal, se a psicanálise de orientação lacaniana assinala que todos os discursos são defesas
contra o real, que a verdade é sempre variável, varité, conforme Lacan a denomina em seu
ultimíssimo ensino, então, todo saber é delirante.
22
1 AS PSICOSES NA OBRA FREUDIANA
Neste primeiro capítulo da Tese de Doutorado nos deteremos, fundamentalmente, nos
principais textos freudianos. Estamos atentos às modificações teóricas que vão permitindo a
delimitação das psicoses como uma entidade clínica distinta das neuroses, fato que não está
demarcado nos textos iniciais da Obra de Freud. Partimos da classificação proposta entre
1894 e 1914, que divide a clínica em psiconeuroses e neuroses atuais, até sua última
formalização, na qual as neuroses narcísicas e as neuroses de transferência substituem a
divisão anterior.
Constatamos, inicialmente, diversos pontos que indicam a dificuldade de Freud em
distinguir estes campos. Ele não só lista as psicoses como neuroses, como também nomeia de
formas mistas determinadas entidades clínicas que combinam ambas em uma só tipologia.
Nossa hipótese é que o ponto de impasse de Freud no que se refere ao avanço de suas
formulações teóricas sobre o mecanismo específico das psicoses decorre de uma questão
epistemológica de sua própria metapsicologia. Ou seja, ele as investiga a partir de
pressupostos provenientes de seus estudos sobre as neuroses, o que lhe impossibilita ir para
além do mecanismo de recalcamento.
Durante nossa investigação, encontramos algumas passagens que revelam a foraclusão
generalizada, formalizada por Jacques-Alain Miller a partir do último ensino de Lacan
(MILLER, 1978/2010, p.31) no aforismo “Todo mundo é louco, ou seja, delirante”. Nelas,
Freud articula sonho e delírio, supõe um núcleo paranoico de base a todo ser humano, dissocia
loucura e psicose e reduz a normalidade a uma mera ficção.
Apesar desta Tese se dedicar ao tema das psicoses ordinárias, é impossível falar sobre
elas sem partir de um campo mais amplo, que é o das psicoses. Sobretudo porque, existem
psicoses extraordinárias – tais como a de Schreber, a de Aimeé, das Irmãs Papin, e outras –
com delírios sistematizados, fenômenos elementares evidentes, alterações da fala e da
linguagem perceptíveis e outros indícios. No entanto, as psicoses ordinárias – termo proposto
por Jacques-Alain Miller (MILLER, 1998/2006) a partir de um programa de investigação e
pesquisa no âmbito das psicoses – são caracterizadas por fenômenos mais discretos, muitas
vezes imperceptíveis ao analista incauto, e que, por vezes, confundem o diagnóstico
diferencial. Nossa intenção neste capítulo de Tese é discutir a proposta milleriana a partir da
clínica freudiana, especialmente em relação aos famosos casos de O Homem dos Lobos e do
Presidente Schreber, antes da eclosão das psicoses extraordinárias.
23
Para realizarmos este trabalho, retomaremos a leitura da autobiografia de Daniel Paul
Schreber – Memórias de um doente dos nervos (FREUD, 1903[1901-1902]/1984) – realizada
por Freud no texto “Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia (Dementia
paranoides) descrito autobiográficamente” (FREUD, 1911/1993). Além disso, as teorizações
de Lacan contidas em O seminário, livro 3: as psicoses (LACAN, 1955-1956/1988) e no
escrito “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (LACAN,
1959[1957-1958]/1998) acrescentarão interpretações cruciais ao estudo da paranoia de
Schreber. A inclusão de Lacan em um capítulo essencialmente freudiano se justifica, pois o
ensino de Lacan é uma ferramenta indispensável à nossa investigação.
Depois, o texto de Freud “De la historia de una neurosis infantil” (FREUD,
1918[1914]/1994), será a guia para discutirmos os múltiplos diagnósticos de neurose
fornecidos ao Homem dos Lobos, a saber, neurose de angústia com sintomas fóbicos e
neurose obsessiva. Descreveremos essas tipologias clínicas articulando-as às atipias
concernentes à castração, ao estatuto do objeto fóbico e à especificidade da angústia, com o
intuito de defender o diagnóstico de psicose ordinária, como já se disse, antes da eclosão da
patologia. Referimo-nos aos dois momentos da análise de O Homem dos Lobos: o período de
análise com Freud e, posteriormente, quando Freud dá por encerrado o tratamento, o período
com Ruth Mack Brunswick, supervisionanda de Freud. Desta forma, poderemos analisar, no a
posteriori, os fenômenos elementares que já estavam presentes na patologia do paciente.
1.1 A classificação freudiana das psicoses
Percebemos em Freud um impasse na delimitação das neuroses e das psicoses como
campos distintos, se levarmos em conta a formalização das estruturas clínicas freudianas
realizada por Lacan, ou seja, neurose, psicose e perversão. Encontramos esta evidência em
diversos momentos. Por exemplo, no “Manuscrito D. Sobre la etiología y la teoría de las
grandes neurosis” (FREUD, 1894a/1994, p.225) Freud inclui a melancolia e a mania no grupo
das neuroses, e na “Carta 61” (FREUD, 1897/1994, p.289) ele adiciona a paranoia a esta lista.
Apesar de no texto “Histeria” (FREUD, 1888/1994, p.54) Freud dizer que uma psicose
não faz parte desta estrutura, encontramos sob a denominação formas mistas determinadas
entidades clínicas que combinam a neurose e a psicose em uma só tipologia. No “Manuscrito
F. Recopilación III” (FREUD, 1894b/1994, p.238) aparece a melancolia neurastênica, no
24
“Manuscrito G. Melancolía” (FREUD, 1895a/1994, p.244) a melancolia de angústia, e no
“Manuscrito H. Paranoia” (FREUD, 1895b/1994, p.251) as psicoses histéricas. A existência
das formas mistas confirma nossa pesquisa: neuroses e psicoses não estão distintas como
estruturas clínicas diferentes neste período inicial da Obra de Freud.
A classificação das psicoses ora como neuroses, ora como psicoses, é um outro ponto
que nos chama atenção. Destacamos as seguintes passagens. No “Manuscrito H” (FREUD,
1895b/1994, p.251) Freud classifica a paranoia e a confusão alucinatória como duas psicoses
de desafio ou oposição, e em “Nuevas puntualizaciones sobre las neuropsicosis de defensa”
(FREUD, 1896d/1992, p.175) elas aparecem como psicoses de defesa, uma outra terminologia
que, em síntese, refere-se ao mesmo eixo classificatório. Por outro lado, na “Carta 61”
(FREUD, 1897/1994, p.289), elas são incluídas no campo das neuroses.
Entre 1894 e 1896 Freud está engajado nos problemas das neuroses, enquadrados em
dois grupos bastante distintos: as neuroses atuais – posteriormente chamadas de neuroses
simples –, que comportam a neurastenia e as neuroses de angústia, como a fobia, e a
hipocondria, incluída posteriormente em “Introducción del narcisismo” (FREUD, 1914/1993,
p.80); e as psiconeuroses – também chamadas de neuroses de defesa na “Carta 46” (FREUD,
1896b/1994, p.270-273) –, que abarcam a histeria, a neurose obsessiva e certos casos de
confusão alucinatória aguda, os quais Freud muitas vezes exemplifica com casos de paranoia.
No texto “Las neuropsicosis de defensa” (FREUD, 1894c/1994) Freud apresenta a
teoria do recalque, uma noção fundamental na qual ele se baseia durante toda sua Obra. Nos
desdobramentos de sua investigação clínica, ele acrescenta ao recalque a divisão da
consciência, a formação de grupos psíquicos separados e os mecanismos de defesa utilizados
pelo eu para lidar com as representações incompatíveis. Estas ferramentas teóricas irão
orientá-lo até 1900, momento de formalização do aparelho psíquico por vias distintas
daquelas do “Proyecto de psicología” (FREUD, 1950[1895]/1994).
Apesar de Freud utilizar a teoria do recalcamento para explicar o mecanismo das
neuroses e o das psicoses, em torno de 1894 surge algumas especificidades fundamentais no
que concerne a esta última estrutura. Primeiro, ao explicar o mecanismo de defesa do eu
contra uma ideia incompatível, Freud faz um contraponto entre o recalque na neurose e o
rechaço na psicose. Diz que na psicose se trata de uma defesa muito mais poderosa e bem
sucedida, capaz de rechaçar tanto o afeto quanto a ideia, como se esta jamais tivesse ocorrido
(FREUD, 1894c/1992, p.59). Depois, desenvolvendo a peculiaridade da defesa paranoica,
Freud apresenta o mecanismo de projeção (FREUD, 1895b/1994, p.249). Este mecanismo
25
será retomado diversas vezes na Obra freudiana, mas será desenvolvido de forma definitiva
apenas em 1911, na interpretação do caso Schreber.
Além disso, Freud descreve uma perda da realidade tanto na neurose quanto na
psicose. Apesar de este assunto só ser detalhado em 1924, Freud (1894c/1992, p.60) já
inscreve uma perda parcial da realidade nas neuroses e uma perda total no que concerne à
realidade nas psicoses. Por fim, ele delimita as neuroses e as psicoses pelo estatuto do que
retorna quando o mecanismo de defesa falha. Desta forma, distingue os sintomas como
retorno do recalcado nas neuroses e as representações delirantes como sintomas do retorno do
recalcado nas psicoses (FREUD, 1896d/1992, p.180).
Acresce-se a tais especificidades alguns pontos decisivos elaborados por Freud em “La
interpretación de los sueños” (FREUD, 1900/1994). São eles: a formalização do aparelho
psíquico pelas instâncias pré-consciente, consciente e inconsciente; a definição deste aparelho
em sua concepção descritiva, dinâmica e sistemática; a apresentação do processo psíquico
primário (PPP) e do secundário (PPS) e dos princípios de constância e de desprazer, que serão
retomados em 1920. Estes pontos são de grande valia não só por se manterem correntes até o
fim da investigação teórica de Freud, mas também por articularem normalidade e loucura de
uma forma completamente original.
Segundo Freud (1900[1899]/1994, p.73), “o sonho alucina”1 ao substituir pensamento
por alucinações. A transformação de representações em alucinações é um aspecto que
aproxima os sonhos dos delírios psicóticos.
Quem fala da relação do sonho com as perturbações mentais pode se referir a três coisas: 1) relações etiológicas e clínicas, por exemplo, se um sonho sub-roga um estado psicótico, o anuncia ou permanece como sequela dele; 2) alterações que sofre a vida onírica em caso de enfermidade mental, e 3) relações internas entre sonho e psicose, analogias que apontam um parentesco essencial (FREUD, p.110; tradução nossa)2.
No texto “La sexualidad en la etiología de las neurosis”, Freud (1898b/1992, p.273) já
havia dito que os sonhos pertencem ao mesmo conjunto dos delírios. Retomando esta questão
em 1900, ele enumera diversos pontos de concordância entre sonhos e delírios (FREUD,
1900[1899]/1994, p.82 ). Em primeiro lugar, a realização do desejo alucinado na neurose e o
desligamento do mundo externo como forma de consumá-la na psicose. Em segundo, a crença
1 O trecho correspondente na tradução é: “el sueño alucina” (grifo do autor; tradução nossa). 2 O trecho correspondente na tradução é: “Quien habla de la relación del sueño con las perturbaciones mentales puede referirse a tres cosas: 1) relaciones etiológicas y clínicas, por ejemplo si un sueño subroga a un estado psicótico, lo anuncia o queda como secuela de él; 2) alteraciones que sufre la vida onírica en caso de enfermedad mental, y 3) relaciones internas entre sueño y psicosis, analogías que apuntan a un parentesco esencial”.
26
indubitável do neurótico na veracidade de seu sonho e a certeza absoluta do psicótico nos
fenômenos elementares concernentes ao sentido e à verdade. Depois, o sonhador ouve seus
próprios pensamentos pronunciados como voz externa, tal como nos delírios auditivos das
psicoses (FREUD, 1900[1899]/1994, p.113). Além disso, a autoconsciência e a consciência
moral – termos com os quais Freud designa o supereu naquela época – são substituídas por
uma supervalorização das realizações mentais do próprio sujeito; elas estão presentes tanto
nos sonhos quanto nos delírios, sendo que, na psicose, ela atinge níveis invasivos e
persecutórios. Vale destacar ainda que tanto no sonho quanto no delírio a experiência da
temporalidade se encontra abolida (FREUD, 1900[1899]/1994, p.113), até mesmo porque, em
ambos, há uma cisão entre a realidade e a realidade psíquica. Enfim, ressaltamos que, para
Freud, sonho e delírio são estruturas providas de significação (FREUD, 1900-1901/1994,
p.523).
No texto “Esquema del psicoanálisis”, Freud equivale o sonho à psicose de uma
maneira impressionante:
Um sonho é, portanto, uma psicose, com todos os despropósitos, formações delirantes e espelhismos sensoriais que ela supõe. Por certo que uma psicose de duração breve, inofensiva, até mesmo dotada de uma função útil; é introduzida com a aquiescência da pessoa, e um ato de sua vontade lhe põe término. Porém é, apesar de tudo, uma psicose, e dela aprendemos que inclusive uma alteração tão profunda da vida anímica pode ser desfeita, pode dar lugar à função normal3 (FREUD, (1940[1938]a/1993, p.173; tradução nossa).
Neste ponto inserimos duas indagações que servirão de guia para esta Tese. Partindo
dos pontos de concordância acima descritos, podemos equivalê-los ao aforismo lacaniano
“Todo mundo é louco”? Em função disso, como podemos explicar a noção de foraclusão
generalizada que vem sendo articulada no Campo freudiano? Em busca de respostas para
estas perguntas, selecionamos alguns trechos que nos permitem supor esta foraclusão na Obra
freudiana.
Por exemplo, no “Manuscrito H”, Freud (1895b/1994, p.249) sugere a ocorrência de
delírios na estrutura neurótica, o que nos permite dissociar a loucura exclusivamente do
campo das psicoses.
[...] estamos habituados (pela expressão das emoções) que nossos estados interiores se revelem diante dos outros. Isso resulta o delírio normal de ser observado e a projeção normal.
3 O trecho correspondente na tradução é: “El sueño es, pues, una psicosis, con todos los despropósitos, formaciones delirantes y espejismos sensoriales que ella supone. Por cierto que una psicosis de duración breve, inofensiva, hasta encargada de una función útil; es introducida con la aquiescencia de la persona, y un acto de su voluntad le pone término. Pero es, con todo, una psicosis, y de ella aprendemos que incluso una alteración tan profunda de la vida anímica puede ser deshecha, puede dejar sitio a la función normal”.
27
E normal é, com efeito, na medida em que em tudo permanecemos conscientes de nossa própria alteração interior4 (tradução nossa).
Em “Introducción del narcisismo” (FREUD, 1914a/1993, p.92) há uma outra
referência a esta mesma questão. Apesar de o supereu ainda não ter sido formalizado, Freud
relata o poder desta instância no delírio de sermos vigiado, tão comum em casos de neurose.
Além disso, no texto “El delirio y los sueños en la ‘Gradiva’ de W. Jensen”, Freud
(1907[1906]/1993, p.37) insiste nesta mesma ideia ao inscrever uma loucura ordinária nos
neuróticos: “Pois bem, a fronteira entre os estados anímicos chamados normais e os
patológicos é em parte convencional, e no que resta é tão fluída que provavelmente cada um
de nós a atravesse várias vezes no curso de um mesmo dia”5 (tradução nossa).
Freud articula as neuroses aos delírios não só nos sonhos e no campo da realidade,
mas também na ordem da fantasia. No texto “Mis tesis sobre el papel de la sexualidad en la
etiología de las neurosis” (FREUD, 1906[1905]/1993, p.266), ele afirma que “[...] e se obteve
também uma analogia realmente surpreendente entre estas fantasias inconscientes dos
histéricos e as invenções que, na paranoia, tornavam-se conscientes na qualidade de delírio”6.
Freud fala sobre uma analogia e não sobre uma equivalência entre os delírios psicóticos e as
fantasias histéricas, pois, apesar de serem da mesma natureza, elas se distinguem na medida
em que estas são inconscientes e aquelas conscientes.
Aqui inserimos uma questão. Partindo destes fragmentos de textos que articulam
delírio e neurose no âmbito do sonho, da realidade e da fantasia, será que poderíamos concluir
que, para Freud, a base de toda estrutura psíquica é psicótica? Além disso, será que esta base
psicótica pode ser deduzida do último ensino de Lacan com a noção de foraclusão
generalizada? Iremos apenas introduzir estas questões, pois iremos trabalhá-las no capítulo 3
desta Tese.
Apesar de Freud ter a neurose como a base de toda estrutura psíquica, em “El malestar
en la cultura” (FREUD, 1930[1929]/1994, p.81), ele generaliza um núcleo paranoico em todo
ser humano. Este núcleo é responsável pela realização alucinatória do desejo no campo da
4 O trecho correspondente na tradução é: “[...] estamos habituados (por la expresión de las emociones) a que nuestros estados interiores se denuncien ante los otros. Esto da por resultado el delirio normal de ser notado, y la proyección normal. Y normal es, en efecto, mientras a todo esto permanezcamos concientes de nuestra propia alteración interior”. 5 O trecho correspondente na tradução é: “Ahora bien, la frontera entre los estados anímicos llamados normales y los patológicos es en parte convencional, y en lo que resta es tan fluida que probablemente cada uno de nosotros la atraviese varias veces en el curso de un mismo día”. 6 O trecho correspondente na tradução é: “[…] y se obtuvo también una analogía realmente sorprendente entre estas fantasías inconcientes de los histéricos y las invenciones que en la paranoia devenían concientes en calidad de delirio”.
28
realidade. Mesmo que saibamos que Freud distingue a fantasia do neurótico do delírio
psicótico, suas palavras são esclarecedoras:
Entretanto, se afirmará que cada um de nós se comporta em algum ponto como o paranóico, corrige algum aspecto insuportável do mundo por uma formação de desejo e introduz este delírio no objetivo {die Realität}. Particular significatividade reclama o caso em que um número maior de seres humanos empreende em comum a intenção de criar uma segurança de felicidade e de proteção contra o sofrimento por meio de uma transformação delirante da realidade efetiva7 (tradução nossa).
No texto “Análisis terminable e interminable”, Freud (1937a/1993, p.237) rompe com
a existência de uma normalidade, rebaixando o eu à ordem de uma ficção: “O eu anormal,
inutilizável aos nossos propósitos, infelizmente não é uma ficção. Cada pessoa normal o é
somente medianamente, seu eu se aproxima ao do psicótico nesta ou naquela parte, em grau
maior ou menor”8 (tradução nossa).
Podemos também supor a foraclusão generalizada na descrição freudiana do processo
psíquico primário (PPP)? Duas características nos permitem conectar estes dois elementos.
Em primeiro lugar, o processo primário é um processo irracional, da ordem da alucinação.
Nele não há nenhum caráter qualitativo que possa inscrever a questão do prazer-desprazer.
Podemos interpretá-lo como o campo das pulsões desenfreadas, sem nenhuma ligação, campo
do puro gozo que desencadeia angústia. Depois, o processo primário se encontra no aparelho
psíquico desde o início, a tal ponto que Freud considerada uma “ficção teórica” (FREUD,
1900-1901/1994, p.590-594) o funcionamento do aparelho apenas por este princípio. Não
obstante Freud não utilizar a palavra gozo e sim o termo o primeiro desejar, o interpretamos a
partir da forma como Lacan define o real. Nas palavras de Freud:
O primeiro desejar pode ter consistido em investir alucinatoriamente a lembrança da satisfação. Porém esta alucinação, quando não podia ser mantida até o esgotamento, teve que resultar inapropriada para produzir a cessação da necessidade, e, portanto, o prazer ligado com a satisfação9 (FREUD, 1900-1901/1994, p.588; tradução nossa).
7 O trecho correspondente na tradução é: “Empero, se afirmará que cada uno de nosotros se comporta en algún punto como el paranoico, corrige algún aspecto insoportable del mundo por una formación de deseo e introduce este delirio en lo objetivo {die Realität}. Particular significatividad reclama el caso en que un número mayor de seres humanos emprenden en común el intento de crearse un seguro de dicha y de protección contra el sufrimiento por medio de una transformación delirante de la realidad efectiva”. 8 O trecho correspondente na tradução é: “El yo anormal, inutilizable para nuestros propósitos, no es por desdicha una ficción. Cada persona normal lo es sólo en promedio, su yo se aproxima al del psicótico en esta o aquella pieza, en grado mayor o menor”. 9 O trecho correspondente na tradução é: “El primer desear pudo haber consistido en investir alucinatoriamente el recuerdo de la satisfacción. Pero esta alucinación, cuando no podía ser mantenida hasta el agotamiento, hubo de resultar inapropiada para producir el cese de la necesidad y, por tanto, el placer ligado con la satisfacción”.
29
Em torno de 1905, algumas vias sobre as quais Freud se orientara até então foram
sendo modificadas. Ele abandona a teoria da sedução, a insistência no elemento traumático
presente nas vivências sexuais infantis, e a ênfase nas influências acidentais sobre a
sexualidade. Quando os “traumas sexuais infantis” são substituídos pelo “infantilismo da
sexualidade”, Freud (1906[1905]/1993, p.269) se volta para a importância das fantasias na
causação das afecções mentais, para o estudo dos mecanismos de defesa, para a teoria do
recalcamento e para a teoria pulsional, elementos que modificam o entendimento da formação
dos sintomas (FREUD, 1906[1905]/1993, p.268-269).
Após a “Carta 125” (FREUD, 1899/1994), na qual Freud trata especificamente da
paranoia, ele não se detém diretamente neste tema em nenhum outro lugar. Em 1910, ao se
dedicar à análise do livro de Schreber, Memórias de um doente dos nervos (1903[1901-
1902]/1984), Freud formula sua principal contribuição sobre o tema da paranoia. Se em 1896
ele postula a projeção como o mecanismo de defesa específico da paranoia, em 1911, no texto
“Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia (Dementia paranoides) descrito
autobiográficamente” (FREUD, 1911/1993, p.61), ele a define da seguinte forma: “uma
percepção interna é sufocada, e como substituto dela advém à consciência seu conteúdo, após
experimentar certa desfiguração, como uma percepção externa”10 (tradução nossa). A grande
virada de Freud nesse texto é considerar o mecanismo de projeção a partir do seguinte ponto:
“aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora”11 (FREUD, 1911/1993, p.66;
tradução nossa). Ponto que Lacan retoma e desdobra em O seminário, livro 3: as psicoses
(LACAN, 1955-1956/1997) e sobre o qual nos deteremos no capítulo 2 desta Tese.
Além disso, Freud apresenta as principais formas de paranoia, referindo-as às
contradições de uma mesma fórmula proposicional: “eu (um homem) o amo (um homem)”.
De acordo como o predicado da proposição, o verbo, o objeto e o sujeito são contestados e
invertidos por projeção, formas com as quais Freud descreve a fórmula dos delírios de
perseguição, da erotomania e dos ciúmes, respectivamente. Nesse sentido, o delírio de
perseguição se expressa pelo “eu não o amo, eu o odeio” que, por meio da inversão e da
projeção, se desdobra em “eu não o amo, eu o odeio porque ele me persegue”, ou seja, pura
inversão do verbo. No delírio erotomaníaco o objeto é modificado, então a frase “eu não o
amo, eu a amo”, pelos mesmos mecanismos, se torna “eu não o amo, eu a amo porque ela me
ama”. No delírio de ciúmes, a frase “não sou eu quem ama o homem, ela o ama” significa a
10 O trecho correspondente na tradução é: “Una percepción interna es sofocada, y como sustituto de ella adviene a la conciencia su contenido, luego de experimentar cierta desfiguración, como una percepción de afuera”. 11 O trecho correspondente na tradução é: “[…] lo cancelado adentro retorna desde afuera”.
30
própria inversão do sujeito. Através desse equacionamento teórico a fórmula do delírio
megalomaníaco “eu só amo a mim mesmo”, coloca em cena uma supervalorização sexual do
eu que ela comporta (FREUD, 1911/1993, p.58-61).
Nesse mesmo texto Freud realiza pontuações fundamentais para a clínica das psicoses,
na medida em que o delírio deixa de ser apenas um fenômeno patológico e se torna uma
tentativa de restabelecimento do indivíduo:
O que consideramos produção patológica, a formação delirante, é, na realidade, a intenção
de restabelecimento, a reconstrução. [...] O que se impõe tão ruidosamente à nossa atenção é o processo de restabelecimento, que desfaz o recalque e reconduz a libido às pessoas por ela abandonadas12 (FREUD, 1911/1993, p.65-66, grifos do autor; tradução nossa).
Ainda em 1911, Freud enfatiza a relação estrita entre a paranoia e a fantasia
homossexual que se encontra no cerne da enfermidade de Schreber. Freud realiza essa
articulação por meio do conceito do narcisismo – teorizado em definitivo em “Introducción
del narcisismo” (FREUD, 1914a/1993). Ele explica que em um determinado momento do
desenvolvimento normal do indivíduo, os investimentos autoeróticos, endereçados
inicialmente a si mesmo e ao próprio corpo – estádio denominado narcísico – são
posteriormente investidos em alguma outra pessoa – amor objetal. Quando o indivíduo
demora na passagem do narcisismo ao amor objetal, ele leva para os estádios posteriores de
seu desenvolvimento a escolha homossexual. Portanto, o homossexualismo passivo recalcado,
característico da paranoia, deve ser encontrado entre os estádios de autoerotismo e narcisismo.
Entre 1911 e 1915 os “Trabajos sobre técnica psicoanalítica” oferecem algumas
questões fundamentais no tocante ao diagnóstico diferencial. A dinâmica da transferência e a
importância do início do tratamento permitem Freud delimitar as neuroses e as psicoses a
partir de novas orientações clínicas. O mais notável destas discussões se encontra no texto
“Sobre la iniciación del tratamiento (Nuevos consejos sobre la técnica del psicoanálisis, I)”
(FREUD, 1913a/1993), onde Freud recomenda só aceitar um paciente em análise após se
empreender uma ‘sondagem’ a fim de decidir se o caso é apropriado para a psicanálise. Isto
significa dizer que, neste tempo de entrevistas, o analista deve realizar um diagnóstico
diferencial, atentando-se para os casos de psicose nos quais as produções delirantes não estão
evidentes (FREUD, 1913a/1993, p.125-126). Se uma psicose for constatada, o analista não
deve aceitar o paciente em tratamento, pois, – de acordo com Freud no texto “El interés por el
12 O trecho correspondente na tradução é: “Lo que nosotros consideramos la producción patológica, la formación delirante,
es, en realidad, el intento de restablecimiento, la reconstrucción. […] Lo que se nos hace notar ruidoso es el proceso de restablecimiento, que deshace la represión y reconduce la libido a las personas por ella abandonadas”.
31
psicoanálisis” (FREUD, 1913b/1993, p.169) – “a psicanálise não tem efeito terapêutico sobre
as formas mais graves das enfermidades mentais genuínas”13 (tradução nossa).
Em “Introducción del narcisismo” Freud (1914a/1993) afirma que a noção de
narcisismo decorre da tentativa de incluir o campo das psicoses na teoria da libido,
apresentada em 1905. Apesar de acreditar que a psicanálise não pode oferecer um tratamento
aos psicóticos, Freud elege o campo das psicoses como um meio de acesso privilegiado para
suas investigações sobre o narcisismo. Neste texto, surgem diversos pontos sobre os quais
Freud já havia trabalhado, apesar de ele ainda não ter tirado as devidas consequências clínicas
no que concerne ao diagnóstico diferencial. Destacamos três eixos de trabalho: 1) a libido do
eu e a do objeto; 2) o narcisismo primário e o secundário; 3) as neuroses de transferência e as
neuroses narcísicas.
Para descrever como a psicose se localiza na nova teoria das pulsões, Freud distingue
as pulsões ou interesses do eu das pulsões sexuais, estas últimas subdivididas em libido do eu
e libido objetal. A característica fundamental para o diagnóstico diferencial é saber que o
psicótico toma o próprio eu como objeto, a ponto de fundar uma tautologia do seguinte tipo:
eu = eu. Isso quer dizer que ele não procede como o neurótico, que para fazer existir o eu
precisa fundá-lo a partir de um objeto externo, o que na terminologia lacaniana chamamos de
Outro. Se seguirmos a teoria de Lacan, veremos que no esquema L da dialética intersubjetiva
ele insere no eixo a-a’ esta paranoia originária do eu, válida tanto para neuróticos quanto para
psicóticos. O que diferencia esta paranoia na neurose e na psicose é que, nesta última, o
estatuto do Outro segue o mesmo estatuto do sujeito, ou seja, delirante.
No texto sobre o narcisismo Freud exemplifica a atitude narcisista das psicoses, ou
seja, a maneira que o psicótico toma o próprio eu como objeto, pela megalomania e pela
hipocondria. Partindo da teoria da libido de 1914, ele explica que na primeira, a libido não é
investida em objetos, como ocorre nas neuroses, mas sim no próprio eu do psicótico; portanto,
ela é consequência deste retorno reflexivo (FREUD, 1917[1916-1917]/1994, p.378) da libido
para a instância egóica. Já na hipocondria, a libido é investida no órgão doente tanto na
neurose quanto na psicose (FREUD, 1914a/1993, p.80).
Por este motivo, no que concerne ao diagnóstico diferencial, a hipocondria não é
suficiente para decidir uma estrutura, necessitando assim de outros parâmetros. Estes podem
ser encontrados na articulação de alguns elementos: o narcisismo primário e o secundário, o
eu ideal e o ideal do eu. Segundo Freud, o eu ideal é o substituto do narcisismo primário, na
13 O trecho correspondente na tradução é: “El psicoanálisis no consigue terapéuticamente nada en las formas graves de las genuinas enfermedades mentales”.
32
medida em que ele é o gozo não renunciado do infantil. Em decorrência de sua origem
pulsional, o eu ideal é caracterizado pela identificação à onipotência megalomaníaca, comum
nos fenômenos psicóticos. Para Freud, a constituição do eu implica em um distanciamento do
narcisismo primário por meio de um deslocamento da libido narcísica em direção a um ideal
imposto de fora (FREUD, 1914a/1993, p.90-91).
As exigências culturais e estéticas da sociedade são tomadas como um padrão para o
indivíduo de tal modo que ele se submete e responde a suas reivindicações. Desta forma, fixa-
se “um ideal pelo qual mede seu eu atual”14 (FREUD, 1914a/1993, p.90) na tentativa de
recuperar a perfeição narcísica da qual teria outrora desfrutado no narcisismo primário. Esta
medida do eu pelo ideal é realizada por uma “instância de censura”15 (FREUD, 1914a/1993,
p.93) também chamado de consciência moral, que vigia e critica todas as atividades do
indivíduo. Neste momento Freud ainda não chamava esta consciência moral de supereu, mas
esta instância já estava sendo elaborada mesmo sem ser nomeada. Já que o Ideal do eu é
tutelado pelo supereu, sua formação constitui um fator preponderante a favor do recalque, na
medida em que ele aumenta as exigências do eu (FREUD, 1914a/1993, p.92).
Ao associar o processo de recalcamento à formação do Ideal, este se torna um índice
fundamental no que concerne ao diagnóstico diferencial. Ao contrário das neuroses, não há
nenhuma formação deste Ideal na estrutura psicótica. Em decorrência desta inexistência, o
mecanismo de recalque não se torna operativo e o supereu é vivenciado pelos fenômenos de
automatismo mental: a autocrítica surge na alucinação auditiva e a auto-observação nos
delírios de estar sendo vigiado.
Enfim, apenas em 1914 encontramos uma nova distinção estrutural que classifica as
neuroses e as psicoses em grupos distintos. Apesar de esta demarcação continuar sob a
insígnia da neurose, neste momento o diagnostico diferencial é realizado pelo estatuto da
transferência e pela influência da psicanálise sobre o paciente: as neuroses de transferência –
que englobam a histeria, a fobia e a neurose obsessiva – são aquelas a quem a psicanálise
pode oferecer êxito no tratamento pela sua terapêutica; e as neuroses narcísicas – que reúnem
a parafrenia (demência precoce e paranoia), a melancolia-mania e a esquizofrenia –
incapacitam uma promessa de cura pela impossibilidade destes pacientes estabelecerem uma
transferência.
14 O trecho correspondente na tradução é: “[...] un ideal por el cual mide su yo actual” (grifo do autor; tradução nossa). 15 O trecho correspondente na tradução é: “instancia censuradora” (grifo do autor; tradução nossa).
33
No ano seguinte, no texto “Lo inconciente”, Freud (1915c/1993, p.199) se pergunta se
haveria alguma especificidade do recalque no campo das psicoses:
A fórmula segundo a qual o recalque é um processo que ocorre entre os sistemas Ics. e Pcs. (ou Cs.), resultando que algo é mantido longe da consciência, sem dúvida tem que ser modificada para incluir o caso da demência precoce e de outras afecções narcisistas16 (grifos do autor; tradução nossa).
É a primeira vez que Freud duvida de que a teoria do recalcamento utilizado para
explicar as manifestações sintomáticas das neuroses de transferência poderia ser utilizada da
mesma forma para entender os fenômenos das psicoses. Esta questão fica em suspenso até
1924, quando Freud escreve os textos “Neurosis y psicosis” (FREUD, 1924[1923]/1993) e
“La perdida de realidade em la neurosis y la psicosis” (FREUD, 1924/1993). Por mais que
não encontre uma resposta para a especificidade de um mecanismo próprio à psicose, nestes
textos Freud avança um pouco mais, desenvolvendo a importância do que vem em
substituição à perda da realidade.
Em “Más allá del principio de placer” (FREUD, 1920/1993), ele retoma uma questão
já anunciada em 1900. Ainda tomado pelo ponto de vista econômico – adotado desde seu
“Proyecto de psicología” (FREUD, 1950[1895]/1994) –, em 1920 Freud elabora o
funcionamento do aparelho psíquico a partir das ideias de estabilidade e constância e, para
este desenvolvimento, ele se serve dos princípios de prazer e do de realidade. Neste percurso
Freud descobre que estas ideias não podem ser cumpridas pelo aparelho, pois a compulsão à
repetição domina o principio de prazer e aponta para um além. Esta constatação permite Freud
retomar a teoria pulsional de 1914 e equipará-la às pulsões de vida e de morte, da seguinte
forma: a pulsão de morte, originária de Tânatos, o princípio de destruição de onde parte o
homem, exige um Eros, uma pulsão de vida que forneça um principio para que o homem se
situe em sua erótica.
Segundo o comentário de James Strachey sobre “El yo y el ello”, este texto pode ser
considerado “o último dos grandes trabalhos teóricos de Freud” (FREUD, 1923a/1993, p.4).
A partir dele, tudo o que se segue possui a marca da terminologia empreendida por Freud
nesta nova descrição do aparelho psíquico. As instâncias do isso, eu e supereu permitem
alguns avanços clínicos fundamentais no que concerne ao campo das psicoses, que podem ser
depreendidos em dois textos: “Neurosis y psicosis” (FREUD, 1924[1923]/1993) e “La
16 O trecho correspondente na tradução é: “La fórmula según la cual la represión es un proceso que ocurre entre los sistemas Icc y Prcc (o Cc), con el resultado de que algo es mantenido lejos de la conciencia, sin duda tiene que ser modificada para incluir el caso de la dementia praecox y de otras afecciones narcisistas”.
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pérdida de realidad en la neurosis y la psicosis” (FREUD, 1924/1993). A aplicação das
hipóteses contidas no primeiro texto permite Freud definir o diagnóstico diferencial das
estruturas clínicas de uma forma inédita: “a neurose é o resultado de um conflito entre o eu e
o isso, enquanto que a psicose é o desenlace análogo de uma perturbação similar nos
vínculos entre o eu e o mundo exterior”17 (FREUD, 1924[1923]/1993, p.155, grifos do autor;
tradução nossa).
Com o objetivo de responder à questão levantada em 1915 sobre a teoria do
recalcamento, no texto de 1924 Freud investiga a existência de um mecanismo específico das
psicoses, análogo, mas distinto do recalcamento das neuroses. Partindo das novas ferramentas
teóricas que têm a sua disposição, ele inicia sua pesquisa a partir das duas formas pelas quais,
nas neuroses, o mundo externo dirige o eu: por meio de percepções atuais em constantes
transformações e pelas percepções antigas, que formam parte do eu. De forma diferente do
que ocorre com as neuroses, nas psicoses não só as novas percepções são recusadas, como
também o mundo interno perde sua significação (FREUD, 1924[1923]/1993, p.156). Como
consequência desta recusa e da perda do investimento libidinal, o eu é arrancado da realidade
e, em troca, cria um novo mundo – tanto interno quanto externo – em acordo com as
imposições do isso.
Se em 1914 Freud descreve o delírio como um “processo de recuperação” (FREUD,
1914a/1993, p.83), em 1924 ele surge como um “remendo” sobre a fenda que se abre entre o
eu e o mundo externo. Esta fenda é cerzida pela nova realidade, criada mediante a alucinação.
O fragmento de realidade rejeitado nas psicoses se impõe constantemente ao psiquismo – tal
como o recalcado na neurose –, e denuncia o fracasso do remodelamento da realidade de
forma satisfatória.
Um ano depois Freud retoma estes questionamentos. Se em “Neurosis y psicosis”
(FREUD, 1924[1923]/1993), ele se preocupa em relacionar o conflito entre as instâncias
psíquicas, em “La pérdida de realidad en la neurosis y la psicosis” (FREUD, 1924/1993), se
concentra nas consequências deste conflito para a perda da realidade. Nas psicoses, esta perda
se dá em duas etapas: na primeira, submetido ao isso o eu é afastado da realidade; na segunda,
há uma reparação do dano causado por este afastamento, restabelecendo, à custa do isso,
relações com uma nova realidade que substitui a anterior sem levantar as mesmas objeções
(FREUD, 1924/1993, p.194-195). Já que a perda da realidade não é exclusividade das
17 O trecho correspondente na tradução é: “La neurosis es el resultado de un conflicto entre el yo y su ello, en tanto que la
psicosis es el desenlace análogo de una similar perturbación en los vínculos entre el yo y el mundo exterior”.
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psicoses, o meio pelo qual cada estrutura substitui a realidade suprimida ganha maior
relevância que a própria perda da realidade.
Ao investigar sobre a perda da realidade e sobre um substituto para esta perda, Freud
busca descobrir um modo de o eu obter êxito, ou seja, de não cair enfermo, nem pelo fracasso
do recalque nas neuroses nem pelas alucinações nas psicoses. Para ele, um comportamento
sadio decorre da combinação de algumas características: “[...] como a neurose, não desmente
a realidade, mas, como a psicose, se empenha em modificá-la”18 (FREUD, 1924/1993, p.195).
No texto “El humor” (FREUD, 1927/1994, p.160), encontramos uma passagem digna
de nota. Freud diz que nos estudos sobre casos de paranoia ele percebe que algumas ideias de
perseguição se formam precocemente, mas se mantém sem qualquer efeito perceptivo até que
um determinado evento as precipite. Quando é retirada a quantidade de catexia que as levam a
se tornarem dominantes, há uma solução das crises paranoicas. Supomos neste fragmento um
desenvolvimento embrionário da noção de desencadeamento da psicose que nos permite
associar a questão das psicoses ordinárias, sobre as quais nos deteremos no capítulo 3 desta
Tese.
Por fim, no texto “Construcciones en el análisis”, Freud (1937b/1993) sugere uma
possível intervenção psicanalítica em casos de psicose. Se anteriormente ele privilegiava o
desligamento da realidade e a influência exercida pela realização do desejo sobre o conteúdo
dos delírios, agora verifica que eles são mais dependentes das pulsões inconscientes e do
retorno do recalcado do que havia previsto anteriormente. Apesar desta visão não ser
inteiramente nova, com ela Freud rearticula alguns elementos de forma a inscrever uma
metodologia própria à loucura, que deriva sua força de fontes infantis.
Com a constatação desta origem, Freud propõe, pela primeira vez, a possibilidade de
um tratamento analítico em casos de psicose. O trabalho terapêutico se desenvolve sobre o
núcleo de verdade histórica (FREUD, 1937b/1993, p.269) que substitui a realidade rejeitada.
Este trabalho consiste em libertar o fragmento de verdade de suas deformações e ligações com
a realidade, e conduzi-lo de volta para o passado ao qual ele pertence.
Uma primeira conclusão que pode ser depreendida deste percurso pelos textos
freudianos é que Freud não formulou um mecanismo específico para as psicoses. Desta forma,
ele não pode conceber uma especificidade da estrutura subjetiva do psicótico, apesar de, em
diversos momentos, ter apresentado elaborações que pudessem levá-lo nesta direção. Sem
estes elementos, ele não pôde recomendar o tratamento analítico a casos de psicose. Afinal,
18 O trecho correspondente na tradução é: “[…] como la neurosis, no desmiente la realidad, pero, como la psicosis, se empeña en modificarla”.
36
fazê-lo sobre os parâmetros da neurose nos faria pensar em uma direção analítica pautada na
neurotização do psicótico.
A seguir apresentaremos alguns fragmentos do caso Schreber escrito por Freud em
“Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia (Dementia paranoides) descrito
autobiográficamente” (FREUD, 1911/1993), e retomado por Lacan em O seminário, livro 3:
as psicoses (LACAN, 1955-1956/1997) e em seus Escritos (LACAN, 1959[1957-
1958]/1998). Nosso objetivo é discutir a hipótese levantada por Jacques-Alain Miller
(2008/2010, p.14) de uma psicose ordinária em Schreber, tendo em vista que o
desencadeamento da psicose do presidente ocorreu muito tardiamente.
Levantamos algumas questões como guias para o desenvolvimento deste próximo item
da Tese: o que caracteriza uma psicose ordinária? Podemos diagnosticar Schreber a partir
desta noção? O período anterior ao desencadeamento clássico da psicose extraordinária de
Schreber pode ser nomeado de psicose ordinária? A eclosão da psicose extraordinária impede
que se diga que se trata de uma psicose ordinária?
1.2 O caso Schreber escrito por Freud e retomado por Lacan
Segundo William Niederland (1981), Daniel Paul Schreber provinha de uma família
de burgueses protestantes, abastados e cultos, que já no século XVIII buscavam a celebridade
através do trabalho intelectual. Muitos de seus antepassados deixaram obras escritas sobre
Direito, Economia, Pedagogia e Ciências Naturais, onde são recorrentes as preocupações com
a moralidade e o bem da humanidade. Seu pai, Daniel Gottlieb Moritz Schreber, era médico
ortopedista e pedagogo, autor de cerca de vinte livros sobre ginástica, higiene e educação para
crianças; ele pregava uma doutrina educacional rígida e implacavelmente moralista, que
objetivava exercer um controle completo sobre todos os aspectos da vida, desde os hábitos de
alimentação até a orientação espiritual do futuro cidadão. Daniel Gottlieb acreditava que seu
trabalho contribuiria para aperfeiçoar a obra de Deus e a sociedade humana. Para garantir a
postura ereta do corpo da criança em todos os momentos do dia, inclusive durante o sono, ele
projetou e construiu vários aparelhos ortopédicos de ferro e couro. Para ele, a retidão do
espírito era fruto do aprendizado precoce de todas as formas de contenção emocional e da
supressão radical dos chamados sentimentos imorais, entre os quais naturalmente todas as
manifestações da sexualidade.
37
A autobiografia de Daniel Paul Schreber – Memórias de um doente dos nervos – foi
lançada em 1903, mas só chegou às mãos de Freud alguns anos depois. Este livro surge como
uma nova oportunidade para Freud verificar algumas hipóteses clínicas e avançar na
investigação sobre os mecanismos da paranoia.
De acordo com o texto “Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia
(Dementia paranoides) descrito autobiográficamente” (FREUD, 1911/1993), Daniel Paul
Schreber foi juiz de um tribunal de apelação em Dresden, era doutor em Direito, um “homem
de espírito superior, de inteligência inusualmente aguda e de um penetrante poder de
observação”19 (FREUD, 1911/1993, p.12; tradução nossa).
Schreber sofreu por duas vezes de distúrbios nervosos decorrentes de grande tensão
mental. A primeira doença aconteceu em 1884 quando, aos 42 anos de idade, foi internado
por um período de seis meses na clínica para doenças nervosas da Universidade de Leipzig,
dirigida pelo Dr. Flechsig. Na época, Schreber havia sido nomeado vice-presidente do
Tribunal Regional de Chemnitz após uma fracassada concorrência às eleições parlamentares
pelo Partido Nacional Liberal. No final de 1885 ele se encontrava completamente
restabelecido da grave crise de hipocondria com ideias de emagrecimento, “sem nenhum
incidente que tocasse o âmbito do sobrenatural”20 (FREUD, 1911/1993, p.13; tradução nossa).
Há relatos de que o quadro que Schreber apresentou na primeira internação era mais
grave que uma crise hipocondríaca, pois já havia manifestações delirantes não sistematizadas
e a ocorrência de duas tentativas de suicídio; há também vagas referências a um episódio de
hipocondria, datado de 1878, por ocasião de seu casamento. Essas informações se
acrescentam ao comentário de Lacan, que aponta o primeiro aparecimento da doença de
Schreber como “não sem fundamento pré-psicótico” (LACAN, 1955-1956/1998, p.76).
Este período inicial de perturbação em Schreber é denominado por Lacan de momento
fecundo. “Este momento fecundo sempre é sensível no início de uma paranoia. Há sempre
uma ruptura [...]. O desenvolvimento de causas internas de uma paranoia não é insidioso, há
sempre acessos, fases” (LACAN, 1955-1956/1998, p.26), até que uma ruptura se coloque para
o sujeito, marcando em sua história um antes e um depois. Portanto, Schreber já apresentava
um conjunto de sintomas, que só pôde ser lido no a posteriori, como indício de uma estrutura
psicótica, a partir de seu desencadeamento. Em Lacan:
19 O trecho correspondente na tradução é: “[…] hombre de sobresaliente espíritu, de inteligencia inusualmente aguda y de un penetrante poder de observación”. 20 O trecho correspondente na tradução é: “[…] sin incidente alguno que rozara el ámbito de lo suprasensible”.
38
Nada se parece tanto com uma sintomatologia neurótica quanto uma sintomatologia pré-psicótica. Uma vez formulado o diagnóstico, vão nos dizer então que o inconsciente se acha aí exposto de fora, que tudo o que é do id passou no mundo exterior, e que as significações em jogo são tão claras que não podemos precisamente intervir de maneira analítica (LACAN, 1955-1956/1998, p.218-219).
Em 1893 uma segunda internação foi necessária. Schreber foi nomeado para o cargo
de juiz-presidente da Corte de Apelação de Dresden, no qual trabalhou como Senatsprasident
por apenas dois meses. A nomeação, indicada por determinação direta do rei, era irreversível,
e sua recusa implicava em delito de lesa-majestade. Além de ser jovem para presidir um
tribunal de apelação daquela importância, ele iria se relacionar com pessoas muito mais
experientes que ele no manejo de processos difíceis e delicados. Essa promoção pode ser
considerada, à primeira vista, o ponto desencadeador da psicose extraordinária de Schreber,
que só se evidencia claramente nesta segunda internação.
Na época de sua segunda enfermidade ele sonhou que o distúrbio nervoso havia
voltado: algumas vezes nesse período, entre o sono e a vigília, teve uma ideia que certamente
rejeitaria com veemência se estivesse consciente: “a representação da grande beleza que é sem
dúvida ser uma mulher submetida ao coito”21 (Cf. FREUD, 1911/1993, p.14; tradução nossa).
Schreber voltou a procurar Flechsig. Foi levado para o hospital Lindenhof e, em seguida, ao
sanatório de Sonnenstein, de onde saiu apenas oito anos depois.
Esta segunda enfermidade foi inicialmente marcada por uma grave insônia e seguida
de uma crise de hipocondria: ele dizia sofrer de um amolecimento do cérebro e que iria
morrer cedo. Mais adiante apareceram ideias de perseguição, ilusões visuais e auditivas,
estupor alucinatório, despedaçamento corporal – ausência de bexiga, estômago e intestinos,
quase sem pulmão, com o esôfago rasgado, costelas despedaçadas (FREUD, 1911/1993, p.17)
–, distúrbios cenestésicos que dominavam seus pensamentos e sentimentos. Além destes
fenômenos elementares concernentes ao corpo, o sistema delirante de Schreber assumia
gradativamente um caráter místico e religioso. Freud diagnostica o segundo padecimento de
Schreber como uma psicose aguda, denominada de insanidade alucinatória, com uma
elaborada estrutura delirante. A psicose de Schreber eclode nos moldes de uma psicose
extraordinária.
Apesar de nos causar imenso interesse, não iremos n
39
Além disso, orientados pela afirmação de Miller sobre a possibilidade do diagnóstico de
psicose ordinária (MILLER, 2008/2010, p.12), apresentamos algumas conclusões que nos
permitem começar a responder às questões colocadas no preâmbulo deste item da Tese.
Destacamos que os fenômenos da psicose ordinária de Schreber são velados pelos
chamados distúrbios nervosos decorrentes de grande tensão mental (FREUD, 1911/1993,
p.13). Tanto na primeira quanto na segunda enfermidade, estes distúrbios dizem respeito a
uma crise de hipocondria com ideias de emagrecimento. Eles nos permitem inferir que, em
Schreber, o início da sintomatologia psicótica concerne basicamente a fenômenos do corpo.
Miller (2009/2010, p.13) ensina que, quando uma psicose não é evidente, devemos nos
voltar para pequenos índices que apontam para o que Lacan nomeou de “uma desordem
provocada na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito” (LACAN, 1957-
1958/1998, p.565). Para Miller (2009/2010, p.14), esta desordem no sentimento de vida pode
ser encontrada nos registros corporal, social e subjetivo. Quando se trata da externalidade
corporal, ele destaca que tanto a neurose quanto a psicose são marcados por uma estranheza
do sujeito em relação ao corpo próprio. Portanto, um diagnóstico diferencial não pode estar
pautado na presença ou ausência destes fenômenos de automatismo corporal – como, por
exemplo, a vivência de uma decomposição, de um desmembramento, as distorções do tempo
e/ou do espaço (MILLER, 1987/1997, p.227) –, mas sim na tonalidade que se apresentam em
uma determinada estrutura. Depreendemos assim que a grave crise de hipocondria que leva
Schreber à primeira internação possui este tom excessivo, e caracteriza os fenômenos
corporais desta psicose.
De acordo com Freud, Schreber sai desta primeira internação completamente
restabelecido, sem a ocorrência de quaisquer incidentes que tocassem as raias do sobrenatural
(FREUD, 1911/1993, p.13). Se retomamos os ensinamentos de Lacan sobre pré-psicose,
podemos interpretar esta passagem freudiana como índice de uma psicose ainda não
deflagrada, em uma fase de “incubação pré-psicótica” (LACAN, 1955-1956/1997, p.247).
Esta indicação é fundamental quando se trata do desencadeamento de uma psicose, assunto
que será desenvolvido detalhadamente no capítulo 2 desta Tese.
Mas, para avançarmos neste trabalho de pesquisa sobre uma possível psicose ordinária
em Schreber, vale notar que, conforme o primeiro ensino de Lacan o desencadeamento:
É num acidente desse registro e do que nele se realiza, a saber, na foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro, e no fracasso da metáfora paterna, que apontamos a falha que confere à psicose sua condição essencial, com a estrutura que a separa da neurose (LACAN, 1959[1957-1958]/1998, p.582).
40
A característica fundamental desta noção é o fato de o desencadeamento inscrever uma
ruptura que diferencia um antes e um depois de forma radical. Esta ruptura não se inscreve
neste momento da enfermidade de Schreber. O que houve para que a psicose de Schreber não
tenha sido desencadeada na primeira enfermidade?
Seguindo as investigações de Miller (2009/2010, p.23-24) sobre o tema da psicose
ordinária, podemos pensar que este desencadeamento não ocorreu porque Schreber contava
com um compensatory make-believe (CMB), um fazer-crer compensatório do Nome-do-Pai.
O CMB funciona como um elemento ordenador do mundo de um sujeito na medida em que
possui a propriedade do Nome-do-Pai, sem sê-lo. Quando o CMB é rompido, o
desencadeamento de uma psicose se manifesta.
Só podemos localizar um desencadeamento da psicose de Schreber em sua segunda
internação. Ela acontece logo após a nomeação de Schreber ao cargo de Senatsprasident.
Associamos essa promoção como o ponto desencadeador de sua psicose extraordinária, pois
ao assumir este posto ele iria “se relacionar com pessoas muito mais experientes que ele no
manejo de processos difíceis e delicados”. Após um primeiro período no qual a hipocondria
trouxe uma desorganização fundamentalmente corporal, Schreber experimentou uma
estabilização que o permitiu atingir uma posição bastante importante como juiz.
Retomando os registros nos quais Miller aponta a desordem mais íntima do ser,
propomos pensar a nomeação de Schreber como vice-presidente do Tribunal Regional de
Chemnitz e posteriormente como juiz-presidente da Corte de Apelação de Dresden. Seguindo
Miller, a externalidade social é caracterizada por sinais de impotência, desconexão e
desligamento da identificação do sujeito com sua função social. Podemos localizá-la em
Schreber na constatação de que ambas as nomeações foram seguidas de graves crises de
hipocondria? Pelo ensino de Lacan, entendemos que ao ser solicitado a responder do ponto de
vista do Nome-do-Pai, Schreber falha. Esta impossibilidade desencadeia a psicose e exige
uma reorganização do mundo pelas vias da metáfora delirante Mulher de Deus. Citamos
Miller:
O que teria acontecido se Schreber tivesse vindo à análise antes do desencadeamento de sua psicose? Ainda não havia a psicanálise naquela época, mas imaginem que ele tivesse sido tratado por Freud. Talvez antes dos cinquenta e um anos, vocês já teriam podido observar particularidades na construção de seu mundo, que os teria levado a dizer que ele era um psicótico ordinário. Freud não conhecia a psicose ordinária – é claro que ele conhecia muitas coisas bem mais importantes –, mas talvez o que chamamos de psicose ordinária seja uma psicose que não se manifesta até seu desencadeamento (MILLER, 2009/2010, p.12).
41
Vale notar que Miller inscreve no CMB a possibilidade de o psicótico se reorganizar
tão bem quanto antes do desencadeamento. Isto explica o fato de Schreber restabelecer, com
suas Memórias, uma espécie de atividade compensatória que o possibilitou não só certa
estabilização, mas também reaver a posse dos direitos que havia perdido com sua internação.
Sabe-se que Schreber alcançou uma estabilização precária durante o longo período de
escrita de suas Memórias e se manteve estabilizado por um período mesmo depois da
publicação de sua autobiografia. Mas, distinto do caso Joyce – que Lacan trabalha em O
seminário, livro 23: o sinthoma (LACAN, 1975-1976/2007, p.75-87) –, o escrito schreberiano
denota uma suplência posterior ao desencadeamento de sua psicose, ao contrário de Joyce
cuja suplência pelo ego evitou a catástrofe. Ao final do segundo capítulo desta Tese serão
acrescentadas algumas questões introduzidas por Lacan em O seminário 23, em torno da
pergunta se Joyce é louco ou não.
Após a alta no final de 1902, Schreber levou uma vida aparentemente normal por
alguns anos até que, em 1907, sua esposa sofreu uma crise de paralisia que provavelmente
precipitou um novo aparecimento da patologia delirante. Foi novamente internado e ali
permaneceu inabordável e fortemente perturbado. Após um período de gradual deterioração
física morreu na primavera de 1911 (FREUD, 1911/1993, p.7).
A psicose ordinária gera muitas discussões no Campo freudiano. Como dissemos na
Introdução desta Tese, com esta terminologia Miller propõe um campo de investigação no
qual uma estrutura psicótica não se evidencia de forma tão clara como acontece após a
irrupção de um surto. Os fenômenos elementares e o delírio se apresentam de uma forma tão
discreta que algumas vezes confunde o analista em seu diagnóstico diferencial.
O maior impasse em relação à psicose ordinária gira em torno do desencadeamento.
Alguns analistas, como Marie-Hélène Brousse, acreditam que a psicose ordinária é uma
psicose desencadeada:
[...] a psicose ordinária é uma psicose desencadeada ou não? Penso que ela é. Entre nós, alguns pensam que ela não é [...]. Portanto, penso que se trata de uma psicose desencadeada. O problema agora é saber se esse desencadeamento tem uma especificidade (BROUSSE, 2008/2009, p.12).
Sendo assim, a terminologia psicose ordinária pode ser utilizada em casos nos quais
uma psicose não deflagrada possa desencadear e se tornar uma psicose extraordinária.
Seguindo esta lógica, falamos de uma psicose ordinária até o momento da eclosão psicótica.
A especificidade do desencadeamento é a possibilidade de um encadeamento após um surto,
fazendo com que a fenomenologia ruidosa se arrefeça novamente.
42
No entanto, há analistas que mostram uma opinião distinta. Eles acham que uma
psicose ordinária é caracterizada pela ausência do desencadeamento, o que não impede que
fenômenos psicóticos possam existir de uma forma bastante branda ou até mesmo silenciosa.
Nesta perspectiva encontramos a clareza de Jacques-Alain Miller e de Graciela Brodsky. Ele
nos diz que “há psicoses adormecidas, como existem espiões adormecidos, que jamais
acordarão. Há diferença entre as psicoses que podem ser desencadeadas e as que não podem”
(MILLER, 2009/2010, p.23). Nesta mesma direção Brodsky afirma que “a psicose ordinária
tem um modo de enodamento que não implica o desencadeamento [...]. É uma psicose que
não desencadeou nem vai desencadear” (BRODSKY, 2009/2011, p.47).
Levando em consideração a posição de ambos, não podemos afirmar que Schreber seja
um psicótico ordinário. Por mais que ele contasse com o compensatory make-believe (CMB)
que permitiu que a psicose não se desencadeasse na primeira internação, e que a escrita lhe
fornecia uma estabilização temporária, o sistema delirante era evidenciado por um conjunto
de fatores: hipocondria, irritabilidade, distúrbio do sono, tentativas de suicídio e ideias de
emagrecimento. Isto faz crer que havia um sistema delirante que estava prestes a ser
desencadeado, aguardando apenas um momento fecundo para vir à tona.
1.3 Sobre o diagnóstico do Homem dos Lobos
Em uma via distinta do que apresentamos sobre Schreber – onde uma psicose
extraordinária se evidencia de forma clara pelos fenômenos elementares e por um sistema
delirante consistente –, neste item da Tese investigaremos a hipótese de uma psicose ordinária
no caso freudiano do Homem dos Lobos. O relato de Freud mostra alguns índices que nos
possibilitam tomar Sergei Pankejeff como um caso paradigmático, pois no período em que ele
o atendia não se verificava a presença de alucinações típicas ou transtornos de linguagem tão
comuns em casos de psicoses desencadeadas. Apesar de localizarmos alguns elementos que
indicam ao menos uma fenomenologia psicótica na época em que ele se analisava com Freud
– a posição fixa do olhar dos lobos e a alucinação do dedo cortado, por exemplo –, ainda hoje
o Homem dos Lobos suscita discussões sobre o diagnóstico diferencial entre neurose e
psicose.
Destacamos que na época em que relata este caso clínico, Freud está sob a influência
de dois postulados: os acontecimentos traumáticos da primeira infância e a cena primária são
43
fundamentais para a produção das afecções neuróticas. Com estas ferramentas clínicas Freud
diagnostica o Homem dos Lobos como um caso de neurose infantil e, sem perceber, descreve
o mecanismo de foraclusão da psicose, Verwerfung, do qual Lacan se serve em todo o seu
primeiro ensino.
Sabemos que o Homem dos Lobos tornou publica sua história psicanalítica com Freud
e, graças a essas publicações, podemos ter acesso aos desenvolvimentos de suas duas análises
posteriores, com Ruth Mack Brunswick e Muriel Gardiner. Portanto, ao final de nossa
exposição do caso de Freud, iremos retomar alguns elementos destas outras análises, com o
intuito de defender que a fenomenologia psicótica do sujeito já estava presente desde o início
da análise com Freud, mas se torna evidente apenas no tratamento com Brunswick e Gardiner.
Assim, propomos realizar uma leitura do texto “De la historia de una neurosis infantil”
(FREUD, 1918[1914]/1994), baseada em algumas interpretações de Lacan, em seu retorno a
Freud. Além disso, iremos cotejar nosso trabalho com as considerações de Jacques-Alain
Miller e de Agnès Aflalo, analistas que se detiveram neste tema com bastante esmero.
Partimos de algumas questões iniciais. Podemos afirmar que o Homem dos Lobos é
um caso de psicose? No período em que ele era atendido por Freud, o diagnóstico de psicose
ordinária cabe ao Homem dos Lobos? O que levou Freud a diagnosticá-lo como uma neurose?
Estas questões são fundamentais, na medida em que o diagnóstico do Homem dos
Lobos não é unânime no campo psicanalítico. Muitos analistas se detiveram neste caso
freudiano sem que tenha se chegado a nenhuma conclusão definitiva. Em relação a este
impasse, Miller (1987/2009, p.10) esclarece que:
A variedade dos diagnósticos é na realidade fundada sobre o que Freud nos traz: um caso em que se avizinham ligações libidinais as mais contraditórias e variadas. Todo o esforço de Lacan, com acentos variados, incide essencialmente sobre a organização das diversas ligações libidinais coexistentes. Ele vai buscar organizá-las repartindo-as, eventualmente estratificando-as, e mesmo hierarquizando-as. Os diagnósticos dependem então do modo como organizam essas ligações libidinais: neurose com tendência psicótica, caso-limite com tendência a acting-out, obsessão com forte coloração paranóide etc. (grifo do autor).
Vale notar que no texto “Homem dos Lobos”, Miller (1987/2010) ainda não havia
proposto o programa de investigação sobre as psicoses ordinárias. Como esta pesquisa
começa apenas dez anos depois da escrita deste texto, Miller não conta com esta categoria
para situar a questão do diagnóstico. Em uma interpretação no a posteriori, podemos concluir
que o cerne do impasse que leva Miller a causar o Campo freudiano para uma retomada das
psicoses em Lacan, já se encontra latente na década de 80. Portanto, iremos nos deter neste
texto de Miller sem perder de vista suas elaborações posteriores sobre as psicoses ordinárias,
44
pois apostamos que o paradigmático do caso de Freud pode ser esclarecido pelas descobertas
deste programa de pesquisa.
Quando chegou ao consultório de Freud, Sergei Pankejeff tinha18 anos de idade. O
que o levou a buscar uma análise foi uma infecção orgânica que o deixou inteiramente
incapacitado e dependente de outras pessoas (FREUD, 1918[1914]/1994, p.9). A primeira
fase do tratamento se desenvolveu entre 1910 e 1914, ano em que Freud conclui esta análise e
inicia a escrita do caso. Segundo o relato de Freud, trata-se de uma neurose da vida adulta
precedida por uma neurose infantil, iniciada em torno dos quatro anos de idade. Freud
diagnostica o Homem dos Lobos como “uma histeria de angústia (na forma de uma fobia
animal), que se transformou então numa neurose obsessiva de conteúdo religioso e perdurou,
com as suas manifestações, até os dez anos” (FREUD, 1918[1914]/1994, p.9-10).
No texto em que relata este caso, Freud divide a história clínica do Homem dos Lobos
da seguinte forma: 1) período que se estendeu até a sedução da irmã, quando o menino tinha
em torno de três anos; 2) ocasião em que ocorreu uma alteração de comportamento no menino
até o sonho de angústia com os lobos, aproximadamente aos quatro anos; 3) momento em que
a fobia animal foi sucedida por uma iniciação religiosa, alguns meses após o período
precedente; 4) tempo de irrupção da neurose e dos sintomas obsessivos, até seus dez anos de
idade (FREUD, 1918[1914]/1994, p.58).
De forma a tornar nossa pesquisa didática, seguiremos esta divisão proposta por Freud.
Além disso, discorreremos brevemente sobre as tipologias clínicas que aparecem durante o
relato do caso, direcionando o leitor para o nosso objetivo, a saber, contrastar o diagnóstico
freudiano com a questão da psicose ordinária, que levantamos como uma hipótese de
investigação.
Quando fala sobre o diagnóstico do Homem dos Lobos, Freud não duvida que se trate
de uma neurose infantil. Mas em alguns momentos do texto ele indica que, em relação à
patologia apresentada pelo paciente, haviam outras opiniões contrárias à dele. Ele se refere ao
fato de que ao chegar ao seu consultório, Sergei Pankejeff já havia consultado outros
psiquiatras – como Kraepelin, em Munique, e Bleuler, em Zurique – que o diagnosticaram
como uma psicose maníaco-depressiva. Nas palavras de Freud: “Assim, formulei a ideia de
que este caso, como tantos outros que a psiquiatria clínica rotulou com diagnósticos variáveis
e modificáveis, deveria se converter como sequela de uma neurose obsessiva que se extinguiu
45
de maneira espontânea, porém curou de forma deficiente” (FREUD, 1918[1914]/1994, p.10;
tradução nossa)22.
Acompanhamos a dificuldade de Freud manter sua hipótese diagnóstica, divergente da
dos melhores especialistas em psiquiatria, e seu temor em não poder esclarecer a articulação
dos dados recolhidos no percurso do tratamento do paciente. Em diversas passagens do texto
alguns enigmas questionam o diagnóstico de neurose. Segundo Freud, muitos detalhes
pareceram tão extraordinários e incríveis que ele sentiu certa hesitação em pedir a outras
pessoas que acreditassem neles (FREUD, 1918[1914]/1994, p.13).
Levantamos a hipótese de que a dificuldade em relação ao diagnóstico decorre da não
localização do pai em sua função estruturante: nem na vertente de sua presença, que indicaria
o campo da neurose, tampouco na vertente de sua ausência, como nos casos de psicose
extraordinária. Estamos diante de outra configuração da presença do pai que, apesar de ser
inadequada ao modelo edípico standard sustentado no pai como ideal, constituiu um suporte
para que a psicose do Homem dos Lobos não se desencadeasse, como a de Schreber.
1.3.1 As primeiras expressões da neurose infantil
O contexto familiar foi bastante explorado por Freud no caso do Homem dos Lobos,
na medida em que este tema facilitou o mapeamento das relações do paciente com as figuras
mais importantes de sua história. Desde pequeno Sergei Pankejeff tinha noção da fragilidade
da saúde de sua mãe – que sofria de distúrbios abdominais –, e da de seu pai, que padeceu de
diversas crises de depressão que o levaram a se ausentar de casa por longos períodos.
Apesar da aparição da mãe em diversas passagens do caso, ressaltamos, a partir da
leitura de Deffieux (2006/2007), não haver uma triangulação edipiana. A ausência desta
triangulação resume o conflito inconsciente do Homem dos Lobos exclusivamente à relação
pai-filho e se torna determinante para o posicionamento subjetivo do paciente neste caso.
Retomando a divisão clínica realizada por Freud, percebemos que o amor ao pai
produz modificações na posição subjetiva do Homem dos Lobos. Podemos organizá-las da
seguinte forma. O que começa como uma identificação ao pai, “ser o filho do pai”, “ser
22 O trecho correspondente na tradução é: “Así me formé la idea de que este caso, como tantos otros a los que a psiquiatría clínica pone el marbete de variados y cambiantes diagnósticos, debía concebirse como secuela de una neurosis obsesiva que se extinguió de manera espontánea, pero sanó deficientemente”.
46
homem como o pai”, se converte em uma escolha de objeto: o Homem dos Lobos “quer se
fazer amar pelo pai como uma mulher”, mas para isso deve aceitar a castração. Na cena da
sedução, o componente masoquista se torna prevalente na economia libidinal: o “fazer-se
amar como uma mulher” é substituído pelo “fazer-se bater pelo pai”. Na fobia há uma nova
modificação: o amor pelo pai é negado e se torna “fazer-se devorar pelo lobo”. Finalmente,
por meio de uma sublimação do masoquismo ocorrida após o processo fóbico, o “fazer-se
amar pelo pai” retorna não mais “como uma mulher”; agora esta mulher é especificada como
uma mãe capaz de dar uma criança ao pai (AFLALO, 2010, p.18).
Como dissemos acima, o principal vetor deste caso clínico e toda a discussão sobre o
diagnóstico do Homem dos Lobos, pode ser situado nesta configuração atípica do pai. Em
relação a esta questão, Miller (1988/2010, p.43) aponta duas vertentes fundamentais. Em um
primeiro tempo encontramos o pai do Homem dos Lobos com a função de um Nome-do-Pai,
na medida em que ele tempera a angústia do menino, reduzindo-a por meio de uma
significantização genital. Depois, temos a predominância do medo e da angústia do Homem
dos Lobos, que aponta para um pai devastador no sentido da assunção da castração. Não só o
pai, mas também outras figuras contribuem para o padecimento do Homem dos Lobos.
Podemos citar a irmã dois anos mais velha, “vivaz, dotada, precocemente maliciosa”
(FREUD, 1918[1914]/1994, p.14-15) que desempenhou um papel fundamental em sua vida e
em seu adoecimento. Além da família nuclear, outras figuras femininas são importantes para
pensarmos o caso: a babá Nanya – idosa de origem camponesa que nutria uma grande afeição
por Sergei – e uma governanta inglesa a quem, no primeiro momento, recaiu toda a
responsabilidade pela mudança no comportamento e o início da neurose do menino. Em uma
primeira análise, Freud aponta um excesso na feminilidade dessas mulheres que o cercaram
na época do seu adoecimento: a governanta geniosa, excessiva e viciada em bebida, a irmã
maliciosa que o atormentava e amedrontava e a babá excessivamente amorosa. Levantamos
uma pergunta: como esses excessos interferem no adoecimento do paciente?
Freud não se detém diretamente neste assunto, mas associa o início da patologia do
paciente à ameaça de castração provinda de uma destas figuras:
Parece que de início foi uma criança mansa, dócil, e bem tranquila, por isso costumavam dizer que ele deveria ter sido a menina e sua irmã mais velha o menino. Porém uma vez seus pais regressaram das férias de verão e o encontraram transformado. Havia se tornado descontente, irritável, violento, considerava-se afrontado por qualquer motivo e então se embravecia e gritava como um selvagem (FREUD, 1918[1914]/1994, p.15; tradução nossa)23.
23 O trecho correspondente na tradução é: “Parece que al principio fue un niño manso, dócil, y más bien tranquilo, y por eso solían decir que él habría debido ser la niña, y su hermana mayor el varón. Pero cierta vez que sus padres regresaron del viaje
47
Partindo de algumas lembranças encobridoras trazidas por Sergei, Freud sugere que a
mudança de comportamento do menino pode estar associada às ameaças proferidas pela
governanta. O resultado desta associação é a produção de alguns sonhos nos quais o paciente
realizava ações agressivas contra a irmã e a governanta. De acordo com Freud, essas
reminiscências são fantasias que ele havia elaborado sobre a sua infância, provavelmente na
puberdade, e que estavam articuladas a práticas sexuais que a irmã o induzira quando
pequeno. Freud se questiona sobre a transformação ocorrida no caso do Homem dos Lobos:
uma passividade fundamental dava lugar a uma atividade agressiva. Um trabalho a posteriori,
permite reconhecer o primeiro indício da coexistência de duas correntes opostas: uma que
aceita a castração e outra que a abomina. Mas Freud vai explicá-la por uma sucessão de etapas
existente no desenvolvimento da neurose obsessiva.
No texto “Nuevas puntualizaciones sobre las neuropsicosis de defensa” (FREUD,
1896d/1992, p.169) Freud afirmara que as experiências sexuais da primeira infância possuem
um papel fundamental na etiologia da neurose obsessiva. Porém, ao contrário da histeria, na
obsessão não se trata de passividade no período pré-sexual, mas sim de uma atividade que
concerne a atos de agressão praticados com prazer e de participação prazerosa em atos
sexuais. Ele enfatiza a presença de substratos de sintomas histéricos em todos os casos de
neurose obsessiva, o que o leva a crer na existência de uma experiência de passividade sexual
precedendo a ação prazerosa.
Neste mesmo texto Freud periodiza os eventos responsáveis pela causação da neurose
obsessiva em três tempos: na terna infância, “período da imoralidade infantil”, está localizado
o germe da neurose, pois nessa fase ocorrem as experiências de sedução sexual que serão as
fontes do recalcamento. O advento da “maturidade sexual” inaugura uma nova fase onde uma
autoacusação é associada à lembrança destas ações sexuais prazerosas. O terceiro período é
caracterizado pelo fracasso do mecanismo de defesa e, consequentemente, pelo retorno das
lembranças recalcadas. Elas retornam como representações e afetos obsessivos, nomeados de
formações de compromisso. Para Freud, “as representações obsessivas são sempre censuras
transformadas, que retornam do recalque {desalojamento} e estão sempre referidas a uma
ação da infância, um ato sexual realizado com prazer”24 (FREUD, 1896d/1992, p.170, grifos
do autor; tradução nossa).
de verano lo hallaron mudado. Se había vuelto descontentadizo, irritable, violento, se consideraba afrentado por cualquier motivo y entonces se embravecía y gritaba como un salvaje”. 24 O trecho correspondente na tradução é: “[..] las representaciones obsesivas son siempre reproches mudados, que retornan de la represión {desarojo} y están referidos siempre a una acción de la infancia, una acción sexual realizada con placer”.
48
Com estes elementos teóricos, Freud conclui que a modificação do caráter do menino
é consequência do episódio de sedução.
Miller (1988/2010, p.38) se detém nesta questão acrescentando novos elementos à
nossa discussão:
Inicialmente, essa maldade responde a uma virilidade de reação relativa à passividade fundamental. Em seguida, torna-se um apelo à punição, e não faz senão repercutir e intensificar a passividade fundamental. A mesma atitude agressiva do Homem dos Lobos tem um duplo valor. Primeiramente, o de negar no semblante sua passividade; em segundo lugar um apelo à punição e, portanto, a apanhar do pai. Sob o sadismo do Homem dos Lobos se oculta um masoquismo.
Articulando esta modificação ocorrida no comportamento do menino com o episódio
de sedução, Freud (1918[1914]/1994, p.23) situa a posição do Homem dos Lobos frente à
castração:
Como reagiu o menino às seduções de sua irmã mais velha? Eis aqui a resposta: com desautorização, porém a desautorização se dirigia à pessoa, não a própria coisa. A irmã não era mais atraente como objeto sexual, provavelmente porque sua relação com ela já estava marcada pela hostilidade e pela competência em torno do amor dos pais. Ele a evitou, e também o cortejo dela logo terminou25 (tradução nossa).
Neste fragmento clínico, Freud diz que inicialmente houve uma rejeição: o paciente
“rejeitou a castração e apegava-se à sua teoria da relação sexual pelo ânus”, decidindo-se
finalmente “a favor do ânus contra a vagina”. Essa rejeição – Verwerfung – não se refere à
castração no sentido do recalque, mas Freud não fornece nenhum elemento a mais que defina
de forma clara a especificidade destes mecanismos.
Recorremos a Lacan (1955-1956/1998, p.173) para entender que essa posição inicial
de rejeição do Homem dos Lobos concerne à foraclusão da castração, ou seja, uma foraclusão
do falo – phi zero. Isto nos leva a dizer que, neste caso, a castração não atinge um
reconhecimento simbólico, ela permanece no registro do real, fora de toda significação.
Seguimos Freud (1918[1914]/1994, p.78):
Primeiro resistiu e depois cedeu, porém uma reação não havia cancelado a outra. No final subsistiram nele, lado a lado, duas correntes opostas, uma das quais abominava a castração
25 O trecho correspondente na tradução é: “¿Cómo reaccionó el niño ante las seducciones de su hermana mayor? He aquí la respuesta: con desautorización, pero la desautorización se dirigía a la persona, no a la cosa misma. La hermana no le resultaba grata como objeto sexual, probablemente porque su relación con ella ya estaba marcada en sentido hostil por la competencia en torno del amor de los padres. La rehuyó, y también los cortejamientos de ella pronto terminaron”.
49
enquanto a outra estava pronta a aceitar e se consolar com a feminilidade, como compensação26 (tradução nossa).
Ao expor esta atitude do paciente frente à castração, Freud menciona dois outros
mecanismos além da rejeição: na corrente em que ele abomina a castração aparece o
mecanismo de recusa; naquela em que ele se consola com a feminilidade como compensação,
surge uma aceitação. O que intriga Freud é o fato de Sergei pensar na castração sem nenhuma
crença em relação a ela e vê-la por todos os lados sem estar convicto de sua operatividade.
Portanto, ele responde de três formas distintas: pela foraclusão, pela recusa e pela aceitação.
De acordo com Agnès Aflalo (2010, p.15), essas respostas revelam uma psicose
constituída em dois tempos: no primeiro se localiza a Verwerfung da castração; no segundo a
recusa e a aceitação expressam suplências sintomáticas decorrentes da foraclusão, mas que
não a anulam.
Miller (1987/2010, p.10-11) já havia esquematizado estas respostas a partir de uma
arquitetura tripla: 1) Verwerfung da castração na correspondência com a analidade (coito
anal); 2) o reconhecimento da castração que incide ao mesmo tempo sobre o resistir e o ceder
à mesma. Ambos os movimentos referidos a analidade enquanto posição feminina. Ele
(MILLER, 1987/2010, p.12) mostra inclusive que se trata de uma coexistência da foraclusão e
do reconhecimento da castração. E esclarece a forma como Lacan trata este impasse
freudiano, ou seja, distinguindo os elementos que competem ao imaginário daqueles que são
da ordem simbólica. Em relação ao primeiro, Lacan situa “uma captura homossexualizante,
feminizante”, decorrente da identificação do Homem dos Lobos com a mãe, a partir da matriz
imaginária da cena primária. Por outro lado, Lacan estabelece a identificação ao pai no
registro simbólico, por meio da posição viril e do “eu não sou castrado”.
Como dissemos acima, esta identificação ao pai não é suficiente para tornar a
castração operativa, como nos casos de neurose. Nas palavras de Miller (1987/2010, p.50-51):
[...] em relação à castração, o Homem dos Lobos tem o pensamento, mas não tem a crença nem a angústia. O Homem dos Lobos tem, portanto, uma relação com o fato. Há até uma relação com a significação, quer dizer, que ele pensa, que coisas o fazem pensar. Mas ao mesmo tempo há um defeito de convicção ou de consentimento.
Adiantamos que estas três respostas do Homem dos Lobos frente à castração serão
localizadas a partir de fragmentos clínicos do caso.
26 O trecho correspondente na tradução é: “Primero se había revuelto y luego cedió, pero una reacción no había cancelado a la otra. Al final subsistieron en él, lado a lado, dos corrientes opuestas, una de las cuales abominaba de la castración, mientras la otra estaba pronta a aceptar y consolarse con la feminidad como sustituto”.
50
Em primeiro lugar, Freud (1918[1914]/1994, p.24) procede uma leitura da recusa da
castração em uma cena infantil na qual o Homem dos Lobos observou os genitais femininos e,
ao invés de ratificar as ameaças de castração proferidas pela babá, ele respondeu que aquilo
era o ‘traseiro frontal’ das meninas. Esta passagem denota uma foraclusão da realidade da
castração feminina e um deslocamento da significação do pênis para uma outra parte do corpo
da mulher, qual seja, o traseiro. Portanto, para o menino uma mulher era definida pela
presença do traseiro e não pela falta de pênis.
Assim, o Homem dos Lobos construiu a hipótese de que a doença da mãe era
consequência do ato sexual que ele supostamente presenciou na infância. Articulando os
distúrbios intestinais, o sonho com os lobos e a cena primária, Freud afirma que o sonho
fornece ao menino a compreensão de que as mulheres são castradas, pois elas possuem uma
‘ferida’ utilizada no ato sexual. Ou seja, a relação sexual não se dava por meio da vagina, mas
sim do ânus. A constatação da foraclusão da castração feminina e da eleição do intestino
como novo órgão de gozo surpreende Freud na medida em que contradiz a ameaça de
castração que ele postulara anteriormente:
As experiências que havia escutado despertaram e puseram em dúvida a ‘teoria da cloaca’, o levaram ao discernimento da diferença entre os sexos e do papel sexual da mulher. Então, ele se comportou como parecem fazer os meninos aos quais se dá um esclarecimento indesejado – sexual ou de outra ordem. Rejeitou o novo – em nosso caso por motivos derivados da angústia diante da castração – e se ateve ao antigo. Decidiu-se a favor do intestino e contra a vagina, da mesma maneira e pelos mesmos motivos que mais tarde tomou partido contra Deus e a favor de seu pai (FREUD, 1918[1914]/1994, p.73; tradução nossa)27.
O mecanismo de recusa à castração desloca o pênis para o traseiro, construindo uma
universalidade do gozo na qual “não existe nenhum ser humano que não tenha um traseiro”
(SOUTO, 2010, p.7). Essa solução se sustenta na recusa da castração feminina e permite ao
Homem dos Lobos uma regulação do problema da sexuação.
Desta universalidade, Miller (1897/2009, p.17-18) depreende duas concepções sobre a
teoria da relação sexual no Homem dos Lobos:
[...] temos a concepção anal, isto é, nada de noção de ‘sem pênis’; depois temos o que é para ele um reconhecimento da castração, quer dizer, uma noção de ‘sem pênis’, há uma ferida nesse lugar nas mulheres. Então, é concebível que o estatuto do ser humano e o atributo ‘dispor de um pênis’ estejam disjuntos [...]. Isto quer dizer que o debate sobre o Homem dos
27 O trecho correspondente na tradução é: “Las experiencias que había escuchado, despertaron y pusieron en duda la ‘teoría de la cloaca’, le arrimaron el discernimiento de la diferencia entre los sexos y del papel sexual de la mujer. Se comportó entonces como suelen hacerlo los niños a quienes se da un esclarecimiento indeseado – sexual o de otra clase –. Desestimó lo nuevo – en nuestro caso por motivos derivados de la angustia frente a la castración – y se atuvo a lo antiguo. Se decidió a favor del intestino y contra la vagina, de la misma manera y por los mismos motivos que más tarde tomó partido contra Dios y a favor de su padre”.
51
Lobos entre concepção anal e concepção genital ou desenvolvida, é na verdade o intestino ou a vagina. Com efeito, ele formula a escolha nestes termos: ou o ânus ou a castração.
Freud também investiga a efetividade da castração pelo estatuto do objeto amoroso
encontrado no papel fundamental da irmã no que diz respeito à escolha heterossexual. O
objeto amoroso é marcado pela depreciação, tão comum nos casos de neurose obsessiva.
Contudo, há uma especificidade neste caso da qual Freud não retira todas as consequências
clínicas. Não se trata de uma escolha de objeto da neurose obsessiva. Para o Homem dos
Lobos o enamoramento comporta uma condição necessária: ele está apenso à posição do
corpo de uma mulher – fisicamente rebaixada (FREUD, 1918[1914]/1994, p.86), vista de
costas, com o traseiro proeminente – que faz com que a depreciação do objeto amoroso esteja
no registro do imaginário. “As relações sexuais com as mulheres são uma realização iterativa
da fantasia da cena primitiva na qual o sujeito deve fazer o papel do pai” (AFLALO, 2010,
p.28).
Como dissemos anteriormente, nesse período, o componente masoquista se torna
prevalente na economia libidinal do Homem dos Lobos, acarretando uma substituição do
“fazer-se amar como uma mulher” pelo “fazer-se bater pelo pai”. Esta substituição é descrita
pela fantasia em que “os meninos eram castigados e surrados; particularmente lhes batiam no
pênis”28 (FREUD, 1918[1914]/1994, p.25; tradução nossa). As tendências masoquistas,
inicialmente fundamentadas nas figuras da irmã e da babá, são transferidas para o pai. “Este
objeto de identificação de sua corrente ativa passou a ser o objeto sexual de uma corrente
passiva na fase sádico-anal”29 (FREUD, 1918[1914]/1994, p.26; tradução nossa). Dessa
forma, a posição passiva do Homem dos Lobos em relação às mulheres, agora foi tomada
frente a um homem: a identificação foi substituída pela escolha objetal (FREUD,
1918[1914]/1994, p.27). Inicia-se o período da histeria de angústia na forma de uma fobia
animal.
1.3.2 Histeria de angústia na forma de uma fobia animal
28 O trecho correspondente na tradução é: “[…] unos muchachos eran castigados y azotados; en particular, les pegaban en el pene”. 29 O trecho correspondente na tradução é: “[…] este objeto de identificación de su corriente activa pasó a ser el objeto sexual de una corriente pasiva en el fase sádico-anal”.
52
Um outro elemento que nos fornece indícios para retomarmos a hipótese de uma
psicose ordinária é o estatuto da fobia do Homem dos Lobos. Para esclarecermos este ponto,
nos servimos de algumas especificidades da fobia de Hans. Iremos nos deter essencialmente
em três pontos: o estatuto da angústia em relação à ameaça de castração, a especificidade do
objeto fóbico e a inoperatividade da medida protetora inventada pelo Homem dos Lobos.
O início da fobia do Homem dos Lobos acontece antes dos cinco anos de idade frente
à figura de um lobo de pé, desenhado em um livro de figuras que sua irmã o fazia olhar
frequentemente para atormentá-lo. Ele tinha medo que o lobo viesse e o comesse (FREUD,
1918[1914]/1994, p.16).
No que concerne ao estatuto da angústia, Aflalo (2010, p.10) aponta uma distinção
entre Hans e o Homem dos Lobos. O primeiro apresenta uma angústia de castração, pois teme
ser mordido pelo cavalo, ao passo que o segundo apresenta uma angústia de morte, expressa
pelo medo de ser devorado pelo lobo.
Levantamos duas hipóteses. Será que a angústia de morte pode ser tomada como
índice da inoperatividade do Nome-do-Pai, no caso do Homem dos Lobos? Podemos pensar
que na economia psíquica do Homem dos Lobos o estatuto do Outro é o de um Outro
gozador, ao qual ele se encontra submetido?
Em Hans a fobia causa uma inibição sintomática que impede o menino de passear
pelas ruas da cidade. O cavalo funciona como uma nomeação do medo e, em parte, aplaca a
angústia. O objeto fóbico vela o ponto intolerável da angústia em um esforço imaginário que
delimita o espaço, mas ainda assim não consegue dar conta da angústia: “o resultado da fuga
fóbica segue sendo, apesar de tudo, insatisfatório”30, diz Freud (1915c/1993, p.181; tradução
nossa).
A funcionalidade da medida protetora de Hans em relação aos cavalos é pertinente por
nos fazer pensar sobre a inibição sintomática causada pelo objeto fóbico. Diferente deste, o
Homem dos Lobos se limita a fechar o livro de contos como forma de evitação do objeto
fóbico. O lobo não é um objeto essencialmente externo, ele faz parte da irrealidade dos contos
de fada contados pela irmã.
Sobre esse ponto Agnès Aflalo (2010, p.11) afirma que “o cavalo de Hans requer o
campo da percepção, enquanto o lobo de Sergei é feito de narrativa e de imagem. Parece
então que há uma colocação em jogo do campo simbólico da realidade para Hans, mas não
para Sergei”. Quando uma fobia é instalada em relação a um animal, por exemplo, qualquer
30 O trecho correspondente na tradução é: “[...] el resultado de la huida fóbica sigue siendo, a pesar de todo, insatisfactorio”.
54
atento que todos os lobos dirigiam ao menino – para defendermos mais alguns sinais que nos
apontam para o diagnóstico de uma psicose ordinária.
A perplexidade que o menino experimentou ao acordar – a ponto de levar algum
tempo para se acalmar e entender que era apenas um sonho – nos chama bastante atenção.
Freud mostra sua surpresa em duas passagens: “Também lhe parecia digno de nota o
duradouro sentimento de realidade efetiva em que desembocou o sonho”31 (FREUD,
1918[1914]/1994, p.33; tradução nossa). E mais, o sonho “parece apontar em seu sentido
{hindeuten} para um episódio cuja realidade objetiva é destacada justamente pela oposição da
irrealidade dos contos tradicionais”32 (FREUD, 1918[1914]/1994, p.33, grifo do autor;
tradução nossa). Esse sonho marca o surgimento da angústia e produz efeitos: “desde então, e
até os onze ou doze anos, sempre teve angústia de ver algo terrível em sonhos”33 (FREUD,
1918[1914]/1994, p.29; tradução nossa).
Uma outra questão está relacionada ao olhar fixo dos lobos sobre o menino. Nas
palavras de Freud (FREUD, 1918[1914]/1994, p.34):
Ele acordava e viu algo. O olhar atento que no sonho se atribui aos lobos, deve antes ser deslocado para ele. Então, em um ponto decisivo havia ocorrido um transtorno {Verkehrung} que, além disso, se anuncia por outro transtorno no conteúdo manifesto do sonho34 (grifo do autor; tradução nossa).
Retomando a questão do objeto olhar enquanto mancha – que Lacan trabalha em O
seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (LACAN, 1964/1998) e
no texto “Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol. V. Stein” (LACAN,
1965/2003) –, podemos falar sobre essa cena de outra forma. Levantamos a hipótese de que o
que causa angústia no Homem dos Lobos não é a visão dos lobos imóveis, olhando-o
fixamente, mas, de forma invertida, a cena denota que ele próprio se olha olhando os lobos e,
dessa forma, ele próprio se toma como objeto. Ou melhor, ele se torna puro olhar.
31 O trecho correspondente na tradução é: “También le parecía digno de notarse el duradero sentimiento de realidad efectiva en que desembocó el sueño”. 32 O trecho correspondente na tradução é: “Este parece apuntar en su sentido {hindeuten} a un episodio cuya realidad objetiva es destacada justamente por la oposición de la irrealidad de los cuentos tradicionales”. 33 O trecho correspondente na tradução é: “Desde entonces, y hasta los once o doce años, siempre tuve angustia de ver algo terrible en sueños”. 34 O trecho correspondente na tradução é: “El estaba despierto y le fue dado ver algo. El mirar atento que en el sueño se atribuye a los lobos debe más bien trasladarse a él. Entonces, en un punto decisivo había tenido lugar un trastorno {Verkehrung} que, por lo demás, se anuncia por otro trastorno en el contenido manifiesto del sueño”.
55
Esta hipótese encontra fundamento em Miller (1988/2011, p.10), na medida em que
ele situa o Homem dos Lobos em duas vias pulsionais: ao mesmo tempo em que é um
espectador, pois ele é aquele que olha, o Homem dos Lobos está na posição de ‘se fazer ver’.
Recentemente, publicamos um artigo (TIRONI; LIMA, 2008) que assinala o sujeito
arrebatado pelo objeto enquanto olhar, marcando inclusive os efeitos que isso causa na cena
fantasmática na psicose ordinária de Lol V. Stein, antes do desencadeamento. Supúnhamos
que este índice se encontra presente em alguns casos de psicoses ordinárias, sendo mesmo um
dos elementos que facultam o diagnóstico diferencial.
Neste ponto abrimos um parêntese para dar uma explicação sobre o artigo que
publicamos. Naquele momento partíamos da teorização que se desenvolvia a pleno vapor por
ocasião da Convenção de Antibes, realizada em setembro de 1998. Ali a psicose ordinária era
definida de forma mais ou menos ampla, no sentido de “a psicose compensada, a psicose
suplementada, a psicose não desencadeada, a psicose medicada, a psicose em terapia, a
psicose em análise, a psicose que evolui, a psicose sinthomatizada”35 (MILLER et al.,
1998/2005, p.201, grifos do autor; tradução nossa). Portanto, interpretamos que a “psicose
que evolui” estaria referida a um provável desencadeamento.
No entanto, hoje não temos mais esta convicção. A partir de um seminário anglofono
acontecido em Paris, em julho de 2008, a pedido de Jacques-Alain Miller e organizado por
Marie-Hélène Brousse, mas somente publicado em 2009, Miller propõe que uma psicose
ordinária se caracteriza pelo fato de não haver um desencadeamento. Isto nos fez repensar a
hipótese anteriormente lançada em nosso artigo de 2008, de forma a fazê-la coincidir com o
precioso artigo de Miller (2008/2010) intitulado “Efeito do retorno à psicose ordinária”.
Voltando ao relato do caso de Freud, a formação desse sonho está relacionada a uma
cena de sexo entre os pais, presenciada pelo menino em torno de um ano e meio de idade. O
sonho apresenta, através da ativação da cena primária (não é uma recordação), o modelo de
satisfação que o menino espera obter do pai (copular com o pai do mesmo modo que sua mãe)
e a compreensão de que a castração é uma condição necessária para isso. Neste sentido, o
sonho permite uma conjugação entre o pai e a castração.
Em relação à cena primária, Lacan diz que:
No Homem dos Lobos, a impressão primitiva da famosa cena primordial permaneceu lá durante anos, não servindo para nada, e no entanto já significante, antes de ter o direito de exprimir seu efeito na história do sujeito. O significante é, pois, dado primitivamente, mas ele não é nada enquanto o sujeito não o faz entrar em sua história, que toma sua importância entre
35 O trecho correspondente na tradução é: “la psicosis compensada, la psicosis suplementada, la psicosis no desencadenada, la psicosis medicada, la psicosis en terapia, la psicosis en análisis, la psicosis que evoluciona, la psicosis sinthomatizada”.
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um ano e meio e quatro anos e meio. O desejo sexual é com efeito o que serve ao homem para se historicizar, na medida em que é nesse nível que se introduz pela primeira vez a lei (LACAN, 1955-1956/1988, p.180).
A cena primária, que se encontra na série do trauma primordial, funciona como um
primeiro elemento e passa a dar lugar a sucessivos desdobramentos que localizam a relação
do menino com o pai. Para Freud (1918[1914]/1994, p.54), durante o sonho, o Homem dos
Lobos se identifica com a mãe castrada e agora luta contra esse fato: “o paciente não apenas
fantasiou inconscientemente esta cena primordial, como também forjou sua alteração de
caráter; sua angústia frente ao lobo e sua compulsão religiosa”36 (tradução nossa). Esta
identificação à mãe abre um novo período no caso do Homem dos Lobos.
1.3.3 Uma neurose obsessiva de conteúdo religioso
A fase da fobia associada à histeria de angústia é substituída por uma neurose
obsessiva de conteúdo religioso. Quando o Homem dos Lobos estava com quatro anos, a mãe,
diante do comportamento inadequado do menino, começou a familiarizá-lo com histórias
bíblicas que não o agradavam. Ele se opunha enfaticamente aos caprichos do Deus Pai,
responsável por todos os tormentos da humanidade: “se era todo poderoso, então era culpa
Dele se os homens eram maus e atormentavam os outros e eram mandados para o Inferno por
causa disso”37 (FREUD, 1918[1914]/1994, p.59; tradução nossa). Essa iniciação religiosa
acabou com as malcriações e fez aparecer sintomas obsessivos em substituição à fobia que
havia predominado anteriormente.
Ele realiza rituais de devoção com rezas, sinal-da-cruz e uma ronda pelas imagens
sagradas às quais beijava piamente. Se durante o ritual alguma blasfêmia surgisse em sua
consciência, ele era obrigado a pensar compulsivamente: “Deus-suino” ou “Deus-merda”
(FREUD, 1918[1914]/1994, p.59). Freud relata outros rituais de conteúdo religioso: quando o
paciente via excrementos na estrada era atormentado pela obsessão de pensar na Santíssima
Trindade, ou quando via pessoas em relação às quais sentia pena, respirava ou inspirava
36 O trecho correspondente na tradução é: “[...] el paciente no sólo fantaseó esta escena primordial inconcientemente, sino que también confabuló su alteración de carácter; su angustia ante el lobo y su compulsión religiosa”. 37 O trecho correspondente na tradução é: “Si era todopoderoso, entonces era culpable de que los hombres fueron males y martirizaran a otros, a raíz de lo cual se iban después al Infierno”.
57
rigorosamente para não ficar como elas. Estes fenômenos começaram a partir de uma visita de
Sergei ao sanatório em que o pai estava internado e revelam uma identificação ao pai
castrado, que, segundo Freud, se trata de um elemento atípico ao campo da neurose obsessiva.
Ao identificar a submissão masoquista de Cristo ao Deus Pai, o Homem dos Lobos se
transforma em Cristo. Surgem perguntas sobre a existência de um traseiro e do hábito de
defecação de Cristo às quais ele responde que o traseiro é a continuação das pernas. A
resposta a esta questão denuncia que a função referente ao órgão e à partilha sexual são
negadas, tal como quando uma mulher é definida pela presença do traseiro e não pela falta de
pênis.
Pela aspereza e crueldade contidas nas histórias bíblicas, Sergei suspeitava da relação
ambivalente entre o Pai e o filho. O amor infantil que nutria pelo pai o fez se voltar contra
Deus, pois aquele que lhe fora apresentado não poderia ser o substituto do pai amoroso que
tentava a todo custo manter. “Resistia a Deus com a finalidade de conseguir agarrar-se ao pai;
e, ao agir assim, estava na verdade defendendo o velho pai contra o novo. Estava diante da
parte penosa do processo de desligar-se do pai”38 (FREUD, 1918[1914]/1994, p.62; tradução
nossa).
O passo seguinte foi o de identificar o pai à figura do castrador, tal como nas histórias
bíblicas. Essa justaposição se tornou fonte de uma enorme hostilidade a ponto de desejar-lhe a
morte. Mas, ao mesmo tempo, aparecia um sentimento de culpa. As duas correntes, a de amor
ao pai e a hostilidade em relação a Deus, tomaram toda sua vida e produziram efeitos
sintomáticos que se manifestavam como ideias blasfemadoras, compulsão nos xingamentos
de Deus, piedade obsessiva e severas penitências. Este momento religioso traduz o esforço
para sublimar as dificuldades anteriores de sua posição junto ao pai.
A sublimação lhe permite dar um destino à posição masoquista feminina, assumindo
algo da ordem viril. Apesar de esta assunção supostamente concluir o recalque da atitude
homossexual, ela não foi totalmente realizada; a dúvida do Homem dos Lobos sobre a
existência de um traseiro em Cristo é um exemplo disso. Mas, apesar da sublimação atuar na
homossexualidade recalcada, não houve uma mudança na posição de gozo de Sergei.
A posição feminina começou a ser falada na língua do erotismo anal. Freud acredita
que ele desempenha um papel fundamental no desenvolvimento da vida sexual e da atividade
psíquica de um indivíduo. Este fato se confirma na história do Homem dos Lobos, que faz de
seu erotismo anal a possibilidade de aceitar a castração de forma imaginária equivalendo fezes
38 O trecho correspondente na tradução é: “Se defendió de Dios para poder retener al padre, pero en verdad así defendía al padre antiguo contra el nuevo”.
58
a bebê. Neste sentido, os distúrbios intestinais e as realizações de enemas indicam que não
houve um reconhecimento simbólico da castração e que a aceitação da feminilidade
possibilita uma determinada extração de gozo, modificando novamente sua posição junto ao
pai.
O Homem dos Lobos apresentava distúrbios intestinais desde a infância. Para Freud
eram sintomas característicos da histeria que se encontravam frequentemente na origem de
uma neurose obsessiva. Ele o encaminhou a um colega médico que diagnosticou estes
problemas como uma doença psiquicamente determinada, sem a necessidade de nenhuma
intervenção orgânica. Na opinião de Freud, as queixas giravam em torno do fato dele estar
separado do mundo por um véu que só era rompido em uma única ocasião: “quando, depois
de um enema, o conteúdo dos intestinos deixava o canal intestinal; então, sentia-se bem e
normal outra vez”39 (FREUD, 1918[1914]/1994, p.69; tradução nossa).
Segundo Miller (1988/2009, p.23), o mundo ocultado por um véu foi interpretado por
Freud em dois planos diferentes. A primeira interpretação, de ordem significante, concerne ao
sentimento de o Homem dos Lobos ser um sortudo, a quem nada de ruim poderia acontecer.
O véu repercute nesta sorte. Sortudo foi destacado de uma fala vinda do Outro, um
significante que o acompanha desde seu nascimento. A segunda interpretação se situa no
registro do objeto, no sentido de uma extração, e concerne ao momento em que o véu é
rasgado com a condição que se administre uma lavagem intestinal.
O enema realiza a cena primária em uma versão renovada – denominada por Freud de
“fantasia de renascimento” (FREUD, 1918[1914]/1994, p.92) – na medida em que ela faz
uma equivalência entre o objeto anal e um bebê. Além disso, coloca em cena o pai, a mãe e a
criança como produto fecal. Esta equivalência permite uma nova transformação que mantém
em evidência uma fixação à posição homossexual inconsciente. Ao reproduzir esta fantasia, o
“renascimento” oferece certa estabilização ao Homem dos Lobos. Ela permite uma extração
imaginária do objeto anal, a partir da qual ele renuncia à masculinidade para ser amado como
uma mulher – se colocando como a mãe na cena primária –, ser sexualmente satisfeito pelo
pai e dar-lhe um filho. No caso de Freud:
Deus-merda era provavelmente a abreviação de uma oferenda que se ouve eventualmente mencionada de forma não abreviada. ‘Cagar em Deus’ (‘auf Gott scheissen’) ou ‘cagar algo para Deus’ (‘Gott etwas scheissen’) também significa dar-lhe um bebê ou conseguir que ele
39 O trecho correspondente na tradução é: “Este último solo se desgarraba en el preciso momento en que las heces abandonaban el intestino, a raíz de las lavativas, y entonces volvía a sentirse también sano y normal”.
59
dê um bebê a alguém40 (FREUD, 1918[1914]/1994, p.77, grifos do autor; tradução nossa).
Levantamos a hipótese que a ameaça de castração sobre a qual Freud tanto se debruça
para explicar a neurose infantil, e todas as contradições apresentadas durante a elaboração
desse caso clínico, são consequências da carência simbólica decorrente da foraclusão do
Nome-do-Pai. Na psicose a falha da metáfora paterna acarreta problemas no posicionamento
sexual e na significação fálica. Sem esse ponto de identificação, o psicótico é um sujeito sem
referência diante do significante do sexo; ele fica à deriva no que se refere à partilha sexual.
Para Miller (1988/2010, p.25), a forma como a sexuação é lida pelo Homem dos
Lobos se distingue em duas vias: no campo imaginário há uma afirmação da virilidade que,
por ser do registro do eu (moi), carece de autenticidade simbólica; no inconsciente, ele é
verdadeiramente uma mulher.
Ainda com base na foraclusão da castração, o relato da alucinação do dedo cortado
fornece novas teorizações para se pensar sobre a questão diagnóstica. A cena é a seguinte: o
menino brincava com um canivete quando notou ter cortado um dedo da mão. Ele não sentiu
dor, apenas medo; em seguida, percebeu que o dedo não havia sido machucado.
Vale notar que, para Freud, esta alucinação não é um indício da Verwerfung; pelo
contrário, ela dá testemunho do caráter operatório da castração. Mantém este episódio como
uma constatação da neurose, pois, por mais que tenha realizado uma distinção entre os
mecanismos da Verdrängung e o da Verwerfung, ele não supõe esta última ao campo das
psicoses. No texto “Acerca del fausse reconnaissance (‘déjá raconté’) en el curso del trabajo
psicoanalítico” (FREUD, 1914b/1993, p.210), ele retoma esse episódio acrescentando uma
equivalência entre o dedo e o pênis. O fenômeno da ‘fausse reconnissance’ o levou a enfatizar
a dificuldade do Homem dos Lobos em assumir a existência operatória do complexo de
castração: “falsificações alucinatórias semelhantes não são raras e podem facilmente servir ao
propósito de corrigir percepções incômodas”41 (tradução nossa).
No entanto, Lacan (1955-1956/1988, p.173) considera que:
A respeito da Verwerfung, Freud diz que o sujeito não queria nada saber da castração,
mesmo no sentido do recalque. Com efeito, no sentido do recalque, sabe-se ainda algo daquilo de que nem mesmo não se quer, de certa maneira, nada saber, e cabe à análise nos ter
40 O trecho correspondente na tradução é: “‘Dios-caca’ era probablemente una abreviación de un ofrecimiento que suele oírse también en forma no abreviada. ‘Cagarse en Dios’ {‘Auf Gott scheissen’}, ‘Cagarle algo a Dios’ {‘Gott etwas scheissen’}, significa también regalarle un hijo, hacerse regalar por él un hijo”. 41 O trecho correspondente na tradução é: “Respecto del contenido de la visión del paciente, señalaré que tales espejismos alucinatorios no son raros justamente dentro de la ensambladura del complejo de castración, y que de igual modo pueden servir para rectificar percepciones indeseadas”.
60
mostrado que se sabe isso muitíssimo bem. Se há coisas de que o paciente não quer nada saber, mesmo no sentido do recalque, isso supõe um outro mecanismo. E como a palavra Verwerfung aparece em conexão direta com essa frase e também com algumas páginas antes, eu me apodero dela. Não me prendo especialmente ao termo, prendo-me ao que ele quer dizer, e creio que Freud quis dizer isso (grifos do autor).
Lacan interpreta esse episódio como uma verdadeira alucinação, como um fenômeno
elementar característico da psicose. Além disso, enfatiza que a relação que Freud estabelece
entre esse fenômeno e o não querer saber, mesmo no sentido do recalcado, pode ser
traduzido como: “o que é recusado na ordem simbólica ressurge no real” (LACAN, 1955-
1956/1988, p.22).
De acordo com Miller (2006/2009, p.44), a interpretação lacaniana da alucinação do
dedo cortado desencadeou no Homem dos Lobos um conteúdo que escapou à simbolização
primária e, por isso, não pôde ser historiado. Este fato é embasado pelo mutismo aterrorizado,
uma impossibilidade de falar sobre o ocorrido, inclusive com a babá que lhe era tão confiável
e estava a seu lado. Esta mudez permite constatar que esta experiência foi vivida fora do
campo do Outro. Por isso Miller (2006/2009, p.48) afirma que “encontramos um real
separado da fala, um real que nada espera da fala, diz Lacan, e que – é dele a expressão em
itálico – conversa sozinho”.
Lacan (1955-1956/1988, p.22) se refere a uma distorção da temporalidade: “parece
que toda referenciação temporal tenha desaparecido. [...] Há aí um abismo, uma imersão
temporal, um corte de experiência, depois do que resulta que não há absolutamente nada, tudo
acabou”. Esta distorção temporal foi retomada por Miller em Perspectivas do Seminário 23 de
Lacan: o sinthoma (LACAN, 2006-2007/2009, p.50) como um “esp de um laps”, que acentua
a ruptura e a descontinuidade marcadas por Lacan em “Prefácio à edição inglesa do
Seminário 11” (LACAN, 1976/ 2003, p.567).
Em “Análise terminável e interminável” Freud (1937a/1993, p.221) retoma o caso do
Homem dos Lobos admitindo que fixar o tempo de duração de uma análise mostra ser um
recurso inadequado para a condução do tratamento analítico. Se por um lado fez acelerar o
processo, por outro o fez ser interrompido antes do seu fim. Segundo Freud, algumas das
crises posteriores ao suposto final de análise se deve a partes residuais da transferência que
apresentavam um caráter distintamente paranoico.
1.3.4 A guisa de conclusão
61
Após este percurso pelos textos freudianos, e pelas considerações de Lacan e de
Miller, tendemos a pensar que o Homem dos Lobos se trata de uma psicose. A especificidade
desta estrutura é um tema que merece atenção neste caso, na medida em que não aparecem
fenômenos psicóticos tão evidentes quanto nas psicoses deflagradas.
Inicialmente, em relação ao desencadeamento, recolhemos o significante
descontinuidade utilizado por Miller (1987-1988/2009) para a leitura dos pontos de virada
ocorridos na história do Homem dos Lobos. A primeira diz respeito à modificação no caráter
do menino, ocorrida em torno dos três anos. A segunda pode ser localizada no sonho com os
lobos, um ano depois. A terceira está no momento em que ele se apropria da religião. Falar
em descontinuidade é muito distinto da noção do desencadeamento. Por isso nos
perguntamos: o que houve para que esta psicose não se desencadeasse de forma
extraordinária?
Para responder a esta questão, seguimos a indicação de Agnès Aflalo (2010, p.15) que
a recusa e a aceitação da castração são suplências sintomáticas decorrentes da foraclusão, mas
que não a anulam. Neste sentido, a psicose não se desencadeia porque há um mecanismo
operatório que impede que este fato ocorra. Depois da análise com Freud, podemos
acompanhar que a figura do lobo – objeto condensador de gozo e causa de horror – inscreve a
função do nome no paciente. Sergei Pankejeff começou a se identificar socialmente como
Homem dos Lobos, raramente usando, a partir daí, seu patronímico.
Apostamos que ter sido apelidado e, posteriormente, assumir-se como tal, foi uma
amarração que forneceu certa estabilidade à sua vida. Esta solução resolveu algo do real com
certa efetividade, na medida em que o simbólico nomeou o objeto de gozo e deu-lhe um lugar
subjetivo.
Em 1926 apareceram alguns sintomas que o fizeram procurar Freud novamente. Este o
encaminhou a uma analista que ele mantinha sob sua supervisão chamada Ruth Mack
Brunswick, que o atendeu por cinco meses, de outubro de 1926 a fevereiro de 1927 e,
posteriormente, em 1929. O paciente sofria de uma ideia fixa de hipocondria, se queixava de
um problema no nariz causado pela eletrólise. Não havia nenhuma possibilidade de escapar
das fantasias de mutilação, estava desesperado como nunca havia sentido antes. Olhava-se
constantemente em um espelho que levava consigo e acreditava que “todo o mundo olhava o
buraco de seu nariz” (BRUNSWICK, 1945/1983, p.186).
Além disso, apareceram ideias de grandeza associadas ao dinheiro. Quando elas foram
desconstruídas, a mania persecutória foi desencadeada de uma maneira mais difusa que o
62
sintoma hipocondríaco. Ele acreditava que o médico o havia desfigurado intencionalmente e
que sua atual enfermidade se devia a Freud não tê-lo tratado bem (BRUNSWICK, 1945/1983,
p.204-205).
A analista o diagnostica como um caso de paranoia tipo hipocondríaca
(BRUNSWICK, 1945/1983, p.211) com sintoma monossintomático – localizado nos delírios
de mutilação –, característico das afecções psicóticas. Ela conclui que a megalomania
funcionava como uma proteção à construção da situação persecutória que aparece logo em
seguida: “o delírio hipocondríaco oculta as ideias de perseguição e lhe proporciona uma forma
adequada ao conteúdo de toda a enfermidade”. Além da hipocondria e da perseguição, ela
pontua a ausência de alucinações nos delírios e ligeiras ideias de referência na estrutura
psicótica de seu paciente (BRUNSWICK, 1945/1983, p.214).
Sua recuperação foi repentina: os romances se tornaram sua maior fonte de prazer.
Como já foi dito acima, aproximadamente dois anos, em 1929, ele retomou a análise com
Brunswick. Vinha por uma relação amorosa conturbada. Este tempo de análise se estendeu
por vários anos, com certa irregularidade. Segundo a analista: “não restava nenhuma marca de
psicose ou de tendências paranoides” (BRUNSWICK, 1945/1983, p.179).
Muriel Gardiner foi a terceira analista do Homem dos Lobos nos períodos de 1938-
1949 e, posteriormente em 1956. Desde o primeiro encontro, em 1927, ela não viu nada que
possa ser considerado anormal. Era um homem socialmente adequado e suas conversas
giravam em torno da arte, da literatura e da psicanálise. “Desde então, nos muitos anos que o
conheço, jamais observei sinais ou sintomas que pudesse considerar verdadeiramente
paranoides” (GARDINER, 1938-1949/1983, p.280). Contudo, salienta que após o suicídio da
esposa, em 1938, não conseguia falar de nada que não fosse si mesmo, a morte da mulher e a
crueldade do destino.
A analista descreve alguns episódios de depressão com uma periodicidade
determinada, em intervalos de dois a quatro anos. Nota que as depressões estão sempre
relacionadas com algum acontecimento que as desencadeiam. Ela não acredita que sejam de
caráter psicótico, pois o que ele “experimenta como depressão é às vezes uma reação frente a
uma perda real e outras a desesperança que provocam suas dúvidas obsessivas, sua culpa, suas
autoacusações e sua sensação de fracasso” (GARDINER, 1938-1949/1983, p.280).
Relata que em 1951 alguns analistas poderiam diagnosticar que os fenômenos do
Homem dos Lobos poderiam ser considerados como os de uma paranóia. Acontece que, face
à indecisão em se apresentar às autoridades militares russas que o haviam interrogado, ele
vivenciou “delírios de perseguição; pensava que as pessoas falavam de mim ou me olhavam
63
quando sem dúvida não era assim, ainda quando na realidade não teve a sensação de que
alguém me seguia” (GARDINER, 1938-1949/1983, p.280-281). Doze anos depois que as
forças russas haviam saído da Áustria, esta atitude de perseguido se mantinha preservada. Era
a mesma estrutura delirante de 1927, quando começou a análise com Brunswick.
Gardiner (1938-1949/1983, p.284) reavalia a análise do Homem dos Lobos ocorrida
com Brunswick entre 1926 e 1927, dizendo que não coloca em dúvida que os sintomas sejam
psicóticos, mas em vista do êxito desta análise e de seu rápido estabelecimento, é preciso
questionar o diagnóstico. Em seu entendimento, os períodos de depressão, de dúvida e de
vacilação, ambivalência, sentimentos de culpa e fortes necessidades narcísicas são
manifestações do defeito que a neurose obsessiva deixou após a recuperação do paciente.
Estes sintomas foram modificados e reduzidos pela psicanálise, mas não desapareceram.
Finalizamos, com Miller (1988/2010, p.40) dizendo que os fenômenos elementares
presentes no caso do Homem dos Lobos permitiram evidenciar uma estrutura psicótica. Mas a
ausência de um desencadeamento clássico faz com que o Um-pai não sirva como ferramenta
para pensar em suas particularidades. Miller considera que a conjuntura aqui presente coloca
em primeiro plano não a função do pai, mas a função fálica, na medida em que as
descontinuidades se relacionam sempre a um ataque à imagem do pai ou à imagem fálica: “é
como se o falo imaginário tivesse uma função de Nome-do-Pai. A cada vez que algo vem
golpear essa função, ocorre uma desestabilização do sujeito, ainda que ela não desemboque
em um desencadeamento completo” (1988/2010, p.40).
A partir da especificidade dos fenômenos clínicos e do desencadeamento podemos
afirmar que o Homem dos Lobos é um caso de psicose ordinária? Supomos que sim. Levando
em conta a importância de classificá-la de uma maneira psiquiátrica (MILLER, 2009/2010,
p.15), diremos mais: o Homem dos Lobos pode ser considerado uma psicose ordinária do tipo
paranóica.
Segundo Marcus André Vieira (2005, p.6), “tomar o Homem dos Lobos a partir do
conceito de psicose ordinária nos permite, em uma certa medida, lidar com ele tal como Freud
o fez, como campo de exploração terapêutica dos limites do campo subjetivo e, ao mesmo
tempo, do campo psicanalítico”.
64
2 UMA LEITURA LACANIANA DAS PSICOSES
Cabe como introdução apresentar um roteiro de como este capítulo foi escrito.
Iniciaremos procedendo a uma distinção didática realizada por Jacques-Alain Miller sobre o
ensino de Lacan. Tal distinção é necessária porque do primeiro ao segundo ensino Lacan
modifica essencialmente sua teorização, acarretando transformações importantes na forma em
que a clínica das psicoses é postulada nesses dois tempos. Decompondo-o em dois
momentos, esse esclarecimento se torna essencial para a organização com a qual pretendemos
nos balizar ao percorremos alguns seminários e escritos de Lacan que se referem às psicoses.
Em seguida, trabalharemos a questão das psicoses no primeiro ensino, pois nos anos
50 Lacan retoma a teoria da psicose formulada por Freud e realiza uma formalização, com
seus próprios termos, da paranoia extraordinária de Schreber. No que diz respeito às psicoses,
os textos centrais do primeiro ensino são fundamentalmente O Seminário, livro 3: as psicoses
(LACAN, 1955-1956/1988) e o texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível
da psicose” (LACAN, 1959[1957-1958]/1998).
Retomaremos esses escritos em busca de operados lógicos e conceituais – como a
foraclusão do Nome-do-Pai e suas consequências, a metáfora paterna, a estabilização e o
desencadeamento da psicose, os fenômenos elementares e o delírio e a especificidade do
manejo da transferência –, enfatizando alguns elementos essenciais para o diagnóstico
estrutural das psicoses desencadeadas. Ilustraremos alguns desses dados às falas de Gérard
Primeau, um psicótico entrevistado por Lacan em uma apresentação de pacientes
(1975/2000).
Apresentaremos a fórmula da metáfora paterna (LACAN, 1959[1957-1958]/1998,
p.563) e os Esquemas lacanianos – o L (LACAN, 1955-1956/1988, p.22), o R (LACAN,
1959[1957-1958]/1998, p.559) e o I (LACAN, 1959[1957-1958]/1998, p.578) – construídos
com o intuito de matemizar a realidade psíquica na neurose e na psicose. Seguindo Lacan,
será necessária a leitura do Esquema I das psicoses articulada a alguns pontos fundamentais
do caso Schreber, tendo em vista a complementação do que já foi iniciado no item 1.2. desta
Tese de Doutorado.
Depois, partindo da clínica borromeana, pinçaremos alguns elementos específicos do
segundo ensino de Lacan – especialmente a topologia dos nós e o conceito de sinthoma –
para retomarmos o caso Joyce apresentado em O seminário, livro 23: o sinthoma (LACAN,
1975-1976/2007) e o texto “Joyce, o Sintoma” (LACAN, 1975/2003).
65
2.1 Os dois ensinos de Lacan: uma delimitação didática
Jacques-Alain Miller (1979/2002, p.15) decompõe o ensino de Lacan em dois tempos
periodicizados de acordo com a primazia sucessiva que o imaginário, o simbólico e o real
desempenham na experiência analítica. Em um primeiro momento, o que precede o primeiro
ensino é denominado de Antecedentes. Trata-se de um período em que Lacan escreve artigos
no campo da psiquiatria, no qual se destaca a Tese de Doutorado defendida sob o título Da
psicose paranóica em suas relações com a personalidade (LACAN, 1932/1987), bem como
sua primeira incursão no campo da psicanálise chamada de “O estádio do espelho como
formador da função do eu tal como nos é revelada na experiencia psicanalítica” (LACAN,
1949[1936]/1998).
O primeiro ensino começa a rigor a partir de 1953 com o Discurso de Roma que
contém a proposta de um retorno a Freud. Lacan trabalha com uma clínica estrutural tendo
em vista as três estruturas formuladas por Freud: a neurose, a psicose e a perversão.
Vetorizado pelo que acredita ser a condição de possibilidade da psicanálise, Lacan leva o
aforismo “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” até as últimas consequências.
Ele se preocupa em delimitar os três registros e defini-los como conjuntos que comportam
uma quantidade de elementos pertencentes aos mesmos.
Lacan parte do imaginário e o conceitua a partir da imagem, e não da imaginação.
Nesse sentido, o estádio do espelho promove uma identificação à imago do corpo próprio
(LACAN, 1949[1936]/1998, p.98), antes que a linguagem restitua ao infans sua função de
sujeito. Portanto, isto é feito a partir da identificação com a imago do semelhante que projeta
a história da formação do indivíduo, conforme teoriza Lacan (LACAN, 1949[1936]/1998,
p.100):
[...] o estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação – e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos de ortopédica – e para armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental. Assim, o rompimento do circulo do Innenwelt para o Umwelt gera a quadratura inesgotável dos arrolamentos do eu (grifos do autor).
É esse contexto que “faz todo o saber humano bascular para a mediatização pelo
desejo do outro” (LACAN, 1949[1936]/1998, p.101), outro como semelhante, como se nota
66
no primeiro tempo do complexo de Édipo. E o narcisismo primário – conceito explorado por
Freud (1914/1993, p.73, 85, 87 e 91) para designar o investimento libidinal pelo eu ideal –, é
o que subjaz na função alienante do eu à sua própria imagem.
Mais adiante, Lacan equivale o simbólico ao significante e o define como um símbolo
que advém do Outro enquanto lugar do código. Assim, a disjunção entre o significante e a
imagem é evidente, mesmo que Lacan (1957-1958/1999, p.233-235) tenha atribuído uma
função significante à Urbild, a imagem primitiva do eu. Desta forma, a imagem é elevada à
categoria de matriz simbólica e fornece certa cristalização do sujeito em relação à imagem
ilusória, não sem lhe dar subsídios orientadores sobre as suas condutas na realidade.
Quando Lacan retoma os textos e os conceitos freudianos em busca de uma
verificação daquele axioma – de 1953 a 1963 –, o simbólico se torna a dimensão fundamental
da experiência analítica.
De 1964 a 1974, Lacan começa a manejar operadores teóricos que já vinham sendo
articulados – por exemplo, objeto a, A, $ – com a finalidade de priorizar determinadas
elaborações matêmicas que vinham sendo processadas. Em Lacan (1964/1998, p.193):
Se a psicanálise deve se constituir como ciência do inconsciente, convém partir de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Daí deduzi uma topologia cuja finalidade é dar conta da constituição do sujeito.
O registro do real sempre esteve incluído no ensino de Lacan. Em O seminário, livro
1: os escritos técnicos de Freud (LACAN, 1953-1954/1979, p.82) ele define o real como algo
que resiste à simbolização, como “uma realidade irreal, alucinatória”. Contemporâneo a isso,
em o Discurso de Roma, ao referir-se à ambiguidade do chiste em sua relação com o
inconsciente, assinala a outra face da atividade criadora do chiste, pois “sua dominação sobre
o real exprime-se no desafio do contra-senso, em que o humor na graça maliciosa do espírito
livre, simboliza uma verdade que não diz sua última palavra” (LACAN, 1953/1988, p.271).
Mais adiante, em O seminário, livro 4: a relação de objeto (LACAN, 1956-1957/1995, p.30-
31), ele fala sobre as três formas da falta de objeto e da dialética do falo na constituição do
sujeito. Nessa vertente, define o real como um registro que está no limite de nossa
experiência.
Essa posição com referência ao real é explicada, de modo bastante suficiente, pela tela de nossa experiência, cujas condições são muito artificiais, contrariamente ao que nos dizem quando a apresentam para nós como uma situação tão simples. Todavia, só podemos nos referir ao real teorizando. Mas, o que queremos dizer quando invocamos o real? É pouco provável que tenhamos dele, de saída, a mesma noção, mas é verossímil que todos possamos ter acesso a certas distinções ou dissociações esse
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termo real, ou realidade, se examinarmos de perto que uso é feito dele (LACAN, 1956-1957/1995, p.30-31).
Neste mesmo seminário, Lacan marca a diferença entre dois elementos distintos – a
realidade e a realidade psíquica, Wirklichkeit – por isso podemos interpretar que a primeira se
precipita a partir da segunda, mas é esta última que contém o sem-sentido próprio ao real. Há
uma aproximação do real quando surge o sentimento de estranheza, Unheimlich, ou seja, o
estranho familiar que se encontra hors-du-sens.
No entanto, é em O seminário, livro 7: a ética da psicanálise (LACAN, 1959-
1960/1988, p.90 e 97) que Lacan define o real de uma forma mais precisa, mostrando que ele
se encontra sempre no mesmo lugar. Trata-se da definição do real como garantia do das Ding
freudiano, na medida em que “essa Coisa, o que do real – entendam aqui um real que não
temos ainda que limitar, o real em sua totalidade, tanto o real que é do sujeito, quanto o real
com o qual ele lida como lhe sendo exterior – o que, do real primordial, diremos, padece do
significante” (LACAN, 1959-1960/1988, p.149).
No texto “O real é sem lei”, Miller (2001/2002, p.8) afirma que a partir de 1974 Lacan
inicia seu último ensino, no qual o real se torna a categoria essencial da clínica. Por acreditar
haver significantes que poderiam suavizar os efeitos da incidência do real no sujeito, Lacan
aposta na categoria do semblante. Porém, ele percebe claramente que, desde Freud, algo do
real escapa à significantização, ou seja, existem determinadas falas que irrompem no discurso
do sujeito sem que este saiba por quê.
Portanto, a orientação em direção ao real marca a essência do que Miller
convencionou chamar de o segundo ensino. A inscrição da lógica, da matemática e da
topologia – que foram utilizadas por Lacan em O seminário, livro 20: mais, ainda (LACAN,
1972-1973/1985) – permite a teorização do nó borromeano e a equivalência dos registros,
reforçando a tese de que o real ex-siste. As figuras topológicas evocam uma grafia esvaziada
de sentido. Evitando figurá-las materialmente sustentada pelo significante, ele inscreve seu nó
para além da fala, da precipitação significante e do sentido, vetorizando-o para o real. Lacan
postula o nó como suporte de seu segundo ensino e se serve de uma apresentação imaginária
para fornecer sentido ao real, sem deixar de valorizar a equivalência dos três registros.
Consequentemente, o segundo ensino de Lacan é marcado por uma virada da clínica
estrutural, ou seja, descontinuísta, classificatória, fundada no significante Nome-do-Pai, para a
clínica borromeana – continuísta, elástica, relacionada à generalização da foraclusão e à
pluralização dos nomes. Os modos de amarração e de gozo tomam o lugar da primazia
significante da primeira clínica. A segunda não torna a primeira obsoleta, mas lhe dá um uso
68
relativo, permitindo a inclusão do conceito de sinthoma que não pertencia ao acervo
formalizado pela concepção estruturalista.
Ao nos determos nessas formalizações, interessa-nos investigar o que a clínica
estrutural e a borromeana fornecem de ferramentas para o manejo das psicoses, e de que
forma o que é especifica a cada uma delas faz avançar a pesquisa sobre a psicose ordinária.
Na década de 50, Lacan trabalha a psicose teorizada por Freud, mantendo-a em
oposição à neurose. Do texto freudiano “De la historia de una neurosis infantil” (FREUD,
1918[1914]/1994), ele resgata o mecanismo chave da psicose – Verwerfung, a foraclusão do
Nome-do-Pai. Além disso, realiza uma nova leitura deste conceito em O seminário, livro 3:
as psicoses (LACAN, 1955-1956/1988), e, logo depois, no escrito “De uma questão
preliminar a todo tratamento possível da psicose” (LACAN, 1959[1957-1958]/1998). Neste
contexto teórico ele centra suas formulações sobre a psicose em torno dos conceitos de
foraclusão do Nome-do-Pai e de metáfora delirante, que serão detalhados mais adiante. Já
que nesta época seu ensino estava orientado pela consideração de que o registro simbólico
possuía primazia sobre os outros, Lacan propôs que o Nome-do-Pai representasse o
significante princeps do reservatório do Outro, encadeando os seguintes.
No primeiro momento, trata-se de pensar as psicoses a partir dos elementos que Freud
havia extraído da neurose. Partindo da idéia de que a psicose é um déficit significante em
relação à neurose, a foraclusão do Nome-do-Pai é tomada como um índice que confere às
psicoses uma lógica distinta, pois a distinção entre as estruturas se dá em função da presença
ou ausência deste operador. Sendo assim, este significante foi considerado uma medida
normativa de amarração à ordem simbólica que permite ao sujeito o acesso aos discursos
estabelecidos e a constituição de laços sociais. Além disso, os fenômenos elementares, os
distúrbios de linguagem, as alterações do pensamento, os automatismos mentais e os delírios
são elementos diagnósticos fundamentais.
Em 1963 o Nome-do-Pai é pluralizado e gradativamente passa a ser enunciado por
Lacan como um nome entre muitos. A pluralização dos nomes e a foraclusão generalizada são
as referências fundamentais da clínica borromeana a partir das quais a relação entre o
significante e a significação fálica ganha novas conformações. A neurose se torna apenas uma
das soluções estabilizadoras e a psicose deixa de ser um déficit significante em relação à
neurose. Daí a importância que o Campo freudiano vem fornecendo recentemente ao delírio
generalizado, tema que iremos nos deter no terceiro capítulo desta Tese.
Com estas ferramentas clínicas foi possível aos analistas pensarem inúmeras direções
de tratamento não apenas pelos índices de foraclusão e de seus efeitos aparentes, mas também
69
pela localização do que mantêm unidos os três registros. A partir daí se torna possível
entender de forma mais clara uma psicose fora do desencadeamento bem como discutir a
questão da psicose ordinária.
2.2 A psicose extraordinária na clínica estrutural
Na abertura de O seminário, livro 3: as psicoses, Lacan (1955-1956/1988) convida
seus ouvintes a apreciarem o que a doutrina freudiana ensina sobre as psicoses, acrescentando
algumas noções elaboradas por ele nos anos anteriores. Freud deixa claro que existem casos
que não deveriam ser tomados em análise, e enumera diversas contra-indicações ao
tratamento das psicoses; assinalando que o analista deve empreender uma “‘sondagem’, a fim
de conhecer o caso e decidir se ele é apropriado para a psicanálise”42 (FREUD, 1913/1993,
p.126; tradução nossa). Apesar disso, Lacan afirma a necessidade de não retroceder diante das
psicoses (LACAN, 1956/1977, p.9) e, a partir do momento em que ele faz deste axioma uma
posição ética do psicanalista, o tratamento das psicoses se torna um ponto de mira.
Como dissemos anteriormente, a teoria lacaniana das psicoses está centrada no
conceito de foraclusão, definido como a ausência do significante Nome-do-Pai. A concepção
do pai como significante corresponde à elaboração do pai simbólico – um pai morto que não
opera por sua presença, mas sim como um símbolo –, da garantia da lei no Outro, da metáfora
e da função paterna. Segundo Soler (2002/2007, p.12), para Lacan a foraclusão não pode ser
entendida como um fenômeno clínico, mas sim como uma hipótese causal da qual só se pode
apanhar os efeitos que designam a causalidade significante da psicose.
Na psicose, a foraclusão do Nome-do-Pai acarreta uma ausência de efeitos metafóricos
no campo do Outro. Para explicar esta causa-efeito que articula Nome-do-Pai e significação
fálica, Lacan formaliza a metáfora paterna a partir da substituição significante como uma
derivação do complexo de Édipo freudiano. No texto “De uma questão preliminar...”
(LACAN, 1959[1957-1958]/1998, p.563):
42 O trecho correspondente na tradução é: “uno sólo ha emprendido un sondeo a fin de tomar conocimiento del caso y decidir si es apto para el psicoanálisis”.
70
Resumidamente, o Desejo da Mãe comporta um Outro sem lei, um desejo enigmático
que gera perplexidade no sujeito. Esse enigma em relação ao significado desconhecido do
gozo recebe uma resposta universal que orienta o sujeito, ou seja, o desejo do falo que aciona
a operação de significantização. O vazio enigmático do gozo desconhecido ganha então uma
significação fálica a partir da incidência do significante Nome-do-Pai, que encarna um limite
e produz uma subtração do gozo imaginário localizado no Desejo da Mãe. O resultado desta
operação é a inscrição da castração simbólica que acarreta uma subtração de gozo. Segundo
Tendlarz (2007/2009, p.25), quando o enigma do gozo é relativizado pela resposta fálica, ele
se transforma em uma pergunta acerca do desejo do Outro. Em Lacan (1959[1957-
1958]/1998, p.235):
O terceiro desses pequenos andaimes é o pai, na medida em que ele intervém para proibir. É por isso que ele faz passar à categoria propriamente simbólica o objeto do desejo da mãe, de tal sorte que este deixa de ser somente um objeto imaginário – passa a ser, ainda por cima, destruído, proibido.
Lacan constrói o esquema L (LACAN, 1955-1956/1988, p.22) para explicar que S é o
sujeito ainda a ser constituído, entregue a sua “inefável e estúpida existência” (LACAN,
1959[1957-1958]/1998, p.555). Na verdade, nesse esquema figuram os três elementos-chave
do complexo de Édipo freudiano. Para que S se constitua como sujeito barrado, $, é
necessário que encontre um primeiro objeto de amor (a’) e que forme com ele a primeira
versão do gozo, expressa no eixo a-a’. É preciso que haja o Outro simbólico (A) – “lugar de
onde lhe pode ser formulada a questão de sua existência” (LACAN, 1959[1957-1958]/1998,
p.555) – para que, na direção do sujeito do inconsciente, transforme pulsão em inconsciente e
barre o sujeito S, a posteriori. Lacan marca que desde o início, mesmo antes do sujeito se
constituir, o falo já está presente, pois a castração deixa vestígios no recalque original que
orientam todo o percurso, até o ponto em que o $ faz o reconhecimento da castração.
Esquema L
71
Lacan (LACAN, 1959[1957-1958]/1998, p.559) superpõe o complexo de Édipo
encontrado no esquema L, resultando no esquema R, que matemiza a constituição do campo
da realidade na neurose, acrescentando novos elementos.
Esquema R
O esquema R é composto pela união de dois triângulos: um simbólico, em cujos
vértices estão IMA, e outro imaginário, composto por miφ. Além deles, o quadrilátero real
IMim completa a figura. Vale notar que se a dividirmos ao meio, o triangulo simbólico ocupa
a metade dela, restando ao outro lado as áreas do real e do imaginário. Além disso,
destacamos o espaço do real entre os do simbólico e do imaginário.
Estes dois últimos se distribuem em ambos os lados da faixa da realidade,
posteriormente definida por Lacan como real. Ela se configura como uma banda de Moebius,
obtida pela torção e união das duas bordas opostas da figura. Unindo i a I e M a m, obtemos a
faixa que liga o simbólico e o imaginário, de modo que se pode passar de um ao outro de
maneira contínua.
Detalhando um pouco mais este esquema a partir do “Quadro comentado das
representações gráficas” localizado no fim dos Escritos de Lacan, o campo do imaginário
inscreve a maneira que o sujeito representa a si mesmo na relação dual entre o eu e o Outro.
Portanto, ele comporta o narcisismo, a projeção e a captação.
Por sua vez, o simbólico inclui três funções: a do Ideal do eu (I), a do significante do
objeto (M) e a do Nome-do-Pai (P) no lugar do Outro (A). Ou seja, a criança em I se liga à
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mãe em M, visto que o desejo do sujeito é o desejo do Outro. O pai em A, é instituído como
terceiro por meio de sua veiculação pela fala materna.
Ao nos determos em algumas das principais linhas que delimitam o esquema,
enfatizamos que IM expressa a relação do sujeito com o objeto do desejo intermediada pela
cadeia significante, mais tarde notada pela álgebra lacaniana como $◊a.
Em iM se instituem as figuras do outro imaginário, fundamentalmente a mãe como
Outro real, inscrita no simbólico sob o significante do objeto primordial. De i (imagem do eu:
eu ideal) a M (significante do objeto primordial) se situam os modelos de identificação.
“Podemos apreender como o aprisionamento homológico da significação do sujeito S sob o
significante do falo pode repercutir na sustentação do campo da realidade, delimitado pelo
quadrilátero MimI” (LACAN, 1959[1957-1958]/1998, p.555).
Por fim, no segmento mI ocorrem as identificações imaginárias responsáveis pela
formação do eu. De m a I estão todas as figuras do outro imaginário – desde m (forma
primeira do eu, que se espelha no eu ideal) até I (identificação ideal que, como o esquema R
mostra, é sustentada pelo Nome-do-Pai, P).
No triângulo Saa’ do esquema L, Lacan inclui e destaca o triângulo φim no esquema
R. Ele desdobra o eixo a-a’ em mi e em MI, inserindo o triângulo simbólico PMI. Diferencia
i – imagem especular – de m – Urbild especular, uma primeira imagem fundada a partir da
imagem do semelhante, i. Segundo Lacan, i está para a assim como m está para a’.
Do Esquema R depreendemos que é necessário a extração de um objeto, enquanto
efeito da castração, para que um sujeito se constitua e sustente o campo da realidade.
“Compreende-se, assim, que a reta IM não possa remeter à relação do sujeito com o objeto de
desejo: o sujeito é apenas o corte da banda, e o que cai daí chama-se objeto a” (LACAN,
1998, p.921). De um lado ele está amparado simbolicamente pelo Outro (A) e, de outro, no
campo do imaginário, pelo significante fálico (φ), que lhe confere uma imagem unificadora.
O sujeito “entra no jogo como morto, mas é como vivo que irá jogá-lo” (LACAN, 1998,
p.558), e o fará servindo-se de figuras imaginárias superpostas ao ternário simbólico IMP.
Porém, Lacan (1998, p.578) não se detém no esquema R das neuroses. Assim, nesta
Tese de Doutorado, nos interessa a transformação operada no esquema R que resulta no
esquema I das psicoses. Ele explica a forma que o campo da realidade se encontra modificado
nestas patologias. O esquema I mostra a distorção imposta ao esquema R devido à projeção de
M sobre I, e de i sobre m. Daí decorre P0, a foraclusão do Nome-do-Pai e, do lado oposto, o
buraco no nível da significação fálica, Ф0.
73
Portanto, os pontos de sustentação da realidade do sujeito apresentados no esquema R
– o Nome-do-Pai (NP) no lugar do Outro (A), no vértice do triângulo simbólico e o falo (φ),
na ponta do triângulo imaginário – estão ausentes no campo das psicoses. A ausência da
significação fálica instala um sorvedouro tanto do lado do simbólico como do imaginário.
Esses dois furos, que correspondem a P0 e a Ф0, respectivamente, curvam as linhas mi e MI,
instalando um achatamento na figura que corresponde à ausência da queda do objeto a.
O esquema I serve de base para a leitura realizada por Lacan do texto freudiano
“Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia (Dementia paranoides) descrito
autobiográficamente” (FREUD, 1911/1993) sobre a paranoia de Schreber. Como discorremos
sobre este assunto no item 1.2.1. desta Tese de Doutorado, iremos retomá-lo brevemente
apenas para pontuarmos este esquema.
Enquanto no Esquema R os vértices do quadrilátero situam as articulações
identificatórias nos campos do imaginário e do simbólico, e o que delas restam de real, no
esquema I tais vértices estão abertos ao infinito, sem um ponto de basta. Nesse sentido, a
torção que testemunha a queda do objeto a não existe nas psicoses e, por isso, o campo do real
se torna precariamente estabelecido e muito variável. O campo R do esquema I representa as
condições em que a realidade é restabelecida para o sujeito, o “que a torna habitável para ele,
mas que também a distorce, ou seja, [os] excêntricos remanejamentos do imaginário, I, e do
simbólico, S, a reduzem ao campo do descompasso entre ambos” (LACAN, 1959[1957-
1958]/1998, p.580).
O desencadeamento da psicose acarreta uma ruptura na cadeia simbólica e provoca
uma autonomia do significante no real. Pelo fato de o sujeito não se sentir autor de seus
próprios enunciados, ele é tomado pela perplexidade. Essa autonomia deslocaliza o gozo e
deflagra diversos fenômenos sobre o corpo, como a hipocondria e os sentimentos voluptuosos
presentes na enfermidade de Schreber. Vemos a manifestação da deslocalização do gozo
desde a primeira crise, em 1893, quando Schreber apresentou um esgotamento nervoso com
74
queixas hipocondríacas. Somente em 1894 surgiu uma significação enigmática em torno da
ideia que ‘seria belo ser uma mulher no momento da cópula’ (Cf. FREUD, 1911/1993, p.14).
A significação do gozo deslocalizado implica em um trabalho de mobilização do
significante na busca de uma explicação para os fenômenos que o invadem. Em Schreber,
essa primeira explicação apareceu na acusação de que um complô estaria sendo tramado por
seu médico, Dr. Flechsig, explicação que não apaziguou Schreber; ao contrário, o deixou à
mercê de um Outro todopoderoso. Posteriormente, uma nova explicação foi encontrada por
Schreber: o próprio Deus assumira o papel de cúmplice na conspiração, sua alma deveria ser
assassinada e seu corpo usado como o de uma rameira.
Essa elaboração expressa o sacrifício da morte do sujeito tomado por Lacan como
renúncia fálica (LACAN, 1959[1957-1958]/1998, p.580). Ela marca uma mudança na posição
de Schreber: da indignação à aceitação da eviração para servir aos desígnios de Deus. Lacan
trabalha o conceito de eviração (o Entmannung freudiano) de forma singular. Em “De uma
questão preliminar...”, ele o inscreve como um elemento próprio à estrutura subjetiva marcada
pela foraclusão. A eviração se define como um efeito da não inscrição no nível imaginário,
que se mostra evidente no caso Schreber pela transformação do sujeito em mulher. A partir
disto, o ter e o ser o falo se confundem de maneira peculiar na medida em que “não é por
estar foracluído do pênis, mas por ter que ser o falo, que o paciente estará fadado a se tornar
uma mulher” (LACAN, 1959[1957-1958]/1998, p.571).
Quando a localização do gozo do Outro foi assentado na metáfora delirante “Mulher
de Deus” de Schreber, seus perseguidores foram identificados. Nessa última fase do delírio,
datada de 1897, o conflito se tornou o motivo da redenção do universo e sua feminilização
culminou na eviração seguida da fecundação por raios divinos. Na psicose o eixo que sustenta
minimamente os remanejamentos imaginários que vêm em socorro à desarticulação no plano
do simbólico se dirige ao infinito, o que faz com que entre o deixar-se cair pelo Criador (M)
e o futuro da criatura (m) – que aparecem sinalizados no esquema I das psicoses (LACAN,
1959[1957-1958]/1998, p.578) –, Schreber invente a metáfora delirante, com o objetivo de
criar uma raça superior de homens feitos de seu espírito.
Através de sua prática transexualista, codificada como (i) naquele mesmo esquema,
Schreber atesta a presença do objeto a. Seu corpo se feminiza através dos seios que crescem
em seu peito. Tal como neste exemplo, o objeto a emerge nas psicoses em diferentes
manifestações alucinatórias e fenômenos elementares, pois por não aparecer como
complemento, encarnando a vertente do que falta ao sujeito, o objeto é assimilado enquanto
presença.
75
Em “De uma questão preliminar...” (LACAN, 1959[1957-1958]/1998, p.564)
encontramos duas articulações. Na primeira, o transtorno no nível do imaginário (Ф0) é efeito
da foraclusão do Nome-do-Pai (P0):
A Verwerfung será tida por nós, portanto, como foraclusão do significante. No ponto em que, veremos de que maneira, é chamado o Nome-do-Pai, pode pois responder no Outro um puro e simples furo, o qual, pela carência do efeito metafórico, provocará um furo correspondente no lugar da significação fálica (grifos do autor).
Um pouco mais adiante, neste mesmo texto, a relação causal entre P0 e Ф0 é rompida, o
que faz com que eles sejam considerados dois transtornos distintos (LACAN, 1959[1957-
1958]/1998, p.577):
Terá esse outro abismo sido formado pelo simples efeito, no imaginário, do vão apelo feito no simbólico à metáfora paterna? Ou deveremos concebê-lo como produzido num segundo grau pela elisão do falo, que o sujeito reduziria, para resolvê-la, à hiância mortífera do estádio do espelho?
Como dissemos no item 1.2. desta Tese de Doutorado, da foraclusão do Nome-do-Pai
no campo simbólico (P0) decorrem as alucinações e os transtornos de linguagem. E no campo
dos fenômenos decorrentes de Ф0, Lacan inclui as ideias delirantes ligadas à sexualidade e ao
corpo.
Em muitos casos, apenas depois de revelada a psicose é possível localizar os signos
precursores e os transtornos de evolução progressiva – como fenômenos de franja e os estados
pré-psicóticos, diz Miller (1998/2006, p.19) na Conversação de Antibes. Tais elementos
clínicos são fundamentais para a localização de uma psicose ordinária, na qual os fenômenos
delirantes ainda muito discretos.
O analista deve estar atento para a localização desses índices estruturais, pois se
tratando de uma psicose não desencadeada – chamada por Lacan de pré-psicose – o manejo
da transferência é fundamental para manter a frágil estabilidade do sujeito na estrutura e evitar
o desencadeamento. Pois, segundo ele, “na pré-psicose há o sentimento de que o sujeito
chegou à beira do buraco. Isso deve ser tomado ao pé da letra” (LACAN, 1955-1956/1988,
p.230). É preciso conceber as consequências quando a questão surge de um lugar em que não
há significante, quando é o buraco, a falta que se faz sentir como tal.
2.2.1 Sobre o desencadeamento de uma psicose
76
Na teoria lacaniana, o conceito de Nome-do-Pai é crucial para pensarmos a questão do
desencadeamento nos casos de psicose. Tanto em O seminário 3 e em “De uma questão
preliminar...”, as condições clínicas do desencadeamento se apóiam na teoria estruturalista e
nos registros da fala e da linguagem. Antes de abordarmos as especificidades que
caracterizam este conceito no primeiro ensino, investigaremos a pré-psicose, que significa a
abertura para os fenômenos elementares que estão presentes na estrutura.
Vale notar a questão colocada por Lacan: “o que será o início de uma psicose?”
(LACAN, 1955-1956/1988, p.104). A partir desta pergunta, ele se refere à pré-psicose, termo
introduzido pelo psiquiatra M. Katan em 1939 com base no estudo das Memórias de Schreber.
Para a psiquiatria, esta noção descreve a presença de fenômenos psicóticos que podem existir
antes do desencadeamento – podendo estar ausentes na atualidade do paciente –, sem que
tenha havido necessariamente o desencadeamento de um estado psicótico em qualquer outro
momento (KATAN apud ZBRUN, 2010, p.6).
A autora aponta a existência de duas concepções de pré-psicose: uma sincrônica
(estrutural) e outra diacrônica (histórica, desenvolvimentista, fenomênica, referida ao tempo).
A primeira geralmente está associada às categorias em que se podem notar fenômenos
produtivos, como os boderlines, por exemplo. A diacrônica é associada a uma série de
acontecimentos que antecedem o surto.
Lacan havia elaborado a noção de pré-psicose a partir desta segunda concepção; ele
parte de Katan e desenvolve sua própria definição, propondo-se, precisamente, a questão:
“Onde começa a psicose?”. Este início marca o momento em que algo, que não foi
primitivamente simbolizado, aparece no mundo exterior. Pela impossibilidade do sujeito fazer
frente ao acontecido, a mediação simbólica é substituída por profundos remanejamentos
significantes. Em Lacan:
Que é que entrevemos da entrada na psicose? – senão que é na medida de um certo apelo ao qual o sujeito não pode responder que se produz uma abundância imaginária de modos de seres que são outras tantas relações com o outro com a minúscula, abundância que suporta um certo modo da linguagem e da fala (LACAN, 1955-1956/1988, p.289).
Avançando sobre esta questão ele se pergunta: “a partir de que momento vamos
decidir que o sujeito transpôs os limites, que ele está no delírio?” (LACAN, 1955-1956/1988,
p.219). A perplexidade concernente ao significante se torna um indício específico da pré-
psicose, e, retomando o caso Schreber, Lacan a descreve como “um período de confusão
pânica”. Nele os discretos fenômenos de crepúsculo do mundo, chamados fenômenos de
78
articulando pré-psicose e psicose ordinária: “o termo pré-psicose não esclarece em nada a
questão da psicose ordinária; ao contrário, obscurece-a” (BRODSKY, 2010/2011, p.33).
Distingui-las desta forma é voltar a atenção dos psicanalistas para índices que lhes permitam
verificar de forma antecipatória uma psicose antes de seu desencadeamento.
Portanto, Brodsky conclui que como o pré supõe um desencadeamento, só é possível
presumi-lo no a posteriori de uma eclosão psicótica. Desta forma, começamos a responder as
questões que levantamos acima. Levando em conta os desenvolvimentos da autora, pré-
psicose e psicose ordinária não se equivalem, pois a primeira supõe o desencadeamento e a
conformação extraordinária e a outra exige que sua apresentação não seja esta. Isto porque,
como Brodsky afirma, em acordo com Jacques-Alain Miller (2009/2010, p.23), a psicose
ordinária tem a especificidade de um enodamento estável sem o Nome-do-Pai, o que exclui a
possibilidade do desencadeamento pelas coordenadas do encontro com Um-pai, assunto que
iremos desenvolver mais adiante, no item 3.4.1 desta Tese de Doutorado.
As posições de Miller e de Brodsky não são unânimes no Campo freudiano, já que é
uma categoria em pesquisa, até o presente momento. Encontramos outras formas de
articulação dos elementos com os quais estamos trabalhando.
Sérgio Laia (2009b, p.131), por exemplo, levanta a hipótese de que a psicose ordinária
é uma maneira mais sofisticada de se abordar o que Lacan denominou de pré-psicose. Isto
porque ele define um psicótico ordinário como “um sujeito que chegou à beira desse abismo
que a foraclusão do Nome-do-Pai escava em uma estrutura clínica”. O autor assinala a
diferença com a psicose extraordinária onde o surto e os fenômenos elementares deixam
entrever o sujeito caído nesse abismo (LAIA, 2009b, p.131).
Nieves Soria Dafunchio (2007/2008, p.261) distingue pré-psicose, psicose não
desencadeada e psicose ordinária através da leitura que faz das mesmas pela teoria dos nós.
Todas três são consideradas psicoses não desencadeadas, mas cada uma possui uma
especificidade. A pré-psicose é caracterizada por um frágil enodamento e uma
sinthomatização insuficiente, que permitem supor a possibilidade de desencadeamento. Ao
passo que, nas psicoses não desencadeadas, sinthoma e enlaçamento são realizados de tal
forma que impedem a eclosão da patologia clínica (DAFUNCHIO, 2007/2008, p.279).
Diferentemente delas, as psicoses ordinárias estão parcialmente desencadeadas ou
sinthomatizadas; elas descrevem um estado da psicose que não está em franco
desencadeamento, o que permite que tenham se desencadeado, e depois sido reenlaçadas pela
medicação ou por sintomas que rearticulam o nó (DAFUNCHIO, 2007/2008, p.259).
79
Assim, acompanhamos que a articulação entre pré-psicose e psicose ordinária são
distintas em diversos autores, dentre os quais selecionamos apenas esses três. Tais diferenças
conceituais expressam que, apesar de os psicanalistas do Campo freudiano se servirem de
conceitos comuns, algumas vezes as distintas interpretações exigem que uma determinada
definição seja tomada como premissa orientadora para a direção de uma Tese. Deste modo,
lembramos que algumas teorizações de Lacan reforçam o conceito de desencadeamento.
Em “De uma questão preliminar...” Lacan (1959[1957-1958]/1998, p.584) reúne como
operadores do desencadeamento a operatividade de uma causa específica (a foraclusão do
significante Nome-do-Pai), a dissolução de um elemento estabilizador (uma identificação) e
uma causa acidental (o encontro com Um-pai).
A primeira delas é a própria condição estrutural da foraclusão. Se na neurose, aquele
significante reduplica no lugar do Outro o índice fundamental do ternário simbólico e que
constitui a lei, na psicose, a falta deste reconhecimento torna precária a situação do sujeito na
estrutura. Além disso, há uma segunda condição que é a ruptura da identificação do psicótico
em relação ao Desejo da Mãe. Neste caso, por prescindir do Nome-do-Pai, a psicose desloca o
desejo materno à condição primordial. Quanto à causa acidental – o encontro com Um-pai –,
ela implica a convocação do significante foracluído e acarreta a suplência através do registro
imaginário, em oposição ao simbólico. É o caso em que Lacan assinala os fenômenos
elementares provenientes do P0 e do Ф0.
O encontro contingente dos fatos da vida com a determinação subjetiva da foraclusão,
somados ao consequente desarranjo identificatório, caracterizam a “conjuntura dramática”
que Lacan (1959[1957-1958]/1998, p.584) localiza no momento do desencadeamento. Isso
quer dizer que o desencadeamento e a eclosão de fenômenos elementares acontecem de forma
brusca, quando o lugar a ser ocupado pelo significante foracluído é ocupado por Um-pai. Esta
experiência de encontro com o real precipita a substituição metafórica delirante, que obedece
aos princípios da foraclusão.
É a falta do Nome-do-Pai nesse lugar que, pelo furo que abre no significado, dá início à cascata de remanejamentos do significante de onde provém o desastre crescente do imaginário, até que seja alcançado o nível em que significante e significado se estabilizam na metáfora delirante.
Mas, como pode o Nome-do-Pai ser chamado pelo sujeito no único lugar de onde poderia ter-lhe advindo e onde nunca esteve? Através de nada mais nada menos que um pai real, não forçosamente, em absoluto, o pai do sujeito, mas Um-pai.
É preciso ainda que esse Um-pai venha no lugar em que o sujeito não pôde chamá-lo antes. Basta que esse Um-pai se situe na posição terceira em alguma relação que tenha por base o par imaginário a-a’, isto é, eu-objeto ou ideal-realidade, concernindo ao sujeito no campo de agressão erotizado que ele induz.
Que se procure no início da psicose essa conjuntura dramática (LACAN, 1959[1957-1958]/1998, p.584, grifo do autor).
80
Miller (1998/2006, p.20) acrescenta que a impossibilidade com a qual o sujeito está
confrontado em simbolizar um modo de subjetivação para o encontro eventual com o gozo do
Outro, ou mesmo de um Outro gozo sem acomodamento, é responsável pelo
desencadeamento da psicose. O sujeito experimenta o furo de tal forma que se manifesta o
desaparecimento radical de todo aparelhamento significante de gozo, gerando uma série de
efeitos no nível da cadeia significante: se produz uma ruptura na articulação entre significante
e significado e a emancipação de um significante que, ao estar fora da disposição binária da
cadeia – S1-S2 – é privado da relação com um segundo significante gerador de significação,
causando diversas manifestações clínicas.
Em consonância com Miller, Stella Jimenez (2009, p.89) propõe que o sintagma Um-
pai, deve ser tomado primordialmente em seu viés homofônico, pois “‘impaire’ em francês:
ímpar. Ou seja, o encontro com o que é radicalmente novo, impensável”.
Retomaremos este assunto quando falarmos dos fenômenos elementares concernentes
ao sentido e à verdade, pois, do rompimento da articulação entre significante e significado
decorrem a perplexidade, o enigma, a certeza e a angústia. O fundamental a ser destacado
neste momento é que esta série é a expressão lógica do desencadeamento de uma psicose e da
manifestação dos fenômenos elementares e do delírio.
2.2.2 Os fenômenos elementares como manifestações da Verwerfung
As manifestações clínicas da Verwerfung são os fenômenos elementares e o delírio,
elementos privilegiados da estrutura psicótica e, portanto, referências imprescindíveis na
direção do tratamento. Em “Formulações sobre a causalidade psíquica”, Lacan (1946/1998,
p.163) retoma sua Tese sobre A psicose paranóica em suas relações com a personalidade,
para relembrar que “a loucura é um fenômeno do pensamento”. Decorre desta articulação que
o campo simbólico, mais especificamente o uso da fala ganha destaque na medida em que
nela ressoa grande parte da fenomenologia da psicose.
Neste mesmo texto Lacan (1946/1998, p.166) caracteriza os fenômenos da Verwerfung
em três tipos, a saber, as alucinações, as interpretações e as intuições. Mesmo que com certo
alheamento e estranheza, eles são vivenciados na certeza delirante de que algo visa o sujeito
pessoalmente. “O que ele ali conhece de si, sem se reconhecer?”, se pergunta Lacan. Esta
81
questão comporta um paradoxo: um desconhecimento sistemático supõe um reconhecimento,
pois se admite que o negado seja de algum modo também reconhecido.
Os sentimentos de influência e automatismo metal se caracterizam pelo fato de o
sujeito não reconhecer suas próprias produções. Quando lhe falta um meio de se exprimir
sobre estes sentimentos, emerge a perplexidade, “uma hiância interrogativa” que faz com que
toda a loucura seja vivida no registro do sentido (LACAN, 1946/1998, p.166). Nesta
articulação entre linguagem e sentido, há uma especificidade própria à psicose que pode ser
localizada nas alusões verbais, nas relações cabalísticas, nos jogos de homonímia e nos
trocadilhos. Nelas, a linguagem se apresenta em uma “modalidade original” que só pode ser
ouvida no “toque de singularidade” cuja ressonância caracteriza o delírio (LACAN,
1946/1998, p.168).
Portanto, “assim como todo discurso, um delírio deve ser julgado em primeiro lugar
como um campo de significação que organizou um certo significante” (LACAN, 1955-
1956/1988, p.141). É a economia do discurso, ou seja, a relação de um sujeito com o
ordenamento comum de seu próprio discurso que permite distinguir que se trata de um delírio.
Nas palavras de Lacan:
Freud teve o sentimento de que, nas relações do sujeito psicótico com o seu delírio, alguma coisa ultrapassa o jogo do significado e das significações, o jogo do que nós chamaremos mais tarde as pulsões do id. Há aí uma afeição, um apego, uma presentificação essencial, cujo mistério continua sendo para nós quase total, o mistério de que o delirante, o psicótico, está unido ao seu delírio como a algo que é ele próprio (LACAN, 1955-1956/1988, p.246, grifo do autor).
Em acordo com Lacan, Jacques-Alain Miller (1995/2005, p.81 e 1987/1997, p.227-
228) considera o delírio um discurso articulado que tem por objetivo dar conta da estranheza
dos fenômenos elementares do sujeito, restituindo uma ordem, qual seja, a delirante. Os
fenômenos elementares podem ser classificados em: fenômenos de automatismo mental, que
se referem à irrupção de vozes e de discursos alheios a mais íntima esfera psíquica; fenômenos
de automatismo corporal expressos pela decomposição do corpo, estranheza,
desmembramento, distorção tempo-espaço; e fenômenos concernentes ao sentido e à verdade,
ou seja, as vivências inefáveis, enigmáticas, inexprimíveis, que causam perplexidade, a auto-
referência ou a certeza absoluta.
Roberto Cueva (1995/2005, p.36) formaliza a construção delirante em três etapas
distintas. No primeiro momento surgem fenômenos elementares que vão desde a alusão até a
interpretação delirante propriamente dita, na qual os traços de convicção e imediatismo são
acentuados por comportar em si mesmo um traço enigmático de significação. Depois, há um
82
trabalho do sujeito sobre esse enigma e sua tradução em diferentes perguntas acusatórias.
Finalmente, o surgimento abrupto de respostas que fixam um sentido em relação ao enigma
inicial, uma interpretação delirante que revela tanto o fenômeno de significação pessoal,
quanto o caráter fragmentário, imediato e intuitivo destas interpretações.
Através da metáfora da folha, Lacan (1955-1956/1988, p.28) assinala a relação
estrutural subjacente entre os fenômenos elementares e a construção delirante. Na medida em
que eles possuem uma matriz mínima que revela a estrutura geral da psicose, podemos supor
que um fragmento não se define como parte de um conjunto, apenas na medida em que nele
se resume a própria estrutura. Da mesma forma, na configuração complexa que se desenham
as nervuras de uma folha, uma estrutura análoga à das formas que compõem a totalidade da
planta está reproduzida. Em Lacan:
[...] os fenômenos elementares não são mais elementares do que o que está subjacente ao conjunto da construção do delírio. São elementares como o é, em relação a uma planta, a folha em que se poderá ver um certo detalhe do modo como as nervuras se imbricam e se inserem – há alguma coisa de comum a toda planta que se reproduz em certas formas que compõem sua totalidade. Do mesmo modo, estruturas análogas se encontram no nível da composição, da motivação, da tematização do delírio, e no nível do fenômeno elementar. Em outras palavras, é sempre a mesma força estruturante, se é possível assim nos exprimirmos, que está trabalhando no delírio, quer o consideremos em uma de suas partes ou em sua totalidade (LACAN, 1955-1956/1988, p.28).
Esta força estruturante define a peculiaridade do funcionamento do inconsciente nas
psicoses: aqui o inconsciente funciona a descoberto, pois o que é da ordem do recalque na
neurose, se sustenta por uma outra linguagem de alcance bastante reduzido. Em O seminário
3, Lacan (1955-1956/1988, p.73) denomina esta linguagem de dialeto, enfatizando que o
funcionamento inconsciente está marcado por uma “inércia bem especial” (LACAN, 1955-
1956/1988, p.167) que o sujeito expressa em sua relação com a linguagem, onde alguma
coisa toma forma de palavra que lhe fala. Ou melhor, ela fala “de um objeto que está no
prolongamento da dialética dual – ele fala com vocês de alguma coisa que lhe falou”
(LACAN, 1955-1956/1988, p.52), tal como testemunha o paranóico.
No texto “Lições sobre a apresentação de doentes”, Miller (1977/1996, p.145) ressalta
este fenômeno parasitário com o termo lacaniano xenopatia. Na conferência “Psicanálise e
psiquiatria” (MILLER, 1981b/1997, p.131) ele o define como o sentimento de que os
pensamentos chegam ao sujeito de fora. Antes de serem formulados, eles são comentados ou
mesmo impostos e, sem mediação, se fazem ouvir no interior do sujeito como a voz do Outro.
Ou seja, pelas palavras estarem privadas de significação, pela impossibilidade de articulação
com o Outro simbólico, elas parasitam o sujeito que escuta a si mesmo. Ele afirma que:
83
Quando a defasagem mantida da enunciação em relação a si mesma se ampliou até engendrar vozes individualizadas e temáticas que se desencadeiam no real, quando o sujeito se experimenta atravessado por rajadas de mensagens, por uma linguagem que fala por si só, espiado em seu foro íntimo e sujeitado a injunções e a inibições a cuja produção ele não pode se vincular, tem-se então a grande ‘xenopatia’, que Lacan fundou no campo da linguagem com seu matema do Outro (MILLER, 1981b/1997, p.131).
Neste ponto, é preciso enfatizar duas questões essenciais. Em primeiro lugar, a
diferença que existe entre a alienação imaginária que está presente na constituição do eu –
mesmo porque a estrutura do eu é paranóica, e isto permanece como elemento de
fantasmatização no ser falante –, e a alienação na psicose. Nesta, o que fala no sujeito é o
inconsciente, ao contrário da neurose onde o inconsciente fala do sujeito. Mas isso não basta.
O outro ponto diz respeito à crítica que Lacan (1955-1956/1988, p.153) lança sobre a
imprudência de alguns em direcionar o tratamento apoiado “na parte sã do eu”, afirmando
que os delírios parciais são um “exemplo mais patente da existência contrastada de uma parte
sã e de uma parte alienada do eu”.
A psicanálise fornece ao delírio do psicótico uma sanção singular, porque ela o legitima no mesmo plano em que a experiência analítica opera habitualmente, e que ela torna a achar no seu discurso o que comumente descobre como discurso do inconsciente. Esse discurso que emergiu no eu, se revela – por mais articulado que ele seja, e se poderia mesmo admitir que ele está em grande parte invertido, posto entre parênteses pela Verneinung – irredutível, não-manejável, não curável (LACAN, 1955-1956/1988, p.153, grifo do autor).
Essa modificação na relação do psicótico com a linguagem leva Lacan ao fenômeno
do automatismo mental, da atribuição das vozes. Para ele a questão não está colocada sobre
aquele que emite a frase, mas no fato de que aquele que a escuta a experiencia como algo
estrangeiro. Os fenômenos falados alucinatórios que têm para o sujeito um sentido no
registro da interpelação, da ironia, do desafio, fazem sempre alusão ao Outro, como um termo
que está sempre presente, mas que jamais é visto e nomeado (LACAN, 1955-1956/1988,
p.291).
[...] o toque de singularidade cuja ressonância é preciso sabermos ouvir numa palavra para detectar o delírio, a transfiguração do termo na intenção inefável, a fixação da idéia no semantema (que aqui, precisamente tende a se degradar em signo), os híbridos do vocabulário, o câncer verbal do neologismo, o enviscamento da sintaxe, a duplicidade da enunciação, e também a coerência que equivale a uma lógica, a característica que, pela unidade de um estilo nas estereotipias, marca cada forma de delírio: tudo isso pelo qual o alienado, através da fala ou da pena, comunica-se conosco (LACAN, 1955-1956/1988, p.168).
A alucinação verbal é uma das formas de automatismo mental mais problemática, pois
quando o que não foi simbolizado aparece no real acompanhado do sentimento de realidade
84
característico deste fenômeno, o sujeito fala literalmente com o seu eu, como se um terceiro,
seu substituto de reserva, comentasse suas atividades (LACAN, 1955-1956/1988, p.23). A
estrutura interna da linguagem é promovida ao primeiro plano da cena – a voz que fala
sozinha e em voz alta –, pois na fala delirante, o Outro estando verdadeiramente excluído, o
que concerne ao sujeito é dito pelo outro.
Como dissemos na Introdução deste segundo capítulo, alguns fenômenos elementares
podem ser identificados na fala de Gérard Primeau, um psicótico entrevistado por Lacan
(1975/2000, p.14) em uma apresentação de pacientes. O fenômeno de alucinação verbal pode
então ser verificado no sujeito, quando em uma tarde ele estava voltando para casa e ouviu os
vizinhos gritarem: “O senhor Primeau é louco; ele deveria ser posto num hospício, etc. e tal”.
Estão presentes os sentimentos de influência: as alucinações verbais, nas quais o sujeito
articula frases e as experimenta com grande estranhamento, na medida em que elas são alheias
a ele e carregam os traços da alucinação e do sem-sentido. “O sujeito não reconhece suas
próprias produções como sendo suas”, diz Lacan (1946/1998, p.166). Esta questão nos
interessa profundamente por redimensionar o saber e o que se extrai dali sem que o psicótico
possa reconhecê-lo.
Outro exemplo é a fala imposta, que Gérard Primeau define da seguinte maneira:
Fala imposta é uma emergência, que se impõe ao meu intelecto e que não tem significado, se considerado o senso comum. São sentenças que emergem, que não são refletidas, que ainda não foram pensadas, mas são uma emergência, expressando o inconsciente (PRIMEAU apud LACAN, 1975/2000, p.5).
Quando trabalhamos o caso Schreber, no item 1.2. desta Tese, dissemos que Lacan
distingue os fenômenos de código dos fenômenos de mensagem. Nos primeiros o sujeito
recebe mensagens sobre o código através das vozes que lhe pronunciam uma nova
significação da linguagem, como nos neologismos. Ao passo que nos fenômenos de
mensagem, por exemplo, nas frases interrompidas, estas se detêm onde se produziria uma
significação e, em substituição a esse complemento surge uma voz que traz o que ficou
excluído do simbólico no real da alucinação. Tal diferença tem consequências para a
interpretação.
A decomposição de um nome fez com que ele se nomeasse como Geai Rare Prime Au,
motivo pelo qual ele obteve o codinome Gérard Primeau. Ele o decompôs de uma forma
lúdica para criar Geai – pássaro – Rare – raro, cuja homofonia cria a primeira parte do
codinome, Gérard. O pássaro que aparece em seu nome emerge no fenômeno de código do
sujeito. Ao iniciar uma fala imposta – “Você matou o passarinho azul” – esta se desdobra em
85
um fenômeno de mensagem: “Ele vai me matar o pássaro azul”. O paciente explica a Lacan
que esta última sentença é um “assastinato” político, um neologismo que inventou para reunir
o assassino, assassin, e o médico assistente, assistant (LACAN, 1975/2000, p.6). O paciente
não consegue distinguir estas palavras isoladamente, pois elas deslizam juntas a partir de uma
mistura sonora que emerge espontaneamente (LACAN, 1975/2000, p.10). Além de
assastinato, o sujeito inclui dois outros neologismos: écraseté, esmagado, e éclaté,
esplendoroso; e o neologismo choixre que significa a junção da palavra choir, cair, e de choix,
escolha (LACAN, 1975/2000, p.11).
Segundo Lacan (1955-1956/1988, p.67), os neologismos não possuem nenhuma
significação no código linguístico. Eles permitem o sujeito significantizar e definir seu ser,
bem como denotam a forma com que o sujeito se orienta no próprio discurso. Lacan inclusive
ensina que na fala delirante o significante sofre algumas modificações: alguns elementos são
isolados e ganham uma força de inércia particular ao serem carregadas de uma única
significação: “certas palavras ganham um destaque especial, uma densidade que se manifesta
algumas vezes na própria forma do significante, dando-lhe esse caráter indiscutivelmente
neológico tão surpreendente nas produções da paranóia” (LACAN, 1955-1956/1988, p.42).
Em “Formulações sobre a causalidade psíquica”, Lacan (1946/1998, p.164) já havia
assinalado que o sentimento limite entre realidade e irrealidade que assinala a alucinação se
manifesta no mundo exterior como algo novo, uma invenção da realidade que constitui o
suporte do que o sujeito experimenta. Isto é facilmente confirmado pelo próprio Gérard
Primeau, na apresentação de pacientes, quando disse a Lacan:
Estou um pouco dissociado da língua, dissociado entre sonho e realidade. Há uma equivalência entre [...] dois mundos na minha imaginação, e não uma prevalência. Entre o mundo e a realidade – o que se chama realidade, há uma dissociação. Estou constantemente alimentando o fluxo imaginário (PRIMEAU apud LACAN, 1975/2000, p.5).
No texto “De uma questão preliminar...” Lacan (1959[1957-1958]/1998, p.538)
trabalha a alucinação de uma forma completamente inovadora em relação à maneira que ela
era apresentada pela psiquiatria. Retomando alguns termos em latim – perceptum, percipiens
e sensorium – ele afirma que a alucinação não é uma percepção sem objeto, como supunha a
psiquiatria, pois o perceptum, a cadeia significante, antecede e atua sobre o percipiens, aquele
que percebe, estruturando sua relação com os objetos a partir do campo simbólico.
A ideia de Lacan (1955-1956/1988, p.90) é que a realidade da alucinação não está
assegurada ao psicótico, a ponto deste muitas vezes admitir a irrealidade de seus fenômenos.
O ponto central é que a questão não se coloca no âmbito da realidade, mas sim no da certeza,
86
pois “mesmo quando ele se exprime no sentido de dizer que o que sente não é da ordem da
realidade, isso não atinge a sua certeza, que lhe concerne. Essa certeza é radical” (LACAN,
1955-1956/1988, p.91). Sabemos que o acesso à realidade depende de uma condição
fundamental. O sujeito deve atravessar o complexo edipiano, para que se integre ao jogo
significante. No caso do psicótico, isso lhe falta e acarreta um buraco na estrutura que o
delírio pretende cumular.
No momento em que o que não é simbolizado reaparece no real, isso se apresenta sob
o registro de uma significação que só se remete a ela própria e permanece irredutível, pois
jamais entrou no sistema dialético de simbolização. Essa significação não vem de parte
alguma e não pode ser ligada a nada, apesar de concernir ao sujeito. Nas palavras de Lacan:
Que diz o sujeito afinal de contas, sobretudo num certo período de seu delírio? Que há significação. Qual, ele não o sabe, mas ela vem no primeiro plano, ela se impõe, e para ele ela é perfeitamente compreensível. [...] ela se situa no plano da compreensão como fenômeno incompreensível (LACAN, 1955-1956/1988, p.31).
No Seminário 3 Lacan utiliza o termo intuição delirante, retirado da psiquiatria, para
explicar a emergência de significantes com sentido pleno que não causam nenhuma vacilação
subjetiva para o sujeito. Nela, um objeto ganha uma significação em relação a qual o sujeito
não pode dizer nada – há um vazio enigmático da significação – a não ser que exista ali
alguma certeza (LACAN, 1955-1956/1988, p.18).
Em “De uma questão preliminar” Lacan (1959[1957-1958]/1998, p.545) considera que
“trata-se, na verdade, de um efeito do significante, na medida em que seu grau de certeza
(segundo grau: significação de significação) adquire um peso proporcional ao vazio
enigmático que se apresenta inicialmente no lugar da própria significação”. Ele reconsidera
esse termo, pois entende que “estamos na presença desses fenômenos erroneamente chamados
de intuitivos” (LACAN, 1959[1957-1958]/1998, p.545). Em seu lugar utiliza a expressão
experiência enigmática, para falar sobre a emergência do S1 enigmático que impele o sujeito à
busca de sentido frente ao vazio do significante.
Gérard Primeau informa que seus delírios paranóicos se iniciaram com o desejo de
livrar a França do facismo. Assistindo a um programa, a locutora disse: “não sabia que tinha
ouvintes com esses talentos”; foi quando ele se conscientizou que podia ser ouvido pelo rádio
(PRIMEAU apud LACAN, 1975/2000, p.14).
Lacan (1959[1957-1958]/1998, p.545) confirma esta questão quando diz que a
realidade que marca estes fenômenos concernentes ao sentido e à verdade é o fato de que
todos o visam pessoalmente, “e, quando vem a lhe faltar todo e qualquer meio de exprimi-los,
87
sua perplexidade nos evidencia nele, mais uma vez, uma hiância interrogativa, ou seja, toda a
loucura é vivida no registro do sentido”.
Na apresentação de pacientes com Primeau, destacamos uma outra passagem. Durante
a entrevista, ele se voltou para um homem que estava fora de seu campo de visão. Ao ser
inquirido por Lacan sobre o gesto, ele disse que ouviu um som e sentiu que determinada
pessoa estava zombando dele. Um som sem sentido foi significantizado como uma presença
zombadora (LACAN, 1975/2000, p.6).
A perda do suporte do aparelhamento significante de gozo gera uma ruptura na
articulação entre significante e significado da qual emergem diversas manifestações clínicas,
como as que descrevemos acima. Para trabalharmos esta ruptura e seus efeitos, é necessário
apontar que o primeiro ensino de Lacan – especificamente O seminário, livro 3: as psicoses
(LACAN, 1955-1956/1988) e os textos “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde
Freud” (LACAN, 1957/1998) e “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose” (LACAN, 1959[1957-1958]/1998) – está baseado na articulação causal entre
significante e significado: S → s.
Miller (1996-1997b/2005, p.21) insere uma observação a partir desta articulação
causal que tem relação com a forma de substituição operada pelo sujeito, ou metafórica ou
metonímica.
O significado aparece como função do significante. A composição dos significantes entre eles, segundo se faz sob a forma da substituição, S/S, ou sob a conexão, S...S, engendra um efeito de sentido de tipo metafórico – emergência, (+)s –, ou metonímico – retenção e fuga, (-)s (MILLER, 1996-1997b/2005, p.21).
Já dissemos que a percepção do vazio produzido pela foraclusão no lugar em que
deveria haver uma significação, causa perplexidade. Ela acarreta um encontro absolutamente
inédito e enigmático para o sujeito, pois no enigma algo é reconhecido como significante, mas
o sentido não pode ser enunciado. Lacan denomina esta pura intencionalidade do significante
de significação de significação, cujo produto é a certeza: quanto menos se sabe o que quer
dizer o significante reconhecido como tal, mais se sabe que ele quer dizer algo, apesar da
impossibilidade de enunciá-lo. A certeza adquire um valor proporcional a este vazio, de tal
forma que, enquanto o significante não puder ser decifrado ele é preservado, e quando a
decifração se torna possível, a certeza termina.
Aquilo que faz suplência à falta do significante Nome-do-Pai, em alguns casos pode
vacilar com um desencadeamento que torna o mundo inconsistente. Em todo ser falante, o
encontro com o furo da significação fálica anula o ser, instalando fenômenos mortíferos
88
duradouros e devastadores. No entanto, a falta de significação fálica nas psicoses muitas vezes
causa fenômenos mortíferos de gravidades distintas, pois quando o gozo retorna sobre o corpo
pode causar experiências de despersonalização e a impressão de que o sujeito está morto. Essa
morte do sujeito constitui o extremo de uma regressão ao estádio do espelho, que reenvia o
sujeito a um narcisismo mortal, pois como a identificação imaginária não está mediatizada
pela função fálica, ela impede a produção de uma identificação simbólica.
Em O seminário, livro 10: a angústia, Lacan (1962-1963/2005, p.134-135) acrescenta
que os fenômenos de despersonalização são contrários à estrutura do eu, porque os objetos
ditos invasivos na psicose são, na verdade, impróprios à “egoização”. Por não passar pelo
reconhecimento do Outro, a imagem especular é tomada por uma vacilação da qual decorre a
emergência da angústia. Ela pode ser constatada pelo sentimento de desapossamento, no qual
o especularizável se torna estranho, fora-do-espaço dialético com o Outro.
Por este motivo, Lacan (1962-1963/2005, p.135) cita o surpreendente conto O Horla,
de Guy de Maupassant (1886/2006), que descreve as façanhas do sobrenatural em um
paciente. O curioso neste conto de Maupassant é que o mesmo se desenvolve em torno da
pergunta sobre a loucura do herói. Isto devido ao fato de que o paciente afirmava ter visto o
Horla, uma visão que lhe causou terror.
Segundo o conto, o importante alienista doutor Marrande convida três colegas e quatro
sábios para escutarem a história de um de seus pacientes. Este relata que há aproximadamente
um ano foi atacado por estranhas e inexplicáveis indisposições: uma inquietação nervosa que
o mantinha acordado durante noites inteiras, uma superexcitação em relação aos ruídos e um
humor colérico. Ele associava a estes fenômenos pesadelos piores que a própria insônia.
Sentia que desaparecia ao deitar, “caía no nada, no nada absoluto, numa morte de todo o ser
da qual era bruscamente, horrivelmente, arrancado pela horrível sensação de um peso
esmagador sobre o peito e de uma boca sobre a minha, que bebia a minha vida por entre os
lábios” (MAUPASSANT, 1886/2006, p.73).
Inicialmente ele supôs que estas sensações eram decorrentes de uma epidemia de
febre, mas alguns fenômenos de caráter alucinatório, fantástico e horripilante o afastaram
desta hipótese. A partir deste momento, ele supôs ser um sonâmbulo, e recorreu a artifícios
para se certificar que não realizava certos atos de forma inconsciente.
Mas conservava na alma essa dúvida dilacerante. Não seria eu que me levantava ser ter consciência disso e que bebia até as coisas que detestava, porque os sentidos, entorpecidos pelo sono sonambúlico, podiam ter sido modificados, ter perdido suas repugnâncias habituais e adquirido gostos diferentes? (MAUPASSANT, 1886/2006, p.74).
89
Estas experiências o levaram a concluir que existia perto dele um ser invisível que o
perseguia. Primeiro, o paciente o nomeou de O Invisível, mas como o codinome não bastava,
batizou-o de Horla: um nome lógico dado a um ser fantástico, o Hors-là, algo fantasmático
que estava para-além.
Segundo o relato, com muita frequência o paciente tinha a certeza desta presença e de
que ela havia se apoderado de sua própria vida. Este ser “é aquele que a Terra espera depois
do homem!” (MAUPASSANT, 1886/2006, p.81), aquele que vem subjugar e dominar a
humanidade. Há séculos sua presença era pressentida e esperada, visto as lendas de fadas,
gnomos, seres maléficos e imperceptíveis.
Com a fala do psiquiatra o autor termina este conto levantando uma duvida entre a
loucura e o fantástico: “Não sei se este homem é louco ou se ambos o somos... ou se... se o
nosso sucessor chegou realmente” (MAUPASSANT, 1886/2006, p.82).
No paciente que protagoniza o conto de Maupassant, podemos constatar tanto perdas
de referências corporais e identificatórias, quanto uma vivência de despersonalização e
descorporização decorrente da regressão especular, transtornos alucinatórios característicos do
desencadeamento.
Tais fenômenos corporais também podem ser ilustrados através da fala de G. Primeau
sobre a impressão de que se tornaria um “mutante sexual”, pois como a natureza lhe dotou de
um pênis pequeno, ele tinha a impressão de que seu sexo havia encolhido e que se tornaria
uma mulher (PRIMEAU apud LACAN, 1975/2000, p.11). Acrescenta-se à sensação de
transexualismo outros fenômenos corporais ocorridos no período do desencadeamento da
psicose: esgotamento nervoso, palpitações afetivas, ansiedade, a vivência de um hiato entre o
corpo e a mente e perdas de memória (PRIMEAU apud LACAN, 1975/2000, p.8).
Se na neurose a função fálica e os efeitos de significação promovem a articulação
percepção-realidade, favorecendo a estabilidade do sujeito, na psicose a foraclusão por algum
motivo pode fazer eclodir a doença. O delírio é uma resposta à invasão do real que,
desarticulado do simbólico, provoca estes fenômenos que exigem um remanejamento
imaginário. Neste sentido, as tentativas de reconstrução delirante asseguram o estatuto de um
trabalho do simbólico sobre o retorno no real daquilo que foi foracluído.
Por este motivo é que a metáfora delirante é considerada por Lacan uma via de
estabilização que cria um ponto de basta no deslizamento do significante sobre o significado e
permite fixar certa significação. Isto ocorre porque ela possibilita um trabalho de
simbolização que, adquirindo valor de inscrição, funda uma referência em torno da qual o
sujeito se localiza no discurso do Outro. Além disso, ela metaforiza um significável,
90
permitindo um remanejamento do registro imaginário que se manifesta com o
desencadeamento.
Jean-Claude Maleval (1996, p.38) destaca que muito raramente o nível de elaboração
delirante em termos de metáfora pode ser atingido. Ao invés disso, na maior parte das vezes
pode ser encontrada uma tentativa desordenada de construção delirante ou mesmo apenas
uma defesa paranóide. Além disso, a conclusão de uma metáfora delirante, como qualquer
trabalho de elaboração simbólica, deixa um resto inassimilável que pode aparecer sob a forma
de um gozo suplementar. Com isso, instala-se o risco de uma nova desestabilização que deve
ser considerado na direção de um tratamento.
Para concluir, nos últimos parágrafos utilizamos termos como estabilização,
desestabilização, reconstrução e suplência. Eles serão melhor trabalhados no item 2.3.1. desta
Tese.
2.2.3 O manejo da transferência em casos de psicose extraordinária
Falar sobre o manejo da transferência exige, também, uma breve retomada das
questões do diagnóstico e da interpretação em psicanálise. Desde Freud até os dias atuais, o
diagnóstico diferencial entre neurose e psicose está intimamente articulado à posição ética
daquele que conduz um tratamento analítico. No texto “Sobre la iniciación del tratamiento
(Nuevos consejos sobre la técnica del psicoanálisis, I)” Freud (1913a/1993, p.125-126)
adverte sobre os efeitos desastrosos que o uso do método analítico pode acarretar nos casos de
psicoses, sobretudo quando há equívocos no que concerne ao diagnóstico. Ele deixa claro que
existem casos que não devem ser tomados em análise, e enumera diversas contra-indicações
ao tratamento das psicoses. Por esta razão o analista deve empreender uma “‘sondagem’, a
fim de conhecer o caso e decidir se ele é apropriado para a psicanálise”.
Esta advertência freudiana é fundamental quando se trata de psicose ordinária, visto
que estes casos se apresentam sem a presença de fenômenos elementares exuberantes, e
muitas vezes estão disfarçados na paisagem da dita “normalidade”. Freud já era sensível a este
ponto. Neste mesmo texto ele chama atenção para neuroses que apresentam sintomas
histéricos ou obsessivos discretos, pois eles podem “ser um estádio preliminar do que é
conhecido por demência precoce (‘esquizofrenia’, na terminologia de Bleuler; ‘parafrenia’,
92
fragmento de realidade rejeitado no passado remoto, ele pode ser equivalente às construções
que acontecem no curso do tratamento analítico dos neuróticos.
Assim como nossa construção produz seu efeito por restituir um fragmento de biografia {Lebengeschichte, ‘história objetiva de vida’} do passado, assim também o delírio deve sua força de convicção à parte de verdade histórico-vivencial que põe no lugar da realidade rechaçada. Deste modo, também ao delírio aplicar-se-á a asserção que faz tempo declarei exclusivamente para a histeria, a saber, que o enfermo padece por suas reminiscências (FREUD, 1937b/1993, p.269-270, grifos do autor; tradução nossa)44.
Portanto, podemos afirmar que a partir das hipóteses apresentadas neste texto de
1937, Freud abre uma leve possibilidade de uma terapêutica aplicada às psicoses. Apesar de
apontar que uma modificação no método analítico permitiria esse trabalho, ele não se detém
diretamente neste ponto. Resta a Lacan pinçar os elementos deixados na teoria freudiana e
formalizar um tratamento possível às psicoses.
Em seu retorno a Freud, Lacan fundamenta o diagnóstico estrutural – intimamente
articulado com a questão transferencial e à direção do tratamento – a partir do significante
Nome-do-Pai. Apoiando-se nas elaborações freudianas sobre a linguística, ele define a
inscrição paterna pela função metafórica, ou seja, pela substituição significante. Inicialmente,
demonstra que o sistema delirante e os fenômenos de linguagem são fundamentais para o
diagnóstico diferencial, na medida em que os traumas de linguagem, tais como o neologismo,
a alucinação e a certeza delirante, denunciam as psicoses.
No primeiro Lacan, a disjunção presença-ausência do delírio é a forma de ordenar a
clínica analítica. Entretanto, o delírio não se apresenta como condição exclusiva ao
diagnóstico da psicose. Ou seja, outros traços servem como operadores diagnósticos: não só
os fenômenos elementares, como dissemos acima, mas também o estabelecimento da
transferência que ocorre de forma específica. Assim, novamente reforçamos a proximidade
entre o estabelecimento da transferência, o diagnóstico diferencial e a direção do tratamento.
A manobra transferencial é o grande desafio em casos de psicose, pois os fenômenos
da transferência localizam a posição subjetiva e constituem o essencial do tratamento. Em sua
tese, Lacan (1932/1987, p.282) reconhece que, apesar de alguns psicóticos terem sido
analisados e descritos com bons resultados, “a técnica psicanalítica conveniente para esses
44 O trecho correspondente na tradução é: “Así como nuestra construcción produce su efecto por restituir un fragmento de biografía (Lebengeschichte, ‘historia objetiva da vida’} del pasado, así también el delirio debe su fuerza de convicción a la parte de verdad histórico-vivencial que pone en el lugar de la realidad rechazada. De tal suerte, también al delirio se aplicará el aserto que yo hace tiempo he declarado exclusivamente para la histeria, a saber, que el enfermo padece por sus reminiscencias”.
93
casos ainda não está, segundo o testemunho dos mestres, madura”. A transferência é colocada
como ponto central:
Assim, o dificílimo problema posto pela técnica atual ao psicanalista é o seguinte: urge corrigir as tendências narcísicas do sujeito por uma transferência tão prolongada quanto possível. Por outro lado, a transferência para o analista, despertando a pulsão homossexual, tende a produzir nesses sujeitos um recalcamento no qual a própria doutrina nos mostra o mecanismo maior do desencadeamento da psicose. Esse fato pode colocar o analista numa postura delicada. O mínimo que pode acontecer é o abandono rápido do tratamento pelo paciente. Mas em nossos casos, a reação agressiva se dirige com muita frequência contra o próprio psicanalista, e pode persistir por muito tempo ainda, mesmo após a redução dos sintomas importantes, e para espanto do próprio doente (LACAN, 1932/1987, p.282-283).
Partindo destas dificuldades técnicas enumeradas em 1932, Lacan busca delimitar um
tratamento possível para a psicose. Logo após a defesa de sua tese, em “Para-além do
‘Princípio de realidade’” (LACAN, 1936/1998, p.88), ele afirma que o analista “opera em
dois registros, o da elucidação intelectual, pela interpretação, e o da manobra afetiva, pela
transferência”. Anos depois, em “Intervenção sobre a transferência” (LACAN, 1951/1998,
p.215), ele define a intersubjetividade como um eixo importante da relação transferencial: “a
psicanálise é uma experiência dialética, e essa noção deve prevalecer quando se formula a
questão da natureza da transferência”. Ela é “o aparecimento, num momento de estagnação da
dialética analítica, dos modos permanentes pelos quais ele [o sujeito] constitui seus objetos”
(LACAN, 1951/1998, p.224). Lacan nomeia a função do analista de “um não-agir positivo”
(LACAN, 1951/1998, p.225).
Dois anos depois, em “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, Lacan
(1954/1998) começa a articular o sintagma “o inconsciente é o discurso do Outro”45. Com
isso, ele propõe que a experiência subjetiva própria à psicanálise é uma via de reconhecimento
do desejo, marcado pelos conflitos simbólicos e pelas fixações imaginárias que impedem seu
advento (LACAN, 1954/1998, p.281). O psicótico renuncia ao desejo do Outro, apresentando,
como diz Lacan, uma “liberdade negativa”. Esta se torna um obstáculo à transferência, na
medida em que empurra o sujeito a uma linguagem sem dialética na qual ele “é mais falado
do que fala” (LACAN, 1954/1998, p.281).
45 De fato, em “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, Lacan (1954/1998: 266) utiliza a expressão “o inconsciente do sujeito é o discurso do outro”, com este outro escrito em minúsculo. No entanto, em suas articulações posteriores, destacamos outros textos – “Introdução ao comentário de Jean Hyppolite sobre a ‘Verneinung’ de Freud” (LACAN, 1954/1998, p.381), “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (LACAN, 1959[1957-1958]/1998, p.556), “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” (LACAN, 1961[1958]/1998, p.634 e 638), “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: ‘Psicanálise e estrutura da personalidade’” (LACAN, 1961[1960]/1998, p.661), “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano” (LACAN, 1960/1998, p.829) – nos quais a função do Outro torna-se mais articulada em torno do simbólico, isto é, tomando a linguagem do Outro como causa.
95
“Desde que haja em algum lugar o sujeito suposto saber [...] há transferência” (LACAN,
1964/1998, p.220), suposição que exclui um saber absoluto.
Em O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (LACAN, 1969-1970/1992), Lacan
dá um passo a mais em relação a essa questão. Ao lado dos discursos do mestre, da histérica e
da universidade, ele institui o discurso do analista que é apenas um dentre outros produzido
pela experiência. Vale notar que todo sujeito passa, necessariamente, pelos quatro discursos,
pois não é possível sustentar apenas um. A lógica que os fundamenta é baseada em uma
fixidez de lugares – agente, Outro, produção/perda e verdade – e lança os demais elementos,
S1, S2, a, $, em uma ordem que caracteriza a operatividade de cada um deles.
O fundamento do discurso do psicanalista é impulsionar o ato analítico e fazer avançar
o processo. O agente do mesmo é o objeto a, visto que é o que resta da operação subjetiva; no
lugar do saber do Outro, o $; no da produção/perda de gozo, o S1; e no da verdade, o S2. Não
cabe aqui aprofundarmos todo aparato que compõe esta lógica. Interessa mais mostrar que tal
discurso reúne o sujeito suposto saber (SsS) e o desejo do analista, e que a suposição de saber
recai sobre o analisante, causado pelo analista.
Miller (1979/2002, p.55) elucida o percurso do ensino de Lacan dizendo que a
transferência continua sendo estritamente freudiana, não obstante ela ter sofrido
transformações. Lacan se diferencia ao fundamentar a transferência na função do analista
enquanto SsS, conceito que toca a própria lógica da psicanálise, na medida em que o analista
se inscreve na economia psíquica do sujeito como formação do inconsciente (MILLER,
1979/2002, p.60-61).
Em um primeiro momento, a transferência teve como pivô o analista enquanto Outro,
lugar do tesouro dos significantes. Neste sentido se evidencia a marca de uma ilusão do lado
do analisante, que supõe o próprio inconsciente constituído no analista. Depois, o analista
representa o resto da operação analítica, elaborado por Lacan em sua teoria sobre os
discursos. Assim acompanhamos uma passagem teórica que retira o analista do lugar do
código e o inscreve como agente do discurso, ao mesmo tempo causa e dejeto.
Na via do tratamento de psicóticos, Lacan retoma as contra-indicações assinaladas por
Freud. Ao mesmo tempo em que acredita que só se devam tomar os pré-psicóticos em análise
se alertados sobre a estrutura, ele afirma a importância do analista não recuar frente a eles. Em
suas palavras:
Acontece recebermos pré-psicóticos em análise, e sabemos em que isso dá – isso dá em psicóticos. Não se colocaria a questão das contra-indicações da análise se todos nós não tivéssemos na memória tal caso de nossa prática, ou da prática de nossos colegas, em que uma
96
bela e boa psicose – psicose alucinatória, não falo de uma esquizofrenia precipitada – é desencadeada quando das primeiras sessões de análise um pouco acaloradas, a partir das quais o sentencioso analista se torna rapidamente um emissor que faz ouvir ao analisado durante o dia todo o que deve fazer e não fazer (LACAN, 1955-1956/1988, p.285).
Os casos de desencadeamento de psicoses estabilizadas são atribuídos a “um manejo
imprudente da relação de objeto”. Lacan fornece uma dica especial dizendo que há:
[...] uma certa maneira de manejar a relação analítica que consiste em autentificar o imaginário, em substituir o reconhecimento no plano simbólico pelo reconhecimento no plano imaginário, que é preciso atribuir os casos bem conhecidos de desencadeamento bastante rápido de delírio mais ou menos persistente, e às vezes definitivo (LACAN, 1955-1956/1988, p.24).
E acrescenta:
O fato de que uma análise possa desencadear uma psicose desde os seus primeiros momentos é bem conhecido, mas nunca ninguém explicou por quê. É evidentemente função das disposições do sujeito, mas também de um manejo imprudente da relação de objeto (LACAN, 1955-1956/1988, p.24).
Por isso Miller (1979/2002, p.70) ratifica que algumas psicoses são desencadeadas
pela experiência analítica, mais exatamente, pelo modo como a transferência funciona nestes
casos, a saber, “em estado puro”. Isto quer dizer que a emergência do SsS em estado puro
converte o Outro ao estatuto de emissor dos próprios pensamentos do sujeito, como
acompanhamos na relação entre Schreber e o professor Fleschig.
Lacan já havia falado em “De uma questão preliminar...” (LACAN, 1959[1957-
1958]/1998, p.588) sobre um tratamento analítico possível. Trata-se da compensação da falta
do significante fundamental para suprir a Verwerfung inaugural da psicose. Esta compensação
pode acontecer por meio de dois mecanismos: pela metáfora delirante e pela compensação
imaginária do Édipo ausente. A metáfora delirante permite fixar certa significação, na medida
em que cria um ponto de basta no deslizamento do significante sobre o significado. Desta
forma, ela possibilita um trabalho de simbolização que metaforiza um significável, permitindo
um remanejamento do registro imaginário que se manifesta no desencadeamento. Por outro
lado, na compensação do Édipo, o sujeito se apóia em uma identificação imaginária através de
um semelhante que pode lhe fazer às vezes de um duplo e lhe oferecer uma referência que
sirva de orientação no mundo.
No horizonte destas compensações, Lacan pontua uma possibilidade de o sujeito se
manter estabilizado em sua estrutura. Pelo menos, minimamente, afinal, esta estabilização
pode ser comparada a um tamborete de três pés, no qual é preciso que haja certa disposição
para que esteja seguro como assento. Conclui-se, portanto, que mesmo que não haja o recurso
97
ao Nome-do-Pai e que não haja garantia do lado da metáfora paterna, uma estabilização pode
ocorrer.
Portanto, a orientação possível do tratamento de uma psicose requer que o analista
opere a partir do lugar do Outro, com o objetivo de refrear os efeitos de gozo produzidos no
sujeito pela falta de operatividade do significante
98
no laço social e trate o impasse de seu gozo de forma inédita. Com a topologia dos nós, Lacan
abre caminho a uma nova clínica diferencial, a qual trataremos a seguir.
2.3 Lacan e a clínica dos nós
Neste item da Tese trabalhamos com o segundo ensino de Lacan, a partir da leitura de
Jacques-Alain Miller (1979/2002, p.15). A chamada clínica borromeana aparece de forma
evidente desde os seminários ...ou pire (LACAN, 1971-1972/2011) e do final de Mais, ainda
(1972-1973/1985, p.160-186), e vai se tornando mais consistente em “RSI” (LACAN, 1974-
1975, inédito) e em O seminário, livro 23: o sinthoma (LACAN, 1975-1976/2007).
Conforme Miller (2011) elucida na apresentação do Seminário 19, se antes Lacan
ensinava o primado do Outro na ordem da verdade e do desejo, desde este seminário ele
ensina o primado do Um na dimensão do real visto que desvaloriza o desejo e promove o
gozo. Além disso, ele recusa o Ser, que não passa de semblante, e privilegia a henologia,
doutrina do Um, que sobrepassa a ontologia do Ser.
Consideramos estes seminários como um ponto de báscula na teoria lacaniana, na
medida em que o registro do real assume o plano privilegiado da experiência.
Consequentemente, o recurso à topologia dos nós permite Lacan formalizar uma nova
perspectiva sobre a estrutura do falasser. Apesar dele já ter dito que a articulação do real, do
simbólico e do imaginário comporta em seu interior o objeto a, ele a retoma para avançar em
suas elaborações.
Na abertura de “RSI”, mais precisamente na lição de 10 de dezembro de 1974
(inédito), ele anuncia aos seus ouvintes que durante aquele ano falará do real. Nota-se que este
registro sempre esteve presente em seu ensino, mas tal marcação nos faz perguntar o que
advém como inovação ao real com o qual ele sempre se relacionou desde o início de sua
transmissão. Além disso, apostamos que, ao percorrermos estes seminários, encontraremos
índices que permitem investigar uma amarração especial para a configuração do nó na psicose
ordinária.
Miller (2008/2011, p.24) esclarece que “o ponto de partida do nó borromeano é a
ruptura, a fratura entre o simbólico e o real, cabendo ao imaginário a função de enlaçá-los”. O
real é definido como inassimilável no sentido da significação, o que não pode ser inscrito pelo
99
simbólico. Ele ganha uma positividade: é preciso uma articulação simbólica para que o real
possa emergir, mesmo que seja em sua face de impossível.
A necessidade de recorrer a tal configuração se impõe pela via de alguns axiomas
lacanianos. O principal deles é o fato de o simbólico ser caracterizado por um “buraco
inviolável”, sem o qual o nó de três não seria borromeano (LACAN, “RSI”, aula de
11/03/1975). Os efeitos deste buraco aparecem tanto no fato de não haver metalinguagem,
quanto na inexistência da relação sexual. Se na primeira opção – caracterizada pelo matema
S( ), significante da falta no Outro – institui uma hiância fundamental do simbólico, na
segunda denuncia que real e simbólico só se mantém unidos pela interposição do imaginário.
Desde a formalização destes axiomas Lacan estrutura a experiência humana a partir
das três categorias, que se definem por serem, ao mesmo tempo, equivalentes e heterogêneas
entre si. Isto significa que para o sujeito se sustentar em um discurso, criar e manter laços
sociais, ele precisa encontrar uma medida comum que permita a articulação entre o
imaginário e o simbólico de tal forma que o real esteja velado.
No início de “RSI”, precisamente na aula de 10/12/1974, Lacan afirma que o
enodamento dos três registros constitui a célula mínima da topologia e a explicação da
realidade do ser falante. Desde as primeiras aparições, ele define o nó em sua propriedade
borromeana: composto de três rodelas de barbante entrelaçados, ao se cortar uma, as outras se
soltam, independente do número de elos que o constitui.
Lacan reafirma em O seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976/2007, p.89) que o
nó borromeano é uma cadeia de três elementos – “o que faz o nó é, no mínimo, o nó de três”.
E que a qualidade da cadeia borromeana deve-se ao fato de que, ao cortar qualquer um de
seus anéis, todos se desligam. Cada um dos elos desempenha o mesmo papel face aos outros:
sendo colocado um sobre o outro, é o terceiro que os ligam, todos três, de maneira
borromeana.
O caráter fundamental dessa utilização do nó é ilustrar a triplicidade que resulta de uma consistência que só é afetada pelo imaginário, de um furo como fundamental proveniente do simbólico, e de uma ex-sistência que, por sua vez, pertence ao real e é inclusive sua característica fundamental (IBID., p.36).
Na aula de 13/05/1975 ele acrescenta à propriedade borromeana a consistência de cada
um destes elos: o real, “estritamente impensável”, ex-siste enquanto impossível; o simbólico,
que sustenta o inconsciente; e o imaginário, a menor das suposições que o corpo implica. Em
razão de serem atados dessa forma – que os coloca um em relação com os outros dois –, estas
distintas consistências se tornam equivalentes. Isto não significa que os registros sejam iguais,
100
visto que “do semelhante ao mesmo, há lugar para uma diferença” (IBID., aula de
18/03/1975). Esta semelhança, nomeada de consistência, decorre do planeamento imaginário
do nó.
Esta figuração implica em uma orientação que fornece ao nó uma qualidade
borromeana. Na aula de 18/03/1975 ele diz que só há um nó orientado, justamente porque é
sempre o mesmo. Contudo, na aula de 08/04/1975 ele esclarece que esta orientação se refere à
direção na qual se gira o nó: dextrógira ou levógira, direções que, ao se orientarem para a
direita ou esquerda, respectivamente, indicam a possibilidade de haver não apenas um, mas
dois nós orientados. Este ensinamento ele introduzira nas primeiras lições do seminário
anterior, Le séminaire, livre XXI: les non-dupes errent.
Além disso, Lacan inscreve a ex-sistência como uma peça chave para entendermos de
que se trata a clínica borromeana, pois o real ex-siste na medida em que ele força um certo
modo de giro pelo qual ex-siste uma rodela de barbante para uma outra. Ele define a ex-
sistência na aula de 14/01/1975 com outras palavras, sem alterar o sentido do que havia dito.
A ex-sistência se define em relação a uma certa consistência e, no final das contas, o fora nada
mais é que um não-dentro, apesar de manter seu sentido mesmo quando se trata do real. De
forma que, se há no simbólico um recalcado, no real há também alguma coisa que faz buraco.
A explicação lacaniana sobre a relação da ex-sistência com a consistência nos esclarece
porque Freud se apercebeu que as pulsões corporais estão centradas em torno da passagem de
um orifício a outro.
De modo que consistência, orientação e ex-sistência são elementos fundamentais à
lógica do enodamento. Na lição de 13/05/1975 Lacan define o nó pelo grupo fundamental, ou
seja, um número de trajetos necessários particular em cada nó, que indica sua estrutura. Mais
adiante, em O seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976/2007, p.94), ele retoma a
importância desta determinação lógica apresentando outros tipos de nó, como o de trevo, por
exemplo. Ele não possui a mesma especificação que o outro, e por isso requer manejos como
os remendos e as suturas para mantê-lo com a aparência de um nó de três. Retomaremos esta
discussão adiante, ainda neste item de Tese.
Em “RSI”, na lição de 14/01/1975, Lacan diz que apesar de ter inventado o nó, Freud
já havia desconfiado dele. Retomando o que pensava Freud em “Inhibición, sintoma y
angustia” (1926[1925]/1993), ele define os registros da seguinte forma: a inibição referida ao
imaginário, o sintoma ao simbólico e o real à angústia. Lacan ressalta que, partindo destes
elementos, Freud faz um nó com quatro no qual a realidade psíquica ata os outros elos. E
acrescenta que, apesar de Freud ter se enganado na feitura do nó, a funcionalidade do mesmo
101
está indicada na operação de enodamento realizada pelo complexo de Édipo. Assim, Lacan
declara nesta mesma lição que a realidade psíquica corresponde ao que Freud chama de
chama complexo de Édipo, sem o qual nada sustenta o RSI.
A importância de um elemento que enode os registros e sustente a realidade para um
sujeito é uma questão corrente neste seminário. Na aula de 11/02/1975, Lacan volta a falar
sobre o nó borromeano composto por quatro toros, mas para isso, é preciso supor os três elos
independentes, atados somente pelo quarto. Ele se questiona o que poderia uni-los nesta
disjunção originária.
2.3.1 Suplências, suturas e emendas: o sinthoma na análise
Além disso, Lacan trabalha o conceito de suplência. Levanta a hipótese de que o
enodamento dos registros precisa de uma ação suplementar, ou seja, de um toro a mais cuja
consistência seria a de se referir à função do Pai.
Além de suplementar, ela seria indispensável? Assim como Freud postula a realidade
psíquica e o complexo de Édipo como operadores de enlaçamento, Lacan lança mão do
Nome-do-Pai. Ele acredita que os três registros estão dissociados e que apenas o Nome-do-Pai
os mantém juntos de forma borromeana.
O psicanalista Pierre Skriabine (2006/2007, p.104), em “Nó e Nome-do-Pai. Vinte e
uma considerações sobre a estrutura”, concorda com esta afirmação de Lacan:
Fazer assim consistir uma ‘realidade’ que não tem nenhuma existência intrínseca, pois ela é somente um véu tecido de imaginário e simbólico que serve para recobrir o real, é, no entanto, necessário para o ser falante, para o sujeito, para se proteger desse real que escapa ao significante e à imagem, e que é, como tal, insuportável.
Nas aulas de 11/03/1975 e de 15/04/1975 de “RSI”, Lacan ata estas três consistências
mínimas e inicialmente independentes que constituem o nó, por meio da função de nomeação
própria ao Nome-do-Pai. Isto justifica porque é necessário que se suponham quatro toros, pois
o quarto reforça o anel do simbólico. No duplo anel feito a partir daí, o Nome-do-Pai é
efetivamente feito de simbólico. No entanto, atados desta maneira, os registros se orientam
por este significante que, enquanto buraco, transmite sua própria consistência aos demais
registros. Daí se explica a pluralização dos nomes do pai.
102
O elemento que enlaça pode ser em um número indefinido, tal como os toros do nó.
Sendo assim, o reforço do anel pode ser feito em qualquer um dos registros, não apenas no
simbólico. Esta questão já havia sido introduzida no seminário Nomes-do-Pai (1963/2005) já
que, ao pluralizar Nome, Lacan apresenta a possibilidade de haver outras suplências, distintas
do Nome-do-Pai.
Em seu seminário sobre De la naturaleza de los semblantes, Miller (1991-1992/2001,
p.26-30) diz que: “O título ‘Os nomes do pai’ já denuncia que não há o Nome do Pai, que o
Nome do Pai como o – artigo definido –, como singular ou, mais precisamente, como único,
como absoluto, não existe”. E acrescenta que esta pluralização marca uma passagem: de
absoluto a relativo, apenas um entre outros.
Vale notar que, além das suplências, a feitura do nó também se diversifica. Apesar de
desenhar uma ordem determinada para que o nó seja efetivo, como discutimos anteriormente,
na aula de 11/02/1975 de “RSI” Lacan postula várias maneiras de atá-lo. Este assunto será
elaborado trabalhado por ele em O seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976/2007).
A inovação surge quando ele fundamenta a função de enlace não mais pelos
operadores freudianos – realidade psíquica e o complexo de Édipo – e nem pelo Nome-do-Pai
postulado em “RSI”, mas sim pelo conceito de sinthoma.
Constatei que, se os três nós mantiverem-se livres entre eles, um nó triplo, que toma parte em uma plena aplicação de sua textura, ex-siste, ele é efetivamente o quarto.
Ele se chama o sinthoma (IBID., p.55).
Este conceito surge pela primeira vez na conferência “Joyce, o Sintoma” (1975/2003).
Lacan o forja para diferenciá-lo do sintoma como mensagem do inconsciente. De acordo com
Miller (apud MAZZUCA, 2007, p.27), o sintoma pode ser definido de duas formas diferentes
no ensino de Lacan. No primeiro momento, na clínica estrutural, o sintoma responde às
formalizações freudianas: como formação do inconsciente ele é passível de interpretação pela
experiência analítica. Posteriormente, esse conceito aparece mais articulado ao gozo e ao real,
inscrevendo de forma maciça o incurável no final de uma análise, portanto, um não-
analisável.
Por isso, Miller em seu seminário “Coisas de fineza em psicanálise”, publicado
recentemente com o título Perspectivas dos Escritos e Outros escritos de Lacan. Entre desejo
e gozo (2008-2009/2011, p.10-11), afirma que existem restos sintomáticos no final de uma
análise que subsistem no sintoma, tal como Freud já havia dito em “Análisis terminable e
interminable” (1937/1993, p.217). Miller observa que, na segunda clínica, Lacan “reconfigura
103
o conceito de sintoma sob o modelo destes restos. Assim, o que Lacan chamou de sinthoma,
conforma a ortografia antiga restituída por ele é, em termos próprios, o nome do incurável.
[...] sinthoma designa o elemento que não pode desaparecer, que é constante” (MILLER,
2008-2009/2011, p.11). Joyce se torna um exemplo para Lacan (1975/2003, p.566), na
medida em que sua escrita evidencia um gozo opaco que exclui o sentido, tal como Lacan
interpreta o sintoma de Joyce.
Apesar de o Nome-do-Pai ser considerado um sintoma, ou sinthoma, nem todo
sinthoma é Nome-do-Pai (LACAN, 1975-1976/2007, p.21). Portanto, começa a existir a
possibilidade de que algo, que não seja o Pai, repare o lapso estrutural do nó e permita outro
tipo de enlaçamento, assunto que iremos discutir adiante. O nó pode ser amarrado através de
uma versão em direção ao pai, visto que, quando um sintoma possui a função de pai do nome,
o nó se sustenta. “O pai, como nome e como aquele que nomeia, não é o mesmo”, diz Lacan
(IBID., p.163).
Em “RSI”, na aula 13/05/1975, Lacan teoriza sobre o conceito de nomeação.
Estabelece que o estatuto conveniente ao Nome-do-Pai é o de pai do nome, pois a função de
nomeação como quarto elo enlaça os três registros e rompe a homogeneidade do nó de três. A
nomeação se modula entre estes registros e pode-se falar, a partir da relação dela com cada
um deles, de versões do quarto elo: a inibição como nomeação imaginária, o sintoma como
nomeação simbólica e a angústia como nomeação real. Neste mesmo seminário, na lição de
15/04/1975, ele ensina que é preciso que o Simbólico se individualize no nó para que surja o
Nome-do-Pai. Isso quer dizer que o Pai enquanto Nome é correlativo ao pai nomeador.
Quando se entra na dimensão da nomeação, um nome próprio pode ou não ser
reconhecido por aquele que o carrega. Ele se articula à incidência do Nome-do-Pai, na medida
em que este significante opera uma nomeação do vazio enigmático que se apresenta para cada
um. No entanto, há algo que escapa ao recobrimento do ser pelo nome próprio, e a esta
dimensão Lacan denomina nome de gozo, “um nome que se acrescentaria não como metáfora
da presença do sujeito, mas designando a verdade de seus modos de satisfação” (MANDIL,
2003, p.205).
Em O seminário sobre o sinthoma, Lacan (1975-1976/2007, p.63) acrescenta algo
novo em termos da possibilidade de um desenlaçamento borromeano, e de suturas e emendas.
Falando sobre o percurso de uma análise, ele retoma a inexistência do Outro do Outro –
axioma que o causou à topologia dos nós – para afirmar a necessidade de uma sutura entre o
simbólico (definido como o saber inconsciente) e o imaginário. A análise permite esta sutura
ao mesmo tempo em que possibilita ao analisante fazer emenda entre o sinthoma e o real
104
parasita do gozo: “é de suturas e emendas que se trata na análise” (IBID., p.71). Elas são
realizadas graças a um artifício, “um fazer que nos escapa, isto é, que transborda em muito o
gozo que podemos ter dele” (IBID., p.62).
Ao inscrever as suturas e emendas no processo analítico, Lacan começa a generalizar a
necessidade da suplência, que já havia sido mencionada na aula de 11/02/1975, de “RSI”. Esta
generalização também pode ser localizada no fato de as formações do inconsciente – por
exemplo, o chiste – serem fundadas sobre o lapso do próprio nó (1975-1976/2007, p.94).
Lacan reforça que o lapso jamais se produz por acaso, visto que há uma finalidade
significante por trás de todo lapso. “Se há um inconsciente, a falha tende a querer exprimir
alguma coisa, que não é somente o que o sujeito sabe, uma vez que o sujeito reside nessa
divisão mesma que representei em outros tempos pela relação do significante com outro
significante” (IBID., p.144). Ou seja, se o nó implica em um lapso próprio à sua constituição
lógica, a suplência se torna indispensável para a efetividade borromeana. Neste sentido, o nó
borromeano de três se torna um mito e sai de cena de uma vez por todas.
Há distinção entre a noção de erro e o conceito de lapso, sobretudo quando se trata do
nó borromeano? Acreditamos que sim. Em nossa opinião, o lapso obedece à noção de
sincronia, enquanto o erro, de diacronia. Em outras palavras, se o lapso faz parte da estrutura
do inconsciente, o erro nada mais é que a versão diacrônica do falasser na estrutura. Foi o que
pudemos deduzir da leitura da lição de 13/11/1973, de O seminário 21, na qual Lacan explica
o termo errer. Assim, o título do seminário “Les non-dupes errent” esclarece a errância do
viator, do viajante na estrutura. Se o neurótico é tolo da estrutura, os psicóticos mostram sua
característica de non-dupes da mesma, ou seja, eles se sentem estrangeiros, não se sentem
colados à estrutura do inconsciente. É o que diz Lacan (1975-1976/2007, p.160) quando fala
de Joyce como um desabonado do inconsciente.
Para exemplificar a importância destes pressupostos, Lacan apresenta o nó de trevo.
Este provém do nó bô apesar de não sê-lo. Como consequência, os registros “[...] são
emaranhados a ponto de um continuar no outro, na falha de operação para distingui-los como
na cadeia do nó borromeano – do pretenso nó borromeano, eu diria, pois o nó borromeano não
é um nó, é uma cadeia”.
Portanto, basta apenas um erro no nó de trevo para que ele se desfaça. Caso isto
aconteça, o sinthoma permite reparar a cadeia borromeana “no caso de não termos mais uma
cadeia, a saber, se em dois pontos cometermos o que chamei de um erro” (IBID., p.90) e
nenhum registro segure mais o outro.
105
O resultado desta sutura difere de acordo com o lugar no qual ela se coloque. É preciso
distinguir quando o erro é corrigido no mesmo lugar em que ele foi produzido e quando ele é
corrigido em dois outros pontos diferentes. “O que subsiste devido à intervenção do sinthoma
é diferente conforme o sinthoma seja colocado no ponto exato do lapso ou em outros dois
pontos” (IBID., p.95).
Quando a correção é feita pelo sinthoma, onde o erro se produz, o elemento de
enodação se distingue dos anéis. Ao contrário, quando ela é realizada em outros dois pontos, o
sinthoma e as argolas se tornam equivalentes (IBIDEM). A consequência desta distinção é
evidenciada pela inexistência da relação sexual, na medida em que o sinthoma se caracteriza
justamente tanto pela não equivalência quanto pela manutenção da inexistência da dita
relação.
À guisa de uma conclusão parcial, levantamos alguns desdobramentos que não estão
claros em O seminário, livro 23, mas que estão ali implícitos. Primeiro, o desenlaçamento dos
registros exige a delimitação da neurose e das psicoses de uma forma completamente distinta
da anterior. O Nome-do-Pai, que na clínica estrutural determinava a estrutura a partir de sua
presença-ausência, se torna apenas uma entre as diversas possibilidades de amarração dos
elementos.
Para enlaçar os registros na neurose e nas psicoses é necessário um quarto, nomeado
por Lacan de sinthoma, que cumpre a função de suprir as falhas da amarração e sustentar uma
solução possível para o falasser46. Em suas palavras: “me permiti definir como sinthoma o
que permite ao nó de três não só se manter nó de três, como se conservar em uma posição tal
que ele tenha o aspecto de constituir nó de três” (LACAN, 1975-1976/2007, p.91).
Quando o sinthoma equivale ao significante Nome-do-Pai, o enodamento dos registros
acontece de forma borromeana. Caso contrário, quando não se equivalem, o enlaçamento
acontece apesar de não haver garantia de sua formalização borromeana. Desta forma, o que
realiza o enodamento dos registros se torna um fator secundário pelo fato de que qualquer
amarração sintomática poder fazer a função de suplência ao desenlaçamento estrutural do nó.
46 Na conferência “Joyce, o Sintoma” (1975/2003, p.561), Lacan define falasser [parlêtre] como uma expressão que substitui a definição de o inconsciente de Freud. De acordo com Miller, no seminário De la naturaleza de los semblantes (1991-1992/2001, p.12), falasser é um conceito no qual Lacan condensa algumas palavras visando evidenciar que o ser está do lado do semblante. Miller apresenta alguns termos. Começa falando sobre o parêtre [parecer-ser], condensação que intenciona separar o ser e o real e situar o ser do lado do semblante. Assim, o ser não se opõe ao paraître [parecer], mas se confunde com ele. Este é a valor da condensação contemporânea operada por Lacan ao falar de parlêtre, que vem sendo traduzido por hablanteser em espanhol e falasser em português. O parentesco entre estes dois termos – parêtre e parlêtre – é melhor visto na grafia par(l)être, que além de ser uma abreviação de être parlant [ser hablante], atribui ao homem um ser de semblante.
106
2.3.2 Joyce com Lacan
Lacan encontra na obra de James Joyce um suporte para a renovação do conceito de
sintoma. A modificação da ortografia – “sinthoma é uma maneira antiga de escrever o que
posteriormente foi escrito sintoma” (LACAN, 1975-1976/2007, p.11) – é inspirada na
maneira peculiar que Joyce escreve.
No texto “Lacan com Joyce”, Miller (1996/2010, p.36) afirma que Lacan se interessa
por Joyce na medida em que ele evidencia a “inversão que se produz quando o sintoma dá
lugar à criação”. Esta elaboração já está presente desde o trabalho com o caso Aimée e pode
ser encontrado também nas articulações entre literatura e os efeitos de criação que levam
Lacan a falar de Hamlet, Antígona e Edgar Alan Poe, por exemplo. Aliás, em “Nota passo a
passo”, Miller (2005/2007, p.201) esclarece que “Lacan recorria a Joyce para dar um passo
além do ponto onde Freud se deteve”.
Pouco depois, no livro Perspectivas dos Escritos e Outros escritos de Lacan, Miller
(2008/2011, p.84) elucida que com a articulação entre o conceito de sinthoma e a obra de
Joyce, Lacan destaca algo que vale apenas “para o um-sozinho [un-tout-seul]”. Ou seja, ele
inventa o sinthoma para designar o singular em seu absoluto. Neste sentido o sinthoma é
generalizado a ponto de se poder supô-lo em cada um.
Mas tal singularidade, na maioria dos casos, está recoberta pela fabricação de um
sentido partilhado que a apaga. Ela pode ser ocultada ao se encarnar uma outra coisa, a saber,
“nossa trama, nosso destino, a herança da família, um grande personagem, ideais” (IBID.,
p.85). Miller acrescenta que Joyce escapa do comum na medida em que ele se identifica com
esse singular sem dissimulá-lo. Nas palavras de Lacan (1975-1976/2007, p.114): “Joyce não
sabia que ele fazia o sinthoma, quero dizer, que o simulava. Isso era inconsciente para ele. Por
isso, ele é um puro artífice, um homem de savoir-faire, o que é igualmente chamado de um
artista”.
Podemos também depreender desta articulação que o conceito de sinthoma e o estilo
da escrita joyceana podem ser aproximados, visto que ambos concebem a junção entre
significante e gozo. Sobre a relação entre estes elementos, Lacan (IBID., p.38) diz que:
Em todo caso, é a partir de Joyce que abordarei este quarto termo, uma vez que ele comporta o nó do imaginário, do simbólico e do real. O problema todo reside nisto – como uma arte pode pretender de maneira divinatória substancializar o sinthoma em sua consistência, mas também em sua ex-sistência e em seu furo?
107
Esse quarto termo, a respeito do qual eu simplesmente quis lhes mostrar hoje que é essencial ao nó borromeano, como alguém pôde visar por sua arte a restabelecê-lo como tal, a ponto de estar o mais próximo possível dele?
Partindo destas questões, Lacan (IBID., p.85) se debruça sobre a especificidade do
enlaçamento do nó deste artista, propondo considerá-lo “como respondendo a um modo de
suprir um desenodamento do nó”. A complexidade do nó joyceano se deve ao fato de o
simbólico e o real fazerem cadeia e deixarem livre o imaginário. Apenas com o quarto elo –
neste caso o ego que funciona como uma suplência do Nome-do-Pai – Joyce pôde reparar o
erro e sustentar os registros unidos, mesmo que não seja de forma borromeana. Por este
motivo, Joyce mantinha sua psicose fora de um desencadeamento clássico, da mesma forma
com que Lacan postulara na década de 50. Nas palavras de Lacan (IBID., p.148):
Eis exatamente o que se passa, e onde encarno o ego como corrigindo a relação faltante, ou seja, o que, no caso de Joyce, não enoda borromeanamente o imaginário ao que faz cadeia com o real e o inconsciente. Por esse artifício de escrita, recompõe-se, por assim dizer, o nó borromeano.
Inicialmente destacamos neste item da Tese, as consequências da formalização do nó
de Joyce em alguns pontos fundamentais: a relação entre sinthoma e arte, o desejo de Joyce
ser um artista famoso, o nome próprio e o nome comum, as epifanias e os enigmas que
caracterizam a escrita de Joyce. Todos eles são considerados pontos privilegiados que
evidenciam a compensação de uma carência paterna. Além disso, explicam que a forma com a
qual o real se enlaça no nó de Joyce evidencia uma foraclusão estrutural. Lacan a indica
precisamente na conferência “Joyce, o Sintoma” (1975/2007, p.162):
Eu disse que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. É estranho que se possa também chamar desabonado do inconsciente alguém que joga estritamente apenas com a linguagem, ainda que se sirva de uma língua entre outras e que é, não a sua.
Em um seminário realizado na Seção Clínica de Barcelona, Miller (1996/2010, p.55)
afirma que o que Lacan chama de foraclusão “é uma elucubração sobre a carência do pai”, na
medida em que o inconsciente é uma estrutura superposta à língua, “uma elucubração de
saber” (IBID., p.52) que possui o caráter de semblante. E diz que, com a expressão
desabonado do inconsciente, Lacan indica que em Joyce trata-se de uma elucubração distinta,
na medida em que este multiplica as línguas de referência para obter “um gozo em curto-
circuito”. Por isso, ele não passa pelas intercessões do imaginário, nem pela articulação do S1
conectado a S2 que lhe dá sentido. “É o ingozciente (injouiscient) joyceano, algo distinto do
inconsciente” (IBIDEM).
108
Apesar de Lacan não se deter em um diagnóstico, ele claramente aponta a foraclusão
de Joyce em uma outra passagem. Questionando-se se “Joyce era louco?”, nome do quinto
capítulo do Seminário 23, ele articula a foraclusão em Joyce ao papel de Redentor que “não
passa de lengalenga”.
Não há nisso alguma coisa como uma compensação dessa demissão paterna, dessa Verwerfung de fato, no fato de Joyce ter se sentido imperiosamente chamado? Essa é a palavra que resulta de um monte de coisas que ele escreveu. É a mola própria pela qual o nome próprio é, nele, alguma coisa estranha (LACAN, 1975-1976/2007, p.86, grifo do autor).
Os efeitos desta foraclusão também são evidenciados pela maneira que Joyce equivale
sua arte a uma missão, capaz de fazer subsistir a própria família e de elevá-la a certa distinção.
Segundo Lacan (IBID., p.67-68), em Ulisses Joyce se dirige a um pai carente ao qual ele
busca de várias formas sem encontrá-lo em qualquer grau; dizendo inclusive que Ulisses
testemunha o enraizamento de Joyce ao pai, mesmo que o renegue, motivo pelo qual Lacan
aponta a raiz do sintoma de Joyce. Ao articular este sintoma à carência paterna, Lacan (IBID.,
p.91) se detém na aspiração de Joyce, a saber, o nome próprio que realiza a compensação
desta carência. Na conferência sobre Joyce ele diz que (1976/2003, p.569) só falará em Joyce
para apontar as consequências de uma recusa mental que esta obra ilustra.
No livro Comentario del seminario inexistente, Miller (1991/1992, p.23-30) utiliza os
textos lacanianos “A significação do falo (Die Bedeutung des Phallus)” (1958/1998) e
“Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano” (1960/1998), para
trabalhar o nome próprio. Ele o define de diversas maneiras: um elemento que não se traduz
na língua e equivale ao matema, na medida em que em ambos o significado não se coloca; ao
contrário, quando se trata de nome próprio o que está em causa é a referência, no sentido de
uma origem. Mais adiante, acrescenta que a característica fundamental do nome próprio é a de
ser insubstituível, portanto, um designador rígido, um significante puro. Enfim, ressalta que
toda a problemática do nome próprio se resume à forma como cada um designa seu ser, tanto
para designá-lo a partir do Nome-do-Pai quanto a partir do eu.
Na opinião de Lacan, a obra joyceana incide sobre o nome próprio do autor, não
naquilo que ele conserva do nome patronímico, mas no modo como lhe permite designar seu
ser. Na conferência sobre Joyce, Lacan (1975/2007, p.161) destaca que o desejo de Joyce de
ter um nome que o ultrapassasse após a morte. E mais adiante ressalta que (IBID., p.163):
O pai, como nome e como aquele que nomeia, não é o mesmo. O pai é esse quarto elemento [...] sem o qual nada é possível no nó do simbólico, do imaginário e do real.
109
Mas há um outro modo de chamá-lo. É nisso que o que diz respeito ao Nome-do-Pai, no grau em que Joyce testemunha isso, eu o revisto hoje com o que é conveniente chamar de sinthoma.
Na medida em que o inconsciente se enoda ao sinthoma, que é o que há de mais singular em cada indivíduo, podemos dizer que Joyce, como ele escreveu em algum lugar, identifica-se com o individual (grifo do autor).
Além disso, o nome próprio também pode ser tomado como nome de gozo.
Encontramos na clínica freudiana, diversos exemplos de como o nome próprio não equivale
necessariamente ao Nome-do-Pai, por exemplo, nos casos de O Homem dos ratos e de O
Homem dos lobos.
Anos depois, na conferência que Miller (1996/2010, p.39) pronuncia sobre “Joyce com
Lacan”, ele retoma esta questão para dizer que o nome próprio é uma seleção, apesar de nunca
ser suficiente. Por isso, sempre se complementa o nome e neste sentido ele nunca é
suficientemente próprio. É isto que Lacan realiza quando propõe nomear um artigo como
“Joyce, o Sintoma” (1975/2003, p.560).
Lacan (1975/2003, p.562) constata que Joyce se dá um nome de gozo com valor de
nomeação, pois esta comporta o que há de mais singular no sintoma, e o enlaça com algo
próprio ao falasser. Este laço é encontrado na forma em que sua arte apresenta um savoir-
faire com a linguagem: “Joyce, o Sintoma [Symptôme], por seu artifício, leva as coisas a um
ponto em que nos perguntamos se ele não é o Santo, o santo homem [saint homme] até não ter
mais p”, ou seja, o p de symptôme.
A partir do conceito de nomeação, Lacan (1975-1976/2007, p.163) encontra a via que
leva Joyce do sintoma ao gozo: o sintoma está no fato de que esse gozo é a única coisa que o
leitor pode capturar a partir de a escrita de gozo, a lalíngua que Joyce utiliza em Finnegans
Wake. Uma língua que fascina o leitor lacaniano porque tem relação “com joy”, escrita
inglesa da palavra alegria, satisfação, deleite, enfim, gozo. Assim, Lacan mostra a função
compensatória do nome próprio porque Joyce o faz entrar na categoria de nome comum e, ao
mesmo tempo, deter a falha de seu nó.
Miller (1996/2010, p.43-44) esclarece sobre esta função destacada por Lacan, dizendo
que:
Lacan lembra que Joyce desejava imortalizar seu nome, fazer-se um nome e imortalizá-lo fazendo para si um lugar na memória universal. Lacan o refere à carência paterna da qual Joyce padecia, de modo que ele teria conseguido, com o nome próprio, fazer uma versão do Nome-do-Pai. A perspectiva de ocupar para sempre a memória dos homens com um Nome-do-Pai artificial, feito com base no seu nome próprio, deve-se à falta de um ponto de basta (point de capiton) normal, comum. Pode-se, assim, interpretar todo Joyce a partir de como tamponar a falha do ponto de basta. Vejo na ideia de ocupar eternamente a memória das pessoas uma versão da assíntota schreberiana. O inquietante é que seu nome pode ser o eco ou despertar ecos de significação para a humanidade (grifo do autor).
110
Se Joyce tinha o desejo de ser um artista mundialmente reconhecido fazendo com que
se demandasse à universidade um dispêndio de tempo para decifrar sua obra, ele também
compensa o fato de carecer dos efeitos do Nome-do-Pai em sua relação com a linguagem. Por
esta razão, Miller (1996/2010, p.41) diz que Joyce traumatiza a Universidade ao elaborar o
próprio trauma recebido da relação com a língua. Seu dispositivo impede uma soma do saber,
na medida em que ele o despedaça. “Não se pode descobrir em Joyce nenhum significante
mestre capaz de instaurar uma ordem”. O que resta aos estudiosos é o autor, que impõe sua
presença no momento em que faz desaparecer a soma do saber.
2.3.3 O objeto a-voz joyceano
A arte joyceana, mais precisamente o modo particular de gozo por meio da palavra
escrita, supre a inconsistência fálica ao visar o quarto termo, o sinthoma. “O que ele escreve é
a consequência do que ele é. Mas até onde vai isso? Com que cacife ele contava,
considerando as armas que apresentava – o exílio, o silêncio e a astúcia?”, de indaga Lacan
(1975-1976/2007, p.77).
Trabalhando sobre este modo de escrita, Lacan (IBID., p.62) estabelece a articulação
letra-voz que ele já havia questionado em 1964, no ensino de O seminário, livro 11: os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise, justamente ao se dedicar à relação do sujeito com o
Outro. Mais adiante, em O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante
(1971/2009), ele a examina na correspondência imediata escrita-leitura.
O texto joyceano exige que se reconsidere a noção de leitura, pois a possibilidade de
inúmeras interpretações lhe fornece o caráter de ilegibilidade que rompe com a natureza de
comunicação implícita na escrita convencional. A ilegibilidade deste escrito indica a presença
de uma prática de gozo sintomático fora de sentido, portanto, não comprometida com a
transmissão de uma mensagem. É algo da ordem de um hors-du-sens.
Os efeitos da palavra joyceana estão diretamente relacionados aos modos de sua
própria satisfação: “visto que ele é um fazer que nos escapa, isto é, que transborda em muito o
gozo que podemos ter dele”, conforme disse Lacan (1975-1976/2007, p.77). Nessa mesma
direção, Miller (1996/2010, p.52-53) aponta que não é tanto a dimensão do desejo e nem o
conceito de sublimação que convém à obra de Joyce. Trata-se de uma “sublimação
111
artificiosa”, no sentido de uma libido mais sintomatizada do que sublimada. “De certo modo,
Joyce não sublima, e é por isso que tem um parentesco com o sintoma”.
No texto “O real é sem lei”, Miller (2001/2002, p.12) esclarece que a concepção de
escrita na obra de Joyce recoloca para Lacan o tema da fala: ela não é mais abordada em sua
função de libertar a verdade de um sujeito, como ele acreditava a partir do retorno à talking
cure freudiana. O sentido, o significante e o saber são rebaixados visto que a fala, equiparada
a um parasita, perde sua função de via de salvação. Em suas palavras:
Há uma escrita que é aplicada à fala, que permanece relacionada ao sentido, e depois há uma outra, pura, desarticulada do sentido, e que por isso é capaz de valer para o real. É no nível dessa escrita pura, dessa escrita outra que Lacan situa seu nó.
No entanto, em “Lacan com Joyce”, Miller (1996/2010, p.48) alerta sobre duas
questões distintas. Por um lado, distingue o oral e o escrito, por outro, ressalta que Joyce
realiza “uma escrita do fonético”, por meio de um movimento de retroação que faz com que o
significante retorne sobre a própria cadeia e produza um significante sintomático novo, que
não está ligado ao som porque ele converge em direção ao próprio significante.
Ao operar sobre os efeitos de sentido das palavras de modo a fazer surgir um vazio de
significação, a arte de Joyce atinge o sintoma para além da dimensão simbólica. Nesse
sentido, Lacan (1975-1976/2007, p.62) valoriza o significante artifício para enunciá-lo como
aquilo que permite Joyce reparar a falha do nó, obtendo um enodamento não borromeano,
mas com valor similar a um nó borromeo. Segundo a nota inserida por Sérgio Laia, tradutor
do Seminário 23, esta expressão designa “a habilidade, o jeito para se obter êxito graças a
ações que são, ao mesmo tempo, maleáveis e precisas” (IBID., p.14).
Lacan localiza o artifício de Joyce em Finnegans Wake, a maneira que a escrita
desmantela a língua inglesa até ela perder a identidade fonatória. Na verdade, Lacan ressalta o
uso diferenciado que Joyce utiliza, seu savoir-faire (IBID., p.72). Esse desmantelamento só é
possível em função da preservação da letra, mesmo que a ortografia da língua inglesa não se
mantenha, e mesmo que a sonorização da palavra escrita deixe entrever a expressão fônica de
outros idiomas.
Segundo Ram Mandil (2003, p.260):
Na escrita de Joyce haveria, portanto, um caráter de defesa, de proteção contra a dimensão enlouquecedora da palavra, para quem não se viu dela apaziguado pela função do Nome-do-Pai, aquele que amortece os significantes ao aparelhá-los com a função de significação.
112
A psicose de Joyce se mantém compensada pela escrita, pela forma que utiliza as
palavras para se defender de seu traumático encontro com a língua. Afinal, para Miller “o
verdadeiro núcleo traumático não é a sedução, a ameaça de castração, a observação do coito;
tampouco a transformação de tudo isso em fantasia, não é Édipo e castração. O verdadeiro
núcleo traumático é a relação com a língua. É o que Joyce evidencia” (MILLER, 1996/2010,
p.41).
Joyce padece de um transtorno real, algo que ele mesmo chamou epifanias. Ele as
descreve como diálogos curtos e interrompidos, mas que para ele tinham uma particularidade
absolutamente evidente, pois ele retira a certeza de sua convicção de artista. Sua obra lhe
serviu como tratamento da relação perturbada com a linguagem, visto que com ela ele
transforma a certeza insuportável de suas epifanias em um enigma que o protege do trauma da
língua.
Assim, a escrita de Joyce é um modelo dos modos com que o falasser lida com a
linguagem: o caráter de imposição das palavras, sua exterioridade original e a angústia
causada pelas significações enigmáticas naquele que fala. Dada à forma com a qual ele opera
com os equívocos da linguagem – distinta daquela que permitiria uma abertura para o
inconsciente – Lacan (1975-1976/2007, p.160) afirma que Joyce é um desabonado do
inconsciente.
Lacan se pergunta: “Joyce como escritor por excelência do enigma não seria a
consequência da cerzidura tão mal feita desse ego, de função enigmática, de função
reparadora?”. Ele próprio responde afirmativamente: Joyce faz a montagem de um ego capaz
de reparar o desenlaçamento do registro imaginário, do qual decorrem as epifanias e o grande
número de enigmas presentes na escrita. Elas estão na origem de sua vocação como escritor,
na medida em que se ancoram em experiências nas quais a significação parece estar ausente.
Tal fato conduz Lacan a situá-las fora do imaginário, na conexão entre o simbólico e o real.
“É totalmente legível em Joyce que a epifania é o que faz com que, graças à falha,
inconsciente e real se enodem” (IBID., p.150-151).
Os enigmas, por sua vez, decorrem da amarração malfeita desse ego: ao mesmo tempo
em que Joyce multiplica as ressonâncias das palavras, rompendo os efeitos de sentido e de
verdade, ele se subtrai à decifração do inconsciente. Lacan evidencia que:
É por intermédio da escrita que a fala se decompõe ao se impor como tal, a saber, em uma deformação acerca da qual permanece ambíguo saber se é o caso de se livrar do parasita falador de que lhes falei há pouco ou, ao contrário, de se deixar invadir por propriedades de ordem essencialmente fonêmica da fala, pela polifonia da fala (IBID., p.93).
113
A escrita joyceana produz o isolamento de uma voz resultante do modo com ele opera
as palavras, seus sentidos, sua sonoridade. Trata-se de uma relação de extimidade com o texto.
A escrita provoca uma tensão entre voz e letra, pois a voz ultrapassa os limites, apesar de ser
produzida pela manipulação da letra. Portanto, em relação à voz a escrita de Joyce se inscreve
como sintoma e funciona como um elemento de estabilização da realidade psíquica. De
acordo com Lacan (IBID., p.80), “nessa reverberação, o significante permanece como um
suporte sonoro do sentido, mas ao mesmo tempo, sua identidade fonatória é radicalmente
estremecida e tal perturbação afeta o fluxo mesmo do sentido”.
No texto “Lacan com Joyce”, Miller (1996/2010, p.54-55) ensina que a relação
especial entre o som e o sentido, que caracteriza a obra de Joyce, decorre do fato de “ele não
está totalmente protegido dos ecos pelo Nome-do-Pai”, que permite moderar o gozo em
relação com a língua. Em suas palavras:
O Nome-do-Pai é um dispositivo de redução do gozo, de adequação e de vinculação do significante e do significado. [...] Em Joyce, vê-se como essa escrita permitiu a sua estabilização. É o seu Nome-do-Pai. Como sujeito, ele é filho de seu sintoma (IBID., p.56).
Nesta mesma direção Sergio Laia (2008, p.73) afirma que para que se possa capturar
uma palavra do escrito de Joyce são necessárias ao menos três palavras, além de um
coeficiente de anulação de sentido. Com estes quatro elementos ele cria uma palavra em que o
sentido, devido à acumulação de termos, também não deixa de escapar ao leitor: há, ao
mesmo tempo, um excesso de sentido e sentido algum. De acordo com Laia (IBID., p.78), em
Joyce:
[...] o que encontramos não é um ultrapassamento ou uma anulação da linguagem, senão uma palavra que, impondo-se mais além do sujeito, o supera e, tributária da foraclusão de um significante fundamental (o Nome do Pai), não deixa de impor-se como uma anulação do sujeito.
Miller (1988/1998, p.16) afirma que o sentido se apresenta sempre superposto a
diversos saberes, fazendo com que o leitor busque as referências do próprio autor para
circunscrever o que cada palavra quer dizer, uma busca que esgota a dimensão do significado.
Cada palavra joyceana, por designar nada além dela mesma, acaba tendo como referência
apenas o nome daquele que a criou; cada uma delas indica o vazio da referência, pois o
significante que retorna sobre si mesmo não está conectado a nenhum som e nem a um objeto
da realidade.
Anos depois, Miller (1996/2010, p.47) retoma esta questão dizendo que:
114
Joyce não mobiliza apenas o sentido, mas também vários saberes: o saber de várias línguas e os saberes da enorme biblioteca necessária para se buscar de onde vêm as coisas. De tal forma que ele modifica a relação com o sujeito suposto saber. A partir de um significante, Joyce mobiliza o sujeito suposto saber a esse significante, isto é, esse “s” minúsculo que é, ao mesmo tempo, sentido e saber ou sentido e saberes. Ele o mobiliza mediante associações e o faz passar para o nível exposto, como se pudesse explicitar todos os ecos de um significante. Ele dá um esboço desse todo. É por isso que ele destrói o sujeito suposto saber e o espaço mesmo da interpretação. Ao mesmo tempo, ele se recompõe para seu próprio benefício, para tornar-se sujeito suposto saber e para que todos os leitores especialistas o estudem.
Com sua obra, Joyce consegue uma transposição das palavras que lhe eram
enigmaticamente impostas pelo Outro. Isso se confirma pelo continuo de sua arte, pelo
tratamento que ele deu às palavras. Ele as quebra, as desmantela, as decompõe até o limite
onde não se encontra mais uma identidade fonatória comum. Em algumas obras do autor, a
língua inglesa foi estremecida a todo instante, a tal ponto que os significantes ressoam como
provenientes de outras línguas.
Miller (IBID., p.37) comenta a interpretação lacaniana sobre Finnegans Wake:
Lacan interpreta o wake do título, o awakening, o despertar, como um desejo de Joyce de despertar a literatura, o sonho literário; um despertar que tivesse significado o seu fim por havê-la despertado para algo de sua estrutura, de sua verdade, de seu real, mais além das fantasias, da idealização. Seria como um atravessamento da fantasia literária, em direção ao real da escrita, que é a pura relação com a língua (grifo do autor).
Lacan não se ocupa em definir um diagnóstico para Joyce, mas no percurso de seu
seminário, encontramos algumas pistas importantes. Ao falar sobre a distância que Joyce
toma da política da Irlanda, Lacan (1975-1976/2007, p.15) utiliza a expressão sint’home rule.
A nota do tradutor esclarece que se trata da junção de sint, de sinthoma, com home rule, que
significa “governo próprio”, “autonomia”.
Em “Nota passo a passo” – um dos anexos de O seminário, livro 23: o sinthoma –,
Miller (2005/2007, p.208) esclarece que a expressão sint’home rule, traduzida como “o
sinthoma que rola”, designa a singularidade do sinthoma de Joyce, desnudado em sua
estrutura e em seu real. Também chamado de sinthoma herético, essa expressão se contrapõe
a outra, masdaquino, que define o sinthoma ortodoxo elevado ao semblante e velado por
sublimações recolhidas do senso comum.
Quando esta Tese começou a ser redigida, levantávamos a hipótese de Joyce ser
considerado um caso de psicose ordinária, justamente porque existem sinais de fenômenos
psicóticos evidentes. Se acompanharmos Lacan, ele cita dois exemplos em seus comentários.
Primeiramente, a cena do livro Retrato do artista quando jovem (1916/1987) em que Joyce
descreve a surra que tomou dos colegas e sentiu seu corpo se despregar como uma casca.
115
Nesse caso, o fenômeno elementar de automatismo corporal revela a sensação de estranheza e
de um corpo decomposto, desmembrado, tal como Miller (1987/1997, p.227) resumiu em seu
seminário de Curitiba sobre o método psicanalítico. Em segundo lugar, a invenção de palavras
no livro Finnegans Wake, que pode ser interpretada como a invenção de uma língua
fundamental, tal como Freud conceitua a partir do caso Schreber, em “Puntualizaciones
psicoanalíticas sobre un caso de paranoia (Dementia paranoides) descrito
autobiográficamente” (1911/1993, p.23).
Elisa Alvarenga (1999, p.120) reforça a hipótese de psicose ordinária em Joyce, ao
inscrevê-lo como um caso paradigmático de psicose não desencadeada graças ao trabalho
criativo que, nele, toma a forma de sinthoma e amarra os três registros. A autora destaca o
endereçamento do material produzido por meio da escrita como crucial à estabilização de sua
estrutura, independente a quem ele se dirige: “mesmo que o sujeito nada tenha a dizer sobre o
objeto produzido, o fato de que ele é endereçado a alguém o coloca em pauta numa relação
onde o que é criado pode ser lido”.
Contudo, em 2008, Miller solicita a Marie-Hélène Brousse que organize em Paris um
seminário tendo em vista as diversas posições teóricas, por vezes contraditórias, que se
sucederam à Conversação de Arcachon realizada em 1997. Neste seminário sobre a “Psicose
ordinária” a intervenção de Miller converge, de início, a mostrar que a psicose ordinária não é
uma categoria de Lacan, mas uma categoria extraída do último ensino de Lacan. Se ele,
Miller, inventou um significante – o de psicose ordinária – a questão se explica pelo desejo de
provocar um eco na clínica psicanalítica da atualidade e se esquivar da rigidez de uma clínica
binária neurose-psicose.
Depois, sua intervenção – “Efeito do retorno à psicose ordinária” (2008/2010, p.26) –
teve como meta mostrar sua própria posição, a de diferenciar o período que antecede o
desencadeamento de uma psicose ainda não manifesta e as psicoses ordinárias propriamente
ditas. No momento dos debates, em uma resposta fornecida a Vyacheslav Tsapqin, Miller diz:
Por anos, discordei da ideia de uma psicose não desencadeada. Não gostava dessa ideia de psicose não desencadeada por temer o abuso da noção de psicose adormecida. Mas os fatos clínicos estão aí. Quando se tem uma psicose que se desencadeia, o período que antecede ao desencadeamento é de psicose não desencadeada. Eu era a favor do balizamento da psicose adormecida que podia se desencadear. Era clinicamente necessário. O passo a mais é compreender que certas psicoses não conduzem a um desencadeamento: psicoses que apresentam uma desordem no ponto de junção mais íntimo dos sujeitos que evoluem sem barulho, sem explosão, mas com um furo, um desvio ou uma desconexão que se perpetua.
116
De forma que modificamos nossa suposição a qual converge hoje com a intervenção
de Miller, em 2008. Sobretudo porque Lacan deixa claro que, enfim, a psicose de Joyce pode
ser revelada através de certos indícios que resumiremos a seguir.
Primeiro indício: pela suspeita de que Joyce é, ou se toma, pelo que ele próprio chama
de Redentor. Lacan (1975-1976/2007, p.78) e Jacques Aubert concordam que em Stephen
Hero há vestígios de que Joyce acreditava nessa posição de Redentor, conforme mencionamos
no item 2.3.2. desta Tese.
Segundo indício: Lacan articula a trama da redenção à Verwerfung em Joyce, de
acordo com o que já foi elaborado no item 2.3.2. No entanto, acrescentamos as palavras de
Lacan quando ele constata que:
Não há nisso alguma coisa como uma compensação dessa demissão paterna, dessa Verwerfung de fato, no fato de Joyce ter se sentido imperiosamente chamado? Essa é a palavra que resulta de um monte de coisas que ele escreveu. É a mola própria pela qual o nome próprio é, nele, alguma coisa estranha (IBID., p.86, grifo do autor).
Terceiro indício: referindo-se à relação entre Joyce e sua filha Lucia, Lacan aponta
que o escritor atribuiu à filha o caráter de telepata para defendê-la dos médicos e para não
aceitar a loucura da jovem, suas falas impostas. Lacan insere neste momento uma
diferenciação fundamental para se entender a relação de Joyce com a língua. Apesar de em
todo ser humano as falas serem sempre impostas, o neurótico não lhe confere esta
característica perturbadora,
[...] por que um homem dito normal não percebe que a fala é um parasita, que a fala é uma excrescência, que a fala é uma forma de câncer pela qual o ser humano é afligido. Como pode haver quem chegue inclusive a senti-lo? É certo que Joyce nos dá uma pequena suspeita disso (IBID., p.92).
De fato, trata-se de resgatar do ensino de Lacan que Lucia significa o prolongamento
do sintoma de Joyce, porque o escritor não somente decodifica os signos da fala da filha,
como também incorpora, ele próprio, a fala imposta. Pois, ao desmantelar a escrita ele acaba
por dissolver a própria linguagem.
Ele acaba por impor à própria linguagem um tipo de quebra, de decomposição, que faz com que não haja mais identidade fonatória.
Sem dúvida, há aí uma reflexão no nível da escrita. É por intermédio da escrita que a fala se decompõe ao se impor como tal, a saber, em uma deformação acerca da qual permanece ambíguo saber se é caso de se livrar do parasita falador de que lhes falei há pouco ou, ao contrário, de se deixar invadir por propriedades de ordem essencialmente fonêmica da fala, pela polifonia da fala (IBID., p.93).
117
3 AS PSICOSES ORDINÁRIAS NA PERSPECTIVA BORROMEANA
O termo psicose ordinária foi inventado por Jacques-Alain Miller como proposta de
um programa de investigação que pretende rever a clínica das psicoses sob um novo ângulo:
não apenas a partir do significante, mas também a partir do matema S1, a que evidencia a
faceta de gozo inscrita no significante. Tal programa foi iniciado em 1996 em “O
Conciliábulo de Angers (Efeitos de surpresa nas psicoses)”47 e prosseguiu em dois outros
encontros do Campo Freudiano, respectivamente, em “A Conversação de Arcachon (Casos
raros: os inclassificáveis da clínica)”48 (1997) e em “A psicose ordinária: a Convenção de
Antibes”49 (1998).
Miller (1996-1997b/2005, p.11) considera esses encontros como três tempos de
elaboração de alguns conceitos lacanianos que funcionavam anteriormente como ferramentas
clínicas satisfatórias. Porém, enfatiza e articula vários elementos que Lacan forjou após o
seminário sobre as psicoses. Dialetizando a experiência clínica e os marcos conceituais,
Miller propõe inicialmente, em O Conciliábulo de Angers, isolar as especificidades da clínica
que surpreendiam aos analistas. Neste percurso ele constata que alguns casos escapavam às
normas clássicas da clínica lacaniana das psicoses – definidas por Lacan fundamentalmente
em O seminário, livro 3: as psicoses (1955-1956/1997) e em “De uma questão preliminar a
todo tratamento possível da psicose” (1959[1957-1958]/1998).
Para explicar um pouco melhor o que representa essa tríade de eventos, em Angers foi
tratado o tema Efeitos de surpresa nas psicoses50. Na conferência de abertura Miller
(1996/2005, p.19) adverte que, por meio da interpretação, o analista deve surpreender o real
que retorna sempre para o mesmo lugar e por isso não pode ser evitado pelo sujeito. Ele
reserva a surpresa para a neurose e o enigma para as psicoses, na medida em que o segundo
expressa uma ruptura de articulação entre significante e significado mais acentuada que a
primeira.
47 O trecho correspondente na tradução é: “El Conciliábulo de Angers (Efectos de sorpresa en las psicosis)”. 48 O trecho correspondente na tradução é: “La conversación de Arcachon (Casos raros: Los inclasificables de la clínica)”. 49 O trecho correspondente na tradução é: “La psicosis ordinaria: la convención de Antibes”. 50 Consideramos o título do livro publicado: Miller, J.-A. (1997). Le Conciliabile d’Angers. Effets de surprise dans les
psychoses. Paris: Agalma Éditeur Diffusion Le Seuil. No entanto, seguiremos na Tese o livro publicado pela Editora Paidós, o qual reúne o material dos dois primeiros eventos, o de Angers e o de Arcachon, livro que foi intitulado Los inclasificables
de la clinica psicoanalítica. (1996-1997/2005). Buenos Aires: Paidós.
118
A surpresa acontece na neurose quando as formações do inconsciente trazem algo da
verdade do sujeito desaparecido sob o domínio do significante; a surpresa está referida à
dimensão do objeto perdido que, por meio do retorno do recalcado, faz com que o neurótico
questione o sem-sentido do sintoma que lhe é, ao mesmo tempo, próprio e estranho. Este
questionamento é feito a partir da transferência, por meio da qual o sujeito demanda a um
Outro do saber um sentido àquilo que se coloca como enigmático.
No enigma algo é reconhecido como significante apesar do psicótico não saber o que
ele quer dizer; ou seja, “no lugar da significação, um vazio”51 (tradução nossa). Esta
intencionalidade de significação institui o caráter de certeza, que se mantém enquanto o
significante não é decifrado. Miller conclui que, seja qual for a estrutura, quando se trata da
articulação entre significante e significado o enigma é a norma (IBID., p.25). Esta conclusão
aponta à foraclusão generalizada, assunto que iremos abordar neste terceiro capítulo da Tese.
Um ano após o Conciliábulo de Angers, “A conversação de Arcachon” coloca em ação
o significante casos raros através do título “Os casos raros, inclassificáveis, da clínica
psicanalítica”. Os analistas trabalharam em torno das noções de continuidade e
descontinuidade das estruturas clínicas formalizadas por Lacan. Esse desafio foi sustentado
pela definição de psicanalista elaborada por Lacan (1964/2003, p.237) no “Ato de fundação”.
Os psicanalistas são aqueles:
[...] que estejam em condições de contribuir para a experiência psicanalítica: pela crítica de suas indicações em seus resultados; pela experimentação dos termos categóricos e das estruturas que introduzi como sustentando a linha direta da práxis freudiana – isso no exame clínico, nas definições nosográficas e na própria formulação dos projetos terapêuticos.
No entanto, o termo psicose ordinária surge apenas em 1998 durante “A Convenção
de Antibes”. Segundo Miller (1998/2006, p.201), sob o grifo de psicose ordinária estão
psicóticos mais modestos do que as psicoses extraordinárias, da qual Schreber se tornou um
grande exemplo. Incluídos neste título estão ainda “a psicose compensada, a psicose
suplementada, a psicose não desencadeada, a psicose medicada, a psicose em terapia, a
psicose em análise, a psicose que evolui, a psicose sinthomatizada”52 (grifos do autor;
tradução nossa).
O autor relata como chegou a essa definição: em Angers, o termo era aleatório,
prevendo possíveis surpresas. Num segundo tempo, em Arcachon, essa questão foi
51 O trecho correspondente na tradução é: “en el lugar de la significación, un vacío”. 52 O trecho correspondente na tradução é: “la psicosis compensada, la psicosis suplementada, la psicosis no desencadenada, la psicosis medicada, la psicosis en terapia, la psicosis em análisis, la psicosis que evoluciona, la psicosis sinthomatizada”.
119
preservada, todavia, o tema girou em torno de os “casos raros”. E finalmente, no terceiro
tempo, em a conversação de Antibes, se descobriu que os casos raros eram mais frequentes
do que se supunha (IBID., p.200-201).
Miller assinala que a psicose ordinária não é uma categoria de Lacan. Trata-se de uma
categoria clínica extraída dos últimos anos de sua transmissão, que possibilita uma releitura a
posteriori dos primeiros anos desse ensino. Isso não significa que a referência à estrutura
clínica possa ser descartada; mas no que concerne à experiência analítica existem outros
elementos orientadores para além da presença-ausência do Nome-do-Pai. Em suas palavras:
Não inventei um conceito com a psicose ordinária. Inventei uma palavra, inventei uma expressão, inventei um significante, dando a ele um esboço de definição que pudesse atrair diferentes sentidos, diferentes ecos de sentido em torno desse significante. Não ofereci um saber-fazer sobre a utilização desse significante. Fiz a aposta de que esse significante podia provocar um eco no clínico, no profissional. Queria que ele ganhasse amplitude para ver até onde essa expressão podia ir (MILLER, 2009/2010, p.3).
A importância da investigação sobre as psicoses ordinárias decorre do fato de que
nessas casuísticas não acontece o desencadeamento clássico da psicose e não estão presentes
os traços comuns das psicoses extraordinárias, desencadeadas, tais como os distúrbios de
linguagem e as alterações do pensamento, por exemplo. As manifestações fenomenológicas
discretas, características das psicoses ordinárias, suscitam questões em relação ao diagnóstico
diferencial e exigem uma delimitação em relação às psicoses extraordinárias, tal como no
caso Schreber (LIMA, 2006).
Por isso, neste capítulo de Tese, discorremos sobre os caracteres de artificialidade e de
relatividade típicas das categorias diagnósticas, enfatizando o perigo de transformá-las em
uma classificação que restrinja a escuta do singular de cada sujeito. “Diante do empuxo social
de constituição de classes, de tudo nomear, aparecem casos avulsos que não formam uma
comunidade e se tornam inclassificáveis” (TENDLARZ, 2007, p.28). Para esta discussão
recorremos ao postulado de Miller (2001/2006, p.27) que inscreve o diagnóstico no campo da
arte. Ele evidencia a importância do psicanalista se questionar sobre a aplicação clínica de
uma determinada categoria, pois ela é anterior à inclusão de um sujeito em um sistema
classificatório.
Permitindo-se alguns questionamentos, em Antibes (1998/2006) os analistas
inventaram os termos neodesencadeamento, neoconversão e neotransferência, para
circunscrever as especificidades do desencadeamento, dos fenômenos de corpo e da
transferência nos casos de psicose ordinária, respectivamente. Nesta Convenção eles foram
articulados a casos clínicos, de forma a se extrair a operacionalidade desses termos marcados
120
pelo prefixo neo. Apesar de não estarem presentes nas atuais discussões sobre as psicoses
ordinárias, eles permitem conclusões decisivas, sobre as quais iremos nos deter adiante.
Nesse sentido, a noção de psicose ordinária se torna crucial visto que novas
modalidades de apresentação das psicoses estão cada vez mais frequentes no dispositivo
analítico. Neste caso, a clínica borromeana se torna fundamental para uma investigação sobre
este tema na medida em que a posição dos psicóticos em relação ao gozo é localizada por
meio de enlaçamentos do nó que evidenciam a singularidade do tratamento. Marie-Hélène
Brousse (2008/2009b, p.11) indica inclusive que este fato pode ser explicado através da
formulação de que a psicose ordinária “é a psicose do tempo do Outro que não existe, do ‘não
há relação sexual’”. É conveniente ressaltar que o primeiro ensino de Lacan caracteriza-se
pelo axioma “Há o Outro” e o segundo pelos axiomas “o Outro não existe”, “Há o corpo”.
Por outro lado, é preciso investigar as psicoses ordinárias a partir da transformação
ocorrida nos significantes que ordenam os modos-de-gozar de um sujeito, desde que o
discurso mestre foi substituído pelos discursos da ciência e do capitalista. Ao mesmo tempo
em que essa nova configuração social modifica a forma de expressão sintomática nos dias
atuais, ela franqueia a democratização do gozo para todos.
Portanto, retomaremos os conceitos de pluralização do Nome-do-Pai e de foraclusão
generalizada articulados ao matema milleriano S1, a, utilizado para a compreensão do último
ensino de Lacan. Os dois elementos que compõem o matema permitem que alguns casos
inicialmente considerados inclassificáveis sejam formalizados pela clínica orientada pelo real,
permitindo uma abordagem psicanalítica mais segura.
Tomando a clínica das psicoses como o paradigma da experiência analítica, a
formulação de Lacan (1978/2010, p.31-32) “todo mundo é louco, isto é, delirante”, convoca
uma clínica ordenada pela foraclusão generalizada. Ela estrutura a vida de todo ser falante a
partir de uma referência vazia – nomeada por Lacan com o aforismo “a relação sexual não
existe”. Essa inexistência também pode ser designada com os conceitos de foraclusão
generalizada e sinthoma, já que eles apontam um real impossível de ser atingido pela palavra
e que afeta a vida de todo ser falante.
A clínica irônica proposta por Miller (1988/1996, p.190-199) oferece novos
parâmetros para a condução dos tratamentos. Afinal, se a psicanálise de orientação lacaniana
institui que todos os discursos são defesas contra o real e todas as construções de realidade
121
realizadas por meio da linguagem são delirantes, cada falasser53 precisa inventar sua própria
maneira de se defender desta não existência.
3.1 Do inclassificável à psicose ordinária
Podemos dizer que foi a questão dos casos inclassificáveis na clínica psicanalítica que
desencadeou o programa de investigação sobre as psicoses ordinárias. Vale notar que desde o
início da apresentação destes casos o termo inclassificável nunca figurou como um
diagnóstico. Se ele tivesse sido legitimado deste modo, os analistas teriam que incluir mais
uma peça no rol das estruturas clínicas freudianas, o que colocaria em xeque alguns pilares
analíticos determinantes, tal como a posição do analista, a direção do tratamento e o
diagnóstico em psicanálise.
Segundo Bogochvol (2007, p.41), o termo inclassificável é utilizado para definir os
casos que não se inserem na nosografia atualmente utilizada pela psicanálise. É a evidência
de que não há um diagnóstico para eles, ou seja, que os “nossos termos, conceitos, critérios e
julgamento fracassaram em apreender uma dada realidade clínica e em inseri-la na
classificação estabelecida”. Independente do campo teórico em que se está trabalhando,
quando se trata de um sistema classificatório, é necessário incluir a classe dos inclassificáveis
como uma exigência lógica. Pois, quando se nomeia um caso desta forma ele é incluído em
uma classificação, apesar desta inclusão não ser suficiente para a criação de uma nova
categoria.
Este mesmo autor também adverte que o inclassificável resulta de uma dificuldade em
classificar – que pode decorrer tanto do fato de se operar com determinado sistema
classificatório – quanto de limitações inerentes ao próprio sistema. Quando a primeira
aparece, a tendência inicial é atribuí-la à aplicação ineficiente do sistema. A saída mais
comum é uma pequena modificação na definição da classe que permita a inclusão daquilo
que não se inscrevia anteriormente. Foi o que aconteceu em Arcachon: casos antes
inclassificáveis foram classificados em função da extensão dos indícios para se reconhecer as
psicoses. Daí a proposta de Miller, a noção de psicose ordinária.
53 Convém reforçar que o termo falasser já foi detalhado na nota de rodapé nº 2, inserida no item 2.3.1. desta Tese.
122
Bogochvol (IBID., p.43) esclarece que, em uma perspectiva sincrônica, a forma como
alguns fenômenos se apresentam e se organizam parece imutável a partir do modo como a
ciência lhes confere sentidos e significações. Isto é necessário porque de outro modo eles não
cessariam de se inscrever. Ao contrário, a perspectiva diacrônica mostra que a nosologia e a
nosografia se modificam continuamente, pois os sintomas, as nomeações e as classificações
não cessam de não se inscrever.
A classificação adotada na Classificação Estatística Internacional de Doenças e
Problemas Relacionados com a Saúde (CID) constata a posição dos psiquiatras, quase sempre
cognitivistas, que priorizam a organicidade e as definições fenomênicas na classificação do
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), onde cada fenômeno de
conduta adquire um valor quantificável. Questão que foi amplamente discutida por Jacques-
Alain Miller e Jean-Claude Milner (2003/2006) em Você quer mesmo ser avaliado?:
entrevistas sobre uma máquina de impostura.
Santiago (2010, p.5) afirma que o DSM representa uma das maiores mutações da
ordem simbólica nos últimos tempos. Ela pode ser definida pela evidente anulação do sujeito
do inconsciente por transformar a existência em uma terapêutica medicamentosa veiculada
por uma publicidade que visa fortalecer o mercado. A novidade do DSM-V em relação ao seu
precedente é que a visão diagnóstica não se sustenta mais em categorias, mas em dimensões.
Ela é consequência do fato de que algumas patologias psiquiátricas “fundem-se
imperceptivelmente umas nas outras e absorvem os diversos critérios de normalidade”.
Sobre este assunto, Laurent (2010/2011, p.130) comenta que:
A noção de depressão encontrou um grande êxito. A acepção comum do termo depressão passou a fazer parte da linguagem atual. Agora é uma espécie de continuidade que vai da tristeza acentuada até a depressão grave, a melancolia, etc. Coloca-se um novo acento sobre a bipolaridade, chamada maníaca ou melancólica, ou as duas de uma vez (grifo do autor).
Segundo Laia, o manual vigente, o DSM-IV, exigiu uma revisão para acertar
fundamentalmente duas características: 1) já que os transtornos mentais eram definidos por
diversos sintomas, não era necessário que todos os sintomas listados estivessem presente para
se diagnosticar um transtorno mental; 2) as categorias nas quais o DSM-IV se estrutura são
referidas a conceitos binários que não permitem nem a exceção e nem tampouco as gradações
que podem existir entre as simples presença ou ausência de um determinado transtorno mental
(LAIA apud KRUEGER; BEZDJIAN, 2009, p.94). As pesquisas psiquiátricas almejam o fim
das categorias e das tipologias dos métodos de classificação exatamente porque dessa forma
alguns casos restam fora do sistema classificatório. A mudança da abordagem categorial para
123
a abordagem dimensional pretende captar as diversas variações sintomatológicas que
caracterizam as perturbações mentais, permitindo aos profissionais a avaliação e a
quantificação das queixas em referência às categorias preconcebidas. Essa padronização
permite tanto uma comunicação mais confiável entre clínicos e pesquisadores quanto a
regulamentação de uma padronização medicamentosa.
No prefácio do livro acima citado, Jorge Forbes (2003/2006, p.IX) considera a
avaliação como um efeito da quebra dos ideais promovida pela globalização, o que a define
como um fenômeno essencial dos tempos atuais. Ela generalizada a possibilidade de tudo ser
cifrado e avaliado, encerrando de forma ilusória com o singular que escapa às medidas do
avaliador. A radicalidade dessa questão é a promessa de que não há nenhum problema da
experiência humana que não tenha uma solução fornecida pela ciência.
Portanto, tanto a avaliação quanto o sistema classificatório dos manuais psiquiátricos
se aproximam no sentido de fornecer de forma imaginária uma solução ao que não cessa de se
inscrever no falasser. Os rótulos do DSM inscrevem algo que, segundo Laia (2009, p.98),
difundem identidades e franqueiam ao sujeito algo do próprio gozo.
Mandil (2010, p.2) também aborda esta questão dizendo que:
Nesse sentido o DSM pode ser considerado a partir da perspectiva de oferta de suportes para a construção de novas identidades, referidas à certas práticas de gozo. Acompanhar o debate em torno da constituição do DSM V (a ser lançado em 2011) implica em considerá-lo neste contexto mais amplo e enxergá-lo como ‘instituição cultural’ mais do que um ‘manual de classificações’.
3.2 A singularidade, uma condição fundamental
Quando o DSM é considerado um instrumento compartilhado em uma determinada
sociedade, corre-se o risco da normatização do que há de mais singular no sintoma de cada
um, estruturalmente irredutível a qualquer tentativa de classificação.
Oscar Reymundo (2011, p.64) insere esta discussão no âmbito da clínica
contemporânea, enfatizando a prevalência atual do imperativo superegóico. Ele defende que
as classificações totalizadoras que excluem o singular estão fadadas ao fracasso:
Assim, do interior mesmo da lógica classificatória dos DSMs, que tenta levar adiante o sonho de um mundo harmonioso cientificamente controlado, vemos erguer-se o pesadelo comandado pelo supereu e próprio ao funcionamento dessa lógica. Afinal, essa lógica faz com que as classificações e a ordem pretendidas mostrem sua fragilidade perante o estrago do
124
imperativo do todos classificados, tratados e adaptados conforme a vontade do amo
contemporâneo (grifos do autor).
De acordo com Deffieux (1997/2008, p.201-202), ao contrário dos manuais
psiquiátricos que utilizam o diagnóstico de borderline para anular a complexidade dos casos
inclassificáveis, a psicanálise de orientação lacaniana insiste no continuum clínico neurose-
psicose, assegurado pela clínica borromeana. Por isso, em sua conferência de abertura da
Convenção de Antibes, Miller (1998/2005, p.199-204) define a clínica borromeana como
clínica fluída, porque ele analisa, retroativamente, o progresso ocorrido entre os anos de 1996
a 1998, ou melhor, desde a análise da clínica que surpreendia, passando pela emergência dos
casos raros, até chegar ao que é frequente, corriqueiro. Nesse terceiro tempo, isso pode ser
apreendido quando se toma a clínica a partir de todos iguais frente ao gozo, onde “tanto o
francamente psicótico como o normal são variações [...] da situação humana, de nossa posição
de falantes no ser, da existência do falasser”54 (IBIDEM, p.202, grifo do autor; tradução
nossa).
A orientação da psicanálise em relação à singularidade dos modos de gozar implica
uma discussão sobre o diagnóstico em psicanálise. Para abordar a questão, é preciso salientar
a importância do conceito de gradação. Seguindo os passos de Leibniz, Miller (1997/2008,
p.324) precisa que “clinicamente há uma gradação. Quando tentamos conceitualizar os casos,
nos vemos conduzidos a dizer que há mais ou menos, e não somente ‘há’ e ‘não há’”55, como
supõe a clínica psiquiátrica.
Portanto, temos duas perspectivas da clínica psicanalítica. Na nota da edição
castelhana de La psicosis ordinária, Geller (1998/2005, p.9) esclarece que na clínica
estrutural é comum manejarmos uma descontinuidade entre as estruturas neurose e psicose.
Essa delimitação oferece uma clareza em relação ao diagnóstico em psicanálise. Por outro
lado, na clínica borromeana, a aproximação do mais e do menos franqueados pela gradação
permite pensarmos em uma continuidade dos modos de gozo.
Determinado pelo caráter de continuidade e pela prevalência das modalidades de
gozo, Miller (2009/2010, p.3) afirma que o motivo que o levou a inventar o termo psicose
ordinária foi a rigidez da clínica estrutural que distingue neurose e psicose a partir da
referência ao único operador lógico do primeiro ensino lacaniano, ou seja, o significante
54 O trecho correspondente na tradução é: “Tanto lo francamente psicótico como lo normal son variaciones […] de la situación humana, de nuestra posición de hablantes en el ser, de la existencia del hablanteser”. 55 O trecho correspondente na tradução é: “clínicamente hay una gradación. Cuando intentamos conceptualizar los casos, nos vemos conducidos a decir que hay más y menos, y no solamente “hay” y “no hay” (tradução nossa).
125
Nome-do-Pai. Esta rigidez fazia com que alguns casos parecessem não responder às
categorias pensadas desde a ausência-presença daquele significante, mostrando uma fronteira
bastante espessa entre elas.
Segundo esse mesmo autor, essa noção não rompe com a fronteira que delimita as
estruturas clínicas. Ela é a invenção de um sintagma para provocar eco na clínica das psicoses
a partir de um questionamento sobre uma formalização essencialmente binária da clínica
freudiana – neurose ou psicose. Quando se toma a psicose ordinária pela via da clínica
borromeana, pode-se realizar um alargamento do diagnóstico das psicoses de tal forma que
possam ser incluídos alguns casos em que os sinais da estrutura não aparecem de forma clara.
Mesmo pensando em uma continuidade, Miller (IBID., p.20) insiste na delimitação
estrutural formalizada por Lacan. Ele enfatiza que a neurose é uma estrutura precisa que exige
a presença de alguns critérios como:
[...] uma relação com o Nome-do-Pai, não um Nome-do-Pai; devem encontrar algumas provas da existência do menos-phi, da relação com a castração, com a impotência e a impossibilidade. Deve haver – para utilizar os termos freudianos da segunda tópica – uma diferenciação nítida entre Eu e Isso, entre os significantes e as pulsões; um supereu claramente traçado. Se não existe tudo isso e ainda outros sinais, não é uma neurose, trata-se de outra coisa (grifos do autor).
Quando a dificuldade diagnóstica se impõe ao analista, é preciso:
[...] pesquisar todos os pequenos indícios. É uma clínica muito delicada. Frequentemente é uma questão de intensidade, uma questão de mais ou menos. Isso os orienta para o que Lacan chamou de ‘uma desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito’ (IBID., p.13).
A existência desta desordem, definida por Lacan em “De uma questão preliminar...”
(1959[1957-1958]/1998, p.565), foi retomada por Miller (2009/2010, p.13-19) como uma
característica das psicoses ordinárias. Por meio desta desordem ele evidencia alguns índices
clínicos de foraclusão que não se conclui em uma desordem central flagrante, tal como no
desencadeamento clássico de uma psicose extraordinária. Eles se tornam ferramentas clínicas
fundamentais na medida em que indicam uma abertura para novos modos de reconhecimento
de casos de psicose.
Quando se trata de uma psicose ordinária, essa desordem deve ser situada em relação a
uma tripla externalidade. Primeiro uma que localiza a forma que o sujeito se identifica com
uma função social: ela pode ser negativa – quando ele é incapaz de assumir essa função por
um desligamento ou por uma desconexão – ou positiva – quando ele investe de forma extrema
nessa posição, representando-se exclusivamente a partir dela. Segundo, a externalidade
126
corporal se refere ao “corpo como Outro para o sujeito”: nela, a desordem mais íntima do
sentimento de vida está velada por laços sociais artificiais que o sujeito inventa para prender-
se ao corpo. Terceiro, a externalidade subjetiva é experimentada pelo sujeito como uma
vacuidade de caráter não dialetizável, pois há uma fixidez na identificação real com o objeto a
como dejeto, que se inscreve fora de uma possibilidade metafórica. “Digo que é uma
identificação real, pois o sujeito vai na direção de realizar o dejeto sobre a sua pessoa.
Finalmente, pode defender-se disso através de um maneirismo extremo. Podemos ter então
dois extremos” (IBID., p.18).
Ao tomar estas três referências para definir uma psicose que não apresenta nem os
fenômenos elementares e nem uma sistematização delirante evidentes, Miller retoma um
trabalho que havia realizado em um seminário do Campo Freudiano proferido em Curitiba.
Nele Miller (1987/1997, p.227-228) havia enumerado alguns indicadores para a avaliação
clínica em casos em que há suspeita de psicose não desencadeada. São fenômenos que pré-
existem ao desencadeamento e solicitam um manejo clínico específico a fim de que a psicose
não se desencadeie, tais como: o automatismo mental concernente à irrupção de vozes; a
estranheza em relação ao corpo próprio caracterizadas pelas distorções temporal ou espacial;
e os transtornos concernentes ao sentido e à verdade do sujeito em relação às experiências
vividas, ou seja, a sensação de ausência ou mesmo de um laço desregulado com o outro.
Diante do impasse suscitado pelas psicoses ordinárias, o psicanalista deve fazer um
bom uso tanto da tripla externalidade quanto dos indicadores diagnósticos acima referidos.
3.3 O caso único e a arte do diagnóstico em psicanálise
A clínica de orientação lacaniana insiste em transmitir a necessidade de diagnósticos
precisos, bem fundamentados, sem jamais esquecer a perspectiva do caso único, do um por
um. O lugar ocupado pelo caso único em psicanálise remete à idéia do inclassificável na
medida em que inscreve sempre algo de irredutível no sintoma, que escapa a qualquer
classificação diagnóstica. Nesse sentido, o caso único pode ser considerado como o que há de
mais próprio à clínica psicanalítica.
Alguns conceitos nosográficos utilizados pelo discurso psicanalítico existiam antes
mesmo da clínica de Freud, e muitas categorias foram tomadas da psiquiatria do século XIX.
127
Os efeitos dessa apropriação foi a classificação do sujeito a partir do sintoma, engano
apontado pela clínica psicanalítica de orientação lacaniana.
Marie-Hélène Brousse (2008/2009b, p.2-3) defende que:
Fazer um diagnóstico é sempre considerado por Lacan como um ato que implica uma decisão que exige ser argumentada logicamente e confirmada do ponto de vista clínico. Justamente, porque determinadas categorias, tais como borderline ou ‘personalidade narcísica’, se revelam por si mesmas inoperantes para nós em termos de tratamento (grifo do autor).
Miller (2009/2010, p.15) se debruça sobre esta questão enfatizando que a noção de
psicose ordinária por si só não basta como uma classificação diagnóstica. Ao contrário, ela
deve ser acompanhada das categorias nosográficas clássicas de psicose postuladas por Lacan,
como a esquizofrenia, a paranoia e a melancolia.
Na perspectiva de vocês, trata-se de uma psicose ordinária. Uma vez que disseram que é uma psicose ordinária, tentem classificá-la de uma maneira psiquiátrica. Não digam simplesmente que é uma psicose ordinária; devem ir mais longe e reencontrar a clínica psiquiátrica e psicanalítica clássica. Se não fizerem isso – este é o perigo do conceito de psicose ordinária – é o que se chama um “asilo da ignorância”. Ele se torna então um refúgio para não saber. Ao falarmos de psicose ordinária, de qual psicose falamos?
Apesar de admitir a importância da classificação diagnóstica, Miller (2001/2006, p.20)
ressalta que as classificações possuem algo de relativo por serem fundamentadas em uma
verdade que varia de acordo com o discurso nas quais elas se inserem. O autor prossegue
dizendo que Lacan expressa o caráter de artificialidade das categorias diagnósticas inventando
um neologismo, varité (varidade), que expressa o nó entre a verdade, vérité, e a variedade,
varieté. Ao mesmo tempo em que essas categorias diagnósticas universais funcionam como
balizas e orientam a práxis, elas escondem o que existe de singular em cada caso.
Ao utilizá-las, o psicanalista deve saber manejá-las para decidir se uma regra se aplica
a singularidade de um determinado caso clínico. Ele deve estar atento para não utilizar o
diagnóstico como uma classificação restritiva à escuta do singular, buscando os princípios
individuais que possam orientar cada diagnóstico. Nas palavras de Miller (IBID., p.25):
O universal da classe, seja ela qual for, nunca está completamente presente num indivíduo. Como indivíduo real, pode ser exemplar de uma classe, mas é sempre um exemplar com uma lacuna. Há um déficit da instância da classe num indivíduo e é justamente por causa desse traço que o indivíduo pode ser sujeito, por nunca poder ser exemplar perfeito.
O caso único expressa a resistência do sujeito aos enquadramentos e classificações
comuns no discurso dominante da ciência, que escraviza o sujeito a um saber que ex-siste a
ele mesmo. É uma dominação pelo saber ao qual o sujeito só tem acesso através de um Outro
128
que se apresenta muitas vezes inacessível. É um exemplo típico do que se apresenta através
das quantificações em classes e métodos, e tampona o que existe de único em cada sujeito. Ao
tomar um caso como único a prática analítica resgata o que se mostra típico. Diante do
impossível de tratar, deve-se encontrar uma solução contingente que retire o sujeito das
classificações padronizadas.
No texto “Teoria de Turim: sobre o sujeito da Escola” (2000/2001, p.219), Miller
discute a frase lacaniana “O coletivo não é nada – o coletivo não é nada senão o sujeito do
individual”, que não se compara ao singular. E refere-se ao texto freudiano “Psicología de las
masas y análisis del yo” (1921/1993) mostrando que, “do ponto de vista freudiano, o ser
coletivo não é mais que uma relação individual multiplicada” (2000/2001, p.220). O coletivo
freudiano, os grupos, “se analisam como uma multiplicidade de relações individuais ao Um
do Ideal do eu”, sem deixar de enfatizar que: “o sujeito não é o indivíduo, não está no plano
do indivíduo. O individual é um corpo, um eu. O efeito sujeito que se produz aí, que perturba
as funções, está articulado ao ‘Outro’, ao grande Outro. É o que chamamos o coletivo, ou o
social”.
Mandil (2010, p.3) analisa esta questão, dizendo que:
Um contraponto a tudo isso decorre do desejo de Lacan, tal como interpretado por Miller, em sua Teoria de Turim: o desejo de separar o sujeito dos significantes mestres que o coletivizam, de isolar sua diferença absoluta, de cernir a solidão subjetiva, e também o objeto mais-de-gozar que se sustenta desse vazio e que por vezes o encobre.
Portanto, Miller (2001/2006, p.27) inscreve o diagnóstico no campo da arte. A arte do
diagnóstico acontece quando o analista julga um caso sem categorias ou classes
preestabelecidas, por saber que elas estão imersas no artificial de determinada prática
linguística. Nessa arte o analista não inclui o sujeito em uma categoria, mas se pergunta sobre
a aplicação de uma categoria em cada caso, pois o ser falante – parlêtre – mesmo estando
inscrito em uma classe ou categoria nunca as realiza completamente, por possuir algo de
específico e contingencial que sempre escapa à inscrição significante e o torna único.
É a clínica para nosso tempo. Podemos experimentar a surpresa e a volta da contingência. Neste mundo, um caso particular jamais é um caso exemplar de uma regra ou de uma classe. Somente há exceções à regra. Essa é a fórmula universal, paradoxal, é claro.
Agora podemos voltar a falar do diagnóstico tal como estou pensando. [...] o diagnóstico como uma arte. Como uma arte de julgar um caso sem regra e sem classe preestabelecida (IBIDEM).
Nessa direção, a noção de psicose ordinária proposta em 1998, na Convenção de
Antibes, tem por objetivo preencher um vazio semântico e circunscrever, mais do que
129
classificar, novas modalidades da posição subjetiva dos psicóticos. Em uma época em que as
categorias sofrem uma perda de potência pela falência de um operador universal, as
classificações perdem igualmente consistência. É no contexto dessa crise que se justifica esta
noção, que permite acolher as soluções encontradas pelos psicóticos diante das dificuldades
que experimentam na construção de laços sociais estáveis.
Essas soluções possuem um caráter de singularidade que as afasta de qualquer
possibilidade classificatória nas séries estatísticas utilizadas pela clínica objetiva, tal como as
psicoterapias e a psiquiatria. Laurent (2010/2011, p.128) afirma que “o campo da psicose
ordinária se justifica pela abordagem qualitativa que a psicanálise pode fazer, já que não é
objetivada em comportamentos avaliados e mensuráveis”. Nesta direção, o programa de
investigação sobre as psicoses ordinárias propõe novos termos com o intuito de cernir as
especificidades que esta noção oferece ao manejo do que há de singular em cada um, sobre o
qual a clínica psicanalítica se debruça.
3.4 Alguns elementos pertinentes às psicoses ordinárias
Para que os casos inicialmente considerados inclassificáveis fossem incluídos na
clínica estrutural formalizada por Lacan, foi necessária a determinação de novas ferramentas
teórico-clínicas que pudessem ser experimentadas em sua operatividade analítica. Três
termos surgiram na Convenção de Antibes: o neodesencadeamento, a neoconversão e a
neotransferência. Com eles não se pretendeu construir novas classificações ou desprezar as
anteriores, mas tentar incluir na experiência os casos que apresentavam dificuldades
diagnóstica. Vale ressaltar que esses termos não estão na Obra de Lacan, mas foram
consequência dos desdobramentos realizados pelos psicanalistas orientados pelo ensino de
Jacques-Alain Miller.
O primeiro deles, o neodesencadeamento, esclarece alguns fenômenos clínicos
distintos do desencadeamento clássico, enunciado por Lacan no texto “De uma questão
preliminar a todo tratamento possível das psicoses” (1959[1957-1958]/1998, p.584). Existem
diversas possibilidades de enlaçamento entre real, simbólico e imaginário sem recurso ao
operador Nome-do-Pai. Já que nas psicoses ordinárias se trata de descompensações e não de
desencadeamentos, o neodesencadeamento se torna uma ferramenta clínica importante já que
130
esse termo conserva certa continuidade entre fenômenos de desencadeamento claros e
fenômenos mais frouxos. Isso implica diretamente na direção do tratamento.
Na conferência sobre “La psicosis ordinaria”, Laurent (2006/2007, p.90) ensina que:
[...] a orientação do tratamento consiste mais em privilegiar o ponto de capitón, a escansão, as rupturas, para evitar ao sujeito a construção de um delírio, para que isto se mantenha ao nível desses fenômenos que aparecem como pedaços de real. Isto é, sem que tenha necessidade – para lançá-lo ao discurso geral, à língua comum – de constituir uma enorme construção delirante que separa o sujeito do discurso comum e que somente lhe permita recuperá-lo depois de um vasto percurso56 (tradução nossa).
A neoconversão, o segundo termo, esclarece os fenômenos do corpo não redutíveis ao
deciframento. Apesar de serem acontecimentos de discurso que deixam traços no corpo,
desorganizando-o, são fenômenos desprovidos de significação pela interpretação analítica.
Nesse sentido, eles exigem uma abordagem distinta das formações do inconsciente como
mensagem: ao invés de entendê-los como uma expressão do desejo no corpo pela via do
sintoma, trata-se de abordá-los tal como os fenômenos psicossomáticos e os acontecimentos
de corpo, ou seja, intervindo sobre o mais-de-gozar e sobre a letra.
Com a modificação do conceito de letra e a introdução do conceito de lalíngua, na
década de 70 a escrita ganha um novo suporte para a psicanálise. Se no primeiro ensino o
sujeito se escreve a partir da incidência do significante, a partir da nova definição de a letra –
“enquanto um literal que funda o litoral” (LACAN, 1971/2009, p.117) –, a escrita se torna
inaugural, ou melhor, Lacan a torna anterior ao significante. Ao mesmo tempo em que ela
escreve um litoral entre simbólico e real, ela denota um gozo-a-mais disjunto do campo do
Outro.
Por último, a neotransferência parte do pressuposto de que, em casos de psicose
ordinária, a operatividade do manejo clínico deve-se à posição do analista e à modificação do
algoritmo da transferência, estabelecido por Lacan (1967/2003) em “Proposição de 9 de
outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”. A criação do termo neotransferência
responde ao uso de uma lalíngua da transferência, uma cadeia significante que, embora sem
sentido, é capaz de realizar uma aparelhagem de gozo e possibilitar ao psicótico tecer o laço
social em direção à promoção de uma resposta estabilizadora.
56 O trecho correspondente na tradução é: “[...] la orientación de la cura consiste más bien en privilegiar el capitón, la escansión, las rupturas, para evitar a un sujeto la construcción de un delirio, para que esto se mantenga a nivel de estos fenómenos que aparecen como pedazos de real. Es decir, sin que haya necesidad – para arrojarlo al discurso general, a la lengua común – de constituir una enorme construcción delirante que separa al sujeto del discurso común y que solo le permite recuperarlo después de un largo recorrido”.
131
Apesar de esses três termos não terem se mantido nos textos dos autores lacanianos
que se dedicaram ao tema, trabalhamos cada um deles com as indicações estabelecidas na
Convenção de Antibes (1998/2006) e nos dois eventos precedentes57. Mesmo assim, todo o
esforço dos analistas de orientação lacaniana se justifica pela necessidade em reconhecer
índices mais discretos, quando uma psicose não se desencadeia de forma evidente. No lugar
desses termos, posteriormente Miller apresenta a desordem mais íntima experimentada pelo
psicótico e as três externalidades acima descritas.
3.4.1 Neodesencadeamento
No texto “De uma questão preliminar...” (1959[1957-1958]/1998, p.584), Lacan
ensina que o desencadeamento de uma psicose extraordinária acontece de forma brusca,
quando o lugar a ser ocupado pelo significante foracluído do simbólico é ocupado por Um-
pai, gerando remanejamentos na articulação significante-significado. O advento do
desencadeamento marca uma descontinuidade na história do sujeito e implica em uma ruptura
na qual o antes e o depois desta experiência não seguem uma mesma direção.
Dedicamos o item 2.2.1. desta Tese ao conceito de desencadeamento. Nele foi
enfatizado que, mesmo antes do desencadeamento, diversos índices de uma psicose podem ser
localizados, tais como os transtornos de linguagem, os fenômenos de franja e o momento
fecundo. O desenvolvimento desta discussão nos levou a distinguir as pré-psicoses e as
psicoses ordinárias. As primeiras pressupõem o desencadeamento como uma exigência lógica,
pois apenas a partir do desencadeamento pode-se localizar, retroativamente, uma
fenomenologia psicótica até então discreta. Ao contrário, as psicoses ordinárias permitem uma
dimensão temporal antecipatória e não retroativa. Isso traz consequências clínicas
importantes, pois o reconhecimento de uma psicose ordinária, ou mesmo de uma psicose antes
do desencadeamento, favorecem o manejo da transferência e a direção do tratamento no
sentido de evitá-lo.
Percebendo uma direção favorável à prática analítica, Miller (1998/2006, p.238)
propõe o neodesencadeamento como uma atualização do conceito de desencadeamento,
elaborado por Lacan na década de 50. Assim, logo no início de A Convenção de Antibes, em
57 Trata-se de O Conciliábulo de Angers sobre os Efeitos de surpresa nas psicoses (1996) e de A conversação de Arcachon que tratou de Casos raros: os inclassificáveis da clínica (1997).
132
busca de uma diferenciação entre o que ocorre nas psicoses extraordinárias e nas ordinárias,
ele define o desencadeamento característico do neodesencadeamento com o termo
133
Miller não retomou os termos psicose forte e psicose débil elaborados em A
Convenção de Antibes. Isto nos leva a crer que o prefixo pseudo foi uma ferramenta teórica
utilizada para sinalizar uma prótese nos casos em que o Nome-do-Pai está foracluído. Tal
prótese antecede os operadores da metáfora paterna – falo e Nome-do-Pai – e anuncia um
caráter de suplência que funciona para impedir a eclosão dos fenômenos elementares e
delirantes.
Anos depois, no texto “Efeito do retorno à psicose ordinária”, Miller (2009/2010,
p.28) utiliza outras ferramentas para abordar a mesma questão. A primeira delas é a
substituição dos termos desencadeamento e desenlace pelo termo descompensação. Em suas
palavras:
Há ‘descompensações múltiplas’ quando vocês têm um pattern repetitivo que é compensado ininterruptamente. Não falamos então de desencadeamento. Diz-se ‘desencadeada’ quando isso se produz de uma vez. Por outro lado, vocês têm o que pode ser chamado em termos desenvolvimentistas de ‘psicose evolutiva’. Vemos psicoses com um corte e psicoses com um declínio, quando se trata de um processo contínuo, de uma psicose evolutiva (grifos do autor).
Neste mesmo texto Miller (IBID., p.29) apresenta o chamado compensatory make-
believe (CMB) como um recurso de compensação que complementa a definição de
descompensação:
O CMB define uma possibilidade de compensação da foraclusão do Nome-do-Pai em casos em que uma psicose não foi desencadeada ou que está novamente compensada. Nessas casuísticas o desencadeamento pode ser localizado quando o make-believe, o “fazer-crer” é rompido. Depois, o sujeito pode se reorganizar tão bem quanto antes numa espécie de atividade compensatória (grifos do autor).
Vale notar que com o prefixo pseudo utilizado em Antibes, Miller trabalha a função de
compensação em referência à presença-ausência do Nome-do-Pai, operador único do primeiro
ensino de Lacan. Apesar do termo desenlace – também delimitado nesta Convenção – já
sinalizar a clínica borromeana, ao falar sobre descompensação e sobre o compensatory make-
believe ele evidencia as diversas possibilidades que estes elementos fornecem ao analista no
manejo clínico centrado nos modos de gozar e no sinthoma.
Articulando os dois ensinos de Lacan à categoria das psicoses ordinárias, podemos
afirmar, com Miller (IBID., p.22), que nelas o Nome-do-Pai está foracluído como em
qualquer psicose, mas alguma coisa funciona como um aparelho suplementar à foraclusão,
enlaçando os registros e estabilizando o sujeito em sua estrutura. Por esse motivo, uma
psicose ordinária parece uma psicose sem sintomas já que os fenômenos elementares, os
delírios e as manifestações de desenlace são bastante discretos. Por apresentar discretas
134
manifestações clínicas, se comparadas às psicoses extraordinárias, tal categoria soluciona
problemas diagnósticos decorrentes da prática analítica.
Tomando como referência a curva de Gauss, é possível apreender pequenos
descompensações no âmago de cada psicose ordinária, mesmo que elas jamais possam se
apresentar como uma psicose extraordinária. Mas é preciso ressaltar que nem toda psicose
ordinária apresenta desenlaces ou descompensações, ou seja, eles não são uma exigência
lógica para a localização dessa categoria. Miller considera que há “psicoses que apresentam
uma desordem no ponto de junção mais íntimo dos sujeitos que evoluem sem barulho, sem
explosão, mas com um furo, um desvio ou uma desconexão que se perpetua” (IBID., p.26).
Para esclarecer um pouco mais a especificidade dos desenlaces é preciso diferenciar
alguns termos utilizados na clínica borromeana, pois suplência, estabilização e invenção
possuem características distintas. Apesar de alguns autores equivalerem esses termos, a
clínica psicanalítica oferece diversos exemplos de que nem toda suplência leva um sujeito à
estabilização de uma estrutura. Além disso, acreditamos que essas diferenças elucidam as
diversas apresentações de uma psicose, o que novamente justifica a investigação sobre as
psicoses ordinárias.
No primeiro ensino de Lacan, o termo suplência aparece inicialmente articulado à
foraclusão do Nome-do-Pai. Em “De uma questão preliminar...” (1959[1957-1958]/1998,
p.588), ele apresenta a compensação imaginária do Édipo ausente e a metáfora delirante como
dois mecanismos capazes de suprir a Verwerfung inaugural por realizarem uma função
compensatória, uma suplência à foraclusão. Ou seja, neste momento a suplência está
articulada não somente ao Nome-do-Pai, mas também ao déficit simbólico típico das psicoses.
Já que neste período a metáfora paterna e a significação fálica eram os operadores lógicos
fundamentais, Lacan considerava que à neurose não cabia nenhuma suplência.
Vale notar que a definição de tal suplência vai se transformando no decorrer de seu
ensino, na medida em que estrutura psicótica e loucura começam a ser dissociadas. Apesar de
essa dissociação já ter sido realizada desde O seminário, livro 3: as psicoses (1955-
1956/1997, p.12), Lacan a evidencia no Seminário Nomes-do-Pai (1963/2005, p.58), onde
constata de forma inovadora a inconsistência do Outro e a falta de garantia do Nome-do-Pai
como único significante capaz de uma ordenação simbólica. O Nome-do-Pai é pluralizado e o
Pai se torna um nome entre outros. Assim sendo, Lacan introduz uma clínica em que o gozo e
o significante estão conectados de uma forma muito mais estreita do que anteriormente. Nessa
clínica, o enlaçamento dos três registros que sustenta a realidade discursiva do sujeito,
depende de uma invenção singular: o sinthoma.
135
De modo que o conceito de suplência deixa de ser apenas uma compensação ao
significante foracluído tal como na clínica estrutural, para se tornar, na clínica borromeana,
um enquadramento de gozo e uma localização da satisfação pulsional, necessários a qualquer
estrutura. Selecionamos alguns recortes que nos permitem acompanhar Lacan em seus
desdobramentos clínicos.
Em “RSI” (1974-1975, inédito), na aula de 11 de fevereiro de 1975, ele equivale a
suplência ao Nome-do-Pai: “[...] é porque essa suplência é indispensável que ela tem vez:
nosso imaginário, nosso simbólico e nosso real estão talvez para cada um de nós ainda num
estado de suficiente dissociação para que só o Nome-do-Pai faça nó borromeano e mantenha
tudo isso junto”. E acrescenta, na aula de 13 de maio de 1975, que a suplência é generalizada
a ponto de ser dissociada do Nome-do-Pai. Lacan esclarece que a referida dissociação só é
possível se ao invés de pensarmos o Nome-do-Pai como função paterna, a tomarmos como
nomeação.
Nomear faz suplência, enlaça os aros do nó e lhes fornece certa consistência. Isso
ocorre porque nomear é instaurar uma relação entre o sentido e o real, tal como ocorre em
relação aos registros: imaginário como inibição, simbólico como sintoma e real como
angústia. Essas nomeações determinam diferentes modalidades de suplência face ao fracasso
primordial do nó, fracasso que Lacan assinala em O seminário, livro 23 ao dizer que a função
do analista é ensinar o paciente a emendar, pois se trata, na análise, de suturas e emendas
(1975-1976/2007, p.71).
Nesse mesmo seminário (IBID., p.21), Lacan retoma a suplência pela via do sinthoma
que repara o rateio do nó de três elos. A partir da foraclusão do nó apontada nesse seminário,
e do enlaçamento dos registros por um quarto elemento – o sinthoma –, é possível, para cada
um, inventar uma solução singular a fim de suprir a foraclusão estrutural e restabelecer a
consistência do nó.
Ao falarmos sobre as suplências, o termo invenção ganha um relevo especial na
experiência analítica, na medida em que a articulação entre real, simbólico e imaginário não
possui uma medida comum que possa ser utilizada por todo ser falante. Na aula de 11 de
fevereiro de 1975 do seminário “RSI” (1974-1975, inédito), Lacan afirma que “a consistência,
para o falasser, para o ser falante, é o que se fabrica e que se inventa”. Nesse sentido,
Dominique Miller (2007, p.208), certamente referindo-se à clínica da neurose, aproxima
invenção e suplência ao dizer que “cada um tem que se fazer tolo de um pai de sua invenção”.
Para suprir a foraclusão originária a neurose inventa um pai, o Nome-do-Pai como sinthoma.
E nas psicoses, como articular estes termos?
136
De acordo com Skriabine (2008/2009, p.4), “se o Nome-do-Pai falha sempre, os
Nomes-do-Pai são numerosos para suprir a falha”. Nessa abordagem, o recurso utilizado pelo
sujeito na construção de uma solução a essa falta é secundário em relação à operação que a
realiza. Para além da suplência que permite a formalização do nó borromeano, existem outras
maneiras de o sujeito sustentar os registros por meio de nós que não possuem a característica
borromeana. Eles se revelam frágeis para protegerem o sujeito do real e do gozo, mas
oferecem recursos, soluções, para uma reparação do erro ou do lapso do nó.
Jacques-Alain Miller (1999/2003, p.14) destaca diferentes operações concernentes às
invenções psicóticas e assinala que nem todas tramam um sinthoma. A característica de uma
invenção sinthomática é a suplência em um ponto específico do nó que o faça operar de forma
borromeana, isto é, ou por meio do Nome-do-Pai ou do sinthoma.
O conceito de invenção não se aplica a toda psicose. É preciso certamente dar lugar – e é também interessante – a tudo o que é do registro da não invenção, ou seja, a todos os casos [...], nos quais vemos a presença do traumatismo da linguagem e o sujeito bloqueado por esse traumatismo, não chegando absolutamente a inventar a partir daí (IBIDEM).
Quando abordamos a questão das invenções sob o ângulo do sinthoma, de certa forma
estamos tratando da estabilização de um sujeito em sua estrutura. Marcus André Vieira (2011,
p.136) afirma, com Miller, que a estabilização na neurose vincula-se à produção de um ponto
de basta que estabeleça “uma ancoragem entre os nomes e o real”, tal como Lacan demonstra
por meio da metáfora paterna, cujo efeito de verdade é garantido pelo Nome-do-Pai. Quando
trata das psicoses, Lacan fala poucas vezes sobre estabilização. Ele se serve do termo para
pensar o caso Schreber, onde a metáfora delirante é via privilegiada para a estabilização, pois
a vertente do imaginário fixa um sentido ao real. Seguindo Lacan, Vieira propõe haver outras
formas de estabilização, além daquelas realizadas pela metáfora delirante.
Elisa Alvarenga (2000b, p.15) propõe que “a estabilização é uma operação que
circunscreve, localiza, deposita, separa ou apazigua o gozo, correlativa de uma entrada em
algum tipo de discurso, por mais precário que ele seja”.
Portanto, consideramos que uma suplência pode funcionar para estabilizar um sujeito
em sua estrutura, mas isso não é uma evidência que possa ser generalizada a ponto de permitir
uma equivalência entre os termos. Afinal, nem toda estabilização cria um enlaçamento de
forma consistente, uma suplência sinthomática. Ao contrário, certos enlaçamentos frágeis
comportam uma ameaça de se desfazerem diante de qualquer contingência.
Os conceitos de pluralização do Nome-do-Pai, a generalização da foraclusão e a
suplência que formaliza o nó com características borromeana e não borromeana possibilitam
137
abordar a clínica estrutural de uma forma distinta. O efeito dessa abordagem foi a
possibilidade de os analistas se orientarem em relação às psicoses ordinárias e a outros tantos
casos em que o diagnóstico não está claro. Eles puderam ser reinterpretados pela clínica
psicanalítica e pensados a partir do nó composto por quatro elementos. Afinal, a clínica
borromeana facilita a localização do elemento que impede o desencadeamento de uma
psicose, elucidando alguns casos em que os grampos que acertam o erro ou o lapso do nó
enlaçam os registros velando o aparecimento da foraclusão do Nome-do-Pai.
3.4.2. Neoconversão
A neoconversão é uma noção sugerida por Miller em A Convenção de Antibes, para
responder aos fenômenos de corpo não interpretáveis “ao menos não interpretável como a
conversão histérica” (1998/2006, p.241). Isso permite a suposição de que esses fenômenos
sejam sintomatologias contemporâneas não concernidas pelos enlaçamentos sintomáticos
edipianos ligados ao referencial do Nome-do-Pai.
A pergunta que direciona a investigação sobre a neoconversão foi formulada por
Laurent na conferência “La psicosis ordinaria” (2006/2007, p.89): “como um sujeito se
relaciona com um corpo que não é sustentado por um sintoma centrado no amor ao pai?”60.
Ele justifica a questão tomando como ponto de partida o enlace do nó, como ele diz, no
sentido de um broche:
A ideia era centrar-se mais no acontecimento de corpo como o momento de abrochamento, o ponto no qual se podem enodar para um sujeito a consistência RSI. Devemos considerar o fenômeno e a maneira pragmática com a qual devemos considerar que o sujeito faz com este surgimento de algo inédito, de algo que surge no corpo e que não se pode interpretar com o discurso constituído, e tomá-lo mais como uma possibilidade de construção, não tanto do delírio, mais sim do abrochamento (IBID., p.89-90; tradução nossa)61.
60 O trecho correspondente na tradução é: “¿cómo un sujeto se relaciona con un cuerpo que no es armado por un síntoma centrado en el amor al padre?”. 61 O trecho correspondente na tradução é: “La idea era más bien centrarse en el acontecimiento del cuerpo como el momento de abrochamiento, el punto en el cual se pueden anudar para un sujeto la consistencia RSI. Debemos considerar el fenómeno y la manera pragmática con la cual debemos considerar el sujeto hace con este surgimiento de algo inédito, de algo que surge en su cuerpo y que no se puede interpretar con el discurso constituido, y tomarlo más bien como una posibilidad de construcción, no tanto del delirio, sino del abrochamiento”.
138
A teorização do sintoma como gozo de corpo afetado pelo mais-de-gozar circunscreve
melhor as neoconversões. As consequências sobre a inexistência do Outro, tal como
introduzimos no início deste capítulo da Tese, precipitam novas formas contemporâneas do
sintoma. O Campo freudiano as considera desde o paradigma das psicoses ordinárias, pois
elas são estruturas cuja fragilidade simbólica e a forte adesão ao mais-de-gozar podem indicar
psicoses não desencadeadas, se forem interpretadas pela vertente do desencadeamento
clássico. Isso quer dizer que, se estivermos diante de uma psicose extraordinária, cabe falar de
não desencadeamento; caso contrário, quando se trata de psicose ordinária, a referência é a
descompensação ao invés do não desencadeamento.
O problema diagnóstico dos sintomas contemporâneos62 se deve à dificuldade em
lidar com o sujeito em análise, uma vez que, por se tratar de uma apresentação desmedida do
mais-de-gozar, não se detecta inicialmente o rastro do sujeito no sintoma. Então é preciso
fazer um deslocamento do sintoma não subjetivado para o sintoma analítico.
Carlo Viganò, em “Une nouvelle question préliminaire: l’exemple de la toxicomanie”
(2001, p.64), escreve que, nos novos sintomas, o sujeito:
[...] encontra, ao contrário, em uma letra, em um significante isolado e portador de gozo, a marca de identidade enquanto alternativa à articulação do desejo com a pulsão como Demanda do Outro. A toxicomania é uma letra que, em um dado momento da história do sujeito, vem se inscrever em seu corpo, sem por isso chegar a dividi-lo. Esta letra marca o objeto que não pôde aceder à montagem pulsional completa e que, consequentemente, não o separa do Outro e não se torna causa de desejo. Ao contrário, ele coloca em movimento uma identificação que se inscreve sobre a mesma superfície topológica onde se desenhou o percurso da Demanda do Outro63.
Isso reforça a definição de Miller de que a neoconversão não é uma nova modalidade
de conversão, mas sim a expressão de uma nova forma de funcionamento do corpo, pois o
sintoma contemporâneo não remete a nada, não se liga a nada, entrega-se ao gozo sem sentido
que não constitui um texto. Nos fenômenos de corpo marcados por essa especificidade,
encontramos uma relação entre o corpo e a linguagem que, deixando de lado o campo
metafórico, nos confronta com uma escritura que nem sempre se dá a ler. Trata-se, portanto,
62 Esta expressão está sendo utilizada no Campo freudiano para definir os sintomas que não comportam um efeito de sentido capaz de remeter os sujeitos a um saber inconsciente, pois eles, através desses sintomas, revelam um gozo inscrito no corpo que resiste à interpretação. 63 O trecho correspondente na tradução é: “Celui-ci trouve au contraire dans une lettre, dans un signifiant isolé et porteur de jouissance, la marque d’identité en tant qu’alternative à l’articulation du désir avec la pulsion comme Demande de l’Autre. La toxicomanie est une lettre qui, à un moment donné de l’histoire du sujet, vient s’inscrire dans son corps, sans pour cela parvenir à le diviser. Cette lettre marque l’objet qui n’a pas pu subir le montage pulsionnel complet, et qui par conséquent ne le sépare pas de l’Autre et ne devient pas cause de désir. Au contraire, il met en mouvement une identification qui s’inscrit sur la même surface topologique où s’est dessiné le parcours de la Demande de l’Autre”.
139
de considerar os modos particulares de aparelhamento com o corpo, com o real pulsional e
com a realidade dos órgãos.
Se esses fenômenos não se amarram pela significação fálica – tal como na histeria –,
que tipo de amarração fazem entre o imaginário do corpo, os furos da linguagem e os
fenômenos de gozo?
Podemos começar a responder a pergunta a partir das invenções que permitem ao
psicótico uma amarração ao corpo. Sobre isso Miller em A Convenção de Antibes diz que:
O uso do corpo no psicótico pode às vezes convergir em um uso que parece normal, ordinário, só que para chegar a isso deve empenhar um enorme esforço. Muitas vezes, o único que nos indica em que registro estamos é o enorme esforço de invenção, de invenção sob medida, quando para os neuróticos é de confecção. Isso marca uma diferença (1998/2006, p.255).
Essa fala nos leva a crer que as neoconversões, organizadas à margem do complexo
edipiano, podem ser consideradas invenções ou solução sintomáticas que possibilitam a
construção de um corpo. Sendo assim, nem o sintoma-mensagem e nem o mecanismo de
conversão explicam de forma satisfatória as neoconversões, que podem ser elucidadas de
forma mais eficiente pelas noções de acontecimento de corpo e dos fenômenos
psicossomáticos. A seguir, iremos falar sobre cada um deles sem esgotar o tema, os quais
mereceriam uma outra Tese.
3.4.2.1 O acontecimento de corpo como índice da neoconversão
Lacan formulou o conceito de sintoma como acontecimento de corpo em vários
escritos e seminários de seu segundo ensino. Iremos nos servir do percurso adotado por Miller
em três conferências que compõem o seminário internacional, ministrado em Belo Horizonte
no ano de 1999, e publicado com o título Elementos de Biologia Lacaniana (1999/2001). O
mesmo tema aparece expandido no seminário de “Orientação Lacaniana, 3,1”, que Miller
vinha desenvolvendo em Paris nos anos de 1998-1999. O texto “Biologia lacaniana e
acontecimento de corpo” (1998-1999/2004) compila as lições de maio e junho desse mesmo
seminário. Esse seminário foi publicado em 2004 pela Paidós com o título La experiencia de
lo real en la cura psicoanalítica (1998-1999/2004). No entanto, as duas primeiras publicações
serão as nossas referências nessa Tese.
140
Na primeira conferência, intitulada “As pedras e o lagarto”, Miller (1999/2001, p.13-
14) comenta que o título Elementos de biologia é irônico, pois a junção entre ciência e vida
que o significante biologia comporta é altamente problemática. Afinal, existem diversas
formulações sobre a vida que apontam àquilo que dela não pode se escrever, a ponto de a vida
ser aproximada do inconsciente no sentido de ser um não-conceito (Unbegriff). A biologia é
uma ciência cujo estatuto epistemológico é incerto, pois apesar de a epistemologia tentar
atingir a vida pela anatomia, pela física e pela química, nenhum estatuto é fixado em
decorrência dos sucessivos remanejamentos e deslocamentos da biologia.
Nessa conferência, Miller se detém nos temas da biologia e da vida para definir a
diferença entre as biologias freudiana e lacaniana. A primeira desemboca no mito, visto que
Freud recorre ao Eros de Platão; “pelo viés dessa suplementação da biologia frente ao mito
que ele inventa a sua pulsão de morte e a inscreve no mito, não conseguindo que ela tivesse
crédito no plano propriamente biológico” (IBID., p.14).
Se a questão de Freud gira em torno da possibilidade de dois corpos fazerem um,
Lacan, ao contrário, está intrigado com a reprodução da vida e em como um corpo pode fazer
dois. Quando se trata do vivo é preciso distinguir entre aqueles que têm e os que não tem
muita clareza de possuir um corpo, um corpo Um – questão central da biologia lacaniana. Em
O seminário, livro 20: mais, ainda (1972-1973/1985, p.195), Lacan fala sobre a afirmação
aristotélica em torno da existência do Um na natureza sob a forma de corpo. Lacan se opõe a
ela, ao dizer que o Um não se encontra na natureza, pois o Um é efeito do significante, e não
do Um do corpo. Ao que Miller esclarece: para que haja um corpo, “[...] é preciso que a
ordem simbólica já exista no mundo do homem, extraída da sua língua” (1999/2001, p.16).
O corpo Um é uma evidência imaginária que permite a identificação entre o corpo e o
ser vivo. Todavia, como o corpo depende da ordem simbólica, a questão não se coloca em
relação ao ser, mas sim em relação ao ter um corpo. A inscrição do sujeito na ordem
simbólica faz com que este não se identifique com o corpo, o que esclarece a afeição do
falasser pela própria imagem. No seminário desenvolvido em Paris, Miller (1998-1999/2004,
p.14) assinala que é na falha dessa identificação entre o ser e o corpo que o sujeito estabelece
uma relação de ter um corpo.
Por isso Miller diz em Belo Horizonte que o corpo vivo na psicanálise (1999/2001,
p.25) pode ser considerado, desde Lacan, a partir de duas vias: pelo significante e pelo gozo.
Na primeira, a noção operatória do sistema significante transforma o conjunto vazio em
sujeito do significante sem corpo, afinal, o significante como tal não goza, ele apenas
funciona. A primeira via destoa da segunda, onde a definição de corpo é diretamente
141
articulada ao gozo, tal como Lacan apresenta em O seminário, livro 20: mais, ainda (1972-
1973/1985, p.35):
Não é lá que se supõe propriamente a experiência psicanalítica? – a substância do corpo, com a condição de que ela se defina apenas como aquilo de que se goza. Propriedade do corpo vivo, sem dúvida, mas nós não sabemos o que é estar vivo, senão apenas isto, que um corpo, isso se goza. Isso só se goza por corporizá-lo de maneira significante.
Se na primeira via o corpo está mortificado pela incidência do significante, na segunda
o corpo vivo é a condição de gozo, pois o gozo é impensável sem o corpo. Como equacionar
essas duas vias? Miller (1999/2001, p.33) fornece uma pista ao dizer que “se o significante
tem um efeito mortífero é porque a vida precede esse efeito”.
Na segunda conferência de Belo Horizonte, intitulada “O corpo e a vida” (IBIDEM),
Miller está diante de duas formulações lacanianas que parecem opostas, pois Lacan
inicialmente enfatizou o significante como matéria inanimada e depois ressaltou que o mesmo
não é corporal, dando ênfase ao corpo vivo. Essa oposição decorre da evolução do
pensamento de Lacan que exige uma constante reformulação de conceitos e noções. A
primeira formulação lacaniana – a linguagem é corpo – está no texto “Função e campo da fala
e da linguagem em psicanálise” (1953/1998, p.302), onde Lacan afirma que “[...] a linguagem
não é imaterial. É um corpo sutil, mas é corpo”. A segunda formulação – o significante é
incorporal – está em “Radiofonia” (1970/2003, p.406): “O primeiro corpo [o simbólico] faz o
segundo [corpo biológico], por se incorporar nele. Daí o incorpóreo que fica marcando o
primeiro, desde o momento seguinte à sua incorporação”.
Para tornar as duas formulações compatíveis, diz Miller (1999/2001, p.40), é preciso
considerar que o significante corpo não possui o mesmo sentido nas duas passagens de Lacan.
Na primeira, onde linguagem é corpo, Lacan se refere à materialidade da linguagem e corpo
quer dizer matéria. Na segunda, na qual o significante é incorporal, o corpo é considerado
como corpo vivo. Na conferência de Belo Horizonte, Miller (IBID., p.41) resume essas duas
formulações da seguinte forma: “de um lado, o significante, a extensão e a matéria, se
reduzimos a matéria à extensão; de outro, do lado do gozo, o corpo e a vida”.
Tais considerações contribuem para discutir a noção de acontecimento de corpo,
fundamental para o tema das neoconversões nas psicoses ordinárias. Na terceira conferência,
“Biologia psicanalítica” (IBID., p.69), Miller retoma a perspectiva lacaniana do sintoma tal
como se encontra no texto “Joyce, o Sinthoma”: “deixemos o sintoma no que ele é: um evento
142
corporal” (LACAN, 1975/2003, p.565). Esta definição lógica só é possível quando o gozo é
considerado no sentido de satisfação de uma pulsão.
De acordo com o que Miller (1998-1999/2004, p.19) desenvolve em Paris:
Se o sintoma é uma satisfação da pulsão, se ele é gozo condicionado pela vida sob forma do corpo, isto implica que o corpo vivo é prevalente em todo sintoma. Eis o que está no horizonte do que chamo ‘biologia lacaniana’: a repetição da sintomatologia a partir dos acontecimentos de corpo.
O sintoma como acontecimento de corpo é conexo ao ter um corpo. Como falamos
anteriormente, o sujeito do significante não identifica o ser ao corpo, pois ele é remetido à
falta-a-ser que lhe é típica. Enquanto que o falasser reduz o corpo ao estatuto do ter. Ter um
corpo é equivalente à possibilidade de ter sintomas, justificando a definição de Lacan sobre o
sintoma enquanto um evento corporal.
No seminário de Paris (1998-1999/2004, p.50), Miller retoma a disfuncionalidade dos
sintomas e ressalta que os efeitos duradouros e permanentes que ela inscreve no corpo é
nomeada pelo significante traço. O autor define o acontecimento de corpo da seguinte forma:
Trata-se sempre, com efeito, de acontecimentos de discurso, que deixaram traços no corpo. E estes traços desorganizam o corpo. Fazem sintoma nele, mas na medida em que o sujeito em questão esteja apto a ler esses traços, decifrá-los. Isto, finalmente, tende a reduzir-se a que o sujeito encontre os acontecimentos que estes sintomas traçam.
Além disso, Miller (IBID, p.53) ensina que a articulação entre acontecimento e traço
havia sido realizada por Freud com o conceito de trauma. O processo do nascimento é o
acontecimento fundador do traço de afetação, pois ele suscita os mesmos signos físicos que
ocorrem na angústia. Esse traço é um desequilíbrio permanente que mantém no corpo um
excesso de excitação que não cessa de não se escrever. Apesar de Freud posteriormente negar
que o nascimento seja o protótipo da angústia – por acreditar que cada idade do
desenvolvimento apresenta uma angústia determinada –, Miller considera o trauma como uma
fórmula geral do acontecimento de corpo.
Ele acrescenta que, para Lacan, o núcleo do acontecimento traumático não está
relacionado a um acidente, tal como o nascimento para Freud. Trata-se da possibilidade
contingente do acontecimento, que deixa traços de afetação e abre a incidência da língua
sobre o corpo. A inexistência da relação sexual é o acontecimento lacaniano no sentido do
trauma, uma vez que ela deixa traços permanentes no corpo que são prevalentes nos sintomas.
Segundo Miller (IBIDEM), “isso quer dizer que não é a sedução, não é a ameaça de castração,
143
não é a perda do amor, não é a observação do coito parental, não é o Édipo que é o princípio
do acontecimento fundamental, traçador de afetação, porém a relação com a língua”.
Podemos perceber que a não existência da relação sexual proposta por Lacan, diminui
o efeito do afeto no corpo, tal como Freud formulou. O acontecimento de corpo pode ser
considerado também como efeito do trauma de lalíngua64 no corpo, pois esta inaugura,
concomitantemente, o acontecimento traumático, deixa traços perturbadores no corpo e
constitui o cerne do sintoma.
Os acontecimentos de corpo competem tanto ao campo da neurose quanto ao das
psicoses.
Na histeria, o gozo correlativo à pulsão sexual parcial é submetido ao recalque sob a forma de verdade. Nesse caso, é o corpo simbolizado que é tocado. Digamos que o acontecimento de corpo se produz no simbólico. Na psicose, consideramos que o gozo é submetido à foraclusão e que o acontecimento de corpo se produz no real, no ponto de um eclipse do saber do corpo (MILLER, 1999/2001, p.70).
Freud (apud MILLER, IBIDEM) sustenta que, no nível das pulsões parciais, o corpo
neurótico – habitado pelas pulsões de vida e de morte – é fragmentado em zonas erógenas
que, de acordo com os investimentos libidinais, são suscetíveis de serem erotizadas e se
automatizarem. Quando o eu recalca a pulsão e interdita seu acesso à consciência, esta deixa
de dominar o órgão agora entregue à dominação da pulsão recalcada. Como resultado do
mecanismo de recalque os acontecimentos de corpo se apresentam, frequentemente, como
limitações funcionais e inibições. Em Perspectivas dos Escritos e dos Outros escritos de
Lacan. Entre desejo e gozo, Miller afirma que “isso goza onde não fala, isso goza onde não
faz sentido” (2008/2011, p.97).
Nas psicoses, o destino da pulsão é concebido de forma distinta do recalque na
neurose. Segundo Miller (1998-1999/2004, p.56), a dimensão libidinal foi dissimulada em
“De uma questão preliminar...” (1959[1957-1958]/1998), visto que o ponto central desse
escrito é a irrupção do símbolo no real e a construção da alucinação como fenômeno de
comunicação. “O que poderia ser concernente ao sintoma como acontecimento de corpo não
está ausente, mas é minorado. O corpo está ali, mas Lacan deixa de lado” (MILLER, 1998-
1999/2004, p.56). Esse fato pode ser constatado pela interpretação lacaniana do milagre do
uivo e do apelo de socorro em Schreber. Apesar de serem fenômenos de sofrimento corporal
64 Nesta Tese respeitamos a utilização do conceito de lalangue, tal como aparece nas traduções, ora como alíngua, ora como lalíngua. Apesar de equivalentes, foram traduzidos de duas formas diferentes: a primeira em O seminário, livro 20: mais,
ainda (1972-1973/1985), e a segunda adotada após a publicação de Outros escritos (2003). No texto “Televisão” (1973/2003, p.510), há uma nota do editor que explica a modificação.
144
intenso, Lacan os considera, naquele momento, como um vislumbre da significação na
superfície do real.
Apesar de os fenômenos da psicose de Schreber serem tomados em termos de
significante e de significado, Lacan também se detém nos aspectos de dilaceramento e de
reconstrução do corpo schreberiano. Em “De uma questão preliminar...” (1959[1957-
1958]/1998), a vertente de interpretação do corpo é a articulação entre o estádio do espelho e
a metáfora paterna. A foraclusão do Nome-do-Pai e a ausência da significação fálica
produzem uma disjunção do simbólico e do imaginário, que acarreta a dispersão do gozo –na
neurose localizado e temperado pela metáfora paterna – em diferentes partes do corpo.
Quando o núcleo metafórico está foracluído, o imaginário retorna à sua lógica interna, tal
como se verifica nos fenômenos de regressão tópica ao estádio do espelho.
Posteriormente, em “Apresentação das Memórias de um doente dos nervos”
(1966/2003, p.221), Lacan acentua a dimensão do acontecimento de corpo em Schreber ao
dizer que: “[...] é o que de Deus ou do Outro com seu ser apassivado que ele mesmo respalda,
enquanto se empenha em nunca deixar que cesse nele uma cogitação articulada”. Ao
evidenciar a dimensão do gozo inscrita no pensamento, Lacan ressalta a polaridade sujeito do
significante-sujeito de gozo.
Miller (1998-1999/2004, p.62) sublinha o paralelismo e a equivalência que se
estabelece entre o “não cessar de pensar” e o “não cessar de gozar”, da qual decorre todo o
sofrimento de Schreber. Essa configuração, desenvolvida em O seminário, livro 20: mais,
ainda (1972-1973/1985), é uma correção do cogito cartesiano “eu penso, eu sou”, que conecta
o pensamento puro e o ser. Para Lacan, esta conexão não acontece de forma alguma, pois o
gozo impede que ela se estabeleça. Portanto, a correlação essencial entre o ser, o pensamento
e o gozo é o que sustenta o avanço lacaniano para além da matriz do estádio do espelho.
Essa correlação permite Miller desenvolver o acontecimento de corpo pelas noções de
significantização e de corporização. Para isso, é preciso refletir sobre a relação entre o corpo
e o significante.
Lacan tomou emprestado da linguística certa organização que o levou a supor uma
ordem no simbólico. A consequência desta ordenação é considerar o significante enquanto
matéria, captado na forma em que ele se materializa. Miller (1998-1999/2004, p.64) considera
que o significante como ordem é puro formalismo. La
145
em suspensão”. A equivalência entre significante e semblante coloca em questão o caráter
lógico do significante, que passa a ter sua materialidade a partir do corpo.
A possibilidade de o significante se materializar no corpo aparece de forma evidente
no sintoma histérico. A partir do conceito de falo, Lacan logiciza uma passagem em que a
inscrição do significante no corpo faz com que ele se torne significante do corpo. No texto “A
significação do falo (Die Bedeutung des Phallus)”, Lacan (1958/1998, p.696) diz que a cena
do inconsciente, eine andere Schauplatz, uma outra cena, deixa claro os elementos da cadeia
significante que são “elementos materialmente instáveis”; e que, apenas através das
substituições e combinações da metáfora e da metonímia, respectivamente, podemos notar a
estrutura de um sintoma.
De acordo com Miller (1998-1999/2004, p.64), o processo de significantização se
revela pela elevação de um elemento imaginário à ordem simbólica. Este processo é
esclarecido pela articulação realizada por Lacan entre a necessidade, a demanda e o desejo.
Trata-se da dialética significante do sujeito e do Outro em termos de mensagem e de
comunicação, que explicaremos adiante.
Miller (IBIDEM) considera esta articulação lacaniana como uma aplicação da
estrutura da significantização: ela se inicia com uma função de corpo da ordem da
necessidade, mas quando expressa em termos significantes, introduz uma demanda. No
entanto, devemos considerar que o processo de corporização torna negativo o efeito de
significantização, na medida em que a resposta do Outro à demanda não é signo do amor. Ao
introduzir as novas teorizações sobre a relação corpo-gozo, Lacan afirma, em O seminário,
livro 20, que “[...] o Gozo do Outro [...], do corpo do Outro que o simboliza, não é signo do
amor. [...] O amor, certamente, faz signo, e ele é sempre recíproco” (1972-1973/1985, p.12,
grifos do autor). E acrescenta (IBIDEM):
É mesmo por isso que se inventou o inconsciente – para se perceber que, o desejo do homem é o desejo do Outro, e que o amor, se aí está uma paixão que pode ser ignorância do desejo, não menos lhe deita toda a sua poja. Quando se olha para lá mais de perto, vêem-se as devastações.
O desejo, por sua vez, é um resto, é um objeto que está no corpo enquanto causa. Ele
revela o ponto em que falha a cadeia significante. Na edição francesa de O Seminário 20
Lacan (1972-1973/1975, p.91) diz que le a est un semblant d’être, ou seja, o a é um
semblante do ser (tradução nossa). E fornece um exemplo pela via da hainamoration, amódio,
148
localiza no limite das elaborações teóricas da psicanálise, por estarem no nível do real.
Fazendo referência à distinção freudiana entre libido do eu e libido do objeto, ele afirma que,
nesses fenômenos, o investimento da libido se faz sobre o órgão do corpo, e não sobre o
objeto, o que acarreta um curto-circuito na montagem pulsional.
Em O seminário, livro 3: as psicoses (1955-1956/1997, p.351-352), Lacan comenta
um caso clínico apresentado por Ida Macalpine e aproxima a estrutura psicótica e os
fenômenos psicossomáticos a partir da foraclusão do Nome-do-Pai. Em suas palavras: “é aí
que ela pôde ter a apreensão direta de fenômenos estruturados de modo bem diferente do que
se passa nas neuroses” (IBID., p.352). Tal como no seminário anterior, os fenômenos
psicossomáticos são localizados fora do campo das neuroses, o que justifica uma distinção
entre esses fenômenos e os sintomas.
Em relação às manifestações psicossomáticas da pele contidas no trabalho de Ida,
Lacan diz que: “[...] há não sei que impressão ou inscrição direta de uma característica, e
mesmo, em certos casos, de um conflito” (IBIDEM). Essa inscrição direta no corpo aponta
para a noção de escrita elaborada na “Conferência em Genebra sobre o sintoma” (1975/1998),
que discutiremos adiante. Por fim, Lacan prossegue exemplificando um evento corporal que
ocorre diante de uma data:
[...] um sintoma tal como uma erupção, diversamente qualificada dermatologicamente, da face, se mobilizará em função de tal aniversário, por exemplo, de maneira direta, sem intermédio e sem dialética alguma, sem que nenhuma interpretação possa marcar sua correspondência com alguma coisa que seja do passado do sujeito (1955-1956/1997, p.352).
Vale notar que, apesar de Lacan se referir ao FPS como sintoma, a continuação da
frase elucida que não se trata do sintoma-mensagem passível de decifração. Ao contrário, ao
complementá-la, ele indica uma característica fundamental desses fenômenos: eles podem
desaparecer definitivamente, sem que nenhuma intervenção específica possa explicar tal
acontecimento, justamente porque não mantém correspondência com a história do sujeito.
As elaborações posteriores de Lacan permitem entender que o súbito desaparecimento
desligado de uma intervenção, ou de uma interpretação, pode ser explicado pela ausência de
um endereçamento desses fenômenos ao campo do Outro. No texto “Algumas reflexões sobre
o fenômeno psicossomático” (1986/2003, p.88-89) Miller diz que, pela ausência de
endereçamento, tais fenômenos se apresentam como um limite ao processo analítico, pois
apesar de estarem relacionados à ação significante, eles escapam à regulação fálica. Isto é,
eles contornam a estrutura da linguagem e o desejo do Outro não é colocado em questão.
149
Em O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
(1964/1998, p.215), Lacan utiliza os termos afânise e a holófrase para explicar os FPS. Ele
diz que “a psicossomática é algo que não é um significante, mas que, mesmo assim, só é
concebível na medida em que a indução significante, no nível do sujeito, se passou de maneira
que não põe em jogo a afânise do sujeito” (grifo do autor). E mais adiante ele acrescenta que
os fenômenos psicossomáticos se produzem “[...] na medida em que uma necessidade venha a
estar interessada na função do desejo [...], mesmo se não podemos dar conta da função afânise
do sujeito” (IBIDEM, grifo do autor). Em outra passagem desse mesmo seminário, Lacan
situa “[...] o que se deve conceber do efeito psicossomático. Chegaria até a formular que,
quando não há intervalo entre S1 e S2, quando a primeira dupla de significantes se solidifica,
se holofraseia, temos o modelo de toda uma série de casos – ainda que, em cada um, o sujeito
não ocupe o mesmo lugar” (IBID., p.224-225).
A que Lacan se refere quando diz “uma série de casos”? Trata-se da aproximação
entre a estrutura psicótica e os FPS, anunciada, mas não desenvolvida no Seminário 3 (1955-
1956/1997, p.352). Ele se refere à solidez significante que impede a dialética da estrutura da
linguagem. Nas psicoses, a solidez se manifesta no fenômeno de crença, e na psicossomática
ela se expressa por meio dos fenômenos de corpo.
Desde a criação do grupo GREPS – Groupe de Recherches sur la Psychosomatique –
ligado ao Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII, Miller e outros
psicanalistas lacanianos vêm fornecendo contribuições sobre os FPS.
No que se refere à contribuição de Miller, no seminário intitulado Extimidad (1985-
1986/2010), ele afirma que há duas maneiras de abordar os FPS: a partir da estrutura do
significante ou desde o objeto a. Miller alerta que, no ensino de Lacan, esses fenômenos são
apresentados apenas a partir da vertente significante, mas que é possível supor a vertente do
objeto a desde que o gozo se tornara um termo operatório na experiência analítica (IBID.,
p.157-158). Durante essa discussão, Miller menciona os termos afânise e holófrase utilizados
por Lacan no Seminário 11.
A primeira vertente, a da estrutura do significante, pode ser enunciada através do
matema X ◊ S1. Tal matema expressa que a formulação um significante representa o sujeito
para outro significante não pode ser verificada nos FPS. A dialética significante que advém do
binário S1-S2 e que possibilita a disjunção dos mesmos, desaparece, acarretando uma
solidificação – chamada por Lacan de holófrase – que faz existir apenas um ao invés de dois
significantes. Isto acarreta problemas à posição do sujeito que, pela função da afânise, cessa
de estar representado e não pode mais ser localizado (IBID., p.158).
150
Miller (IBID., p.161) avança dizendo que o significante único, característico da
holófrase ou da solidificação, é da ordem do traço unário, “[...] um significante que não se
articula com um sistema, mas que vale como uma insígnia”66. Ele ressalta que esse
significante também pode ser nomeado de hieróglifo, tal como Lacan fez na “Conferência em
Genebra sobre o sintoma” (1975/1998).
Nesta conferência, Lacan ensina que os FPS são da ordem da escrita que, em muitos
casos, não sabemos ler: “tudo se passa como se algo estivesse escrito no corpo, alguma coisa
que se oferece como um enigma” (IBID., p.13-14). Sra. Rossier, participante dessa
conferência, questiona Lacan ao dizer que ao invés de algo a respeito do escrito (d’écrit), ela
entende gritos (des cris). Ele responde dizendo que “um doente psicossomático é muito
complicado e assemelha-se mais a um hieróglifo do que a um grito” (IBID., p.14). Lacan
prefere utilizar o termo hieróglifo ao invés de grito, pois este último implica um chamado ao
Outro, diferente do primeiro que denota um escrito para não ser lido.
No curso Extimidad, Miller (1985-1986/2010, p.161) esclarece que hieróglifo é um
elemento figurativo utilizado por Lacan para qualificar a especificidade dos FPS. Esse termo
sinaliza a imaginarização do simbólico, ressaltado por Lacan na “Conferência em Genebra
sobre o sintoma” ao definir que “o psicossomático é algo que, de todo modo, no seu
fundamento, está profundamente arraigado no imaginário” (1975/1998, p.14).
Miller (1985-1986/2010, p.161) matemiza a imaginarização do simbólico como I( ).
Nesse parêntese vazio – onde deveria se inserir o A do matema lacaniano do Ideal do Outro,
I(A) – se insere a relação imaginária a-a’. Isso quer dizer que, se o matema I(A) evoca o
Outro como corpo pela via do simbólico, o FPS é profundamente enraizado no registro
imaginário. O corpo registra o que ocorre na vertente imaginária e faz emergir o gozo do
organismo no lugar em que deveria estar situado o Outro como corpo simbólico.
Em “Posição do inconsciente no Congresso de Bonneval” (1960a/1998, p.863), Lacan
distingue organismo e corpo:
O importante é apreender como o organismo vem a ser apanhado na dialética do sujeito. Esse órgão do incorporal no ser sexuado é aquilo do organismo que o sujeito vem estabelecer no momento em que se opera sua separação. É por meio dele que ele pode realmente fazer de sua morte objeto de desejo do Outro.
66 O trecho correspondente na tradução é: “[...] un significante que no se articula con un sistema pero que vale como una insignia”.
151
Miller (1986/2003, p.95) comenta que a topologia lacaniana inverte a crença do senso
comum, cuja tendência é considerar o organismo no interior do corpo. Para Lacan, ao
contrário, os limites de um organismo vão mais além de os limites do corpo, porque o
organismo comporta a libido extra-corpo, tal como o objeto a. Portanto, para Lacan (apud
MILLER, IBIDEM), a fórmula do organismo seria de “um corpo completado – o corpo mais
o órgão não corpóreo, que é a própria libido”. Miller (IBID., p.95-96) explica que a
psicossomática não responde a essa mesma formulação, pois a libido não é um órgão
incorpóreo, nesses casos ela se torna corporificada por meio dos FPS.
Lacan se pergunta: “[...] qual é a espécie de gozo que se encontra no psicossomático?
Se evoquei uma metáfora como a do congelado, é porque existe, efetivamente, essa espécie de
fixação. [...] é porque o corpo se deixa levar para escrever algo da ordem do número”
(1975/1998, p.14, grifo do autor). Ao destacar “algo da ordem do número”, Lacan avança um
pouco mais sobre o que o gozo tem de específico na psicossomática. Trata-se de um
ciframento que não passa pelo campo simbólico, nem pela significantização da letra e nem
pela subjetivação do desejo, pois ele está do lado do real do número e da contabilização do
gozo.
No seminário intitulado Los signos del gozo (1986-1987/2006), Miller desenvolve as
noções de número e de contabilização do gozo a partir da articulação entre o inconsciente e a
estrutura da linguagem, distinguindo a forma que ela se apresenta nos dois ensinos de Lacan.
No primeiro, o inconsciente estruturado como uma linguagem exige a articulação S1-S2 e a
consideração dos efeitos de sentido que ela acarreta.
Por sua vez, no segundo ensino, o inconsciente não é mais tomado unicamente pela
articulação significante, pois o significante é desprovido de sentido e se torna instrumento
para o gozo e não mais para a comunicação (IBID., p.327). A partir daí o inconsciente é
abordado pelo número, pela cifra, pelo que é contábil e que, apesar de pertencer à ordem
significante, está disjunto dos efeitos de sentido.
Em “Radiofonia” (1970/2003, p.418), Lacan ressalta que a contabilidade é um nome
do inconsciente em relação ao gozo: “fazer o gozo passar para o inconsciente, isto é, para a
contabilidade, é, de fato, um deslocamento danado”. O inconsciente como contabilidade
consiste em considerar o Um que sustenta o significante. Na passagem do gozo à
contabilidade resta o objeto a, o mais-de-gozar.
Considerar a contabilização do gozo nos leva a retomar a segunda vertente proposta
por Miller em Extimidad (1985-1986/2010, p.161), a vertente do objeto a. Seguindo Lacan,
ele afirma que, quando se trata de FPS, é preciso se deter na incidência da solidificação
152
significante sobre o gozo e o mais-de-gozar, pois eles imprimem o gozo no lugar do Outro
como corpo. Por efeito da solidificação significante, o objeto a reaparece metaforizado sob
forma incrustada no corpo. Portanto, não podemos falar nem de uma localização normal do
gozo sobre as zonas erógenas, tal como na histeria, e nem de uma completa deslocalização do
mesmo. Quando se trata de FPS, a localização do gozo está deslocada e ataca determinado
ponto do corpo.
Lacan (1975/1998, p.14) especifica o corpo do psicossomático como um “corpo
considerado como invólucro, como o que entrega o nome próprio”, que denuncia um
confronto entre o Nome-do-Pai e o nome próprio.
No item 2.3.1. desta Tese de Doutorado tratamos desse tema quando discorremos
sobre os efeitos da nomeação em uma estrutura. Ressaltamos que o reconhecimento de um
nome próprio depende da incidência direta do Nome-do-Pai, visto que, por ser um significante
puro, toda a problemática do nome próprio se resume à forma como cada um designa seu ser,
tanto em referência ao Nome-do-Pai, quanto a partir do eu. Lacan faz de Joyce o exemplo de
um nome próprio feito sem o Nome-do-Pai, mas que, apesar disso, realiza a compensação da
carência paterna. A obra joyceana incide sobre o nome próprio do autor, pois Joyce se dá um
nome de gozo com valor de nomeação, que comporta o que há de mais singular no sintoma.
Avançamos ao dizer que, tal como o nome próprio, os FPS inscrevem um significante
puro da ordem do número, que comporta um ciframento particular de gozo. Nesse sentido, é
preciso considerá-los como uma possibilidade de nomeação deste gozo que contorna a ordem
simbólica e transgride o circuito pulsional. Isso porque a principal diferença entre o sintoma e
o FPS é que, no primeiro, o Outro é a garantia da inscrição significante no corpo. Enquanto
que, no FPS, o próprio fenômeno caracteriza a forma como o sujeito contorna o Outro do
significante, pois o Outro é o próprio corpo e a inscrição é feita pelo corpo, uma vez que o
sujeito atesta o Outro pelo corpo.
Por este motivo, no texto “Algumas reflexões sobre o fenômeno psicossomático”
(1986/2003, p.97), Miller ensina que nos FPS encontramos dois pontos onde a metáfora pode
ser atacada: a metáfora paterna e a metáfora subjetiva. A primeira coloca em questão a
inscrição do Outro simbólico no corpo pela holófrase e pela gelificação significante expressa
pela afânise. Apesar de esses fenômenos serem ligados a efeitos de linguagem, eles estão fora
da subjetivação, o que dá testemunho, em algum grau, do fracasso da função paterna. Por isso,
diz Miller, nesses casos o inconsciente não é útil para transformar o fenômeno psicossomático
em sintoma e fazer com que o Outro em questão não seja apenas o corpo próprio.
153
Laurent (IBID., p.30) considera que “não há, propriamente falando, uma estrutura do
sujeito psicossomático, mas um gozo, que é um fenômeno de borda – quanto àquilo que, no
sujeito propriamente dito, é afetado pela estrutura”. Portanto, os FPS são interpretados pela
psicanálise como um limite quando se trata da estrutura da linguagem, pois eles concernem ao
real. Apesar de não possuírem uma determinação somática, marcam o corpo em curto-circuito
e fazem com que a disjunção entre S1 e S2 – que faz emergir o objeto a – desapareça.
Na clínica, é comum que a metáfora da gelificação significante se concretize em uma
holófrase, trazendo dificuldades na direção do tratamento. Muitas vezes, o psicossomático
busca uma análise pretendendo dissolver esses fenômenos, tratando-os como se fosse um
sintoma que responde à estrutura de linguagem. Mas, como um hieróglifo especial inscrito no
corpo, eles escrevem uma nova nominação aplicada sobre o corpo próprio como uma
assinatura do sujeito.
3.4.3 Neotransferência
A manobra transferencial é o grande desafio no tratamento das psicoses. Em busca de
novos operadores que esclarecessem as especificidades da transferência em alguns casos nos
quais a dificuldade do diagnóstico diferencial era patente, o programa de investigação sobre
as psicoses ordinárias estabelecido na Convenção de Antibes levantou a hipótese de que a
criação e o uso de uma lalíngua da transferência é um recurso que orienta a direção do
tratamento, pois permite o aparelhamento de gozo e facilita o psicótico tecer laços sociais.
O conceito de lalíngua67, ensinado por Lacan em O seminário, livro 20: mais, ainda
(1972-1973/1985, p.190), está articulado ao inconsciente e à linguagem e evidencia o real que
não cessa de não se inscrever e o caráter de singularidade que ele comporta. Ao relacionar
lalíngua e o inconsciente, ele distingue dois tipos de saber. Primeiro, um saber sobre lalíngua,
uma elucubração que advém dos S1s isolados de lalíngua cujo efeito fornece elementos de
comunicação necessários para fazer laços com o outro. Segundo, um saber-fazer com
lalíngua que escapa ao inconsciente estruturado como uma linguagem. Este saber-fazer com
denota um trabalho específico do falasser. Lacan ensina a utilidade de lalíngua: “se se pode
dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, é no que os efeitos de alíngua,
67 Reafirmamos o conteúdo da nota de rodapé nº 18 deste capítulo de Tese.
154
que já estão lá como saber, vão bem além de tudo que o ser que fala é suscetível de enunciar”
(IBIDEM).
Se lalíngua não se presta à comunicação, ela também não se mostra útil para o diálogo
e para o laço social. Portanto, ela deve ser diferenciada da linguagem que, na própria lógica
da constituição do falasser, é secundária em relação à lalíngua. Nas palavras de Lacan: “Se eu
disse que a linguagem é aquilo como o que o inconsciente é estruturado, é mesmo porque, a
linguagem, de começo, ela não existe. A linguagem é o que se tenta saber concernentemente
à função da alíngua” (IBID., p.189).
No texto “Teoria d’alíngua (rudimento)”, Miller (1974/1996, p.62) evidencia a
positividade dos efeitos de lalíngua sobre a linguagem. Diz que Freud descobriu uma
abordagem da linguagem a qual Lacan conferiu outro sentido pela dimensão de lalíngua.
“Dizer mais do que se sabe, não saber o que se diz, dizer outra coisa do que o que se diz, falar
para nada dizer, não são mais, no campo freudiano, as falhas da língua que justificam a
criação das línguas formais. São propriedades inelimináveis e positivas do ato de falar”. No
entanto, o que não pode ser eliminado do ato de falar é o mal-entendido, os equívocos
significantes, as homofonias e os neologismos atribuídos à lalíngua; elementos que indicam a
singularidade absoluta característica da invenção de um sujeito para nomear seu ser de gozo.
Beneti (2010, p.116) esclarece a importância do conceito de lalíngua nos escritos de
Lacan e acrescenta algumas considerações sobre a fala de Miller. Desde o início de seu
ensino, Lacan busca formalizar o conceito freudiano de libido. Na clínica estrutural o axioma
“o inconsciente é estruturado como uma linguagem” orienta esta formalização pelo
simbólico. A operação de castração simbólica mortifica a libido e deixa um resto de gozo não
significantizado, nomeado de objeto a. A partir daí, o Outro deixa de ser totalmente
simbólico e é marcado por uma barra, que designa um resto de real impossível de ser inscrito
pelas vias significantes. Para dar conta dessa operação, Lacan propõe um outro significante
com o estatuto de S1, chamado lalíngua, uma letra de fixação de gozo que escapa à operação
de castração simbólica e que o sujeito tenta recuperar como mais-de-gozar. Esta letra permite
um nome de gozo do sujeito, o sinthoma, expresso no matema S1,a.
Em Perspectivas do Seminário 23 de Lacan: O sinthoma, Miller explica que, pela via
do sinthoma, a linguagem fica reduzida à lalíngua. Essa redução pode ser localizada na
decomposição do discurso de Joyce, visto que ele fala para si e suspeita que aquilo que vem
do Outro seja apenas fabricação. Esse exemplo indica que um sujeito sem endereçamento ao
Outro traz consequências importantes para a posição do analista e pode elucidar sobre novos
manejos específicos da neotransferência em casos de psicose ordinárias:
155
Assim, estamos seguindo em direção à palpitação mais íntima da experiência analítica, ali onde a própria fala perde a sua função de comunicação, de informação, de transformação, para ser tão somente, eu dizia, a palpitação de um gozo que deixa o analista, se ele acede a essa posição em sua prática, interditado (2006-2007/2009, p.77).
Como assinala Miller, a utilização de lalíngua como ferramenta essencial para o
manejo da transferência em casos de psicose interdita a posição do analista enquanto sujeito
suposto saber. Na experiência clínica com as psicoses ordinárias, a modificação do lugar do
analista – ou seja, a destituição do sujeito suposto saber como lugar privilegiado – em casos
pode ser esclarecida por Miller (2006, p.11-12) pela distinção de três sujeitos supostos saber.
O primeiro é o analisante, suposto saber ao menos o que o leva a um analista. O segundo é o
analista, pois lhe é suposto saber responder às formações do inconsciente pela via da
interpretação. O terceiro é o inconsciente enquanto uma potência de cifração, ao mesmo
tempo em que diz algo, inscreve um obscuro e opaco manejado pela transferência. Portanto, a
suposição de saber que inscreve o analisante em uma análise não pode ser o que motiva a
transferência nas psicoses, pois nesses casos o saber se mantém do lado do psicótico e
inviabiliza a clássica posição do analista.
Na Convenção de Antibes, Miller (1998/2006) avança em relação à neotransferência e
retoma o algoritmo da transferência proposto por Lacan na “Proposição de 9 de outubro de
1967 sobre o psicanalista da Escola” (1967/2003, p.253).
S Sq
_______________ s (S1, S2,... Sn)
Miller admite uma dificuldade em considerar a neotransferência como uma
generalização do algoritmo lacaniano, porque nele, Lacan escreve a parceria analista-
analisante a partir do significante. A articulação do significante da transferência com um
significante qualquer, Sq, supõe a particularidade do sentido fornecido no binário inicial S1-S2.
Sendo assim, a transferência é um efeito de significação desse binário, uma significação de
saber que inaugura o sujeito suposto saber. Desta forma, conclui-se que a formulação da
transferência apresentada na “Proposição” é válida somente para a clínica das neuroses e não
responde às dificuldades da clínica das psicoses.
Para esclarecer sobre as especificidades em casos de psicose ordinária, na Convenção
de Antibes foi proposta uma modificações do algoritmo da transferência (1998/2006, p.141).
Miller as pontua e mostra as fragilidades ali constituídas (IBID., p.280). A mais importante
156
decorre do fato de a transferência ser abordada como um efeito da articulação entre S1-S2,
como foi dito acima, o que traz uma dificuldade de o algoritmo abarcar lalíngua, que precede
logicamente ao estabelecimento da relação significante exigida pela transferência. Assim, a
saída encontrada pelos analistas que trabalhavam sobre esse tema foi a substituição dos
significantes do saber suposto por lalíngua. De modo que na experiência psicanalítica, a
neotransferência permite que o psicótico invente e ensine uma lalíngua da transferência, pois
ele é “alguém para quem a relação com o saber está fundada em uma relação com lalíngua”
(IBID., p.170, grifo do autor). Nesses casos, o desejo do analista deve permitir um saber-fazer
do psicótico com a própria lalíngua e uma elucubração de saber sobre ela (IBID., p.145).
Miller destaca que lalíngua funciona como um saber suposto para o analista e não para
o psicótico, pois é o primeiro quem deve aprendê-la. Quando lalíngua é disponibilizada no
dispositivo analítico, ela perde o estatuto de um saber suposto e se torna um saber exposto.
Neste momento é preciso que o analista esteja atento ao manejo da transferência, pois o saber
exposto facilita a intrusão do semelhante e o desencadeamento de fenômenos delirantes e
persecutórios. No Conciliábulo de Angers, Miller (IBID., p.56) esclarece que “com o saber
exposto não se pode praticar a análise, é certo. Só se pode praticar a análise a partir do saber
suposto”. No entanto, acrescenta que “o sujeito psicótico é precisamente um sujeito exposto.
Suas perturbações dependem do fato de que na esfera mais íntima de seu pensamento, até nas
partes de sua própria anatomia, ele está invadido por uma presença” (IBID., p.55).
Ao utilizar lalíngua como uma ferramenta de comunicação no manejo da
neotransferência, o analista deve sempre lembrar que, a rigor, pela própria constituição de
lalíngua, ela não se presta a esta finalidade. Portanto, o analista deve aprender a lalíngua do
paciente e fazer dela uma forma de resposta, e não de diálogo (IBID., p.276). Afinal, ela
“capta o fenômeno linguístico no nível onde ninguém compreende nada” (IBID., p.289), pois
“alíngua é feita de aluviões acumulados com os mal-entendidos e com as criações da
linguagem de cada um” (IBID., p.135, grifo do autor).
Nas discussões da Convenção de Antibes Miller (IBID., p.286-288) ressalta que, a
partir do Seminário 20, Lacan realiza uma decomposição do conceito de linguagem em duas
partes correlativas: como lalíngua e como laço social. Para Miller, a invenção de lalíngua
acentua o que escapa às normas sociais inscritas na estrutura da linguagem. No entanto, o
discurso do mestre impõe uma normalização de lalíngua como linguagem comum. Esta
decomposição da linguagem esclarece que quando o psicótico evidencia uma afetação no
nível do laço social com o Outro através de transtornos de linguagem e da predominância do
uso de significantes fora do sentido, ele está essencialmente conectado à lalíngua. Ao
157
contrário dessa normalização social, a neotransferência orienta a direção do tratamento nos
casos de psicose ordinária no sentido de valorizar os significantes que sinalizam “algo que
está fora do sentido: onomatopéia, cifra, marca” (IBID., p.134).
Segundo Marcelo Veras (2010, p.59), o psicótico é um trabalhador incessante que
busca localizar e fixar o gozo sem apoio da função normativa do significante fálico. Esse gozo
anômalo, chamado por Lacan de gozo do Outro, possui um estatuto especial, na medida em
que ele não é submetido a nenhum enquadramento e a nenhuma lei. Nas psicoses, esta
localização pode ser feita tanto pela significação delirante – que implica bascular o gozo para
o campo do Outro, exilando ali o gozo ameaçador que assola o sujeito – quanto pelo corpo
próprio – com a invenção de órgãos de gozo que funcionam como suplências em um corpo
que onde não ocorreu a extração do objeto.
Desde o Conciliábulo de Angers (1996/2005, p.281) o tratamento das psicoses –
posteriormente nomeadas ordinárias – enfatiza que o trabalho analítico deve permitir a
limitação do gozo geralmente insuportável nas psicoses, seja pela inscrição de um ponto de
basta qualquer que o detenha, seja por sua localização no corpo ou no Outro social. Nenhuma
das soluções praticadas nesses casos orienta o analista à nova significação que articula o
significante isolado (S1) com outro significante (S2), e produza um saber ligado ao Outro da
linguagem.
Essas elaborações colocam em relevo uma clínica pragmática que não faz da
elaboração delirante a via única à estabilização na psicose. Ao contrário, elas implicam em
atender os diversos modos de desenlace do sujeito com o Outro e levam os analistas a
considerarem não só os encontros que desencadeiam os fenômenos de gozo, mas também
aqueles que eventualmente permitem um recurso de compensação, mesmo temporário, que
torne suportável a relação do sujeito com seu corpo e com o Outro.
Concluímos que, seja pelo sem-sentido de lalíngua da transferência, ou por meio da
orientação pela metáfora delirante, o importante à clínica das psicoses é restituir ao falasser a
lógica de sua invenção, percebendo qual é a melhor ferramenta que propicie a limitação do
gozo e permita um enlaçamento mínimo dos registros que mantenha a conexão com o Outro
social.
3.5 Do Um ao múltiplo
158
A categoria da psicose ordinária expressa uma modificação nas modalidades de
apresentação das psicoses. Para a psicanálise de orientação lacaniana, esta diferença é
consequência do declínio da função paterna e da elevação do objeto a ao zênite social, ou
seja, do predomínio do objeto sobre o ideal. No seminário El Otro que no existe y sus comités
de ética, Miller (1996-1997a/2005, p.364) disse que “há uma decadência da função do ideal e
uma promoção da função do mais-de-gozar”.
No século passado, os ideais funcionavam como moderadores do modo-de-gozar de
determinada cultura. No século atual eles já não predominam nas organizações sociais como
anteriormente, o que é diferente de dizer que eles tenham desaparecido, pois o objeto a está
cada vez mais em evidência. Tendlarz (2007/2009, p.13), em seu livro Psicosis, lo clásico y lo
nuevo, diz que isso decorre do fato de o ideal que temperava o gozo ter sido substituído por
uma multiplicidade de ideais que não produzem identificações orientadoras. Essa é uma
questão atual na psicanálise de orientação lacaniana, pois ela permite circunscrever com mais
rigor os fenômenos clínicos atuais e a expressão dos sintomas contemporâneos, que fazem
com que alguns casos pareçam inclassificáveis em relação à clínica estrutural do primeiro
ensino de Lacan.
Esta mesma autora – no artigo “O inclassificável”, que faz parte da coletânea de textos
publicados em A variedade da prática: do tipo clínico ao caso único em psicanálise (2007,
p.27) – enfatiza que estes casos inclassificáveis surgem em um momento específico, no qual a
inexistência do Outro é sentida de forma evidente e nunca antes vista. Ou seja, na atualidade,
o predomínio do objeto de gozo sobre o Ideal acarreta uma pluralização de S1 da qual derivam
identificações frágeis. Portanto, constata-se que para lidar com os efeitos do declínio social da
imago paterna e da inconsistência do Outro, os sujeitos recorrem a identificações imaginárias
que funcionam como suplências face ao déficit simbólico. Este processo é a expressão dos
sintomas contemporâneos cada vez mais frequentes na clínica e que se tornam o ponto de
partida para a discussão da categoria de psicose ordinária como um recurso clínico.
Em “Os complexos familiares na formação do indivíduo”, Lacan (1938/2003, p.62)
adverte sobre o declínio da sociedade paternalista que estava por vir: “se ficou evidente na
análise psicológica do Édipo que ele deve ser compreendido em função de seus antecedentes
narcísicos, isso não quer dizer que ele se funde fora da relatividade sociológica”. Anos mais
tarde, em “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, ele
(1960/1998, p.827) acrescenta que “o Édipo, todavia, não pode manter-se indefinidamente em
cartaz em formas de sociedade nas quais se perde cada vez mais o sentido da tragédia”. Na
década de 70, em “Le séminaire, livre XXI: les nos-dupes errent” (1973-1974, aula de
159
19/03/1974, inédito) volta a mencionar a mudança histórica a qual somos confrontados no
discurso do mestre, dizendo que no espírito do tempo, alguma coisa mudou: o Nome-do-Pai
se transformou em nomeação de uma função e revela efeitos sobre os sujeitos.
No texto “A psicose ordinária à luz da teoria lacaniana do discurso”, Marie-Hélène
Brousse (2008/2009b, p.3) ratifica esta questão dizendo que:
Como o discurso do mestre se modifica no curso da história – o que é uma forma de dizer que o laço social se modifica – o mundo que nos fala e que nós falamos, também se modifica. As grandes vias do simbólico mudam. Em consequência os sintomas que, de certa forma, completam o discurso, também se modificam; sintomas que revelam a potência do que chamamos gozo em relação a cada discurso.
Segundo Éric Laurent (apud BROUSSE, IBID., p.5), a psicose ordinária se caracteriza
pela não resposta aos significantes-mestres tradicionais, manifestando o fim do poder do
Nome-do-Pai enquanto único significante da lei simbólica. Se tomarmos como eixo o declínio
do Nome-do-Pai na cultura associado à pluralização dos nomes e à foraclusão generalizada,
encontramos um deslocamento do eixo da classificação clínica e a emergência dos sintomas
contemporâneos.
Em O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-1970/1992, p.153), Lacan já
havia dito que a passagem do discurso dominante na contemporaneidade – do discurso mestre
ao discurso da ciência associado ao capitalismo – acarretou consequências no tipo de soluções
ou suplências encontradas pelos psicóticos para fazer face à foraclusão do Nome-do-Pai.
Jacques Borie (1998/2006, p.46-47) comenta esta elaboração lacaniana na Convenção
de Antibes, dizendo que o discurso do mestre sustentava a prevalência da solução psicótica
pela metáfora delirante. No entanto, o discurso da ciência que divide a figura do Outro em
uma diversidade de insígnias, possibilita o tratamento do gozo pela via da letra, mais do que
pela significação.
Nessa mesma Convenção, Laurent (IBID., p.224) alerta que “a psicose ordinária é a
psicose da época da democracia”, pois cada um tem a possibilidade de apresentar de forma
democrática seu estilo pessoal de tratamento de gozo contando com menos suportes retirados
da organização coletiva dos modelos sociais. Esse argumento está embasado na pluralização
do Nome-do-Pai, tal como Lacan descreve em “RSI”: do Nome-do-Pai aos nomes do pai. A
direção ao múltiplo define a passagem do poder de um elemento organizador de todos os
outros a um enxame, uma multiplicidade não centralizada em torno de um só elemento – S1:
do Um ao múltiplo.
160
O programa de investigação sobre as psicoses ordinárias é vetorizado por uma série de
elementos que revela a passagem do Um ao múltiplo. No texto “La psicosis ordinaria”,
incluído no livro Cómo se enseña la clínica?, Laurent (2006/2007, p.83-84) enfatiza que a
passagem ao múltiplo franqueia a leitura das psicoses de forma mais ampla, ou seja, tanto pela
via do significante quanto pelo par ordenado S1,a. Na primeira via, a inscrição do significante
Nome-do-Pai delimita as categoria neurose-psicose de maneira clara, pois os mecanismos de
recalque e de foraclusão acarretam efeitos de disjunção. Por outro lado, o par ordenado
possibilita a pluralização do funcionamento dos significantes mestres, que permitem o sujeito
funcionar fora dos discursos estabelecidos pelo Nome-do-Pai. As consequências dessa
passagem para a experiência analítica foram evidentes.
A valorização do S1 sozinho, sem decifração, oferece novos instrumentos para
pensarmos a psicose ordinária, pois ele permite interrogar não apenas os fenômenos
elementares, mas também a relação de sujeito com suas suplências. Isto porque, segundo
Borie (1998/2006, p.221), constata-se na clínica que a resposta dos psicóticos
contemporâneos é tratar esse S1 isolado em seus efeitos de gozo. Sendo assim, o tratamento do
gozo não se faz mediante a reconstrução da cadeia S1-S2, ou por meio de a metáfora delirante,
mas sim a partir da letra, do significante enquanto não significa nada.
Não é raro que uma metáfora delirante oriente a vida, os atos e os laços sociais de um
sujeito sem que não se perceba o que pertence ao patológico. Apenas uma escuta atenta pode
ser capaz de localizar a posição subjetiva do sujeito e aquilo que lhe permite funcionar sem a
sustentação da metáfora paterna. A emergência destas singularidades impele o psicanalista a
um questionamento clínico sobre o princípio ético do diagnóstico.
3.6 As consequências do aforismo “Todo mundo é louco”
Lacan reafirma os postulados da clínica borromeana a partir do aforismo “todo mundo
delira”. No momento em que ele o pronuncia – “Lacan a favor de Vincennes!” – tratava-se de
uma situação política delicada devido à transferência do local de seu ensino na Universidade
de Paris VIII, de Vincennes para Saint-Denis, e da pressão que o discurso universitário fazia
sobre a psicanálise. Por isso, Lacan fala que dentre os quatro discursos tomados a partir da
verdade, “só o discurso analítico é exceção” (1978/2010, p.31), mesmo que ele não seja
universal e nem se transforme em matéria de ensino. A questão frisada por Lacan naquele
161
momento refere-se ao fato de Freud, mesmo tendo tentado ensinar o que não se ensina,
constatou que “nada é apenas um sonho, e que todo o mundo (se tal expressão pode ser dita),
todo o mundo, é louco, ou seja, delirante” (IBIDEM).
Lacan depreende de Freud o “todo mundo é louco, ou seja, delirante”, a partir da
leitura sobre os sonhos, especificamente ao fato de que “nada é senão um sonho”. Para Freud,
o sonho é contingente – ora se sonha, ora não. Mas Lacan o generaliza – sonhamos sempre – e
articula os princípios de prazer e de realidade ao sonho e ao despertar, respectivamente. No
“Curso de Orientação lacaniana III, 10. Todo mundo é louco” (2007-2008, aula de
11/06/2008, inédito), Miller ressalta que “só se desperta para continuar a sonhar [...] esse
sonho que não é somente aquele de todo mundo, é o sonho de sempre”. Deste modo, “todo
mundo sonha” e “todos loucos, delirantes” são equivalentes, visto que ambos têm como
referência o gozo.
Apesar de Freud nunca ter se detido diretamente sobre a universalidade do delírio,
podemos encontrar em seus artigos algumas alusões ao tema. Falamos sobre o assunto no
item 1.1. dessa Tese de Doutorado. Quando discutimos a dificuldade inicial de Freud em
delimitar o campo das neuroses do das psicoses, mencionamos algumas passagens nas quais a
os fenômenos delirantes também estão evidentes na neurose. Por exemplo, no “Manuscrito H”
(1895b/1994), mesmo considerando que seja um texto sobre a paranoia, ele dissocia a loucura
do campo exclusivo das psicoses. Em “El delirio y los sueños en la ‘Gradiva’ de W. Jensen”
(1907[1906]/1993, p.37), Freud inscreve uma loucura ordinária comum aos neuróticos, e em
“Introducción del narcisismo” (1914a/1993, p.92) ele constata a presença do supereu no
delírio de sermos vigiados, tão frequente em casos de neurose.
Selecionamos dois outros fragmentos que atestam a presença deste tema em Freud. O
primeiro destaca uma aproximação entre fantasia e delírio por meio do saber que se adquire
em um processo analítico. No texto “‘Pegan a un niño’. Contribución al conocimiento de la
génesis de las perversiones sexuales” (1919/1994, p.192), ele apresenta os três tempos
gramaticais da fantasia, enfatizando a localização da libido e a conexão do sujeito com o
Outro. Nessa formulação lógica, aproxima as estruturas clínicas da fantasia e do delírio,
dizendo: “não me surpreenderia se em algum momento se demonstrasse que essa mesma
fantasia é base do delírio querelante paranoico”68. Vale notar que o segundo tempo da fantasia
é obtido por uma construção de um saber em análise, que adquire o estatuto de verdade
inconsciente para o sujeito.
68 O trecho correspondente na tradução é: “No me asombraría que alguna vez se demostrara que esa misma fantasía es base del delirio querulante paranoico”.
162
O segundo fragmento versa sobre o caráter delirante do senso comum compartilhado
pela humanidade em determinada cultura. Em “Construcciones en el análisis”, um dos últimos
textos de sua Obra, Freud toca em algo que se assemelha ao delírio generalizado69 pelo viés
da cultura: “se considerar a humanidade como um todo e a puser no lugar do indivíduo
humano isolado, descobre que também ela desenvolveu formações delirantes inacessíveis à
crítica lógica e que contradizem a realidade efetiva” (1937b/1993, p.270; tradução nossa)70.
Por sua vez, em diversos momentos, Lacan esclarece sobre “o que há de delirante no
homem normal” (1955-1956/1997, p.60). No texto “Formulações sobre a causalidade
psíquica”, ele diz que “o ser do homem não apenas não pode ser compreendido sem a loucura,
como não seria o ser do homem se não trouxesse em si a loucura como limite de sua
liberdade” (1946/1998, p.177).
Em O seminário, livro 3: as psicoses (1955-1956/1997) existem outras passagens
dignas de nota. Ao abordar o caso Schreber, Lacan conclui que “até aqui, nosso delirante não
delira mais do que um setor extremamente extenso da humanidade, para não dizer que ele é
co-extensivo a ela” (IBID., p.81). Um pouco adiante, ele afirma que os neuróticos, tanto
quanto os psicóticos, reconhecem em si mesmos a existência de realidades, algumas
particularmente ameaçadoras. Mas o que os distingue é o fato de os neuróticos jamais
levarem a sério a maior parte de seu discurso interior, pois “a certeza é a coisa mais rara para
o sujeito normal” (IBID., p.90). Portanto, adverte Lacan, “ser psicanalista é simplesmente
abrir os olhos para essa evidência de que não há nada mais desbaratado que a realidade
humana” (IBID., p.99).
Com os elementos da clínica borromeana, Miller (1988/1996, p.190) propôs uma
clínica irônica “fundada sobre a inexistência do Outro como defesa contra o real”. Significa
dizer que a função de defesa do discurso tem por objetivo rechaçar o gozo que se intromete no
simbólico, apesar de aí ele não poder ser articulado. Para exemplificar, Miller diz que, para o
esquizofrênico, o simbólico não serve para evitar o real porque eles se equivalem: “se não há
discurso que não seja de semblante, há um delírio que é do real, e trata-se do delírio do
esquizofrênico. É daí que se pode construir o universal do delírio” (IBID., p.192). Por isso, a
69 Este tema foi vislumbrado por Freud em vários textos: “Carta 57” (1897/1993, p.285); “Psicopatología de la vida cotidiana” (1901/1993, p.248-249); “El porvenir de una ilusión” (1927/1993, p.44); “Sobre la conquista del fuego” (1932/1993, p.177); e “Moisés y la religión monoteísta” (1939/1993, p.125-126), além dos textos já citados nos capítulos 1 e 3 desta Tese. 70 O trecho correspondente na tradução é: “Si uno toma a la humanidad como un todo y la pone en lugar del individuo humano aislado, halla que también ella ha desarrollado formaciones delirantes inasequibles a la critica lógica y que contradicen la realidad efectiva”.
163
clínica universal do delírio só pode ser proposta a partir do ponto de vista do esquizofrênico,
pois ele não pode ser apreendido em nenhum discurso e em nenhum laço social. A ironia do
esquizofrênico mostra que o Outro do saber não existe e que o laço social é um engano, na
medida em que não há discurso que não seja semblante.
Partindo do postulado da clínica irônica, Miller assinala dois pontos importantes que,
em certos momentos, são interpretados separadamente. Por um lado, a foraclusão restrita à
psicose, que advém da não inscrição do significante Nome-do-Pai e dos efeitos do retorno no
real do que não foi simbolizado pela função significante. Por outro, a foraclusão generalizada,
ou seja, o delírio equivalente ao todos loucos, que difere do todos psicóticos. Neste sentido, é
preciso distinguir o delírio como fenômeno clínico relacionado à incidência subjetiva, desse
outro de caráter transestrutural, que leva o predicado generalizado.
Na conferência “La invención del delirio” (1995/2005), Miller explica que o fenômeno
elementar indica a presença do S1 isolado da cadeia, ou seja, um significante cujo significado
é enigmático. Isso permite que ele assemelhe o fenômeno elementar a “uma metonímia
imóvel” – que fixa o sujeito, impede o deslizamento significante e produz um estado de
confusão difusa – ou a uma “metáfora impotente”, cuja fixação absoluta não permite nenhuma
construção de sentido (IBID., p.93).
No enigma algo é reconhecido como significante, mas seu sentido não pode ser
enunciado. Em sua fala de abertura do Conciliábulo de Angers, Jacques-Alain Miller diz que
no “primeiro tempo, se reconhece que há significante, que isso quer dizer algo. No segundo
tempo é para enunciar o que isso quer dizer, e quando não se pode, é o enigma” (1996-
1997b/2005, p.21). Lacan denomina essa pura intencionalidade do significante de significação
de significação e determina a certeza como seu produto, pois quanto menos se sabe sobre o
que o significante quer dizer, mais se sabe que ele quer dizer algo, apesar da impossibilidade
de enunciá-lo. Portanto, a impossibilidade que impede a passagem do significante ao
significado na psicose revela a emergência do Outro barrado, /A , sob a forma de fenômenos
de angústia.
O S1 isolado coloca em xeque a articulação entre significante e sentido, pois para que
haja significação é necessária a articulação significante. Isso permite Miller concluir que o S2
enquanto saber é um delírio, cuja função de defesa diante do real do gozo evidencia a verdade
explícita no texto delirante. No “Curso de Orientação Lacaniana, III, 10. Todo mundo é
louco” (2007-2008, 11/06/2008, inédito), Miller explicita a relação entre saber e delírio por
meio de um matema:
164
Ele pode ser lido da seguinte forma: o delírio já começa com o saber, quando o
significante sozinho, S1, se articula a um outro significante, S2, produzindo o efeito de
significação, s, que é equivalente ao delírio, dl.
A frase de Miller “todo saber é delírio e todo delírio é um saber” (1995/2005, p.94),
contida naquela conferência permite elucidar o aforismo todos loucos:
O binômio fenômeno elementar-delírio responde à tentativa de diferenciar elementos que por sua vez formam parte do discurso comum; são elementos comuns a todo ser falante. Essa é a forma de generalizar o conceito de delírio. Dado que o eu de cada um é delirante, um delírio pode ser considerado uma acentuação do que cada um leva em si e que é possível escrever como: deliryo (IBID., p.81, grifo do autor; tradução nossa)71.
O universal do delírio evidencia que o laço com o real só é possível por meio da
função interpretativa de S2. Diante disso, “o psicótico se apresentaria como o delirante que
não retrocede diante da elaboração de saber [...], com o elemento de delírio que sempre há
nessa invenção”72 (IBID, p.94). Ao contrário, o neurótico, apoiando-se na substituição
significante própria ao retorno do recalcado, traz consigo o S2 de que necessita para decifrar e
entender os enigmas sem perplexidade. Ou seja, o que no neurótico surge naturalmente,
implica um trabalho de elaboração de saber não tão natural nas psicoses. Podemos lembrar o
que foi dito anteriormente sobre a invenção de todo falasser, quer seja neurótico ou psicótico.
Nas palavras de Miller (IBID., p.93):
Inventamos o operador especial, operador de perplexidade, e assinalamos que é a situação normal do ser humano enquanto efeito do significante, o que leva todo sujeito a se enfrentar, a ter que decifrar um significante. Isso é coerente com a teoria de Lacan que indica que a estrutura se revela na psicose e que devemos dar conta do véu neurótico (tradução nossa)73.
71 O trecho correspondente na tradução é: “El binomio fenómeno elemental-delirio responde al intento de diferenciar elementos que a su vez forman parte del discurso común; son elementos comunes a todo ser hablante. Esta es una forma de generalizar el concepto de delirio. Dado que el yo de cada uno es delirante, un delirio puede ser considerado una acentuación de lo que cada cual lleva en sí, y que es posible escribir como: deliryo”. 72 O trecho correspondente na tradução é: “[...] el psicótico se presentaría como el delirante que no retrocede ante la elaboración [...] con el elemento de delírio que hay siempre en esta invención”. 73 O trecho correspondente na tradução é: “Inventamos el operador especial, operador de perplejidad, y señalamos que es la situación normal del ser humano en tanto efecto de significante, por cuanto todo sujeto se enfrenta a tener que descifrar un significante. Esto es coherente con la teoría de Lacan que indica que la estructura se revela en la psicosis, y que debemos dar cuenta del velo neurótico”.
165
O recurso ao Nome-do-Pai é o grande diferencial das neuroses no que diz respeito às
recorrentes interpolações da experiência enigmática e da perplexidade. Vale notar que, no
“Suplemento topológico a ‘Uma questão preliminar...’” (1979/1996, p.124), Miller explicita
uma equivalência entre metáfora paterna e metáfora delirante. Ambas se fundamentam na
lógica do significante que, em sua articulação, engendra uma estrutura de funcionamento
fechada, disjunta da realidade. Portanto, o próprio funcionamento da metáfora gera um saber,
S2, que permite entender o delírio generalizado.
No texto “Lacan com Joyce” (1996/2010, p.54-55), Miller resgata o matema da
metáfora paterna, NP(x), para elucidar que, no segundo ensino de Lacan, o Nome-do-Pai
deixa de ser um nome próprio e se torna apenas um predicado definido na ordem simbólica,
um elemento com a propriedade de ser Nome-do-Pai, dentre muitos outros que podem
funcionar como tal. Desta pluralização Miller recolhe outras consequências. Alguns anos
depois, ao investigar sobre as psicoses ordinárias, ele acrescenta que o Nome-do-Pai como
predicado “é um substituto substituído [...] uma espécie de make-believe do Nome-do-Pai, um
compensatory make-believe (um fazer-crer compensatório) do Nome-do-Pai, um CMB”
(2008/2010, p.12), função de compensação que aponta à universalidade do delírio.
De forma que o aforismo “todo mundo é louco, ou seja, delirante”, tem um estatuto de
bússola orientadora da leitura do último ensino de Lacan. A presença-ausência do Nome-do-
Pai indica uma direção na clínica estrutural e demarca de forma clara a neurose e a psicose.
Ao contrário, este aforismo da atualidade evidencia um não-orientável desde a ordenação do
Nome-do-Pai e permite continuidade entre as estruturas, na medida em que a resposta singular
diante do indizível é uma construção, ou seja, não passa de um delírio. Isto marca uma
reviravolta em relação à tese inicial da metáfora paterna (MILLER, 2007-2008, aula de
04/06/2008, inédito).
Marcus André Vieira, em “Da ironia à invenção” (2009, p.102), observa que o
significante delirante inscrito naquele aforismo aponta ao que Freud chama de defesa:
“assume-se que todos os discursos que nos dão vida são defesas do ponto de vista do real”.
Retomando a leitura de Miller, este autor avança dizendo que é preciso ironizar este fato,
afinal, “não há ponto de vista do real”. Ou seja, ao utilizar a palavra para fazer existir o que
não há, todo discurso evidencia o estatuto de ficção da realidade que ele cria, produzindo um
efeito de generalização do delírio.
Entendemos que o aforismo “todo mundo delira” é uma provocação que aponta para o
que cada falasser mantém como verdade, conceitualizado nos escritos de Lacan por meio de
os conceitos de lalíngua e sinthoma, além do que pode ser deduzido desses escritos como
166
foraclusão generalizada. Isso porque, todo ser falante, ao recorrer ao simbólico para articular
o real inserido em sua constituição, elabora um sentido que desliza infinitamente na
articulação significante. Tal infinitização demonstra que a referência última é vazia e que a
constituição de sentido nada mais é que um delírio.
Nessa via, a função do sintoma como modo de gozo singular se torna um ponto
decisivo da experiência analítica. Na medida em que sentido e real se opõem, o delírio é
apreendido em uma positividade, pois delirar equivale a estar distante do real. No texto
“Clínica irônica” (1988/1996, p.199), Miller adverte: “diante do louco, diante do delirante,
não se esqueça de que você é, ou de que foi, analisando, e que, você também falava do que
não existe”.
Ao tomarmos o axioma lacaniano “Todo mundo é louco, ou seja, delirante”, é preciso
esclarecer que o “todo mundo”, ao invés de indicar o normativo a todos, ao contrário, marca o
que há de mais íntimo em cada um, pois não há sentido comum que sirva a todos. No livro
Perspectivas dos Escritos e Outros escritos de Lacan (2008-2009/2011, p.84-85), Miller
explica que, para enfatizar o que escapa ao comum, ou seja, o “singular em seu absoluto”,
Lacan parte da escrita de Joyce e inventa o sinthoma. Este conceito inscreve o que está
situado para além de toda ficção discursiva, visto que ele é um resto incurável e uma invenção
inédita de cada um frente ao real. Miller prossegue: “Lacan acreditou ter percebido e
mostrado isto: há sinthoma em cada um”.
Contudo, tal como definimos no item 2.3.3 dessa Tese, há diferentes apresentações do
sinthoma. Tal como Joyce, alguns se identificam ao próprio sinthoma a ponto de o singular
irredutível apagar o particular: “Joyce encarna o sinthoma”, diz Lacan em O seminário, livro
23 (1975-1976/2007, p.85). No entanto, outros recobrem o sinthoma com insígnias retiradas
do senso comum, o que faz com que a singularidade não seja tão evidente.
Podemos exemplificá-lo com Lol V. Stein, personagem do livro O Deslumbramento
(Le ravissement de Lol V. Stein) (1964/1986), de Marguerite Duras. No terceiro capítulo da
dissertação de Mestrado intitulada “Sobre as ressonâncias do amor na clínica psicanalítica”
(TIRONI, 2006), trabalhamos esse livro articulado ao texto de Lacan “Homenagem a
Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein” (1965/2003). O que importa aqui é a
descrição de Duras sobre a forma como Lol se ocupava da organização da casa, estipulando
horários rígidos e uma arrumação impecável. Os cômodos estavam arrumados como vitrines
de lojas e o jardim era como todos os daquela cidade. Lol imitava o que via, repetindo “todos
os outros, o maior número possível de outras pessoas” (DURAS, 1964/1986, p.24).
167
Em O seminário, livro 23, Lacan (1975-1976/2007, p.15) aborda a diferença entre a
identificação com o sinthoma, como fez Joyce, e a identificação com o social, como em Lol
V. Stein, nomeando-os de sinthoma herético e de sinthoma ortodoxo, respectivamente. Vale
notar que Lacan já havia falado sobre isso, mesmo que em outros termos. Em O seminário,
livro 3: as psicoses (1955-1956/1997) ele lembra que a filosofia já se interessava pela questão
da loucura e que Pascal fez com que se levasse a sério: “sem dúvida há uma loucura
necessária, que não ser louco da loucura de todo o mundo seria ser louco de uma outra forma
de loucura” (IBID., p.26).
Podemos articular essas duas formas de apreensão do sinthoma ao que Miller fala
sobre “A salvação pelos dejetos”74. Ele assinala a diferença entre a salvação pelos ideais
clássicos, pelo que se eleva e resplandece enquanto glória da forma, como a virtude, e a
salvação pelos dejetos, pelo que cai, caput mortuum, na medida em que o dejeto é in-forme,
“ele prevalece sobre uma totalidade da qual ele é só um pedaço, uma peça avulsa”
(2009/2010a, p.20).
Um dos pontos importantes de sua fala é a consideração assinalada por Lacan, a de
que a paranoia, além de ser uma patologia, é também a essência de toda personalidade: “é
impossível ser alguém sem ser paranoico” (IBID., p.22). Nesse sentido, Miller fala sobre a
paranoia de uma forma mais ampla, presente no sujeito desde o estádio do espelho. E
acrescenta que essa “paranoia moderada” repercute no laço social: “se o laço social é por
essência paranoico, então, a dificuldade de se inserir é da ordem da debilidade. Isso se
chamarmos de debilidade o deslizamento subjetivo do discurso até à posição fora do discurso
que a psiquiatria fixou com o termo ‘esquizofrenia’” (IBID., p.23).
Na comunicação apresentada na primeira noite preparatória para o V ENAPOL,
ocorrida em 23/09/2010, em Buenos Aires, Leonardo Gorostiza extrai “Nueve puntuaciones
sobre ‘La salvación por los desechos’” (2010, p.1). Ele afirma que a sublimação é a via pela
qual a cifragem, ou seja, o singular de cada um, pode ser conectado ao discurso do Outro e
integrado ao laço social. Esse mecanismo permite que o dejeto seja elevado à dignidade da
Coisa, tal como Lacan elabora em O seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-
1960/1997). Além de poder ser inscrito no campo do Outro, a cifragem ganha o estatuto de
salvação, na medida em que ela é o meio de escape à “paranóia moderada” comum a todos.
Isso permite Gorostiza resumir que a salvação não se dá pela via dos ideais, mas pela
74 Conferência pronunciada em 2009, durante o IV Encontro Europeu do Campo Freudiano (PIPOL 4), realizado em Barcelona sob o título “Clínica y pragmática de la (Des) Inserción en psicoanálisis”.
168
cifragem da loucura que cada um inventou ao se confrontar com o troumatisme da não relação
sexual e que faz do falasser “todos delirantes”.
Em “Clínica irônica” (1988/1996, p.191), Miller havia enunciado que o universal
embutido na generalização do delírio, “todos delirantes”, atesta que a normalidade também é
delirante, seja qual for a estrutura clínica a que se faz referência, pois há uma foraclusão que
se coloca para todo ser falante e em relação à qual todo discurso é defesa contra o real. Em
“A psicose no texto de Lacan” (1995/1999), ele avança: “chamo delírio uma montagem de
linguagem construída sobre um vazio. E digo: todo mundo delira. Essa é a perspectiva que
chamo de delírio generalizado”. Na décima oitava lição do “Curso de Orientação Lacaniana,
III, 10. Todo mundo é louco”, Miller (2007-2008, 11/06/2008, inédito) afirma que este
aforismo significa dizer a mesma coisa que o sujeito é feliz.
Éric Laurent retoma essa questão no texto “O tecido da fantasia (ou A culpabilidade
do fantasma)” e a exemplifica dizendo que a felicidade é um elemento privilegiado no delírio
da vida cotidiana, pois ele é um ideal contemporâneo que “fala para todos e quer dizer tudo”
(2008/2009a, p.27), tal como falamos acima sobre o S1 enquanto significante elementar.
Em “O delírio de normalidade” (2010/2011, p.102), esse mesmo autor ressalta que a
felicidade é um modelo proposto pelo discurso do mestre contemporâneo e implica um gozo
classificatório marcado pela quantificação. De modo que, esses ideais do mestre
contemporâneo e o discurso da ciência, surgem como poder da razão cognitiva. E incidem
sobre a língua comum encobrindo o sintoma, que se revela como o singular do sujeito.
Entendemos que, se lalíngua é o elemento que denota o singular do falasser, então a proposta
do ideal da ciência é a tentativa de adequação de lalíngua ao discurso comum, como se isso
fosse possível.
No Curso “Todo mundo é louco” (2007-2008, aula de 16/01/2008, inédito) Miller diz
que o discurso da quantificação só pôde exercer sua força em função do desenvolvimento do
discurso da ciência. Nesse contexto se pode compreender o dito de Lacan em seu ultimíssimo
ensino: a psicanálise deve ser uma prática sem valor, ou seja, ela é uma prática que deve
escapar à escala de valores e ao discurso da quantificação. “Tudo isso, porém, repousa sobre o
fato de que atualmente não se está mais certo de que algo exista a não ser se esse algo for
cifrável”, pois a cifra é convocada a recobrir todos os aspectos da existência, ela vale como
garantia do ser.
Nesse mesmo curso, na aula de 14/11/2007, Miller havia articulado os efeitos do
discurso da ciência sobre o objeto a, objeto que consiste na produção do desejo de cada um e
que tem um endereçamento específico. A partir do momento em que o discurso do capitalista
169
associado ao discurso da ciência sobredeterminou a civilização, há uma produção do objeto a
baseada no gozo e caracterizada pela indiferenciação do objeto em prol de sua numeração, da
série de repetição do modo de gozar que, muitas vezes, aparece sob o aspecto da adição. Ele
funciona como tampão, um “tapa furo” de algo que não se pode fechar e em relação ao qual o
sujeito não pode se defender. Apesar de terem uma mesma estrutura fundamental, o objeto a
tampão nada tem a ver com o desejo. Isso o leva a concluir que “há um defeito de construção
na espécie humana. Nós o chamamos castração, é seu nome clássico, inteiramente
fundamentado, mas podemos generalizá-lo. Alguma coisa foi mal trabalhada na espécie
humana”.
No recente livro intitulado Loucuras, sintomas e fantasias na vida cotidiana, Éric
Laurent (2008/2011, p.51-52) enfatiza o que escapa ao empuxo à cifra do discurso da ciência
contemporânea:
Quanto mais forem globalizados os ideais da civilização, quanto mais comuns os espaços de civilização que antigamente estavam separados, quanto mais for proposta uma norma para todos em um utilitarismo sem limite, mais precisaremos lembrar que todo mundo é louco. Isso significa que cada um é um obstáculo à norma de todos, que existe sempre um “x”, que é obstáculo ao “para todos” e isso é cada um de vocês, cada um constitui uma exceção à norma.
Ao abordar o “delírio da normalidade”, Laurent (IBID., p.45) ressalta que diante dos
sintomas contemporâneos e dos novos ideais de normalização do Outro social, a psicanálise
aplicada teve grande êxito, a ponto das novas normas se tornarem um sintoma dentro do
próprio Campo freudiano. A direção do tratamento colocava acento na fixação de um
significante mestre e no efeito de ordenação que ele causava, em detrimento do irredutível do
sintoma. Na primeira lição do seminário “Coisas de fineza em Psicanálise” – publicado como
Perspectivas dos Escritos e Outros escritos de Lacan (2008-2009/2011, p.13) – Miller
denuncia que a tentativa de seduzir o mestre fez com que os psicanalistas ficassem seduzidos
pelos novos ideais contemporâneos.
Em Loucuras, sintomas e fantasias na vida cotidiana (2008/2011, p.52-53), Laurent
ressalta que a experiência da análise demonstra um ponto que não pode ser resolvido, pois
“cada um só acredita profundamente no seu sintoma”. Para acessar o sintoma como real, é
preciso que cada um se defenda do delírio da normalidade, mostrando a inexistência da saúde
mental, do laço social e da psicopatologia. Portanto, na época da foraclusão generalizada, o
fundamental é a forma como cada sujeito inventa a suplência que o mantém estabilizado,
ampliando as probabilidades de amarração dos três registros. Portanto, na clínica do delírio
generalizado, o sintoma é definido não apenas pelos efeitos de significação produzidos pela
170
articulação significante, mas também como uma escritura da maneira como cada um goza do
inconsciente, enquanto o inconsciente o determina (IBID, p.91).
Na chamada para o XVIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano intitulado “O
sintoma na clínica do delírio generalizado” – realizado em São Paulo nos dias 19, 20 e 21 de
novembro de 2010 –, Rômulo Ferreira da Silva e Simone Souto dizem que o sintoma, em seu
cerne, é um modo de gozo, uma satisfação que vem substituir aquela concernente à relação
sexual, se ela existisse. A inexistência da relação sexual implica, portanto, que toda
construção sintomática se baseia no fato de que no momento fundador do sujeito algo fica
foracluído de qualquer possibilidade de simbolização. Nesse sentido, o sintoma é uma solução
substitutiva que diz respeito à forma contingente que a inexistência da relação sexual toma
para cada um, ou seja, ele é uma maneira singular que cada sujeito inventa para abordar o
real.
Na última aula do Curso “Todo mundo é louco”, em 11/06/2008, Miller conclui esse
aforismo aponta para o fato de que o analista deve escutar “o que se vocifera do lugar de
Mais-Ninguém”, nome do sujeito barrado, ∃, com um acento particular, a entonação de sua
relação pátria com o gozo. Ele ressalta que a vociferação é diferente do enunciado, que está
submetido à matriz binária enunciado-enunciação. Mais ainda, ela excede à divisão deste
binário, pois a tem como indivisível. “A vociferação não interrompe, diferentemente do
enunciado, não se coloca à distância de ‘quem o diz’ e, quando não há de ‘quem’, ‘de onde
isso se diz’, isto é, ela inclui seu ponto de emissão”.
Para concluir diremos que o delírio generalizado restitui a humanidade ao psicótico,
pois ele retira a loucura da posição de déficit e a inclui no universal, a partir de um modo
original de considerar a linguagem. Na clínica do delírio generalizado, o delírio e o sinthoma
se generalizam como respostas frente à inexistência da relação sexual. Mas vale destacar uma
diferença. Se o primeiro tenta fazer a relação existir pela via da linguagem tomada na vertente
do sentido, o segundo, por sua vez, em um movimento contrário ao sentido, se serve da
linguagem para revelar a impossibilidade de escrever a relação sexual. Ao visar o gozo opaco
e sem sentido do sinthoma, a experiência analítica revela que, frente à não-relação, todo
sentido é semblante. Portanto, a direção do tratamento visa permitir ao sujeito aceder aos
significantes primordiais que fazem de sua vociferação uma diferença absoluta.
171
4 CONCLUSÃO
Concluir é de certa forma retornar à idéia inicial sob um novo ângulo. Durante a
escrita de uma Tese as noções vão se tornando mais consistentes, alguns elementos disjuntos
se articulam de forma inédita, os conceitos ganham um novo sentido e vislumbra-se um saber
que, até então, faltava. Não um saber pleno, mas algo da ordem simbólica que enquadra o
exigido pela academia e permite uma escrita orientada, sem excluir o estilo do autor.
Em um movimento de retroação ao que foi escrito, percebemos que o aforismo
elaborado por Lacan em seu último ensino, “Todo mundo é louco, ou seja, delirante”, esteve
presente durante a escrita da Tese, de forma que a ordem simbólica acima mencionada não
passa de um delírio de saber. Em torno dele teceremos algumas considerações, certamente
provisórias, pois não se trata de um saber acabado.
Na Introdução ao tema das psicoses ordinárias dissemos que a desordem que se
desencadeia pela globalização traz à discussão a singularidade embutida naquele aforismo
lacaniano. As redes sociais, a hiperatividade e a depressão, a relação do sujeito com o objeto
tal como acentua a prática toxicomaníaca, a ânsia de um corpo perfeito e as compulsões
produzidas pela alimentação e outros, comprovam que, mesmo quando a ciência e o
capitalismo impõem um modo de fazer, cada um só poder responder à sua própria maneira.
Ou seja, a singularidade não cessa de se inscrever pelo modo com que cada um – seja pelos
significantes-mestres tradicionais, seja por uma invenção inédita – encontra uma maneira de
suportar as incidências da pulsão de morte. O sujeito deve se haver com ela e encontrar um
saber-fazer com o real.
Aquele aforismo também esteve presente no trabalho de pesquisa do primeiro capítulo,
quando descobrimos a possibilidade de interpretá-lo em algumas passagens de textos
freudianos. Por mais que Freud não tenha elaborado o conceito de foraclusão generalizada,
em alguns momentos ele estava bastante explícito em sua escrita, e em outros tivemos que
depreendê-lo, a posteriori, a partir do que pudemos articular desde o ensino de Lacan. Para
além disso, constatamos que a enunciação da frase de Picasso, tantas vezes repetida por Lacan
– “eu não procuro, eu acho” –, produziu efeito na investigação.
Freud diz claramente que o sonho é uma psicose com todos os despropósitos que ela
supõe. Apesar de serem diferentes no fato de o sonho ter uma breve duração, ser dotado de
uma função útil e terminar pelo desejo do sujeito, sonho e psicose são equivalentes na medida
em que ambos são providos de significação. Em diversos momentos Freud ressalta a presença
172
de delírios na estrutura neurótica, por exemplo, quando o sujeito tem a sensação de estar
sendo observado e de sentir que os pensamentos estão sendo escutados por outras pessoas. Ele
inscreve uma loucura ordinária nos neuróticos, dizendo que a fronteira entre os estados
normais e os patológicos é, de certa forma, convencional, o que permite que cada um a
atravesse várias vezes no decorrer de um mesmo dia. Isso retira a loucura exclusivamente do
campo das psicoses e reduz a normalidade a uma mera ficção, visto que o eu do neurótico se
aproxima ao do psicótico em maior ou menor grau.
Apesar de Freud considerar a neurose como base da estrutura psíquica, ele admite um
núcleo paranoico em todo ser humano, pois quando o sujeito corrige algum aspecto
insuportável por uma formação alucinatória de desejo, e a introduz na realidade, ele se
comporta como um paranoico. Não devemos esquecer que Lacan define o tratamento
psicanalítico como uma paranoia dirigida. De forma que o “todo mundo delira” é algo que
tranquiliza e mobiliza o psicanalista na direção do tratamento.
Por outro lado, podemos também intuir a foraclusão generalizada na forma com a
qual Freud descreve o processo psíquico primário. Trata-se de um processo cuja energia, por
assim dizer, livre, indica a alucinação em estado bruto, irracional, desregulada, campo das
pulsões desenfreadas e do puro gozo.
Freud define o delírio como uma tentativa de cura, ou seja, como uma forma de
reconstrução da realidade através da linguagem. Se o consideramos a maneira de suprir a
ausência da referência simbólica, designada por Lacan como Nome-do-Pai, o delírio
evidencia o estatuto ficcional da linguagem. Portanto, “todo mundo é louco” não só generaliza
o aspecto de artifício da linguagem no que diz respeito à realidade, mas também convoca uma
clínica ordenada desde uma referência vazia, nomeada com o aforismo “a relação sexual não
existe”.
A inexistência da relação sexual implica que toda construção sintomática se baseia em
algo foracluído de qualquer possibilidade de simbolização. O sintoma constitui a resposta
singular que cada falasser inventa diante da forma contingente que essa inexistência toca em
cada um. Ele é uma solução substitutiva da satisfação concernente à relação sexual, se ela
existisse.
Portanto, esse aforismo modifica a compreensão do conceito de sintoma na
experiência analítica, se levamos em conta a primeira formalização lacaniana a partir de seu
retorno a Freud. Diferente da psiquiatria que busca extirpar o delírio com uma medicação de
última geração, o analista serve de testemunha à possibilidade de o sintoma ser a via de obter
173
uma resposta para o funcionamento psíquico minimamente estabilizado, uma amarração entre
real, simbólico e imaginário que recoloca o sujeito na vida, no trabalho e no amor.
Durante a Tese, articulamos a teoria psicanalítica a alguns fragmentos clínicos.
Extraídos da Obra de Freud, Daniel Paul Schreber e Sergei Pankejeff, conhecido como O
Homem dos Lobos, e do ensino de Lacan, Gerard Primeau e James Joyce. Eles nos serviram
para ilustrar a forma como o singular se apresenta no sujeito que maneja a linguagem de
diferentes formas, em busca de um discurso que venha fazer semblante face ao insuportável
do real, mesmo que não esteja instituído pela normatização do Nome-do-Pai.
Schreber, por exemplo, parte da imposição de uma doutrina educacional rígida e
implacavelmente moralista imposta pelo pai para extirpar o corpo de toda manifestação da
sexualidade. A estrutura subjetiva marcada pela foraclusão encontra no delírio de
transformação em mulher uma forma de fornecer sentido aos remanejamentos imaginários
que vêm em socorro à desarticulação no plano simbólico. Ele apresenta o singular que lhe é
próprio na construção da metáfora delirante Mulher de Deus, que permite uma reorganização
parcial de seu mundo a ponto de reaver a posse dos direitos que havia perdido com sua
internação.
Por sua vez, Sergei Pankejeff mostra o que há de incomparável em relação ao
comum. Freud havia isolado o significante lobo, objeto condensador de gozo e causa de
horror para o sujeito. De forma que Sergei, após concordar com a publicação de seu caso
clínico, abandona o patronímico e passa a se nomear pelo codinome que designa seu modo de
gozo, um significante que não equivale ao Nome-do-Pai. Essa identificação social fornece
alguma estabilização, na medida em que, apesar de a sintomatologia psicótica não cessar, ele
não desencadeia a psicose nos moldes de uma psicose extraordinária.
A leitura realizada por Lacan a partir de Joyce comporta a invenção do conceito de
sinthoma para designar o singular, e o distingue como ortodoxo e herético. No primeiro, tal
singularidade é recoberta por um sentido partilhado que dissimula o sinthoma, enquanto que
no segundo, isso não acontece. Joyce escapa do comum e se identifica com essa segunda
opção. A relação entre sinthoma e arte, o desejo de Joyce ser um artista famoso, o nome
próprio e o nome comum, as epifanias e os enigmas que caracterizam sua escrita, são pontos
privilegiados para se constatar a loucura enquanto uma invenção face à carência paterna.
Além disso, Lacan constata que Joyce encontra um nome de gozo com valor de
nomeação que faz laço, pois denota um savoir-faire com a linguagem. Ao operar sobre os
efeitos de sentido das palavras de modo a fazer surgir um vazio de significação, a arte de
Joyce atinge o sintoma para além da dimensão simbólica. A psicose se mantém compensada
174
pela escrita, pela forma que utiliza as palavras para se defender de seu traumático encontro
com a língua. Assim, Lacan conclui que a escrita de Joyce é um modelo dos modos com que o
falasser lida com o caráter de imposição das palavras, com a exterioridade original da
linguagem e com a angústia causada pelas significações enigmáticas naquele que fala.
Por fim, o caso de Gérard Primeau, entrevistado por Lacan em uma apresentação de
pacientes, evidencia uma psicose extraordinária na qual a consistência do sistema delirante, a
alucinação verbal, os sentimentos de influência, as frases interrompidas, por exemplo, não
podem ser confundidos. Tanto o nome Gérard Primeau, codinome obtido desde a
decomposição de Geai Rare Prime Au, quanto os diversos neologismos decorrentes da fala
imposta “Você matou o passarinho azul”, mostram o singular de Gérard em relação à
utilização da linguagem de forma singular, mas ela não permite que a psicose se estabilize, tal
como ocorre com Joyce.
O aforismo “todo mundo é louco, ou seja, delirante” evidencia que a resposta singular
diante do indizível é uma construção e não passa de um delírio. Ele aponta para o que cada
falasser mantém como verdade, conceitualizado nos escritos de Lacan por meio de os
conceitos de lalíngua e sinthoma, além do que pode ser deduzido como foraclusão
generalizada. Isso porque todo ser falante, ao recorrer ao simbólico para articular o real
inserido em sua constituição, elabora um sentido que desliza infinitamente na articulação
significante. Tal infinitização demonstra que a referência última é vazia e que a constituição
de sentido nada mais é que um delírio.
Se no decorrer desta Tese afirmamos, com a orientação lacaniana, que o sintoma é
incurável, isso quer dizer que não apenas ele se torna um ponto decisivo na experiência
analítica, como também é apreendido na dimensão da invenção e da positividade, na medida
em que se configura como uma solução. Para além de toda ficção discursiva, essa invenção
inédita frente ao real impede que o sujeito se inclua totalmente no delírio da normalidade, pois
algo da escritura do gozo inconsciente não é adequado ao senso comum.
A interpretação do analista aborda o sintoma na vertente de o efeito de sentido e em
seu valor de gozo. Por outro lado, a face antinômica do sintoma será apreendida pelo
equívoco e por meio da função da letra. O incurável mobiliza o valor de gozo do objeto,
retirando-o da fixidez anterior e devolvendo-lhe a mobilidade.
Para concluir diremos que o delírio generalizado restitui humanidade ao psicótico, pois
ele retira a loucura da posição de déficit e a inclui no universal, a partir de um modo original
de considerar a linguagem. É no quinhão da loucura de cada um que reside a aposta da
psicanálise de que se possa saber fazer com a inclassificável diferença que, para além de toda
175
ficção a ser construída no decorrer de uma análise, permanece como um resto incurável a
partir do qual o sujeito poderá fazer de sua singularidade algo inédito.
Os casos inclassificáveis viabilizaram Miller propor a categoria de psicose ordinária.
Neles, não se trata somente de distinguir o déficit simbólico, os fenômenos elementares e o
delírio, de acordo com os procedimentos de outrora. O dispositivo analítico na atualidade
exige que o analista esteja atento aos efeitos clínicos de amarração e de desamarração dos
registros do real, simbólico e imaginário, bem como a estranheza do sujeito em relação ao
corpo. O fazer do analista é de sutura, de emenda, e cabe ao sujeito costurar seu nó desde a
radical diferença própria a cada um.
Assim, a categoria de psicose ordinária quando associada ao aforismo lacaniano “todo
mundo é louco”, explicita de forma consistente que as amarrações são exatamente as
singularidades incuráveis que não podem ser absorvidas no paradigma do Nome-do-Pai,
mesmo que em muitos casos elas possam ser confundidas.
Para finalizar, recorremos à conexão psicanálise-arte, no campo específico da
literatura, com o intuito de incluir alguns exemplos. Em uma passagem de Grande Sertão:
Veredas, escrito por Guimarães Rosa, o personagem Riobaldo, jagunço que roda com seu
bando o sertão no norte de Minas Gerais, explicita um modo de amarração na ficção literária.
Diz ele: “O que mais penso, testo e explico: todo mundo é louco. O senhor, eu, nós, as
pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer,
desdoidar. Reza é que sara loucura”.
Um novo exemplo do “todo mundo é louco” é extraído do texto de Marcia Mello de
Lima intitulado “Sobre o ‘Diário’ de Jean Genet e a ‘Divina’ fantasia”. Genet constrói uma
invenção que não funciona e se depara com um real impossível de suportar. Tenta encarnar
“Divina”, com a qual se identifica no livro Nossa Senhora das Flores, e segue a sugestão do
amante, de ganhar dinheiro para ambos, apresentando-se em um bar vestido de mulher. Nas
palavras de Genet: “Para que fosse menos brutal a ruptura com o mundo de vocês, debaixo da
saia conservei a minha calça”. Acontece que não se ajeita bem, tropeça e as pessoas riem. Em
desespero, Genet continua: “Fui até o mar e nele afoguei a saia, o corpete, a mantilha e o
leque [...] Eu me proibia”.
No entanto, existem invenções que funcionam. Por que não mencionar a solução
encontrada pelo personagem de Machado de Assis no conto “O espelho”, quando, vendo-se
sozinho, sem a família e os escravos que o chamavam de “senhor alferes”, ele começa a sentir
o fenômeno típico da despersonalização. A solução é vestir o uniforme e sentar diante do
espelho com o objetivo de encontrar “a alma exterior”. Seguindo Machado de Assis neste
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conto magistral: “Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para o outro,
recuava, gesticulava, sorria, e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente
animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-
me diante do espelho, lendo, olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra
vez. Com este regímen pude atravessar mais seis dias de solidão, sem os sentir...”.
Podemos ainda citar o exemplo de uma invenção que Lacan intitula ser a três, onde o
personagem de Marguerite Duras, em seu livro O deslumbramento (Le ravissement de Lol V.
Stein), é arrebatada por aquilo que ela própria constrói. Conforme escrevemos em 2008, em
um trabalho intitulado “O que a arte ensina sobre as psicoses ordinárias”, Lol V. Stein
encontra uma solução para a construção de um corpo por meio de as funções do olhar e do ser
a três, teorizadas por Lacan. As duas cenas-chaves descritas por Duras expressam a
fascinação de Lol, sobretudo a segunda, onde ela acaba sendo arrebatada e reduzida a uma
mancha no campo de centeio.
Concluímos que, seja pela religião, seja pelo disfarce mascarado e pelo ridículo, seja
pela imagem construída no espelho, seja pelo ser a três, e outras tantas possibilidades que a
clínica do cotidiano e a literatura nos comprovam, o importante é a forma que cada um
encontra de abordar o real que, de tempos em tempos, pelos encontros contingentes que a vida
apresenta, aparece despido de suas vestimentas simbólico-imaginárias.
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REFERÊNCIAS
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