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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Psicologia Angélica Cantarella Tironi O que as psicoses ordinárias ensinam? Rio de Janeiro 2012

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades

Instituto de Psicologia

Angélica Cantarella Tironi

O que as psicoses ordinárias ensinam?

Rio de Janeiro

2012

Angélica Cantarella Tironi

O que as psicoses ordinárias ensinam?

Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Orientador (a): Prof.a Dra. Marcia Mello de Lima

Rio de Janeiro

2012

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A

Autorizo apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese. _________________________________ ______________________ Assinatura Data

A663 Tironi, Angélica Cantarella.

O que as psicoses ordinárias ensinam? / Angélica Cantarella Tironi. – 2012.

189 f.

Orientadora: Marcia Mello de Lima. Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de

Janeiro, Instituto de Psicologia.

1. Memória social – Teses. 2. Memória autobiográfica – Teses. 3. Aragão, Maria, 1910-1991 – Habilidades sociais. 4. Psicologia social – Teses. I. Vilela, Ana Maria Jacó. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III. Título.

rc CDU 616.89

Angélica Cantarella Tironi

O que as psicoses ordinárias ensinam?

Tese apresentada, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós Graduação em Psicanálise, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Pesquisa e Clínica em Psicanálise.

Aprovada em 25 de julho de 2012. Banca Examinadora:

___________________________________________ Prof.ª Dra. Marcia Mello de Lima (orientadora) Instituto de Psicologia - UERJ _____________________________________________ Prof. Dr. Marcus André Vieira Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro _____________________________________________ Prof.ª Dra. Vera Lopes Besset Universidade Federal do Rio de Janeiro _____________________________________________ Prof.ª Dra. Ana Cristina Figueiredo Instituto de Psicologia - UERJ _____________________________________________ Prof.ª Dra. Heloisa Caldas Instituto de Psicologia - UERJ

Rio de Janeiro

2012

A arte de viver da fé, só não se sabe fé em quê.

“Alagados” – Os Paralamas do Sucesso

AGRADECIMENTOS

À Marcia Mello de Lima, que me acompanha há mais de uma década no difícil

exercício de escrita. Obrigada pelo seu carinho e por me orientar a encontrar o meu próprio

estilo.

À Heloisa Caldas, pela profícua transferência de trabalho em mais um desafio.

À Vera Besset, pelo espaço de discussão na UFRJ que me permitiu avançar em

direção à Tese.

À Ana Cristina Figueiredo e ao Marcus André Vieira, pela disponibilidade em ler este

trabalho e acrescentá-lo com importantes considerações.

À minha família, que me faz entender a positividade da frase de Lacan “Todo mundo é

louco, ou seja, delirante”. À minha mãe, com quem aprendi o prazer pela literatura, ao meu

pai, pelo amor à transmissão, e ao meu irmão, pelos olhos de orgulho e curiosidade que me

fazem ir adiante.

Aos amigos Carla Panetti, Emerson Moraes, Magda Biassutti Delecave, Maurício

Scalzilli de Souza, Rodrigo Simas e Sandra Falcucci, que cuidaram de nossa amizade

enquanto estive absorvida pelo esforço desta Tese.

Aos amigos e colegas da Escola Brasileira de Psicanálise, pela transmissão da

orientação lacaniana. Em especial, à Elisa Monteiro, Vera Avelar, Maria Ângela Maia e Inês

Autran, por me ensinarem a trabalhar com textos. E para Lenita Bentes, Eliana Bentes, e

Nelson Riedel, pelo Cartel sobre psicose ordinária que me ajudou muito na escrita da Tese.

À FAPERJ, pela bolsa de doutorado que facilitou o empenho em meus estudos.

Enfim, à Lêda Guimarães, pelo apreço ao “Mais-Ninguém”, que me permite percorrer com

segurança o singular do meu delírio.

Estranha relação é a que temos com as palavras. Aprendemos de pequenos umas

quantas, ao longo da existência vamos recolhendo outras que vêm até nós pela instrução, pela

conversação, pelo trato com os livros, e, no entanto, em comparação, são pouquíssimas

aquelas sobre cujas significações, acepções, e sentidos não teríamos nenhumas dúvidas se

algum dia nos perguntássemos seriamente se as temos. Assim afirmamos e negamos, assim

convencemos e somos convencidos, assim argumentamos, deduzimos e concluímos,

discorrendo impávidos à superfície de conceitos sobre os quais só temos ideias muito vagas,

e, apesar da falsa segurança que em geral aparentamos enquanto tacteamos o caminho no

meio da cerração verbal, melhor ou pior lá nos vamos entendendo, e às vezes, até,

encontrando.

José Saramago

RESUMO

TIRONI, Angélica Cantarella. O que as psicoses ordinárias ensinam? 2012. 195f. Tese (Doutorado em Psicanálise) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

A psicose ordinária se insere em um programa de investigação do Campo freudiano que relê a transmissão de Lacan a partir das ferramentas teóricas de seu último ensino. Ela se apoia na constatação de casuísticas onde não acontece o desencadeamento clássico e ruidoso, tal como o da psicose extraordinária. Ao contrário, a sintomatologia é discreta e exige do psicanalista uma atenção redobrada em relação à referência estrutural de uma psicose clássica.

Partimos da investigação desta clínica estruturalista das psicoses, do primeiro ensino de Lacan, e avaliamos se o significante Nome-do-Pai persiste como operador único no diagnóstico diferencial. Ou se, desde as modificações introduzidas por Lacan a partir da pluralização do Nome-do-Pai, da inserção dos conceitos de lalíngua e falasser, e da valorização do gozo na clínica mais fluída, borromeana, o operador em questão pode ser substituído pelo sinthoma. A categoria de psicose ordinária reconsidera de uma forma diferenciada a foraclusão deste significante a partir do objeto de gozo, e esclarece a pluralidade de significantes-mestres, que falam do sujeito fora do discurso estabelecido pelo Nome-do-Pai.

Em seguida, estudamos dois aforismos lacanianos. O primeiro, “todo mundo é louco, isto é, delirante”, convoca uma clínica ordenada pela foraclusão generalizada, na qual se inscreve algo da ordem de um não orientado. O segundo, o aforismo “a relação sexual não existe”, causa impasse em todos os sujeitos. Ambos requerem a resposta do falasser face ao indizível e a construção de uma saída singular, que não passa de um delírio apreendido em uma positividade. Afinal, se a psicanálise de orientação lacaniana institui que todos os discursos são defesas contra o real, e todas as construções da realidade são delirantes, é necessário que cada um invente um modo de saber-fazer com o real.

Palavras-chave: Psicose ordinária. Pluralização do Nome-do-Pai. Foraclusão generalizada. Clínica universal do delírio.

ABSTRACT

Ordinary Psychosis is part of a research program in the Freudian Field to reconsider Lacanian ideas, specially the theoretical concepts of his last teaching. It is supported by clinical case observations, when there is not a classical and evident triggering, as it happens with extraordinary psychotic cases. On the contrary, symptomatology is discreet and demands from the analyst double attention regarding to a structural reference of classical psychosis.

We start from the investigation of psychotic structural clinic, from Lacanian first teaching, to evaluate if the Name-of-the-Father persists as a unique reference for the differential diagnosis or if it can be replaced by the sinthome, according to the modifications Lacan introduces when he proposes plural names of the father, as well as the concepts of lalangue and speaking being more coherent to a fluid and Borromean clinical evaluation. Such category of ordinary psychosis reconsiders, in a different way, the significant foreclosure in terms of the jouissance object and also clarifies the pluralization of master significants which stand for the subject outside the discourse established by the Name-of-the-Father.

Next, we studied two Lacanian aphorisms. The former, “Everyone is mad, that is, delirious” invites to a clinical approach coordinated by a generalization of foreclosure in which something disoriented is inscribed. The latter, the aphorism “the sexual relation does not exist” causes impasse for all subjects. Both require from the speaking being an answer facing what is impossible of being said and the construction of a singular way out which cannot be positively apprehended as anything else but a delusion. Nevertheless, if Lacanian oriented psychoanalysis institutes that all discourses are defences to the real and all constructions of reality are delirious, it is necessary for everyone to invent their know how to do with the real.

Key words: Ordinary psychosis. Pluralization of the names of the father. Generalization of foreclosure. Clinic of the universal delusion.

RÉSUMÉ

La psychose ordinaire s’inscrit dans un programme d’investigation du Champ

freudien, qui relit la transmission de Lacan a partir des outils théoriques de son dernier enseignement. Elle est assise en la constatation des cas où n’arrivent pas le déclanchement classique et bruyant, comme dans les psychoses extraordinaires. Au contraire, la symptomatologie est discrete, et exige du psychanalyste une attention rédoublé sur la référence structurel d’une psychose classique.

Nous avons parti de l’investigation de cette clinique structuraliste de las psychoses du premier enseignement de Lacan, et nous évaluons si le signifiant Nom-du-Père persiste comme l’opérateur unique dans le diagnostic différentiel. Ou bien, depuis les modifications introduites par Lacan, la pluralisation du Nom-du-Père, de l’insertion des concepts, lalangue

et parlêtre, de la valorisation de la jouissance dans la clinique plus floue, borroméanne, si l’opérateur en question peut être substitué pour le sinthome. La catégorie de la psychose

ordinaire, elle considére de nouveaux et d’une forme différenciée, la forclusion de ce signifiant a partir de l’objet de la jouissance, et elle éclaire la pluralité des signifiants-maîtres, qui parlent du sujet hors du discours établi par le Nom-du-Père.

Ensuite, nous avons étudié les deux aforismes lacaniens. Le premier, “tout le monde est fou, a savoir, délirant”, convoque une clinique ordonnée par la forclusion généralisée, dans laquelle s’inscrit quelque chose de l’ordre d’un non-orienté. Le deuxième, l’aforisme “le rapport sexuel n’éxiste pas”, cause l’impasse en tous les sujets. Les deux aforismes éxigent la réponse du parlêtre à l’indicible, et la construction d’une sortie singulière, en ce sens, un délire positif. Enfin, si la psychanalyse, dans la orientation lacanniene, institue que tous les discours sont défenses contre le réel, et toutes les constructions de la réalité sont délirantes, il faut que chacun invente une manière de savoir-faire avec le réel.

Mots-clefs: Psychose ordinaire. Pluralisation du Nom-du-Père. Forclusion généralisée. Clinique universel du délire.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..............................................................................................13

1 AS PSICOSES NA OBRA FREUDIANA .................................................... 25

1.1 A classificação freudiana das psicoses ......................................................... 26

1.2 O caso Schreber escrito por Freud e retomado por Lacan ....................... 39

1.3 Sobe o diagnóstico do Homem dos Lobos ................................................... 45

1.3.1 As primeiras expressões da neurose infantil ................................................... 48

1.3.2 Histeria de angústia na forma de uma fobia animal ........................................ 54

1.3.3 Uma neurose obsessiva de conteúdo religioso ................................................ 58

1.3.4 A guisa de conclusão ...................................................................................... 63

2 UMA LEITURA LACANIANA DAS PSICOSES ..................................... 67

2.1 Os dois ensinos de Lacan: uma delimitação didática ................................. 68

2.2 A psicose extraordinária na clínica estrutural ............................................ 72

2.2.1 Sobre o desencadeamento de uma psicose ...................................................... 78

2.2.2 Os fenômenos elementares como manifestações da Verwerfung .................... 83

2.2.3 O manejo da transferência em casos de psicose extraordinária ...................... 93

2.3 Lacan e a clínica dos nós ............................................................................. 101

2.3.1 Suplências, suturas e emendas: o sinthoma na análise .................................. 104

2.3.2 Joyce com Lacan ........................................................................................... 109

2.3.3 O objeto a-voz joyceano ................................................................................ 113

3 AS PSICOSES ORDINÁRIAS NA PERSPECTIVA BORROMEANA .120

3.1 Do inclassificável à psicose ordinária ........................................................ 124

3.2 A singularidade, uma condição fundamental ........................................... 126

3.3 O caso único e a arte do diagnóstico em psicanálise .................................129

3.4 Alguns elementos pertinentes às psicoses ordinárias ............................... 132

3.4.1 Neodesencadeamento .................................................................................... 134

3.4.2 Neoconversão ................................................................................................ 140

3.4.2.1 O acontecimento de corpo como índice da neoconversão ............................. 142

3.4.2.2 Os fenômenos psicossomáticos e as neoconversões ..................................... 150

3.4.3 Neotransferência ............................................................................................ 156

3.5 Do Um ao múltiplo ...................................................................................... 160

3.6 As consequências do aforismo “Todo mundo é louco” ............................ 163

4 CONCLUSÕES ........................................................................................... 174

REFERÊNCIAS .......................................................................................... 180

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INTRODUÇÃO

É fácil constatar que atualmente vivemos em um mundo diferente daquele de alguns

anos atrás. A internet e as redes sociais modificam substancialmente a maneira de viver, a

relação com o tempo, a economia de mercado e a arquitetura do laço social, inclusive com o

parceiro, são fatores implicados nessa mudança. Podemos explorar as consequências dessas

questões na atualidade.

Os celulares acoplados à internet são ferramentas cotidianas que facilitam o sujeito

estar sempre atualizado em relação ao mundo globalizado e acompanhar em tempo real as

notícias do planeta. Eles transformam de forma radical o acesso a dados e a documentos, e a

quantidade de informações que chegam o tempo todo a cada um de nós. As redes sociais na

internet agrupam em torno de 29 milhões de brasileiros por mês, ou seja, oito em cada dez

pessoas conectadas no Brasil têm um perfil inserido em algum site de relacionamentos. O

Facebook, por exemplo, lançado em fevereiro de 2004, em apenas oito anos contabiliza mais

de 845 milhões de usuários ativos. Essas redes oferecem uma nova dimensão de acesso às

informações, à produção de conhecimento e ao próprio lazer, na medida em que permitem

realizar negócios, conhecer pessoas e manter contato com amigos.

No entanto, concomitante aos diversos benefícios ofertados por elas, surge um

imperativo que impele o sujeito a ficar sempre plugado para evitar a impressão de estar

perdendo algo. O fluxo constante de informações pessoais cria um paradoxo: ao mesmo

tempo em que ele é necessário para cativar a atenção dos amigos virtuais, pode colocar em

risco a imagem pública do internauta. Significa dizer que, no mundo contemporâneo, o limite

entre o público e o privado se tornou bastante rarefeito, ou seja, ele não é mais como

antigamente.

Estudiosos de diversas áreas como psicanalistas, filósofos, historiadores, sociólogos,

analisam os fenômenos sociais de nosso tempo e destacam a relevância da globalização e dos

desenvolvimentos técnico-científicos para as transformações sociais. Dentre os fatores

responsáveis por essas mudanças, ressaltam a quebra dos valores tradicionais ocorrida no

decorrer do século XX e a busca de êxito e de sucesso promovida pelo discurso da ciência

associado ao discurso do capitalista.

Através da mídia, os dizeres científicos passam a ocupar o lugar da verdade antes

concedido aos valores tradicionais, religiosos, éticos ou políticos. Tomaram seu lugar a

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liberação da sexualidade, o feminismo, o conflito de gerações e os novos vínculos afetivos. Os

antigos valores foram rescritos no triunfo cientificista.

As pesquisas e os índices estatísticos veiculados pelos meios de comunicação alertam

sobre as formas de adoecimento mais comuns em nosso tempo. Investigações recentes

descrevem pormenorizadamente doenças contemporâneas, destacando a síndrome do pânico,

as depressões, as doenças psicossomáticas, as compulsões, o fracasso escolar, etc. São

patologias onde prevalece o excesso, tal como a obsessão nos cuidados com o corpo baseada

em uma preocupação higienista que preconiza a melhora da saúde, e consequentemente, da

qualidade de vida.

Além disso, constata-se um aumento significativo no reconhecimento de doenças

legitimadas pela Classificação Internacional das Doenças Mentais (CID) e pelo Manual

Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), que encontra-se em via de

lançamento de sua quinta versão. Ao lado desse reconhecimento, uma série de programas de

orientação em relação a dietas saudáveis e aos cuidados com o corpo, disponíveis a todas as

faixas etárias. Aos que não respondem aos programas, ofertam-se diversos tipos de tratamento

que prometem ser rápidos e eficazes.

Nesse contexto, as psicopatologias contemporâneas são interpretadas como um

fracasso psíquico diante de novos ideais, tais como o mundo idealizado das imagens, o

sucesso profissional, o máximo de eficácia e o culto narcísico. Se o sujeito não atinge os

ideais proclamados pela sociedade, ele se encontra na condição de exclusão e de doente.

Todo o aparato de tratamento dispensado ao sujeito evidencia que a civilização

contemporânea reduziu o sintoma – tal como Freud o definiu – a um transtorno. Ao substituir

as doenças da psiquiatria clássica por transtornos, opta-se pela descrição e pela comunicação

desses fenômenos em detrimento de uma clínica centrada no caso a caso, tal como preza a

psicanálise. Os atuais manuais diagnósticos estão preocupados em constituir uma língua

universal que possa acabar com o mal-entendido próprio à comunicação. Baseados no ideal da

transparência e da precisão, eles pretendem ser um instrumento que associa o máximo da

descrição a uma margem mínima de erro.

Fundar uma prática diagnóstica baseada no consenso estatístico é estar a serviço de

resultados previamente estabelecidos pela lógica do mercado psicofarmacológico. Por meio

dele, o real com o qual o sujeito tropeça – conforme conceituado por Jacques Lacan – é

tratado com medicamentos cada vez mais ajustados. Mesmo assim, este real continua

existindo como resíduo e se torna objeto de tratamentos de apoio por meio de uma escuta

protocolar, de puro semblante, como ocorre na terapia cognitivo-comportamental.

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dos paradigmas edipianos que ordenava a sociedade tradicional e seus efeitos, tais como a

inexistência do Outro como operador simbólico, e, na ausência deste, a elevação do objeto de

gozo ao zênite social. Essas transformações resumem o fato de a época atual não apenas

colocar em evidência a inconsistência do Outro, como também convertê-la em ideal. A

consequência clínica dessa idealização é o fato de encontrarmos loucuras neuróticas e

psicoses atuais em uma proporção bem maior que em outros momentos.

Se pudermos adiantar uma das teorizações que será discutida nesta Tese, dizemos que

a configuração simbólica atual propicia modificações nas sintomatologias, acarretando

dificuldades no diagnóstico clínico. Pois as loucuras neuróticas aparecem caracterizadas pela

elisão fálica, apesar de a inscrição do significante Nome-do-Pai – operador que distingue as

estruturas clínicas – estar presente. Ao lado disso, as psicoses atuais denotam a conservação

da significação fálica, mesmo que o Nome-do-Pai esteja foracluído, o que permite a inserção

do sujeito no Outro social de forma operativa. É o caso das psicoses ordinárias, sobre as quais

trataremos nessa Tese de Doutorado.

A relação do sujeito com o tempo é outro fator que revela uma mudança na ordem

simbólica atual. Estamos vivendo em uma época na qual o imediato impera por meio da

ligação permanente a dispositivos dessubjetivantes, tais como os telefones portáteis e os

sistemas de comunicação virtual que chamam a atenção do sujeito para além do si mesmo,

sem que isso se conclua em laços. As pessoas estão sempre correndo de um lado para o outro,

se queixando que o tempo é escasso para realizarem todos os compromissos listados na

agenda. E quando o tempo sobra, estão tão cansadas que não sabem como utilizá-lo, a não ser

se alienando na frente da televisão ou respondendo às pendências que se acumularam no

mundo virtual.

Trata-se de uma época marcada pela hiperatividade e pela exigência do tempo fixado

no instante de ver. O aumento radical dos transtornos de atenção em crianças e jovens em

período escolar evidencia que eles estão permanentemente agitados, a tal ponto que, em

determinados locais das Américas, um terço da população jovem é diagnosticado como

hiperativo e submetido a tratamentos com o uso de Ritalina. Ao lado dessa agitação, nota-se,

sobretudo nos países asiáticos, o aumento vertiginoso das estatísticas de suicídio entre os

jovens. As chamadas fobias escolares, que antes eram dados marginais da educação, se

tornaram fenômenos de massa em determinadas regiões.

Vale notar que o discurso capitalista associado ao discurso científico interfere de

forma radical na maneira como o sujeito se relaciona com o objeto na atualidade. O comércio

segmenta os compradores e aprimora a apresentação dos objetos expostos nas vitrines das

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supereu como imperativo de gozo. Nesse sentido, é possível concluir que a época da verdade

foi substituída pela época de gozo.

A globalização suscita um afrouxamento do laço do sujeito com o lugar da autoridade

simbólica e acarreta uma maior liberdade para o gozo individual através de uma enorme oferta

de novos serviços e produtos. Consequentemente, o sujeito contemporâneo se vê livre diante

de uma multiplicidade de escolhas em relação às quais necessita tomar decisões. Se

anteriormente ele estava orientado por uma sociedade regida pelo ideal, pelo universal, ao

mesmo tempo coletivista, hoje se sente desorientado em função da multiplicidade que têm ao

seu dispor.

Portanto, sob este fundo de multiplicação infindável, o sujeito estanca frente ao

imperativo sedutor do tudo desejar e ter. No lugar da singularidade, vemos emergir uma

epidemia de angústia que faz as pessoas recuarem a portos supostamente seguros, tais como

as religiões, os livros de autoajuda e a medicina baseada em evidências com sua ideologia de

que na vida tudo tem remédio.

Se no discurso do mestre a verdade do sujeito determina os significantes orientadores,

no do capitalista o sujeito aparece dirigindo suas próprias identificações. Atinge o ponto de

fundar no sujeito contemporâneo uma pretensão mais radical, qual seja, a de poder eleger tudo

sem limitações. Inclusive a aspiração de abolir o determinismo envolve o rechaço de toda

classificação em relação às categorias sexuais, raciais e ideológicas. Esse rechaço acompanha

o desejo do sujeito em se autodesignar à margem de qualquer operação simbólica

estabelecida. Trata-se do sujeito determinando sua própria verdade, ou seja, o triunfo do

narcisismo e a adoração da própria personalidade.

Contudo, evidencia-se um paradoxo. Se no século passado o conformismo implicava

em fazer como todo mundo, atualmente, ao contrário, há uma exigência de cada um fazer ao

seu modo. Ao mesmo tempo em que se exige do homem uma diferença absoluta, uma

invenção para não ser igual a todo mundo, mesmo assim acaba por incluí-lo em um processo

comum. Vale ressaltar que esta invenção, por assim dizer efêmera, é também um modo de

conformismo, uma variante paradoxal do supereu sob medida que faz com que cada um se

dirija ao mais-de-gozar sem o apoio de um discurso que ampare. Portanto, os ideais que

funcionavam como moderadores do modo-de-gozar não predominam nas organizações sociais

como anteriormente, pois eles foram substituídos por uma multiplicidade de ideais que não

produzem identificações orientadoras, ou as fazem de forma bastante frágil.

A psicanálise de orientação lacaniana constata que, frente ao déficit simbólico, os

sujeitos recorrem a identificações imaginárias que operam muitas vezes de forma precária.

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Essa é uma questão atual, pois permite circunscrever alguns fenômenos nomeados de

sintomas contemporâneos. Eles são definidos como expressões desmedidas do mais-de-gozar

inscrito no corpo e que não comportam um efeito de sentido capaz de remeter o sujeito a um

saber. Esses sintomas acarretam dificuldades em relação ao diagnóstico e fazem com que

alguns casos pareçam inclassificáveis.

Os casos inclassificáveis surgem na clínica psicanalítica no momento em que a

inexistência do Outro é sentida de forma nunca antes vista. Eles se tornam o ponto de partida

para a discussão da categoria de psicose ordinária, inventada por Jacques-Alain Miller como

um programa de investigação que tinha como objetivo inicial isolar as especificidades dos

casos clínicos que surpreendiam os analistas em relação ao diagnóstico. Nesse percurso,

perceberam que eles eram mais frequentes do que inicialmente se supunha e, resistentes à

classificação, indicavam um mais além da perspectiva estritamente estruturalista.

A importância da investigação sobre as psicoses ordinárias decorre do fato de que

nessas casuísticas não ocorre o desencadeamento clássico e não estão presentes os traços

comuns das psicoses extraordinárias, tais como os distúrbios de linguagem e as alterações do

pensamento. Ao contrário, as manifestações fenomenológicas são bastante discretas e exige

do psicanalista uma atenção redobrada em relação às referências estruturais das psicoses.

Portanto, a psicose ordinária não deve ser abordada simplesmente pela clínica

fundamentada na foraclusão do Nome-do-Pai; a ela se acrescenta o reconhecimento de

pequenos índices variados de desordem na junção mais íntima do sentimento de vida no

sujeito. Eles são localizados pela forma com que o sujeito se identifica a uma função social,

na maneira que se utiliza de laços artificiais para apropriar-se de seu corpo e na subjetividade,

pela fixidez especial que experimenta o vazio, cuja natureza não é passível de dialética.

Portanto, foi necessário realizar um alargamento da clínica das psicoses que permitisse

questionar o significante Nome-do-Pai como única referência operativa para o diagnóstico

diferencial. Quando se pensava em termos de presença-ausência desse significante, deparava-

se com uma clínica estritamente binária, dividida entre neurose e psicose, respectivamente.

No entanto, a categoria de psicose ordinária permite reconsiderar os efeitos da

foraclusão do significante Nome-do-Pai a partir do objeto de gozo, que Lacan denomina de

objeto pequeno a. Essa categoria evidencia que o Nome-do-Pai não existe a não ser como

predicado, um elemento específico dentre outros que, para determinado sujeito, cumpre a

função de ordenação simbólica e fornece sentido à vida. O Nome-do-Pai passa a ser

considerado um elemento de compensação no qual o sujeito crê para constituir seu mundo e

experimentar a vida com certa estabilidade.

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Quando se introduz uma mudança de estatuto no Nome-do-Pai, a constituição da

ordem simbólica se torna delirante, pois a vida como tal não tem nenhum sentido. Ela

flexibiliza a rigidez da clínica binária e facilita o diagnóstico de casos estruturados por outros

elementos que não sejam os significantes-mestres tradicionais.

Nesse sentido, a noção de psicose ordinária se torna crucial na clínica da atualidade,

visto que novas modalidades de apresentação das psicoses estão cada vez mais frequentes no

dispositivo analítico. Ela permite elucidar que a passagem do discurso mestre ao discurso da

ciência, associado ao do capitalismo, acarretou consequências no tipo de soluções encontradas

pelos psicóticos para fazer face à foraclusão do Nome-do-Pai.

Vale ressaltar que a psicose ordinária não é uma categoria de Lacan, mas uma

ferramenta clínica extraída de seu último ensino, que permite reler os primeiros anos de sua

transmissão. Trata-se de uma maneira epistemológica de abordar a nosografia de acordo com

a definição de sujeito que Lacan fornece após os anos 40, ou seja, o louco é o homem normal.

Além disso, há outra consequência dessa orientação. A enunciação de Lacan, em 1978,

de que “Todo mundo é louco, ou seja, delirante”, sugere uma generalização que abarca mais

além das psicoses. Se todos têm direito ao gozo, o sujeito o busca a seu modo. É a loucura na

época da democracia, no tempo do Outro que não existe, cada um apresenta um estilo pessoal

de tratamento de gozo, contando menos com os suportes tradicionais.

Então, são pertinentes algumas questões, vetores desta Tese. Como definir a psicose

ordinária? De que forma essa nova categoria representa um recurso clínico indispensável na

atualidade? Como diferenciar a psicose ordinária da psicose extraordinária tradicional? A

psicose ordinária pode ser desencadeada? Ou, como sustento nesta Tese, o termo inventado

por Miller só é utilizado quando não houver desencadeamento?

Essa Tese de Doutorado é composta de três capítulos. O primeiro, intitulado “As

psicoses na Obra freudiana”, é desdobrado seguindo o percurso adotado por Sigmund Freud.

Inicialmente ele se ateve em delimitar, não sem dificuldade, as formulações que envolviam as

neuroses e as psicoses como estruturas clínicas diferentes. Isso porque, no período inicial de

sua Obra, centrado no processo de defesa contra as representações incompatíveis, ele insere as

psicoses como neuroses e nomeia de formas mistas determinadas entidades clínicas que

combinam ambas em uma só tipologia.

A pesquisa começa pela primeira tópica, especificamente pelos anos de 1894 a 1896,

em que Freud realiza uma primeira classificação, delimitando dois grupos bastante distintos:

as psiconeuroses, também chamadas de neuroses de defesa, englobam a histeria, a neurose

obsessiva e certos casos de confusão alucinatória aguda; e as neuroses atuais, posteriormente

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chamadas de neuroses simples, comportam a neurastenia e as neuroses de angústia, como a

fobia, e a hipocondria.

Nessa época, Freud apresenta a teoria do recalcamento para explicar o mecanismo de

defesa próprio às neuroses e às psicoses. No entanto, a noção de rechaço permite uma

oposição entre elas, mesmo considerando ambas como sintomas do retorno do recalcado. Nos

desdobramentos de sua investigação clínica, ele acrescenta ao recalque a divisão da

consciência, a formação de grupos psíquicos separados e os mecanismos de defesa utilizados

pelo eu para lidar com representações incompatíveis. Além disso, prevê a perda da realidade

na neurose e na psicose – questão que será ampliada em 1923-1924.

Em torno de 1905, algumas vias sobre as quais Freud se orientava foram modificadas.

Ele abandonara a teoria da sedução, a insistência no elemento traumático nas vivências

sexuais infantis e a ênfase nas influências acidentais sobre a sexualidade. Quando os traumas

sexuais infantis são substituídos pelo infantilismo da sexualidade, ele prioriza as fantasias na

causação das afecções mentais, o estudo dos mecanismos de defesa, o recalcamento e a teoria

pulsional. Esses elementos modificam a compreensão da formação dos sintomas e permitem

Freud realizar pontuações fundamentais sobre a clínica das psicoses, na medida em que o

delírio deixa de ser apenas um fenômeno patológico e se torna uma tentativa de

restabelecimento do sujeito.

No entanto, na segunda tópica, Freud ressalta a dinâmica da transferência e a

importância do início do tratamento como orientação para o diagnóstico diferencial. Surge

uma nova classificação, considerada a partir de o estatuto da transferência e da influência da

psicanálise sobre o paciente. As neuroses de transferência – que englobam a histeria, a fobia e

a neurose obsessiva – são aquelas a quem a psicanálise pode oferecer êxito no tratamento pela

sua terapêutica. Por outro lado, as neuroses narcísicas – que reúnem a parafrenia (demência

precoce e paranoia), a melancolia-mania e a esquizofrenia – incapacitam uma promessa de

cura pela impossibilidade destes pacientes estabelecerem uma transferência.

Levanta-se a hipótese de que a dificuldade freudiana decorre de sua própria

metapsicologia, sustentada no pressuposto de que a neurose é a base de toda estrutura

psíquica. Como Freud investiga as psicoses a partir das proposições neuróticas, ele fica

impedido de avançar para além do recalque e estabelecer um mecanismo operatório próprio às

psicoses. Desta forma, ele não pode conceber uma especificidade da estrutura subjetiva do

psicótico, apesar de, em diversos momentos, ter apresentado elaborações que pudessem levá-

lo nessa direção. Sem estes elementos ele não pôde recomendar o tratamento analítico

20

aplicado às psicoses, afinal, fazê-lo sobre os parâmetros da neurose, implicaria a neurotização

do psicótico.

Os esclarecimentos teóricos adquiridos durante o percurso pelos textos freudianos

permitem localizar a categoria de psicose ordinária na clínica freudiana, especialmente em

relação ao Homem dos Lobos, caso paradigmático em que não se verifica a presença de

alucinações típicas ou transtornos de linguagem tão comuns em casos de psicoses

desencadeadas. Além disso, o sintoma hipocondríaco do Presidente Schreber fornece indícios

de uma estrutura psicótica antes mesmo da eclosão delirante, sem ser possível afirmar que,

pelo fato de ter havido um período sem desencadeamento, que Schreber seja considerado

dentro daquela categoria.

O segundo capítulo da Tese, nomeado “Uma leitura lacaniana das psicoses”, consiste

em um vasto elenco das principais contribuições de Lacan sobre a teoria das psicoses.

Partimos da distinção proposta por Jacques-Alain Miller em vários textos: o ensino de Lacan

periodicizado de acordo com a primazia do imaginário, do simbólico e do real em diferentes

momentos. Distinção necessária porque acompanha as modificações que vão sendo

introduzidas por Lacan. Se no primeiro ensino, o do retorno a Freud, Lacan define as

psicoses a partir dos postulados freudianos, ele jamais deixou de considerá-las como estrutura

de base.

Depois, partindo da clínica borromeana do segundo ensino de Lacan, destacamos a

topologia dos nós. Em O seminário, livro 23: o sinthoma, Lacan resgata a escrita de James

Joyce, em Finnegans Wake, para interrogar: Joyce é louco? Não obstante a resposta ser

imprecisa neste seminário, o mais importante é o fato de, na orientação de Lacan, Joyce

construir uma obra como suplência à carência paterna. Portanto, neste segundo capítulo,

coube se servir de Joyce para investigar o conceito de sinthoma e o modo com este amarra os

três registros. Contudo, entendemos que a psicose de Joyce pode ser revelada através de

certos indícios, tais como a suspeita de que Joyce é, ou se toma, pelo que ele próprio chama

de Redentor, a articulação de Lacan entre a trama da redenção e a Verwerfung, e o lugar de

Lucia como prolongamento do sintoma de Joyce, porque ele não só decodifica os signos da

fala da filha, como também incorpora, ele próprio, a fala imposta.

No terceiro capítulo, intitulado “As psicoses ordinárias na perspectiva borromeana”,

trabalhamos diretamente a categoria proposta por Miller, ressaltando que ela decorre de casos

inclassificáveis pelas estruturas clínicas formalizadas por Lacan. Eles evidenciavam o

fracasso em apreender uma dada realidade clínica e ameaçavam alguns pilares analíticos

21

determinantes, tal como a posição do analista, a direção do tratamento e o diagnóstico em

psicanálise.

Consideramos o inclassificável em duas vertentes: uma negativa e outra positiva. A

primeira diz respeito aos limites de uma classificação que precisam ser extirpados do sistema

classificatório. Isso fica claro nas constantes revisões dos manuais psiquiátricos que almejam

evitar que alguns casos restem fora do sistema. Desta forma, pretendem a uniformização que

garanta uma comunicação mais confiável entre clínicos e pesquisadores e a padronização

medicamentosa.

A vertente positiva diz respeito ao fato de, na experiência analítica, o inclassificável

ser a expressão do irredutível do sintoma que escapa a qualquer classificação diagnóstica.

Apesar de ser uma ferramenta fundamental, a psicanálise está atenta ao fato de que toda

classificação diagnóstica contém algo de artificial, pois ameaça excluir o singular de cada

caso.

Para que os inclassificáveis fossem incluídos na clínica estrutural formalizada por

Lacan, os analistas inventaram os termos neodesencadeamento, neoconversão e

neotransferência, para circunscrever as especificidades do desencadeamento, dos fenômenos

de corpo e da transferência nos casos de psicose ordinária, respectivamente.

Por fim, tomando a clínica das psicoses como paradigma da experiência analítica, a

formulação de Lacan “todo mundo é louco, isto é, delirante”, convoca uma clínica ordenada

pelos conceitos de pluralização do Nome-do-Pai e pela foraclusão generalizada. Esta

formulação converge todo ser falante a uma referência vazia – nomeada por Lacan com o

aforismo a relação sexual não existe. Essa inexistência evidencia o que há de mais íntimo em

cada um, pois não há sentido comum que sirva a todos. Trata-se de um aforismo que inscreve

um não-orientável desde a ordenação do Nome-do-Pai, e permite considerar que a resposta

singular diante do indizível é uma construção, ou seja, não passa de um delírio.

Nessa via, a função do sintoma como modo-de-gozo singular se torna um ponto

decisivo no dispositivo analítico. Na medida em que sentido e real se opõem, o delírio é

apreendido como uma positividade, pois delirar equivale à resposta possível face ao real.

Afinal, se a psicanálise de orientação lacaniana assinala que todos os discursos são defesas

contra o real, que a verdade é sempre variável, varité, conforme Lacan a denomina em seu

ultimíssimo ensino, então, todo saber é delirante.

22

1 AS PSICOSES NA OBRA FREUDIANA

Neste primeiro capítulo da Tese de Doutorado nos deteremos, fundamentalmente, nos

principais textos freudianos. Estamos atentos às modificações teóricas que vão permitindo a

delimitação das psicoses como uma entidade clínica distinta das neuroses, fato que não está

demarcado nos textos iniciais da Obra de Freud. Partimos da classificação proposta entre

1894 e 1914, que divide a clínica em psiconeuroses e neuroses atuais, até sua última

formalização, na qual as neuroses narcísicas e as neuroses de transferência substituem a

divisão anterior.

Constatamos, inicialmente, diversos pontos que indicam a dificuldade de Freud em

distinguir estes campos. Ele não só lista as psicoses como neuroses, como também nomeia de

formas mistas determinadas entidades clínicas que combinam ambas em uma só tipologia.

Nossa hipótese é que o ponto de impasse de Freud no que se refere ao avanço de suas

formulações teóricas sobre o mecanismo específico das psicoses decorre de uma questão

epistemológica de sua própria metapsicologia. Ou seja, ele as investiga a partir de

pressupostos provenientes de seus estudos sobre as neuroses, o que lhe impossibilita ir para

além do mecanismo de recalcamento.

Durante nossa investigação, encontramos algumas passagens que revelam a foraclusão

generalizada, formalizada por Jacques-Alain Miller a partir do último ensino de Lacan

(MILLER, 1978/2010, p.31) no aforismo “Todo mundo é louco, ou seja, delirante”. Nelas,

Freud articula sonho e delírio, supõe um núcleo paranoico de base a todo ser humano, dissocia

loucura e psicose e reduz a normalidade a uma mera ficção.

Apesar desta Tese se dedicar ao tema das psicoses ordinárias, é impossível falar sobre

elas sem partir de um campo mais amplo, que é o das psicoses. Sobretudo porque, existem

psicoses extraordinárias – tais como a de Schreber, a de Aimeé, das Irmãs Papin, e outras –

com delírios sistematizados, fenômenos elementares evidentes, alterações da fala e da

linguagem perceptíveis e outros indícios. No entanto, as psicoses ordinárias – termo proposto

por Jacques-Alain Miller (MILLER, 1998/2006) a partir de um programa de investigação e

pesquisa no âmbito das psicoses – são caracterizadas por fenômenos mais discretos, muitas

vezes imperceptíveis ao analista incauto, e que, por vezes, confundem o diagnóstico

diferencial. Nossa intenção neste capítulo de Tese é discutir a proposta milleriana a partir da

clínica freudiana, especialmente em relação aos famosos casos de O Homem dos Lobos e do

Presidente Schreber, antes da eclosão das psicoses extraordinárias.

23

Para realizarmos este trabalho, retomaremos a leitura da autobiografia de Daniel Paul

Schreber – Memórias de um doente dos nervos (FREUD, 1903[1901-1902]/1984) – realizada

por Freud no texto “Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia (Dementia

paranoides) descrito autobiográficamente” (FREUD, 1911/1993). Além disso, as teorizações

de Lacan contidas em O seminário, livro 3: as psicoses (LACAN, 1955-1956/1988) e no

escrito “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (LACAN,

1959[1957-1958]/1998) acrescentarão interpretações cruciais ao estudo da paranoia de

Schreber. A inclusão de Lacan em um capítulo essencialmente freudiano se justifica, pois o

ensino de Lacan é uma ferramenta indispensável à nossa investigação.

Depois, o texto de Freud “De la historia de una neurosis infantil” (FREUD,

1918[1914]/1994), será a guia para discutirmos os múltiplos diagnósticos de neurose

fornecidos ao Homem dos Lobos, a saber, neurose de angústia com sintomas fóbicos e

neurose obsessiva. Descreveremos essas tipologias clínicas articulando-as às atipias

concernentes à castração, ao estatuto do objeto fóbico e à especificidade da angústia, com o

intuito de defender o diagnóstico de psicose ordinária, como já se disse, antes da eclosão da

patologia. Referimo-nos aos dois momentos da análise de O Homem dos Lobos: o período de

análise com Freud e, posteriormente, quando Freud dá por encerrado o tratamento, o período

com Ruth Mack Brunswick, supervisionanda de Freud. Desta forma, poderemos analisar, no a

posteriori, os fenômenos elementares que já estavam presentes na patologia do paciente.

1.1 A classificação freudiana das psicoses

Percebemos em Freud um impasse na delimitação das neuroses e das psicoses como

campos distintos, se levarmos em conta a formalização das estruturas clínicas freudianas

realizada por Lacan, ou seja, neurose, psicose e perversão. Encontramos esta evidência em

diversos momentos. Por exemplo, no “Manuscrito D. Sobre la etiología y la teoría de las

grandes neurosis” (FREUD, 1894a/1994, p.225) Freud inclui a melancolia e a mania no grupo

das neuroses, e na “Carta 61” (FREUD, 1897/1994, p.289) ele adiciona a paranoia a esta lista.

Apesar de no texto “Histeria” (FREUD, 1888/1994, p.54) Freud dizer que uma psicose

não faz parte desta estrutura, encontramos sob a denominação formas mistas determinadas

entidades clínicas que combinam a neurose e a psicose em uma só tipologia. No “Manuscrito

F. Recopilación III” (FREUD, 1894b/1994, p.238) aparece a melancolia neurastênica, no

24

“Manuscrito G. Melancolía” (FREUD, 1895a/1994, p.244) a melancolia de angústia, e no

“Manuscrito H. Paranoia” (FREUD, 1895b/1994, p.251) as psicoses histéricas. A existência

das formas mistas confirma nossa pesquisa: neuroses e psicoses não estão distintas como

estruturas clínicas diferentes neste período inicial da Obra de Freud.

A classificação das psicoses ora como neuroses, ora como psicoses, é um outro ponto

que nos chama atenção. Destacamos as seguintes passagens. No “Manuscrito H” (FREUD,

1895b/1994, p.251) Freud classifica a paranoia e a confusão alucinatória como duas psicoses

de desafio ou oposição, e em “Nuevas puntualizaciones sobre las neuropsicosis de defensa”

(FREUD, 1896d/1992, p.175) elas aparecem como psicoses de defesa, uma outra terminologia

que, em síntese, refere-se ao mesmo eixo classificatório. Por outro lado, na “Carta 61”

(FREUD, 1897/1994, p.289), elas são incluídas no campo das neuroses.

Entre 1894 e 1896 Freud está engajado nos problemas das neuroses, enquadrados em

dois grupos bastante distintos: as neuroses atuais – posteriormente chamadas de neuroses

simples –, que comportam a neurastenia e as neuroses de angústia, como a fobia, e a

hipocondria, incluída posteriormente em “Introducción del narcisismo” (FREUD, 1914/1993,

p.80); e as psiconeuroses – também chamadas de neuroses de defesa na “Carta 46” (FREUD,

1896b/1994, p.270-273) –, que abarcam a histeria, a neurose obsessiva e certos casos de

confusão alucinatória aguda, os quais Freud muitas vezes exemplifica com casos de paranoia.

No texto “Las neuropsicosis de defensa” (FREUD, 1894c/1994) Freud apresenta a

teoria do recalque, uma noção fundamental na qual ele se baseia durante toda sua Obra. Nos

desdobramentos de sua investigação clínica, ele acrescenta ao recalque a divisão da

consciência, a formação de grupos psíquicos separados e os mecanismos de defesa utilizados

pelo eu para lidar com as representações incompatíveis. Estas ferramentas teóricas irão

orientá-lo até 1900, momento de formalização do aparelho psíquico por vias distintas

daquelas do “Proyecto de psicología” (FREUD, 1950[1895]/1994).

Apesar de Freud utilizar a teoria do recalcamento para explicar o mecanismo das

neuroses e o das psicoses, em torno de 1894 surge algumas especificidades fundamentais no

que concerne a esta última estrutura. Primeiro, ao explicar o mecanismo de defesa do eu

contra uma ideia incompatível, Freud faz um contraponto entre o recalque na neurose e o

rechaço na psicose. Diz que na psicose se trata de uma defesa muito mais poderosa e bem

sucedida, capaz de rechaçar tanto o afeto quanto a ideia, como se esta jamais tivesse ocorrido

(FREUD, 1894c/1992, p.59). Depois, desenvolvendo a peculiaridade da defesa paranoica,

Freud apresenta o mecanismo de projeção (FREUD, 1895b/1994, p.249). Este mecanismo

25

será retomado diversas vezes na Obra freudiana, mas será desenvolvido de forma definitiva

apenas em 1911, na interpretação do caso Schreber.

Além disso, Freud descreve uma perda da realidade tanto na neurose quanto na

psicose. Apesar de este assunto só ser detalhado em 1924, Freud (1894c/1992, p.60) já

inscreve uma perda parcial da realidade nas neuroses e uma perda total no que concerne à

realidade nas psicoses. Por fim, ele delimita as neuroses e as psicoses pelo estatuto do que

retorna quando o mecanismo de defesa falha. Desta forma, distingue os sintomas como

retorno do recalcado nas neuroses e as representações delirantes como sintomas do retorno do

recalcado nas psicoses (FREUD, 1896d/1992, p.180).

Acresce-se a tais especificidades alguns pontos decisivos elaborados por Freud em “La

interpretación de los sueños” (FREUD, 1900/1994). São eles: a formalização do aparelho

psíquico pelas instâncias pré-consciente, consciente e inconsciente; a definição deste aparelho

em sua concepção descritiva, dinâmica e sistemática; a apresentação do processo psíquico

primário (PPP) e do secundário (PPS) e dos princípios de constância e de desprazer, que serão

retomados em 1920. Estes pontos são de grande valia não só por se manterem correntes até o

fim da investigação teórica de Freud, mas também por articularem normalidade e loucura de

uma forma completamente original.

Segundo Freud (1900[1899]/1994, p.73), “o sonho alucina”1 ao substituir pensamento

por alucinações. A transformação de representações em alucinações é um aspecto que

aproxima os sonhos dos delírios psicóticos.

Quem fala da relação do sonho com as perturbações mentais pode se referir a três coisas: 1) relações etiológicas e clínicas, por exemplo, se um sonho sub-roga um estado psicótico, o anuncia ou permanece como sequela dele; 2) alterações que sofre a vida onírica em caso de enfermidade mental, e 3) relações internas entre sonho e psicose, analogias que apontam um parentesco essencial (FREUD, p.110; tradução nossa)2.

No texto “La sexualidad en la etiología de las neurosis”, Freud (1898b/1992, p.273) já

havia dito que os sonhos pertencem ao mesmo conjunto dos delírios. Retomando esta questão

em 1900, ele enumera diversos pontos de concordância entre sonhos e delírios (FREUD,

1900[1899]/1994, p.82 ). Em primeiro lugar, a realização do desejo alucinado na neurose e o

desligamento do mundo externo como forma de consumá-la na psicose. Em segundo, a crença

1 O trecho correspondente na tradução é: “el sueño alucina” (grifo do autor; tradução nossa). 2 O trecho correspondente na tradução é: “Quien habla de la relación del sueño con las perturbaciones mentales puede referirse a tres cosas: 1) relaciones etiológicas y clínicas, por ejemplo si un sueño subroga a un estado psicótico, lo anuncia o queda como secuela de él; 2) alteraciones que sufre la vida onírica en caso de enfermedad mental, y 3) relaciones internas entre sueño y psicosis, analogías que apuntan a un parentesco esencial”.

26

indubitável do neurótico na veracidade de seu sonho e a certeza absoluta do psicótico nos

fenômenos elementares concernentes ao sentido e à verdade. Depois, o sonhador ouve seus

próprios pensamentos pronunciados como voz externa, tal como nos delírios auditivos das

psicoses (FREUD, 1900[1899]/1994, p.113). Além disso, a autoconsciência e a consciência

moral – termos com os quais Freud designa o supereu naquela época – são substituídas por

uma supervalorização das realizações mentais do próprio sujeito; elas estão presentes tanto

nos sonhos quanto nos delírios, sendo que, na psicose, ela atinge níveis invasivos e

persecutórios. Vale destacar ainda que tanto no sonho quanto no delírio a experiência da

temporalidade se encontra abolida (FREUD, 1900[1899]/1994, p.113), até mesmo porque, em

ambos, há uma cisão entre a realidade e a realidade psíquica. Enfim, ressaltamos que, para

Freud, sonho e delírio são estruturas providas de significação (FREUD, 1900-1901/1994,

p.523).

No texto “Esquema del psicoanálisis”, Freud equivale o sonho à psicose de uma

maneira impressionante:

Um sonho é, portanto, uma psicose, com todos os despropósitos, formações delirantes e espelhismos sensoriais que ela supõe. Por certo que uma psicose de duração breve, inofensiva, até mesmo dotada de uma função útil; é introduzida com a aquiescência da pessoa, e um ato de sua vontade lhe põe término. Porém é, apesar de tudo, uma psicose, e dela aprendemos que inclusive uma alteração tão profunda da vida anímica pode ser desfeita, pode dar lugar à função normal3 (FREUD, (1940[1938]a/1993, p.173; tradução nossa).

Neste ponto inserimos duas indagações que servirão de guia para esta Tese. Partindo

dos pontos de concordância acima descritos, podemos equivalê-los ao aforismo lacaniano

“Todo mundo é louco”? Em função disso, como podemos explicar a noção de foraclusão

generalizada que vem sendo articulada no Campo freudiano? Em busca de respostas para

estas perguntas, selecionamos alguns trechos que nos permitem supor esta foraclusão na Obra

freudiana.

Por exemplo, no “Manuscrito H”, Freud (1895b/1994, p.249) sugere a ocorrência de

delírios na estrutura neurótica, o que nos permite dissociar a loucura exclusivamente do

campo das psicoses.

[...] estamos habituados (pela expressão das emoções) que nossos estados interiores se revelem diante dos outros. Isso resulta o delírio normal de ser observado e a projeção normal.

3 O trecho correspondente na tradução é: “El sueño es, pues, una psicosis, con todos los despropósitos, formaciones delirantes y espejismos sensoriales que ella supone. Por cierto que una psicosis de duración breve, inofensiva, hasta encargada de una función útil; es introducida con la aquiescencia de la persona, y un acto de su voluntad le pone término. Pero es, con todo, una psicosis, y de ella aprendemos que incluso una alteración tan profunda de la vida anímica puede ser deshecha, puede dejar sitio a la función normal”.

27

E normal é, com efeito, na medida em que em tudo permanecemos conscientes de nossa própria alteração interior4 (tradução nossa).

Em “Introducción del narcisismo” (FREUD, 1914a/1993, p.92) há uma outra

referência a esta mesma questão. Apesar de o supereu ainda não ter sido formalizado, Freud

relata o poder desta instância no delírio de sermos vigiado, tão comum em casos de neurose.

Além disso, no texto “El delirio y los sueños en la ‘Gradiva’ de W. Jensen”, Freud

(1907[1906]/1993, p.37) insiste nesta mesma ideia ao inscrever uma loucura ordinária nos

neuróticos: “Pois bem, a fronteira entre os estados anímicos chamados normais e os

patológicos é em parte convencional, e no que resta é tão fluída que provavelmente cada um

de nós a atravesse várias vezes no curso de um mesmo dia”5 (tradução nossa).

Freud articula as neuroses aos delírios não só nos sonhos e no campo da realidade,

mas também na ordem da fantasia. No texto “Mis tesis sobre el papel de la sexualidad en la

etiología de las neurosis” (FREUD, 1906[1905]/1993, p.266), ele afirma que “[...] e se obteve

também uma analogia realmente surpreendente entre estas fantasias inconscientes dos

histéricos e as invenções que, na paranoia, tornavam-se conscientes na qualidade de delírio”6.

Freud fala sobre uma analogia e não sobre uma equivalência entre os delírios psicóticos e as

fantasias histéricas, pois, apesar de serem da mesma natureza, elas se distinguem na medida

em que estas são inconscientes e aquelas conscientes.

Aqui inserimos uma questão. Partindo destes fragmentos de textos que articulam

delírio e neurose no âmbito do sonho, da realidade e da fantasia, será que poderíamos concluir

que, para Freud, a base de toda estrutura psíquica é psicótica? Além disso, será que esta base

psicótica pode ser deduzida do último ensino de Lacan com a noção de foraclusão

generalizada? Iremos apenas introduzir estas questões, pois iremos trabalhá-las no capítulo 3

desta Tese.

Apesar de Freud ter a neurose como a base de toda estrutura psíquica, em “El malestar

en la cultura” (FREUD, 1930[1929]/1994, p.81), ele generaliza um núcleo paranoico em todo

ser humano. Este núcleo é responsável pela realização alucinatória do desejo no campo da

4 O trecho correspondente na tradução é: “[...] estamos habituados (por la expresión de las emociones) a que nuestros estados interiores se denuncien ante los otros. Esto da por resultado el delirio normal de ser notado, y la proyección normal. Y normal es, en efecto, mientras a todo esto permanezcamos concientes de nuestra propia alteración interior”. 5 O trecho correspondente na tradução é: “Ahora bien, la frontera entre los estados anímicos llamados normales y los patológicos es en parte convencional, y en lo que resta es tan fluida que probablemente cada uno de nosotros la atraviese varias veces en el curso de un mismo día”. 6 O trecho correspondente na tradução é: “[…] y se obtuvo también una analogía realmente sorprendente entre estas fantasías inconcientes de los histéricos y las invenciones que en la paranoia devenían concientes en calidad de delirio”.

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realidade. Mesmo que saibamos que Freud distingue a fantasia do neurótico do delírio

psicótico, suas palavras são esclarecedoras:

Entretanto, se afirmará que cada um de nós se comporta em algum ponto como o paranóico, corrige algum aspecto insuportável do mundo por uma formação de desejo e introduz este delírio no objetivo {die Realität}. Particular significatividade reclama o caso em que um número maior de seres humanos empreende em comum a intenção de criar uma segurança de felicidade e de proteção contra o sofrimento por meio de uma transformação delirante da realidade efetiva7 (tradução nossa).

No texto “Análisis terminable e interminable”, Freud (1937a/1993, p.237) rompe com

a existência de uma normalidade, rebaixando o eu à ordem de uma ficção: “O eu anormal,

inutilizável aos nossos propósitos, infelizmente não é uma ficção. Cada pessoa normal o é

somente medianamente, seu eu se aproxima ao do psicótico nesta ou naquela parte, em grau

maior ou menor”8 (tradução nossa).

Podemos também supor a foraclusão generalizada na descrição freudiana do processo

psíquico primário (PPP)? Duas características nos permitem conectar estes dois elementos.

Em primeiro lugar, o processo primário é um processo irracional, da ordem da alucinação.

Nele não há nenhum caráter qualitativo que possa inscrever a questão do prazer-desprazer.

Podemos interpretá-lo como o campo das pulsões desenfreadas, sem nenhuma ligação, campo

do puro gozo que desencadeia angústia. Depois, o processo primário se encontra no aparelho

psíquico desde o início, a tal ponto que Freud considerada uma “ficção teórica” (FREUD,

1900-1901/1994, p.590-594) o funcionamento do aparelho apenas por este princípio. Não

obstante Freud não utilizar a palavra gozo e sim o termo o primeiro desejar, o interpretamos a

partir da forma como Lacan define o real. Nas palavras de Freud:

O primeiro desejar pode ter consistido em investir alucinatoriamente a lembrança da satisfação. Porém esta alucinação, quando não podia ser mantida até o esgotamento, teve que resultar inapropriada para produzir a cessação da necessidade, e, portanto, o prazer ligado com a satisfação9 (FREUD, 1900-1901/1994, p.588; tradução nossa).

7 O trecho correspondente na tradução é: “Empero, se afirmará que cada uno de nosotros se comporta en algún punto como el paranoico, corrige algún aspecto insoportable del mundo por una formación de deseo e introduce este delirio en lo objetivo {die Realität}. Particular significatividad reclama el caso en que un número mayor de seres humanos emprenden en común el intento de crearse un seguro de dicha y de protección contra el sufrimiento por medio de una transformación delirante de la realidad efectiva”. 8 O trecho correspondente na tradução é: “El yo anormal, inutilizable para nuestros propósitos, no es por desdicha una ficción. Cada persona normal lo es sólo en promedio, su yo se aproxima al del psicótico en esta o aquella pieza, en grado mayor o menor”. 9 O trecho correspondente na tradução é: “El primer desear pudo haber consistido en investir alucinatoriamente el recuerdo de la satisfacción. Pero esta alucinación, cuando no podía ser mantenida hasta el agotamiento, hubo de resultar inapropiada para producir el cese de la necesidad y, por tanto, el placer ligado con la satisfacción”.

29

Em torno de 1905, algumas vias sobre as quais Freud se orientara até então foram

sendo modificadas. Ele abandona a teoria da sedução, a insistência no elemento traumático

presente nas vivências sexuais infantis, e a ênfase nas influências acidentais sobre a

sexualidade. Quando os “traumas sexuais infantis” são substituídos pelo “infantilismo da

sexualidade”, Freud (1906[1905]/1993, p.269) se volta para a importância das fantasias na

causação das afecções mentais, para o estudo dos mecanismos de defesa, para a teoria do

recalcamento e para a teoria pulsional, elementos que modificam o entendimento da formação

dos sintomas (FREUD, 1906[1905]/1993, p.268-269).

Após a “Carta 125” (FREUD, 1899/1994), na qual Freud trata especificamente da

paranoia, ele não se detém diretamente neste tema em nenhum outro lugar. Em 1910, ao se

dedicar à análise do livro de Schreber, Memórias de um doente dos nervos (1903[1901-

1902]/1984), Freud formula sua principal contribuição sobre o tema da paranoia. Se em 1896

ele postula a projeção como o mecanismo de defesa específico da paranoia, em 1911, no texto

“Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia (Dementia paranoides) descrito

autobiográficamente” (FREUD, 1911/1993, p.61), ele a define da seguinte forma: “uma

percepção interna é sufocada, e como substituto dela advém à consciência seu conteúdo, após

experimentar certa desfiguração, como uma percepção externa”10 (tradução nossa). A grande

virada de Freud nesse texto é considerar o mecanismo de projeção a partir do seguinte ponto:

“aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora”11 (FREUD, 1911/1993, p.66;

tradução nossa). Ponto que Lacan retoma e desdobra em O seminário, livro 3: as psicoses

(LACAN, 1955-1956/1997) e sobre o qual nos deteremos no capítulo 2 desta Tese.

Além disso, Freud apresenta as principais formas de paranoia, referindo-as às

contradições de uma mesma fórmula proposicional: “eu (um homem) o amo (um homem)”.

De acordo como o predicado da proposição, o verbo, o objeto e o sujeito são contestados e

invertidos por projeção, formas com as quais Freud descreve a fórmula dos delírios de

perseguição, da erotomania e dos ciúmes, respectivamente. Nesse sentido, o delírio de

perseguição se expressa pelo “eu não o amo, eu o odeio” que, por meio da inversão e da

projeção, se desdobra em “eu não o amo, eu o odeio porque ele me persegue”, ou seja, pura

inversão do verbo. No delírio erotomaníaco o objeto é modificado, então a frase “eu não o

amo, eu a amo”, pelos mesmos mecanismos, se torna “eu não o amo, eu a amo porque ela me

ama”. No delírio de ciúmes, a frase “não sou eu quem ama o homem, ela o ama” significa a

10 O trecho correspondente na tradução é: “Una percepción interna es sofocada, y como sustituto de ella adviene a la conciencia su contenido, luego de experimentar cierta desfiguración, como una percepción de afuera”. 11 O trecho correspondente na tradução é: “[…] lo cancelado adentro retorna desde afuera”.

30

própria inversão do sujeito. Através desse equacionamento teórico a fórmula do delírio

megalomaníaco “eu só amo a mim mesmo”, coloca em cena uma supervalorização sexual do

eu que ela comporta (FREUD, 1911/1993, p.58-61).

Nesse mesmo texto Freud realiza pontuações fundamentais para a clínica das psicoses,

na medida em que o delírio deixa de ser apenas um fenômeno patológico e se torna uma

tentativa de restabelecimento do indivíduo:

O que consideramos produção patológica, a formação delirante, é, na realidade, a intenção

de restabelecimento, a reconstrução. [...] O que se impõe tão ruidosamente à nossa atenção é o processo de restabelecimento, que desfaz o recalque e reconduz a libido às pessoas por ela abandonadas12 (FREUD, 1911/1993, p.65-66, grifos do autor; tradução nossa).

Ainda em 1911, Freud enfatiza a relação estrita entre a paranoia e a fantasia

homossexual que se encontra no cerne da enfermidade de Schreber. Freud realiza essa

articulação por meio do conceito do narcisismo – teorizado em definitivo em “Introducción

del narcisismo” (FREUD, 1914a/1993). Ele explica que em um determinado momento do

desenvolvimento normal do indivíduo, os investimentos autoeróticos, endereçados

inicialmente a si mesmo e ao próprio corpo – estádio denominado narcísico – são

posteriormente investidos em alguma outra pessoa – amor objetal. Quando o indivíduo

demora na passagem do narcisismo ao amor objetal, ele leva para os estádios posteriores de

seu desenvolvimento a escolha homossexual. Portanto, o homossexualismo passivo recalcado,

característico da paranoia, deve ser encontrado entre os estádios de autoerotismo e narcisismo.

Entre 1911 e 1915 os “Trabajos sobre técnica psicoanalítica” oferecem algumas

questões fundamentais no tocante ao diagnóstico diferencial. A dinâmica da transferência e a

importância do início do tratamento permitem Freud delimitar as neuroses e as psicoses a

partir de novas orientações clínicas. O mais notável destas discussões se encontra no texto

“Sobre la iniciación del tratamiento (Nuevos consejos sobre la técnica del psicoanálisis, I)”

(FREUD, 1913a/1993), onde Freud recomenda só aceitar um paciente em análise após se

empreender uma ‘sondagem’ a fim de decidir se o caso é apropriado para a psicanálise. Isto

significa dizer que, neste tempo de entrevistas, o analista deve realizar um diagnóstico

diferencial, atentando-se para os casos de psicose nos quais as produções delirantes não estão

evidentes (FREUD, 1913a/1993, p.125-126). Se uma psicose for constatada, o analista não

deve aceitar o paciente em tratamento, pois, – de acordo com Freud no texto “El interés por el

12 O trecho correspondente na tradução é: “Lo que nosotros consideramos la producción patológica, la formación delirante,

es, en realidad, el intento de restablecimiento, la reconstrucción. […] Lo que se nos hace notar ruidoso es el proceso de restablecimiento, que deshace la represión y reconduce la libido a las personas por ella abandonadas”.

31

psicoanálisis” (FREUD, 1913b/1993, p.169) – “a psicanálise não tem efeito terapêutico sobre

as formas mais graves das enfermidades mentais genuínas”13 (tradução nossa).

Em “Introducción del narcisismo” Freud (1914a/1993) afirma que a noção de

narcisismo decorre da tentativa de incluir o campo das psicoses na teoria da libido,

apresentada em 1905. Apesar de acreditar que a psicanálise não pode oferecer um tratamento

aos psicóticos, Freud elege o campo das psicoses como um meio de acesso privilegiado para

suas investigações sobre o narcisismo. Neste texto, surgem diversos pontos sobre os quais

Freud já havia trabalhado, apesar de ele ainda não ter tirado as devidas consequências clínicas

no que concerne ao diagnóstico diferencial. Destacamos três eixos de trabalho: 1) a libido do

eu e a do objeto; 2) o narcisismo primário e o secundário; 3) as neuroses de transferência e as

neuroses narcísicas.

Para descrever como a psicose se localiza na nova teoria das pulsões, Freud distingue

as pulsões ou interesses do eu das pulsões sexuais, estas últimas subdivididas em libido do eu

e libido objetal. A característica fundamental para o diagnóstico diferencial é saber que o

psicótico toma o próprio eu como objeto, a ponto de fundar uma tautologia do seguinte tipo:

eu = eu. Isso quer dizer que ele não procede como o neurótico, que para fazer existir o eu

precisa fundá-lo a partir de um objeto externo, o que na terminologia lacaniana chamamos de

Outro. Se seguirmos a teoria de Lacan, veremos que no esquema L da dialética intersubjetiva

ele insere no eixo a-a’ esta paranoia originária do eu, válida tanto para neuróticos quanto para

psicóticos. O que diferencia esta paranoia na neurose e na psicose é que, nesta última, o

estatuto do Outro segue o mesmo estatuto do sujeito, ou seja, delirante.

No texto sobre o narcisismo Freud exemplifica a atitude narcisista das psicoses, ou

seja, a maneira que o psicótico toma o próprio eu como objeto, pela megalomania e pela

hipocondria. Partindo da teoria da libido de 1914, ele explica que na primeira, a libido não é

investida em objetos, como ocorre nas neuroses, mas sim no próprio eu do psicótico; portanto,

ela é consequência deste retorno reflexivo (FREUD, 1917[1916-1917]/1994, p.378) da libido

para a instância egóica. Já na hipocondria, a libido é investida no órgão doente tanto na

neurose quanto na psicose (FREUD, 1914a/1993, p.80).

Por este motivo, no que concerne ao diagnóstico diferencial, a hipocondria não é

suficiente para decidir uma estrutura, necessitando assim de outros parâmetros. Estes podem

ser encontrados na articulação de alguns elementos: o narcisismo primário e o secundário, o

eu ideal e o ideal do eu. Segundo Freud, o eu ideal é o substituto do narcisismo primário, na

13 O trecho correspondente na tradução é: “El psicoanálisis no consigue terapéuticamente nada en las formas graves de las genuinas enfermedades mentales”.

32

medida em que ele é o gozo não renunciado do infantil. Em decorrência de sua origem

pulsional, o eu ideal é caracterizado pela identificação à onipotência megalomaníaca, comum

nos fenômenos psicóticos. Para Freud, a constituição do eu implica em um distanciamento do

narcisismo primário por meio de um deslocamento da libido narcísica em direção a um ideal

imposto de fora (FREUD, 1914a/1993, p.90-91).

As exigências culturais e estéticas da sociedade são tomadas como um padrão para o

indivíduo de tal modo que ele se submete e responde a suas reivindicações. Desta forma, fixa-

se “um ideal pelo qual mede seu eu atual”14 (FREUD, 1914a/1993, p.90) na tentativa de

recuperar a perfeição narcísica da qual teria outrora desfrutado no narcisismo primário. Esta

medida do eu pelo ideal é realizada por uma “instância de censura”15 (FREUD, 1914a/1993,

p.93) também chamado de consciência moral, que vigia e critica todas as atividades do

indivíduo. Neste momento Freud ainda não chamava esta consciência moral de supereu, mas

esta instância já estava sendo elaborada mesmo sem ser nomeada. Já que o Ideal do eu é

tutelado pelo supereu, sua formação constitui um fator preponderante a favor do recalque, na

medida em que ele aumenta as exigências do eu (FREUD, 1914a/1993, p.92).

Ao associar o processo de recalcamento à formação do Ideal, este se torna um índice

fundamental no que concerne ao diagnóstico diferencial. Ao contrário das neuroses, não há

nenhuma formação deste Ideal na estrutura psicótica. Em decorrência desta inexistência, o

mecanismo de recalque não se torna operativo e o supereu é vivenciado pelos fenômenos de

automatismo mental: a autocrítica surge na alucinação auditiva e a auto-observação nos

delírios de estar sendo vigiado.

Enfim, apenas em 1914 encontramos uma nova distinção estrutural que classifica as

neuroses e as psicoses em grupos distintos. Apesar de esta demarcação continuar sob a

insígnia da neurose, neste momento o diagnostico diferencial é realizado pelo estatuto da

transferência e pela influência da psicanálise sobre o paciente: as neuroses de transferência –

que englobam a histeria, a fobia e a neurose obsessiva – são aquelas a quem a psicanálise

pode oferecer êxito no tratamento pela sua terapêutica; e as neuroses narcísicas – que reúnem

a parafrenia (demência precoce e paranoia), a melancolia-mania e a esquizofrenia –

incapacitam uma promessa de cura pela impossibilidade destes pacientes estabelecerem uma

transferência.

14 O trecho correspondente na tradução é: “[...] un ideal por el cual mide su yo actual” (grifo do autor; tradução nossa). 15 O trecho correspondente na tradução é: “instancia censuradora” (grifo do autor; tradução nossa).

33

No ano seguinte, no texto “Lo inconciente”, Freud (1915c/1993, p.199) se pergunta se

haveria alguma especificidade do recalque no campo das psicoses:

A fórmula segundo a qual o recalque é um processo que ocorre entre os sistemas Ics. e Pcs. (ou Cs.), resultando que algo é mantido longe da consciência, sem dúvida tem que ser modificada para incluir o caso da demência precoce e de outras afecções narcisistas16 (grifos do autor; tradução nossa).

É a primeira vez que Freud duvida de que a teoria do recalcamento utilizado para

explicar as manifestações sintomáticas das neuroses de transferência poderia ser utilizada da

mesma forma para entender os fenômenos das psicoses. Esta questão fica em suspenso até

1924, quando Freud escreve os textos “Neurosis y psicosis” (FREUD, 1924[1923]/1993) e

“La perdida de realidade em la neurosis y la psicosis” (FREUD, 1924/1993). Por mais que

não encontre uma resposta para a especificidade de um mecanismo próprio à psicose, nestes

textos Freud avança um pouco mais, desenvolvendo a importância do que vem em

substituição à perda da realidade.

Em “Más allá del principio de placer” (FREUD, 1920/1993), ele retoma uma questão

já anunciada em 1900. Ainda tomado pelo ponto de vista econômico – adotado desde seu

“Proyecto de psicología” (FREUD, 1950[1895]/1994) –, em 1920 Freud elabora o

funcionamento do aparelho psíquico a partir das ideias de estabilidade e constância e, para

este desenvolvimento, ele se serve dos princípios de prazer e do de realidade. Neste percurso

Freud descobre que estas ideias não podem ser cumpridas pelo aparelho, pois a compulsão à

repetição domina o principio de prazer e aponta para um além. Esta constatação permite Freud

retomar a teoria pulsional de 1914 e equipará-la às pulsões de vida e de morte, da seguinte

forma: a pulsão de morte, originária de Tânatos, o princípio de destruição de onde parte o

homem, exige um Eros, uma pulsão de vida que forneça um principio para que o homem se

situe em sua erótica.

Segundo o comentário de James Strachey sobre “El yo y el ello”, este texto pode ser

considerado “o último dos grandes trabalhos teóricos de Freud” (FREUD, 1923a/1993, p.4).

A partir dele, tudo o que se segue possui a marca da terminologia empreendida por Freud

nesta nova descrição do aparelho psíquico. As instâncias do isso, eu e supereu permitem

alguns avanços clínicos fundamentais no que concerne ao campo das psicoses, que podem ser

depreendidos em dois textos: “Neurosis y psicosis” (FREUD, 1924[1923]/1993) e “La

16 O trecho correspondente na tradução é: “La fórmula según la cual la represión es un proceso que ocurre entre los sistemas Icc y Prcc (o Cc), con el resultado de que algo es mantenido lejos de la conciencia, sin duda tiene que ser modificada para incluir el caso de la dementia praecox y de otras afecciones narcisistas”.

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pérdida de realidad en la neurosis y la psicosis” (FREUD, 1924/1993). A aplicação das

hipóteses contidas no primeiro texto permite Freud definir o diagnóstico diferencial das

estruturas clínicas de uma forma inédita: “a neurose é o resultado de um conflito entre o eu e

o isso, enquanto que a psicose é o desenlace análogo de uma perturbação similar nos

vínculos entre o eu e o mundo exterior”17 (FREUD, 1924[1923]/1993, p.155, grifos do autor;

tradução nossa).

Com o objetivo de responder à questão levantada em 1915 sobre a teoria do

recalcamento, no texto de 1924 Freud investiga a existência de um mecanismo específico das

psicoses, análogo, mas distinto do recalcamento das neuroses. Partindo das novas ferramentas

teóricas que têm a sua disposição, ele inicia sua pesquisa a partir das duas formas pelas quais,

nas neuroses, o mundo externo dirige o eu: por meio de percepções atuais em constantes

transformações e pelas percepções antigas, que formam parte do eu. De forma diferente do

que ocorre com as neuroses, nas psicoses não só as novas percepções são recusadas, como

também o mundo interno perde sua significação (FREUD, 1924[1923]/1993, p.156). Como

consequência desta recusa e da perda do investimento libidinal, o eu é arrancado da realidade

e, em troca, cria um novo mundo – tanto interno quanto externo – em acordo com as

imposições do isso.

Se em 1914 Freud descreve o delírio como um “processo de recuperação” (FREUD,

1914a/1993, p.83), em 1924 ele surge como um “remendo” sobre a fenda que se abre entre o

eu e o mundo externo. Esta fenda é cerzida pela nova realidade, criada mediante a alucinação.

O fragmento de realidade rejeitado nas psicoses se impõe constantemente ao psiquismo – tal

como o recalcado na neurose –, e denuncia o fracasso do remodelamento da realidade de

forma satisfatória.

Um ano depois Freud retoma estes questionamentos. Se em “Neurosis y psicosis”

(FREUD, 1924[1923]/1993), ele se preocupa em relacionar o conflito entre as instâncias

psíquicas, em “La pérdida de realidad en la neurosis y la psicosis” (FREUD, 1924/1993), se

concentra nas consequências deste conflito para a perda da realidade. Nas psicoses, esta perda

se dá em duas etapas: na primeira, submetido ao isso o eu é afastado da realidade; na segunda,

há uma reparação do dano causado por este afastamento, restabelecendo, à custa do isso,

relações com uma nova realidade que substitui a anterior sem levantar as mesmas objeções

(FREUD, 1924/1993, p.194-195). Já que a perda da realidade não é exclusividade das

17 O trecho correspondente na tradução é: “La neurosis es el resultado de un conflicto entre el yo y su ello, en tanto que la

psicosis es el desenlace análogo de una similar perturbación en los vínculos entre el yo y el mundo exterior”.

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psicoses, o meio pelo qual cada estrutura substitui a realidade suprimida ganha maior

relevância que a própria perda da realidade.

Ao investigar sobre a perda da realidade e sobre um substituto para esta perda, Freud

busca descobrir um modo de o eu obter êxito, ou seja, de não cair enfermo, nem pelo fracasso

do recalque nas neuroses nem pelas alucinações nas psicoses. Para ele, um comportamento

sadio decorre da combinação de algumas características: “[...] como a neurose, não desmente

a realidade, mas, como a psicose, se empenha em modificá-la”18 (FREUD, 1924/1993, p.195).

No texto “El humor” (FREUD, 1927/1994, p.160), encontramos uma passagem digna

de nota. Freud diz que nos estudos sobre casos de paranoia ele percebe que algumas ideias de

perseguição se formam precocemente, mas se mantém sem qualquer efeito perceptivo até que

um determinado evento as precipite. Quando é retirada a quantidade de catexia que as levam a

se tornarem dominantes, há uma solução das crises paranoicas. Supomos neste fragmento um

desenvolvimento embrionário da noção de desencadeamento da psicose que nos permite

associar a questão das psicoses ordinárias, sobre as quais nos deteremos no capítulo 3 desta

Tese.

Por fim, no texto “Construcciones en el análisis”, Freud (1937b/1993) sugere uma

possível intervenção psicanalítica em casos de psicose. Se anteriormente ele privilegiava o

desligamento da realidade e a influência exercida pela realização do desejo sobre o conteúdo

dos delírios, agora verifica que eles são mais dependentes das pulsões inconscientes e do

retorno do recalcado do que havia previsto anteriormente. Apesar desta visão não ser

inteiramente nova, com ela Freud rearticula alguns elementos de forma a inscrever uma

metodologia própria à loucura, que deriva sua força de fontes infantis.

Com a constatação desta origem, Freud propõe, pela primeira vez, a possibilidade de

um tratamento analítico em casos de psicose. O trabalho terapêutico se desenvolve sobre o

núcleo de verdade histórica (FREUD, 1937b/1993, p.269) que substitui a realidade rejeitada.

Este trabalho consiste em libertar o fragmento de verdade de suas deformações e ligações com

a realidade, e conduzi-lo de volta para o passado ao qual ele pertence.

Uma primeira conclusão que pode ser depreendida deste percurso pelos textos

freudianos é que Freud não formulou um mecanismo específico para as psicoses. Desta forma,

ele não pode conceber uma especificidade da estrutura subjetiva do psicótico, apesar de, em

diversos momentos, ter apresentado elaborações que pudessem levá-lo nesta direção. Sem

estes elementos, ele não pôde recomendar o tratamento analítico a casos de psicose. Afinal,

18 O trecho correspondente na tradução é: “[…] como la neurosis, no desmiente la realidad, pero, como la psicosis, se empeña en modificarla”.

36

fazê-lo sobre os parâmetros da neurose nos faria pensar em uma direção analítica pautada na

neurotização do psicótico.

A seguir apresentaremos alguns fragmentos do caso Schreber escrito por Freud em

“Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia (Dementia paranoides) descrito

autobiográficamente” (FREUD, 1911/1993), e retomado por Lacan em O seminário, livro 3:

as psicoses (LACAN, 1955-1956/1997) e em seus Escritos (LACAN, 1959[1957-

1958]/1998). Nosso objetivo é discutir a hipótese levantada por Jacques-Alain Miller

(2008/2010, p.14) de uma psicose ordinária em Schreber, tendo em vista que o

desencadeamento da psicose do presidente ocorreu muito tardiamente.

Levantamos algumas questões como guias para o desenvolvimento deste próximo item

da Tese: o que caracteriza uma psicose ordinária? Podemos diagnosticar Schreber a partir

desta noção? O período anterior ao desencadeamento clássico da psicose extraordinária de

Schreber pode ser nomeado de psicose ordinária? A eclosão da psicose extraordinária impede

que se diga que se trata de uma psicose ordinária?

1.2 O caso Schreber escrito por Freud e retomado por Lacan

Segundo William Niederland (1981), Daniel Paul Schreber provinha de uma família

de burgueses protestantes, abastados e cultos, que já no século XVIII buscavam a celebridade

através do trabalho intelectual. Muitos de seus antepassados deixaram obras escritas sobre

Direito, Economia, Pedagogia e Ciências Naturais, onde são recorrentes as preocupações com

a moralidade e o bem da humanidade. Seu pai, Daniel Gottlieb Moritz Schreber, era médico

ortopedista e pedagogo, autor de cerca de vinte livros sobre ginástica, higiene e educação para

crianças; ele pregava uma doutrina educacional rígida e implacavelmente moralista, que

objetivava exercer um controle completo sobre todos os aspectos da vida, desde os hábitos de

alimentação até a orientação espiritual do futuro cidadão. Daniel Gottlieb acreditava que seu

trabalho contribuiria para aperfeiçoar a obra de Deus e a sociedade humana. Para garantir a

postura ereta do corpo da criança em todos os momentos do dia, inclusive durante o sono, ele

projetou e construiu vários aparelhos ortopédicos de ferro e couro. Para ele, a retidão do

espírito era fruto do aprendizado precoce de todas as formas de contenção emocional e da

supressão radical dos chamados sentimentos imorais, entre os quais naturalmente todas as

manifestações da sexualidade.

37

A autobiografia de Daniel Paul Schreber – Memórias de um doente dos nervos – foi

lançada em 1903, mas só chegou às mãos de Freud alguns anos depois. Este livro surge como

uma nova oportunidade para Freud verificar algumas hipóteses clínicas e avançar na

investigação sobre os mecanismos da paranoia.

De acordo com o texto “Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia

(Dementia paranoides) descrito autobiográficamente” (FREUD, 1911/1993), Daniel Paul

Schreber foi juiz de um tribunal de apelação em Dresden, era doutor em Direito, um “homem

de espírito superior, de inteligência inusualmente aguda e de um penetrante poder de

observação”19 (FREUD, 1911/1993, p.12; tradução nossa).

Schreber sofreu por duas vezes de distúrbios nervosos decorrentes de grande tensão

mental. A primeira doença aconteceu em 1884 quando, aos 42 anos de idade, foi internado

por um período de seis meses na clínica para doenças nervosas da Universidade de Leipzig,

dirigida pelo Dr. Flechsig. Na época, Schreber havia sido nomeado vice-presidente do

Tribunal Regional de Chemnitz após uma fracassada concorrência às eleições parlamentares

pelo Partido Nacional Liberal. No final de 1885 ele se encontrava completamente

restabelecido da grave crise de hipocondria com ideias de emagrecimento, “sem nenhum

incidente que tocasse o âmbito do sobrenatural”20 (FREUD, 1911/1993, p.13; tradução nossa).

Há relatos de que o quadro que Schreber apresentou na primeira internação era mais

grave que uma crise hipocondríaca, pois já havia manifestações delirantes não sistematizadas

e a ocorrência de duas tentativas de suicídio; há também vagas referências a um episódio de

hipocondria, datado de 1878, por ocasião de seu casamento. Essas informações se

acrescentam ao comentário de Lacan, que aponta o primeiro aparecimento da doença de

Schreber como “não sem fundamento pré-psicótico” (LACAN, 1955-1956/1998, p.76).

Este período inicial de perturbação em Schreber é denominado por Lacan de momento

fecundo. “Este momento fecundo sempre é sensível no início de uma paranoia. Há sempre

uma ruptura [...]. O desenvolvimento de causas internas de uma paranoia não é insidioso, há

sempre acessos, fases” (LACAN, 1955-1956/1998, p.26), até que uma ruptura se coloque para

o sujeito, marcando em sua história um antes e um depois. Portanto, Schreber já apresentava

um conjunto de sintomas, que só pôde ser lido no a posteriori, como indício de uma estrutura

psicótica, a partir de seu desencadeamento. Em Lacan:

19 O trecho correspondente na tradução é: “[…] hombre de sobresaliente espíritu, de inteligencia inusualmente aguda y de un penetrante poder de observación”. 20 O trecho correspondente na tradução é: “[…] sin incidente alguno que rozara el ámbito de lo suprasensible”.

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Nada se parece tanto com uma sintomatologia neurótica quanto uma sintomatologia pré-psicótica. Uma vez formulado o diagnóstico, vão nos dizer então que o inconsciente se acha aí exposto de fora, que tudo o que é do id passou no mundo exterior, e que as significações em jogo são tão claras que não podemos precisamente intervir de maneira analítica (LACAN, 1955-1956/1998, p.218-219).

Em 1893 uma segunda internação foi necessária. Schreber foi nomeado para o cargo

de juiz-presidente da Corte de Apelação de Dresden, no qual trabalhou como Senatsprasident

por apenas dois meses. A nomeação, indicada por determinação direta do rei, era irreversível,

e sua recusa implicava em delito de lesa-majestade. Além de ser jovem para presidir um

tribunal de apelação daquela importância, ele iria se relacionar com pessoas muito mais

experientes que ele no manejo de processos difíceis e delicados. Essa promoção pode ser

considerada, à primeira vista, o ponto desencadeador da psicose extraordinária de Schreber,

que só se evidencia claramente nesta segunda internação.

Na época de sua segunda enfermidade ele sonhou que o distúrbio nervoso havia

voltado: algumas vezes nesse período, entre o sono e a vigília, teve uma ideia que certamente

rejeitaria com veemência se estivesse consciente: “a representação da grande beleza que é sem

dúvida ser uma mulher submetida ao coito”21 (Cf. FREUD, 1911/1993, p.14; tradução nossa).

Schreber voltou a procurar Flechsig. Foi levado para o hospital Lindenhof e, em seguida, ao

sanatório de Sonnenstein, de onde saiu apenas oito anos depois.

Esta segunda enfermidade foi inicialmente marcada por uma grave insônia e seguida

de uma crise de hipocondria: ele dizia sofrer de um amolecimento do cérebro e que iria

morrer cedo. Mais adiante apareceram ideias de perseguição, ilusões visuais e auditivas,

estupor alucinatório, despedaçamento corporal – ausência de bexiga, estômago e intestinos,

quase sem pulmão, com o esôfago rasgado, costelas despedaçadas (FREUD, 1911/1993, p.17)

–, distúrbios cenestésicos que dominavam seus pensamentos e sentimentos. Além destes

fenômenos elementares concernentes ao corpo, o sistema delirante de Schreber assumia

gradativamente um caráter místico e religioso. Freud diagnostica o segundo padecimento de

Schreber como uma psicose aguda, denominada de insanidade alucinatória, com uma

elaborada estrutura delirante. A psicose de Schreber eclode nos moldes de uma psicose

extraordinária.

Apesar de nos causar imenso interesse, não iremos n

39

Além disso, orientados pela afirmação de Miller sobre a possibilidade do diagnóstico de

psicose ordinária (MILLER, 2008/2010, p.12), apresentamos algumas conclusões que nos

permitem começar a responder às questões colocadas no preâmbulo deste item da Tese.

Destacamos que os fenômenos da psicose ordinária de Schreber são velados pelos

chamados distúrbios nervosos decorrentes de grande tensão mental (FREUD, 1911/1993,

p.13). Tanto na primeira quanto na segunda enfermidade, estes distúrbios dizem respeito a

uma crise de hipocondria com ideias de emagrecimento. Eles nos permitem inferir que, em

Schreber, o início da sintomatologia psicótica concerne basicamente a fenômenos do corpo.

Miller (2009/2010, p.13) ensina que, quando uma psicose não é evidente, devemos nos

voltar para pequenos índices que apontam para o que Lacan nomeou de “uma desordem

provocada na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito” (LACAN, 1957-

1958/1998, p.565). Para Miller (2009/2010, p.14), esta desordem no sentimento de vida pode

ser encontrada nos registros corporal, social e subjetivo. Quando se trata da externalidade

corporal, ele destaca que tanto a neurose quanto a psicose são marcados por uma estranheza

do sujeito em relação ao corpo próprio. Portanto, um diagnóstico diferencial não pode estar

pautado na presença ou ausência destes fenômenos de automatismo corporal – como, por

exemplo, a vivência de uma decomposição, de um desmembramento, as distorções do tempo

e/ou do espaço (MILLER, 1987/1997, p.227) –, mas sim na tonalidade que se apresentam em

uma determinada estrutura. Depreendemos assim que a grave crise de hipocondria que leva

Schreber à primeira internação possui este tom excessivo, e caracteriza os fenômenos

corporais desta psicose.

De acordo com Freud, Schreber sai desta primeira internação completamente

restabelecido, sem a ocorrência de quaisquer incidentes que tocassem as raias do sobrenatural

(FREUD, 1911/1993, p.13). Se retomamos os ensinamentos de Lacan sobre pré-psicose,

podemos interpretar esta passagem freudiana como índice de uma psicose ainda não

deflagrada, em uma fase de “incubação pré-psicótica” (LACAN, 1955-1956/1997, p.247).

Esta indicação é fundamental quando se trata do desencadeamento de uma psicose, assunto

que será desenvolvido detalhadamente no capítulo 2 desta Tese.

Mas, para avançarmos neste trabalho de pesquisa sobre uma possível psicose ordinária

em Schreber, vale notar que, conforme o primeiro ensino de Lacan o desencadeamento:

É num acidente desse registro e do que nele se realiza, a saber, na foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro, e no fracasso da metáfora paterna, que apontamos a falha que confere à psicose sua condição essencial, com a estrutura que a separa da neurose (LACAN, 1959[1957-1958]/1998, p.582).

40

A característica fundamental desta noção é o fato de o desencadeamento inscrever uma

ruptura que diferencia um antes e um depois de forma radical. Esta ruptura não se inscreve

neste momento da enfermidade de Schreber. O que houve para que a psicose de Schreber não

tenha sido desencadeada na primeira enfermidade?

Seguindo as investigações de Miller (2009/2010, p.23-24) sobre o tema da psicose

ordinária, podemos pensar que este desencadeamento não ocorreu porque Schreber contava

com um compensatory make-believe (CMB), um fazer-crer compensatório do Nome-do-Pai.

O CMB funciona como um elemento ordenador do mundo de um sujeito na medida em que

possui a propriedade do Nome-do-Pai, sem sê-lo. Quando o CMB é rompido, o

desencadeamento de uma psicose se manifesta.

Só podemos localizar um desencadeamento da psicose de Schreber em sua segunda

internação. Ela acontece logo após a nomeação de Schreber ao cargo de Senatsprasident.

Associamos essa promoção como o ponto desencadeador de sua psicose extraordinária, pois

ao assumir este posto ele iria “se relacionar com pessoas muito mais experientes que ele no

manejo de processos difíceis e delicados”. Após um primeiro período no qual a hipocondria

trouxe uma desorganização fundamentalmente corporal, Schreber experimentou uma

estabilização que o permitiu atingir uma posição bastante importante como juiz.

Retomando os registros nos quais Miller aponta a desordem mais íntima do ser,

propomos pensar a nomeação de Schreber como vice-presidente do Tribunal Regional de

Chemnitz e posteriormente como juiz-presidente da Corte de Apelação de Dresden. Seguindo

Miller, a externalidade social é caracterizada por sinais de impotência, desconexão e

desligamento da identificação do sujeito com sua função social. Podemos localizá-la em

Schreber na constatação de que ambas as nomeações foram seguidas de graves crises de

hipocondria? Pelo ensino de Lacan, entendemos que ao ser solicitado a responder do ponto de

vista do Nome-do-Pai, Schreber falha. Esta impossibilidade desencadeia a psicose e exige

uma reorganização do mundo pelas vias da metáfora delirante Mulher de Deus. Citamos

Miller:

O que teria acontecido se Schreber tivesse vindo à análise antes do desencadeamento de sua psicose? Ainda não havia a psicanálise naquela época, mas imaginem que ele tivesse sido tratado por Freud. Talvez antes dos cinquenta e um anos, vocês já teriam podido observar particularidades na construção de seu mundo, que os teria levado a dizer que ele era um psicótico ordinário. Freud não conhecia a psicose ordinária – é claro que ele conhecia muitas coisas bem mais importantes –, mas talvez o que chamamos de psicose ordinária seja uma psicose que não se manifesta até seu desencadeamento (MILLER, 2009/2010, p.12).

41

Vale notar que Miller inscreve no CMB a possibilidade de o psicótico se reorganizar

tão bem quanto antes do desencadeamento. Isto explica o fato de Schreber restabelecer, com

suas Memórias, uma espécie de atividade compensatória que o possibilitou não só certa

estabilização, mas também reaver a posse dos direitos que havia perdido com sua internação.

Sabe-se que Schreber alcançou uma estabilização precária durante o longo período de

escrita de suas Memórias e se manteve estabilizado por um período mesmo depois da

publicação de sua autobiografia. Mas, distinto do caso Joyce – que Lacan trabalha em O

seminário, livro 23: o sinthoma (LACAN, 1975-1976/2007, p.75-87) –, o escrito schreberiano

denota uma suplência posterior ao desencadeamento de sua psicose, ao contrário de Joyce

cuja suplência pelo ego evitou a catástrofe. Ao final do segundo capítulo desta Tese serão

acrescentadas algumas questões introduzidas por Lacan em O seminário 23, em torno da

pergunta se Joyce é louco ou não.

Após a alta no final de 1902, Schreber levou uma vida aparentemente normal por

alguns anos até que, em 1907, sua esposa sofreu uma crise de paralisia que provavelmente

precipitou um novo aparecimento da patologia delirante. Foi novamente internado e ali

permaneceu inabordável e fortemente perturbado. Após um período de gradual deterioração

física morreu na primavera de 1911 (FREUD, 1911/1993, p.7).

A psicose ordinária gera muitas discussões no Campo freudiano. Como dissemos na

Introdução desta Tese, com esta terminologia Miller propõe um campo de investigação no

qual uma estrutura psicótica não se evidencia de forma tão clara como acontece após a

irrupção de um surto. Os fenômenos elementares e o delírio se apresentam de uma forma tão

discreta que algumas vezes confunde o analista em seu diagnóstico diferencial.

O maior impasse em relação à psicose ordinária gira em torno do desencadeamento.

Alguns analistas, como Marie-Hélène Brousse, acreditam que a psicose ordinária é uma

psicose desencadeada:

[...] a psicose ordinária é uma psicose desencadeada ou não? Penso que ela é. Entre nós, alguns pensam que ela não é [...]. Portanto, penso que se trata de uma psicose desencadeada. O problema agora é saber se esse desencadeamento tem uma especificidade (BROUSSE, 2008/2009, p.12).

Sendo assim, a terminologia psicose ordinária pode ser utilizada em casos nos quais

uma psicose não deflagrada possa desencadear e se tornar uma psicose extraordinária.

Seguindo esta lógica, falamos de uma psicose ordinária até o momento da eclosão psicótica.

A especificidade do desencadeamento é a possibilidade de um encadeamento após um surto,

fazendo com que a fenomenologia ruidosa se arrefeça novamente.

42

No entanto, há analistas que mostram uma opinião distinta. Eles acham que uma

psicose ordinária é caracterizada pela ausência do desencadeamento, o que não impede que

fenômenos psicóticos possam existir de uma forma bastante branda ou até mesmo silenciosa.

Nesta perspectiva encontramos a clareza de Jacques-Alain Miller e de Graciela Brodsky. Ele

nos diz que “há psicoses adormecidas, como existem espiões adormecidos, que jamais

acordarão. Há diferença entre as psicoses que podem ser desencadeadas e as que não podem”

(MILLER, 2009/2010, p.23). Nesta mesma direção Brodsky afirma que “a psicose ordinária

tem um modo de enodamento que não implica o desencadeamento [...]. É uma psicose que

não desencadeou nem vai desencadear” (BRODSKY, 2009/2011, p.47).

Levando em consideração a posição de ambos, não podemos afirmar que Schreber seja

um psicótico ordinário. Por mais que ele contasse com o compensatory make-believe (CMB)

que permitiu que a psicose não se desencadeasse na primeira internação, e que a escrita lhe

fornecia uma estabilização temporária, o sistema delirante era evidenciado por um conjunto

de fatores: hipocondria, irritabilidade, distúrbio do sono, tentativas de suicídio e ideias de

emagrecimento. Isto faz crer que havia um sistema delirante que estava prestes a ser

desencadeado, aguardando apenas um momento fecundo para vir à tona.

1.3 Sobre o diagnóstico do Homem dos Lobos

Em uma via distinta do que apresentamos sobre Schreber – onde uma psicose

extraordinária se evidencia de forma clara pelos fenômenos elementares e por um sistema

delirante consistente –, neste item da Tese investigaremos a hipótese de uma psicose ordinária

no caso freudiano do Homem dos Lobos. O relato de Freud mostra alguns índices que nos

possibilitam tomar Sergei Pankejeff como um caso paradigmático, pois no período em que ele

o atendia não se verificava a presença de alucinações típicas ou transtornos de linguagem tão

comuns em casos de psicoses desencadeadas. Apesar de localizarmos alguns elementos que

indicam ao menos uma fenomenologia psicótica na época em que ele se analisava com Freud

– a posição fixa do olhar dos lobos e a alucinação do dedo cortado, por exemplo –, ainda hoje

o Homem dos Lobos suscita discussões sobre o diagnóstico diferencial entre neurose e

psicose.

Destacamos que na época em que relata este caso clínico, Freud está sob a influência

de dois postulados: os acontecimentos traumáticos da primeira infância e a cena primária são

43

fundamentais para a produção das afecções neuróticas. Com estas ferramentas clínicas Freud

diagnostica o Homem dos Lobos como um caso de neurose infantil e, sem perceber, descreve

o mecanismo de foraclusão da psicose, Verwerfung, do qual Lacan se serve em todo o seu

primeiro ensino.

Sabemos que o Homem dos Lobos tornou publica sua história psicanalítica com Freud

e, graças a essas publicações, podemos ter acesso aos desenvolvimentos de suas duas análises

posteriores, com Ruth Mack Brunswick e Muriel Gardiner. Portanto, ao final de nossa

exposição do caso de Freud, iremos retomar alguns elementos destas outras análises, com o

intuito de defender que a fenomenologia psicótica do sujeito já estava presente desde o início

da análise com Freud, mas se torna evidente apenas no tratamento com Brunswick e Gardiner.

Assim, propomos realizar uma leitura do texto “De la historia de una neurosis infantil”

(FREUD, 1918[1914]/1994), baseada em algumas interpretações de Lacan, em seu retorno a

Freud. Além disso, iremos cotejar nosso trabalho com as considerações de Jacques-Alain

Miller e de Agnès Aflalo, analistas que se detiveram neste tema com bastante esmero.

Partimos de algumas questões iniciais. Podemos afirmar que o Homem dos Lobos é

um caso de psicose? No período em que ele era atendido por Freud, o diagnóstico de psicose

ordinária cabe ao Homem dos Lobos? O que levou Freud a diagnosticá-lo como uma neurose?

Estas questões são fundamentais, na medida em que o diagnóstico do Homem dos

Lobos não é unânime no campo psicanalítico. Muitos analistas se detiveram neste caso

freudiano sem que tenha se chegado a nenhuma conclusão definitiva. Em relação a este

impasse, Miller (1987/2009, p.10) esclarece que:

A variedade dos diagnósticos é na realidade fundada sobre o que Freud nos traz: um caso em que se avizinham ligações libidinais as mais contraditórias e variadas. Todo o esforço de Lacan, com acentos variados, incide essencialmente sobre a organização das diversas ligações libidinais coexistentes. Ele vai buscar organizá-las repartindo-as, eventualmente estratificando-as, e mesmo hierarquizando-as. Os diagnósticos dependem então do modo como organizam essas ligações libidinais: neurose com tendência psicótica, caso-limite com tendência a acting-out, obsessão com forte coloração paranóide etc. (grifo do autor).

Vale notar que no texto “Homem dos Lobos”, Miller (1987/2010) ainda não havia

proposto o programa de investigação sobre as psicoses ordinárias. Como esta pesquisa

começa apenas dez anos depois da escrita deste texto, Miller não conta com esta categoria

para situar a questão do diagnóstico. Em uma interpretação no a posteriori, podemos concluir

que o cerne do impasse que leva Miller a causar o Campo freudiano para uma retomada das

psicoses em Lacan, já se encontra latente na década de 80. Portanto, iremos nos deter neste

texto de Miller sem perder de vista suas elaborações posteriores sobre as psicoses ordinárias,

44

pois apostamos que o paradigmático do caso de Freud pode ser esclarecido pelas descobertas

deste programa de pesquisa.

Quando chegou ao consultório de Freud, Sergei Pankejeff tinha18 anos de idade. O

que o levou a buscar uma análise foi uma infecção orgânica que o deixou inteiramente

incapacitado e dependente de outras pessoas (FREUD, 1918[1914]/1994, p.9). A primeira

fase do tratamento se desenvolveu entre 1910 e 1914, ano em que Freud conclui esta análise e

inicia a escrita do caso. Segundo o relato de Freud, trata-se de uma neurose da vida adulta

precedida por uma neurose infantil, iniciada em torno dos quatro anos de idade. Freud

diagnostica o Homem dos Lobos como “uma histeria de angústia (na forma de uma fobia

animal), que se transformou então numa neurose obsessiva de conteúdo religioso e perdurou,

com as suas manifestações, até os dez anos” (FREUD, 1918[1914]/1994, p.9-10).

No texto em que relata este caso, Freud divide a história clínica do Homem dos Lobos

da seguinte forma: 1) período que se estendeu até a sedução da irmã, quando o menino tinha

em torno de três anos; 2) ocasião em que ocorreu uma alteração de comportamento no menino

até o sonho de angústia com os lobos, aproximadamente aos quatro anos; 3) momento em que

a fobia animal foi sucedida por uma iniciação religiosa, alguns meses após o período

precedente; 4) tempo de irrupção da neurose e dos sintomas obsessivos, até seus dez anos de

idade (FREUD, 1918[1914]/1994, p.58).

De forma a tornar nossa pesquisa didática, seguiremos esta divisão proposta por Freud.

Além disso, discorreremos brevemente sobre as tipologias clínicas que aparecem durante o

relato do caso, direcionando o leitor para o nosso objetivo, a saber, contrastar o diagnóstico

freudiano com a questão da psicose ordinária, que levantamos como uma hipótese de

investigação.

Quando fala sobre o diagnóstico do Homem dos Lobos, Freud não duvida que se trate

de uma neurose infantil. Mas em alguns momentos do texto ele indica que, em relação à

patologia apresentada pelo paciente, haviam outras opiniões contrárias à dele. Ele se refere ao

fato de que ao chegar ao seu consultório, Sergei Pankejeff já havia consultado outros

psiquiatras – como Kraepelin, em Munique, e Bleuler, em Zurique – que o diagnosticaram

como uma psicose maníaco-depressiva. Nas palavras de Freud: “Assim, formulei a ideia de

que este caso, como tantos outros que a psiquiatria clínica rotulou com diagnósticos variáveis

e modificáveis, deveria se converter como sequela de uma neurose obsessiva que se extinguiu

45

de maneira espontânea, porém curou de forma deficiente” (FREUD, 1918[1914]/1994, p.10;

tradução nossa)22.

Acompanhamos a dificuldade de Freud manter sua hipótese diagnóstica, divergente da

dos melhores especialistas em psiquiatria, e seu temor em não poder esclarecer a articulação

dos dados recolhidos no percurso do tratamento do paciente. Em diversas passagens do texto

alguns enigmas questionam o diagnóstico de neurose. Segundo Freud, muitos detalhes

pareceram tão extraordinários e incríveis que ele sentiu certa hesitação em pedir a outras

pessoas que acreditassem neles (FREUD, 1918[1914]/1994, p.13).

Levantamos a hipótese de que a dificuldade em relação ao diagnóstico decorre da não

localização do pai em sua função estruturante: nem na vertente de sua presença, que indicaria

o campo da neurose, tampouco na vertente de sua ausência, como nos casos de psicose

extraordinária. Estamos diante de outra configuração da presença do pai que, apesar de ser

inadequada ao modelo edípico standard sustentado no pai como ideal, constituiu um suporte

para que a psicose do Homem dos Lobos não se desencadeasse, como a de Schreber.

1.3.1 As primeiras expressões da neurose infantil

O contexto familiar foi bastante explorado por Freud no caso do Homem dos Lobos,

na medida em que este tema facilitou o mapeamento das relações do paciente com as figuras

mais importantes de sua história. Desde pequeno Sergei Pankejeff tinha noção da fragilidade

da saúde de sua mãe – que sofria de distúrbios abdominais –, e da de seu pai, que padeceu de

diversas crises de depressão que o levaram a se ausentar de casa por longos períodos.

Apesar da aparição da mãe em diversas passagens do caso, ressaltamos, a partir da

leitura de Deffieux (2006/2007), não haver uma triangulação edipiana. A ausência desta

triangulação resume o conflito inconsciente do Homem dos Lobos exclusivamente à relação

pai-filho e se torna determinante para o posicionamento subjetivo do paciente neste caso.

Retomando a divisão clínica realizada por Freud, percebemos que o amor ao pai

produz modificações na posição subjetiva do Homem dos Lobos. Podemos organizá-las da

seguinte forma. O que começa como uma identificação ao pai, “ser o filho do pai”, “ser

22 O trecho correspondente na tradução é: “Así me formé la idea de que este caso, como tantos otros a los que a psiquiatría clínica pone el marbete de variados y cambiantes diagnósticos, debía concebirse como secuela de una neurosis obsesiva que se extinguió de manera espontánea, pero sanó deficientemente”.

46

homem como o pai”, se converte em uma escolha de objeto: o Homem dos Lobos “quer se

fazer amar pelo pai como uma mulher”, mas para isso deve aceitar a castração. Na cena da

sedução, o componente masoquista se torna prevalente na economia libidinal: o “fazer-se

amar como uma mulher” é substituído pelo “fazer-se bater pelo pai”. Na fobia há uma nova

modificação: o amor pelo pai é negado e se torna “fazer-se devorar pelo lobo”. Finalmente,

por meio de uma sublimação do masoquismo ocorrida após o processo fóbico, o “fazer-se

amar pelo pai” retorna não mais “como uma mulher”; agora esta mulher é especificada como

uma mãe capaz de dar uma criança ao pai (AFLALO, 2010, p.18).

Como dissemos acima, o principal vetor deste caso clínico e toda a discussão sobre o

diagnóstico do Homem dos Lobos, pode ser situado nesta configuração atípica do pai. Em

relação a esta questão, Miller (1988/2010, p.43) aponta duas vertentes fundamentais. Em um

primeiro tempo encontramos o pai do Homem dos Lobos com a função de um Nome-do-Pai,

na medida em que ele tempera a angústia do menino, reduzindo-a por meio de uma

significantização genital. Depois, temos a predominância do medo e da angústia do Homem

dos Lobos, que aponta para um pai devastador no sentido da assunção da castração. Não só o

pai, mas também outras figuras contribuem para o padecimento do Homem dos Lobos.

Podemos citar a irmã dois anos mais velha, “vivaz, dotada, precocemente maliciosa”

(FREUD, 1918[1914]/1994, p.14-15) que desempenhou um papel fundamental em sua vida e

em seu adoecimento. Além da família nuclear, outras figuras femininas são importantes para

pensarmos o caso: a babá Nanya – idosa de origem camponesa que nutria uma grande afeição

por Sergei – e uma governanta inglesa a quem, no primeiro momento, recaiu toda a

responsabilidade pela mudança no comportamento e o início da neurose do menino. Em uma

primeira análise, Freud aponta um excesso na feminilidade dessas mulheres que o cercaram

na época do seu adoecimento: a governanta geniosa, excessiva e viciada em bebida, a irmã

maliciosa que o atormentava e amedrontava e a babá excessivamente amorosa. Levantamos

uma pergunta: como esses excessos interferem no adoecimento do paciente?

Freud não se detém diretamente neste assunto, mas associa o início da patologia do

paciente à ameaça de castração provinda de uma destas figuras:

Parece que de início foi uma criança mansa, dócil, e bem tranquila, por isso costumavam dizer que ele deveria ter sido a menina e sua irmã mais velha o menino. Porém uma vez seus pais regressaram das férias de verão e o encontraram transformado. Havia se tornado descontente, irritável, violento, considerava-se afrontado por qualquer motivo e então se embravecia e gritava como um selvagem (FREUD, 1918[1914]/1994, p.15; tradução nossa)23.

23 O trecho correspondente na tradução é: “Parece que al principio fue un niño manso, dócil, y más bien tranquilo, y por eso solían decir que él habría debido ser la niña, y su hermana mayor el varón. Pero cierta vez que sus padres regresaron del viaje

47

Partindo de algumas lembranças encobridoras trazidas por Sergei, Freud sugere que a

mudança de comportamento do menino pode estar associada às ameaças proferidas pela

governanta. O resultado desta associação é a produção de alguns sonhos nos quais o paciente

realizava ações agressivas contra a irmã e a governanta. De acordo com Freud, essas

reminiscências são fantasias que ele havia elaborado sobre a sua infância, provavelmente na

puberdade, e que estavam articuladas a práticas sexuais que a irmã o induzira quando

pequeno. Freud se questiona sobre a transformação ocorrida no caso do Homem dos Lobos:

uma passividade fundamental dava lugar a uma atividade agressiva. Um trabalho a posteriori,

permite reconhecer o primeiro indício da coexistência de duas correntes opostas: uma que

aceita a castração e outra que a abomina. Mas Freud vai explicá-la por uma sucessão de etapas

existente no desenvolvimento da neurose obsessiva.

No texto “Nuevas puntualizaciones sobre las neuropsicosis de defensa” (FREUD,

1896d/1992, p.169) Freud afirmara que as experiências sexuais da primeira infância possuem

um papel fundamental na etiologia da neurose obsessiva. Porém, ao contrário da histeria, na

obsessão não se trata de passividade no período pré-sexual, mas sim de uma atividade que

concerne a atos de agressão praticados com prazer e de participação prazerosa em atos

sexuais. Ele enfatiza a presença de substratos de sintomas histéricos em todos os casos de

neurose obsessiva, o que o leva a crer na existência de uma experiência de passividade sexual

precedendo a ação prazerosa.

Neste mesmo texto Freud periodiza os eventos responsáveis pela causação da neurose

obsessiva em três tempos: na terna infância, “período da imoralidade infantil”, está localizado

o germe da neurose, pois nessa fase ocorrem as experiências de sedução sexual que serão as

fontes do recalcamento. O advento da “maturidade sexual” inaugura uma nova fase onde uma

autoacusação é associada à lembrança destas ações sexuais prazerosas. O terceiro período é

caracterizado pelo fracasso do mecanismo de defesa e, consequentemente, pelo retorno das

lembranças recalcadas. Elas retornam como representações e afetos obsessivos, nomeados de

formações de compromisso. Para Freud, “as representações obsessivas são sempre censuras

transformadas, que retornam do recalque {desalojamento} e estão sempre referidas a uma

ação da infância, um ato sexual realizado com prazer”24 (FREUD, 1896d/1992, p.170, grifos

do autor; tradução nossa).

de verano lo hallaron mudado. Se había vuelto descontentadizo, irritable, violento, se consideraba afrentado por cualquier motivo y entonces se embravecía y gritaba como un salvaje”. 24 O trecho correspondente na tradução é: “[..] las representaciones obsesivas son siempre reproches mudados, que retornan de la represión {desarojo} y están referidos siempre a una acción de la infancia, una acción sexual realizada con placer”.

48

Com estes elementos teóricos, Freud conclui que a modificação do caráter do menino

é consequência do episódio de sedução.

Miller (1988/2010, p.38) se detém nesta questão acrescentando novos elementos à

nossa discussão:

Inicialmente, essa maldade responde a uma virilidade de reação relativa à passividade fundamental. Em seguida, torna-se um apelo à punição, e não faz senão repercutir e intensificar a passividade fundamental. A mesma atitude agressiva do Homem dos Lobos tem um duplo valor. Primeiramente, o de negar no semblante sua passividade; em segundo lugar um apelo à punição e, portanto, a apanhar do pai. Sob o sadismo do Homem dos Lobos se oculta um masoquismo.

Articulando esta modificação ocorrida no comportamento do menino com o episódio

de sedução, Freud (1918[1914]/1994, p.23) situa a posição do Homem dos Lobos frente à

castração:

Como reagiu o menino às seduções de sua irmã mais velha? Eis aqui a resposta: com desautorização, porém a desautorização se dirigia à pessoa, não a própria coisa. A irmã não era mais atraente como objeto sexual, provavelmente porque sua relação com ela já estava marcada pela hostilidade e pela competência em torno do amor dos pais. Ele a evitou, e também o cortejo dela logo terminou25 (tradução nossa).

Neste fragmento clínico, Freud diz que inicialmente houve uma rejeição: o paciente

“rejeitou a castração e apegava-se à sua teoria da relação sexual pelo ânus”, decidindo-se

finalmente “a favor do ânus contra a vagina”. Essa rejeição – Verwerfung – não se refere à

castração no sentido do recalque, mas Freud não fornece nenhum elemento a mais que defina

de forma clara a especificidade destes mecanismos.

Recorremos a Lacan (1955-1956/1998, p.173) para entender que essa posição inicial

de rejeição do Homem dos Lobos concerne à foraclusão da castração, ou seja, uma foraclusão

do falo – phi zero. Isto nos leva a dizer que, neste caso, a castração não atinge um

reconhecimento simbólico, ela permanece no registro do real, fora de toda significação.

Seguimos Freud (1918[1914]/1994, p.78):

Primeiro resistiu e depois cedeu, porém uma reação não havia cancelado a outra. No final subsistiram nele, lado a lado, duas correntes opostas, uma das quais abominava a castração

25 O trecho correspondente na tradução é: “¿Cómo reaccionó el niño ante las seducciones de su hermana mayor? He aquí la respuesta: con desautorización, pero la desautorización se dirigía a la persona, no a la cosa misma. La hermana no le resultaba grata como objeto sexual, probablemente porque su relación con ella ya estaba marcada en sentido hostil por la competencia en torno del amor de los padres. La rehuyó, y también los cortejamientos de ella pronto terminaron”.

49

enquanto a outra estava pronta a aceitar e se consolar com a feminilidade, como compensação26 (tradução nossa).

Ao expor esta atitude do paciente frente à castração, Freud menciona dois outros

mecanismos além da rejeição: na corrente em que ele abomina a castração aparece o

mecanismo de recusa; naquela em que ele se consola com a feminilidade como compensação,

surge uma aceitação. O que intriga Freud é o fato de Sergei pensar na castração sem nenhuma

crença em relação a ela e vê-la por todos os lados sem estar convicto de sua operatividade.

Portanto, ele responde de três formas distintas: pela foraclusão, pela recusa e pela aceitação.

De acordo com Agnès Aflalo (2010, p.15), essas respostas revelam uma psicose

constituída em dois tempos: no primeiro se localiza a Verwerfung da castração; no segundo a

recusa e a aceitação expressam suplências sintomáticas decorrentes da foraclusão, mas que

não a anulam.

Miller (1987/2010, p.10-11) já havia esquematizado estas respostas a partir de uma

arquitetura tripla: 1) Verwerfung da castração na correspondência com a analidade (coito

anal); 2) o reconhecimento da castração que incide ao mesmo tempo sobre o resistir e o ceder

à mesma. Ambos os movimentos referidos a analidade enquanto posição feminina. Ele

(MILLER, 1987/2010, p.12) mostra inclusive que se trata de uma coexistência da foraclusão e

do reconhecimento da castração. E esclarece a forma como Lacan trata este impasse

freudiano, ou seja, distinguindo os elementos que competem ao imaginário daqueles que são

da ordem simbólica. Em relação ao primeiro, Lacan situa “uma captura homossexualizante,

feminizante”, decorrente da identificação do Homem dos Lobos com a mãe, a partir da matriz

imaginária da cena primária. Por outro lado, Lacan estabelece a identificação ao pai no

registro simbólico, por meio da posição viril e do “eu não sou castrado”.

Como dissemos acima, esta identificação ao pai não é suficiente para tornar a

castração operativa, como nos casos de neurose. Nas palavras de Miller (1987/2010, p.50-51):

[...] em relação à castração, o Homem dos Lobos tem o pensamento, mas não tem a crença nem a angústia. O Homem dos Lobos tem, portanto, uma relação com o fato. Há até uma relação com a significação, quer dizer, que ele pensa, que coisas o fazem pensar. Mas ao mesmo tempo há um defeito de convicção ou de consentimento.

Adiantamos que estas três respostas do Homem dos Lobos frente à castração serão

localizadas a partir de fragmentos clínicos do caso.

26 O trecho correspondente na tradução é: “Primero se había revuelto y luego cedió, pero una reacción no había cancelado a la otra. Al final subsistieron en él, lado a lado, dos corrientes opuestas, una de las cuales abominaba de la castración, mientras la otra estaba pronta a aceptar y consolarse con la feminidad como sustituto”.

50

Em primeiro lugar, Freud (1918[1914]/1994, p.24) procede uma leitura da recusa da

castração em uma cena infantil na qual o Homem dos Lobos observou os genitais femininos e,

ao invés de ratificar as ameaças de castração proferidas pela babá, ele respondeu que aquilo

era o ‘traseiro frontal’ das meninas. Esta passagem denota uma foraclusão da realidade da

castração feminina e um deslocamento da significação do pênis para uma outra parte do corpo

da mulher, qual seja, o traseiro. Portanto, para o menino uma mulher era definida pela

presença do traseiro e não pela falta de pênis.

Assim, o Homem dos Lobos construiu a hipótese de que a doença da mãe era

consequência do ato sexual que ele supostamente presenciou na infância. Articulando os

distúrbios intestinais, o sonho com os lobos e a cena primária, Freud afirma que o sonho

fornece ao menino a compreensão de que as mulheres são castradas, pois elas possuem uma

‘ferida’ utilizada no ato sexual. Ou seja, a relação sexual não se dava por meio da vagina, mas

sim do ânus. A constatação da foraclusão da castração feminina e da eleição do intestino

como novo órgão de gozo surpreende Freud na medida em que contradiz a ameaça de

castração que ele postulara anteriormente:

As experiências que havia escutado despertaram e puseram em dúvida a ‘teoria da cloaca’, o levaram ao discernimento da diferença entre os sexos e do papel sexual da mulher. Então, ele se comportou como parecem fazer os meninos aos quais se dá um esclarecimento indesejado – sexual ou de outra ordem. Rejeitou o novo – em nosso caso por motivos derivados da angústia diante da castração – e se ateve ao antigo. Decidiu-se a favor do intestino e contra a vagina, da mesma maneira e pelos mesmos motivos que mais tarde tomou partido contra Deus e a favor de seu pai (FREUD, 1918[1914]/1994, p.73; tradução nossa)27.

O mecanismo de recusa à castração desloca o pênis para o traseiro, construindo uma

universalidade do gozo na qual “não existe nenhum ser humano que não tenha um traseiro”

(SOUTO, 2010, p.7). Essa solução se sustenta na recusa da castração feminina e permite ao

Homem dos Lobos uma regulação do problema da sexuação.

Desta universalidade, Miller (1897/2009, p.17-18) depreende duas concepções sobre a

teoria da relação sexual no Homem dos Lobos:

[...] temos a concepção anal, isto é, nada de noção de ‘sem pênis’; depois temos o que é para ele um reconhecimento da castração, quer dizer, uma noção de ‘sem pênis’, há uma ferida nesse lugar nas mulheres. Então, é concebível que o estatuto do ser humano e o atributo ‘dispor de um pênis’ estejam disjuntos [...]. Isto quer dizer que o debate sobre o Homem dos

27 O trecho correspondente na tradução é: “Las experiencias que había escuchado, despertaron y pusieron en duda la ‘teoría de la cloaca’, le arrimaron el discernimiento de la diferencia entre los sexos y del papel sexual de la mujer. Se comportó entonces como suelen hacerlo los niños a quienes se da un esclarecimiento indeseado – sexual o de otra clase –. Desestimó lo nuevo – en nuestro caso por motivos derivados de la angustia frente a la castración – y se atuvo a lo antiguo. Se decidió a favor del intestino y contra la vagina, de la misma manera y por los mismos motivos que más tarde tomó partido contra Dios y a favor de su padre”.

51

Lobos entre concepção anal e concepção genital ou desenvolvida, é na verdade o intestino ou a vagina. Com efeito, ele formula a escolha nestes termos: ou o ânus ou a castração.

Freud também investiga a efetividade da castração pelo estatuto do objeto amoroso

encontrado no papel fundamental da irmã no que diz respeito à escolha heterossexual. O

objeto amoroso é marcado pela depreciação, tão comum nos casos de neurose obsessiva.

Contudo, há uma especificidade neste caso da qual Freud não retira todas as consequências

clínicas. Não se trata de uma escolha de objeto da neurose obsessiva. Para o Homem dos

Lobos o enamoramento comporta uma condição necessária: ele está apenso à posição do

corpo de uma mulher – fisicamente rebaixada (FREUD, 1918[1914]/1994, p.86), vista de

costas, com o traseiro proeminente – que faz com que a depreciação do objeto amoroso esteja

no registro do imaginário. “As relações sexuais com as mulheres são uma realização iterativa

da fantasia da cena primitiva na qual o sujeito deve fazer o papel do pai” (AFLALO, 2010,

p.28).

Como dissemos anteriormente, nesse período, o componente masoquista se torna

prevalente na economia libidinal do Homem dos Lobos, acarretando uma substituição do

“fazer-se amar como uma mulher” pelo “fazer-se bater pelo pai”. Esta substituição é descrita

pela fantasia em que “os meninos eram castigados e surrados; particularmente lhes batiam no

pênis”28 (FREUD, 1918[1914]/1994, p.25; tradução nossa). As tendências masoquistas,

inicialmente fundamentadas nas figuras da irmã e da babá, são transferidas para o pai. “Este

objeto de identificação de sua corrente ativa passou a ser o objeto sexual de uma corrente

passiva na fase sádico-anal”29 (FREUD, 1918[1914]/1994, p.26; tradução nossa). Dessa

forma, a posição passiva do Homem dos Lobos em relação às mulheres, agora foi tomada

frente a um homem: a identificação foi substituída pela escolha objetal (FREUD,

1918[1914]/1994, p.27). Inicia-se o período da histeria de angústia na forma de uma fobia

animal.

1.3.2 Histeria de angústia na forma de uma fobia animal

28 O trecho correspondente na tradução é: “[…] unos muchachos eran castigados y azotados; en particular, les pegaban en el pene”. 29 O trecho correspondente na tradução é: “[…] este objeto de identificación de su corriente activa pasó a ser el objeto sexual de una corriente pasiva en el fase sádico-anal”.

52

Um outro elemento que nos fornece indícios para retomarmos a hipótese de uma

psicose ordinária é o estatuto da fobia do Homem dos Lobos. Para esclarecermos este ponto,

nos servimos de algumas especificidades da fobia de Hans. Iremos nos deter essencialmente

em três pontos: o estatuto da angústia em relação à ameaça de castração, a especificidade do

objeto fóbico e a inoperatividade da medida protetora inventada pelo Homem dos Lobos.

O início da fobia do Homem dos Lobos acontece antes dos cinco anos de idade frente

à figura de um lobo de pé, desenhado em um livro de figuras que sua irmã o fazia olhar

frequentemente para atormentá-lo. Ele tinha medo que o lobo viesse e o comesse (FREUD,

1918[1914]/1994, p.16).

No que concerne ao estatuto da angústia, Aflalo (2010, p.10) aponta uma distinção

entre Hans e o Homem dos Lobos. O primeiro apresenta uma angústia de castração, pois teme

ser mordido pelo cavalo, ao passo que o segundo apresenta uma angústia de morte, expressa

pelo medo de ser devorado pelo lobo.

Levantamos duas hipóteses. Será que a angústia de morte pode ser tomada como

índice da inoperatividade do Nome-do-Pai, no caso do Homem dos Lobos? Podemos pensar

que na economia psíquica do Homem dos Lobos o estatuto do Outro é o de um Outro

gozador, ao qual ele se encontra submetido?

Em Hans a fobia causa uma inibição sintomática que impede o menino de passear

pelas ruas da cidade. O cavalo funciona como uma nomeação do medo e, em parte, aplaca a

angústia. O objeto fóbico vela o ponto intolerável da angústia em um esforço imaginário que

delimita o espaço, mas ainda assim não consegue dar conta da angústia: “o resultado da fuga

fóbica segue sendo, apesar de tudo, insatisfatório”30, diz Freud (1915c/1993, p.181; tradução

nossa).

A funcionalidade da medida protetora de Hans em relação aos cavalos é pertinente por

nos fazer pensar sobre a inibição sintomática causada pelo objeto fóbico. Diferente deste, o

Homem dos Lobos se limita a fechar o livro de contos como forma de evitação do objeto

fóbico. O lobo não é um objeto essencialmente externo, ele faz parte da irrealidade dos contos

de fada contados pela irmã.

Sobre esse ponto Agnès Aflalo (2010, p.11) afirma que “o cavalo de Hans requer o

campo da percepção, enquanto o lobo de Sergei é feito de narrativa e de imagem. Parece

então que há uma colocação em jogo do campo simbólico da realidade para Hans, mas não

para Sergei”. Quando uma fobia é instalada em relação a um animal, por exemplo, qualquer

30 O trecho correspondente na tradução é: “[...] el resultado de la huida fóbica sigue siendo, a pesar de todo, insatisfactorio”.

54

atento que todos os lobos dirigiam ao menino – para defendermos mais alguns sinais que nos

apontam para o diagnóstico de uma psicose ordinária.

A perplexidade que o menino experimentou ao acordar – a ponto de levar algum

tempo para se acalmar e entender que era apenas um sonho – nos chama bastante atenção.

Freud mostra sua surpresa em duas passagens: “Também lhe parecia digno de nota o

duradouro sentimento de realidade efetiva em que desembocou o sonho”31 (FREUD,

1918[1914]/1994, p.33; tradução nossa). E mais, o sonho “parece apontar em seu sentido

{hindeuten} para um episódio cuja realidade objetiva é destacada justamente pela oposição da

irrealidade dos contos tradicionais”32 (FREUD, 1918[1914]/1994, p.33, grifo do autor;

tradução nossa). Esse sonho marca o surgimento da angústia e produz efeitos: “desde então, e

até os onze ou doze anos, sempre teve angústia de ver algo terrível em sonhos”33 (FREUD,

1918[1914]/1994, p.29; tradução nossa).

Uma outra questão está relacionada ao olhar fixo dos lobos sobre o menino. Nas

palavras de Freud (FREUD, 1918[1914]/1994, p.34):

Ele acordava e viu algo. O olhar atento que no sonho se atribui aos lobos, deve antes ser deslocado para ele. Então, em um ponto decisivo havia ocorrido um transtorno {Verkehrung} que, além disso, se anuncia por outro transtorno no conteúdo manifesto do sonho34 (grifo do autor; tradução nossa).

Retomando a questão do objeto olhar enquanto mancha – que Lacan trabalha em O

seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (LACAN, 1964/1998) e

no texto “Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol. V. Stein” (LACAN,

1965/2003) –, podemos falar sobre essa cena de outra forma. Levantamos a hipótese de que o

que causa angústia no Homem dos Lobos não é a visão dos lobos imóveis, olhando-o

fixamente, mas, de forma invertida, a cena denota que ele próprio se olha olhando os lobos e,

dessa forma, ele próprio se toma como objeto. Ou melhor, ele se torna puro olhar.

31 O trecho correspondente na tradução é: “También le parecía digno de notarse el duradero sentimiento de realidad efectiva en que desembocó el sueño”. 32 O trecho correspondente na tradução é: “Este parece apuntar en su sentido {hindeuten} a un episodio cuya realidad objetiva es destacada justamente por la oposición de la irrealidad de los cuentos tradicionales”. 33 O trecho correspondente na tradução é: “Desde entonces, y hasta los once o doce años, siempre tuve angustia de ver algo terrible en sueños”. 34 O trecho correspondente na tradução é: “El estaba despierto y le fue dado ver algo. El mirar atento que en el sueño se atribuye a los lobos debe más bien trasladarse a él. Entonces, en un punto decisivo había tenido lugar un trastorno {Verkehrung} que, por lo demás, se anuncia por otro trastorno en el contenido manifiesto del sueño”.

55

Esta hipótese encontra fundamento em Miller (1988/2011, p.10), na medida em que

ele situa o Homem dos Lobos em duas vias pulsionais: ao mesmo tempo em que é um

espectador, pois ele é aquele que olha, o Homem dos Lobos está na posição de ‘se fazer ver’.

Recentemente, publicamos um artigo (TIRONI; LIMA, 2008) que assinala o sujeito

arrebatado pelo objeto enquanto olhar, marcando inclusive os efeitos que isso causa na cena

fantasmática na psicose ordinária de Lol V. Stein, antes do desencadeamento. Supúnhamos

que este índice se encontra presente em alguns casos de psicoses ordinárias, sendo mesmo um

dos elementos que facultam o diagnóstico diferencial.

Neste ponto abrimos um parêntese para dar uma explicação sobre o artigo que

publicamos. Naquele momento partíamos da teorização que se desenvolvia a pleno vapor por

ocasião da Convenção de Antibes, realizada em setembro de 1998. Ali a psicose ordinária era

definida de forma mais ou menos ampla, no sentido de “a psicose compensada, a psicose

suplementada, a psicose não desencadeada, a psicose medicada, a psicose em terapia, a

psicose em análise, a psicose que evolui, a psicose sinthomatizada”35 (MILLER et al.,

1998/2005, p.201, grifos do autor; tradução nossa). Portanto, interpretamos que a “psicose

que evolui” estaria referida a um provável desencadeamento.

No entanto, hoje não temos mais esta convicção. A partir de um seminário anglofono

acontecido em Paris, em julho de 2008, a pedido de Jacques-Alain Miller e organizado por

Marie-Hélène Brousse, mas somente publicado em 2009, Miller propõe que uma psicose

ordinária se caracteriza pelo fato de não haver um desencadeamento. Isto nos fez repensar a

hipótese anteriormente lançada em nosso artigo de 2008, de forma a fazê-la coincidir com o

precioso artigo de Miller (2008/2010) intitulado “Efeito do retorno à psicose ordinária”.

Voltando ao relato do caso de Freud, a formação desse sonho está relacionada a uma

cena de sexo entre os pais, presenciada pelo menino em torno de um ano e meio de idade. O

sonho apresenta, através da ativação da cena primária (não é uma recordação), o modelo de

satisfação que o menino espera obter do pai (copular com o pai do mesmo modo que sua mãe)

e a compreensão de que a castração é uma condição necessária para isso. Neste sentido, o

sonho permite uma conjugação entre o pai e a castração.

Em relação à cena primária, Lacan diz que:

No Homem dos Lobos, a impressão primitiva da famosa cena primordial permaneceu lá durante anos, não servindo para nada, e no entanto já significante, antes de ter o direito de exprimir seu efeito na história do sujeito. O significante é, pois, dado primitivamente, mas ele não é nada enquanto o sujeito não o faz entrar em sua história, que toma sua importância entre

35 O trecho correspondente na tradução é: “la psicosis compensada, la psicosis suplementada, la psicosis no desencadenada, la psicosis medicada, la psicosis en terapia, la psicosis en análisis, la psicosis que evoluciona, la psicosis sinthomatizada”.

56

um ano e meio e quatro anos e meio. O desejo sexual é com efeito o que serve ao homem para se historicizar, na medida em que é nesse nível que se introduz pela primeira vez a lei (LACAN, 1955-1956/1988, p.180).

A cena primária, que se encontra na série do trauma primordial, funciona como um

primeiro elemento e passa a dar lugar a sucessivos desdobramentos que localizam a relação

do menino com o pai. Para Freud (1918[1914]/1994, p.54), durante o sonho, o Homem dos

Lobos se identifica com a mãe castrada e agora luta contra esse fato: “o paciente não apenas

fantasiou inconscientemente esta cena primordial, como também forjou sua alteração de

caráter; sua angústia frente ao lobo e sua compulsão religiosa”36 (tradução nossa). Esta

identificação à mãe abre um novo período no caso do Homem dos Lobos.

1.3.3 Uma neurose obsessiva de conteúdo religioso

A fase da fobia associada à histeria de angústia é substituída por uma neurose

obsessiva de conteúdo religioso. Quando o Homem dos Lobos estava com quatro anos, a mãe,

diante do comportamento inadequado do menino, começou a familiarizá-lo com histórias

bíblicas que não o agradavam. Ele se opunha enfaticamente aos caprichos do Deus Pai,

responsável por todos os tormentos da humanidade: “se era todo poderoso, então era culpa

Dele se os homens eram maus e atormentavam os outros e eram mandados para o Inferno por

causa disso”37 (FREUD, 1918[1914]/1994, p.59; tradução nossa). Essa iniciação religiosa

acabou com as malcriações e fez aparecer sintomas obsessivos em substituição à fobia que

havia predominado anteriormente.

Ele realiza rituais de devoção com rezas, sinal-da-cruz e uma ronda pelas imagens

sagradas às quais beijava piamente. Se durante o ritual alguma blasfêmia surgisse em sua

consciência, ele era obrigado a pensar compulsivamente: “Deus-suino” ou “Deus-merda”

(FREUD, 1918[1914]/1994, p.59). Freud relata outros rituais de conteúdo religioso: quando o

paciente via excrementos na estrada era atormentado pela obsessão de pensar na Santíssima

Trindade, ou quando via pessoas em relação às quais sentia pena, respirava ou inspirava

36 O trecho correspondente na tradução é: “[...] el paciente no sólo fantaseó esta escena primordial inconcientemente, sino que también confabuló su alteración de carácter; su angustia ante el lobo y su compulsión religiosa”. 37 O trecho correspondente na tradução é: “Si era todopoderoso, entonces era culpable de que los hombres fueron males y martirizaran a otros, a raíz de lo cual se iban después al Infierno”.

57

rigorosamente para não ficar como elas. Estes fenômenos começaram a partir de uma visita de

Sergei ao sanatório em que o pai estava internado e revelam uma identificação ao pai

castrado, que, segundo Freud, se trata de um elemento atípico ao campo da neurose obsessiva.

Ao identificar a submissão masoquista de Cristo ao Deus Pai, o Homem dos Lobos se

transforma em Cristo. Surgem perguntas sobre a existência de um traseiro e do hábito de

defecação de Cristo às quais ele responde que o traseiro é a continuação das pernas. A

resposta a esta questão denuncia que a função referente ao órgão e à partilha sexual são

negadas, tal como quando uma mulher é definida pela presença do traseiro e não pela falta de

pênis.

Pela aspereza e crueldade contidas nas histórias bíblicas, Sergei suspeitava da relação

ambivalente entre o Pai e o filho. O amor infantil que nutria pelo pai o fez se voltar contra

Deus, pois aquele que lhe fora apresentado não poderia ser o substituto do pai amoroso que

tentava a todo custo manter. “Resistia a Deus com a finalidade de conseguir agarrar-se ao pai;

e, ao agir assim, estava na verdade defendendo o velho pai contra o novo. Estava diante da

parte penosa do processo de desligar-se do pai”38 (FREUD, 1918[1914]/1994, p.62; tradução

nossa).

O passo seguinte foi o de identificar o pai à figura do castrador, tal como nas histórias

bíblicas. Essa justaposição se tornou fonte de uma enorme hostilidade a ponto de desejar-lhe a

morte. Mas, ao mesmo tempo, aparecia um sentimento de culpa. As duas correntes, a de amor

ao pai e a hostilidade em relação a Deus, tomaram toda sua vida e produziram efeitos

sintomáticos que se manifestavam como ideias blasfemadoras, compulsão nos xingamentos

de Deus, piedade obsessiva e severas penitências. Este momento religioso traduz o esforço

para sublimar as dificuldades anteriores de sua posição junto ao pai.

A sublimação lhe permite dar um destino à posição masoquista feminina, assumindo

algo da ordem viril. Apesar de esta assunção supostamente concluir o recalque da atitude

homossexual, ela não foi totalmente realizada; a dúvida do Homem dos Lobos sobre a

existência de um traseiro em Cristo é um exemplo disso. Mas, apesar da sublimação atuar na

homossexualidade recalcada, não houve uma mudança na posição de gozo de Sergei.

A posição feminina começou a ser falada na língua do erotismo anal. Freud acredita

que ele desempenha um papel fundamental no desenvolvimento da vida sexual e da atividade

psíquica de um indivíduo. Este fato se confirma na história do Homem dos Lobos, que faz de

seu erotismo anal a possibilidade de aceitar a castração de forma imaginária equivalendo fezes

38 O trecho correspondente na tradução é: “Se defendió de Dios para poder retener al padre, pero en verdad así defendía al padre antiguo contra el nuevo”.

58

a bebê. Neste sentido, os distúrbios intestinais e as realizações de enemas indicam que não

houve um reconhecimento simbólico da castração e que a aceitação da feminilidade

possibilita uma determinada extração de gozo, modificando novamente sua posição junto ao

pai.

O Homem dos Lobos apresentava distúrbios intestinais desde a infância. Para Freud

eram sintomas característicos da histeria que se encontravam frequentemente na origem de

uma neurose obsessiva. Ele o encaminhou a um colega médico que diagnosticou estes

problemas como uma doença psiquicamente determinada, sem a necessidade de nenhuma

intervenção orgânica. Na opinião de Freud, as queixas giravam em torno do fato dele estar

separado do mundo por um véu que só era rompido em uma única ocasião: “quando, depois

de um enema, o conteúdo dos intestinos deixava o canal intestinal; então, sentia-se bem e

normal outra vez”39 (FREUD, 1918[1914]/1994, p.69; tradução nossa).

Segundo Miller (1988/2009, p.23), o mundo ocultado por um véu foi interpretado por

Freud em dois planos diferentes. A primeira interpretação, de ordem significante, concerne ao

sentimento de o Homem dos Lobos ser um sortudo, a quem nada de ruim poderia acontecer.

O véu repercute nesta sorte. Sortudo foi destacado de uma fala vinda do Outro, um

significante que o acompanha desde seu nascimento. A segunda interpretação se situa no

registro do objeto, no sentido de uma extração, e concerne ao momento em que o véu é

rasgado com a condição que se administre uma lavagem intestinal.

O enema realiza a cena primária em uma versão renovada – denominada por Freud de

“fantasia de renascimento” (FREUD, 1918[1914]/1994, p.92) – na medida em que ela faz

uma equivalência entre o objeto anal e um bebê. Além disso, coloca em cena o pai, a mãe e a

criança como produto fecal. Esta equivalência permite uma nova transformação que mantém

em evidência uma fixação à posição homossexual inconsciente. Ao reproduzir esta fantasia, o

“renascimento” oferece certa estabilização ao Homem dos Lobos. Ela permite uma extração

imaginária do objeto anal, a partir da qual ele renuncia à masculinidade para ser amado como

uma mulher – se colocando como a mãe na cena primária –, ser sexualmente satisfeito pelo

pai e dar-lhe um filho. No caso de Freud:

Deus-merda era provavelmente a abreviação de uma oferenda que se ouve eventualmente mencionada de forma não abreviada. ‘Cagar em Deus’ (‘auf Gott scheissen’) ou ‘cagar algo para Deus’ (‘Gott etwas scheissen’) também significa dar-lhe um bebê ou conseguir que ele

39 O trecho correspondente na tradução é: “Este último solo se desgarraba en el preciso momento en que las heces abandonaban el intestino, a raíz de las lavativas, y entonces volvía a sentirse también sano y normal”.

59

dê um bebê a alguém40 (FREUD, 1918[1914]/1994, p.77, grifos do autor; tradução nossa).

Levantamos a hipótese que a ameaça de castração sobre a qual Freud tanto se debruça

para explicar a neurose infantil, e todas as contradições apresentadas durante a elaboração

desse caso clínico, são consequências da carência simbólica decorrente da foraclusão do

Nome-do-Pai. Na psicose a falha da metáfora paterna acarreta problemas no posicionamento

sexual e na significação fálica. Sem esse ponto de identificação, o psicótico é um sujeito sem

referência diante do significante do sexo; ele fica à deriva no que se refere à partilha sexual.

Para Miller (1988/2010, p.25), a forma como a sexuação é lida pelo Homem dos

Lobos se distingue em duas vias: no campo imaginário há uma afirmação da virilidade que,

por ser do registro do eu (moi), carece de autenticidade simbólica; no inconsciente, ele é

verdadeiramente uma mulher.

Ainda com base na foraclusão da castração, o relato da alucinação do dedo cortado

fornece novas teorizações para se pensar sobre a questão diagnóstica. A cena é a seguinte: o

menino brincava com um canivete quando notou ter cortado um dedo da mão. Ele não sentiu

dor, apenas medo; em seguida, percebeu que o dedo não havia sido machucado.

Vale notar que, para Freud, esta alucinação não é um indício da Verwerfung; pelo

contrário, ela dá testemunho do caráter operatório da castração. Mantém este episódio como

uma constatação da neurose, pois, por mais que tenha realizado uma distinção entre os

mecanismos da Verdrängung e o da Verwerfung, ele não supõe esta última ao campo das

psicoses. No texto “Acerca del fausse reconnaissance (‘déjá raconté’) en el curso del trabajo

psicoanalítico” (FREUD, 1914b/1993, p.210), ele retoma esse episódio acrescentando uma

equivalência entre o dedo e o pênis. O fenômeno da ‘fausse reconnissance’ o levou a enfatizar

a dificuldade do Homem dos Lobos em assumir a existência operatória do complexo de

castração: “falsificações alucinatórias semelhantes não são raras e podem facilmente servir ao

propósito de corrigir percepções incômodas”41 (tradução nossa).

No entanto, Lacan (1955-1956/1988, p.173) considera que:

A respeito da Verwerfung, Freud diz que o sujeito não queria nada saber da castração,

mesmo no sentido do recalque. Com efeito, no sentido do recalque, sabe-se ainda algo daquilo de que nem mesmo não se quer, de certa maneira, nada saber, e cabe à análise nos ter

40 O trecho correspondente na tradução é: “‘Dios-caca’ era probablemente una abreviación de un ofrecimiento que suele oírse también en forma no abreviada. ‘Cagarse en Dios’ {‘Auf Gott scheissen’}, ‘Cagarle algo a Dios’ {‘Gott etwas scheissen’}, significa también regalarle un hijo, hacerse regalar por él un hijo”. 41 O trecho correspondente na tradução é: “Respecto del contenido de la visión del paciente, señalaré que tales espejismos alucinatorios no son raros justamente dentro de la ensambladura del complejo de castración, y que de igual modo pueden servir para rectificar percepciones indeseadas”.

60

mostrado que se sabe isso muitíssimo bem. Se há coisas de que o paciente não quer nada saber, mesmo no sentido do recalque, isso supõe um outro mecanismo. E como a palavra Verwerfung aparece em conexão direta com essa frase e também com algumas páginas antes, eu me apodero dela. Não me prendo especialmente ao termo, prendo-me ao que ele quer dizer, e creio que Freud quis dizer isso (grifos do autor).

Lacan interpreta esse episódio como uma verdadeira alucinação, como um fenômeno

elementar característico da psicose. Além disso, enfatiza que a relação que Freud estabelece

entre esse fenômeno e o não querer saber, mesmo no sentido do recalcado, pode ser

traduzido como: “o que é recusado na ordem simbólica ressurge no real” (LACAN, 1955-

1956/1988, p.22).

De acordo com Miller (2006/2009, p.44), a interpretação lacaniana da alucinação do

dedo cortado desencadeou no Homem dos Lobos um conteúdo que escapou à simbolização

primária e, por isso, não pôde ser historiado. Este fato é embasado pelo mutismo aterrorizado,

uma impossibilidade de falar sobre o ocorrido, inclusive com a babá que lhe era tão confiável

e estava a seu lado. Esta mudez permite constatar que esta experiência foi vivida fora do

campo do Outro. Por isso Miller (2006/2009, p.48) afirma que “encontramos um real

separado da fala, um real que nada espera da fala, diz Lacan, e que – é dele a expressão em

itálico – conversa sozinho”.

Lacan (1955-1956/1988, p.22) se refere a uma distorção da temporalidade: “parece

que toda referenciação temporal tenha desaparecido. [...] Há aí um abismo, uma imersão

temporal, um corte de experiência, depois do que resulta que não há absolutamente nada, tudo

acabou”. Esta distorção temporal foi retomada por Miller em Perspectivas do Seminário 23 de

Lacan: o sinthoma (LACAN, 2006-2007/2009, p.50) como um “esp de um laps”, que acentua

a ruptura e a descontinuidade marcadas por Lacan em “Prefácio à edição inglesa do

Seminário 11” (LACAN, 1976/ 2003, p.567).

Em “Análise terminável e interminável” Freud (1937a/1993, p.221) retoma o caso do

Homem dos Lobos admitindo que fixar o tempo de duração de uma análise mostra ser um

recurso inadequado para a condução do tratamento analítico. Se por um lado fez acelerar o

processo, por outro o fez ser interrompido antes do seu fim. Segundo Freud, algumas das

crises posteriores ao suposto final de análise se deve a partes residuais da transferência que

apresentavam um caráter distintamente paranoico.

1.3.4 A guisa de conclusão

61

Após este percurso pelos textos freudianos, e pelas considerações de Lacan e de

Miller, tendemos a pensar que o Homem dos Lobos se trata de uma psicose. A especificidade

desta estrutura é um tema que merece atenção neste caso, na medida em que não aparecem

fenômenos psicóticos tão evidentes quanto nas psicoses deflagradas.

Inicialmente, em relação ao desencadeamento, recolhemos o significante

descontinuidade utilizado por Miller (1987-1988/2009) para a leitura dos pontos de virada

ocorridos na história do Homem dos Lobos. A primeira diz respeito à modificação no caráter

do menino, ocorrida em torno dos três anos. A segunda pode ser localizada no sonho com os

lobos, um ano depois. A terceira está no momento em que ele se apropria da religião. Falar

em descontinuidade é muito distinto da noção do desencadeamento. Por isso nos

perguntamos: o que houve para que esta psicose não se desencadeasse de forma

extraordinária?

Para responder a esta questão, seguimos a indicação de Agnès Aflalo (2010, p.15) que

a recusa e a aceitação da castração são suplências sintomáticas decorrentes da foraclusão, mas

que não a anulam. Neste sentido, a psicose não se desencadeia porque há um mecanismo

operatório que impede que este fato ocorra. Depois da análise com Freud, podemos

acompanhar que a figura do lobo – objeto condensador de gozo e causa de horror – inscreve a

função do nome no paciente. Sergei Pankejeff começou a se identificar socialmente como

Homem dos Lobos, raramente usando, a partir daí, seu patronímico.

Apostamos que ter sido apelidado e, posteriormente, assumir-se como tal, foi uma

amarração que forneceu certa estabilidade à sua vida. Esta solução resolveu algo do real com

certa efetividade, na medida em que o simbólico nomeou o objeto de gozo e deu-lhe um lugar

subjetivo.

Em 1926 apareceram alguns sintomas que o fizeram procurar Freud novamente. Este o

encaminhou a uma analista que ele mantinha sob sua supervisão chamada Ruth Mack

Brunswick, que o atendeu por cinco meses, de outubro de 1926 a fevereiro de 1927 e,

posteriormente, em 1929. O paciente sofria de uma ideia fixa de hipocondria, se queixava de

um problema no nariz causado pela eletrólise. Não havia nenhuma possibilidade de escapar

das fantasias de mutilação, estava desesperado como nunca havia sentido antes. Olhava-se

constantemente em um espelho que levava consigo e acreditava que “todo o mundo olhava o

buraco de seu nariz” (BRUNSWICK, 1945/1983, p.186).

Além disso, apareceram ideias de grandeza associadas ao dinheiro. Quando elas foram

desconstruídas, a mania persecutória foi desencadeada de uma maneira mais difusa que o

62

sintoma hipocondríaco. Ele acreditava que o médico o havia desfigurado intencionalmente e

que sua atual enfermidade se devia a Freud não tê-lo tratado bem (BRUNSWICK, 1945/1983,

p.204-205).

A analista o diagnostica como um caso de paranoia tipo hipocondríaca

(BRUNSWICK, 1945/1983, p.211) com sintoma monossintomático – localizado nos delírios

de mutilação –, característico das afecções psicóticas. Ela conclui que a megalomania

funcionava como uma proteção à construção da situação persecutória que aparece logo em

seguida: “o delírio hipocondríaco oculta as ideias de perseguição e lhe proporciona uma forma

adequada ao conteúdo de toda a enfermidade”. Além da hipocondria e da perseguição, ela

pontua a ausência de alucinações nos delírios e ligeiras ideias de referência na estrutura

psicótica de seu paciente (BRUNSWICK, 1945/1983, p.214).

Sua recuperação foi repentina: os romances se tornaram sua maior fonte de prazer.

Como já foi dito acima, aproximadamente dois anos, em 1929, ele retomou a análise com

Brunswick. Vinha por uma relação amorosa conturbada. Este tempo de análise se estendeu

por vários anos, com certa irregularidade. Segundo a analista: “não restava nenhuma marca de

psicose ou de tendências paranoides” (BRUNSWICK, 1945/1983, p.179).

Muriel Gardiner foi a terceira analista do Homem dos Lobos nos períodos de 1938-

1949 e, posteriormente em 1956. Desde o primeiro encontro, em 1927, ela não viu nada que

possa ser considerado anormal. Era um homem socialmente adequado e suas conversas

giravam em torno da arte, da literatura e da psicanálise. “Desde então, nos muitos anos que o

conheço, jamais observei sinais ou sintomas que pudesse considerar verdadeiramente

paranoides” (GARDINER, 1938-1949/1983, p.280). Contudo, salienta que após o suicídio da

esposa, em 1938, não conseguia falar de nada que não fosse si mesmo, a morte da mulher e a

crueldade do destino.

A analista descreve alguns episódios de depressão com uma periodicidade

determinada, em intervalos de dois a quatro anos. Nota que as depressões estão sempre

relacionadas com algum acontecimento que as desencadeiam. Ela não acredita que sejam de

caráter psicótico, pois o que ele “experimenta como depressão é às vezes uma reação frente a

uma perda real e outras a desesperança que provocam suas dúvidas obsessivas, sua culpa, suas

autoacusações e sua sensação de fracasso” (GARDINER, 1938-1949/1983, p.280).

Relata que em 1951 alguns analistas poderiam diagnosticar que os fenômenos do

Homem dos Lobos poderiam ser considerados como os de uma paranóia. Acontece que, face

à indecisão em se apresentar às autoridades militares russas que o haviam interrogado, ele

vivenciou “delírios de perseguição; pensava que as pessoas falavam de mim ou me olhavam

63

quando sem dúvida não era assim, ainda quando na realidade não teve a sensação de que

alguém me seguia” (GARDINER, 1938-1949/1983, p.280-281). Doze anos depois que as

forças russas haviam saído da Áustria, esta atitude de perseguido se mantinha preservada. Era

a mesma estrutura delirante de 1927, quando começou a análise com Brunswick.

Gardiner (1938-1949/1983, p.284) reavalia a análise do Homem dos Lobos ocorrida

com Brunswick entre 1926 e 1927, dizendo que não coloca em dúvida que os sintomas sejam

psicóticos, mas em vista do êxito desta análise e de seu rápido estabelecimento, é preciso

questionar o diagnóstico. Em seu entendimento, os períodos de depressão, de dúvida e de

vacilação, ambivalência, sentimentos de culpa e fortes necessidades narcísicas são

manifestações do defeito que a neurose obsessiva deixou após a recuperação do paciente.

Estes sintomas foram modificados e reduzidos pela psicanálise, mas não desapareceram.

Finalizamos, com Miller (1988/2010, p.40) dizendo que os fenômenos elementares

presentes no caso do Homem dos Lobos permitiram evidenciar uma estrutura psicótica. Mas a

ausência de um desencadeamento clássico faz com que o Um-pai não sirva como ferramenta

para pensar em suas particularidades. Miller considera que a conjuntura aqui presente coloca

em primeiro plano não a função do pai, mas a função fálica, na medida em que as

descontinuidades se relacionam sempre a um ataque à imagem do pai ou à imagem fálica: “é

como se o falo imaginário tivesse uma função de Nome-do-Pai. A cada vez que algo vem

golpear essa função, ocorre uma desestabilização do sujeito, ainda que ela não desemboque

em um desencadeamento completo” (1988/2010, p.40).

A partir da especificidade dos fenômenos clínicos e do desencadeamento podemos

afirmar que o Homem dos Lobos é um caso de psicose ordinária? Supomos que sim. Levando

em conta a importância de classificá-la de uma maneira psiquiátrica (MILLER, 2009/2010,

p.15), diremos mais: o Homem dos Lobos pode ser considerado uma psicose ordinária do tipo

paranóica.

Segundo Marcus André Vieira (2005, p.6), “tomar o Homem dos Lobos a partir do

conceito de psicose ordinária nos permite, em uma certa medida, lidar com ele tal como Freud

o fez, como campo de exploração terapêutica dos limites do campo subjetivo e, ao mesmo

tempo, do campo psicanalítico”.

64

2 UMA LEITURA LACANIANA DAS PSICOSES

Cabe como introdução apresentar um roteiro de como este capítulo foi escrito.

Iniciaremos procedendo a uma distinção didática realizada por Jacques-Alain Miller sobre o

ensino de Lacan. Tal distinção é necessária porque do primeiro ao segundo ensino Lacan

modifica essencialmente sua teorização, acarretando transformações importantes na forma em

que a clínica das psicoses é postulada nesses dois tempos. Decompondo-o em dois

momentos, esse esclarecimento se torna essencial para a organização com a qual pretendemos

nos balizar ao percorremos alguns seminários e escritos de Lacan que se referem às psicoses.

Em seguida, trabalharemos a questão das psicoses no primeiro ensino, pois nos anos

50 Lacan retoma a teoria da psicose formulada por Freud e realiza uma formalização, com

seus próprios termos, da paranoia extraordinária de Schreber. No que diz respeito às psicoses,

os textos centrais do primeiro ensino são fundamentalmente O Seminário, livro 3: as psicoses

(LACAN, 1955-1956/1988) e o texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível

da psicose” (LACAN, 1959[1957-1958]/1998).

Retomaremos esses escritos em busca de operados lógicos e conceituais – como a

foraclusão do Nome-do-Pai e suas consequências, a metáfora paterna, a estabilização e o

desencadeamento da psicose, os fenômenos elementares e o delírio e a especificidade do

manejo da transferência –, enfatizando alguns elementos essenciais para o diagnóstico

estrutural das psicoses desencadeadas. Ilustraremos alguns desses dados às falas de Gérard

Primeau, um psicótico entrevistado por Lacan em uma apresentação de pacientes

(1975/2000).

Apresentaremos a fórmula da metáfora paterna (LACAN, 1959[1957-1958]/1998,

p.563) e os Esquemas lacanianos – o L (LACAN, 1955-1956/1988, p.22), o R (LACAN,

1959[1957-1958]/1998, p.559) e o I (LACAN, 1959[1957-1958]/1998, p.578) – construídos

com o intuito de matemizar a realidade psíquica na neurose e na psicose. Seguindo Lacan,

será necessária a leitura do Esquema I das psicoses articulada a alguns pontos fundamentais

do caso Schreber, tendo em vista a complementação do que já foi iniciado no item 1.2. desta

Tese de Doutorado.

Depois, partindo da clínica borromeana, pinçaremos alguns elementos específicos do

segundo ensino de Lacan – especialmente a topologia dos nós e o conceito de sinthoma –

para retomarmos o caso Joyce apresentado em O seminário, livro 23: o sinthoma (LACAN,

1975-1976/2007) e o texto “Joyce, o Sintoma” (LACAN, 1975/2003).

65

2.1 Os dois ensinos de Lacan: uma delimitação didática

Jacques-Alain Miller (1979/2002, p.15) decompõe o ensino de Lacan em dois tempos

periodicizados de acordo com a primazia sucessiva que o imaginário, o simbólico e o real

desempenham na experiência analítica. Em um primeiro momento, o que precede o primeiro

ensino é denominado de Antecedentes. Trata-se de um período em que Lacan escreve artigos

no campo da psiquiatria, no qual se destaca a Tese de Doutorado defendida sob o título Da

psicose paranóica em suas relações com a personalidade (LACAN, 1932/1987), bem como

sua primeira incursão no campo da psicanálise chamada de “O estádio do espelho como

formador da função do eu tal como nos é revelada na experiencia psicanalítica” (LACAN,

1949[1936]/1998).

O primeiro ensino começa a rigor a partir de 1953 com o Discurso de Roma que

contém a proposta de um retorno a Freud. Lacan trabalha com uma clínica estrutural tendo

em vista as três estruturas formuladas por Freud: a neurose, a psicose e a perversão.

Vetorizado pelo que acredita ser a condição de possibilidade da psicanálise, Lacan leva o

aforismo “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” até as últimas consequências.

Ele se preocupa em delimitar os três registros e defini-los como conjuntos que comportam

uma quantidade de elementos pertencentes aos mesmos.

Lacan parte do imaginário e o conceitua a partir da imagem, e não da imaginação.

Nesse sentido, o estádio do espelho promove uma identificação à imago do corpo próprio

(LACAN, 1949[1936]/1998, p.98), antes que a linguagem restitua ao infans sua função de

sujeito. Portanto, isto é feito a partir da identificação com a imago do semelhante que projeta

a história da formação do indivíduo, conforme teoriza Lacan (LACAN, 1949[1936]/1998,

p.100):

[...] o estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação – e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos de ortopédica – e para armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental. Assim, o rompimento do circulo do Innenwelt para o Umwelt gera a quadratura inesgotável dos arrolamentos do eu (grifos do autor).

É esse contexto que “faz todo o saber humano bascular para a mediatização pelo

desejo do outro” (LACAN, 1949[1936]/1998, p.101), outro como semelhante, como se nota

66

no primeiro tempo do complexo de Édipo. E o narcisismo primário – conceito explorado por

Freud (1914/1993, p.73, 85, 87 e 91) para designar o investimento libidinal pelo eu ideal –, é

o que subjaz na função alienante do eu à sua própria imagem.

Mais adiante, Lacan equivale o simbólico ao significante e o define como um símbolo

que advém do Outro enquanto lugar do código. Assim, a disjunção entre o significante e a

imagem é evidente, mesmo que Lacan (1957-1958/1999, p.233-235) tenha atribuído uma

função significante à Urbild, a imagem primitiva do eu. Desta forma, a imagem é elevada à

categoria de matriz simbólica e fornece certa cristalização do sujeito em relação à imagem

ilusória, não sem lhe dar subsídios orientadores sobre as suas condutas na realidade.

Quando Lacan retoma os textos e os conceitos freudianos em busca de uma

verificação daquele axioma – de 1953 a 1963 –, o simbólico se torna a dimensão fundamental

da experiência analítica.

De 1964 a 1974, Lacan começa a manejar operadores teóricos que já vinham sendo

articulados – por exemplo, objeto a, A, $ – com a finalidade de priorizar determinadas

elaborações matêmicas que vinham sendo processadas. Em Lacan (1964/1998, p.193):

Se a psicanálise deve se constituir como ciência do inconsciente, convém partir de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Daí deduzi uma topologia cuja finalidade é dar conta da constituição do sujeito.

O registro do real sempre esteve incluído no ensino de Lacan. Em O seminário, livro

1: os escritos técnicos de Freud (LACAN, 1953-1954/1979, p.82) ele define o real como algo

que resiste à simbolização, como “uma realidade irreal, alucinatória”. Contemporâneo a isso,

em o Discurso de Roma, ao referir-se à ambiguidade do chiste em sua relação com o

inconsciente, assinala a outra face da atividade criadora do chiste, pois “sua dominação sobre

o real exprime-se no desafio do contra-senso, em que o humor na graça maliciosa do espírito

livre, simboliza uma verdade que não diz sua última palavra” (LACAN, 1953/1988, p.271).

Mais adiante, em O seminário, livro 4: a relação de objeto (LACAN, 1956-1957/1995, p.30-

31), ele fala sobre as três formas da falta de objeto e da dialética do falo na constituição do

sujeito. Nessa vertente, define o real como um registro que está no limite de nossa

experiência.

Essa posição com referência ao real é explicada, de modo bastante suficiente, pela tela de nossa experiência, cujas condições são muito artificiais, contrariamente ao que nos dizem quando a apresentam para nós como uma situação tão simples. Todavia, só podemos nos referir ao real teorizando. Mas, o que queremos dizer quando invocamos o real? É pouco provável que tenhamos dele, de saída, a mesma noção, mas é verossímil que todos possamos ter acesso a certas distinções ou dissociações esse

67

termo real, ou realidade, se examinarmos de perto que uso é feito dele (LACAN, 1956-1957/1995, p.30-31).

Neste mesmo seminário, Lacan marca a diferença entre dois elementos distintos – a

realidade e a realidade psíquica, Wirklichkeit – por isso podemos interpretar que a primeira se

precipita a partir da segunda, mas é esta última que contém o sem-sentido próprio ao real. Há

uma aproximação do real quando surge o sentimento de estranheza, Unheimlich, ou seja, o

estranho familiar que se encontra hors-du-sens.

No entanto, é em O seminário, livro 7: a ética da psicanálise (LACAN, 1959-

1960/1988, p.90 e 97) que Lacan define o real de uma forma mais precisa, mostrando que ele

se encontra sempre no mesmo lugar. Trata-se da definição do real como garantia do das Ding

freudiano, na medida em que “essa Coisa, o que do real – entendam aqui um real que não

temos ainda que limitar, o real em sua totalidade, tanto o real que é do sujeito, quanto o real

com o qual ele lida como lhe sendo exterior – o que, do real primordial, diremos, padece do

significante” (LACAN, 1959-1960/1988, p.149).

No texto “O real é sem lei”, Miller (2001/2002, p.8) afirma que a partir de 1974 Lacan

inicia seu último ensino, no qual o real se torna a categoria essencial da clínica. Por acreditar

haver significantes que poderiam suavizar os efeitos da incidência do real no sujeito, Lacan

aposta na categoria do semblante. Porém, ele percebe claramente que, desde Freud, algo do

real escapa à significantização, ou seja, existem determinadas falas que irrompem no discurso

do sujeito sem que este saiba por quê.

Portanto, a orientação em direção ao real marca a essência do que Miller

convencionou chamar de o segundo ensino. A inscrição da lógica, da matemática e da

topologia – que foram utilizadas por Lacan em O seminário, livro 20: mais, ainda (LACAN,

1972-1973/1985) – permite a teorização do nó borromeano e a equivalência dos registros,

reforçando a tese de que o real ex-siste. As figuras topológicas evocam uma grafia esvaziada

de sentido. Evitando figurá-las materialmente sustentada pelo significante, ele inscreve seu nó

para além da fala, da precipitação significante e do sentido, vetorizando-o para o real. Lacan

postula o nó como suporte de seu segundo ensino e se serve de uma apresentação imaginária

para fornecer sentido ao real, sem deixar de valorizar a equivalência dos três registros.

Consequentemente, o segundo ensino de Lacan é marcado por uma virada da clínica

estrutural, ou seja, descontinuísta, classificatória, fundada no significante Nome-do-Pai, para a

clínica borromeana – continuísta, elástica, relacionada à generalização da foraclusão e à

pluralização dos nomes. Os modos de amarração e de gozo tomam o lugar da primazia

significante da primeira clínica. A segunda não torna a primeira obsoleta, mas lhe dá um uso

68

relativo, permitindo a inclusão do conceito de sinthoma que não pertencia ao acervo

formalizado pela concepção estruturalista.

Ao nos determos nessas formalizações, interessa-nos investigar o que a clínica

estrutural e a borromeana fornecem de ferramentas para o manejo das psicoses, e de que

forma o que é especifica a cada uma delas faz avançar a pesquisa sobre a psicose ordinária.

Na década de 50, Lacan trabalha a psicose teorizada por Freud, mantendo-a em

oposição à neurose. Do texto freudiano “De la historia de una neurosis infantil” (FREUD,

1918[1914]/1994), ele resgata o mecanismo chave da psicose – Verwerfung, a foraclusão do

Nome-do-Pai. Além disso, realiza uma nova leitura deste conceito em O seminário, livro 3:

as psicoses (LACAN, 1955-1956/1988), e, logo depois, no escrito “De uma questão

preliminar a todo tratamento possível da psicose” (LACAN, 1959[1957-1958]/1998). Neste

contexto teórico ele centra suas formulações sobre a psicose em torno dos conceitos de

foraclusão do Nome-do-Pai e de metáfora delirante, que serão detalhados mais adiante. Já

que nesta época seu ensino estava orientado pela consideração de que o registro simbólico

possuía primazia sobre os outros, Lacan propôs que o Nome-do-Pai representasse o

significante princeps do reservatório do Outro, encadeando os seguintes.

No primeiro momento, trata-se de pensar as psicoses a partir dos elementos que Freud

havia extraído da neurose. Partindo da idéia de que a psicose é um déficit significante em

relação à neurose, a foraclusão do Nome-do-Pai é tomada como um índice que confere às

psicoses uma lógica distinta, pois a distinção entre as estruturas se dá em função da presença

ou ausência deste operador. Sendo assim, este significante foi considerado uma medida

normativa de amarração à ordem simbólica que permite ao sujeito o acesso aos discursos

estabelecidos e a constituição de laços sociais. Além disso, os fenômenos elementares, os

distúrbios de linguagem, as alterações do pensamento, os automatismos mentais e os delírios

são elementos diagnósticos fundamentais.

Em 1963 o Nome-do-Pai é pluralizado e gradativamente passa a ser enunciado por

Lacan como um nome entre muitos. A pluralização dos nomes e a foraclusão generalizada são

as referências fundamentais da clínica borromeana a partir das quais a relação entre o

significante e a significação fálica ganha novas conformações. A neurose se torna apenas uma

das soluções estabilizadoras e a psicose deixa de ser um déficit significante em relação à

neurose. Daí a importância que o Campo freudiano vem fornecendo recentemente ao delírio

generalizado, tema que iremos nos deter no terceiro capítulo desta Tese.

Com estas ferramentas clínicas foi possível aos analistas pensarem inúmeras direções

de tratamento não apenas pelos índices de foraclusão e de seus efeitos aparentes, mas também

69

pela localização do que mantêm unidos os três registros. A partir daí se torna possível

entender de forma mais clara uma psicose fora do desencadeamento bem como discutir a

questão da psicose ordinária.

2.2 A psicose extraordinária na clínica estrutural

Na abertura de O seminário, livro 3: as psicoses, Lacan (1955-1956/1988) convida

seus ouvintes a apreciarem o que a doutrina freudiana ensina sobre as psicoses, acrescentando

algumas noções elaboradas por ele nos anos anteriores. Freud deixa claro que existem casos

que não deveriam ser tomados em análise, e enumera diversas contra-indicações ao

tratamento das psicoses; assinalando que o analista deve empreender uma “‘sondagem’, a fim

de conhecer o caso e decidir se ele é apropriado para a psicanálise”42 (FREUD, 1913/1993,

p.126; tradução nossa). Apesar disso, Lacan afirma a necessidade de não retroceder diante das

psicoses (LACAN, 1956/1977, p.9) e, a partir do momento em que ele faz deste axioma uma

posição ética do psicanalista, o tratamento das psicoses se torna um ponto de mira.

Como dissemos anteriormente, a teoria lacaniana das psicoses está centrada no

conceito de foraclusão, definido como a ausência do significante Nome-do-Pai. A concepção

do pai como significante corresponde à elaboração do pai simbólico – um pai morto que não

opera por sua presença, mas sim como um símbolo –, da garantia da lei no Outro, da metáfora

e da função paterna. Segundo Soler (2002/2007, p.12), para Lacan a foraclusão não pode ser

entendida como um fenômeno clínico, mas sim como uma hipótese causal da qual só se pode

apanhar os efeitos que designam a causalidade significante da psicose.

Na psicose, a foraclusão do Nome-do-Pai acarreta uma ausência de efeitos metafóricos

no campo do Outro. Para explicar esta causa-efeito que articula Nome-do-Pai e significação

fálica, Lacan formaliza a metáfora paterna a partir da substituição significante como uma

derivação do complexo de Édipo freudiano. No texto “De uma questão preliminar...”

(LACAN, 1959[1957-1958]/1998, p.563):

42 O trecho correspondente na tradução é: “uno sólo ha emprendido un sondeo a fin de tomar conocimiento del caso y decidir si es apto para el psicoanálisis”.

70

Resumidamente, o Desejo da Mãe comporta um Outro sem lei, um desejo enigmático

que gera perplexidade no sujeito. Esse enigma em relação ao significado desconhecido do

gozo recebe uma resposta universal que orienta o sujeito, ou seja, o desejo do falo que aciona

a operação de significantização. O vazio enigmático do gozo desconhecido ganha então uma

significação fálica a partir da incidência do significante Nome-do-Pai, que encarna um limite

e produz uma subtração do gozo imaginário localizado no Desejo da Mãe. O resultado desta

operação é a inscrição da castração simbólica que acarreta uma subtração de gozo. Segundo

Tendlarz (2007/2009, p.25), quando o enigma do gozo é relativizado pela resposta fálica, ele

se transforma em uma pergunta acerca do desejo do Outro. Em Lacan (1959[1957-

1958]/1998, p.235):

O terceiro desses pequenos andaimes é o pai, na medida em que ele intervém para proibir. É por isso que ele faz passar à categoria propriamente simbólica o objeto do desejo da mãe, de tal sorte que este deixa de ser somente um objeto imaginário – passa a ser, ainda por cima, destruído, proibido.

Lacan constrói o esquema L (LACAN, 1955-1956/1988, p.22) para explicar que S é o

sujeito ainda a ser constituído, entregue a sua “inefável e estúpida existência” (LACAN,

1959[1957-1958]/1998, p.555). Na verdade, nesse esquema figuram os três elementos-chave

do complexo de Édipo freudiano. Para que S se constitua como sujeito barrado, $, é

necessário que encontre um primeiro objeto de amor (a’) e que forme com ele a primeira

versão do gozo, expressa no eixo a-a’. É preciso que haja o Outro simbólico (A) – “lugar de

onde lhe pode ser formulada a questão de sua existência” (LACAN, 1959[1957-1958]/1998,

p.555) – para que, na direção do sujeito do inconsciente, transforme pulsão em inconsciente e

barre o sujeito S, a posteriori. Lacan marca que desde o início, mesmo antes do sujeito se

constituir, o falo já está presente, pois a castração deixa vestígios no recalque original que

orientam todo o percurso, até o ponto em que o $ faz o reconhecimento da castração.

Esquema L

71

Lacan (LACAN, 1959[1957-1958]/1998, p.559) superpõe o complexo de Édipo

encontrado no esquema L, resultando no esquema R, que matemiza a constituição do campo

da realidade na neurose, acrescentando novos elementos.

Esquema R

O esquema R é composto pela união de dois triângulos: um simbólico, em cujos

vértices estão IMA, e outro imaginário, composto por miφ. Além deles, o quadrilátero real

IMim completa a figura. Vale notar que se a dividirmos ao meio, o triangulo simbólico ocupa

a metade dela, restando ao outro lado as áreas do real e do imaginário. Além disso,

destacamos o espaço do real entre os do simbólico e do imaginário.

Estes dois últimos se distribuem em ambos os lados da faixa da realidade,

posteriormente definida por Lacan como real. Ela se configura como uma banda de Moebius,

obtida pela torção e união das duas bordas opostas da figura. Unindo i a I e M a m, obtemos a

faixa que liga o simbólico e o imaginário, de modo que se pode passar de um ao outro de

maneira contínua.

Detalhando um pouco mais este esquema a partir do “Quadro comentado das

representações gráficas” localizado no fim dos Escritos de Lacan, o campo do imaginário

inscreve a maneira que o sujeito representa a si mesmo na relação dual entre o eu e o Outro.

Portanto, ele comporta o narcisismo, a projeção e a captação.

Por sua vez, o simbólico inclui três funções: a do Ideal do eu (I), a do significante do

objeto (M) e a do Nome-do-Pai (P) no lugar do Outro (A). Ou seja, a criança em I se liga à

72

mãe em M, visto que o desejo do sujeito é o desejo do Outro. O pai em A, é instituído como

terceiro por meio de sua veiculação pela fala materna.

Ao nos determos em algumas das principais linhas que delimitam o esquema,

enfatizamos que IM expressa a relação do sujeito com o objeto do desejo intermediada pela

cadeia significante, mais tarde notada pela álgebra lacaniana como $◊a.

Em iM se instituem as figuras do outro imaginário, fundamentalmente a mãe como

Outro real, inscrita no simbólico sob o significante do objeto primordial. De i (imagem do eu:

eu ideal) a M (significante do objeto primordial) se situam os modelos de identificação.

“Podemos apreender como o aprisionamento homológico da significação do sujeito S sob o

significante do falo pode repercutir na sustentação do campo da realidade, delimitado pelo

quadrilátero MimI” (LACAN, 1959[1957-1958]/1998, p.555).

Por fim, no segmento mI ocorrem as identificações imaginárias responsáveis pela

formação do eu. De m a I estão todas as figuras do outro imaginário – desde m (forma

primeira do eu, que se espelha no eu ideal) até I (identificação ideal que, como o esquema R

mostra, é sustentada pelo Nome-do-Pai, P).

No triângulo Saa’ do esquema L, Lacan inclui e destaca o triângulo φim no esquema

R. Ele desdobra o eixo a-a’ em mi e em MI, inserindo o triângulo simbólico PMI. Diferencia

i – imagem especular – de m – Urbild especular, uma primeira imagem fundada a partir da

imagem do semelhante, i. Segundo Lacan, i está para a assim como m está para a’.

Do Esquema R depreendemos que é necessário a extração de um objeto, enquanto

efeito da castração, para que um sujeito se constitua e sustente o campo da realidade.

“Compreende-se, assim, que a reta IM não possa remeter à relação do sujeito com o objeto de

desejo: o sujeito é apenas o corte da banda, e o que cai daí chama-se objeto a” (LACAN,

1998, p.921). De um lado ele está amparado simbolicamente pelo Outro (A) e, de outro, no

campo do imaginário, pelo significante fálico (φ), que lhe confere uma imagem unificadora.

O sujeito “entra no jogo como morto, mas é como vivo que irá jogá-lo” (LACAN, 1998,

p.558), e o fará servindo-se de figuras imaginárias superpostas ao ternário simbólico IMP.

Porém, Lacan (1998, p.578) não se detém no esquema R das neuroses. Assim, nesta

Tese de Doutorado, nos interessa a transformação operada no esquema R que resulta no

esquema I das psicoses. Ele explica a forma que o campo da realidade se encontra modificado

nestas patologias. O esquema I mostra a distorção imposta ao esquema R devido à projeção de

M sobre I, e de i sobre m. Daí decorre P0, a foraclusão do Nome-do-Pai e, do lado oposto, o

buraco no nível da significação fálica, Ф0.

73

Portanto, os pontos de sustentação da realidade do sujeito apresentados no esquema R

– o Nome-do-Pai (NP) no lugar do Outro (A), no vértice do triângulo simbólico e o falo (φ),

na ponta do triângulo imaginário – estão ausentes no campo das psicoses. A ausência da

significação fálica instala um sorvedouro tanto do lado do simbólico como do imaginário.

Esses dois furos, que correspondem a P0 e a Ф0, respectivamente, curvam as linhas mi e MI,

instalando um achatamento na figura que corresponde à ausência da queda do objeto a.

O esquema I serve de base para a leitura realizada por Lacan do texto freudiano

“Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia (Dementia paranoides) descrito

autobiográficamente” (FREUD, 1911/1993) sobre a paranoia de Schreber. Como discorremos

sobre este assunto no item 1.2.1. desta Tese de Doutorado, iremos retomá-lo brevemente

apenas para pontuarmos este esquema.

Enquanto no Esquema R os vértices do quadrilátero situam as articulações

identificatórias nos campos do imaginário e do simbólico, e o que delas restam de real, no

esquema I tais vértices estão abertos ao infinito, sem um ponto de basta. Nesse sentido, a

torção que testemunha a queda do objeto a não existe nas psicoses e, por isso, o campo do real

se torna precariamente estabelecido e muito variável. O campo R do esquema I representa as

condições em que a realidade é restabelecida para o sujeito, o “que a torna habitável para ele,

mas que também a distorce, ou seja, [os] excêntricos remanejamentos do imaginário, I, e do

simbólico, S, a reduzem ao campo do descompasso entre ambos” (LACAN, 1959[1957-

1958]/1998, p.580).

O desencadeamento da psicose acarreta uma ruptura na cadeia simbólica e provoca

uma autonomia do significante no real. Pelo fato de o sujeito não se sentir autor de seus

próprios enunciados, ele é tomado pela perplexidade. Essa autonomia deslocaliza o gozo e

deflagra diversos fenômenos sobre o corpo, como a hipocondria e os sentimentos voluptuosos

presentes na enfermidade de Schreber. Vemos a manifestação da deslocalização do gozo

desde a primeira crise, em 1893, quando Schreber apresentou um esgotamento nervoso com

74

queixas hipocondríacas. Somente em 1894 surgiu uma significação enigmática em torno da

ideia que ‘seria belo ser uma mulher no momento da cópula’ (Cf. FREUD, 1911/1993, p.14).

A significação do gozo deslocalizado implica em um trabalho de mobilização do

significante na busca de uma explicação para os fenômenos que o invadem. Em Schreber,

essa primeira explicação apareceu na acusação de que um complô estaria sendo tramado por

seu médico, Dr. Flechsig, explicação que não apaziguou Schreber; ao contrário, o deixou à

mercê de um Outro todopoderoso. Posteriormente, uma nova explicação foi encontrada por

Schreber: o próprio Deus assumira o papel de cúmplice na conspiração, sua alma deveria ser

assassinada e seu corpo usado como o de uma rameira.

Essa elaboração expressa o sacrifício da morte do sujeito tomado por Lacan como

renúncia fálica (LACAN, 1959[1957-1958]/1998, p.580). Ela marca uma mudança na posição

de Schreber: da indignação à aceitação da eviração para servir aos desígnios de Deus. Lacan

trabalha o conceito de eviração (o Entmannung freudiano) de forma singular. Em “De uma

questão preliminar...”, ele o inscreve como um elemento próprio à estrutura subjetiva marcada

pela foraclusão. A eviração se define como um efeito da não inscrição no nível imaginário,

que se mostra evidente no caso Schreber pela transformação do sujeito em mulher. A partir

disto, o ter e o ser o falo se confundem de maneira peculiar na medida em que “não é por

estar foracluído do pênis, mas por ter que ser o falo, que o paciente estará fadado a se tornar

uma mulher” (LACAN, 1959[1957-1958]/1998, p.571).

Quando a localização do gozo do Outro foi assentado na metáfora delirante “Mulher

de Deus” de Schreber, seus perseguidores foram identificados. Nessa última fase do delírio,

datada de 1897, o conflito se tornou o motivo da redenção do universo e sua feminilização

culminou na eviração seguida da fecundação por raios divinos. Na psicose o eixo que sustenta

minimamente os remanejamentos imaginários que vêm em socorro à desarticulação no plano

do simbólico se dirige ao infinito, o que faz com que entre o deixar-se cair pelo Criador (M)

e o futuro da criatura (m) – que aparecem sinalizados no esquema I das psicoses (LACAN,

1959[1957-1958]/1998, p.578) –, Schreber invente a metáfora delirante, com o objetivo de

criar uma raça superior de homens feitos de seu espírito.

Através de sua prática transexualista, codificada como (i) naquele mesmo esquema,

Schreber atesta a presença do objeto a. Seu corpo se feminiza através dos seios que crescem

em seu peito. Tal como neste exemplo, o objeto a emerge nas psicoses em diferentes

manifestações alucinatórias e fenômenos elementares, pois por não aparecer como

complemento, encarnando a vertente do que falta ao sujeito, o objeto é assimilado enquanto

presença.

75

Em “De uma questão preliminar...” (LACAN, 1959[1957-1958]/1998, p.564)

encontramos duas articulações. Na primeira, o transtorno no nível do imaginário (Ф0) é efeito

da foraclusão do Nome-do-Pai (P0):

A Verwerfung será tida por nós, portanto, como foraclusão do significante. No ponto em que, veremos de que maneira, é chamado o Nome-do-Pai, pode pois responder no Outro um puro e simples furo, o qual, pela carência do efeito metafórico, provocará um furo correspondente no lugar da significação fálica (grifos do autor).

Um pouco mais adiante, neste mesmo texto, a relação causal entre P0 e Ф0 é rompida, o

que faz com que eles sejam considerados dois transtornos distintos (LACAN, 1959[1957-

1958]/1998, p.577):

Terá esse outro abismo sido formado pelo simples efeito, no imaginário, do vão apelo feito no simbólico à metáfora paterna? Ou deveremos concebê-lo como produzido num segundo grau pela elisão do falo, que o sujeito reduziria, para resolvê-la, à hiância mortífera do estádio do espelho?

Como dissemos no item 1.2. desta Tese de Doutorado, da foraclusão do Nome-do-Pai

no campo simbólico (P0) decorrem as alucinações e os transtornos de linguagem. E no campo

dos fenômenos decorrentes de Ф0, Lacan inclui as ideias delirantes ligadas à sexualidade e ao

corpo.

Em muitos casos, apenas depois de revelada a psicose é possível localizar os signos

precursores e os transtornos de evolução progressiva – como fenômenos de franja e os estados

pré-psicóticos, diz Miller (1998/2006, p.19) na Conversação de Antibes. Tais elementos

clínicos são fundamentais para a localização de uma psicose ordinária, na qual os fenômenos

delirantes ainda muito discretos.

O analista deve estar atento para a localização desses índices estruturais, pois se

tratando de uma psicose não desencadeada – chamada por Lacan de pré-psicose – o manejo

da transferência é fundamental para manter a frágil estabilidade do sujeito na estrutura e evitar

o desencadeamento. Pois, segundo ele, “na pré-psicose há o sentimento de que o sujeito

chegou à beira do buraco. Isso deve ser tomado ao pé da letra” (LACAN, 1955-1956/1988,

p.230). É preciso conceber as consequências quando a questão surge de um lugar em que não

há significante, quando é o buraco, a falta que se faz sentir como tal.

2.2.1 Sobre o desencadeamento de uma psicose

76

Na teoria lacaniana, o conceito de Nome-do-Pai é crucial para pensarmos a questão do

desencadeamento nos casos de psicose. Tanto em O seminário 3 e em “De uma questão

preliminar...”, as condições clínicas do desencadeamento se apóiam na teoria estruturalista e

nos registros da fala e da linguagem. Antes de abordarmos as especificidades que

caracterizam este conceito no primeiro ensino, investigaremos a pré-psicose, que significa a

abertura para os fenômenos elementares que estão presentes na estrutura.

Vale notar a questão colocada por Lacan: “o que será o início de uma psicose?”

(LACAN, 1955-1956/1988, p.104). A partir desta pergunta, ele se refere à pré-psicose, termo

introduzido pelo psiquiatra M. Katan em 1939 com base no estudo das Memórias de Schreber.

Para a psiquiatria, esta noção descreve a presença de fenômenos psicóticos que podem existir

antes do desencadeamento – podendo estar ausentes na atualidade do paciente –, sem que

tenha havido necessariamente o desencadeamento de um estado psicótico em qualquer outro

momento (KATAN apud ZBRUN, 2010, p.6).

A autora aponta a existência de duas concepções de pré-psicose: uma sincrônica

(estrutural) e outra diacrônica (histórica, desenvolvimentista, fenomênica, referida ao tempo).

A primeira geralmente está associada às categorias em que se podem notar fenômenos

produtivos, como os boderlines, por exemplo. A diacrônica é associada a uma série de

acontecimentos que antecedem o surto.

Lacan havia elaborado a noção de pré-psicose a partir desta segunda concepção; ele

parte de Katan e desenvolve sua própria definição, propondo-se, precisamente, a questão:

“Onde começa a psicose?”. Este início marca o momento em que algo, que não foi

primitivamente simbolizado, aparece no mundo exterior. Pela impossibilidade do sujeito fazer

frente ao acontecido, a mediação simbólica é substituída por profundos remanejamentos

significantes. Em Lacan:

Que é que entrevemos da entrada na psicose? – senão que é na medida de um certo apelo ao qual o sujeito não pode responder que se produz uma abundância imaginária de modos de seres que são outras tantas relações com o outro com a minúscula, abundância que suporta um certo modo da linguagem e da fala (LACAN, 1955-1956/1988, p.289).

Avançando sobre esta questão ele se pergunta: “a partir de que momento vamos

decidir que o sujeito transpôs os limites, que ele está no delírio?” (LACAN, 1955-1956/1988,

p.219). A perplexidade concernente ao significante se torna um indício específico da pré-

psicose, e, retomando o caso Schreber, Lacan a descreve como “um período de confusão

pânica”. Nele os discretos fenômenos de crepúsculo do mundo, chamados fenômenos de

78

articulando pré-psicose e psicose ordinária: “o termo pré-psicose não esclarece em nada a

questão da psicose ordinária; ao contrário, obscurece-a” (BRODSKY, 2010/2011, p.33).

Distingui-las desta forma é voltar a atenção dos psicanalistas para índices que lhes permitam

verificar de forma antecipatória uma psicose antes de seu desencadeamento.

Portanto, Brodsky conclui que como o pré supõe um desencadeamento, só é possível

presumi-lo no a posteriori de uma eclosão psicótica. Desta forma, começamos a responder as

questões que levantamos acima. Levando em conta os desenvolvimentos da autora, pré-

psicose e psicose ordinária não se equivalem, pois a primeira supõe o desencadeamento e a

conformação extraordinária e a outra exige que sua apresentação não seja esta. Isto porque,

como Brodsky afirma, em acordo com Jacques-Alain Miller (2009/2010, p.23), a psicose

ordinária tem a especificidade de um enodamento estável sem o Nome-do-Pai, o que exclui a

possibilidade do desencadeamento pelas coordenadas do encontro com Um-pai, assunto que

iremos desenvolver mais adiante, no item 3.4.1 desta Tese de Doutorado.

As posições de Miller e de Brodsky não são unânimes no Campo freudiano, já que é

uma categoria em pesquisa, até o presente momento. Encontramos outras formas de

articulação dos elementos com os quais estamos trabalhando.

Sérgio Laia (2009b, p.131), por exemplo, levanta a hipótese de que a psicose ordinária

é uma maneira mais sofisticada de se abordar o que Lacan denominou de pré-psicose. Isto

porque ele define um psicótico ordinário como “um sujeito que chegou à beira desse abismo

que a foraclusão do Nome-do-Pai escava em uma estrutura clínica”. O autor assinala a

diferença com a psicose extraordinária onde o surto e os fenômenos elementares deixam

entrever o sujeito caído nesse abismo (LAIA, 2009b, p.131).

Nieves Soria Dafunchio (2007/2008, p.261) distingue pré-psicose, psicose não

desencadeada e psicose ordinária através da leitura que faz das mesmas pela teoria dos nós.

Todas três são consideradas psicoses não desencadeadas, mas cada uma possui uma

especificidade. A pré-psicose é caracterizada por um frágil enodamento e uma

sinthomatização insuficiente, que permitem supor a possibilidade de desencadeamento. Ao

passo que, nas psicoses não desencadeadas, sinthoma e enlaçamento são realizados de tal

forma que impedem a eclosão da patologia clínica (DAFUNCHIO, 2007/2008, p.279).

Diferentemente delas, as psicoses ordinárias estão parcialmente desencadeadas ou

sinthomatizadas; elas descrevem um estado da psicose que não está em franco

desencadeamento, o que permite que tenham se desencadeado, e depois sido reenlaçadas pela

medicação ou por sintomas que rearticulam o nó (DAFUNCHIO, 2007/2008, p.259).

79

Assim, acompanhamos que a articulação entre pré-psicose e psicose ordinária são

distintas em diversos autores, dentre os quais selecionamos apenas esses três. Tais diferenças

conceituais expressam que, apesar de os psicanalistas do Campo freudiano se servirem de

conceitos comuns, algumas vezes as distintas interpretações exigem que uma determinada

definição seja tomada como premissa orientadora para a direção de uma Tese. Deste modo,

lembramos que algumas teorizações de Lacan reforçam o conceito de desencadeamento.

Em “De uma questão preliminar...” Lacan (1959[1957-1958]/1998, p.584) reúne como

operadores do desencadeamento a operatividade de uma causa específica (a foraclusão do

significante Nome-do-Pai), a dissolução de um elemento estabilizador (uma identificação) e

uma causa acidental (o encontro com Um-pai).

A primeira delas é a própria condição estrutural da foraclusão. Se na neurose, aquele

significante reduplica no lugar do Outro o índice fundamental do ternário simbólico e que

constitui a lei, na psicose, a falta deste reconhecimento torna precária a situação do sujeito na

estrutura. Além disso, há uma segunda condição que é a ruptura da identificação do psicótico

em relação ao Desejo da Mãe. Neste caso, por prescindir do Nome-do-Pai, a psicose desloca o

desejo materno à condição primordial. Quanto à causa acidental – o encontro com Um-pai –,

ela implica a convocação do significante foracluído e acarreta a suplência através do registro

imaginário, em oposição ao simbólico. É o caso em que Lacan assinala os fenômenos

elementares provenientes do P0 e do Ф0.

O encontro contingente dos fatos da vida com a determinação subjetiva da foraclusão,

somados ao consequente desarranjo identificatório, caracterizam a “conjuntura dramática”

que Lacan (1959[1957-1958]/1998, p.584) localiza no momento do desencadeamento. Isso

quer dizer que o desencadeamento e a eclosão de fenômenos elementares acontecem de forma

brusca, quando o lugar a ser ocupado pelo significante foracluído é ocupado por Um-pai. Esta

experiência de encontro com o real precipita a substituição metafórica delirante, que obedece

aos princípios da foraclusão.

É a falta do Nome-do-Pai nesse lugar que, pelo furo que abre no significado, dá início à cascata de remanejamentos do significante de onde provém o desastre crescente do imaginário, até que seja alcançado o nível em que significante e significado se estabilizam na metáfora delirante.

Mas, como pode o Nome-do-Pai ser chamado pelo sujeito no único lugar de onde poderia ter-lhe advindo e onde nunca esteve? Através de nada mais nada menos que um pai real, não forçosamente, em absoluto, o pai do sujeito, mas Um-pai.

É preciso ainda que esse Um-pai venha no lugar em que o sujeito não pôde chamá-lo antes. Basta que esse Um-pai se situe na posição terceira em alguma relação que tenha por base o par imaginário a-a’, isto é, eu-objeto ou ideal-realidade, concernindo ao sujeito no campo de agressão erotizado que ele induz.

Que se procure no início da psicose essa conjuntura dramática (LACAN, 1959[1957-1958]/1998, p.584, grifo do autor).

80

Miller (1998/2006, p.20) acrescenta que a impossibilidade com a qual o sujeito está

confrontado em simbolizar um modo de subjetivação para o encontro eventual com o gozo do

Outro, ou mesmo de um Outro gozo sem acomodamento, é responsável pelo

desencadeamento da psicose. O sujeito experimenta o furo de tal forma que se manifesta o

desaparecimento radical de todo aparelhamento significante de gozo, gerando uma série de

efeitos no nível da cadeia significante: se produz uma ruptura na articulação entre significante

e significado e a emancipação de um significante que, ao estar fora da disposição binária da

cadeia – S1-S2 – é privado da relação com um segundo significante gerador de significação,

causando diversas manifestações clínicas.

Em consonância com Miller, Stella Jimenez (2009, p.89) propõe que o sintagma Um-

pai, deve ser tomado primordialmente em seu viés homofônico, pois “‘impaire’ em francês:

ímpar. Ou seja, o encontro com o que é radicalmente novo, impensável”.

Retomaremos este assunto quando falarmos dos fenômenos elementares concernentes

ao sentido e à verdade, pois, do rompimento da articulação entre significante e significado

decorrem a perplexidade, o enigma, a certeza e a angústia. O fundamental a ser destacado

neste momento é que esta série é a expressão lógica do desencadeamento de uma psicose e da

manifestação dos fenômenos elementares e do delírio.

2.2.2 Os fenômenos elementares como manifestações da Verwerfung

As manifestações clínicas da Verwerfung são os fenômenos elementares e o delírio,

elementos privilegiados da estrutura psicótica e, portanto, referências imprescindíveis na

direção do tratamento. Em “Formulações sobre a causalidade psíquica”, Lacan (1946/1998,

p.163) retoma sua Tese sobre A psicose paranóica em suas relações com a personalidade,

para relembrar que “a loucura é um fenômeno do pensamento”. Decorre desta articulação que

o campo simbólico, mais especificamente o uso da fala ganha destaque na medida em que

nela ressoa grande parte da fenomenologia da psicose.

Neste mesmo texto Lacan (1946/1998, p.166) caracteriza os fenômenos da Verwerfung

em três tipos, a saber, as alucinações, as interpretações e as intuições. Mesmo que com certo

alheamento e estranheza, eles são vivenciados na certeza delirante de que algo visa o sujeito

pessoalmente. “O que ele ali conhece de si, sem se reconhecer?”, se pergunta Lacan. Esta

81

questão comporta um paradoxo: um desconhecimento sistemático supõe um reconhecimento,

pois se admite que o negado seja de algum modo também reconhecido.

Os sentimentos de influência e automatismo metal se caracterizam pelo fato de o

sujeito não reconhecer suas próprias produções. Quando lhe falta um meio de se exprimir

sobre estes sentimentos, emerge a perplexidade, “uma hiância interrogativa” que faz com que

toda a loucura seja vivida no registro do sentido (LACAN, 1946/1998, p.166). Nesta

articulação entre linguagem e sentido, há uma especificidade própria à psicose que pode ser

localizada nas alusões verbais, nas relações cabalísticas, nos jogos de homonímia e nos

trocadilhos. Nelas, a linguagem se apresenta em uma “modalidade original” que só pode ser

ouvida no “toque de singularidade” cuja ressonância caracteriza o delírio (LACAN,

1946/1998, p.168).

Portanto, “assim como todo discurso, um delírio deve ser julgado em primeiro lugar

como um campo de significação que organizou um certo significante” (LACAN, 1955-

1956/1988, p.141). É a economia do discurso, ou seja, a relação de um sujeito com o

ordenamento comum de seu próprio discurso que permite distinguir que se trata de um delírio.

Nas palavras de Lacan:

Freud teve o sentimento de que, nas relações do sujeito psicótico com o seu delírio, alguma coisa ultrapassa o jogo do significado e das significações, o jogo do que nós chamaremos mais tarde as pulsões do id. Há aí uma afeição, um apego, uma presentificação essencial, cujo mistério continua sendo para nós quase total, o mistério de que o delirante, o psicótico, está unido ao seu delírio como a algo que é ele próprio (LACAN, 1955-1956/1988, p.246, grifo do autor).

Em acordo com Lacan, Jacques-Alain Miller (1995/2005, p.81 e 1987/1997, p.227-

228) considera o delírio um discurso articulado que tem por objetivo dar conta da estranheza

dos fenômenos elementares do sujeito, restituindo uma ordem, qual seja, a delirante. Os

fenômenos elementares podem ser classificados em: fenômenos de automatismo mental, que

se referem à irrupção de vozes e de discursos alheios a mais íntima esfera psíquica; fenômenos

de automatismo corporal expressos pela decomposição do corpo, estranheza,

desmembramento, distorção tempo-espaço; e fenômenos concernentes ao sentido e à verdade,

ou seja, as vivências inefáveis, enigmáticas, inexprimíveis, que causam perplexidade, a auto-

referência ou a certeza absoluta.

Roberto Cueva (1995/2005, p.36) formaliza a construção delirante em três etapas

distintas. No primeiro momento surgem fenômenos elementares que vão desde a alusão até a

interpretação delirante propriamente dita, na qual os traços de convicção e imediatismo são

acentuados por comportar em si mesmo um traço enigmático de significação. Depois, há um

82

trabalho do sujeito sobre esse enigma e sua tradução em diferentes perguntas acusatórias.

Finalmente, o surgimento abrupto de respostas que fixam um sentido em relação ao enigma

inicial, uma interpretação delirante que revela tanto o fenômeno de significação pessoal,

quanto o caráter fragmentário, imediato e intuitivo destas interpretações.

Através da metáfora da folha, Lacan (1955-1956/1988, p.28) assinala a relação

estrutural subjacente entre os fenômenos elementares e a construção delirante. Na medida em

que eles possuem uma matriz mínima que revela a estrutura geral da psicose, podemos supor

que um fragmento não se define como parte de um conjunto, apenas na medida em que nele

se resume a própria estrutura. Da mesma forma, na configuração complexa que se desenham

as nervuras de uma folha, uma estrutura análoga à das formas que compõem a totalidade da

planta está reproduzida. Em Lacan:

[...] os fenômenos elementares não são mais elementares do que o que está subjacente ao conjunto da construção do delírio. São elementares como o é, em relação a uma planta, a folha em que se poderá ver um certo detalhe do modo como as nervuras se imbricam e se inserem – há alguma coisa de comum a toda planta que se reproduz em certas formas que compõem sua totalidade. Do mesmo modo, estruturas análogas se encontram no nível da composição, da motivação, da tematização do delírio, e no nível do fenômeno elementar. Em outras palavras, é sempre a mesma força estruturante, se é possível assim nos exprimirmos, que está trabalhando no delírio, quer o consideremos em uma de suas partes ou em sua totalidade (LACAN, 1955-1956/1988, p.28).

Esta força estruturante define a peculiaridade do funcionamento do inconsciente nas

psicoses: aqui o inconsciente funciona a descoberto, pois o que é da ordem do recalque na

neurose, se sustenta por uma outra linguagem de alcance bastante reduzido. Em O seminário

3, Lacan (1955-1956/1988, p.73) denomina esta linguagem de dialeto, enfatizando que o

funcionamento inconsciente está marcado por uma “inércia bem especial” (LACAN, 1955-

1956/1988, p.167) que o sujeito expressa em sua relação com a linguagem, onde alguma

coisa toma forma de palavra que lhe fala. Ou melhor, ela fala “de um objeto que está no

prolongamento da dialética dual – ele fala com vocês de alguma coisa que lhe falou”

(LACAN, 1955-1956/1988, p.52), tal como testemunha o paranóico.

No texto “Lições sobre a apresentação de doentes”, Miller (1977/1996, p.145) ressalta

este fenômeno parasitário com o termo lacaniano xenopatia. Na conferência “Psicanálise e

psiquiatria” (MILLER, 1981b/1997, p.131) ele o define como o sentimento de que os

pensamentos chegam ao sujeito de fora. Antes de serem formulados, eles são comentados ou

mesmo impostos e, sem mediação, se fazem ouvir no interior do sujeito como a voz do Outro.

Ou seja, pelas palavras estarem privadas de significação, pela impossibilidade de articulação

com o Outro simbólico, elas parasitam o sujeito que escuta a si mesmo. Ele afirma que:

83

Quando a defasagem mantida da enunciação em relação a si mesma se ampliou até engendrar vozes individualizadas e temáticas que se desencadeiam no real, quando o sujeito se experimenta atravessado por rajadas de mensagens, por uma linguagem que fala por si só, espiado em seu foro íntimo e sujeitado a injunções e a inibições a cuja produção ele não pode se vincular, tem-se então a grande ‘xenopatia’, que Lacan fundou no campo da linguagem com seu matema do Outro (MILLER, 1981b/1997, p.131).

Neste ponto, é preciso enfatizar duas questões essenciais. Em primeiro lugar, a

diferença que existe entre a alienação imaginária que está presente na constituição do eu –

mesmo porque a estrutura do eu é paranóica, e isto permanece como elemento de

fantasmatização no ser falante –, e a alienação na psicose. Nesta, o que fala no sujeito é o

inconsciente, ao contrário da neurose onde o inconsciente fala do sujeito. Mas isso não basta.

O outro ponto diz respeito à crítica que Lacan (1955-1956/1988, p.153) lança sobre a

imprudência de alguns em direcionar o tratamento apoiado “na parte sã do eu”, afirmando

que os delírios parciais são um “exemplo mais patente da existência contrastada de uma parte

sã e de uma parte alienada do eu”.

A psicanálise fornece ao delírio do psicótico uma sanção singular, porque ela o legitima no mesmo plano em que a experiência analítica opera habitualmente, e que ela torna a achar no seu discurso o que comumente descobre como discurso do inconsciente. Esse discurso que emergiu no eu, se revela – por mais articulado que ele seja, e se poderia mesmo admitir que ele está em grande parte invertido, posto entre parênteses pela Verneinung – irredutível, não-manejável, não curável (LACAN, 1955-1956/1988, p.153, grifo do autor).

Essa modificação na relação do psicótico com a linguagem leva Lacan ao fenômeno

do automatismo mental, da atribuição das vozes. Para ele a questão não está colocada sobre

aquele que emite a frase, mas no fato de que aquele que a escuta a experiencia como algo

estrangeiro. Os fenômenos falados alucinatórios que têm para o sujeito um sentido no

registro da interpelação, da ironia, do desafio, fazem sempre alusão ao Outro, como um termo

que está sempre presente, mas que jamais é visto e nomeado (LACAN, 1955-1956/1988,

p.291).

[...] o toque de singularidade cuja ressonância é preciso sabermos ouvir numa palavra para detectar o delírio, a transfiguração do termo na intenção inefável, a fixação da idéia no semantema (que aqui, precisamente tende a se degradar em signo), os híbridos do vocabulário, o câncer verbal do neologismo, o enviscamento da sintaxe, a duplicidade da enunciação, e também a coerência que equivale a uma lógica, a característica que, pela unidade de um estilo nas estereotipias, marca cada forma de delírio: tudo isso pelo qual o alienado, através da fala ou da pena, comunica-se conosco (LACAN, 1955-1956/1988, p.168).

A alucinação verbal é uma das formas de automatismo mental mais problemática, pois

quando o que não foi simbolizado aparece no real acompanhado do sentimento de realidade

84

característico deste fenômeno, o sujeito fala literalmente com o seu eu, como se um terceiro,

seu substituto de reserva, comentasse suas atividades (LACAN, 1955-1956/1988, p.23). A

estrutura interna da linguagem é promovida ao primeiro plano da cena – a voz que fala

sozinha e em voz alta –, pois na fala delirante, o Outro estando verdadeiramente excluído, o

que concerne ao sujeito é dito pelo outro.

Como dissemos na Introdução deste segundo capítulo, alguns fenômenos elementares

podem ser identificados na fala de Gérard Primeau, um psicótico entrevistado por Lacan

(1975/2000, p.14) em uma apresentação de pacientes. O fenômeno de alucinação verbal pode

então ser verificado no sujeito, quando em uma tarde ele estava voltando para casa e ouviu os

vizinhos gritarem: “O senhor Primeau é louco; ele deveria ser posto num hospício, etc. e tal”.

Estão presentes os sentimentos de influência: as alucinações verbais, nas quais o sujeito

articula frases e as experimenta com grande estranhamento, na medida em que elas são alheias

a ele e carregam os traços da alucinação e do sem-sentido. “O sujeito não reconhece suas

próprias produções como sendo suas”, diz Lacan (1946/1998, p.166). Esta questão nos

interessa profundamente por redimensionar o saber e o que se extrai dali sem que o psicótico

possa reconhecê-lo.

Outro exemplo é a fala imposta, que Gérard Primeau define da seguinte maneira:

Fala imposta é uma emergência, que se impõe ao meu intelecto e que não tem significado, se considerado o senso comum. São sentenças que emergem, que não são refletidas, que ainda não foram pensadas, mas são uma emergência, expressando o inconsciente (PRIMEAU apud LACAN, 1975/2000, p.5).

Quando trabalhamos o caso Schreber, no item 1.2. desta Tese, dissemos que Lacan

distingue os fenômenos de código dos fenômenos de mensagem. Nos primeiros o sujeito

recebe mensagens sobre o código através das vozes que lhe pronunciam uma nova

significação da linguagem, como nos neologismos. Ao passo que nos fenômenos de

mensagem, por exemplo, nas frases interrompidas, estas se detêm onde se produziria uma

significação e, em substituição a esse complemento surge uma voz que traz o que ficou

excluído do simbólico no real da alucinação. Tal diferença tem consequências para a

interpretação.

A decomposição de um nome fez com que ele se nomeasse como Geai Rare Prime Au,

motivo pelo qual ele obteve o codinome Gérard Primeau. Ele o decompôs de uma forma

lúdica para criar Geai – pássaro – Rare – raro, cuja homofonia cria a primeira parte do

codinome, Gérard. O pássaro que aparece em seu nome emerge no fenômeno de código do

sujeito. Ao iniciar uma fala imposta – “Você matou o passarinho azul” – esta se desdobra em

85

um fenômeno de mensagem: “Ele vai me matar o pássaro azul”. O paciente explica a Lacan

que esta última sentença é um “assastinato” político, um neologismo que inventou para reunir

o assassino, assassin, e o médico assistente, assistant (LACAN, 1975/2000, p.6). O paciente

não consegue distinguir estas palavras isoladamente, pois elas deslizam juntas a partir de uma

mistura sonora que emerge espontaneamente (LACAN, 1975/2000, p.10). Além de

assastinato, o sujeito inclui dois outros neologismos: écraseté, esmagado, e éclaté,

esplendoroso; e o neologismo choixre que significa a junção da palavra choir, cair, e de choix,

escolha (LACAN, 1975/2000, p.11).

Segundo Lacan (1955-1956/1988, p.67), os neologismos não possuem nenhuma

significação no código linguístico. Eles permitem o sujeito significantizar e definir seu ser,

bem como denotam a forma com que o sujeito se orienta no próprio discurso. Lacan inclusive

ensina que na fala delirante o significante sofre algumas modificações: alguns elementos são

isolados e ganham uma força de inércia particular ao serem carregadas de uma única

significação: “certas palavras ganham um destaque especial, uma densidade que se manifesta

algumas vezes na própria forma do significante, dando-lhe esse caráter indiscutivelmente

neológico tão surpreendente nas produções da paranóia” (LACAN, 1955-1956/1988, p.42).

Em “Formulações sobre a causalidade psíquica”, Lacan (1946/1998, p.164) já havia

assinalado que o sentimento limite entre realidade e irrealidade que assinala a alucinação se

manifesta no mundo exterior como algo novo, uma invenção da realidade que constitui o

suporte do que o sujeito experimenta. Isto é facilmente confirmado pelo próprio Gérard

Primeau, na apresentação de pacientes, quando disse a Lacan:

Estou um pouco dissociado da língua, dissociado entre sonho e realidade. Há uma equivalência entre [...] dois mundos na minha imaginação, e não uma prevalência. Entre o mundo e a realidade – o que se chama realidade, há uma dissociação. Estou constantemente alimentando o fluxo imaginário (PRIMEAU apud LACAN, 1975/2000, p.5).

No texto “De uma questão preliminar...” Lacan (1959[1957-1958]/1998, p.538)

trabalha a alucinação de uma forma completamente inovadora em relação à maneira que ela

era apresentada pela psiquiatria. Retomando alguns termos em latim – perceptum, percipiens

e sensorium – ele afirma que a alucinação não é uma percepção sem objeto, como supunha a

psiquiatria, pois o perceptum, a cadeia significante, antecede e atua sobre o percipiens, aquele

que percebe, estruturando sua relação com os objetos a partir do campo simbólico.

A ideia de Lacan (1955-1956/1988, p.90) é que a realidade da alucinação não está

assegurada ao psicótico, a ponto deste muitas vezes admitir a irrealidade de seus fenômenos.

O ponto central é que a questão não se coloca no âmbito da realidade, mas sim no da certeza,

86

pois “mesmo quando ele se exprime no sentido de dizer que o que sente não é da ordem da

realidade, isso não atinge a sua certeza, que lhe concerne. Essa certeza é radical” (LACAN,

1955-1956/1988, p.91). Sabemos que o acesso à realidade depende de uma condição

fundamental. O sujeito deve atravessar o complexo edipiano, para que se integre ao jogo

significante. No caso do psicótico, isso lhe falta e acarreta um buraco na estrutura que o

delírio pretende cumular.

No momento em que o que não é simbolizado reaparece no real, isso se apresenta sob

o registro de uma significação que só se remete a ela própria e permanece irredutível, pois

jamais entrou no sistema dialético de simbolização. Essa significação não vem de parte

alguma e não pode ser ligada a nada, apesar de concernir ao sujeito. Nas palavras de Lacan:

Que diz o sujeito afinal de contas, sobretudo num certo período de seu delírio? Que há significação. Qual, ele não o sabe, mas ela vem no primeiro plano, ela se impõe, e para ele ela é perfeitamente compreensível. [...] ela se situa no plano da compreensão como fenômeno incompreensível (LACAN, 1955-1956/1988, p.31).

No Seminário 3 Lacan utiliza o termo intuição delirante, retirado da psiquiatria, para

explicar a emergência de significantes com sentido pleno que não causam nenhuma vacilação

subjetiva para o sujeito. Nela, um objeto ganha uma significação em relação a qual o sujeito

não pode dizer nada – há um vazio enigmático da significação – a não ser que exista ali

alguma certeza (LACAN, 1955-1956/1988, p.18).

Em “De uma questão preliminar” Lacan (1959[1957-1958]/1998, p.545) considera que

“trata-se, na verdade, de um efeito do significante, na medida em que seu grau de certeza

(segundo grau: significação de significação) adquire um peso proporcional ao vazio

enigmático que se apresenta inicialmente no lugar da própria significação”. Ele reconsidera

esse termo, pois entende que “estamos na presença desses fenômenos erroneamente chamados

de intuitivos” (LACAN, 1959[1957-1958]/1998, p.545). Em seu lugar utiliza a expressão

experiência enigmática, para falar sobre a emergência do S1 enigmático que impele o sujeito à

busca de sentido frente ao vazio do significante.

Gérard Primeau informa que seus delírios paranóicos se iniciaram com o desejo de

livrar a França do facismo. Assistindo a um programa, a locutora disse: “não sabia que tinha

ouvintes com esses talentos”; foi quando ele se conscientizou que podia ser ouvido pelo rádio

(PRIMEAU apud LACAN, 1975/2000, p.14).

Lacan (1959[1957-1958]/1998, p.545) confirma esta questão quando diz que a

realidade que marca estes fenômenos concernentes ao sentido e à verdade é o fato de que

todos o visam pessoalmente, “e, quando vem a lhe faltar todo e qualquer meio de exprimi-los,

87

sua perplexidade nos evidencia nele, mais uma vez, uma hiância interrogativa, ou seja, toda a

loucura é vivida no registro do sentido”.

Na apresentação de pacientes com Primeau, destacamos uma outra passagem. Durante

a entrevista, ele se voltou para um homem que estava fora de seu campo de visão. Ao ser

inquirido por Lacan sobre o gesto, ele disse que ouviu um som e sentiu que determinada

pessoa estava zombando dele. Um som sem sentido foi significantizado como uma presença

zombadora (LACAN, 1975/2000, p.6).

A perda do suporte do aparelhamento significante de gozo gera uma ruptura na

articulação entre significante e significado da qual emergem diversas manifestações clínicas,

como as que descrevemos acima. Para trabalharmos esta ruptura e seus efeitos, é necessário

apontar que o primeiro ensino de Lacan – especificamente O seminário, livro 3: as psicoses

(LACAN, 1955-1956/1988) e os textos “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde

Freud” (LACAN, 1957/1998) e “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da

psicose” (LACAN, 1959[1957-1958]/1998) – está baseado na articulação causal entre

significante e significado: S → s.

Miller (1996-1997b/2005, p.21) insere uma observação a partir desta articulação

causal que tem relação com a forma de substituição operada pelo sujeito, ou metafórica ou

metonímica.

O significado aparece como função do significante. A composição dos significantes entre eles, segundo se faz sob a forma da substituição, S/S, ou sob a conexão, S...S, engendra um efeito de sentido de tipo metafórico – emergência, (+)s –, ou metonímico – retenção e fuga, (-)s (MILLER, 1996-1997b/2005, p.21).

Já dissemos que a percepção do vazio produzido pela foraclusão no lugar em que

deveria haver uma significação, causa perplexidade. Ela acarreta um encontro absolutamente

inédito e enigmático para o sujeito, pois no enigma algo é reconhecido como significante, mas

o sentido não pode ser enunciado. Lacan denomina esta pura intencionalidade do significante

de significação de significação, cujo produto é a certeza: quanto menos se sabe o que quer

dizer o significante reconhecido como tal, mais se sabe que ele quer dizer algo, apesar da

impossibilidade de enunciá-lo. A certeza adquire um valor proporcional a este vazio, de tal

forma que, enquanto o significante não puder ser decifrado ele é preservado, e quando a

decifração se torna possível, a certeza termina.

Aquilo que faz suplência à falta do significante Nome-do-Pai, em alguns casos pode

vacilar com um desencadeamento que torna o mundo inconsistente. Em todo ser falante, o

encontro com o furo da significação fálica anula o ser, instalando fenômenos mortíferos

88

duradouros e devastadores. No entanto, a falta de significação fálica nas psicoses muitas vezes

causa fenômenos mortíferos de gravidades distintas, pois quando o gozo retorna sobre o corpo

pode causar experiências de despersonalização e a impressão de que o sujeito está morto. Essa

morte do sujeito constitui o extremo de uma regressão ao estádio do espelho, que reenvia o

sujeito a um narcisismo mortal, pois como a identificação imaginária não está mediatizada

pela função fálica, ela impede a produção de uma identificação simbólica.

Em O seminário, livro 10: a angústia, Lacan (1962-1963/2005, p.134-135) acrescenta

que os fenômenos de despersonalização são contrários à estrutura do eu, porque os objetos

ditos invasivos na psicose são, na verdade, impróprios à “egoização”. Por não passar pelo

reconhecimento do Outro, a imagem especular é tomada por uma vacilação da qual decorre a

emergência da angústia. Ela pode ser constatada pelo sentimento de desapossamento, no qual

o especularizável se torna estranho, fora-do-espaço dialético com o Outro.

Por este motivo, Lacan (1962-1963/2005, p.135) cita o surpreendente conto O Horla,

de Guy de Maupassant (1886/2006), que descreve as façanhas do sobrenatural em um

paciente. O curioso neste conto de Maupassant é que o mesmo se desenvolve em torno da

pergunta sobre a loucura do herói. Isto devido ao fato de que o paciente afirmava ter visto o

Horla, uma visão que lhe causou terror.

Segundo o conto, o importante alienista doutor Marrande convida três colegas e quatro

sábios para escutarem a história de um de seus pacientes. Este relata que há aproximadamente

um ano foi atacado por estranhas e inexplicáveis indisposições: uma inquietação nervosa que

o mantinha acordado durante noites inteiras, uma superexcitação em relação aos ruídos e um

humor colérico. Ele associava a estes fenômenos pesadelos piores que a própria insônia.

Sentia que desaparecia ao deitar, “caía no nada, no nada absoluto, numa morte de todo o ser

da qual era bruscamente, horrivelmente, arrancado pela horrível sensação de um peso

esmagador sobre o peito e de uma boca sobre a minha, que bebia a minha vida por entre os

lábios” (MAUPASSANT, 1886/2006, p.73).

Inicialmente ele supôs que estas sensações eram decorrentes de uma epidemia de

febre, mas alguns fenômenos de caráter alucinatório, fantástico e horripilante o afastaram

desta hipótese. A partir deste momento, ele supôs ser um sonâmbulo, e recorreu a artifícios

para se certificar que não realizava certos atos de forma inconsciente.

Mas conservava na alma essa dúvida dilacerante. Não seria eu que me levantava ser ter consciência disso e que bebia até as coisas que detestava, porque os sentidos, entorpecidos pelo sono sonambúlico, podiam ter sido modificados, ter perdido suas repugnâncias habituais e adquirido gostos diferentes? (MAUPASSANT, 1886/2006, p.74).

89

Estas experiências o levaram a concluir que existia perto dele um ser invisível que o

perseguia. Primeiro, o paciente o nomeou de O Invisível, mas como o codinome não bastava,

batizou-o de Horla: um nome lógico dado a um ser fantástico, o Hors-là, algo fantasmático

que estava para-além.

Segundo o relato, com muita frequência o paciente tinha a certeza desta presença e de

que ela havia se apoderado de sua própria vida. Este ser “é aquele que a Terra espera depois

do homem!” (MAUPASSANT, 1886/2006, p.81), aquele que vem subjugar e dominar a

humanidade. Há séculos sua presença era pressentida e esperada, visto as lendas de fadas,

gnomos, seres maléficos e imperceptíveis.

Com a fala do psiquiatra o autor termina este conto levantando uma duvida entre a

loucura e o fantástico: “Não sei se este homem é louco ou se ambos o somos... ou se... se o

nosso sucessor chegou realmente” (MAUPASSANT, 1886/2006, p.82).

No paciente que protagoniza o conto de Maupassant, podemos constatar tanto perdas

de referências corporais e identificatórias, quanto uma vivência de despersonalização e

descorporização decorrente da regressão especular, transtornos alucinatórios característicos do

desencadeamento.

Tais fenômenos corporais também podem ser ilustrados através da fala de G. Primeau

sobre a impressão de que se tornaria um “mutante sexual”, pois como a natureza lhe dotou de

um pênis pequeno, ele tinha a impressão de que seu sexo havia encolhido e que se tornaria

uma mulher (PRIMEAU apud LACAN, 1975/2000, p.11). Acrescenta-se à sensação de

transexualismo outros fenômenos corporais ocorridos no período do desencadeamento da

psicose: esgotamento nervoso, palpitações afetivas, ansiedade, a vivência de um hiato entre o

corpo e a mente e perdas de memória (PRIMEAU apud LACAN, 1975/2000, p.8).

Se na neurose a função fálica e os efeitos de significação promovem a articulação

percepção-realidade, favorecendo a estabilidade do sujeito, na psicose a foraclusão por algum

motivo pode fazer eclodir a doença. O delírio é uma resposta à invasão do real que,

desarticulado do simbólico, provoca estes fenômenos que exigem um remanejamento

imaginário. Neste sentido, as tentativas de reconstrução delirante asseguram o estatuto de um

trabalho do simbólico sobre o retorno no real daquilo que foi foracluído.

Por este motivo é que a metáfora delirante é considerada por Lacan uma via de

estabilização que cria um ponto de basta no deslizamento do significante sobre o significado e

permite fixar certa significação. Isto ocorre porque ela possibilita um trabalho de

simbolização que, adquirindo valor de inscrição, funda uma referência em torno da qual o

sujeito se localiza no discurso do Outro. Além disso, ela metaforiza um significável,

90

permitindo um remanejamento do registro imaginário que se manifesta com o

desencadeamento.

Jean-Claude Maleval (1996, p.38) destaca que muito raramente o nível de elaboração

delirante em termos de metáfora pode ser atingido. Ao invés disso, na maior parte das vezes

pode ser encontrada uma tentativa desordenada de construção delirante ou mesmo apenas

uma defesa paranóide. Além disso, a conclusão de uma metáfora delirante, como qualquer

trabalho de elaboração simbólica, deixa um resto inassimilável que pode aparecer sob a forma

de um gozo suplementar. Com isso, instala-se o risco de uma nova desestabilização que deve

ser considerado na direção de um tratamento.

Para concluir, nos últimos parágrafos utilizamos termos como estabilização,

desestabilização, reconstrução e suplência. Eles serão melhor trabalhados no item 2.3.1. desta

Tese.

2.2.3 O manejo da transferência em casos de psicose extraordinária

Falar sobre o manejo da transferência exige, também, uma breve retomada das

questões do diagnóstico e da interpretação em psicanálise. Desde Freud até os dias atuais, o

diagnóstico diferencial entre neurose e psicose está intimamente articulado à posição ética

daquele que conduz um tratamento analítico. No texto “Sobre la iniciación del tratamiento

(Nuevos consejos sobre la técnica del psicoanálisis, I)” Freud (1913a/1993, p.125-126)

adverte sobre os efeitos desastrosos que o uso do método analítico pode acarretar nos casos de

psicoses, sobretudo quando há equívocos no que concerne ao diagnóstico. Ele deixa claro que

existem casos que não devem ser tomados em análise, e enumera diversas contra-indicações

ao tratamento das psicoses. Por esta razão o analista deve empreender uma “‘sondagem’, a

fim de conhecer o caso e decidir se ele é apropriado para a psicanálise”.

Esta advertência freudiana é fundamental quando se trata de psicose ordinária, visto

que estes casos se apresentam sem a presença de fenômenos elementares exuberantes, e

muitas vezes estão disfarçados na paisagem da dita “normalidade”. Freud já era sensível a este

ponto. Neste mesmo texto ele chama atenção para neuroses que apresentam sintomas

histéricos ou obsessivos discretos, pois eles podem “ser um estádio preliminar do que é

conhecido por demência precoce (‘esquizofrenia’, na terminologia de Bleuler; ‘parafrenia’,

92

fragmento de realidade rejeitado no passado remoto, ele pode ser equivalente às construções

que acontecem no curso do tratamento analítico dos neuróticos.

Assim como nossa construção produz seu efeito por restituir um fragmento de biografia {Lebengeschichte, ‘história objetiva de vida’} do passado, assim também o delírio deve sua força de convicção à parte de verdade histórico-vivencial que põe no lugar da realidade rechaçada. Deste modo, também ao delírio aplicar-se-á a asserção que faz tempo declarei exclusivamente para a histeria, a saber, que o enfermo padece por suas reminiscências (FREUD, 1937b/1993, p.269-270, grifos do autor; tradução nossa)44.

Portanto, podemos afirmar que a partir das hipóteses apresentadas neste texto de

1937, Freud abre uma leve possibilidade de uma terapêutica aplicada às psicoses. Apesar de

apontar que uma modificação no método analítico permitiria esse trabalho, ele não se detém

diretamente neste ponto. Resta a Lacan pinçar os elementos deixados na teoria freudiana e

formalizar um tratamento possível às psicoses.

Em seu retorno a Freud, Lacan fundamenta o diagnóstico estrutural – intimamente

articulado com a questão transferencial e à direção do tratamento – a partir do significante

Nome-do-Pai. Apoiando-se nas elaborações freudianas sobre a linguística, ele define a

inscrição paterna pela função metafórica, ou seja, pela substituição significante. Inicialmente,

demonstra que o sistema delirante e os fenômenos de linguagem são fundamentais para o

diagnóstico diferencial, na medida em que os traumas de linguagem, tais como o neologismo,

a alucinação e a certeza delirante, denunciam as psicoses.

No primeiro Lacan, a disjunção presença-ausência do delírio é a forma de ordenar a

clínica analítica. Entretanto, o delírio não se apresenta como condição exclusiva ao

diagnóstico da psicose. Ou seja, outros traços servem como operadores diagnósticos: não só

os fenômenos elementares, como dissemos acima, mas também o estabelecimento da

transferência que ocorre de forma específica. Assim, novamente reforçamos a proximidade

entre o estabelecimento da transferência, o diagnóstico diferencial e a direção do tratamento.

A manobra transferencial é o grande desafio em casos de psicose, pois os fenômenos

da transferência localizam a posição subjetiva e constituem o essencial do tratamento. Em sua

tese, Lacan (1932/1987, p.282) reconhece que, apesar de alguns psicóticos terem sido

analisados e descritos com bons resultados, “a técnica psicanalítica conveniente para esses

44 O trecho correspondente na tradução é: “Así como nuestra construcción produce su efecto por restituir un fragmento de biografía (Lebengeschichte, ‘historia objetiva da vida’} del pasado, así también el delirio debe su fuerza de convicción a la parte de verdad histórico-vivencial que pone en el lugar de la realidad rechazada. De tal suerte, también al delirio se aplicará el aserto que yo hace tiempo he declarado exclusivamente para la histeria, a saber, que el enfermo padece por sus reminiscencias”.

93

casos ainda não está, segundo o testemunho dos mestres, madura”. A transferência é colocada

como ponto central:

Assim, o dificílimo problema posto pela técnica atual ao psicanalista é o seguinte: urge corrigir as tendências narcísicas do sujeito por uma transferência tão prolongada quanto possível. Por outro lado, a transferência para o analista, despertando a pulsão homossexual, tende a produzir nesses sujeitos um recalcamento no qual a própria doutrina nos mostra o mecanismo maior do desencadeamento da psicose. Esse fato pode colocar o analista numa postura delicada. O mínimo que pode acontecer é o abandono rápido do tratamento pelo paciente. Mas em nossos casos, a reação agressiva se dirige com muita frequência contra o próprio psicanalista, e pode persistir por muito tempo ainda, mesmo após a redução dos sintomas importantes, e para espanto do próprio doente (LACAN, 1932/1987, p.282-283).

Partindo destas dificuldades técnicas enumeradas em 1932, Lacan busca delimitar um

tratamento possível para a psicose. Logo após a defesa de sua tese, em “Para-além do

‘Princípio de realidade’” (LACAN, 1936/1998, p.88), ele afirma que o analista “opera em

dois registros, o da elucidação intelectual, pela interpretação, e o da manobra afetiva, pela

transferência”. Anos depois, em “Intervenção sobre a transferência” (LACAN, 1951/1998,

p.215), ele define a intersubjetividade como um eixo importante da relação transferencial: “a

psicanálise é uma experiência dialética, e essa noção deve prevalecer quando se formula a

questão da natureza da transferência”. Ela é “o aparecimento, num momento de estagnação da

dialética analítica, dos modos permanentes pelos quais ele [o sujeito] constitui seus objetos”

(LACAN, 1951/1998, p.224). Lacan nomeia a função do analista de “um não-agir positivo”

(LACAN, 1951/1998, p.225).

Dois anos depois, em “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, Lacan

(1954/1998) começa a articular o sintagma “o inconsciente é o discurso do Outro”45. Com

isso, ele propõe que a experiência subjetiva própria à psicanálise é uma via de reconhecimento

do desejo, marcado pelos conflitos simbólicos e pelas fixações imaginárias que impedem seu

advento (LACAN, 1954/1998, p.281). O psicótico renuncia ao desejo do Outro, apresentando,

como diz Lacan, uma “liberdade negativa”. Esta se torna um obstáculo à transferência, na

medida em que empurra o sujeito a uma linguagem sem dialética na qual ele “é mais falado

do que fala” (LACAN, 1954/1998, p.281).

45 De fato, em “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, Lacan (1954/1998: 266) utiliza a expressão “o inconsciente do sujeito é o discurso do outro”, com este outro escrito em minúsculo. No entanto, em suas articulações posteriores, destacamos outros textos – “Introdução ao comentário de Jean Hyppolite sobre a ‘Verneinung’ de Freud” (LACAN, 1954/1998, p.381), “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (LACAN, 1959[1957-1958]/1998, p.556), “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” (LACAN, 1961[1958]/1998, p.634 e 638), “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: ‘Psicanálise e estrutura da personalidade’” (LACAN, 1961[1960]/1998, p.661), “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano” (LACAN, 1960/1998, p.829) – nos quais a função do Outro torna-se mais articulada em torno do simbólico, isto é, tomando a linguagem do Outro como causa.

95

“Desde que haja em algum lugar o sujeito suposto saber [...] há transferência” (LACAN,

1964/1998, p.220), suposição que exclui um saber absoluto.

Em O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (LACAN, 1969-1970/1992), Lacan

dá um passo a mais em relação a essa questão. Ao lado dos discursos do mestre, da histérica e

da universidade, ele institui o discurso do analista que é apenas um dentre outros produzido

pela experiência. Vale notar que todo sujeito passa, necessariamente, pelos quatro discursos,

pois não é possível sustentar apenas um. A lógica que os fundamenta é baseada em uma

fixidez de lugares – agente, Outro, produção/perda e verdade – e lança os demais elementos,

S1, S2, a, $, em uma ordem que caracteriza a operatividade de cada um deles.

O fundamento do discurso do psicanalista é impulsionar o ato analítico e fazer avançar

o processo. O agente do mesmo é o objeto a, visto que é o que resta da operação subjetiva; no

lugar do saber do Outro, o $; no da produção/perda de gozo, o S1; e no da verdade, o S2. Não

cabe aqui aprofundarmos todo aparato que compõe esta lógica. Interessa mais mostrar que tal

discurso reúne o sujeito suposto saber (SsS) e o desejo do analista, e que a suposição de saber

recai sobre o analisante, causado pelo analista.

Miller (1979/2002, p.55) elucida o percurso do ensino de Lacan dizendo que a

transferência continua sendo estritamente freudiana, não obstante ela ter sofrido

transformações. Lacan se diferencia ao fundamentar a transferência na função do analista

enquanto SsS, conceito que toca a própria lógica da psicanálise, na medida em que o analista

se inscreve na economia psíquica do sujeito como formação do inconsciente (MILLER,

1979/2002, p.60-61).

Em um primeiro momento, a transferência teve como pivô o analista enquanto Outro,

lugar do tesouro dos significantes. Neste sentido se evidencia a marca de uma ilusão do lado

do analisante, que supõe o próprio inconsciente constituído no analista. Depois, o analista

representa o resto da operação analítica, elaborado por Lacan em sua teoria sobre os

discursos. Assim acompanhamos uma passagem teórica que retira o analista do lugar do

código e o inscreve como agente do discurso, ao mesmo tempo causa e dejeto.

Na via do tratamento de psicóticos, Lacan retoma as contra-indicações assinaladas por

Freud. Ao mesmo tempo em que acredita que só se devam tomar os pré-psicóticos em análise

se alertados sobre a estrutura, ele afirma a importância do analista não recuar frente a eles. Em

suas palavras:

Acontece recebermos pré-psicóticos em análise, e sabemos em que isso dá – isso dá em psicóticos. Não se colocaria a questão das contra-indicações da análise se todos nós não tivéssemos na memória tal caso de nossa prática, ou da prática de nossos colegas, em que uma

96

bela e boa psicose – psicose alucinatória, não falo de uma esquizofrenia precipitada – é desencadeada quando das primeiras sessões de análise um pouco acaloradas, a partir das quais o sentencioso analista se torna rapidamente um emissor que faz ouvir ao analisado durante o dia todo o que deve fazer e não fazer (LACAN, 1955-1956/1988, p.285).

Os casos de desencadeamento de psicoses estabilizadas são atribuídos a “um manejo

imprudente da relação de objeto”. Lacan fornece uma dica especial dizendo que há:

[...] uma certa maneira de manejar a relação analítica que consiste em autentificar o imaginário, em substituir o reconhecimento no plano simbólico pelo reconhecimento no plano imaginário, que é preciso atribuir os casos bem conhecidos de desencadeamento bastante rápido de delírio mais ou menos persistente, e às vezes definitivo (LACAN, 1955-1956/1988, p.24).

E acrescenta:

O fato de que uma análise possa desencadear uma psicose desde os seus primeiros momentos é bem conhecido, mas nunca ninguém explicou por quê. É evidentemente função das disposições do sujeito, mas também de um manejo imprudente da relação de objeto (LACAN, 1955-1956/1988, p.24).

Por isso Miller (1979/2002, p.70) ratifica que algumas psicoses são desencadeadas

pela experiência analítica, mais exatamente, pelo modo como a transferência funciona nestes

casos, a saber, “em estado puro”. Isto quer dizer que a emergência do SsS em estado puro

converte o Outro ao estatuto de emissor dos próprios pensamentos do sujeito, como

acompanhamos na relação entre Schreber e o professor Fleschig.

Lacan já havia falado em “De uma questão preliminar...” (LACAN, 1959[1957-

1958]/1998, p.588) sobre um tratamento analítico possível. Trata-se da compensação da falta

do significante fundamental para suprir a Verwerfung inaugural da psicose. Esta compensação

pode acontecer por meio de dois mecanismos: pela metáfora delirante e pela compensação

imaginária do Édipo ausente. A metáfora delirante permite fixar certa significação, na medida

em que cria um ponto de basta no deslizamento do significante sobre o significado. Desta

forma, ela possibilita um trabalho de simbolização que metaforiza um significável, permitindo

um remanejamento do registro imaginário que se manifesta no desencadeamento. Por outro

lado, na compensação do Édipo, o sujeito se apóia em uma identificação imaginária através de

um semelhante que pode lhe fazer às vezes de um duplo e lhe oferecer uma referência que

sirva de orientação no mundo.

No horizonte destas compensações, Lacan pontua uma possibilidade de o sujeito se

manter estabilizado em sua estrutura. Pelo menos, minimamente, afinal, esta estabilização

pode ser comparada a um tamborete de três pés, no qual é preciso que haja certa disposição

para que esteja seguro como assento. Conclui-se, portanto, que mesmo que não haja o recurso

97

ao Nome-do-Pai e que não haja garantia do lado da metáfora paterna, uma estabilização pode

ocorrer.

Portanto, a orientação possível do tratamento de uma psicose requer que o analista

opere a partir do lugar do Outro, com o objetivo de refrear os efeitos de gozo produzidos no

sujeito pela falta de operatividade do significante

98

no laço social e trate o impasse de seu gozo de forma inédita. Com a topologia dos nós, Lacan

abre caminho a uma nova clínica diferencial, a qual trataremos a seguir.

2.3 Lacan e a clínica dos nós

Neste item da Tese trabalhamos com o segundo ensino de Lacan, a partir da leitura de

Jacques-Alain Miller (1979/2002, p.15). A chamada clínica borromeana aparece de forma

evidente desde os seminários ...ou pire (LACAN, 1971-1972/2011) e do final de Mais, ainda

(1972-1973/1985, p.160-186), e vai se tornando mais consistente em “RSI” (LACAN, 1974-

1975, inédito) e em O seminário, livro 23: o sinthoma (LACAN, 1975-1976/2007).

Conforme Miller (2011) elucida na apresentação do Seminário 19, se antes Lacan

ensinava o primado do Outro na ordem da verdade e do desejo, desde este seminário ele

ensina o primado do Um na dimensão do real visto que desvaloriza o desejo e promove o

gozo. Além disso, ele recusa o Ser, que não passa de semblante, e privilegia a henologia,

doutrina do Um, que sobrepassa a ontologia do Ser.

Consideramos estes seminários como um ponto de báscula na teoria lacaniana, na

medida em que o registro do real assume o plano privilegiado da experiência.

Consequentemente, o recurso à topologia dos nós permite Lacan formalizar uma nova

perspectiva sobre a estrutura do falasser. Apesar dele já ter dito que a articulação do real, do

simbólico e do imaginário comporta em seu interior o objeto a, ele a retoma para avançar em

suas elaborações.

Na abertura de “RSI”, mais precisamente na lição de 10 de dezembro de 1974

(inédito), ele anuncia aos seus ouvintes que durante aquele ano falará do real. Nota-se que este

registro sempre esteve presente em seu ensino, mas tal marcação nos faz perguntar o que

advém como inovação ao real com o qual ele sempre se relacionou desde o início de sua

transmissão. Além disso, apostamos que, ao percorrermos estes seminários, encontraremos

índices que permitem investigar uma amarração especial para a configuração do nó na psicose

ordinária.

Miller (2008/2011, p.24) esclarece que “o ponto de partida do nó borromeano é a

ruptura, a fratura entre o simbólico e o real, cabendo ao imaginário a função de enlaçá-los”. O

real é definido como inassimilável no sentido da significação, o que não pode ser inscrito pelo

99

simbólico. Ele ganha uma positividade: é preciso uma articulação simbólica para que o real

possa emergir, mesmo que seja em sua face de impossível.

A necessidade de recorrer a tal configuração se impõe pela via de alguns axiomas

lacanianos. O principal deles é o fato de o simbólico ser caracterizado por um “buraco

inviolável”, sem o qual o nó de três não seria borromeano (LACAN, “RSI”, aula de

11/03/1975). Os efeitos deste buraco aparecem tanto no fato de não haver metalinguagem,

quanto na inexistência da relação sexual. Se na primeira opção – caracterizada pelo matema

S( ), significante da falta no Outro – institui uma hiância fundamental do simbólico, na

segunda denuncia que real e simbólico só se mantém unidos pela interposição do imaginário.

Desde a formalização destes axiomas Lacan estrutura a experiência humana a partir

das três categorias, que se definem por serem, ao mesmo tempo, equivalentes e heterogêneas

entre si. Isto significa que para o sujeito se sustentar em um discurso, criar e manter laços

sociais, ele precisa encontrar uma medida comum que permita a articulação entre o

imaginário e o simbólico de tal forma que o real esteja velado.

No início de “RSI”, precisamente na aula de 10/12/1974, Lacan afirma que o

enodamento dos três registros constitui a célula mínima da topologia e a explicação da

realidade do ser falante. Desde as primeiras aparições, ele define o nó em sua propriedade

borromeana: composto de três rodelas de barbante entrelaçados, ao se cortar uma, as outras se

soltam, independente do número de elos que o constitui.

Lacan reafirma em O seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976/2007, p.89) que o

nó borromeano é uma cadeia de três elementos – “o que faz o nó é, no mínimo, o nó de três”.

E que a qualidade da cadeia borromeana deve-se ao fato de que, ao cortar qualquer um de

seus anéis, todos se desligam. Cada um dos elos desempenha o mesmo papel face aos outros:

sendo colocado um sobre o outro, é o terceiro que os ligam, todos três, de maneira

borromeana.

O caráter fundamental dessa utilização do nó é ilustrar a triplicidade que resulta de uma consistência que só é afetada pelo imaginário, de um furo como fundamental proveniente do simbólico, e de uma ex-sistência que, por sua vez, pertence ao real e é inclusive sua característica fundamental (IBID., p.36).

Na aula de 13/05/1975 ele acrescenta à propriedade borromeana a consistência de cada

um destes elos: o real, “estritamente impensável”, ex-siste enquanto impossível; o simbólico,

que sustenta o inconsciente; e o imaginário, a menor das suposições que o corpo implica. Em

razão de serem atados dessa forma – que os coloca um em relação com os outros dois –, estas

distintas consistências se tornam equivalentes. Isto não significa que os registros sejam iguais,

100

visto que “do semelhante ao mesmo, há lugar para uma diferença” (IBID., aula de

18/03/1975). Esta semelhança, nomeada de consistência, decorre do planeamento imaginário

do nó.

Esta figuração implica em uma orientação que fornece ao nó uma qualidade

borromeana. Na aula de 18/03/1975 ele diz que só há um nó orientado, justamente porque é

sempre o mesmo. Contudo, na aula de 08/04/1975 ele esclarece que esta orientação se refere à

direção na qual se gira o nó: dextrógira ou levógira, direções que, ao se orientarem para a

direita ou esquerda, respectivamente, indicam a possibilidade de haver não apenas um, mas

dois nós orientados. Este ensinamento ele introduzira nas primeiras lições do seminário

anterior, Le séminaire, livre XXI: les non-dupes errent.

Além disso, Lacan inscreve a ex-sistência como uma peça chave para entendermos de

que se trata a clínica borromeana, pois o real ex-siste na medida em que ele força um certo

modo de giro pelo qual ex-siste uma rodela de barbante para uma outra. Ele define a ex-

sistência na aula de 14/01/1975 com outras palavras, sem alterar o sentido do que havia dito.

A ex-sistência se define em relação a uma certa consistência e, no final das contas, o fora nada

mais é que um não-dentro, apesar de manter seu sentido mesmo quando se trata do real. De

forma que, se há no simbólico um recalcado, no real há também alguma coisa que faz buraco.

A explicação lacaniana sobre a relação da ex-sistência com a consistência nos esclarece

porque Freud se apercebeu que as pulsões corporais estão centradas em torno da passagem de

um orifício a outro.

De modo que consistência, orientação e ex-sistência são elementos fundamentais à

lógica do enodamento. Na lição de 13/05/1975 Lacan define o nó pelo grupo fundamental, ou

seja, um número de trajetos necessários particular em cada nó, que indica sua estrutura. Mais

adiante, em O seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976/2007, p.94), ele retoma a

importância desta determinação lógica apresentando outros tipos de nó, como o de trevo, por

exemplo. Ele não possui a mesma especificação que o outro, e por isso requer manejos como

os remendos e as suturas para mantê-lo com a aparência de um nó de três. Retomaremos esta

discussão adiante, ainda neste item de Tese.

Em “RSI”, na lição de 14/01/1975, Lacan diz que apesar de ter inventado o nó, Freud

já havia desconfiado dele. Retomando o que pensava Freud em “Inhibición, sintoma y

angustia” (1926[1925]/1993), ele define os registros da seguinte forma: a inibição referida ao

imaginário, o sintoma ao simbólico e o real à angústia. Lacan ressalta que, partindo destes

elementos, Freud faz um nó com quatro no qual a realidade psíquica ata os outros elos. E

acrescenta que, apesar de Freud ter se enganado na feitura do nó, a funcionalidade do mesmo

101

está indicada na operação de enodamento realizada pelo complexo de Édipo. Assim, Lacan

declara nesta mesma lição que a realidade psíquica corresponde ao que Freud chama de

chama complexo de Édipo, sem o qual nada sustenta o RSI.

A importância de um elemento que enode os registros e sustente a realidade para um

sujeito é uma questão corrente neste seminário. Na aula de 11/02/1975, Lacan volta a falar

sobre o nó borromeano composto por quatro toros, mas para isso, é preciso supor os três elos

independentes, atados somente pelo quarto. Ele se questiona o que poderia uni-los nesta

disjunção originária.

2.3.1 Suplências, suturas e emendas: o sinthoma na análise

Além disso, Lacan trabalha o conceito de suplência. Levanta a hipótese de que o

enodamento dos registros precisa de uma ação suplementar, ou seja, de um toro a mais cuja

consistência seria a de se referir à função do Pai.

Além de suplementar, ela seria indispensável? Assim como Freud postula a realidade

psíquica e o complexo de Édipo como operadores de enlaçamento, Lacan lança mão do

Nome-do-Pai. Ele acredita que os três registros estão dissociados e que apenas o Nome-do-Pai

os mantém juntos de forma borromeana.

O psicanalista Pierre Skriabine (2006/2007, p.104), em “Nó e Nome-do-Pai. Vinte e

uma considerações sobre a estrutura”, concorda com esta afirmação de Lacan:

Fazer assim consistir uma ‘realidade’ que não tem nenhuma existência intrínseca, pois ela é somente um véu tecido de imaginário e simbólico que serve para recobrir o real, é, no entanto, necessário para o ser falante, para o sujeito, para se proteger desse real que escapa ao significante e à imagem, e que é, como tal, insuportável.

Nas aulas de 11/03/1975 e de 15/04/1975 de “RSI”, Lacan ata estas três consistências

mínimas e inicialmente independentes que constituem o nó, por meio da função de nomeação

própria ao Nome-do-Pai. Isto justifica porque é necessário que se suponham quatro toros, pois

o quarto reforça o anel do simbólico. No duplo anel feito a partir daí, o Nome-do-Pai é

efetivamente feito de simbólico. No entanto, atados desta maneira, os registros se orientam

por este significante que, enquanto buraco, transmite sua própria consistência aos demais

registros. Daí se explica a pluralização dos nomes do pai.

102

O elemento que enlaça pode ser em um número indefinido, tal como os toros do nó.

Sendo assim, o reforço do anel pode ser feito em qualquer um dos registros, não apenas no

simbólico. Esta questão já havia sido introduzida no seminário Nomes-do-Pai (1963/2005) já

que, ao pluralizar Nome, Lacan apresenta a possibilidade de haver outras suplências, distintas

do Nome-do-Pai.

Em seu seminário sobre De la naturaleza de los semblantes, Miller (1991-1992/2001,

p.26-30) diz que: “O título ‘Os nomes do pai’ já denuncia que não há o Nome do Pai, que o

Nome do Pai como o – artigo definido –, como singular ou, mais precisamente, como único,

como absoluto, não existe”. E acrescenta que esta pluralização marca uma passagem: de

absoluto a relativo, apenas um entre outros.

Vale notar que, além das suplências, a feitura do nó também se diversifica. Apesar de

desenhar uma ordem determinada para que o nó seja efetivo, como discutimos anteriormente,

na aula de 11/02/1975 de “RSI” Lacan postula várias maneiras de atá-lo. Este assunto será

elaborado trabalhado por ele em O seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976/2007).

A inovação surge quando ele fundamenta a função de enlace não mais pelos

operadores freudianos – realidade psíquica e o complexo de Édipo – e nem pelo Nome-do-Pai

postulado em “RSI”, mas sim pelo conceito de sinthoma.

Constatei que, se os três nós mantiverem-se livres entre eles, um nó triplo, que toma parte em uma plena aplicação de sua textura, ex-siste, ele é efetivamente o quarto.

Ele se chama o sinthoma (IBID., p.55).

Este conceito surge pela primeira vez na conferência “Joyce, o Sintoma” (1975/2003).

Lacan o forja para diferenciá-lo do sintoma como mensagem do inconsciente. De acordo com

Miller (apud MAZZUCA, 2007, p.27), o sintoma pode ser definido de duas formas diferentes

no ensino de Lacan. No primeiro momento, na clínica estrutural, o sintoma responde às

formalizações freudianas: como formação do inconsciente ele é passível de interpretação pela

experiência analítica. Posteriormente, esse conceito aparece mais articulado ao gozo e ao real,

inscrevendo de forma maciça o incurável no final de uma análise, portanto, um não-

analisável.

Por isso, Miller em seu seminário “Coisas de fineza em psicanálise”, publicado

recentemente com o título Perspectivas dos Escritos e Outros escritos de Lacan. Entre desejo

e gozo (2008-2009/2011, p.10-11), afirma que existem restos sintomáticos no final de uma

análise que subsistem no sintoma, tal como Freud já havia dito em “Análisis terminable e

interminable” (1937/1993, p.217). Miller observa que, na segunda clínica, Lacan “reconfigura

103

o conceito de sintoma sob o modelo destes restos. Assim, o que Lacan chamou de sinthoma,

conforma a ortografia antiga restituída por ele é, em termos próprios, o nome do incurável.

[...] sinthoma designa o elemento que não pode desaparecer, que é constante” (MILLER,

2008-2009/2011, p.11). Joyce se torna um exemplo para Lacan (1975/2003, p.566), na

medida em que sua escrita evidencia um gozo opaco que exclui o sentido, tal como Lacan

interpreta o sintoma de Joyce.

Apesar de o Nome-do-Pai ser considerado um sintoma, ou sinthoma, nem todo

sinthoma é Nome-do-Pai (LACAN, 1975-1976/2007, p.21). Portanto, começa a existir a

possibilidade de que algo, que não seja o Pai, repare o lapso estrutural do nó e permita outro

tipo de enlaçamento, assunto que iremos discutir adiante. O nó pode ser amarrado através de

uma versão em direção ao pai, visto que, quando um sintoma possui a função de pai do nome,

o nó se sustenta. “O pai, como nome e como aquele que nomeia, não é o mesmo”, diz Lacan

(IBID., p.163).

Em “RSI”, na aula 13/05/1975, Lacan teoriza sobre o conceito de nomeação.

Estabelece que o estatuto conveniente ao Nome-do-Pai é o de pai do nome, pois a função de

nomeação como quarto elo enlaça os três registros e rompe a homogeneidade do nó de três. A

nomeação se modula entre estes registros e pode-se falar, a partir da relação dela com cada

um deles, de versões do quarto elo: a inibição como nomeação imaginária, o sintoma como

nomeação simbólica e a angústia como nomeação real. Neste mesmo seminário, na lição de

15/04/1975, ele ensina que é preciso que o Simbólico se individualize no nó para que surja o

Nome-do-Pai. Isso quer dizer que o Pai enquanto Nome é correlativo ao pai nomeador.

Quando se entra na dimensão da nomeação, um nome próprio pode ou não ser

reconhecido por aquele que o carrega. Ele se articula à incidência do Nome-do-Pai, na medida

em que este significante opera uma nomeação do vazio enigmático que se apresenta para cada

um. No entanto, há algo que escapa ao recobrimento do ser pelo nome próprio, e a esta

dimensão Lacan denomina nome de gozo, “um nome que se acrescentaria não como metáfora

da presença do sujeito, mas designando a verdade de seus modos de satisfação” (MANDIL,

2003, p.205).

Em O seminário sobre o sinthoma, Lacan (1975-1976/2007, p.63) acrescenta algo

novo em termos da possibilidade de um desenlaçamento borromeano, e de suturas e emendas.

Falando sobre o percurso de uma análise, ele retoma a inexistência do Outro do Outro –

axioma que o causou à topologia dos nós – para afirmar a necessidade de uma sutura entre o

simbólico (definido como o saber inconsciente) e o imaginário. A análise permite esta sutura

ao mesmo tempo em que possibilita ao analisante fazer emenda entre o sinthoma e o real

104

parasita do gozo: “é de suturas e emendas que se trata na análise” (IBID., p.71). Elas são

realizadas graças a um artifício, “um fazer que nos escapa, isto é, que transborda em muito o

gozo que podemos ter dele” (IBID., p.62).

Ao inscrever as suturas e emendas no processo analítico, Lacan começa a generalizar a

necessidade da suplência, que já havia sido mencionada na aula de 11/02/1975, de “RSI”. Esta

generalização também pode ser localizada no fato de as formações do inconsciente – por

exemplo, o chiste – serem fundadas sobre o lapso do próprio nó (1975-1976/2007, p.94).

Lacan reforça que o lapso jamais se produz por acaso, visto que há uma finalidade

significante por trás de todo lapso. “Se há um inconsciente, a falha tende a querer exprimir

alguma coisa, que não é somente o que o sujeito sabe, uma vez que o sujeito reside nessa

divisão mesma que representei em outros tempos pela relação do significante com outro

significante” (IBID., p.144). Ou seja, se o nó implica em um lapso próprio à sua constituição

lógica, a suplência se torna indispensável para a efetividade borromeana. Neste sentido, o nó

borromeano de três se torna um mito e sai de cena de uma vez por todas.

Há distinção entre a noção de erro e o conceito de lapso, sobretudo quando se trata do

nó borromeano? Acreditamos que sim. Em nossa opinião, o lapso obedece à noção de

sincronia, enquanto o erro, de diacronia. Em outras palavras, se o lapso faz parte da estrutura

do inconsciente, o erro nada mais é que a versão diacrônica do falasser na estrutura. Foi o que

pudemos deduzir da leitura da lição de 13/11/1973, de O seminário 21, na qual Lacan explica

o termo errer. Assim, o título do seminário “Les non-dupes errent” esclarece a errância do

viator, do viajante na estrutura. Se o neurótico é tolo da estrutura, os psicóticos mostram sua

característica de non-dupes da mesma, ou seja, eles se sentem estrangeiros, não se sentem

colados à estrutura do inconsciente. É o que diz Lacan (1975-1976/2007, p.160) quando fala

de Joyce como um desabonado do inconsciente.

Para exemplificar a importância destes pressupostos, Lacan apresenta o nó de trevo.

Este provém do nó bô apesar de não sê-lo. Como consequência, os registros “[...] são

emaranhados a ponto de um continuar no outro, na falha de operação para distingui-los como

na cadeia do nó borromeano – do pretenso nó borromeano, eu diria, pois o nó borromeano não

é um nó, é uma cadeia”.

Portanto, basta apenas um erro no nó de trevo para que ele se desfaça. Caso isto

aconteça, o sinthoma permite reparar a cadeia borromeana “no caso de não termos mais uma

cadeia, a saber, se em dois pontos cometermos o que chamei de um erro” (IBID., p.90) e

nenhum registro segure mais o outro.

105

O resultado desta sutura difere de acordo com o lugar no qual ela se coloque. É preciso

distinguir quando o erro é corrigido no mesmo lugar em que ele foi produzido e quando ele é

corrigido em dois outros pontos diferentes. “O que subsiste devido à intervenção do sinthoma

é diferente conforme o sinthoma seja colocado no ponto exato do lapso ou em outros dois

pontos” (IBID., p.95).

Quando a correção é feita pelo sinthoma, onde o erro se produz, o elemento de

enodação se distingue dos anéis. Ao contrário, quando ela é realizada em outros dois pontos, o

sinthoma e as argolas se tornam equivalentes (IBIDEM). A consequência desta distinção é

evidenciada pela inexistência da relação sexual, na medida em que o sinthoma se caracteriza

justamente tanto pela não equivalência quanto pela manutenção da inexistência da dita

relação.

À guisa de uma conclusão parcial, levantamos alguns desdobramentos que não estão

claros em O seminário, livro 23, mas que estão ali implícitos. Primeiro, o desenlaçamento dos

registros exige a delimitação da neurose e das psicoses de uma forma completamente distinta

da anterior. O Nome-do-Pai, que na clínica estrutural determinava a estrutura a partir de sua

presença-ausência, se torna apenas uma entre as diversas possibilidades de amarração dos

elementos.

Para enlaçar os registros na neurose e nas psicoses é necessário um quarto, nomeado

por Lacan de sinthoma, que cumpre a função de suprir as falhas da amarração e sustentar uma

solução possível para o falasser46. Em suas palavras: “me permiti definir como sinthoma o

que permite ao nó de três não só se manter nó de três, como se conservar em uma posição tal

que ele tenha o aspecto de constituir nó de três” (LACAN, 1975-1976/2007, p.91).

Quando o sinthoma equivale ao significante Nome-do-Pai, o enodamento dos registros

acontece de forma borromeana. Caso contrário, quando não se equivalem, o enlaçamento

acontece apesar de não haver garantia de sua formalização borromeana. Desta forma, o que

realiza o enodamento dos registros se torna um fator secundário pelo fato de que qualquer

amarração sintomática poder fazer a função de suplência ao desenlaçamento estrutural do nó.

46 Na conferência “Joyce, o Sintoma” (1975/2003, p.561), Lacan define falasser [parlêtre] como uma expressão que substitui a definição de o inconsciente de Freud. De acordo com Miller, no seminário De la naturaleza de los semblantes (1991-1992/2001, p.12), falasser é um conceito no qual Lacan condensa algumas palavras visando evidenciar que o ser está do lado do semblante. Miller apresenta alguns termos. Começa falando sobre o parêtre [parecer-ser], condensação que intenciona separar o ser e o real e situar o ser do lado do semblante. Assim, o ser não se opõe ao paraître [parecer], mas se confunde com ele. Este é a valor da condensação contemporânea operada por Lacan ao falar de parlêtre, que vem sendo traduzido por hablanteser em espanhol e falasser em português. O parentesco entre estes dois termos – parêtre e parlêtre – é melhor visto na grafia par(l)être, que além de ser uma abreviação de être parlant [ser hablante], atribui ao homem um ser de semblante.

106

2.3.2 Joyce com Lacan

Lacan encontra na obra de James Joyce um suporte para a renovação do conceito de

sintoma. A modificação da ortografia – “sinthoma é uma maneira antiga de escrever o que

posteriormente foi escrito sintoma” (LACAN, 1975-1976/2007, p.11) – é inspirada na

maneira peculiar que Joyce escreve.

No texto “Lacan com Joyce”, Miller (1996/2010, p.36) afirma que Lacan se interessa

por Joyce na medida em que ele evidencia a “inversão que se produz quando o sintoma dá

lugar à criação”. Esta elaboração já está presente desde o trabalho com o caso Aimée e pode

ser encontrado também nas articulações entre literatura e os efeitos de criação que levam

Lacan a falar de Hamlet, Antígona e Edgar Alan Poe, por exemplo. Aliás, em “Nota passo a

passo”, Miller (2005/2007, p.201) esclarece que “Lacan recorria a Joyce para dar um passo

além do ponto onde Freud se deteve”.

Pouco depois, no livro Perspectivas dos Escritos e Outros escritos de Lacan, Miller

(2008/2011, p.84) elucida que com a articulação entre o conceito de sinthoma e a obra de

Joyce, Lacan destaca algo que vale apenas “para o um-sozinho [un-tout-seul]”. Ou seja, ele

inventa o sinthoma para designar o singular em seu absoluto. Neste sentido o sinthoma é

generalizado a ponto de se poder supô-lo em cada um.

Mas tal singularidade, na maioria dos casos, está recoberta pela fabricação de um

sentido partilhado que a apaga. Ela pode ser ocultada ao se encarnar uma outra coisa, a saber,

“nossa trama, nosso destino, a herança da família, um grande personagem, ideais” (IBID.,

p.85). Miller acrescenta que Joyce escapa do comum na medida em que ele se identifica com

esse singular sem dissimulá-lo. Nas palavras de Lacan (1975-1976/2007, p.114): “Joyce não

sabia que ele fazia o sinthoma, quero dizer, que o simulava. Isso era inconsciente para ele. Por

isso, ele é um puro artífice, um homem de savoir-faire, o que é igualmente chamado de um

artista”.

Podemos também depreender desta articulação que o conceito de sinthoma e o estilo

da escrita joyceana podem ser aproximados, visto que ambos concebem a junção entre

significante e gozo. Sobre a relação entre estes elementos, Lacan (IBID., p.38) diz que:

Em todo caso, é a partir de Joyce que abordarei este quarto termo, uma vez que ele comporta o nó do imaginário, do simbólico e do real. O problema todo reside nisto – como uma arte pode pretender de maneira divinatória substancializar o sinthoma em sua consistência, mas também em sua ex-sistência e em seu furo?

107

Esse quarto termo, a respeito do qual eu simplesmente quis lhes mostrar hoje que é essencial ao nó borromeano, como alguém pôde visar por sua arte a restabelecê-lo como tal, a ponto de estar o mais próximo possível dele?

Partindo destas questões, Lacan (IBID., p.85) se debruça sobre a especificidade do

enlaçamento do nó deste artista, propondo considerá-lo “como respondendo a um modo de

suprir um desenodamento do nó”. A complexidade do nó joyceano se deve ao fato de o

simbólico e o real fazerem cadeia e deixarem livre o imaginário. Apenas com o quarto elo –

neste caso o ego que funciona como uma suplência do Nome-do-Pai – Joyce pôde reparar o

erro e sustentar os registros unidos, mesmo que não seja de forma borromeana. Por este

motivo, Joyce mantinha sua psicose fora de um desencadeamento clássico, da mesma forma

com que Lacan postulara na década de 50. Nas palavras de Lacan (IBID., p.148):

Eis exatamente o que se passa, e onde encarno o ego como corrigindo a relação faltante, ou seja, o que, no caso de Joyce, não enoda borromeanamente o imaginário ao que faz cadeia com o real e o inconsciente. Por esse artifício de escrita, recompõe-se, por assim dizer, o nó borromeano.

Inicialmente destacamos neste item da Tese, as consequências da formalização do nó

de Joyce em alguns pontos fundamentais: a relação entre sinthoma e arte, o desejo de Joyce

ser um artista famoso, o nome próprio e o nome comum, as epifanias e os enigmas que

caracterizam a escrita de Joyce. Todos eles são considerados pontos privilegiados que

evidenciam a compensação de uma carência paterna. Além disso, explicam que a forma com a

qual o real se enlaça no nó de Joyce evidencia uma foraclusão estrutural. Lacan a indica

precisamente na conferência “Joyce, o Sintoma” (1975/2007, p.162):

Eu disse que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. É estranho que se possa também chamar desabonado do inconsciente alguém que joga estritamente apenas com a linguagem, ainda que se sirva de uma língua entre outras e que é, não a sua.

Em um seminário realizado na Seção Clínica de Barcelona, Miller (1996/2010, p.55)

afirma que o que Lacan chama de foraclusão “é uma elucubração sobre a carência do pai”, na

medida em que o inconsciente é uma estrutura superposta à língua, “uma elucubração de

saber” (IBID., p.52) que possui o caráter de semblante. E diz que, com a expressão

desabonado do inconsciente, Lacan indica que em Joyce trata-se de uma elucubração distinta,

na medida em que este multiplica as línguas de referência para obter “um gozo em curto-

circuito”. Por isso, ele não passa pelas intercessões do imaginário, nem pela articulação do S1

conectado a S2 que lhe dá sentido. “É o ingozciente (injouiscient) joyceano, algo distinto do

inconsciente” (IBIDEM).

108

Apesar de Lacan não se deter em um diagnóstico, ele claramente aponta a foraclusão

de Joyce em uma outra passagem. Questionando-se se “Joyce era louco?”, nome do quinto

capítulo do Seminário 23, ele articula a foraclusão em Joyce ao papel de Redentor que “não

passa de lengalenga”.

Não há nisso alguma coisa como uma compensação dessa demissão paterna, dessa Verwerfung de fato, no fato de Joyce ter se sentido imperiosamente chamado? Essa é a palavra que resulta de um monte de coisas que ele escreveu. É a mola própria pela qual o nome próprio é, nele, alguma coisa estranha (LACAN, 1975-1976/2007, p.86, grifo do autor).

Os efeitos desta foraclusão também são evidenciados pela maneira que Joyce equivale

sua arte a uma missão, capaz de fazer subsistir a própria família e de elevá-la a certa distinção.

Segundo Lacan (IBID., p.67-68), em Ulisses Joyce se dirige a um pai carente ao qual ele

busca de várias formas sem encontrá-lo em qualquer grau; dizendo inclusive que Ulisses

testemunha o enraizamento de Joyce ao pai, mesmo que o renegue, motivo pelo qual Lacan

aponta a raiz do sintoma de Joyce. Ao articular este sintoma à carência paterna, Lacan (IBID.,

p.91) se detém na aspiração de Joyce, a saber, o nome próprio que realiza a compensação

desta carência. Na conferência sobre Joyce ele diz que (1976/2003, p.569) só falará em Joyce

para apontar as consequências de uma recusa mental que esta obra ilustra.

No livro Comentario del seminario inexistente, Miller (1991/1992, p.23-30) utiliza os

textos lacanianos “A significação do falo (Die Bedeutung des Phallus)” (1958/1998) e

“Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano” (1960/1998), para

trabalhar o nome próprio. Ele o define de diversas maneiras: um elemento que não se traduz

na língua e equivale ao matema, na medida em que em ambos o significado não se coloca; ao

contrário, quando se trata de nome próprio o que está em causa é a referência, no sentido de

uma origem. Mais adiante, acrescenta que a característica fundamental do nome próprio é a de

ser insubstituível, portanto, um designador rígido, um significante puro. Enfim, ressalta que

toda a problemática do nome próprio se resume à forma como cada um designa seu ser, tanto

para designá-lo a partir do Nome-do-Pai quanto a partir do eu.

Na opinião de Lacan, a obra joyceana incide sobre o nome próprio do autor, não

naquilo que ele conserva do nome patronímico, mas no modo como lhe permite designar seu

ser. Na conferência sobre Joyce, Lacan (1975/2007, p.161) destaca que o desejo de Joyce de

ter um nome que o ultrapassasse após a morte. E mais adiante ressalta que (IBID., p.163):

O pai, como nome e como aquele que nomeia, não é o mesmo. O pai é esse quarto elemento [...] sem o qual nada é possível no nó do simbólico, do imaginário e do real.

109

Mas há um outro modo de chamá-lo. É nisso que o que diz respeito ao Nome-do-Pai, no grau em que Joyce testemunha isso, eu o revisto hoje com o que é conveniente chamar de sinthoma.

Na medida em que o inconsciente se enoda ao sinthoma, que é o que há de mais singular em cada indivíduo, podemos dizer que Joyce, como ele escreveu em algum lugar, identifica-se com o individual (grifo do autor).

Além disso, o nome próprio também pode ser tomado como nome de gozo.

Encontramos na clínica freudiana, diversos exemplos de como o nome próprio não equivale

necessariamente ao Nome-do-Pai, por exemplo, nos casos de O Homem dos ratos e de O

Homem dos lobos.

Anos depois, na conferência que Miller (1996/2010, p.39) pronuncia sobre “Joyce com

Lacan”, ele retoma esta questão para dizer que o nome próprio é uma seleção, apesar de nunca

ser suficiente. Por isso, sempre se complementa o nome e neste sentido ele nunca é

suficientemente próprio. É isto que Lacan realiza quando propõe nomear um artigo como

“Joyce, o Sintoma” (1975/2003, p.560).

Lacan (1975/2003, p.562) constata que Joyce se dá um nome de gozo com valor de

nomeação, pois esta comporta o que há de mais singular no sintoma, e o enlaça com algo

próprio ao falasser. Este laço é encontrado na forma em que sua arte apresenta um savoir-

faire com a linguagem: “Joyce, o Sintoma [Symptôme], por seu artifício, leva as coisas a um

ponto em que nos perguntamos se ele não é o Santo, o santo homem [saint homme] até não ter

mais p”, ou seja, o p de symptôme.

A partir do conceito de nomeação, Lacan (1975-1976/2007, p.163) encontra a via que

leva Joyce do sintoma ao gozo: o sintoma está no fato de que esse gozo é a única coisa que o

leitor pode capturar a partir de a escrita de gozo, a lalíngua que Joyce utiliza em Finnegans

Wake. Uma língua que fascina o leitor lacaniano porque tem relação “com joy”, escrita

inglesa da palavra alegria, satisfação, deleite, enfim, gozo. Assim, Lacan mostra a função

compensatória do nome próprio porque Joyce o faz entrar na categoria de nome comum e, ao

mesmo tempo, deter a falha de seu nó.

Miller (1996/2010, p.43-44) esclarece sobre esta função destacada por Lacan, dizendo

que:

Lacan lembra que Joyce desejava imortalizar seu nome, fazer-se um nome e imortalizá-lo fazendo para si um lugar na memória universal. Lacan o refere à carência paterna da qual Joyce padecia, de modo que ele teria conseguido, com o nome próprio, fazer uma versão do Nome-do-Pai. A perspectiva de ocupar para sempre a memória dos homens com um Nome-do-Pai artificial, feito com base no seu nome próprio, deve-se à falta de um ponto de basta (point de capiton) normal, comum. Pode-se, assim, interpretar todo Joyce a partir de como tamponar a falha do ponto de basta. Vejo na ideia de ocupar eternamente a memória das pessoas uma versão da assíntota schreberiana. O inquietante é que seu nome pode ser o eco ou despertar ecos de significação para a humanidade (grifo do autor).

110

Se Joyce tinha o desejo de ser um artista mundialmente reconhecido fazendo com que

se demandasse à universidade um dispêndio de tempo para decifrar sua obra, ele também

compensa o fato de carecer dos efeitos do Nome-do-Pai em sua relação com a linguagem. Por

esta razão, Miller (1996/2010, p.41) diz que Joyce traumatiza a Universidade ao elaborar o

próprio trauma recebido da relação com a língua. Seu dispositivo impede uma soma do saber,

na medida em que ele o despedaça. “Não se pode descobrir em Joyce nenhum significante

mestre capaz de instaurar uma ordem”. O que resta aos estudiosos é o autor, que impõe sua

presença no momento em que faz desaparecer a soma do saber.

2.3.3 O objeto a-voz joyceano

A arte joyceana, mais precisamente o modo particular de gozo por meio da palavra

escrita, supre a inconsistência fálica ao visar o quarto termo, o sinthoma. “O que ele escreve é

a consequência do que ele é. Mas até onde vai isso? Com que cacife ele contava,

considerando as armas que apresentava – o exílio, o silêncio e a astúcia?”, de indaga Lacan

(1975-1976/2007, p.77).

Trabalhando sobre este modo de escrita, Lacan (IBID., p.62) estabelece a articulação

letra-voz que ele já havia questionado em 1964, no ensino de O seminário, livro 11: os quatro

conceitos fundamentais da psicanálise, justamente ao se dedicar à relação do sujeito com o

Outro. Mais adiante, em O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante

(1971/2009), ele a examina na correspondência imediata escrita-leitura.

O texto joyceano exige que se reconsidere a noção de leitura, pois a possibilidade de

inúmeras interpretações lhe fornece o caráter de ilegibilidade que rompe com a natureza de

comunicação implícita na escrita convencional. A ilegibilidade deste escrito indica a presença

de uma prática de gozo sintomático fora de sentido, portanto, não comprometida com a

transmissão de uma mensagem. É algo da ordem de um hors-du-sens.

Os efeitos da palavra joyceana estão diretamente relacionados aos modos de sua

própria satisfação: “visto que ele é um fazer que nos escapa, isto é, que transborda em muito o

gozo que podemos ter dele”, conforme disse Lacan (1975-1976/2007, p.77). Nessa mesma

direção, Miller (1996/2010, p.52-53) aponta que não é tanto a dimensão do desejo e nem o

conceito de sublimação que convém à obra de Joyce. Trata-se de uma “sublimação

111

artificiosa”, no sentido de uma libido mais sintomatizada do que sublimada. “De certo modo,

Joyce não sublima, e é por isso que tem um parentesco com o sintoma”.

No texto “O real é sem lei”, Miller (2001/2002, p.12) esclarece que a concepção de

escrita na obra de Joyce recoloca para Lacan o tema da fala: ela não é mais abordada em sua

função de libertar a verdade de um sujeito, como ele acreditava a partir do retorno à talking

cure freudiana. O sentido, o significante e o saber são rebaixados visto que a fala, equiparada

a um parasita, perde sua função de via de salvação. Em suas palavras:

Há uma escrita que é aplicada à fala, que permanece relacionada ao sentido, e depois há uma outra, pura, desarticulada do sentido, e que por isso é capaz de valer para o real. É no nível dessa escrita pura, dessa escrita outra que Lacan situa seu nó.

No entanto, em “Lacan com Joyce”, Miller (1996/2010, p.48) alerta sobre duas

questões distintas. Por um lado, distingue o oral e o escrito, por outro, ressalta que Joyce

realiza “uma escrita do fonético”, por meio de um movimento de retroação que faz com que o

significante retorne sobre a própria cadeia e produza um significante sintomático novo, que

não está ligado ao som porque ele converge em direção ao próprio significante.

Ao operar sobre os efeitos de sentido das palavras de modo a fazer surgir um vazio de

significação, a arte de Joyce atinge o sintoma para além da dimensão simbólica. Nesse

sentido, Lacan (1975-1976/2007, p.62) valoriza o significante artifício para enunciá-lo como

aquilo que permite Joyce reparar a falha do nó, obtendo um enodamento não borromeano,

mas com valor similar a um nó borromeo. Segundo a nota inserida por Sérgio Laia, tradutor

do Seminário 23, esta expressão designa “a habilidade, o jeito para se obter êxito graças a

ações que são, ao mesmo tempo, maleáveis e precisas” (IBID., p.14).

Lacan localiza o artifício de Joyce em Finnegans Wake, a maneira que a escrita

desmantela a língua inglesa até ela perder a identidade fonatória. Na verdade, Lacan ressalta o

uso diferenciado que Joyce utiliza, seu savoir-faire (IBID., p.72). Esse desmantelamento só é

possível em função da preservação da letra, mesmo que a ortografia da língua inglesa não se

mantenha, e mesmo que a sonorização da palavra escrita deixe entrever a expressão fônica de

outros idiomas.

Segundo Ram Mandil (2003, p.260):

Na escrita de Joyce haveria, portanto, um caráter de defesa, de proteção contra a dimensão enlouquecedora da palavra, para quem não se viu dela apaziguado pela função do Nome-do-Pai, aquele que amortece os significantes ao aparelhá-los com a função de significação.

112

A psicose de Joyce se mantém compensada pela escrita, pela forma que utiliza as

palavras para se defender de seu traumático encontro com a língua. Afinal, para Miller “o

verdadeiro núcleo traumático não é a sedução, a ameaça de castração, a observação do coito;

tampouco a transformação de tudo isso em fantasia, não é Édipo e castração. O verdadeiro

núcleo traumático é a relação com a língua. É o que Joyce evidencia” (MILLER, 1996/2010,

p.41).

Joyce padece de um transtorno real, algo que ele mesmo chamou epifanias. Ele as

descreve como diálogos curtos e interrompidos, mas que para ele tinham uma particularidade

absolutamente evidente, pois ele retira a certeza de sua convicção de artista. Sua obra lhe

serviu como tratamento da relação perturbada com a linguagem, visto que com ela ele

transforma a certeza insuportável de suas epifanias em um enigma que o protege do trauma da

língua.

Assim, a escrita de Joyce é um modelo dos modos com que o falasser lida com a

linguagem: o caráter de imposição das palavras, sua exterioridade original e a angústia

causada pelas significações enigmáticas naquele que fala. Dada à forma com a qual ele opera

com os equívocos da linguagem – distinta daquela que permitiria uma abertura para o

inconsciente – Lacan (1975-1976/2007, p.160) afirma que Joyce é um desabonado do

inconsciente.

Lacan se pergunta: “Joyce como escritor por excelência do enigma não seria a

consequência da cerzidura tão mal feita desse ego, de função enigmática, de função

reparadora?”. Ele próprio responde afirmativamente: Joyce faz a montagem de um ego capaz

de reparar o desenlaçamento do registro imaginário, do qual decorrem as epifanias e o grande

número de enigmas presentes na escrita. Elas estão na origem de sua vocação como escritor,

na medida em que se ancoram em experiências nas quais a significação parece estar ausente.

Tal fato conduz Lacan a situá-las fora do imaginário, na conexão entre o simbólico e o real.

“É totalmente legível em Joyce que a epifania é o que faz com que, graças à falha,

inconsciente e real se enodem” (IBID., p.150-151).

Os enigmas, por sua vez, decorrem da amarração malfeita desse ego: ao mesmo tempo

em que Joyce multiplica as ressonâncias das palavras, rompendo os efeitos de sentido e de

verdade, ele se subtrai à decifração do inconsciente. Lacan evidencia que:

É por intermédio da escrita que a fala se decompõe ao se impor como tal, a saber, em uma deformação acerca da qual permanece ambíguo saber se é o caso de se livrar do parasita falador de que lhes falei há pouco ou, ao contrário, de se deixar invadir por propriedades de ordem essencialmente fonêmica da fala, pela polifonia da fala (IBID., p.93).

113

A escrita joyceana produz o isolamento de uma voz resultante do modo com ele opera

as palavras, seus sentidos, sua sonoridade. Trata-se de uma relação de extimidade com o texto.

A escrita provoca uma tensão entre voz e letra, pois a voz ultrapassa os limites, apesar de ser

produzida pela manipulação da letra. Portanto, em relação à voz a escrita de Joyce se inscreve

como sintoma e funciona como um elemento de estabilização da realidade psíquica. De

acordo com Lacan (IBID., p.80), “nessa reverberação, o significante permanece como um

suporte sonoro do sentido, mas ao mesmo tempo, sua identidade fonatória é radicalmente

estremecida e tal perturbação afeta o fluxo mesmo do sentido”.

No texto “Lacan com Joyce”, Miller (1996/2010, p.54-55) ensina que a relação

especial entre o som e o sentido, que caracteriza a obra de Joyce, decorre do fato de “ele não

está totalmente protegido dos ecos pelo Nome-do-Pai”, que permite moderar o gozo em

relação com a língua. Em suas palavras:

O Nome-do-Pai é um dispositivo de redução do gozo, de adequação e de vinculação do significante e do significado. [...] Em Joyce, vê-se como essa escrita permitiu a sua estabilização. É o seu Nome-do-Pai. Como sujeito, ele é filho de seu sintoma (IBID., p.56).

Nesta mesma direção Sergio Laia (2008, p.73) afirma que para que se possa capturar

uma palavra do escrito de Joyce são necessárias ao menos três palavras, além de um

coeficiente de anulação de sentido. Com estes quatro elementos ele cria uma palavra em que o

sentido, devido à acumulação de termos, também não deixa de escapar ao leitor: há, ao

mesmo tempo, um excesso de sentido e sentido algum. De acordo com Laia (IBID., p.78), em

Joyce:

[...] o que encontramos não é um ultrapassamento ou uma anulação da linguagem, senão uma palavra que, impondo-se mais além do sujeito, o supera e, tributária da foraclusão de um significante fundamental (o Nome do Pai), não deixa de impor-se como uma anulação do sujeito.

Miller (1988/1998, p.16) afirma que o sentido se apresenta sempre superposto a

diversos saberes, fazendo com que o leitor busque as referências do próprio autor para

circunscrever o que cada palavra quer dizer, uma busca que esgota a dimensão do significado.

Cada palavra joyceana, por designar nada além dela mesma, acaba tendo como referência

apenas o nome daquele que a criou; cada uma delas indica o vazio da referência, pois o

significante que retorna sobre si mesmo não está conectado a nenhum som e nem a um objeto

da realidade.

Anos depois, Miller (1996/2010, p.47) retoma esta questão dizendo que:

114

Joyce não mobiliza apenas o sentido, mas também vários saberes: o saber de várias línguas e os saberes da enorme biblioteca necessária para se buscar de onde vêm as coisas. De tal forma que ele modifica a relação com o sujeito suposto saber. A partir de um significante, Joyce mobiliza o sujeito suposto saber a esse significante, isto é, esse “s” minúsculo que é, ao mesmo tempo, sentido e saber ou sentido e saberes. Ele o mobiliza mediante associações e o faz passar para o nível exposto, como se pudesse explicitar todos os ecos de um significante. Ele dá um esboço desse todo. É por isso que ele destrói o sujeito suposto saber e o espaço mesmo da interpretação. Ao mesmo tempo, ele se recompõe para seu próprio benefício, para tornar-se sujeito suposto saber e para que todos os leitores especialistas o estudem.

Com sua obra, Joyce consegue uma transposição das palavras que lhe eram

enigmaticamente impostas pelo Outro. Isso se confirma pelo continuo de sua arte, pelo

tratamento que ele deu às palavras. Ele as quebra, as desmantela, as decompõe até o limite

onde não se encontra mais uma identidade fonatória comum. Em algumas obras do autor, a

língua inglesa foi estremecida a todo instante, a tal ponto que os significantes ressoam como

provenientes de outras línguas.

Miller (IBID., p.37) comenta a interpretação lacaniana sobre Finnegans Wake:

Lacan interpreta o wake do título, o awakening, o despertar, como um desejo de Joyce de despertar a literatura, o sonho literário; um despertar que tivesse significado o seu fim por havê-la despertado para algo de sua estrutura, de sua verdade, de seu real, mais além das fantasias, da idealização. Seria como um atravessamento da fantasia literária, em direção ao real da escrita, que é a pura relação com a língua (grifo do autor).

Lacan não se ocupa em definir um diagnóstico para Joyce, mas no percurso de seu

seminário, encontramos algumas pistas importantes. Ao falar sobre a distância que Joyce

toma da política da Irlanda, Lacan (1975-1976/2007, p.15) utiliza a expressão sint’home rule.

A nota do tradutor esclarece que se trata da junção de sint, de sinthoma, com home rule, que

significa “governo próprio”, “autonomia”.

Em “Nota passo a passo” – um dos anexos de O seminário, livro 23: o sinthoma –,

Miller (2005/2007, p.208) esclarece que a expressão sint’home rule, traduzida como “o

sinthoma que rola”, designa a singularidade do sinthoma de Joyce, desnudado em sua

estrutura e em seu real. Também chamado de sinthoma herético, essa expressão se contrapõe

a outra, masdaquino, que define o sinthoma ortodoxo elevado ao semblante e velado por

sublimações recolhidas do senso comum.

Quando esta Tese começou a ser redigida, levantávamos a hipótese de Joyce ser

considerado um caso de psicose ordinária, justamente porque existem sinais de fenômenos

psicóticos evidentes. Se acompanharmos Lacan, ele cita dois exemplos em seus comentários.

Primeiramente, a cena do livro Retrato do artista quando jovem (1916/1987) em que Joyce

descreve a surra que tomou dos colegas e sentiu seu corpo se despregar como uma casca.

115

Nesse caso, o fenômeno elementar de automatismo corporal revela a sensação de estranheza e

de um corpo decomposto, desmembrado, tal como Miller (1987/1997, p.227) resumiu em seu

seminário de Curitiba sobre o método psicanalítico. Em segundo lugar, a invenção de palavras

no livro Finnegans Wake, que pode ser interpretada como a invenção de uma língua

fundamental, tal como Freud conceitua a partir do caso Schreber, em “Puntualizaciones

psicoanalíticas sobre un caso de paranoia (Dementia paranoides) descrito

autobiográficamente” (1911/1993, p.23).

Elisa Alvarenga (1999, p.120) reforça a hipótese de psicose ordinária em Joyce, ao

inscrevê-lo como um caso paradigmático de psicose não desencadeada graças ao trabalho

criativo que, nele, toma a forma de sinthoma e amarra os três registros. A autora destaca o

endereçamento do material produzido por meio da escrita como crucial à estabilização de sua

estrutura, independente a quem ele se dirige: “mesmo que o sujeito nada tenha a dizer sobre o

objeto produzido, o fato de que ele é endereçado a alguém o coloca em pauta numa relação

onde o que é criado pode ser lido”.

Contudo, em 2008, Miller solicita a Marie-Hélène Brousse que organize em Paris um

seminário tendo em vista as diversas posições teóricas, por vezes contraditórias, que se

sucederam à Conversação de Arcachon realizada em 1997. Neste seminário sobre a “Psicose

ordinária” a intervenção de Miller converge, de início, a mostrar que a psicose ordinária não é

uma categoria de Lacan, mas uma categoria extraída do último ensino de Lacan. Se ele,

Miller, inventou um significante – o de psicose ordinária – a questão se explica pelo desejo de

provocar um eco na clínica psicanalítica da atualidade e se esquivar da rigidez de uma clínica

binária neurose-psicose.

Depois, sua intervenção – “Efeito do retorno à psicose ordinária” (2008/2010, p.26) –

teve como meta mostrar sua própria posição, a de diferenciar o período que antecede o

desencadeamento de uma psicose ainda não manifesta e as psicoses ordinárias propriamente

ditas. No momento dos debates, em uma resposta fornecida a Vyacheslav Tsapqin, Miller diz:

Por anos, discordei da ideia de uma psicose não desencadeada. Não gostava dessa ideia de psicose não desencadeada por temer o abuso da noção de psicose adormecida. Mas os fatos clínicos estão aí. Quando se tem uma psicose que se desencadeia, o período que antecede ao desencadeamento é de psicose não desencadeada. Eu era a favor do balizamento da psicose adormecida que podia se desencadear. Era clinicamente necessário. O passo a mais é compreender que certas psicoses não conduzem a um desencadeamento: psicoses que apresentam uma desordem no ponto de junção mais íntimo dos sujeitos que evoluem sem barulho, sem explosão, mas com um furo, um desvio ou uma desconexão que se perpetua.

116

De forma que modificamos nossa suposição a qual converge hoje com a intervenção

de Miller, em 2008. Sobretudo porque Lacan deixa claro que, enfim, a psicose de Joyce pode

ser revelada através de certos indícios que resumiremos a seguir.

Primeiro indício: pela suspeita de que Joyce é, ou se toma, pelo que ele próprio chama

de Redentor. Lacan (1975-1976/2007, p.78) e Jacques Aubert concordam que em Stephen

Hero há vestígios de que Joyce acreditava nessa posição de Redentor, conforme mencionamos

no item 2.3.2. desta Tese.

Segundo indício: Lacan articula a trama da redenção à Verwerfung em Joyce, de

acordo com o que já foi elaborado no item 2.3.2. No entanto, acrescentamos as palavras de

Lacan quando ele constata que:

Não há nisso alguma coisa como uma compensação dessa demissão paterna, dessa Verwerfung de fato, no fato de Joyce ter se sentido imperiosamente chamado? Essa é a palavra que resulta de um monte de coisas que ele escreveu. É a mola própria pela qual o nome próprio é, nele, alguma coisa estranha (IBID., p.86, grifo do autor).

Terceiro indício: referindo-se à relação entre Joyce e sua filha Lucia, Lacan aponta

que o escritor atribuiu à filha o caráter de telepata para defendê-la dos médicos e para não

aceitar a loucura da jovem, suas falas impostas. Lacan insere neste momento uma

diferenciação fundamental para se entender a relação de Joyce com a língua. Apesar de em

todo ser humano as falas serem sempre impostas, o neurótico não lhe confere esta

característica perturbadora,

[...] por que um homem dito normal não percebe que a fala é um parasita, que a fala é uma excrescência, que a fala é uma forma de câncer pela qual o ser humano é afligido. Como pode haver quem chegue inclusive a senti-lo? É certo que Joyce nos dá uma pequena suspeita disso (IBID., p.92).

De fato, trata-se de resgatar do ensino de Lacan que Lucia significa o prolongamento

do sintoma de Joyce, porque o escritor não somente decodifica os signos da fala da filha,

como também incorpora, ele próprio, a fala imposta. Pois, ao desmantelar a escrita ele acaba

por dissolver a própria linguagem.

Ele acaba por impor à própria linguagem um tipo de quebra, de decomposição, que faz com que não haja mais identidade fonatória.

Sem dúvida, há aí uma reflexão no nível da escrita. É por intermédio da escrita que a fala se decompõe ao se impor como tal, a saber, em uma deformação acerca da qual permanece ambíguo saber se é caso de se livrar do parasita falador de que lhes falei há pouco ou, ao contrário, de se deixar invadir por propriedades de ordem essencialmente fonêmica da fala, pela polifonia da fala (IBID., p.93).

117

3 AS PSICOSES ORDINÁRIAS NA PERSPECTIVA BORROMEANA

O termo psicose ordinária foi inventado por Jacques-Alain Miller como proposta de

um programa de investigação que pretende rever a clínica das psicoses sob um novo ângulo:

não apenas a partir do significante, mas também a partir do matema S1, a que evidencia a

faceta de gozo inscrita no significante. Tal programa foi iniciado em 1996 em “O

Conciliábulo de Angers (Efeitos de surpresa nas psicoses)”47 e prosseguiu em dois outros

encontros do Campo Freudiano, respectivamente, em “A Conversação de Arcachon (Casos

raros: os inclassificáveis da clínica)”48 (1997) e em “A psicose ordinária: a Convenção de

Antibes”49 (1998).

Miller (1996-1997b/2005, p.11) considera esses encontros como três tempos de

elaboração de alguns conceitos lacanianos que funcionavam anteriormente como ferramentas

clínicas satisfatórias. Porém, enfatiza e articula vários elementos que Lacan forjou após o

seminário sobre as psicoses. Dialetizando a experiência clínica e os marcos conceituais,

Miller propõe inicialmente, em O Conciliábulo de Angers, isolar as especificidades da clínica

que surpreendiam aos analistas. Neste percurso ele constata que alguns casos escapavam às

normas clássicas da clínica lacaniana das psicoses – definidas por Lacan fundamentalmente

em O seminário, livro 3: as psicoses (1955-1956/1997) e em “De uma questão preliminar a

todo tratamento possível da psicose” (1959[1957-1958]/1998).

Para explicar um pouco melhor o que representa essa tríade de eventos, em Angers foi

tratado o tema Efeitos de surpresa nas psicoses50. Na conferência de abertura Miller

(1996/2005, p.19) adverte que, por meio da interpretação, o analista deve surpreender o real

que retorna sempre para o mesmo lugar e por isso não pode ser evitado pelo sujeito. Ele

reserva a surpresa para a neurose e o enigma para as psicoses, na medida em que o segundo

expressa uma ruptura de articulação entre significante e significado mais acentuada que a

primeira.

47 O trecho correspondente na tradução é: “El Conciliábulo de Angers (Efectos de sorpresa en las psicosis)”. 48 O trecho correspondente na tradução é: “La conversación de Arcachon (Casos raros: Los inclasificables de la clínica)”. 49 O trecho correspondente na tradução é: “La psicosis ordinaria: la convención de Antibes”. 50 Consideramos o título do livro publicado: Miller, J.-A. (1997). Le Conciliabile d’Angers. Effets de surprise dans les

psychoses. Paris: Agalma Éditeur Diffusion Le Seuil. No entanto, seguiremos na Tese o livro publicado pela Editora Paidós, o qual reúne o material dos dois primeiros eventos, o de Angers e o de Arcachon, livro que foi intitulado Los inclasificables

de la clinica psicoanalítica. (1996-1997/2005). Buenos Aires: Paidós.

118

A surpresa acontece na neurose quando as formações do inconsciente trazem algo da

verdade do sujeito desaparecido sob o domínio do significante; a surpresa está referida à

dimensão do objeto perdido que, por meio do retorno do recalcado, faz com que o neurótico

questione o sem-sentido do sintoma que lhe é, ao mesmo tempo, próprio e estranho. Este

questionamento é feito a partir da transferência, por meio da qual o sujeito demanda a um

Outro do saber um sentido àquilo que se coloca como enigmático.

No enigma algo é reconhecido como significante apesar do psicótico não saber o que

ele quer dizer; ou seja, “no lugar da significação, um vazio”51 (tradução nossa). Esta

intencionalidade de significação institui o caráter de certeza, que se mantém enquanto o

significante não é decifrado. Miller conclui que, seja qual for a estrutura, quando se trata da

articulação entre significante e significado o enigma é a norma (IBID., p.25). Esta conclusão

aponta à foraclusão generalizada, assunto que iremos abordar neste terceiro capítulo da Tese.

Um ano após o Conciliábulo de Angers, “A conversação de Arcachon” coloca em ação

o significante casos raros através do título “Os casos raros, inclassificáveis, da clínica

psicanalítica”. Os analistas trabalharam em torno das noções de continuidade e

descontinuidade das estruturas clínicas formalizadas por Lacan. Esse desafio foi sustentado

pela definição de psicanalista elaborada por Lacan (1964/2003, p.237) no “Ato de fundação”.

Os psicanalistas são aqueles:

[...] que estejam em condições de contribuir para a experiência psicanalítica: pela crítica de suas indicações em seus resultados; pela experimentação dos termos categóricos e das estruturas que introduzi como sustentando a linha direta da práxis freudiana – isso no exame clínico, nas definições nosográficas e na própria formulação dos projetos terapêuticos.

No entanto, o termo psicose ordinária surge apenas em 1998 durante “A Convenção

de Antibes”. Segundo Miller (1998/2006, p.201), sob o grifo de psicose ordinária estão

psicóticos mais modestos do que as psicoses extraordinárias, da qual Schreber se tornou um

grande exemplo. Incluídos neste título estão ainda “a psicose compensada, a psicose

suplementada, a psicose não desencadeada, a psicose medicada, a psicose em terapia, a

psicose em análise, a psicose que evolui, a psicose sinthomatizada”52 (grifos do autor;

tradução nossa).

O autor relata como chegou a essa definição: em Angers, o termo era aleatório,

prevendo possíveis surpresas. Num segundo tempo, em Arcachon, essa questão foi

51 O trecho correspondente na tradução é: “en el lugar de la significación, un vacío”. 52 O trecho correspondente na tradução é: “la psicosis compensada, la psicosis suplementada, la psicosis no desencadenada, la psicosis medicada, la psicosis en terapia, la psicosis em análisis, la psicosis que evoluciona, la psicosis sinthomatizada”.

119

preservada, todavia, o tema girou em torno de os “casos raros”. E finalmente, no terceiro

tempo, em a conversação de Antibes, se descobriu que os casos raros eram mais frequentes

do que se supunha (IBID., p.200-201).

Miller assinala que a psicose ordinária não é uma categoria de Lacan. Trata-se de uma

categoria clínica extraída dos últimos anos de sua transmissão, que possibilita uma releitura a

posteriori dos primeiros anos desse ensino. Isso não significa que a referência à estrutura

clínica possa ser descartada; mas no que concerne à experiência analítica existem outros

elementos orientadores para além da presença-ausência do Nome-do-Pai. Em suas palavras:

Não inventei um conceito com a psicose ordinária. Inventei uma palavra, inventei uma expressão, inventei um significante, dando a ele um esboço de definição que pudesse atrair diferentes sentidos, diferentes ecos de sentido em torno desse significante. Não ofereci um saber-fazer sobre a utilização desse significante. Fiz a aposta de que esse significante podia provocar um eco no clínico, no profissional. Queria que ele ganhasse amplitude para ver até onde essa expressão podia ir (MILLER, 2009/2010, p.3).

A importância da investigação sobre as psicoses ordinárias decorre do fato de que

nessas casuísticas não acontece o desencadeamento clássico da psicose e não estão presentes

os traços comuns das psicoses extraordinárias, desencadeadas, tais como os distúrbios de

linguagem e as alterações do pensamento, por exemplo. As manifestações fenomenológicas

discretas, características das psicoses ordinárias, suscitam questões em relação ao diagnóstico

diferencial e exigem uma delimitação em relação às psicoses extraordinárias, tal como no

caso Schreber (LIMA, 2006).

Por isso, neste capítulo de Tese, discorremos sobre os caracteres de artificialidade e de

relatividade típicas das categorias diagnósticas, enfatizando o perigo de transformá-las em

uma classificação que restrinja a escuta do singular de cada sujeito. “Diante do empuxo social

de constituição de classes, de tudo nomear, aparecem casos avulsos que não formam uma

comunidade e se tornam inclassificáveis” (TENDLARZ, 2007, p.28). Para esta discussão

recorremos ao postulado de Miller (2001/2006, p.27) que inscreve o diagnóstico no campo da

arte. Ele evidencia a importância do psicanalista se questionar sobre a aplicação clínica de

uma determinada categoria, pois ela é anterior à inclusão de um sujeito em um sistema

classificatório.

Permitindo-se alguns questionamentos, em Antibes (1998/2006) os analistas

inventaram os termos neodesencadeamento, neoconversão e neotransferência, para

circunscrever as especificidades do desencadeamento, dos fenômenos de corpo e da

transferência nos casos de psicose ordinária, respectivamente. Nesta Convenção eles foram

articulados a casos clínicos, de forma a se extrair a operacionalidade desses termos marcados

120

pelo prefixo neo. Apesar de não estarem presentes nas atuais discussões sobre as psicoses

ordinárias, eles permitem conclusões decisivas, sobre as quais iremos nos deter adiante.

Nesse sentido, a noção de psicose ordinária se torna crucial visto que novas

modalidades de apresentação das psicoses estão cada vez mais frequentes no dispositivo

analítico. Neste caso, a clínica borromeana se torna fundamental para uma investigação sobre

este tema na medida em que a posição dos psicóticos em relação ao gozo é localizada por

meio de enlaçamentos do nó que evidenciam a singularidade do tratamento. Marie-Hélène

Brousse (2008/2009b, p.11) indica inclusive que este fato pode ser explicado através da

formulação de que a psicose ordinária “é a psicose do tempo do Outro que não existe, do ‘não

há relação sexual’”. É conveniente ressaltar que o primeiro ensino de Lacan caracteriza-se

pelo axioma “Há o Outro” e o segundo pelos axiomas “o Outro não existe”, “Há o corpo”.

Por outro lado, é preciso investigar as psicoses ordinárias a partir da transformação

ocorrida nos significantes que ordenam os modos-de-gozar de um sujeito, desde que o

discurso mestre foi substituído pelos discursos da ciência e do capitalista. Ao mesmo tempo

em que essa nova configuração social modifica a forma de expressão sintomática nos dias

atuais, ela franqueia a democratização do gozo para todos.

Portanto, retomaremos os conceitos de pluralização do Nome-do-Pai e de foraclusão

generalizada articulados ao matema milleriano S1, a, utilizado para a compreensão do último

ensino de Lacan. Os dois elementos que compõem o matema permitem que alguns casos

inicialmente considerados inclassificáveis sejam formalizados pela clínica orientada pelo real,

permitindo uma abordagem psicanalítica mais segura.

Tomando a clínica das psicoses como o paradigma da experiência analítica, a

formulação de Lacan (1978/2010, p.31-32) “todo mundo é louco, isto é, delirante”, convoca

uma clínica ordenada pela foraclusão generalizada. Ela estrutura a vida de todo ser falante a

partir de uma referência vazia – nomeada por Lacan com o aforismo “a relação sexual não

existe”. Essa inexistência também pode ser designada com os conceitos de foraclusão

generalizada e sinthoma, já que eles apontam um real impossível de ser atingido pela palavra

e que afeta a vida de todo ser falante.

A clínica irônica proposta por Miller (1988/1996, p.190-199) oferece novos

parâmetros para a condução dos tratamentos. Afinal, se a psicanálise de orientação lacaniana

institui que todos os discursos são defesas contra o real e todas as construções de realidade

121

realizadas por meio da linguagem são delirantes, cada falasser53 precisa inventar sua própria

maneira de se defender desta não existência.

3.1 Do inclassificável à psicose ordinária

Podemos dizer que foi a questão dos casos inclassificáveis na clínica psicanalítica que

desencadeou o programa de investigação sobre as psicoses ordinárias. Vale notar que desde o

início da apresentação destes casos o termo inclassificável nunca figurou como um

diagnóstico. Se ele tivesse sido legitimado deste modo, os analistas teriam que incluir mais

uma peça no rol das estruturas clínicas freudianas, o que colocaria em xeque alguns pilares

analíticos determinantes, tal como a posição do analista, a direção do tratamento e o

diagnóstico em psicanálise.

Segundo Bogochvol (2007, p.41), o termo inclassificável é utilizado para definir os

casos que não se inserem na nosografia atualmente utilizada pela psicanálise. É a evidência

de que não há um diagnóstico para eles, ou seja, que os “nossos termos, conceitos, critérios e

julgamento fracassaram em apreender uma dada realidade clínica e em inseri-la na

classificação estabelecida”. Independente do campo teórico em que se está trabalhando,

quando se trata de um sistema classificatório, é necessário incluir a classe dos inclassificáveis

como uma exigência lógica. Pois, quando se nomeia um caso desta forma ele é incluído em

uma classificação, apesar desta inclusão não ser suficiente para a criação de uma nova

categoria.

Este mesmo autor também adverte que o inclassificável resulta de uma dificuldade em

classificar – que pode decorrer tanto do fato de se operar com determinado sistema

classificatório – quanto de limitações inerentes ao próprio sistema. Quando a primeira

aparece, a tendência inicial é atribuí-la à aplicação ineficiente do sistema. A saída mais

comum é uma pequena modificação na definição da classe que permita a inclusão daquilo

que não se inscrevia anteriormente. Foi o que aconteceu em Arcachon: casos antes

inclassificáveis foram classificados em função da extensão dos indícios para se reconhecer as

psicoses. Daí a proposta de Miller, a noção de psicose ordinária.

53 Convém reforçar que o termo falasser já foi detalhado na nota de rodapé nº 2, inserida no item 2.3.1. desta Tese.

122

Bogochvol (IBID., p.43) esclarece que, em uma perspectiva sincrônica, a forma como

alguns fenômenos se apresentam e se organizam parece imutável a partir do modo como a

ciência lhes confere sentidos e significações. Isto é necessário porque de outro modo eles não

cessariam de se inscrever. Ao contrário, a perspectiva diacrônica mostra que a nosologia e a

nosografia se modificam continuamente, pois os sintomas, as nomeações e as classificações

não cessam de não se inscrever.

A classificação adotada na Classificação Estatística Internacional de Doenças e

Problemas Relacionados com a Saúde (CID) constata a posição dos psiquiatras, quase sempre

cognitivistas, que priorizam a organicidade e as definições fenomênicas na classificação do

Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), onde cada fenômeno de

conduta adquire um valor quantificável. Questão que foi amplamente discutida por Jacques-

Alain Miller e Jean-Claude Milner (2003/2006) em Você quer mesmo ser avaliado?:

entrevistas sobre uma máquina de impostura.

Santiago (2010, p.5) afirma que o DSM representa uma das maiores mutações da

ordem simbólica nos últimos tempos. Ela pode ser definida pela evidente anulação do sujeito

do inconsciente por transformar a existência em uma terapêutica medicamentosa veiculada

por uma publicidade que visa fortalecer o mercado. A novidade do DSM-V em relação ao seu

precedente é que a visão diagnóstica não se sustenta mais em categorias, mas em dimensões.

Ela é consequência do fato de que algumas patologias psiquiátricas “fundem-se

imperceptivelmente umas nas outras e absorvem os diversos critérios de normalidade”.

Sobre este assunto, Laurent (2010/2011, p.130) comenta que:

A noção de depressão encontrou um grande êxito. A acepção comum do termo depressão passou a fazer parte da linguagem atual. Agora é uma espécie de continuidade que vai da tristeza acentuada até a depressão grave, a melancolia, etc. Coloca-se um novo acento sobre a bipolaridade, chamada maníaca ou melancólica, ou as duas de uma vez (grifo do autor).

Segundo Laia, o manual vigente, o DSM-IV, exigiu uma revisão para acertar

fundamentalmente duas características: 1) já que os transtornos mentais eram definidos por

diversos sintomas, não era necessário que todos os sintomas listados estivessem presente para

se diagnosticar um transtorno mental; 2) as categorias nas quais o DSM-IV se estrutura são

referidas a conceitos binários que não permitem nem a exceção e nem tampouco as gradações

que podem existir entre as simples presença ou ausência de um determinado transtorno mental

(LAIA apud KRUEGER; BEZDJIAN, 2009, p.94). As pesquisas psiquiátricas almejam o fim

das categorias e das tipologias dos métodos de classificação exatamente porque dessa forma

alguns casos restam fora do sistema classificatório. A mudança da abordagem categorial para

123

a abordagem dimensional pretende captar as diversas variações sintomatológicas que

caracterizam as perturbações mentais, permitindo aos profissionais a avaliação e a

quantificação das queixas em referência às categorias preconcebidas. Essa padronização

permite tanto uma comunicação mais confiável entre clínicos e pesquisadores quanto a

regulamentação de uma padronização medicamentosa.

No prefácio do livro acima citado, Jorge Forbes (2003/2006, p.IX) considera a

avaliação como um efeito da quebra dos ideais promovida pela globalização, o que a define

como um fenômeno essencial dos tempos atuais. Ela generalizada a possibilidade de tudo ser

cifrado e avaliado, encerrando de forma ilusória com o singular que escapa às medidas do

avaliador. A radicalidade dessa questão é a promessa de que não há nenhum problema da

experiência humana que não tenha uma solução fornecida pela ciência.

Portanto, tanto a avaliação quanto o sistema classificatório dos manuais psiquiátricos

se aproximam no sentido de fornecer de forma imaginária uma solução ao que não cessa de se

inscrever no falasser. Os rótulos do DSM inscrevem algo que, segundo Laia (2009, p.98),

difundem identidades e franqueiam ao sujeito algo do próprio gozo.

Mandil (2010, p.2) também aborda esta questão dizendo que:

Nesse sentido o DSM pode ser considerado a partir da perspectiva de oferta de suportes para a construção de novas identidades, referidas à certas práticas de gozo. Acompanhar o debate em torno da constituição do DSM V (a ser lançado em 2011) implica em considerá-lo neste contexto mais amplo e enxergá-lo como ‘instituição cultural’ mais do que um ‘manual de classificações’.

3.2 A singularidade, uma condição fundamental

Quando o DSM é considerado um instrumento compartilhado em uma determinada

sociedade, corre-se o risco da normatização do que há de mais singular no sintoma de cada

um, estruturalmente irredutível a qualquer tentativa de classificação.

Oscar Reymundo (2011, p.64) insere esta discussão no âmbito da clínica

contemporânea, enfatizando a prevalência atual do imperativo superegóico. Ele defende que

as classificações totalizadoras que excluem o singular estão fadadas ao fracasso:

Assim, do interior mesmo da lógica classificatória dos DSMs, que tenta levar adiante o sonho de um mundo harmonioso cientificamente controlado, vemos erguer-se o pesadelo comandado pelo supereu e próprio ao funcionamento dessa lógica. Afinal, essa lógica faz com que as classificações e a ordem pretendidas mostrem sua fragilidade perante o estrago do

124

imperativo do todos classificados, tratados e adaptados conforme a vontade do amo

contemporâneo (grifos do autor).

De acordo com Deffieux (1997/2008, p.201-202), ao contrário dos manuais

psiquiátricos que utilizam o diagnóstico de borderline para anular a complexidade dos casos

inclassificáveis, a psicanálise de orientação lacaniana insiste no continuum clínico neurose-

psicose, assegurado pela clínica borromeana. Por isso, em sua conferência de abertura da

Convenção de Antibes, Miller (1998/2005, p.199-204) define a clínica borromeana como

clínica fluída, porque ele analisa, retroativamente, o progresso ocorrido entre os anos de 1996

a 1998, ou melhor, desde a análise da clínica que surpreendia, passando pela emergência dos

casos raros, até chegar ao que é frequente, corriqueiro. Nesse terceiro tempo, isso pode ser

apreendido quando se toma a clínica a partir de todos iguais frente ao gozo, onde “tanto o

francamente psicótico como o normal são variações [...] da situação humana, de nossa posição

de falantes no ser, da existência do falasser”54 (IBIDEM, p.202, grifo do autor; tradução

nossa).

A orientação da psicanálise em relação à singularidade dos modos de gozar implica

uma discussão sobre o diagnóstico em psicanálise. Para abordar a questão, é preciso salientar

a importância do conceito de gradação. Seguindo os passos de Leibniz, Miller (1997/2008,

p.324) precisa que “clinicamente há uma gradação. Quando tentamos conceitualizar os casos,

nos vemos conduzidos a dizer que há mais ou menos, e não somente ‘há’ e ‘não há’”55, como

supõe a clínica psiquiátrica.

Portanto, temos duas perspectivas da clínica psicanalítica. Na nota da edição

castelhana de La psicosis ordinária, Geller (1998/2005, p.9) esclarece que na clínica

estrutural é comum manejarmos uma descontinuidade entre as estruturas neurose e psicose.

Essa delimitação oferece uma clareza em relação ao diagnóstico em psicanálise. Por outro

lado, na clínica borromeana, a aproximação do mais e do menos franqueados pela gradação

permite pensarmos em uma continuidade dos modos de gozo.

Determinado pelo caráter de continuidade e pela prevalência das modalidades de

gozo, Miller (2009/2010, p.3) afirma que o motivo que o levou a inventar o termo psicose

ordinária foi a rigidez da clínica estrutural que distingue neurose e psicose a partir da

referência ao único operador lógico do primeiro ensino lacaniano, ou seja, o significante

54 O trecho correspondente na tradução é: “Tanto lo francamente psicótico como lo normal son variaciones […] de la situación humana, de nuestra posición de hablantes en el ser, de la existencia del hablanteser”. 55 O trecho correspondente na tradução é: “clínicamente hay una gradación. Cuando intentamos conceptualizar los casos, nos vemos conducidos a decir que hay más y menos, y no solamente “hay” y “no hay” (tradução nossa).

125

Nome-do-Pai. Esta rigidez fazia com que alguns casos parecessem não responder às

categorias pensadas desde a ausência-presença daquele significante, mostrando uma fronteira

bastante espessa entre elas.

Segundo esse mesmo autor, essa noção não rompe com a fronteira que delimita as

estruturas clínicas. Ela é a invenção de um sintagma para provocar eco na clínica das psicoses

a partir de um questionamento sobre uma formalização essencialmente binária da clínica

freudiana – neurose ou psicose. Quando se toma a psicose ordinária pela via da clínica

borromeana, pode-se realizar um alargamento do diagnóstico das psicoses de tal forma que

possam ser incluídos alguns casos em que os sinais da estrutura não aparecem de forma clara.

Mesmo pensando em uma continuidade, Miller (IBID., p.20) insiste na delimitação

estrutural formalizada por Lacan. Ele enfatiza que a neurose é uma estrutura precisa que exige

a presença de alguns critérios como:

[...] uma relação com o Nome-do-Pai, não um Nome-do-Pai; devem encontrar algumas provas da existência do menos-phi, da relação com a castração, com a impotência e a impossibilidade. Deve haver – para utilizar os termos freudianos da segunda tópica – uma diferenciação nítida entre Eu e Isso, entre os significantes e as pulsões; um supereu claramente traçado. Se não existe tudo isso e ainda outros sinais, não é uma neurose, trata-se de outra coisa (grifos do autor).

Quando a dificuldade diagnóstica se impõe ao analista, é preciso:

[...] pesquisar todos os pequenos indícios. É uma clínica muito delicada. Frequentemente é uma questão de intensidade, uma questão de mais ou menos. Isso os orienta para o que Lacan chamou de ‘uma desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito’ (IBID., p.13).

A existência desta desordem, definida por Lacan em “De uma questão preliminar...”

(1959[1957-1958]/1998, p.565), foi retomada por Miller (2009/2010, p.13-19) como uma

característica das psicoses ordinárias. Por meio desta desordem ele evidencia alguns índices

clínicos de foraclusão que não se conclui em uma desordem central flagrante, tal como no

desencadeamento clássico de uma psicose extraordinária. Eles se tornam ferramentas clínicas

fundamentais na medida em que indicam uma abertura para novos modos de reconhecimento

de casos de psicose.

Quando se trata de uma psicose ordinária, essa desordem deve ser situada em relação a

uma tripla externalidade. Primeiro uma que localiza a forma que o sujeito se identifica com

uma função social: ela pode ser negativa – quando ele é incapaz de assumir essa função por

um desligamento ou por uma desconexão – ou positiva – quando ele investe de forma extrema

nessa posição, representando-se exclusivamente a partir dela. Segundo, a externalidade

126

corporal se refere ao “corpo como Outro para o sujeito”: nela, a desordem mais íntima do

sentimento de vida está velada por laços sociais artificiais que o sujeito inventa para prender-

se ao corpo. Terceiro, a externalidade subjetiva é experimentada pelo sujeito como uma

vacuidade de caráter não dialetizável, pois há uma fixidez na identificação real com o objeto a

como dejeto, que se inscreve fora de uma possibilidade metafórica. “Digo que é uma

identificação real, pois o sujeito vai na direção de realizar o dejeto sobre a sua pessoa.

Finalmente, pode defender-se disso através de um maneirismo extremo. Podemos ter então

dois extremos” (IBID., p.18).

Ao tomar estas três referências para definir uma psicose que não apresenta nem os

fenômenos elementares e nem uma sistematização delirante evidentes, Miller retoma um

trabalho que havia realizado em um seminário do Campo Freudiano proferido em Curitiba.

Nele Miller (1987/1997, p.227-228) havia enumerado alguns indicadores para a avaliação

clínica em casos em que há suspeita de psicose não desencadeada. São fenômenos que pré-

existem ao desencadeamento e solicitam um manejo clínico específico a fim de que a psicose

não se desencadeie, tais como: o automatismo mental concernente à irrupção de vozes; a

estranheza em relação ao corpo próprio caracterizadas pelas distorções temporal ou espacial;

e os transtornos concernentes ao sentido e à verdade do sujeito em relação às experiências

vividas, ou seja, a sensação de ausência ou mesmo de um laço desregulado com o outro.

Diante do impasse suscitado pelas psicoses ordinárias, o psicanalista deve fazer um

bom uso tanto da tripla externalidade quanto dos indicadores diagnósticos acima referidos.

3.3 O caso único e a arte do diagnóstico em psicanálise

A clínica de orientação lacaniana insiste em transmitir a necessidade de diagnósticos

precisos, bem fundamentados, sem jamais esquecer a perspectiva do caso único, do um por

um. O lugar ocupado pelo caso único em psicanálise remete à idéia do inclassificável na

medida em que inscreve sempre algo de irredutível no sintoma, que escapa a qualquer

classificação diagnóstica. Nesse sentido, o caso único pode ser considerado como o que há de

mais próprio à clínica psicanalítica.

Alguns conceitos nosográficos utilizados pelo discurso psicanalítico existiam antes

mesmo da clínica de Freud, e muitas categorias foram tomadas da psiquiatria do século XIX.

127

Os efeitos dessa apropriação foi a classificação do sujeito a partir do sintoma, engano

apontado pela clínica psicanalítica de orientação lacaniana.

Marie-Hélène Brousse (2008/2009b, p.2-3) defende que:

Fazer um diagnóstico é sempre considerado por Lacan como um ato que implica uma decisão que exige ser argumentada logicamente e confirmada do ponto de vista clínico. Justamente, porque determinadas categorias, tais como borderline ou ‘personalidade narcísica’, se revelam por si mesmas inoperantes para nós em termos de tratamento (grifo do autor).

Miller (2009/2010, p.15) se debruça sobre esta questão enfatizando que a noção de

psicose ordinária por si só não basta como uma classificação diagnóstica. Ao contrário, ela

deve ser acompanhada das categorias nosográficas clássicas de psicose postuladas por Lacan,

como a esquizofrenia, a paranoia e a melancolia.

Na perspectiva de vocês, trata-se de uma psicose ordinária. Uma vez que disseram que é uma psicose ordinária, tentem classificá-la de uma maneira psiquiátrica. Não digam simplesmente que é uma psicose ordinária; devem ir mais longe e reencontrar a clínica psiquiátrica e psicanalítica clássica. Se não fizerem isso – este é o perigo do conceito de psicose ordinária – é o que se chama um “asilo da ignorância”. Ele se torna então um refúgio para não saber. Ao falarmos de psicose ordinária, de qual psicose falamos?

Apesar de admitir a importância da classificação diagnóstica, Miller (2001/2006, p.20)

ressalta que as classificações possuem algo de relativo por serem fundamentadas em uma

verdade que varia de acordo com o discurso nas quais elas se inserem. O autor prossegue

dizendo que Lacan expressa o caráter de artificialidade das categorias diagnósticas inventando

um neologismo, varité (varidade), que expressa o nó entre a verdade, vérité, e a variedade,

varieté. Ao mesmo tempo em que essas categorias diagnósticas universais funcionam como

balizas e orientam a práxis, elas escondem o que existe de singular em cada caso.

Ao utilizá-las, o psicanalista deve saber manejá-las para decidir se uma regra se aplica

a singularidade de um determinado caso clínico. Ele deve estar atento para não utilizar o

diagnóstico como uma classificação restritiva à escuta do singular, buscando os princípios

individuais que possam orientar cada diagnóstico. Nas palavras de Miller (IBID., p.25):

O universal da classe, seja ela qual for, nunca está completamente presente num indivíduo. Como indivíduo real, pode ser exemplar de uma classe, mas é sempre um exemplar com uma lacuna. Há um déficit da instância da classe num indivíduo e é justamente por causa desse traço que o indivíduo pode ser sujeito, por nunca poder ser exemplar perfeito.

O caso único expressa a resistência do sujeito aos enquadramentos e classificações

comuns no discurso dominante da ciência, que escraviza o sujeito a um saber que ex-siste a

ele mesmo. É uma dominação pelo saber ao qual o sujeito só tem acesso através de um Outro

128

que se apresenta muitas vezes inacessível. É um exemplo típico do que se apresenta através

das quantificações em classes e métodos, e tampona o que existe de único em cada sujeito. Ao

tomar um caso como único a prática analítica resgata o que se mostra típico. Diante do

impossível de tratar, deve-se encontrar uma solução contingente que retire o sujeito das

classificações padronizadas.

No texto “Teoria de Turim: sobre o sujeito da Escola” (2000/2001, p.219), Miller

discute a frase lacaniana “O coletivo não é nada – o coletivo não é nada senão o sujeito do

individual”, que não se compara ao singular. E refere-se ao texto freudiano “Psicología de las

masas y análisis del yo” (1921/1993) mostrando que, “do ponto de vista freudiano, o ser

coletivo não é mais que uma relação individual multiplicada” (2000/2001, p.220). O coletivo

freudiano, os grupos, “se analisam como uma multiplicidade de relações individuais ao Um

do Ideal do eu”, sem deixar de enfatizar que: “o sujeito não é o indivíduo, não está no plano

do indivíduo. O individual é um corpo, um eu. O efeito sujeito que se produz aí, que perturba

as funções, está articulado ao ‘Outro’, ao grande Outro. É o que chamamos o coletivo, ou o

social”.

Mandil (2010, p.3) analisa esta questão, dizendo que:

Um contraponto a tudo isso decorre do desejo de Lacan, tal como interpretado por Miller, em sua Teoria de Turim: o desejo de separar o sujeito dos significantes mestres que o coletivizam, de isolar sua diferença absoluta, de cernir a solidão subjetiva, e também o objeto mais-de-gozar que se sustenta desse vazio e que por vezes o encobre.

Portanto, Miller (2001/2006, p.27) inscreve o diagnóstico no campo da arte. A arte do

diagnóstico acontece quando o analista julga um caso sem categorias ou classes

preestabelecidas, por saber que elas estão imersas no artificial de determinada prática

linguística. Nessa arte o analista não inclui o sujeito em uma categoria, mas se pergunta sobre

a aplicação de uma categoria em cada caso, pois o ser falante – parlêtre – mesmo estando

inscrito em uma classe ou categoria nunca as realiza completamente, por possuir algo de

específico e contingencial que sempre escapa à inscrição significante e o torna único.

É a clínica para nosso tempo. Podemos experimentar a surpresa e a volta da contingência. Neste mundo, um caso particular jamais é um caso exemplar de uma regra ou de uma classe. Somente há exceções à regra. Essa é a fórmula universal, paradoxal, é claro.

Agora podemos voltar a falar do diagnóstico tal como estou pensando. [...] o diagnóstico como uma arte. Como uma arte de julgar um caso sem regra e sem classe preestabelecida (IBIDEM).

Nessa direção, a noção de psicose ordinária proposta em 1998, na Convenção de

Antibes, tem por objetivo preencher um vazio semântico e circunscrever, mais do que

129

classificar, novas modalidades da posição subjetiva dos psicóticos. Em uma época em que as

categorias sofrem uma perda de potência pela falência de um operador universal, as

classificações perdem igualmente consistência. É no contexto dessa crise que se justifica esta

noção, que permite acolher as soluções encontradas pelos psicóticos diante das dificuldades

que experimentam na construção de laços sociais estáveis.

Essas soluções possuem um caráter de singularidade que as afasta de qualquer

possibilidade classificatória nas séries estatísticas utilizadas pela clínica objetiva, tal como as

psicoterapias e a psiquiatria. Laurent (2010/2011, p.128) afirma que “o campo da psicose

ordinária se justifica pela abordagem qualitativa que a psicanálise pode fazer, já que não é

objetivada em comportamentos avaliados e mensuráveis”. Nesta direção, o programa de

investigação sobre as psicoses ordinárias propõe novos termos com o intuito de cernir as

especificidades que esta noção oferece ao manejo do que há de singular em cada um, sobre o

qual a clínica psicanalítica se debruça.

3.4 Alguns elementos pertinentes às psicoses ordinárias

Para que os casos inicialmente considerados inclassificáveis fossem incluídos na

clínica estrutural formalizada por Lacan, foi necessária a determinação de novas ferramentas

teórico-clínicas que pudessem ser experimentadas em sua operatividade analítica. Três

termos surgiram na Convenção de Antibes: o neodesencadeamento, a neoconversão e a

neotransferência. Com eles não se pretendeu construir novas classificações ou desprezar as

anteriores, mas tentar incluir na experiência os casos que apresentavam dificuldades

diagnóstica. Vale ressaltar que esses termos não estão na Obra de Lacan, mas foram

consequência dos desdobramentos realizados pelos psicanalistas orientados pelo ensino de

Jacques-Alain Miller.

O primeiro deles, o neodesencadeamento, esclarece alguns fenômenos clínicos

distintos do desencadeamento clássico, enunciado por Lacan no texto “De uma questão

preliminar a todo tratamento possível das psicoses” (1959[1957-1958]/1998, p.584). Existem

diversas possibilidades de enlaçamento entre real, simbólico e imaginário sem recurso ao

operador Nome-do-Pai. Já que nas psicoses ordinárias se trata de descompensações e não de

desencadeamentos, o neodesencadeamento se torna uma ferramenta clínica importante já que

130

esse termo conserva certa continuidade entre fenômenos de desencadeamento claros e

fenômenos mais frouxos. Isso implica diretamente na direção do tratamento.

Na conferência sobre “La psicosis ordinaria”, Laurent (2006/2007, p.90) ensina que:

[...] a orientação do tratamento consiste mais em privilegiar o ponto de capitón, a escansão, as rupturas, para evitar ao sujeito a construção de um delírio, para que isto se mantenha ao nível desses fenômenos que aparecem como pedaços de real. Isto é, sem que tenha necessidade – para lançá-lo ao discurso geral, à língua comum – de constituir uma enorme construção delirante que separa o sujeito do discurso comum e que somente lhe permita recuperá-lo depois de um vasto percurso56 (tradução nossa).

A neoconversão, o segundo termo, esclarece os fenômenos do corpo não redutíveis ao

deciframento. Apesar de serem acontecimentos de discurso que deixam traços no corpo,

desorganizando-o, são fenômenos desprovidos de significação pela interpretação analítica.

Nesse sentido, eles exigem uma abordagem distinta das formações do inconsciente como

mensagem: ao invés de entendê-los como uma expressão do desejo no corpo pela via do

sintoma, trata-se de abordá-los tal como os fenômenos psicossomáticos e os acontecimentos

de corpo, ou seja, intervindo sobre o mais-de-gozar e sobre a letra.

Com a modificação do conceito de letra e a introdução do conceito de lalíngua, na

década de 70 a escrita ganha um novo suporte para a psicanálise. Se no primeiro ensino o

sujeito se escreve a partir da incidência do significante, a partir da nova definição de a letra –

“enquanto um literal que funda o litoral” (LACAN, 1971/2009, p.117) –, a escrita se torna

inaugural, ou melhor, Lacan a torna anterior ao significante. Ao mesmo tempo em que ela

escreve um litoral entre simbólico e real, ela denota um gozo-a-mais disjunto do campo do

Outro.

Por último, a neotransferência parte do pressuposto de que, em casos de psicose

ordinária, a operatividade do manejo clínico deve-se à posição do analista e à modificação do

algoritmo da transferência, estabelecido por Lacan (1967/2003) em “Proposição de 9 de

outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”. A criação do termo neotransferência

responde ao uso de uma lalíngua da transferência, uma cadeia significante que, embora sem

sentido, é capaz de realizar uma aparelhagem de gozo e possibilitar ao psicótico tecer o laço

social em direção à promoção de uma resposta estabilizadora.

56 O trecho correspondente na tradução é: “[...] la orientación de la cura consiste más bien en privilegiar el capitón, la escansión, las rupturas, para evitar a un sujeto la construcción de un delirio, para que esto se mantenga a nivel de estos fenómenos que aparecen como pedazos de real. Es decir, sin que haya necesidad – para arrojarlo al discurso general, a la lengua común – de constituir una enorme construcción delirante que separa al sujeto del discurso común y que solo le permite recuperarlo después de un largo recorrido”.

131

Apesar de esses três termos não terem se mantido nos textos dos autores lacanianos

que se dedicaram ao tema, trabalhamos cada um deles com as indicações estabelecidas na

Convenção de Antibes (1998/2006) e nos dois eventos precedentes57. Mesmo assim, todo o

esforço dos analistas de orientação lacaniana se justifica pela necessidade em reconhecer

índices mais discretos, quando uma psicose não se desencadeia de forma evidente. No lugar

desses termos, posteriormente Miller apresenta a desordem mais íntima experimentada pelo

psicótico e as três externalidades acima descritas.

3.4.1 Neodesencadeamento

No texto “De uma questão preliminar...” (1959[1957-1958]/1998, p.584), Lacan

ensina que o desencadeamento de uma psicose extraordinária acontece de forma brusca,

quando o lugar a ser ocupado pelo significante foracluído do simbólico é ocupado por Um-

pai, gerando remanejamentos na articulação significante-significado. O advento do

desencadeamento marca uma descontinuidade na história do sujeito e implica em uma ruptura

na qual o antes e o depois desta experiência não seguem uma mesma direção.

Dedicamos o item 2.2.1. desta Tese ao conceito de desencadeamento. Nele foi

enfatizado que, mesmo antes do desencadeamento, diversos índices de uma psicose podem ser

localizados, tais como os transtornos de linguagem, os fenômenos de franja e o momento

fecundo. O desenvolvimento desta discussão nos levou a distinguir as pré-psicoses e as

psicoses ordinárias. As primeiras pressupõem o desencadeamento como uma exigência lógica,

pois apenas a partir do desencadeamento pode-se localizar, retroativamente, uma

fenomenologia psicótica até então discreta. Ao contrário, as psicoses ordinárias permitem uma

dimensão temporal antecipatória e não retroativa. Isso traz consequências clínicas

importantes, pois o reconhecimento de uma psicose ordinária, ou mesmo de uma psicose antes

do desencadeamento, favorecem o manejo da transferência e a direção do tratamento no

sentido de evitá-lo.

Percebendo uma direção favorável à prática analítica, Miller (1998/2006, p.238)

propõe o neodesencadeamento como uma atualização do conceito de desencadeamento,

elaborado por Lacan na década de 50. Assim, logo no início de A Convenção de Antibes, em

57 Trata-se de O Conciliábulo de Angers sobre os Efeitos de surpresa nas psicoses (1996) e de A conversação de Arcachon que tratou de Casos raros: os inclassificáveis da clínica (1997).

132

busca de uma diferenciação entre o que ocorre nas psicoses extraordinárias e nas ordinárias,

ele define o desencadeamento característico do neodesencadeamento com o termo

133

Miller não retomou os termos psicose forte e psicose débil elaborados em A

Convenção de Antibes. Isto nos leva a crer que o prefixo pseudo foi uma ferramenta teórica

utilizada para sinalizar uma prótese nos casos em que o Nome-do-Pai está foracluído. Tal

prótese antecede os operadores da metáfora paterna – falo e Nome-do-Pai – e anuncia um

caráter de suplência que funciona para impedir a eclosão dos fenômenos elementares e

delirantes.

Anos depois, no texto “Efeito do retorno à psicose ordinária”, Miller (2009/2010,

p.28) utiliza outras ferramentas para abordar a mesma questão. A primeira delas é a

substituição dos termos desencadeamento e desenlace pelo termo descompensação. Em suas

palavras:

Há ‘descompensações múltiplas’ quando vocês têm um pattern repetitivo que é compensado ininterruptamente. Não falamos então de desencadeamento. Diz-se ‘desencadeada’ quando isso se produz de uma vez. Por outro lado, vocês têm o que pode ser chamado em termos desenvolvimentistas de ‘psicose evolutiva’. Vemos psicoses com um corte e psicoses com um declínio, quando se trata de um processo contínuo, de uma psicose evolutiva (grifos do autor).

Neste mesmo texto Miller (IBID., p.29) apresenta o chamado compensatory make-

believe (CMB) como um recurso de compensação que complementa a definição de

descompensação:

O CMB define uma possibilidade de compensação da foraclusão do Nome-do-Pai em casos em que uma psicose não foi desencadeada ou que está novamente compensada. Nessas casuísticas o desencadeamento pode ser localizado quando o make-believe, o “fazer-crer” é rompido. Depois, o sujeito pode se reorganizar tão bem quanto antes numa espécie de atividade compensatória (grifos do autor).

Vale notar que com o prefixo pseudo utilizado em Antibes, Miller trabalha a função de

compensação em referência à presença-ausência do Nome-do-Pai, operador único do primeiro

ensino de Lacan. Apesar do termo desenlace – também delimitado nesta Convenção – já

sinalizar a clínica borromeana, ao falar sobre descompensação e sobre o compensatory make-

believe ele evidencia as diversas possibilidades que estes elementos fornecem ao analista no

manejo clínico centrado nos modos de gozar e no sinthoma.

Articulando os dois ensinos de Lacan à categoria das psicoses ordinárias, podemos

afirmar, com Miller (IBID., p.22), que nelas o Nome-do-Pai está foracluído como em

qualquer psicose, mas alguma coisa funciona como um aparelho suplementar à foraclusão,

enlaçando os registros e estabilizando o sujeito em sua estrutura. Por esse motivo, uma

psicose ordinária parece uma psicose sem sintomas já que os fenômenos elementares, os

delírios e as manifestações de desenlace são bastante discretos. Por apresentar discretas

134

manifestações clínicas, se comparadas às psicoses extraordinárias, tal categoria soluciona

problemas diagnósticos decorrentes da prática analítica.

Tomando como referência a curva de Gauss, é possível apreender pequenos

descompensações no âmago de cada psicose ordinária, mesmo que elas jamais possam se

apresentar como uma psicose extraordinária. Mas é preciso ressaltar que nem toda psicose

ordinária apresenta desenlaces ou descompensações, ou seja, eles não são uma exigência

lógica para a localização dessa categoria. Miller considera que há “psicoses que apresentam

uma desordem no ponto de junção mais íntimo dos sujeitos que evoluem sem barulho, sem

explosão, mas com um furo, um desvio ou uma desconexão que se perpetua” (IBID., p.26).

Para esclarecer um pouco mais a especificidade dos desenlaces é preciso diferenciar

alguns termos utilizados na clínica borromeana, pois suplência, estabilização e invenção

possuem características distintas. Apesar de alguns autores equivalerem esses termos, a

clínica psicanalítica oferece diversos exemplos de que nem toda suplência leva um sujeito à

estabilização de uma estrutura. Além disso, acreditamos que essas diferenças elucidam as

diversas apresentações de uma psicose, o que novamente justifica a investigação sobre as

psicoses ordinárias.

No primeiro ensino de Lacan, o termo suplência aparece inicialmente articulado à

foraclusão do Nome-do-Pai. Em “De uma questão preliminar...” (1959[1957-1958]/1998,

p.588), ele apresenta a compensação imaginária do Édipo ausente e a metáfora delirante como

dois mecanismos capazes de suprir a Verwerfung inaugural por realizarem uma função

compensatória, uma suplência à foraclusão. Ou seja, neste momento a suplência está

articulada não somente ao Nome-do-Pai, mas também ao déficit simbólico típico das psicoses.

Já que neste período a metáfora paterna e a significação fálica eram os operadores lógicos

fundamentais, Lacan considerava que à neurose não cabia nenhuma suplência.

Vale notar que a definição de tal suplência vai se transformando no decorrer de seu

ensino, na medida em que estrutura psicótica e loucura começam a ser dissociadas. Apesar de

essa dissociação já ter sido realizada desde O seminário, livro 3: as psicoses (1955-

1956/1997, p.12), Lacan a evidencia no Seminário Nomes-do-Pai (1963/2005, p.58), onde

constata de forma inovadora a inconsistência do Outro e a falta de garantia do Nome-do-Pai

como único significante capaz de uma ordenação simbólica. O Nome-do-Pai é pluralizado e o

Pai se torna um nome entre outros. Assim sendo, Lacan introduz uma clínica em que o gozo e

o significante estão conectados de uma forma muito mais estreita do que anteriormente. Nessa

clínica, o enlaçamento dos três registros que sustenta a realidade discursiva do sujeito,

depende de uma invenção singular: o sinthoma.

135

De modo que o conceito de suplência deixa de ser apenas uma compensação ao

significante foracluído tal como na clínica estrutural, para se tornar, na clínica borromeana,

um enquadramento de gozo e uma localização da satisfação pulsional, necessários a qualquer

estrutura. Selecionamos alguns recortes que nos permitem acompanhar Lacan em seus

desdobramentos clínicos.

Em “RSI” (1974-1975, inédito), na aula de 11 de fevereiro de 1975, ele equivale a

suplência ao Nome-do-Pai: “[...] é porque essa suplência é indispensável que ela tem vez:

nosso imaginário, nosso simbólico e nosso real estão talvez para cada um de nós ainda num

estado de suficiente dissociação para que só o Nome-do-Pai faça nó borromeano e mantenha

tudo isso junto”. E acrescenta, na aula de 13 de maio de 1975, que a suplência é generalizada

a ponto de ser dissociada do Nome-do-Pai. Lacan esclarece que a referida dissociação só é

possível se ao invés de pensarmos o Nome-do-Pai como função paterna, a tomarmos como

nomeação.

Nomear faz suplência, enlaça os aros do nó e lhes fornece certa consistência. Isso

ocorre porque nomear é instaurar uma relação entre o sentido e o real, tal como ocorre em

relação aos registros: imaginário como inibição, simbólico como sintoma e real como

angústia. Essas nomeações determinam diferentes modalidades de suplência face ao fracasso

primordial do nó, fracasso que Lacan assinala em O seminário, livro 23 ao dizer que a função

do analista é ensinar o paciente a emendar, pois se trata, na análise, de suturas e emendas

(1975-1976/2007, p.71).

Nesse mesmo seminário (IBID., p.21), Lacan retoma a suplência pela via do sinthoma

que repara o rateio do nó de três elos. A partir da foraclusão do nó apontada nesse seminário,

e do enlaçamento dos registros por um quarto elemento – o sinthoma –, é possível, para cada

um, inventar uma solução singular a fim de suprir a foraclusão estrutural e restabelecer a

consistência do nó.

Ao falarmos sobre as suplências, o termo invenção ganha um relevo especial na

experiência analítica, na medida em que a articulação entre real, simbólico e imaginário não

possui uma medida comum que possa ser utilizada por todo ser falante. Na aula de 11 de

fevereiro de 1975 do seminário “RSI” (1974-1975, inédito), Lacan afirma que “a consistência,

para o falasser, para o ser falante, é o que se fabrica e que se inventa”. Nesse sentido,

Dominique Miller (2007, p.208), certamente referindo-se à clínica da neurose, aproxima

invenção e suplência ao dizer que “cada um tem que se fazer tolo de um pai de sua invenção”.

Para suprir a foraclusão originária a neurose inventa um pai, o Nome-do-Pai como sinthoma.

E nas psicoses, como articular estes termos?

136

De acordo com Skriabine (2008/2009, p.4), “se o Nome-do-Pai falha sempre, os

Nomes-do-Pai são numerosos para suprir a falha”. Nessa abordagem, o recurso utilizado pelo

sujeito na construção de uma solução a essa falta é secundário em relação à operação que a

realiza. Para além da suplência que permite a formalização do nó borromeano, existem outras

maneiras de o sujeito sustentar os registros por meio de nós que não possuem a característica

borromeana. Eles se revelam frágeis para protegerem o sujeito do real e do gozo, mas

oferecem recursos, soluções, para uma reparação do erro ou do lapso do nó.

Jacques-Alain Miller (1999/2003, p.14) destaca diferentes operações concernentes às

invenções psicóticas e assinala que nem todas tramam um sinthoma. A característica de uma

invenção sinthomática é a suplência em um ponto específico do nó que o faça operar de forma

borromeana, isto é, ou por meio do Nome-do-Pai ou do sinthoma.

O conceito de invenção não se aplica a toda psicose. É preciso certamente dar lugar – e é também interessante – a tudo o que é do registro da não invenção, ou seja, a todos os casos [...], nos quais vemos a presença do traumatismo da linguagem e o sujeito bloqueado por esse traumatismo, não chegando absolutamente a inventar a partir daí (IBIDEM).

Quando abordamos a questão das invenções sob o ângulo do sinthoma, de certa forma

estamos tratando da estabilização de um sujeito em sua estrutura. Marcus André Vieira (2011,

p.136) afirma, com Miller, que a estabilização na neurose vincula-se à produção de um ponto

de basta que estabeleça “uma ancoragem entre os nomes e o real”, tal como Lacan demonstra

por meio da metáfora paterna, cujo efeito de verdade é garantido pelo Nome-do-Pai. Quando

trata das psicoses, Lacan fala poucas vezes sobre estabilização. Ele se serve do termo para

pensar o caso Schreber, onde a metáfora delirante é via privilegiada para a estabilização, pois

a vertente do imaginário fixa um sentido ao real. Seguindo Lacan, Vieira propõe haver outras

formas de estabilização, além daquelas realizadas pela metáfora delirante.

Elisa Alvarenga (2000b, p.15) propõe que “a estabilização é uma operação que

circunscreve, localiza, deposita, separa ou apazigua o gozo, correlativa de uma entrada em

algum tipo de discurso, por mais precário que ele seja”.

Portanto, consideramos que uma suplência pode funcionar para estabilizar um sujeito

em sua estrutura, mas isso não é uma evidência que possa ser generalizada a ponto de permitir

uma equivalência entre os termos. Afinal, nem toda estabilização cria um enlaçamento de

forma consistente, uma suplência sinthomática. Ao contrário, certos enlaçamentos frágeis

comportam uma ameaça de se desfazerem diante de qualquer contingência.

Os conceitos de pluralização do Nome-do-Pai, a generalização da foraclusão e a

suplência que formaliza o nó com características borromeana e não borromeana possibilitam

137

abordar a clínica estrutural de uma forma distinta. O efeito dessa abordagem foi a

possibilidade de os analistas se orientarem em relação às psicoses ordinárias e a outros tantos

casos em que o diagnóstico não está claro. Eles puderam ser reinterpretados pela clínica

psicanalítica e pensados a partir do nó composto por quatro elementos. Afinal, a clínica

borromeana facilita a localização do elemento que impede o desencadeamento de uma

psicose, elucidando alguns casos em que os grampos que acertam o erro ou o lapso do nó

enlaçam os registros velando o aparecimento da foraclusão do Nome-do-Pai.

3.4.2. Neoconversão

A neoconversão é uma noção sugerida por Miller em A Convenção de Antibes, para

responder aos fenômenos de corpo não interpretáveis “ao menos não interpretável como a

conversão histérica” (1998/2006, p.241). Isso permite a suposição de que esses fenômenos

sejam sintomatologias contemporâneas não concernidas pelos enlaçamentos sintomáticos

edipianos ligados ao referencial do Nome-do-Pai.

A pergunta que direciona a investigação sobre a neoconversão foi formulada por

Laurent na conferência “La psicosis ordinaria” (2006/2007, p.89): “como um sujeito se

relaciona com um corpo que não é sustentado por um sintoma centrado no amor ao pai?”60.

Ele justifica a questão tomando como ponto de partida o enlace do nó, como ele diz, no

sentido de um broche:

A ideia era centrar-se mais no acontecimento de corpo como o momento de abrochamento, o ponto no qual se podem enodar para um sujeito a consistência RSI. Devemos considerar o fenômeno e a maneira pragmática com a qual devemos considerar que o sujeito faz com este surgimento de algo inédito, de algo que surge no corpo e que não se pode interpretar com o discurso constituído, e tomá-lo mais como uma possibilidade de construção, não tanto do delírio, mais sim do abrochamento (IBID., p.89-90; tradução nossa)61.

60 O trecho correspondente na tradução é: “¿cómo un sujeto se relaciona con un cuerpo que no es armado por un síntoma centrado en el amor al padre?”. 61 O trecho correspondente na tradução é: “La idea era más bien centrarse en el acontecimiento del cuerpo como el momento de abrochamiento, el punto en el cual se pueden anudar para un sujeto la consistencia RSI. Debemos considerar el fenómeno y la manera pragmática con la cual debemos considerar el sujeto hace con este surgimiento de algo inédito, de algo que surge en su cuerpo y que no se puede interpretar con el discurso constituido, y tomarlo más bien como una posibilidad de construcción, no tanto del delirio, sino del abrochamiento”.

138

A teorização do sintoma como gozo de corpo afetado pelo mais-de-gozar circunscreve

melhor as neoconversões. As consequências sobre a inexistência do Outro, tal como

introduzimos no início deste capítulo da Tese, precipitam novas formas contemporâneas do

sintoma. O Campo freudiano as considera desde o paradigma das psicoses ordinárias, pois

elas são estruturas cuja fragilidade simbólica e a forte adesão ao mais-de-gozar podem indicar

psicoses não desencadeadas, se forem interpretadas pela vertente do desencadeamento

clássico. Isso quer dizer que, se estivermos diante de uma psicose extraordinária, cabe falar de

não desencadeamento; caso contrário, quando se trata de psicose ordinária, a referência é a

descompensação ao invés do não desencadeamento.

O problema diagnóstico dos sintomas contemporâneos62 se deve à dificuldade em

lidar com o sujeito em análise, uma vez que, por se tratar de uma apresentação desmedida do

mais-de-gozar, não se detecta inicialmente o rastro do sujeito no sintoma. Então é preciso

fazer um deslocamento do sintoma não subjetivado para o sintoma analítico.

Carlo Viganò, em “Une nouvelle question préliminaire: l’exemple de la toxicomanie”

(2001, p.64), escreve que, nos novos sintomas, o sujeito:

[...] encontra, ao contrário, em uma letra, em um significante isolado e portador de gozo, a marca de identidade enquanto alternativa à articulação do desejo com a pulsão como Demanda do Outro. A toxicomania é uma letra que, em um dado momento da história do sujeito, vem se inscrever em seu corpo, sem por isso chegar a dividi-lo. Esta letra marca o objeto que não pôde aceder à montagem pulsional completa e que, consequentemente, não o separa do Outro e não se torna causa de desejo. Ao contrário, ele coloca em movimento uma identificação que se inscreve sobre a mesma superfície topológica onde se desenhou o percurso da Demanda do Outro63.

Isso reforça a definição de Miller de que a neoconversão não é uma nova modalidade

de conversão, mas sim a expressão de uma nova forma de funcionamento do corpo, pois o

sintoma contemporâneo não remete a nada, não se liga a nada, entrega-se ao gozo sem sentido

que não constitui um texto. Nos fenômenos de corpo marcados por essa especificidade,

encontramos uma relação entre o corpo e a linguagem que, deixando de lado o campo

metafórico, nos confronta com uma escritura que nem sempre se dá a ler. Trata-se, portanto,

62 Esta expressão está sendo utilizada no Campo freudiano para definir os sintomas que não comportam um efeito de sentido capaz de remeter os sujeitos a um saber inconsciente, pois eles, através desses sintomas, revelam um gozo inscrito no corpo que resiste à interpretação. 63 O trecho correspondente na tradução é: “Celui-ci trouve au contraire dans une lettre, dans un signifiant isolé et porteur de jouissance, la marque d’identité en tant qu’alternative à l’articulation du désir avec la pulsion comme Demande de l’Autre. La toxicomanie est une lettre qui, à un moment donné de l’histoire du sujet, vient s’inscrire dans son corps, sans pour cela parvenir à le diviser. Cette lettre marque l’objet qui n’a pas pu subir le montage pulsionnel complet, et qui par conséquent ne le sépare pas de l’Autre et ne devient pas cause de désir. Au contraire, il met en mouvement une identification qui s’inscrit sur la même surface topologique où s’est dessiné le parcours de la Demande de l’Autre”.

139

de considerar os modos particulares de aparelhamento com o corpo, com o real pulsional e

com a realidade dos órgãos.

Se esses fenômenos não se amarram pela significação fálica – tal como na histeria –,

que tipo de amarração fazem entre o imaginário do corpo, os furos da linguagem e os

fenômenos de gozo?

Podemos começar a responder a pergunta a partir das invenções que permitem ao

psicótico uma amarração ao corpo. Sobre isso Miller em A Convenção de Antibes diz que:

O uso do corpo no psicótico pode às vezes convergir em um uso que parece normal, ordinário, só que para chegar a isso deve empenhar um enorme esforço. Muitas vezes, o único que nos indica em que registro estamos é o enorme esforço de invenção, de invenção sob medida, quando para os neuróticos é de confecção. Isso marca uma diferença (1998/2006, p.255).

Essa fala nos leva a crer que as neoconversões, organizadas à margem do complexo

edipiano, podem ser consideradas invenções ou solução sintomáticas que possibilitam a

construção de um corpo. Sendo assim, nem o sintoma-mensagem e nem o mecanismo de

conversão explicam de forma satisfatória as neoconversões, que podem ser elucidadas de

forma mais eficiente pelas noções de acontecimento de corpo e dos fenômenos

psicossomáticos. A seguir, iremos falar sobre cada um deles sem esgotar o tema, os quais

mereceriam uma outra Tese.

3.4.2.1 O acontecimento de corpo como índice da neoconversão

Lacan formulou o conceito de sintoma como acontecimento de corpo em vários

escritos e seminários de seu segundo ensino. Iremos nos servir do percurso adotado por Miller

em três conferências que compõem o seminário internacional, ministrado em Belo Horizonte

no ano de 1999, e publicado com o título Elementos de Biologia Lacaniana (1999/2001). O

mesmo tema aparece expandido no seminário de “Orientação Lacaniana, 3,1”, que Miller

vinha desenvolvendo em Paris nos anos de 1998-1999. O texto “Biologia lacaniana e

acontecimento de corpo” (1998-1999/2004) compila as lições de maio e junho desse mesmo

seminário. Esse seminário foi publicado em 2004 pela Paidós com o título La experiencia de

lo real en la cura psicoanalítica (1998-1999/2004). No entanto, as duas primeiras publicações

serão as nossas referências nessa Tese.

140

Na primeira conferência, intitulada “As pedras e o lagarto”, Miller (1999/2001, p.13-

14) comenta que o título Elementos de biologia é irônico, pois a junção entre ciência e vida

que o significante biologia comporta é altamente problemática. Afinal, existem diversas

formulações sobre a vida que apontam àquilo que dela não pode se escrever, a ponto de a vida

ser aproximada do inconsciente no sentido de ser um não-conceito (Unbegriff). A biologia é

uma ciência cujo estatuto epistemológico é incerto, pois apesar de a epistemologia tentar

atingir a vida pela anatomia, pela física e pela química, nenhum estatuto é fixado em

decorrência dos sucessivos remanejamentos e deslocamentos da biologia.

Nessa conferência, Miller se detém nos temas da biologia e da vida para definir a

diferença entre as biologias freudiana e lacaniana. A primeira desemboca no mito, visto que

Freud recorre ao Eros de Platão; “pelo viés dessa suplementação da biologia frente ao mito

que ele inventa a sua pulsão de morte e a inscreve no mito, não conseguindo que ela tivesse

crédito no plano propriamente biológico” (IBID., p.14).

Se a questão de Freud gira em torno da possibilidade de dois corpos fazerem um,

Lacan, ao contrário, está intrigado com a reprodução da vida e em como um corpo pode fazer

dois. Quando se trata do vivo é preciso distinguir entre aqueles que têm e os que não tem

muita clareza de possuir um corpo, um corpo Um – questão central da biologia lacaniana. Em

O seminário, livro 20: mais, ainda (1972-1973/1985, p.195), Lacan fala sobre a afirmação

aristotélica em torno da existência do Um na natureza sob a forma de corpo. Lacan se opõe a

ela, ao dizer que o Um não se encontra na natureza, pois o Um é efeito do significante, e não

do Um do corpo. Ao que Miller esclarece: para que haja um corpo, “[...] é preciso que a

ordem simbólica já exista no mundo do homem, extraída da sua língua” (1999/2001, p.16).

O corpo Um é uma evidência imaginária que permite a identificação entre o corpo e o

ser vivo. Todavia, como o corpo depende da ordem simbólica, a questão não se coloca em

relação ao ser, mas sim em relação ao ter um corpo. A inscrição do sujeito na ordem

simbólica faz com que este não se identifique com o corpo, o que esclarece a afeição do

falasser pela própria imagem. No seminário desenvolvido em Paris, Miller (1998-1999/2004,

p.14) assinala que é na falha dessa identificação entre o ser e o corpo que o sujeito estabelece

uma relação de ter um corpo.

Por isso Miller diz em Belo Horizonte que o corpo vivo na psicanálise (1999/2001,

p.25) pode ser considerado, desde Lacan, a partir de duas vias: pelo significante e pelo gozo.

Na primeira, a noção operatória do sistema significante transforma o conjunto vazio em

sujeito do significante sem corpo, afinal, o significante como tal não goza, ele apenas

funciona. A primeira via destoa da segunda, onde a definição de corpo é diretamente

141

articulada ao gozo, tal como Lacan apresenta em O seminário, livro 20: mais, ainda (1972-

1973/1985, p.35):

Não é lá que se supõe propriamente a experiência psicanalítica? – a substância do corpo, com a condição de que ela se defina apenas como aquilo de que se goza. Propriedade do corpo vivo, sem dúvida, mas nós não sabemos o que é estar vivo, senão apenas isto, que um corpo, isso se goza. Isso só se goza por corporizá-lo de maneira significante.

Se na primeira via o corpo está mortificado pela incidência do significante, na segunda

o corpo vivo é a condição de gozo, pois o gozo é impensável sem o corpo. Como equacionar

essas duas vias? Miller (1999/2001, p.33) fornece uma pista ao dizer que “se o significante

tem um efeito mortífero é porque a vida precede esse efeito”.

Na segunda conferência de Belo Horizonte, intitulada “O corpo e a vida” (IBIDEM),

Miller está diante de duas formulações lacanianas que parecem opostas, pois Lacan

inicialmente enfatizou o significante como matéria inanimada e depois ressaltou que o mesmo

não é corporal, dando ênfase ao corpo vivo. Essa oposição decorre da evolução do

pensamento de Lacan que exige uma constante reformulação de conceitos e noções. A

primeira formulação lacaniana – a linguagem é corpo – está no texto “Função e campo da fala

e da linguagem em psicanálise” (1953/1998, p.302), onde Lacan afirma que “[...] a linguagem

não é imaterial. É um corpo sutil, mas é corpo”. A segunda formulação – o significante é

incorporal – está em “Radiofonia” (1970/2003, p.406): “O primeiro corpo [o simbólico] faz o

segundo [corpo biológico], por se incorporar nele. Daí o incorpóreo que fica marcando o

primeiro, desde o momento seguinte à sua incorporação”.

Para tornar as duas formulações compatíveis, diz Miller (1999/2001, p.40), é preciso

considerar que o significante corpo não possui o mesmo sentido nas duas passagens de Lacan.

Na primeira, onde linguagem é corpo, Lacan se refere à materialidade da linguagem e corpo

quer dizer matéria. Na segunda, na qual o significante é incorporal, o corpo é considerado

como corpo vivo. Na conferência de Belo Horizonte, Miller (IBID., p.41) resume essas duas

formulações da seguinte forma: “de um lado, o significante, a extensão e a matéria, se

reduzimos a matéria à extensão; de outro, do lado do gozo, o corpo e a vida”.

Tais considerações contribuem para discutir a noção de acontecimento de corpo,

fundamental para o tema das neoconversões nas psicoses ordinárias. Na terceira conferência,

“Biologia psicanalítica” (IBID., p.69), Miller retoma a perspectiva lacaniana do sintoma tal

como se encontra no texto “Joyce, o Sinthoma”: “deixemos o sintoma no que ele é: um evento

142

corporal” (LACAN, 1975/2003, p.565). Esta definição lógica só é possível quando o gozo é

considerado no sentido de satisfação de uma pulsão.

De acordo com o que Miller (1998-1999/2004, p.19) desenvolve em Paris:

Se o sintoma é uma satisfação da pulsão, se ele é gozo condicionado pela vida sob forma do corpo, isto implica que o corpo vivo é prevalente em todo sintoma. Eis o que está no horizonte do que chamo ‘biologia lacaniana’: a repetição da sintomatologia a partir dos acontecimentos de corpo.

O sintoma como acontecimento de corpo é conexo ao ter um corpo. Como falamos

anteriormente, o sujeito do significante não identifica o ser ao corpo, pois ele é remetido à

falta-a-ser que lhe é típica. Enquanto que o falasser reduz o corpo ao estatuto do ter. Ter um

corpo é equivalente à possibilidade de ter sintomas, justificando a definição de Lacan sobre o

sintoma enquanto um evento corporal.

No seminário de Paris (1998-1999/2004, p.50), Miller retoma a disfuncionalidade dos

sintomas e ressalta que os efeitos duradouros e permanentes que ela inscreve no corpo é

nomeada pelo significante traço. O autor define o acontecimento de corpo da seguinte forma:

Trata-se sempre, com efeito, de acontecimentos de discurso, que deixaram traços no corpo. E estes traços desorganizam o corpo. Fazem sintoma nele, mas na medida em que o sujeito em questão esteja apto a ler esses traços, decifrá-los. Isto, finalmente, tende a reduzir-se a que o sujeito encontre os acontecimentos que estes sintomas traçam.

Além disso, Miller (IBID, p.53) ensina que a articulação entre acontecimento e traço

havia sido realizada por Freud com o conceito de trauma. O processo do nascimento é o

acontecimento fundador do traço de afetação, pois ele suscita os mesmos signos físicos que

ocorrem na angústia. Esse traço é um desequilíbrio permanente que mantém no corpo um

excesso de excitação que não cessa de não se escrever. Apesar de Freud posteriormente negar

que o nascimento seja o protótipo da angústia – por acreditar que cada idade do

desenvolvimento apresenta uma angústia determinada –, Miller considera o trauma como uma

fórmula geral do acontecimento de corpo.

Ele acrescenta que, para Lacan, o núcleo do acontecimento traumático não está

relacionado a um acidente, tal como o nascimento para Freud. Trata-se da possibilidade

contingente do acontecimento, que deixa traços de afetação e abre a incidência da língua

sobre o corpo. A inexistência da relação sexual é o acontecimento lacaniano no sentido do

trauma, uma vez que ela deixa traços permanentes no corpo que são prevalentes nos sintomas.

Segundo Miller (IBIDEM), “isso quer dizer que não é a sedução, não é a ameaça de castração,

143

não é a perda do amor, não é a observação do coito parental, não é o Édipo que é o princípio

do acontecimento fundamental, traçador de afetação, porém a relação com a língua”.

Podemos perceber que a não existência da relação sexual proposta por Lacan, diminui

o efeito do afeto no corpo, tal como Freud formulou. O acontecimento de corpo pode ser

considerado também como efeito do trauma de lalíngua64 no corpo, pois esta inaugura,

concomitantemente, o acontecimento traumático, deixa traços perturbadores no corpo e

constitui o cerne do sintoma.

Os acontecimentos de corpo competem tanto ao campo da neurose quanto ao das

psicoses.

Na histeria, o gozo correlativo à pulsão sexual parcial é submetido ao recalque sob a forma de verdade. Nesse caso, é o corpo simbolizado que é tocado. Digamos que o acontecimento de corpo se produz no simbólico. Na psicose, consideramos que o gozo é submetido à foraclusão e que o acontecimento de corpo se produz no real, no ponto de um eclipse do saber do corpo (MILLER, 1999/2001, p.70).

Freud (apud MILLER, IBIDEM) sustenta que, no nível das pulsões parciais, o corpo

neurótico – habitado pelas pulsões de vida e de morte – é fragmentado em zonas erógenas

que, de acordo com os investimentos libidinais, são suscetíveis de serem erotizadas e se

automatizarem. Quando o eu recalca a pulsão e interdita seu acesso à consciência, esta deixa

de dominar o órgão agora entregue à dominação da pulsão recalcada. Como resultado do

mecanismo de recalque os acontecimentos de corpo se apresentam, frequentemente, como

limitações funcionais e inibições. Em Perspectivas dos Escritos e dos Outros escritos de

Lacan. Entre desejo e gozo, Miller afirma que “isso goza onde não fala, isso goza onde não

faz sentido” (2008/2011, p.97).

Nas psicoses, o destino da pulsão é concebido de forma distinta do recalque na

neurose. Segundo Miller (1998-1999/2004, p.56), a dimensão libidinal foi dissimulada em

“De uma questão preliminar...” (1959[1957-1958]/1998), visto que o ponto central desse

escrito é a irrupção do símbolo no real e a construção da alucinação como fenômeno de

comunicação. “O que poderia ser concernente ao sintoma como acontecimento de corpo não

está ausente, mas é minorado. O corpo está ali, mas Lacan deixa de lado” (MILLER, 1998-

1999/2004, p.56). Esse fato pode ser constatado pela interpretação lacaniana do milagre do

uivo e do apelo de socorro em Schreber. Apesar de serem fenômenos de sofrimento corporal

64 Nesta Tese respeitamos a utilização do conceito de lalangue, tal como aparece nas traduções, ora como alíngua, ora como lalíngua. Apesar de equivalentes, foram traduzidos de duas formas diferentes: a primeira em O seminário, livro 20: mais,

ainda (1972-1973/1985), e a segunda adotada após a publicação de Outros escritos (2003). No texto “Televisão” (1973/2003, p.510), há uma nota do editor que explica a modificação.

144

intenso, Lacan os considera, naquele momento, como um vislumbre da significação na

superfície do real.

Apesar de os fenômenos da psicose de Schreber serem tomados em termos de

significante e de significado, Lacan também se detém nos aspectos de dilaceramento e de

reconstrução do corpo schreberiano. Em “De uma questão preliminar...” (1959[1957-

1958]/1998), a vertente de interpretação do corpo é a articulação entre o estádio do espelho e

a metáfora paterna. A foraclusão do Nome-do-Pai e a ausência da significação fálica

produzem uma disjunção do simbólico e do imaginário, que acarreta a dispersão do gozo –na

neurose localizado e temperado pela metáfora paterna – em diferentes partes do corpo.

Quando o núcleo metafórico está foracluído, o imaginário retorna à sua lógica interna, tal

como se verifica nos fenômenos de regressão tópica ao estádio do espelho.

Posteriormente, em “Apresentação das Memórias de um doente dos nervos”

(1966/2003, p.221), Lacan acentua a dimensão do acontecimento de corpo em Schreber ao

dizer que: “[...] é o que de Deus ou do Outro com seu ser apassivado que ele mesmo respalda,

enquanto se empenha em nunca deixar que cesse nele uma cogitação articulada”. Ao

evidenciar a dimensão do gozo inscrita no pensamento, Lacan ressalta a polaridade sujeito do

significante-sujeito de gozo.

Miller (1998-1999/2004, p.62) sublinha o paralelismo e a equivalência que se

estabelece entre o “não cessar de pensar” e o “não cessar de gozar”, da qual decorre todo o

sofrimento de Schreber. Essa configuração, desenvolvida em O seminário, livro 20: mais,

ainda (1972-1973/1985), é uma correção do cogito cartesiano “eu penso, eu sou”, que conecta

o pensamento puro e o ser. Para Lacan, esta conexão não acontece de forma alguma, pois o

gozo impede que ela se estabeleça. Portanto, a correlação essencial entre o ser, o pensamento

e o gozo é o que sustenta o avanço lacaniano para além da matriz do estádio do espelho.

Essa correlação permite Miller desenvolver o acontecimento de corpo pelas noções de

significantização e de corporização. Para isso, é preciso refletir sobre a relação entre o corpo

e o significante.

Lacan tomou emprestado da linguística certa organização que o levou a supor uma

ordem no simbólico. A consequência desta ordenação é considerar o significante enquanto

matéria, captado na forma em que ele se materializa. Miller (1998-1999/2004, p.64) considera

que o significante como ordem é puro formalismo. La

145

em suspensão”. A equivalência entre significante e semblante coloca em questão o caráter

lógico do significante, que passa a ter sua materialidade a partir do corpo.

A possibilidade de o significante se materializar no corpo aparece de forma evidente

no sintoma histérico. A partir do conceito de falo, Lacan logiciza uma passagem em que a

inscrição do significante no corpo faz com que ele se torne significante do corpo. No texto “A

significação do falo (Die Bedeutung des Phallus)”, Lacan (1958/1998, p.696) diz que a cena

do inconsciente, eine andere Schauplatz, uma outra cena, deixa claro os elementos da cadeia

significante que são “elementos materialmente instáveis”; e que, apenas através das

substituições e combinações da metáfora e da metonímia, respectivamente, podemos notar a

estrutura de um sintoma.

De acordo com Miller (1998-1999/2004, p.64), o processo de significantização se

revela pela elevação de um elemento imaginário à ordem simbólica. Este processo é

esclarecido pela articulação realizada por Lacan entre a necessidade, a demanda e o desejo.

Trata-se da dialética significante do sujeito e do Outro em termos de mensagem e de

comunicação, que explicaremos adiante.

Miller (IBIDEM) considera esta articulação lacaniana como uma aplicação da

estrutura da significantização: ela se inicia com uma função de corpo da ordem da

necessidade, mas quando expressa em termos significantes, introduz uma demanda. No

entanto, devemos considerar que o processo de corporização torna negativo o efeito de

significantização, na medida em que a resposta do Outro à demanda não é signo do amor. Ao

introduzir as novas teorizações sobre a relação corpo-gozo, Lacan afirma, em O seminário,

livro 20, que “[...] o Gozo do Outro [...], do corpo do Outro que o simboliza, não é signo do

amor. [...] O amor, certamente, faz signo, e ele é sempre recíproco” (1972-1973/1985, p.12,

grifos do autor). E acrescenta (IBIDEM):

É mesmo por isso que se inventou o inconsciente – para se perceber que, o desejo do homem é o desejo do Outro, e que o amor, se aí está uma paixão que pode ser ignorância do desejo, não menos lhe deita toda a sua poja. Quando se olha para lá mais de perto, vêem-se as devastações.

O desejo, por sua vez, é um resto, é um objeto que está no corpo enquanto causa. Ele

revela o ponto em que falha a cadeia significante. Na edição francesa de O Seminário 20

Lacan (1972-1973/1975, p.91) diz que le a est un semblant d’être, ou seja, o a é um

semblante do ser (tradução nossa). E fornece um exemplo pela via da hainamoration, amódio,

148

localiza no limite das elaborações teóricas da psicanálise, por estarem no nível do real.

Fazendo referência à distinção freudiana entre libido do eu e libido do objeto, ele afirma que,

nesses fenômenos, o investimento da libido se faz sobre o órgão do corpo, e não sobre o

objeto, o que acarreta um curto-circuito na montagem pulsional.

Em O seminário, livro 3: as psicoses (1955-1956/1997, p.351-352), Lacan comenta

um caso clínico apresentado por Ida Macalpine e aproxima a estrutura psicótica e os

fenômenos psicossomáticos a partir da foraclusão do Nome-do-Pai. Em suas palavras: “é aí

que ela pôde ter a apreensão direta de fenômenos estruturados de modo bem diferente do que

se passa nas neuroses” (IBID., p.352). Tal como no seminário anterior, os fenômenos

psicossomáticos são localizados fora do campo das neuroses, o que justifica uma distinção

entre esses fenômenos e os sintomas.

Em relação às manifestações psicossomáticas da pele contidas no trabalho de Ida,

Lacan diz que: “[...] há não sei que impressão ou inscrição direta de uma característica, e

mesmo, em certos casos, de um conflito” (IBIDEM). Essa inscrição direta no corpo aponta

para a noção de escrita elaborada na “Conferência em Genebra sobre o sintoma” (1975/1998),

que discutiremos adiante. Por fim, Lacan prossegue exemplificando um evento corporal que

ocorre diante de uma data:

[...] um sintoma tal como uma erupção, diversamente qualificada dermatologicamente, da face, se mobilizará em função de tal aniversário, por exemplo, de maneira direta, sem intermédio e sem dialética alguma, sem que nenhuma interpretação possa marcar sua correspondência com alguma coisa que seja do passado do sujeito (1955-1956/1997, p.352).

Vale notar que, apesar de Lacan se referir ao FPS como sintoma, a continuação da

frase elucida que não se trata do sintoma-mensagem passível de decifração. Ao contrário, ao

complementá-la, ele indica uma característica fundamental desses fenômenos: eles podem

desaparecer definitivamente, sem que nenhuma intervenção específica possa explicar tal

acontecimento, justamente porque não mantém correspondência com a história do sujeito.

As elaborações posteriores de Lacan permitem entender que o súbito desaparecimento

desligado de uma intervenção, ou de uma interpretação, pode ser explicado pela ausência de

um endereçamento desses fenômenos ao campo do Outro. No texto “Algumas reflexões sobre

o fenômeno psicossomático” (1986/2003, p.88-89) Miller diz que, pela ausência de

endereçamento, tais fenômenos se apresentam como um limite ao processo analítico, pois

apesar de estarem relacionados à ação significante, eles escapam à regulação fálica. Isto é,

eles contornam a estrutura da linguagem e o desejo do Outro não é colocado em questão.

149

Em O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise

(1964/1998, p.215), Lacan utiliza os termos afânise e a holófrase para explicar os FPS. Ele

diz que “a psicossomática é algo que não é um significante, mas que, mesmo assim, só é

concebível na medida em que a indução significante, no nível do sujeito, se passou de maneira

que não põe em jogo a afânise do sujeito” (grifo do autor). E mais adiante ele acrescenta que

os fenômenos psicossomáticos se produzem “[...] na medida em que uma necessidade venha a

estar interessada na função do desejo [...], mesmo se não podemos dar conta da função afânise

do sujeito” (IBIDEM, grifo do autor). Em outra passagem desse mesmo seminário, Lacan

situa “[...] o que se deve conceber do efeito psicossomático. Chegaria até a formular que,

quando não há intervalo entre S1 e S2, quando a primeira dupla de significantes se solidifica,

se holofraseia, temos o modelo de toda uma série de casos – ainda que, em cada um, o sujeito

não ocupe o mesmo lugar” (IBID., p.224-225).

A que Lacan se refere quando diz “uma série de casos”? Trata-se da aproximação

entre a estrutura psicótica e os FPS, anunciada, mas não desenvolvida no Seminário 3 (1955-

1956/1997, p.352). Ele se refere à solidez significante que impede a dialética da estrutura da

linguagem. Nas psicoses, a solidez se manifesta no fenômeno de crença, e na psicossomática

ela se expressa por meio dos fenômenos de corpo.

Desde a criação do grupo GREPS – Groupe de Recherches sur la Psychosomatique –

ligado ao Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII, Miller e outros

psicanalistas lacanianos vêm fornecendo contribuições sobre os FPS.

No que se refere à contribuição de Miller, no seminário intitulado Extimidad (1985-

1986/2010), ele afirma que há duas maneiras de abordar os FPS: a partir da estrutura do

significante ou desde o objeto a. Miller alerta que, no ensino de Lacan, esses fenômenos são

apresentados apenas a partir da vertente significante, mas que é possível supor a vertente do

objeto a desde que o gozo se tornara um termo operatório na experiência analítica (IBID.,

p.157-158). Durante essa discussão, Miller menciona os termos afânise e holófrase utilizados

por Lacan no Seminário 11.

A primeira vertente, a da estrutura do significante, pode ser enunciada através do

matema X ◊ S1. Tal matema expressa que a formulação um significante representa o sujeito

para outro significante não pode ser verificada nos FPS. A dialética significante que advém do

binário S1-S2 e que possibilita a disjunção dos mesmos, desaparece, acarretando uma

solidificação – chamada por Lacan de holófrase – que faz existir apenas um ao invés de dois

significantes. Isto acarreta problemas à posição do sujeito que, pela função da afânise, cessa

de estar representado e não pode mais ser localizado (IBID., p.158).

150

Miller (IBID., p.161) avança dizendo que o significante único, característico da

holófrase ou da solidificação, é da ordem do traço unário, “[...] um significante que não se

articula com um sistema, mas que vale como uma insígnia”66. Ele ressalta que esse

significante também pode ser nomeado de hieróglifo, tal como Lacan fez na “Conferência em

Genebra sobre o sintoma” (1975/1998).

Nesta conferência, Lacan ensina que os FPS são da ordem da escrita que, em muitos

casos, não sabemos ler: “tudo se passa como se algo estivesse escrito no corpo, alguma coisa

que se oferece como um enigma” (IBID., p.13-14). Sra. Rossier, participante dessa

conferência, questiona Lacan ao dizer que ao invés de algo a respeito do escrito (d’écrit), ela

entende gritos (des cris). Ele responde dizendo que “um doente psicossomático é muito

complicado e assemelha-se mais a um hieróglifo do que a um grito” (IBID., p.14). Lacan

prefere utilizar o termo hieróglifo ao invés de grito, pois este último implica um chamado ao

Outro, diferente do primeiro que denota um escrito para não ser lido.

No curso Extimidad, Miller (1985-1986/2010, p.161) esclarece que hieróglifo é um

elemento figurativo utilizado por Lacan para qualificar a especificidade dos FPS. Esse termo

sinaliza a imaginarização do simbólico, ressaltado por Lacan na “Conferência em Genebra

sobre o sintoma” ao definir que “o psicossomático é algo que, de todo modo, no seu

fundamento, está profundamente arraigado no imaginário” (1975/1998, p.14).

Miller (1985-1986/2010, p.161) matemiza a imaginarização do simbólico como I( ).

Nesse parêntese vazio – onde deveria se inserir o A do matema lacaniano do Ideal do Outro,

I(A) – se insere a relação imaginária a-a’. Isso quer dizer que, se o matema I(A) evoca o

Outro como corpo pela via do simbólico, o FPS é profundamente enraizado no registro

imaginário. O corpo registra o que ocorre na vertente imaginária e faz emergir o gozo do

organismo no lugar em que deveria estar situado o Outro como corpo simbólico.

Em “Posição do inconsciente no Congresso de Bonneval” (1960a/1998, p.863), Lacan

distingue organismo e corpo:

O importante é apreender como o organismo vem a ser apanhado na dialética do sujeito. Esse órgão do incorporal no ser sexuado é aquilo do organismo que o sujeito vem estabelecer no momento em que se opera sua separação. É por meio dele que ele pode realmente fazer de sua morte objeto de desejo do Outro.

66 O trecho correspondente na tradução é: “[...] un significante que no se articula con un sistema pero que vale como una insignia”.

151

Miller (1986/2003, p.95) comenta que a topologia lacaniana inverte a crença do senso

comum, cuja tendência é considerar o organismo no interior do corpo. Para Lacan, ao

contrário, os limites de um organismo vão mais além de os limites do corpo, porque o

organismo comporta a libido extra-corpo, tal como o objeto a. Portanto, para Lacan (apud

MILLER, IBIDEM), a fórmula do organismo seria de “um corpo completado – o corpo mais

o órgão não corpóreo, que é a própria libido”. Miller (IBID., p.95-96) explica que a

psicossomática não responde a essa mesma formulação, pois a libido não é um órgão

incorpóreo, nesses casos ela se torna corporificada por meio dos FPS.

Lacan se pergunta: “[...] qual é a espécie de gozo que se encontra no psicossomático?

Se evoquei uma metáfora como a do congelado, é porque existe, efetivamente, essa espécie de

fixação. [...] é porque o corpo se deixa levar para escrever algo da ordem do número”

(1975/1998, p.14, grifo do autor). Ao destacar “algo da ordem do número”, Lacan avança um

pouco mais sobre o que o gozo tem de específico na psicossomática. Trata-se de um

ciframento que não passa pelo campo simbólico, nem pela significantização da letra e nem

pela subjetivação do desejo, pois ele está do lado do real do número e da contabilização do

gozo.

No seminário intitulado Los signos del gozo (1986-1987/2006), Miller desenvolve as

noções de número e de contabilização do gozo a partir da articulação entre o inconsciente e a

estrutura da linguagem, distinguindo a forma que ela se apresenta nos dois ensinos de Lacan.

No primeiro, o inconsciente estruturado como uma linguagem exige a articulação S1-S2 e a

consideração dos efeitos de sentido que ela acarreta.

Por sua vez, no segundo ensino, o inconsciente não é mais tomado unicamente pela

articulação significante, pois o significante é desprovido de sentido e se torna instrumento

para o gozo e não mais para a comunicação (IBID., p.327). A partir daí o inconsciente é

abordado pelo número, pela cifra, pelo que é contábil e que, apesar de pertencer à ordem

significante, está disjunto dos efeitos de sentido.

Em “Radiofonia” (1970/2003, p.418), Lacan ressalta que a contabilidade é um nome

do inconsciente em relação ao gozo: “fazer o gozo passar para o inconsciente, isto é, para a

contabilidade, é, de fato, um deslocamento danado”. O inconsciente como contabilidade

consiste em considerar o Um que sustenta o significante. Na passagem do gozo à

contabilidade resta o objeto a, o mais-de-gozar.

Considerar a contabilização do gozo nos leva a retomar a segunda vertente proposta

por Miller em Extimidad (1985-1986/2010, p.161), a vertente do objeto a. Seguindo Lacan,

ele afirma que, quando se trata de FPS, é preciso se deter na incidência da solidificação

152

significante sobre o gozo e o mais-de-gozar, pois eles imprimem o gozo no lugar do Outro

como corpo. Por efeito da solidificação significante, o objeto a reaparece metaforizado sob

forma incrustada no corpo. Portanto, não podemos falar nem de uma localização normal do

gozo sobre as zonas erógenas, tal como na histeria, e nem de uma completa deslocalização do

mesmo. Quando se trata de FPS, a localização do gozo está deslocada e ataca determinado

ponto do corpo.

Lacan (1975/1998, p.14) especifica o corpo do psicossomático como um “corpo

considerado como invólucro, como o que entrega o nome próprio”, que denuncia um

confronto entre o Nome-do-Pai e o nome próprio.

No item 2.3.1. desta Tese de Doutorado tratamos desse tema quando discorremos

sobre os efeitos da nomeação em uma estrutura. Ressaltamos que o reconhecimento de um

nome próprio depende da incidência direta do Nome-do-Pai, visto que, por ser um significante

puro, toda a problemática do nome próprio se resume à forma como cada um designa seu ser,

tanto em referência ao Nome-do-Pai, quanto a partir do eu. Lacan faz de Joyce o exemplo de

um nome próprio feito sem o Nome-do-Pai, mas que, apesar disso, realiza a compensação da

carência paterna. A obra joyceana incide sobre o nome próprio do autor, pois Joyce se dá um

nome de gozo com valor de nomeação, que comporta o que há de mais singular no sintoma.

Avançamos ao dizer que, tal como o nome próprio, os FPS inscrevem um significante

puro da ordem do número, que comporta um ciframento particular de gozo. Nesse sentido, é

preciso considerá-los como uma possibilidade de nomeação deste gozo que contorna a ordem

simbólica e transgride o circuito pulsional. Isso porque a principal diferença entre o sintoma e

o FPS é que, no primeiro, o Outro é a garantia da inscrição significante no corpo. Enquanto

que, no FPS, o próprio fenômeno caracteriza a forma como o sujeito contorna o Outro do

significante, pois o Outro é o próprio corpo e a inscrição é feita pelo corpo, uma vez que o

sujeito atesta o Outro pelo corpo.

Por este motivo, no texto “Algumas reflexões sobre o fenômeno psicossomático”

(1986/2003, p.97), Miller ensina que nos FPS encontramos dois pontos onde a metáfora pode

ser atacada: a metáfora paterna e a metáfora subjetiva. A primeira coloca em questão a

inscrição do Outro simbólico no corpo pela holófrase e pela gelificação significante expressa

pela afânise. Apesar de esses fenômenos serem ligados a efeitos de linguagem, eles estão fora

da subjetivação, o que dá testemunho, em algum grau, do fracasso da função paterna. Por isso,

diz Miller, nesses casos o inconsciente não é útil para transformar o fenômeno psicossomático

em sintoma e fazer com que o Outro em questão não seja apenas o corpo próprio.

153

Laurent (IBID., p.30) considera que “não há, propriamente falando, uma estrutura do

sujeito psicossomático, mas um gozo, que é um fenômeno de borda – quanto àquilo que, no

sujeito propriamente dito, é afetado pela estrutura”. Portanto, os FPS são interpretados pela

psicanálise como um limite quando se trata da estrutura da linguagem, pois eles concernem ao

real. Apesar de não possuírem uma determinação somática, marcam o corpo em curto-circuito

e fazem com que a disjunção entre S1 e S2 – que faz emergir o objeto a – desapareça.

Na clínica, é comum que a metáfora da gelificação significante se concretize em uma

holófrase, trazendo dificuldades na direção do tratamento. Muitas vezes, o psicossomático

busca uma análise pretendendo dissolver esses fenômenos, tratando-os como se fosse um

sintoma que responde à estrutura de linguagem. Mas, como um hieróglifo especial inscrito no

corpo, eles escrevem uma nova nominação aplicada sobre o corpo próprio como uma

assinatura do sujeito.

3.4.3 Neotransferência

A manobra transferencial é o grande desafio no tratamento das psicoses. Em busca de

novos operadores que esclarecessem as especificidades da transferência em alguns casos nos

quais a dificuldade do diagnóstico diferencial era patente, o programa de investigação sobre

as psicoses ordinárias estabelecido na Convenção de Antibes levantou a hipótese de que a

criação e o uso de uma lalíngua da transferência é um recurso que orienta a direção do

tratamento, pois permite o aparelhamento de gozo e facilita o psicótico tecer laços sociais.

O conceito de lalíngua67, ensinado por Lacan em O seminário, livro 20: mais, ainda

(1972-1973/1985, p.190), está articulado ao inconsciente e à linguagem e evidencia o real que

não cessa de não se inscrever e o caráter de singularidade que ele comporta. Ao relacionar

lalíngua e o inconsciente, ele distingue dois tipos de saber. Primeiro, um saber sobre lalíngua,

uma elucubração que advém dos S1s isolados de lalíngua cujo efeito fornece elementos de

comunicação necessários para fazer laços com o outro. Segundo, um saber-fazer com

lalíngua que escapa ao inconsciente estruturado como uma linguagem. Este saber-fazer com

denota um trabalho específico do falasser. Lacan ensina a utilidade de lalíngua: “se se pode

dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, é no que os efeitos de alíngua,

67 Reafirmamos o conteúdo da nota de rodapé nº 18 deste capítulo de Tese.

154

que já estão lá como saber, vão bem além de tudo que o ser que fala é suscetível de enunciar”

(IBIDEM).

Se lalíngua não se presta à comunicação, ela também não se mostra útil para o diálogo

e para o laço social. Portanto, ela deve ser diferenciada da linguagem que, na própria lógica

da constituição do falasser, é secundária em relação à lalíngua. Nas palavras de Lacan: “Se eu

disse que a linguagem é aquilo como o que o inconsciente é estruturado, é mesmo porque, a

linguagem, de começo, ela não existe. A linguagem é o que se tenta saber concernentemente

à função da alíngua” (IBID., p.189).

No texto “Teoria d’alíngua (rudimento)”, Miller (1974/1996, p.62) evidencia a

positividade dos efeitos de lalíngua sobre a linguagem. Diz que Freud descobriu uma

abordagem da linguagem a qual Lacan conferiu outro sentido pela dimensão de lalíngua.

“Dizer mais do que se sabe, não saber o que se diz, dizer outra coisa do que o que se diz, falar

para nada dizer, não são mais, no campo freudiano, as falhas da língua que justificam a

criação das línguas formais. São propriedades inelimináveis e positivas do ato de falar”. No

entanto, o que não pode ser eliminado do ato de falar é o mal-entendido, os equívocos

significantes, as homofonias e os neologismos atribuídos à lalíngua; elementos que indicam a

singularidade absoluta característica da invenção de um sujeito para nomear seu ser de gozo.

Beneti (2010, p.116) esclarece a importância do conceito de lalíngua nos escritos de

Lacan e acrescenta algumas considerações sobre a fala de Miller. Desde o início de seu

ensino, Lacan busca formalizar o conceito freudiano de libido. Na clínica estrutural o axioma

“o inconsciente é estruturado como uma linguagem” orienta esta formalização pelo

simbólico. A operação de castração simbólica mortifica a libido e deixa um resto de gozo não

significantizado, nomeado de objeto a. A partir daí, o Outro deixa de ser totalmente

simbólico e é marcado por uma barra, que designa um resto de real impossível de ser inscrito

pelas vias significantes. Para dar conta dessa operação, Lacan propõe um outro significante

com o estatuto de S1, chamado lalíngua, uma letra de fixação de gozo que escapa à operação

de castração simbólica e que o sujeito tenta recuperar como mais-de-gozar. Esta letra permite

um nome de gozo do sujeito, o sinthoma, expresso no matema S1,a.

Em Perspectivas do Seminário 23 de Lacan: O sinthoma, Miller explica que, pela via

do sinthoma, a linguagem fica reduzida à lalíngua. Essa redução pode ser localizada na

decomposição do discurso de Joyce, visto que ele fala para si e suspeita que aquilo que vem

do Outro seja apenas fabricação. Esse exemplo indica que um sujeito sem endereçamento ao

Outro traz consequências importantes para a posição do analista e pode elucidar sobre novos

manejos específicos da neotransferência em casos de psicose ordinárias:

155

Assim, estamos seguindo em direção à palpitação mais íntima da experiência analítica, ali onde a própria fala perde a sua função de comunicação, de informação, de transformação, para ser tão somente, eu dizia, a palpitação de um gozo que deixa o analista, se ele acede a essa posição em sua prática, interditado (2006-2007/2009, p.77).

Como assinala Miller, a utilização de lalíngua como ferramenta essencial para o

manejo da transferência em casos de psicose interdita a posição do analista enquanto sujeito

suposto saber. Na experiência clínica com as psicoses ordinárias, a modificação do lugar do

analista – ou seja, a destituição do sujeito suposto saber como lugar privilegiado – em casos

pode ser esclarecida por Miller (2006, p.11-12) pela distinção de três sujeitos supostos saber.

O primeiro é o analisante, suposto saber ao menos o que o leva a um analista. O segundo é o

analista, pois lhe é suposto saber responder às formações do inconsciente pela via da

interpretação. O terceiro é o inconsciente enquanto uma potência de cifração, ao mesmo

tempo em que diz algo, inscreve um obscuro e opaco manejado pela transferência. Portanto, a

suposição de saber que inscreve o analisante em uma análise não pode ser o que motiva a

transferência nas psicoses, pois nesses casos o saber se mantém do lado do psicótico e

inviabiliza a clássica posição do analista.

Na Convenção de Antibes, Miller (1998/2006) avança em relação à neotransferência e

retoma o algoritmo da transferência proposto por Lacan na “Proposição de 9 de outubro de

1967 sobre o psicanalista da Escola” (1967/2003, p.253).

S Sq

_______________ s (S1, S2,... Sn)

Miller admite uma dificuldade em considerar a neotransferência como uma

generalização do algoritmo lacaniano, porque nele, Lacan escreve a parceria analista-

analisante a partir do significante. A articulação do significante da transferência com um

significante qualquer, Sq, supõe a particularidade do sentido fornecido no binário inicial S1-S2.

Sendo assim, a transferência é um efeito de significação desse binário, uma significação de

saber que inaugura o sujeito suposto saber. Desta forma, conclui-se que a formulação da

transferência apresentada na “Proposição” é válida somente para a clínica das neuroses e não

responde às dificuldades da clínica das psicoses.

Para esclarecer sobre as especificidades em casos de psicose ordinária, na Convenção

de Antibes foi proposta uma modificações do algoritmo da transferência (1998/2006, p.141).

Miller as pontua e mostra as fragilidades ali constituídas (IBID., p.280). A mais importante

156

decorre do fato de a transferência ser abordada como um efeito da articulação entre S1-S2,

como foi dito acima, o que traz uma dificuldade de o algoritmo abarcar lalíngua, que precede

logicamente ao estabelecimento da relação significante exigida pela transferência. Assim, a

saída encontrada pelos analistas que trabalhavam sobre esse tema foi a substituição dos

significantes do saber suposto por lalíngua. De modo que na experiência psicanalítica, a

neotransferência permite que o psicótico invente e ensine uma lalíngua da transferência, pois

ele é “alguém para quem a relação com o saber está fundada em uma relação com lalíngua”

(IBID., p.170, grifo do autor). Nesses casos, o desejo do analista deve permitir um saber-fazer

do psicótico com a própria lalíngua e uma elucubração de saber sobre ela (IBID., p.145).

Miller destaca que lalíngua funciona como um saber suposto para o analista e não para

o psicótico, pois é o primeiro quem deve aprendê-la. Quando lalíngua é disponibilizada no

dispositivo analítico, ela perde o estatuto de um saber suposto e se torna um saber exposto.

Neste momento é preciso que o analista esteja atento ao manejo da transferência, pois o saber

exposto facilita a intrusão do semelhante e o desencadeamento de fenômenos delirantes e

persecutórios. No Conciliábulo de Angers, Miller (IBID., p.56) esclarece que “com o saber

exposto não se pode praticar a análise, é certo. Só se pode praticar a análise a partir do saber

suposto”. No entanto, acrescenta que “o sujeito psicótico é precisamente um sujeito exposto.

Suas perturbações dependem do fato de que na esfera mais íntima de seu pensamento, até nas

partes de sua própria anatomia, ele está invadido por uma presença” (IBID., p.55).

Ao utilizar lalíngua como uma ferramenta de comunicação no manejo da

neotransferência, o analista deve sempre lembrar que, a rigor, pela própria constituição de

lalíngua, ela não se presta a esta finalidade. Portanto, o analista deve aprender a lalíngua do

paciente e fazer dela uma forma de resposta, e não de diálogo (IBID., p.276). Afinal, ela

“capta o fenômeno linguístico no nível onde ninguém compreende nada” (IBID., p.289), pois

“alíngua é feita de aluviões acumulados com os mal-entendidos e com as criações da

linguagem de cada um” (IBID., p.135, grifo do autor).

Nas discussões da Convenção de Antibes Miller (IBID., p.286-288) ressalta que, a

partir do Seminário 20, Lacan realiza uma decomposição do conceito de linguagem em duas

partes correlativas: como lalíngua e como laço social. Para Miller, a invenção de lalíngua

acentua o que escapa às normas sociais inscritas na estrutura da linguagem. No entanto, o

discurso do mestre impõe uma normalização de lalíngua como linguagem comum. Esta

decomposição da linguagem esclarece que quando o psicótico evidencia uma afetação no

nível do laço social com o Outro através de transtornos de linguagem e da predominância do

uso de significantes fora do sentido, ele está essencialmente conectado à lalíngua. Ao

157

contrário dessa normalização social, a neotransferência orienta a direção do tratamento nos

casos de psicose ordinária no sentido de valorizar os significantes que sinalizam “algo que

está fora do sentido: onomatopéia, cifra, marca” (IBID., p.134).

Segundo Marcelo Veras (2010, p.59), o psicótico é um trabalhador incessante que

busca localizar e fixar o gozo sem apoio da função normativa do significante fálico. Esse gozo

anômalo, chamado por Lacan de gozo do Outro, possui um estatuto especial, na medida em

que ele não é submetido a nenhum enquadramento e a nenhuma lei. Nas psicoses, esta

localização pode ser feita tanto pela significação delirante – que implica bascular o gozo para

o campo do Outro, exilando ali o gozo ameaçador que assola o sujeito – quanto pelo corpo

próprio – com a invenção de órgãos de gozo que funcionam como suplências em um corpo

que onde não ocorreu a extração do objeto.

Desde o Conciliábulo de Angers (1996/2005, p.281) o tratamento das psicoses –

posteriormente nomeadas ordinárias – enfatiza que o trabalho analítico deve permitir a

limitação do gozo geralmente insuportável nas psicoses, seja pela inscrição de um ponto de

basta qualquer que o detenha, seja por sua localização no corpo ou no Outro social. Nenhuma

das soluções praticadas nesses casos orienta o analista à nova significação que articula o

significante isolado (S1) com outro significante (S2), e produza um saber ligado ao Outro da

linguagem.

Essas elaborações colocam em relevo uma clínica pragmática que não faz da

elaboração delirante a via única à estabilização na psicose. Ao contrário, elas implicam em

atender os diversos modos de desenlace do sujeito com o Outro e levam os analistas a

considerarem não só os encontros que desencadeiam os fenômenos de gozo, mas também

aqueles que eventualmente permitem um recurso de compensação, mesmo temporário, que

torne suportável a relação do sujeito com seu corpo e com o Outro.

Concluímos que, seja pelo sem-sentido de lalíngua da transferência, ou por meio da

orientação pela metáfora delirante, o importante à clínica das psicoses é restituir ao falasser a

lógica de sua invenção, percebendo qual é a melhor ferramenta que propicie a limitação do

gozo e permita um enlaçamento mínimo dos registros que mantenha a conexão com o Outro

social.

3.5 Do Um ao múltiplo

158

A categoria da psicose ordinária expressa uma modificação nas modalidades de

apresentação das psicoses. Para a psicanálise de orientação lacaniana, esta diferença é

consequência do declínio da função paterna e da elevação do objeto a ao zênite social, ou

seja, do predomínio do objeto sobre o ideal. No seminário El Otro que no existe y sus comités

de ética, Miller (1996-1997a/2005, p.364) disse que “há uma decadência da função do ideal e

uma promoção da função do mais-de-gozar”.

No século passado, os ideais funcionavam como moderadores do modo-de-gozar de

determinada cultura. No século atual eles já não predominam nas organizações sociais como

anteriormente, o que é diferente de dizer que eles tenham desaparecido, pois o objeto a está

cada vez mais em evidência. Tendlarz (2007/2009, p.13), em seu livro Psicosis, lo clásico y lo

nuevo, diz que isso decorre do fato de o ideal que temperava o gozo ter sido substituído por

uma multiplicidade de ideais que não produzem identificações orientadoras. Essa é uma

questão atual na psicanálise de orientação lacaniana, pois ela permite circunscrever com mais

rigor os fenômenos clínicos atuais e a expressão dos sintomas contemporâneos, que fazem

com que alguns casos pareçam inclassificáveis em relação à clínica estrutural do primeiro

ensino de Lacan.

Esta mesma autora – no artigo “O inclassificável”, que faz parte da coletânea de textos

publicados em A variedade da prática: do tipo clínico ao caso único em psicanálise (2007,

p.27) – enfatiza que estes casos inclassificáveis surgem em um momento específico, no qual a

inexistência do Outro é sentida de forma evidente e nunca antes vista. Ou seja, na atualidade,

o predomínio do objeto de gozo sobre o Ideal acarreta uma pluralização de S1 da qual derivam

identificações frágeis. Portanto, constata-se que para lidar com os efeitos do declínio social da

imago paterna e da inconsistência do Outro, os sujeitos recorrem a identificações imaginárias

que funcionam como suplências face ao déficit simbólico. Este processo é a expressão dos

sintomas contemporâneos cada vez mais frequentes na clínica e que se tornam o ponto de

partida para a discussão da categoria de psicose ordinária como um recurso clínico.

Em “Os complexos familiares na formação do indivíduo”, Lacan (1938/2003, p.62)

adverte sobre o declínio da sociedade paternalista que estava por vir: “se ficou evidente na

análise psicológica do Édipo que ele deve ser compreendido em função de seus antecedentes

narcísicos, isso não quer dizer que ele se funde fora da relatividade sociológica”. Anos mais

tarde, em “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, ele

(1960/1998, p.827) acrescenta que “o Édipo, todavia, não pode manter-se indefinidamente em

cartaz em formas de sociedade nas quais se perde cada vez mais o sentido da tragédia”. Na

década de 70, em “Le séminaire, livre XXI: les nos-dupes errent” (1973-1974, aula de

159

19/03/1974, inédito) volta a mencionar a mudança histórica a qual somos confrontados no

discurso do mestre, dizendo que no espírito do tempo, alguma coisa mudou: o Nome-do-Pai

se transformou em nomeação de uma função e revela efeitos sobre os sujeitos.

No texto “A psicose ordinária à luz da teoria lacaniana do discurso”, Marie-Hélène

Brousse (2008/2009b, p.3) ratifica esta questão dizendo que:

Como o discurso do mestre se modifica no curso da história – o que é uma forma de dizer que o laço social se modifica – o mundo que nos fala e que nós falamos, também se modifica. As grandes vias do simbólico mudam. Em consequência os sintomas que, de certa forma, completam o discurso, também se modificam; sintomas que revelam a potência do que chamamos gozo em relação a cada discurso.

Segundo Éric Laurent (apud BROUSSE, IBID., p.5), a psicose ordinária se caracteriza

pela não resposta aos significantes-mestres tradicionais, manifestando o fim do poder do

Nome-do-Pai enquanto único significante da lei simbólica. Se tomarmos como eixo o declínio

do Nome-do-Pai na cultura associado à pluralização dos nomes e à foraclusão generalizada,

encontramos um deslocamento do eixo da classificação clínica e a emergência dos sintomas

contemporâneos.

Em O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-1970/1992, p.153), Lacan já

havia dito que a passagem do discurso dominante na contemporaneidade – do discurso mestre

ao discurso da ciência associado ao capitalismo – acarretou consequências no tipo de soluções

ou suplências encontradas pelos psicóticos para fazer face à foraclusão do Nome-do-Pai.

Jacques Borie (1998/2006, p.46-47) comenta esta elaboração lacaniana na Convenção

de Antibes, dizendo que o discurso do mestre sustentava a prevalência da solução psicótica

pela metáfora delirante. No entanto, o discurso da ciência que divide a figura do Outro em

uma diversidade de insígnias, possibilita o tratamento do gozo pela via da letra, mais do que

pela significação.

Nessa mesma Convenção, Laurent (IBID., p.224) alerta que “a psicose ordinária é a

psicose da época da democracia”, pois cada um tem a possibilidade de apresentar de forma

democrática seu estilo pessoal de tratamento de gozo contando com menos suportes retirados

da organização coletiva dos modelos sociais. Esse argumento está embasado na pluralização

do Nome-do-Pai, tal como Lacan descreve em “RSI”: do Nome-do-Pai aos nomes do pai. A

direção ao múltiplo define a passagem do poder de um elemento organizador de todos os

outros a um enxame, uma multiplicidade não centralizada em torno de um só elemento – S1:

do Um ao múltiplo.

160

O programa de investigação sobre as psicoses ordinárias é vetorizado por uma série de

elementos que revela a passagem do Um ao múltiplo. No texto “La psicosis ordinaria”,

incluído no livro Cómo se enseña la clínica?, Laurent (2006/2007, p.83-84) enfatiza que a

passagem ao múltiplo franqueia a leitura das psicoses de forma mais ampla, ou seja, tanto pela

via do significante quanto pelo par ordenado S1,a. Na primeira via, a inscrição do significante

Nome-do-Pai delimita as categoria neurose-psicose de maneira clara, pois os mecanismos de

recalque e de foraclusão acarretam efeitos de disjunção. Por outro lado, o par ordenado

possibilita a pluralização do funcionamento dos significantes mestres, que permitem o sujeito

funcionar fora dos discursos estabelecidos pelo Nome-do-Pai. As consequências dessa

passagem para a experiência analítica foram evidentes.

A valorização do S1 sozinho, sem decifração, oferece novos instrumentos para

pensarmos a psicose ordinária, pois ele permite interrogar não apenas os fenômenos

elementares, mas também a relação de sujeito com suas suplências. Isto porque, segundo

Borie (1998/2006, p.221), constata-se na clínica que a resposta dos psicóticos

contemporâneos é tratar esse S1 isolado em seus efeitos de gozo. Sendo assim, o tratamento do

gozo não se faz mediante a reconstrução da cadeia S1-S2, ou por meio de a metáfora delirante,

mas sim a partir da letra, do significante enquanto não significa nada.

Não é raro que uma metáfora delirante oriente a vida, os atos e os laços sociais de um

sujeito sem que não se perceba o que pertence ao patológico. Apenas uma escuta atenta pode

ser capaz de localizar a posição subjetiva do sujeito e aquilo que lhe permite funcionar sem a

sustentação da metáfora paterna. A emergência destas singularidades impele o psicanalista a

um questionamento clínico sobre o princípio ético do diagnóstico.

3.6 As consequências do aforismo “Todo mundo é louco”

Lacan reafirma os postulados da clínica borromeana a partir do aforismo “todo mundo

delira”. No momento em que ele o pronuncia – “Lacan a favor de Vincennes!” – tratava-se de

uma situação política delicada devido à transferência do local de seu ensino na Universidade

de Paris VIII, de Vincennes para Saint-Denis, e da pressão que o discurso universitário fazia

sobre a psicanálise. Por isso, Lacan fala que dentre os quatro discursos tomados a partir da

verdade, “só o discurso analítico é exceção” (1978/2010, p.31), mesmo que ele não seja

universal e nem se transforme em matéria de ensino. A questão frisada por Lacan naquele

161

momento refere-se ao fato de Freud, mesmo tendo tentado ensinar o que não se ensina,

constatou que “nada é apenas um sonho, e que todo o mundo (se tal expressão pode ser dita),

todo o mundo, é louco, ou seja, delirante” (IBIDEM).

Lacan depreende de Freud o “todo mundo é louco, ou seja, delirante”, a partir da

leitura sobre os sonhos, especificamente ao fato de que “nada é senão um sonho”. Para Freud,

o sonho é contingente – ora se sonha, ora não. Mas Lacan o generaliza – sonhamos sempre – e

articula os princípios de prazer e de realidade ao sonho e ao despertar, respectivamente. No

“Curso de Orientação lacaniana III, 10. Todo mundo é louco” (2007-2008, aula de

11/06/2008, inédito), Miller ressalta que “só se desperta para continuar a sonhar [...] esse

sonho que não é somente aquele de todo mundo, é o sonho de sempre”. Deste modo, “todo

mundo sonha” e “todos loucos, delirantes” são equivalentes, visto que ambos têm como

referência o gozo.

Apesar de Freud nunca ter se detido diretamente sobre a universalidade do delírio,

podemos encontrar em seus artigos algumas alusões ao tema. Falamos sobre o assunto no

item 1.1. dessa Tese de Doutorado. Quando discutimos a dificuldade inicial de Freud em

delimitar o campo das neuroses do das psicoses, mencionamos algumas passagens nas quais a

os fenômenos delirantes também estão evidentes na neurose. Por exemplo, no “Manuscrito H”

(1895b/1994), mesmo considerando que seja um texto sobre a paranoia, ele dissocia a loucura

do campo exclusivo das psicoses. Em “El delirio y los sueños en la ‘Gradiva’ de W. Jensen”

(1907[1906]/1993, p.37), Freud inscreve uma loucura ordinária comum aos neuróticos, e em

“Introducción del narcisismo” (1914a/1993, p.92) ele constata a presença do supereu no

delírio de sermos vigiados, tão frequente em casos de neurose.

Selecionamos dois outros fragmentos que atestam a presença deste tema em Freud. O

primeiro destaca uma aproximação entre fantasia e delírio por meio do saber que se adquire

em um processo analítico. No texto “‘Pegan a un niño’. Contribución al conocimiento de la

génesis de las perversiones sexuales” (1919/1994, p.192), ele apresenta os três tempos

gramaticais da fantasia, enfatizando a localização da libido e a conexão do sujeito com o

Outro. Nessa formulação lógica, aproxima as estruturas clínicas da fantasia e do delírio,

dizendo: “não me surpreenderia se em algum momento se demonstrasse que essa mesma

fantasia é base do delírio querelante paranoico”68. Vale notar que o segundo tempo da fantasia

é obtido por uma construção de um saber em análise, que adquire o estatuto de verdade

inconsciente para o sujeito.

68 O trecho correspondente na tradução é: “No me asombraría que alguna vez se demostrara que esa misma fantasía es base del delirio querulante paranoico”.

162

O segundo fragmento versa sobre o caráter delirante do senso comum compartilhado

pela humanidade em determinada cultura. Em “Construcciones en el análisis”, um dos últimos

textos de sua Obra, Freud toca em algo que se assemelha ao delírio generalizado69 pelo viés

da cultura: “se considerar a humanidade como um todo e a puser no lugar do indivíduo

humano isolado, descobre que também ela desenvolveu formações delirantes inacessíveis à

crítica lógica e que contradizem a realidade efetiva” (1937b/1993, p.270; tradução nossa)70.

Por sua vez, em diversos momentos, Lacan esclarece sobre “o que há de delirante no

homem normal” (1955-1956/1997, p.60). No texto “Formulações sobre a causalidade

psíquica”, ele diz que “o ser do homem não apenas não pode ser compreendido sem a loucura,

como não seria o ser do homem se não trouxesse em si a loucura como limite de sua

liberdade” (1946/1998, p.177).

Em O seminário, livro 3: as psicoses (1955-1956/1997) existem outras passagens

dignas de nota. Ao abordar o caso Schreber, Lacan conclui que “até aqui, nosso delirante não

delira mais do que um setor extremamente extenso da humanidade, para não dizer que ele é

co-extensivo a ela” (IBID., p.81). Um pouco adiante, ele afirma que os neuróticos, tanto

quanto os psicóticos, reconhecem em si mesmos a existência de realidades, algumas

particularmente ameaçadoras. Mas o que os distingue é o fato de os neuróticos jamais

levarem a sério a maior parte de seu discurso interior, pois “a certeza é a coisa mais rara para

o sujeito normal” (IBID., p.90). Portanto, adverte Lacan, “ser psicanalista é simplesmente

abrir os olhos para essa evidência de que não há nada mais desbaratado que a realidade

humana” (IBID., p.99).

Com os elementos da clínica borromeana, Miller (1988/1996, p.190) propôs uma

clínica irônica “fundada sobre a inexistência do Outro como defesa contra o real”. Significa

dizer que a função de defesa do discurso tem por objetivo rechaçar o gozo que se intromete no

simbólico, apesar de aí ele não poder ser articulado. Para exemplificar, Miller diz que, para o

esquizofrênico, o simbólico não serve para evitar o real porque eles se equivalem: “se não há

discurso que não seja de semblante, há um delírio que é do real, e trata-se do delírio do

esquizofrênico. É daí que se pode construir o universal do delírio” (IBID., p.192). Por isso, a

69 Este tema foi vislumbrado por Freud em vários textos: “Carta 57” (1897/1993, p.285); “Psicopatología de la vida cotidiana” (1901/1993, p.248-249); “El porvenir de una ilusión” (1927/1993, p.44); “Sobre la conquista del fuego” (1932/1993, p.177); e “Moisés y la religión monoteísta” (1939/1993, p.125-126), além dos textos já citados nos capítulos 1 e 3 desta Tese. 70 O trecho correspondente na tradução é: “Si uno toma a la humanidad como un todo y la pone en lugar del individuo humano aislado, halla que también ella ha desarrollado formaciones delirantes inasequibles a la critica lógica y que contradicen la realidad efectiva”.

163

clínica universal do delírio só pode ser proposta a partir do ponto de vista do esquizofrênico,

pois ele não pode ser apreendido em nenhum discurso e em nenhum laço social. A ironia do

esquizofrênico mostra que o Outro do saber não existe e que o laço social é um engano, na

medida em que não há discurso que não seja semblante.

Partindo do postulado da clínica irônica, Miller assinala dois pontos importantes que,

em certos momentos, são interpretados separadamente. Por um lado, a foraclusão restrita à

psicose, que advém da não inscrição do significante Nome-do-Pai e dos efeitos do retorno no

real do que não foi simbolizado pela função significante. Por outro, a foraclusão generalizada,

ou seja, o delírio equivalente ao todos loucos, que difere do todos psicóticos. Neste sentido, é

preciso distinguir o delírio como fenômeno clínico relacionado à incidência subjetiva, desse

outro de caráter transestrutural, que leva o predicado generalizado.

Na conferência “La invención del delirio” (1995/2005), Miller explica que o fenômeno

elementar indica a presença do S1 isolado da cadeia, ou seja, um significante cujo significado

é enigmático. Isso permite que ele assemelhe o fenômeno elementar a “uma metonímia

imóvel” – que fixa o sujeito, impede o deslizamento significante e produz um estado de

confusão difusa – ou a uma “metáfora impotente”, cuja fixação absoluta não permite nenhuma

construção de sentido (IBID., p.93).

No enigma algo é reconhecido como significante, mas seu sentido não pode ser

enunciado. Em sua fala de abertura do Conciliábulo de Angers, Jacques-Alain Miller diz que

no “primeiro tempo, se reconhece que há significante, que isso quer dizer algo. No segundo

tempo é para enunciar o que isso quer dizer, e quando não se pode, é o enigma” (1996-

1997b/2005, p.21). Lacan denomina essa pura intencionalidade do significante de significação

de significação e determina a certeza como seu produto, pois quanto menos se sabe sobre o

que o significante quer dizer, mais se sabe que ele quer dizer algo, apesar da impossibilidade

de enunciá-lo. Portanto, a impossibilidade que impede a passagem do significante ao

significado na psicose revela a emergência do Outro barrado, /A , sob a forma de fenômenos

de angústia.

O S1 isolado coloca em xeque a articulação entre significante e sentido, pois para que

haja significação é necessária a articulação significante. Isso permite Miller concluir que o S2

enquanto saber é um delírio, cuja função de defesa diante do real do gozo evidencia a verdade

explícita no texto delirante. No “Curso de Orientação Lacaniana, III, 10. Todo mundo é

louco” (2007-2008, 11/06/2008, inédito), Miller explicita a relação entre saber e delírio por

meio de um matema:

164

Ele pode ser lido da seguinte forma: o delírio já começa com o saber, quando o

significante sozinho, S1, se articula a um outro significante, S2, produzindo o efeito de

significação, s, que é equivalente ao delírio, dl.

A frase de Miller “todo saber é delírio e todo delírio é um saber” (1995/2005, p.94),

contida naquela conferência permite elucidar o aforismo todos loucos:

O binômio fenômeno elementar-delírio responde à tentativa de diferenciar elementos que por sua vez formam parte do discurso comum; são elementos comuns a todo ser falante. Essa é a forma de generalizar o conceito de delírio. Dado que o eu de cada um é delirante, um delírio pode ser considerado uma acentuação do que cada um leva em si e que é possível escrever como: deliryo (IBID., p.81, grifo do autor; tradução nossa)71.

O universal do delírio evidencia que o laço com o real só é possível por meio da

função interpretativa de S2. Diante disso, “o psicótico se apresentaria como o delirante que

não retrocede diante da elaboração de saber [...], com o elemento de delírio que sempre há

nessa invenção”72 (IBID, p.94). Ao contrário, o neurótico, apoiando-se na substituição

significante própria ao retorno do recalcado, traz consigo o S2 de que necessita para decifrar e

entender os enigmas sem perplexidade. Ou seja, o que no neurótico surge naturalmente,

implica um trabalho de elaboração de saber não tão natural nas psicoses. Podemos lembrar o

que foi dito anteriormente sobre a invenção de todo falasser, quer seja neurótico ou psicótico.

Nas palavras de Miller (IBID., p.93):

Inventamos o operador especial, operador de perplexidade, e assinalamos que é a situação normal do ser humano enquanto efeito do significante, o que leva todo sujeito a se enfrentar, a ter que decifrar um significante. Isso é coerente com a teoria de Lacan que indica que a estrutura se revela na psicose e que devemos dar conta do véu neurótico (tradução nossa)73.

71 O trecho correspondente na tradução é: “El binomio fenómeno elemental-delirio responde al intento de diferenciar elementos que a su vez forman parte del discurso común; son elementos comunes a todo ser hablante. Esta es una forma de generalizar el concepto de delirio. Dado que el yo de cada uno es delirante, un delirio puede ser considerado una acentuación de lo que cada cual lleva en sí, y que es posible escribir como: deliryo”. 72 O trecho correspondente na tradução é: “[...] el psicótico se presentaría como el delirante que no retrocede ante la elaboración [...] con el elemento de delírio que hay siempre en esta invención”. 73 O trecho correspondente na tradução é: “Inventamos el operador especial, operador de perplejidad, y señalamos que es la situación normal del ser humano en tanto efecto de significante, por cuanto todo sujeto se enfrenta a tener que descifrar un significante. Esto es coherente con la teoría de Lacan que indica que la estructura se revela en la psicosis, y que debemos dar cuenta del velo neurótico”.

165

O recurso ao Nome-do-Pai é o grande diferencial das neuroses no que diz respeito às

recorrentes interpolações da experiência enigmática e da perplexidade. Vale notar que, no

“Suplemento topológico a ‘Uma questão preliminar...’” (1979/1996, p.124), Miller explicita

uma equivalência entre metáfora paterna e metáfora delirante. Ambas se fundamentam na

lógica do significante que, em sua articulação, engendra uma estrutura de funcionamento

fechada, disjunta da realidade. Portanto, o próprio funcionamento da metáfora gera um saber,

S2, que permite entender o delírio generalizado.

No texto “Lacan com Joyce” (1996/2010, p.54-55), Miller resgata o matema da

metáfora paterna, NP(x), para elucidar que, no segundo ensino de Lacan, o Nome-do-Pai

deixa de ser um nome próprio e se torna apenas um predicado definido na ordem simbólica,

um elemento com a propriedade de ser Nome-do-Pai, dentre muitos outros que podem

funcionar como tal. Desta pluralização Miller recolhe outras consequências. Alguns anos

depois, ao investigar sobre as psicoses ordinárias, ele acrescenta que o Nome-do-Pai como

predicado “é um substituto substituído [...] uma espécie de make-believe do Nome-do-Pai, um

compensatory make-believe (um fazer-crer compensatório) do Nome-do-Pai, um CMB”

(2008/2010, p.12), função de compensação que aponta à universalidade do delírio.

De forma que o aforismo “todo mundo é louco, ou seja, delirante”, tem um estatuto de

bússola orientadora da leitura do último ensino de Lacan. A presença-ausência do Nome-do-

Pai indica uma direção na clínica estrutural e demarca de forma clara a neurose e a psicose.

Ao contrário, este aforismo da atualidade evidencia um não-orientável desde a ordenação do

Nome-do-Pai e permite continuidade entre as estruturas, na medida em que a resposta singular

diante do indizível é uma construção, ou seja, não passa de um delírio. Isto marca uma

reviravolta em relação à tese inicial da metáfora paterna (MILLER, 2007-2008, aula de

04/06/2008, inédito).

Marcus André Vieira, em “Da ironia à invenção” (2009, p.102), observa que o

significante delirante inscrito naquele aforismo aponta ao que Freud chama de defesa:

“assume-se que todos os discursos que nos dão vida são defesas do ponto de vista do real”.

Retomando a leitura de Miller, este autor avança dizendo que é preciso ironizar este fato,

afinal, “não há ponto de vista do real”. Ou seja, ao utilizar a palavra para fazer existir o que

não há, todo discurso evidencia o estatuto de ficção da realidade que ele cria, produzindo um

efeito de generalização do delírio.

Entendemos que o aforismo “todo mundo delira” é uma provocação que aponta para o

que cada falasser mantém como verdade, conceitualizado nos escritos de Lacan por meio de

os conceitos de lalíngua e sinthoma, além do que pode ser deduzido desses escritos como

166

foraclusão generalizada. Isso porque, todo ser falante, ao recorrer ao simbólico para articular

o real inserido em sua constituição, elabora um sentido que desliza infinitamente na

articulação significante. Tal infinitização demonstra que a referência última é vazia e que a

constituição de sentido nada mais é que um delírio.

Nessa via, a função do sintoma como modo de gozo singular se torna um ponto

decisivo da experiência analítica. Na medida em que sentido e real se opõem, o delírio é

apreendido em uma positividade, pois delirar equivale a estar distante do real. No texto

“Clínica irônica” (1988/1996, p.199), Miller adverte: “diante do louco, diante do delirante,

não se esqueça de que você é, ou de que foi, analisando, e que, você também falava do que

não existe”.

Ao tomarmos o axioma lacaniano “Todo mundo é louco, ou seja, delirante”, é preciso

esclarecer que o “todo mundo”, ao invés de indicar o normativo a todos, ao contrário, marca o

que há de mais íntimo em cada um, pois não há sentido comum que sirva a todos. No livro

Perspectivas dos Escritos e Outros escritos de Lacan (2008-2009/2011, p.84-85), Miller

explica que, para enfatizar o que escapa ao comum, ou seja, o “singular em seu absoluto”,

Lacan parte da escrita de Joyce e inventa o sinthoma. Este conceito inscreve o que está

situado para além de toda ficção discursiva, visto que ele é um resto incurável e uma invenção

inédita de cada um frente ao real. Miller prossegue: “Lacan acreditou ter percebido e

mostrado isto: há sinthoma em cada um”.

Contudo, tal como definimos no item 2.3.3 dessa Tese, há diferentes apresentações do

sinthoma. Tal como Joyce, alguns se identificam ao próprio sinthoma a ponto de o singular

irredutível apagar o particular: “Joyce encarna o sinthoma”, diz Lacan em O seminário, livro

23 (1975-1976/2007, p.85). No entanto, outros recobrem o sinthoma com insígnias retiradas

do senso comum, o que faz com que a singularidade não seja tão evidente.

Podemos exemplificá-lo com Lol V. Stein, personagem do livro O Deslumbramento

(Le ravissement de Lol V. Stein) (1964/1986), de Marguerite Duras. No terceiro capítulo da

dissertação de Mestrado intitulada “Sobre as ressonâncias do amor na clínica psicanalítica”

(TIRONI, 2006), trabalhamos esse livro articulado ao texto de Lacan “Homenagem a

Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein” (1965/2003). O que importa aqui é a

descrição de Duras sobre a forma como Lol se ocupava da organização da casa, estipulando

horários rígidos e uma arrumação impecável. Os cômodos estavam arrumados como vitrines

de lojas e o jardim era como todos os daquela cidade. Lol imitava o que via, repetindo “todos

os outros, o maior número possível de outras pessoas” (DURAS, 1964/1986, p.24).

167

Em O seminário, livro 23, Lacan (1975-1976/2007, p.15) aborda a diferença entre a

identificação com o sinthoma, como fez Joyce, e a identificação com o social, como em Lol

V. Stein, nomeando-os de sinthoma herético e de sinthoma ortodoxo, respectivamente. Vale

notar que Lacan já havia falado sobre isso, mesmo que em outros termos. Em O seminário,

livro 3: as psicoses (1955-1956/1997) ele lembra que a filosofia já se interessava pela questão

da loucura e que Pascal fez com que se levasse a sério: “sem dúvida há uma loucura

necessária, que não ser louco da loucura de todo o mundo seria ser louco de uma outra forma

de loucura” (IBID., p.26).

Podemos articular essas duas formas de apreensão do sinthoma ao que Miller fala

sobre “A salvação pelos dejetos”74. Ele assinala a diferença entre a salvação pelos ideais

clássicos, pelo que se eleva e resplandece enquanto glória da forma, como a virtude, e a

salvação pelos dejetos, pelo que cai, caput mortuum, na medida em que o dejeto é in-forme,

“ele prevalece sobre uma totalidade da qual ele é só um pedaço, uma peça avulsa”

(2009/2010a, p.20).

Um dos pontos importantes de sua fala é a consideração assinalada por Lacan, a de

que a paranoia, além de ser uma patologia, é também a essência de toda personalidade: “é

impossível ser alguém sem ser paranoico” (IBID., p.22). Nesse sentido, Miller fala sobre a

paranoia de uma forma mais ampla, presente no sujeito desde o estádio do espelho. E

acrescenta que essa “paranoia moderada” repercute no laço social: “se o laço social é por

essência paranoico, então, a dificuldade de se inserir é da ordem da debilidade. Isso se

chamarmos de debilidade o deslizamento subjetivo do discurso até à posição fora do discurso

que a psiquiatria fixou com o termo ‘esquizofrenia’” (IBID., p.23).

Na comunicação apresentada na primeira noite preparatória para o V ENAPOL,

ocorrida em 23/09/2010, em Buenos Aires, Leonardo Gorostiza extrai “Nueve puntuaciones

sobre ‘La salvación por los desechos’” (2010, p.1). Ele afirma que a sublimação é a via pela

qual a cifragem, ou seja, o singular de cada um, pode ser conectado ao discurso do Outro e

integrado ao laço social. Esse mecanismo permite que o dejeto seja elevado à dignidade da

Coisa, tal como Lacan elabora em O seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-

1960/1997). Além de poder ser inscrito no campo do Outro, a cifragem ganha o estatuto de

salvação, na medida em que ela é o meio de escape à “paranóia moderada” comum a todos.

Isso permite Gorostiza resumir que a salvação não se dá pela via dos ideais, mas pela

74 Conferência pronunciada em 2009, durante o IV Encontro Europeu do Campo Freudiano (PIPOL 4), realizado em Barcelona sob o título “Clínica y pragmática de la (Des) Inserción en psicoanálisis”.

168

cifragem da loucura que cada um inventou ao se confrontar com o troumatisme da não relação

sexual e que faz do falasser “todos delirantes”.

Em “Clínica irônica” (1988/1996, p.191), Miller havia enunciado que o universal

embutido na generalização do delírio, “todos delirantes”, atesta que a normalidade também é

delirante, seja qual for a estrutura clínica a que se faz referência, pois há uma foraclusão que

se coloca para todo ser falante e em relação à qual todo discurso é defesa contra o real. Em

“A psicose no texto de Lacan” (1995/1999), ele avança: “chamo delírio uma montagem de

linguagem construída sobre um vazio. E digo: todo mundo delira. Essa é a perspectiva que

chamo de delírio generalizado”. Na décima oitava lição do “Curso de Orientação Lacaniana,

III, 10. Todo mundo é louco”, Miller (2007-2008, 11/06/2008, inédito) afirma que este

aforismo significa dizer a mesma coisa que o sujeito é feliz.

Éric Laurent retoma essa questão no texto “O tecido da fantasia (ou A culpabilidade

do fantasma)” e a exemplifica dizendo que a felicidade é um elemento privilegiado no delírio

da vida cotidiana, pois ele é um ideal contemporâneo que “fala para todos e quer dizer tudo”

(2008/2009a, p.27), tal como falamos acima sobre o S1 enquanto significante elementar.

Em “O delírio de normalidade” (2010/2011, p.102), esse mesmo autor ressalta que a

felicidade é um modelo proposto pelo discurso do mestre contemporâneo e implica um gozo

classificatório marcado pela quantificação. De modo que, esses ideais do mestre

contemporâneo e o discurso da ciência, surgem como poder da razão cognitiva. E incidem

sobre a língua comum encobrindo o sintoma, que se revela como o singular do sujeito.

Entendemos que, se lalíngua é o elemento que denota o singular do falasser, então a proposta

do ideal da ciência é a tentativa de adequação de lalíngua ao discurso comum, como se isso

fosse possível.

No Curso “Todo mundo é louco” (2007-2008, aula de 16/01/2008, inédito) Miller diz

que o discurso da quantificação só pôde exercer sua força em função do desenvolvimento do

discurso da ciência. Nesse contexto se pode compreender o dito de Lacan em seu ultimíssimo

ensino: a psicanálise deve ser uma prática sem valor, ou seja, ela é uma prática que deve

escapar à escala de valores e ao discurso da quantificação. “Tudo isso, porém, repousa sobre o

fato de que atualmente não se está mais certo de que algo exista a não ser se esse algo for

cifrável”, pois a cifra é convocada a recobrir todos os aspectos da existência, ela vale como

garantia do ser.

Nesse mesmo curso, na aula de 14/11/2007, Miller havia articulado os efeitos do

discurso da ciência sobre o objeto a, objeto que consiste na produção do desejo de cada um e

que tem um endereçamento específico. A partir do momento em que o discurso do capitalista

169

associado ao discurso da ciência sobredeterminou a civilização, há uma produção do objeto a

baseada no gozo e caracterizada pela indiferenciação do objeto em prol de sua numeração, da

série de repetição do modo de gozar que, muitas vezes, aparece sob o aspecto da adição. Ele

funciona como tampão, um “tapa furo” de algo que não se pode fechar e em relação ao qual o

sujeito não pode se defender. Apesar de terem uma mesma estrutura fundamental, o objeto a

tampão nada tem a ver com o desejo. Isso o leva a concluir que “há um defeito de construção

na espécie humana. Nós o chamamos castração, é seu nome clássico, inteiramente

fundamentado, mas podemos generalizá-lo. Alguma coisa foi mal trabalhada na espécie

humana”.

No recente livro intitulado Loucuras, sintomas e fantasias na vida cotidiana, Éric

Laurent (2008/2011, p.51-52) enfatiza o que escapa ao empuxo à cifra do discurso da ciência

contemporânea:

Quanto mais forem globalizados os ideais da civilização, quanto mais comuns os espaços de civilização que antigamente estavam separados, quanto mais for proposta uma norma para todos em um utilitarismo sem limite, mais precisaremos lembrar que todo mundo é louco. Isso significa que cada um é um obstáculo à norma de todos, que existe sempre um “x”, que é obstáculo ao “para todos” e isso é cada um de vocês, cada um constitui uma exceção à norma.

Ao abordar o “delírio da normalidade”, Laurent (IBID., p.45) ressalta que diante dos

sintomas contemporâneos e dos novos ideais de normalização do Outro social, a psicanálise

aplicada teve grande êxito, a ponto das novas normas se tornarem um sintoma dentro do

próprio Campo freudiano. A direção do tratamento colocava acento na fixação de um

significante mestre e no efeito de ordenação que ele causava, em detrimento do irredutível do

sintoma. Na primeira lição do seminário “Coisas de fineza em Psicanálise” – publicado como

Perspectivas dos Escritos e Outros escritos de Lacan (2008-2009/2011, p.13) – Miller

denuncia que a tentativa de seduzir o mestre fez com que os psicanalistas ficassem seduzidos

pelos novos ideais contemporâneos.

Em Loucuras, sintomas e fantasias na vida cotidiana (2008/2011, p.52-53), Laurent

ressalta que a experiência da análise demonstra um ponto que não pode ser resolvido, pois

“cada um só acredita profundamente no seu sintoma”. Para acessar o sintoma como real, é

preciso que cada um se defenda do delírio da normalidade, mostrando a inexistência da saúde

mental, do laço social e da psicopatologia. Portanto, na época da foraclusão generalizada, o

fundamental é a forma como cada sujeito inventa a suplência que o mantém estabilizado,

ampliando as probabilidades de amarração dos três registros. Portanto, na clínica do delírio

generalizado, o sintoma é definido não apenas pelos efeitos de significação produzidos pela

170

articulação significante, mas também como uma escritura da maneira como cada um goza do

inconsciente, enquanto o inconsciente o determina (IBID, p.91).

Na chamada para o XVIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano intitulado “O

sintoma na clínica do delírio generalizado” – realizado em São Paulo nos dias 19, 20 e 21 de

novembro de 2010 –, Rômulo Ferreira da Silva e Simone Souto dizem que o sintoma, em seu

cerne, é um modo de gozo, uma satisfação que vem substituir aquela concernente à relação

sexual, se ela existisse. A inexistência da relação sexual implica, portanto, que toda

construção sintomática se baseia no fato de que no momento fundador do sujeito algo fica

foracluído de qualquer possibilidade de simbolização. Nesse sentido, o sintoma é uma solução

substitutiva que diz respeito à forma contingente que a inexistência da relação sexual toma

para cada um, ou seja, ele é uma maneira singular que cada sujeito inventa para abordar o

real.

Na última aula do Curso “Todo mundo é louco”, em 11/06/2008, Miller conclui esse

aforismo aponta para o fato de que o analista deve escutar “o que se vocifera do lugar de

Mais-Ninguém”, nome do sujeito barrado, ∃, com um acento particular, a entonação de sua

relação pátria com o gozo. Ele ressalta que a vociferação é diferente do enunciado, que está

submetido à matriz binária enunciado-enunciação. Mais ainda, ela excede à divisão deste

binário, pois a tem como indivisível. “A vociferação não interrompe, diferentemente do

enunciado, não se coloca à distância de ‘quem o diz’ e, quando não há de ‘quem’, ‘de onde

isso se diz’, isto é, ela inclui seu ponto de emissão”.

Para concluir diremos que o delírio generalizado restitui a humanidade ao psicótico,

pois ele retira a loucura da posição de déficit e a inclui no universal, a partir de um modo

original de considerar a linguagem. Na clínica do delírio generalizado, o delírio e o sinthoma

se generalizam como respostas frente à inexistência da relação sexual. Mas vale destacar uma

diferença. Se o primeiro tenta fazer a relação existir pela via da linguagem tomada na vertente

do sentido, o segundo, por sua vez, em um movimento contrário ao sentido, se serve da

linguagem para revelar a impossibilidade de escrever a relação sexual. Ao visar o gozo opaco

e sem sentido do sinthoma, a experiência analítica revela que, frente à não-relação, todo

sentido é semblante. Portanto, a direção do tratamento visa permitir ao sujeito aceder aos

significantes primordiais que fazem de sua vociferação uma diferença absoluta.

171

4 CONCLUSÃO

Concluir é de certa forma retornar à idéia inicial sob um novo ângulo. Durante a

escrita de uma Tese as noções vão se tornando mais consistentes, alguns elementos disjuntos

se articulam de forma inédita, os conceitos ganham um novo sentido e vislumbra-se um saber

que, até então, faltava. Não um saber pleno, mas algo da ordem simbólica que enquadra o

exigido pela academia e permite uma escrita orientada, sem excluir o estilo do autor.

Em um movimento de retroação ao que foi escrito, percebemos que o aforismo

elaborado por Lacan em seu último ensino, “Todo mundo é louco, ou seja, delirante”, esteve

presente durante a escrita da Tese, de forma que a ordem simbólica acima mencionada não

passa de um delírio de saber. Em torno dele teceremos algumas considerações, certamente

provisórias, pois não se trata de um saber acabado.

Na Introdução ao tema das psicoses ordinárias dissemos que a desordem que se

desencadeia pela globalização traz à discussão a singularidade embutida naquele aforismo

lacaniano. As redes sociais, a hiperatividade e a depressão, a relação do sujeito com o objeto

tal como acentua a prática toxicomaníaca, a ânsia de um corpo perfeito e as compulsões

produzidas pela alimentação e outros, comprovam que, mesmo quando a ciência e o

capitalismo impõem um modo de fazer, cada um só poder responder à sua própria maneira.

Ou seja, a singularidade não cessa de se inscrever pelo modo com que cada um – seja pelos

significantes-mestres tradicionais, seja por uma invenção inédita – encontra uma maneira de

suportar as incidências da pulsão de morte. O sujeito deve se haver com ela e encontrar um

saber-fazer com o real.

Aquele aforismo também esteve presente no trabalho de pesquisa do primeiro capítulo,

quando descobrimos a possibilidade de interpretá-lo em algumas passagens de textos

freudianos. Por mais que Freud não tenha elaborado o conceito de foraclusão generalizada,

em alguns momentos ele estava bastante explícito em sua escrita, e em outros tivemos que

depreendê-lo, a posteriori, a partir do que pudemos articular desde o ensino de Lacan. Para

além disso, constatamos que a enunciação da frase de Picasso, tantas vezes repetida por Lacan

– “eu não procuro, eu acho” –, produziu efeito na investigação.

Freud diz claramente que o sonho é uma psicose com todos os despropósitos que ela

supõe. Apesar de serem diferentes no fato de o sonho ter uma breve duração, ser dotado de

uma função útil e terminar pelo desejo do sujeito, sonho e psicose são equivalentes na medida

em que ambos são providos de significação. Em diversos momentos Freud ressalta a presença

172

de delírios na estrutura neurótica, por exemplo, quando o sujeito tem a sensação de estar

sendo observado e de sentir que os pensamentos estão sendo escutados por outras pessoas. Ele

inscreve uma loucura ordinária nos neuróticos, dizendo que a fronteira entre os estados

normais e os patológicos é, de certa forma, convencional, o que permite que cada um a

atravesse várias vezes no decorrer de um mesmo dia. Isso retira a loucura exclusivamente do

campo das psicoses e reduz a normalidade a uma mera ficção, visto que o eu do neurótico se

aproxima ao do psicótico em maior ou menor grau.

Apesar de Freud considerar a neurose como base da estrutura psíquica, ele admite um

núcleo paranoico em todo ser humano, pois quando o sujeito corrige algum aspecto

insuportável por uma formação alucinatória de desejo, e a introduz na realidade, ele se

comporta como um paranoico. Não devemos esquecer que Lacan define o tratamento

psicanalítico como uma paranoia dirigida. De forma que o “todo mundo delira” é algo que

tranquiliza e mobiliza o psicanalista na direção do tratamento.

Por outro lado, podemos também intuir a foraclusão generalizada na forma com a

qual Freud descreve o processo psíquico primário. Trata-se de um processo cuja energia, por

assim dizer, livre, indica a alucinação em estado bruto, irracional, desregulada, campo das

pulsões desenfreadas e do puro gozo.

Freud define o delírio como uma tentativa de cura, ou seja, como uma forma de

reconstrução da realidade através da linguagem. Se o consideramos a maneira de suprir a

ausência da referência simbólica, designada por Lacan como Nome-do-Pai, o delírio

evidencia o estatuto ficcional da linguagem. Portanto, “todo mundo é louco” não só generaliza

o aspecto de artifício da linguagem no que diz respeito à realidade, mas também convoca uma

clínica ordenada desde uma referência vazia, nomeada com o aforismo “a relação sexual não

existe”.

A inexistência da relação sexual implica que toda construção sintomática se baseia em

algo foracluído de qualquer possibilidade de simbolização. O sintoma constitui a resposta

singular que cada falasser inventa diante da forma contingente que essa inexistência toca em

cada um. Ele é uma solução substitutiva da satisfação concernente à relação sexual, se ela

existisse.

Portanto, esse aforismo modifica a compreensão do conceito de sintoma na

experiência analítica, se levamos em conta a primeira formalização lacaniana a partir de seu

retorno a Freud. Diferente da psiquiatria que busca extirpar o delírio com uma medicação de

última geração, o analista serve de testemunha à possibilidade de o sintoma ser a via de obter

173

uma resposta para o funcionamento psíquico minimamente estabilizado, uma amarração entre

real, simbólico e imaginário que recoloca o sujeito na vida, no trabalho e no amor.

Durante a Tese, articulamos a teoria psicanalítica a alguns fragmentos clínicos.

Extraídos da Obra de Freud, Daniel Paul Schreber e Sergei Pankejeff, conhecido como O

Homem dos Lobos, e do ensino de Lacan, Gerard Primeau e James Joyce. Eles nos serviram

para ilustrar a forma como o singular se apresenta no sujeito que maneja a linguagem de

diferentes formas, em busca de um discurso que venha fazer semblante face ao insuportável

do real, mesmo que não esteja instituído pela normatização do Nome-do-Pai.

Schreber, por exemplo, parte da imposição de uma doutrina educacional rígida e

implacavelmente moralista imposta pelo pai para extirpar o corpo de toda manifestação da

sexualidade. A estrutura subjetiva marcada pela foraclusão encontra no delírio de

transformação em mulher uma forma de fornecer sentido aos remanejamentos imaginários

que vêm em socorro à desarticulação no plano simbólico. Ele apresenta o singular que lhe é

próprio na construção da metáfora delirante Mulher de Deus, que permite uma reorganização

parcial de seu mundo a ponto de reaver a posse dos direitos que havia perdido com sua

internação.

Por sua vez, Sergei Pankejeff mostra o que há de incomparável em relação ao

comum. Freud havia isolado o significante lobo, objeto condensador de gozo e causa de

horror para o sujeito. De forma que Sergei, após concordar com a publicação de seu caso

clínico, abandona o patronímico e passa a se nomear pelo codinome que designa seu modo de

gozo, um significante que não equivale ao Nome-do-Pai. Essa identificação social fornece

alguma estabilização, na medida em que, apesar de a sintomatologia psicótica não cessar, ele

não desencadeia a psicose nos moldes de uma psicose extraordinária.

A leitura realizada por Lacan a partir de Joyce comporta a invenção do conceito de

sinthoma para designar o singular, e o distingue como ortodoxo e herético. No primeiro, tal

singularidade é recoberta por um sentido partilhado que dissimula o sinthoma, enquanto que

no segundo, isso não acontece. Joyce escapa do comum e se identifica com essa segunda

opção. A relação entre sinthoma e arte, o desejo de Joyce ser um artista famoso, o nome

próprio e o nome comum, as epifanias e os enigmas que caracterizam sua escrita, são pontos

privilegiados para se constatar a loucura enquanto uma invenção face à carência paterna.

Além disso, Lacan constata que Joyce encontra um nome de gozo com valor de

nomeação que faz laço, pois denota um savoir-faire com a linguagem. Ao operar sobre os

efeitos de sentido das palavras de modo a fazer surgir um vazio de significação, a arte de

Joyce atinge o sintoma para além da dimensão simbólica. A psicose se mantém compensada

174

pela escrita, pela forma que utiliza as palavras para se defender de seu traumático encontro

com a língua. Assim, Lacan conclui que a escrita de Joyce é um modelo dos modos com que o

falasser lida com o caráter de imposição das palavras, com a exterioridade original da

linguagem e com a angústia causada pelas significações enigmáticas naquele que fala.

Por fim, o caso de Gérard Primeau, entrevistado por Lacan em uma apresentação de

pacientes, evidencia uma psicose extraordinária na qual a consistência do sistema delirante, a

alucinação verbal, os sentimentos de influência, as frases interrompidas, por exemplo, não

podem ser confundidos. Tanto o nome Gérard Primeau, codinome obtido desde a

decomposição de Geai Rare Prime Au, quanto os diversos neologismos decorrentes da fala

imposta “Você matou o passarinho azul”, mostram o singular de Gérard em relação à

utilização da linguagem de forma singular, mas ela não permite que a psicose se estabilize, tal

como ocorre com Joyce.

O aforismo “todo mundo é louco, ou seja, delirante” evidencia que a resposta singular

diante do indizível é uma construção e não passa de um delírio. Ele aponta para o que cada

falasser mantém como verdade, conceitualizado nos escritos de Lacan por meio de os

conceitos de lalíngua e sinthoma, além do que pode ser deduzido como foraclusão

generalizada. Isso porque todo ser falante, ao recorrer ao simbólico para articular o real

inserido em sua constituição, elabora um sentido que desliza infinitamente na articulação

significante. Tal infinitização demonstra que a referência última é vazia e que a constituição

de sentido nada mais é que um delírio.

Se no decorrer desta Tese afirmamos, com a orientação lacaniana, que o sintoma é

incurável, isso quer dizer que não apenas ele se torna um ponto decisivo na experiência

analítica, como também é apreendido na dimensão da invenção e da positividade, na medida

em que se configura como uma solução. Para além de toda ficção discursiva, essa invenção

inédita frente ao real impede que o sujeito se inclua totalmente no delírio da normalidade, pois

algo da escritura do gozo inconsciente não é adequado ao senso comum.

A interpretação do analista aborda o sintoma na vertente de o efeito de sentido e em

seu valor de gozo. Por outro lado, a face antinômica do sintoma será apreendida pelo

equívoco e por meio da função da letra. O incurável mobiliza o valor de gozo do objeto,

retirando-o da fixidez anterior e devolvendo-lhe a mobilidade.

Para concluir diremos que o delírio generalizado restitui humanidade ao psicótico, pois

ele retira a loucura da posição de déficit e a inclui no universal, a partir de um modo original

de considerar a linguagem. É no quinhão da loucura de cada um que reside a aposta da

psicanálise de que se possa saber fazer com a inclassificável diferença que, para além de toda

175

ficção a ser construída no decorrer de uma análise, permanece como um resto incurável a

partir do qual o sujeito poderá fazer de sua singularidade algo inédito.

Os casos inclassificáveis viabilizaram Miller propor a categoria de psicose ordinária.

Neles, não se trata somente de distinguir o déficit simbólico, os fenômenos elementares e o

delírio, de acordo com os procedimentos de outrora. O dispositivo analítico na atualidade

exige que o analista esteja atento aos efeitos clínicos de amarração e de desamarração dos

registros do real, simbólico e imaginário, bem como a estranheza do sujeito em relação ao

corpo. O fazer do analista é de sutura, de emenda, e cabe ao sujeito costurar seu nó desde a

radical diferença própria a cada um.

Assim, a categoria de psicose ordinária quando associada ao aforismo lacaniano “todo

mundo é louco”, explicita de forma consistente que as amarrações são exatamente as

singularidades incuráveis que não podem ser absorvidas no paradigma do Nome-do-Pai,

mesmo que em muitos casos elas possam ser confundidas.

Para finalizar, recorremos à conexão psicanálise-arte, no campo específico da

literatura, com o intuito de incluir alguns exemplos. Em uma passagem de Grande Sertão:

Veredas, escrito por Guimarães Rosa, o personagem Riobaldo, jagunço que roda com seu

bando o sertão no norte de Minas Gerais, explicita um modo de amarração na ficção literária.

Diz ele: “O que mais penso, testo e explico: todo mundo é louco. O senhor, eu, nós, as

pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer,

desdoidar. Reza é que sara loucura”.

Um novo exemplo do “todo mundo é louco” é extraído do texto de Marcia Mello de

Lima intitulado “Sobre o ‘Diário’ de Jean Genet e a ‘Divina’ fantasia”. Genet constrói uma

invenção que não funciona e se depara com um real impossível de suportar. Tenta encarnar

“Divina”, com a qual se identifica no livro Nossa Senhora das Flores, e segue a sugestão do

amante, de ganhar dinheiro para ambos, apresentando-se em um bar vestido de mulher. Nas

palavras de Genet: “Para que fosse menos brutal a ruptura com o mundo de vocês, debaixo da

saia conservei a minha calça”. Acontece que não se ajeita bem, tropeça e as pessoas riem. Em

desespero, Genet continua: “Fui até o mar e nele afoguei a saia, o corpete, a mantilha e o

leque [...] Eu me proibia”.

No entanto, existem invenções que funcionam. Por que não mencionar a solução

encontrada pelo personagem de Machado de Assis no conto “O espelho”, quando, vendo-se

sozinho, sem a família e os escravos que o chamavam de “senhor alferes”, ele começa a sentir

o fenômeno típico da despersonalização. A solução é vestir o uniforme e sentar diante do

espelho com o objetivo de encontrar “a alma exterior”. Seguindo Machado de Assis neste

176

conto magistral: “Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para o outro,

recuava, gesticulava, sorria, e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente

animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-

me diante do espelho, lendo, olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra

vez. Com este regímen pude atravessar mais seis dias de solidão, sem os sentir...”.

Podemos ainda citar o exemplo de uma invenção que Lacan intitula ser a três, onde o

personagem de Marguerite Duras, em seu livro O deslumbramento (Le ravissement de Lol V.

Stein), é arrebatada por aquilo que ela própria constrói. Conforme escrevemos em 2008, em

um trabalho intitulado “O que a arte ensina sobre as psicoses ordinárias”, Lol V. Stein

encontra uma solução para a construção de um corpo por meio de as funções do olhar e do ser

a três, teorizadas por Lacan. As duas cenas-chaves descritas por Duras expressam a

fascinação de Lol, sobretudo a segunda, onde ela acaba sendo arrebatada e reduzida a uma

mancha no campo de centeio.

Concluímos que, seja pela religião, seja pelo disfarce mascarado e pelo ridículo, seja

pela imagem construída no espelho, seja pelo ser a três, e outras tantas possibilidades que a

clínica do cotidiano e a literatura nos comprovam, o importante é a forma que cada um

encontra de abordar o real que, de tempos em tempos, pelos encontros contingentes que a vida

apresenta, aparece despido de suas vestimentas simbólico-imaginárias.

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REFERÊNCIAS

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