marcia hegel

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A Idéia de Corporalidade na Estética de Hegel Márcia C. F. Gonçalves A inserção da filosofia de Hegel na ampla corrente filosófica denominada “idealismo” conduz, em geral, à pressuposição de que em todo o sistema filosófico hegeliano haveria basicamente um predomínio do valor atribuído à idealidade em detrimento daquele dado à materialidade. De fato, só é possível superar esse e outros pressupostos reducionistas que cercam as opiniões superficiais sobre o hegelianismo, quando se alcança uma compreensão mais completa do conceito hegeliano de idéia sem dúvida, um dos mais difíceis e complexos de todo o sistema. Tradicionalmente associado ao pensamento subjetivo, esse conceito filosófico toma na filosofia de Hegel um sentido inteiramente novo, que enfatiza exatamente sua efetividade concreta. Entretanto, mesmo quando conseguimos atingir essa compreensão, superando completamente o preconceito que associa imediatamente a idéia à subjetividade abstrata ou ao pensamento subjetivo independente do mundo sensível exterior, resta sempre como tarefa ainda mais complexa entender a importância da materialidade para o sistema filosófico de Hegel. Em outras palavras: entender que a idéia, de acordo com a concepção hegeliana, deve necessariamente objetivar-se, não exclui a dificuldade em descobrir que papel representa a matéria sensível nesse processo de objetivação da idéia. Felizmente podemos contar com uma ajuda fundamental para o cumprimento desta difícil tarefa: o fato de Hegel ter elaborado e exposto - em alguns cursos universitários ministrados ao longo da década de vinte do século dezoito, principalmente em Berlim – uma Filosofia da Arte, a qual temos acesso principalmente através da edição de Hotho intitulada Vorlesungen über die Ästhetik 1 . A importância do estudo da Filosofia da Arte de Hegel para se entender a relação entre o conceito hegeliano de idéia com a materialidade, ou antes, para 1 Como se trata aqui tão somente de avaliar de modo o mais essencial possível a importância da materialidade e, mais especificamente, da corporalidade no contexto da filosofia da arte de Hegel, com argumentos muitas vezes encontrados em obras outras além dos Cursos sobre a Estética, não nos ocuparemos com a discussão sobre a total autenticidade das várias teses expostas no conjunto da obra editada por Hotho a partir de manuscritos de Hegel (hoje perdidos) e de transcrições de alguns de seus alunos – que tem sido levantada enfaticamente ao longo do desenvolvimento da pesquisa de nova editoração da Estética coordenada pela professora Gethmann-Siefert. Utilizaremos portanto a edição ainda aceita da Estética de Hegel, que serve de base para a recente e cuidada tradução brasileira de Marco Werle, com três de quatro volumes já editados pela EdUSP. 1

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Page 1: Marcia Hegel

A Idéia de Corporalidade na Estética de Hegel

Márcia C. F. Gonçalves

A inserção da filosofia de Hegel na ampla corrente filosófica denominada

“idealismo” conduz, em geral, à pressuposição de que em todo o sistema filosófico

hegeliano haveria basicamente um predomínio do valor atribuído à idealidade em

detrimento daquele dado à materialidade. De fato, só é possível superar esse e outros

pressupostos reducionistas que cercam as opiniões superficiais sobre o hegelianismo,

quando se alcança uma compreensão mais completa do conceito hegeliano de idéia –

sem dúvida, um dos mais difíceis e complexos de todo o sistema. Tradicionalmente

associado ao pensamento subjetivo, esse conceito filosófico toma na filosofia de

Hegel um sentido inteiramente novo, que enfatiza exatamente sua efetividade

concreta. Entretanto, mesmo quando conseguimos atingir essa compreensão,

superando completamente o preconceito que associa imediatamente a idéia à

subjetividade abstrata ou ao pensamento subjetivo independente do mundo sensível

exterior, resta sempre como tarefa ainda mais complexa entender a importância da

materialidade para o sistema filosófico de Hegel. Em outras palavras: entender que a

idéia, de acordo com a concepção hegeliana, deve necessariamente objetivar-se, não

exclui a dificuldade em descobrir que papel representa a matéria sensível nesse

processo de objetivação da idéia. Felizmente podemos contar com uma ajuda

fundamental para o cumprimento desta difícil tarefa: o fato de Hegel ter elaborado e

exposto - em alguns cursos universitários ministrados ao longo da década de vinte do

século dezoito, principalmente em Berlim – uma Filosofia da Arte, a qual temos

acesso principalmente através da edição de Hotho intitulada Vorlesungen über die

Ästhetik1. A importância do estudo da Filosofia da Arte de Hegel para se entender a

relação entre o conceito hegeliano de idéia com a materialidade, ou antes, para

1 Como se trata aqui tão somente de avaliar de modo o mais essencial possível a importância da materialidade e, mais especificamente, da corporalidade no contexto da filosofia da arte de Hegel, com argumentos muitas vezes encontrados em obras outras além dos Cursos sobre a Estética, não nos ocuparemos com a discussão sobre a total autenticidade das várias teses expostas no conjunto da obra editada por Hotho a partir de manuscritos de Hegel (hoje perdidos) e de transcrições de alguns de seus alunos – que tem sido levantada enfaticamente ao longo do desenvolvimento da pesquisa de nova editoração da Estética coordenada pela professora Gethmann-Siefert. Utilizaremos portanto a edição ainda aceita da Estética de Hegel, que serve de base para a recente e cuidada tradução brasileira de Marco Werle, com três de quatro volumes já editados pela EdUSP.

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Page 2: Marcia Hegel

entender que a filosofia de Hegel não se reduz a um mero idealismo subjetivo, se

afirma em primeiro lugar porque a estética é por si só a esfera de reflexão filosófica

melhor capacitada a abrir as portas do pensamento especulativo para a materialidade,

para sensibilidade e – em última, mas não menos importante instância – para a

corporalidade propriamente dita.

A descrição hegeliana sobre o corpo (Körper), que é – diga-se aqui ainda só

de passagem – essencialmente o corpo humano, toma na filosofia da arte de Hegel

uma dimensão inesperadamente importante. Mas essa descrição deve ser

gradativamente acompanhada aqui, a partir de uma formulação mais universal, ou

seja, a partir da análise da relação da forma corpórea com sua própria materialidade

sensível.

Para compreender a questão da corporalidade no contexto da estética

hegeliana é necessário iniciarmos pela análise da relação dialética entre dois elementos

fundamentais de toda a obra de arte: de um lado a chamada forma sensível, de outro o

conteúdo da arte. O primeiro desses dois elementos constitui – para empregarmos já

uma linguagem originalmente hegeliana – o “momento” (ou seja: o pólo

intrinsecamente articulado com seu pólo dialeticamente oposto) da materialidade. O

segundo desses elementos significa o momento do conceito mesmo da arte, ou

melhor: da idéia propriamente dita, que longe de ser um simples projeto pensado pelo

artista é o conteúdo universal de toda a obra de arte ou da arte em geral. De um lado,

a forma de uma obra de arte está relacionada à sua manifestação sensível, enquanto

que, do outro lado, o conteúdo seria algo ligado à idéia que a obra manifesta.

A relação dialeticamente perfeita entre estes dois momentos da arte – o

momento da forma e o momento do conteúdo – é descrita através do conceito

hegeliano de “ideal” - uma espécie de equilíbrio real e efetivo entre a idéia e sua forma

sensível. O ideal é, segundo Hegel, a manifestação adequada da idéia no meio sensível

e essa harmonia ou adequação desses dois momentos essenciais à obra de arte

“define” inicialmente o conceito de belo na Estética de Hegel. Obviamente, quando

falamos aqui em “definição” do conceito de belo, não nos expressamos em um sentido

estrito, posto que esse conceito (como, aliás, todos os conceitos hegelianos

fundamentais) está longe de poder ser “limitado” através de uma ou várias definições,

já que o belo, assim como o verdadeiro, expressa, acima de tudo, segundo Hegel, o

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Page 3: Marcia Hegel

absoluto ou o infinito, que, enquanto tal, (e isto é para nós o mais importante!) não

perde sua absolutidade ou infinidade nesse ato de se determinar sensivelmente.

Entretanto, essa harmonia do belo descrita, por Hegel não significa uma

espécie de neutralização de ambos os momentos constitutivos da obra. Não se trata

de um encontro neutro, ou de uma mútua perda de identidade de ambas as partes;

tampouco (como pode facilmente parecer), de uma perda qualitativa da idéia em sua

essencialidade, no momento de sua manifestação sensível. É certo que a idéia se

transforma, mas essa transformação é muito mais de ordem estrutural, e mesmo

quantitativa, do que propriamente qualitativa. Pois a manifestação da idéia no sensível

(que é a tese fundamental da estética hegeliana para descrever o fenômeno da beleza)

significa sua determinação ou sua objetivação como ser-aí, que é necessariamente

múltiplo. Enfim: não existe o belo sem manifestação; o belo é portanto sempre obra

de arte bela, e conseqüentemente beleza concreta.

Por outro lado, contudo, a adequação inerente ao fenômeno do belo, descrita

pelo conceito de ideal, nem sempre é historicamente verdadeira ou completa. Isto

significa dizer que na história da arte há também momentos de desequilíbrio ou

desarmonia entre os dois elementos constitutivos da obra de arte, podendo existir

assim o predomínio ora de um, ora de outro.

É deste modo – descontínuo sem deixar de ser dialético – que acredito que se

deva ler a descrição histórico-conceitual sobre o fenômeno da arte exposta na

Estética de Hegel. A partir dessa tese de que o belo não é um fenômeno constante e

acabado na história da arte, mas um processo que ora se realiza por completo, ora

não, conseguimos melhor compreender a descrição hegeliana do movimento dialético

da arte no mundo real e fenomênico, de modo a estabelecer como parâmetro um

muito específico ponto de interseção entre a linha que aponta para a manifestação da

idéia e o plano que sustenta o fenômeno da forma sensível ou de toda a instância da

materialidade. Esse parâmetro do belo é, entretanto, sujeito novamente a uma

relativização, a partir do momento em que Hegel descobre que a relação de harmonia

ou de adequação, com a qual ele “definiu” inicialmente o ideal, é de fato também

relativa. Essa relatividade do belo é fundamentalmente histórica e será assim

responsável pela compreensão que Hegel constrói das diferentes formas de arte.

Assim, por exemplo, na forma de arte que ele denomina simbólica, Hegel

aponta para o predomínio da forma sensível ou da materialidade sobre a idéia, de

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Page 4: Marcia Hegel

modo que essa não pode manifestar-se de forma adequada e clara, mostrando-se

assim apenas indiretamente, de forma velada e obscura, através de símbolos. O

exemplo histórico máximo tomado por Hegel para descrever esse tipo de

manifestação de arte é a pirâmide egípcia2, que, em sua arquitetura de dimensões

gigantescas, possuiria a sobre-medida da matéria em sua forma mais bruta – a pedra

– sobre a idéia que ela misteriosamente oculta. A forma piramidal é, por um lado,

reduzida, em sua pureza e simplicidade geométricas, ao sentido que se eleva e aponta

para o alto, para o céu, para a luz, para o espaço infinito; ao mesmo que, ao contrário,

oculta, subterraneamente e no interior de sua imensa estrutura, um lado misterioso,

sombrio, labiríntico. A pirâmide é o túmulo dos faraós mumificados – esses seres

materiais e materialistas, que mantém junto a si os bens e fortunas acumulados

durante suas vidas e, até mesmo, alimentos e objetos prosaicos utilizados para a

simples manutenção do corpo biológico – esse mesmo corpo que se pretende então

preservar, a começar pela técnica da mumificação. Também como exemplo

paradigmático dessa forma de arte, pertencente à mesma cultura e período histórico,

Hegel faz referência a uma outra importante obra: a esfinge3.

Misturando o corpo humano ao corpo animal, a

esfinge é exemplo também máximo da arte simbólica,

por manter a idéia do humano, ainda presa ao

aspecto natural e animal de sua corporalidade. Na

postura típica da esfinge, é como se a metade

humana, sua cabeça e seios femininos, tentasse

elevar-se, descolar-se e libertar-se de sua metade ainda selvagem. Em uma passagem

da Filosofia da História de Hegel que descreve essa obra de arte simbólica podemos

ver exposta a tese sobre o início da evolução histórica, cultural e política da espécie

humana como um esforço por elevar-se acima de seus instintos puramente animais:

Pode-se considerar a esfinge como um símbolo do espírito egípcio: a cabeça humana, que olha para fora do corpo animal, representa o espírito em seu começo, como elevando-se acima do natural, para arrancar-se do mesmo e olhar em torno de si, já mais livre, sem entretanto libertar-se por completo da prisão.4

2 Cf. G.W.F. Hegel: Vorlesungen über die Ästhetik, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989, vol. I, p. 448ff; Cursos de Estética (trad. Marco Aurélio Werle), EdUSP: São Paulo, 2000, vol. II, p. 78ff. 3 Cf. Idem, vol. I, p. 465; vol. II, p. 84f.4. G.W.F. Hegel: Philosophie der Geschichte. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1990, p. 246.

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Ilustração Ilustração 11

Page 5: Marcia Hegel

Segundo Hegel, essa libertação espiritual de uma origem ainda animal – que

em verdade deve ser entendida como uma unificação dialética entre os dois momentos

elementares da obra de arte, postos ainda em tensão de oposição no simbolismo –

somente irá se efetivar a partir da chamada forma de arte clássica, ou seja, na Grécia

antiga e, mais especificamente, através de algumas de suas importantes obras de arte.

Embora o grande exemplo escolhido por Hegel para demonstrar a efetivação histórica

do ideal na arte sejam as esculturas dos deuses olímpicos, é em sua análise sobre uma

figura da tragédia grega que encontraremos uma das mais importantes chaves para a

compreensão da idéia de que a Grécia é o momento histórico

propício para a superação da obscuridade estética presente no

símbolo e conseqüentemente para a conquista inicial da

liberdade espiritual. O mito de Édipo que narra o encontro

deste importante herói trágico com a esfinge é um entre

outros momentos estéticos clássicos que descrevem a auto-

superação do verdadeiramente humano, que é sobretudo espiritual, sobre o ser

humano no início de sua evolução, ainda animalizado. A resposta de Édipo ao enigma

proposto pela esfinge (Qual é o animal que de manhã tem quatro patas, à tarde, duas

e à noite três?), é a afirmação grega da superioridade do homem sobre a natureza5. A

resposta do enigma, ao contrário de apontar para um animal que sofreria estranhas

metamorfoses físicas, suprimindo e adicionando patas ao seu corpo, aponta para a

espécie humana, que, ao vencer um estágio inicial de sua infância, se eleva em sua

postura cervical ereta e, com o cansaço da velhice, acaba curvando-se e necessitando

do auxílio de um cajado. A esfinge de fato anuncia a vitória do homus eretus sobre as

outras espécies e, sobretudo, do único animal dotado de logos sobre o seu próprio

mistério, sobre o símbolo que a esfinge incorpora.

A tensão existente no interior da obra de arte simbólica tão presente no

Oriente antigo, entre matéria e forma, idéia e manifestação sensível, clareza e

obscuridade, e (se quisermos) finito e infinito, é aparentemente suspensa pela arte

grega clássica, que alcança uma melhor harmonia entre ambos esses lados

fundamentais de toda a obra de arte.

5 Cf. G.W.F. Hegel: Vorlesungen über die Ästhetik, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989, vol. I, p. 466; Cursos de Estética (trad. Marco Aurélio Werle), São Paulo: EdUSP, 2000, vol II, p. 85.

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Ilustração 2

Page 6: Marcia Hegel

Na denominada forma de arte clássica o corpo humano é pela primeira vez

representado em sua perfeita anatomia e autonomia especialmente se compararmos a

expressão do corpo na arte grega clássica com aquela dos antigos egípcios, que

sacrificavam leis obviamente já conhecidas da anatomia humana em função de uma

necessidade simbólica de representar o homem em ações e funções determinadas.

Um bom exemplo disso são as figuras

egípcias de corpos humanos em que encontramos

algumas contradições anatômicas, como aquelas

pintadas nas paredes do túmulo de Thutakhamon

provinientes do ano de 1330 antes da nossa era.

Podemos reparar, entre outros detalhes, corpos

contendo duas mãos esquerdas, troncos sempre

frontais, faces voltadas lateralmente, mas com

olhos vistos frontalmente e pernas e pés sempre

laterais6.

Nas antigas representações gregas de figuras humanas, preservadas

principalmente nas pinturas de vasos da época clássica, encontramos, pela primeira

vez, a arte da perspectiva, onde nem todas as partes do corpo precisam ser mostradas.

Um exemplo utilizado por Gombrich em sua História da Arte para ilustrar esse salto

qualitativo dado pela arte grega em relação à arte egípcia antiga está no vaso assinado

por Exekias do estilo conhecido como “figuras pretas” de aproximandamente 540

anos antes de nossa era7. Embora os olhos de Aquiles e Ajax ainda tenham sido

pintados como vistos de frente, ao modo egípcio, observa-se já a preocupação do

artista em apresetar as figuras dos heróis em uma

postura menos esquemática e mais próxima de uma real

posição anatômica, curvadas e atentos que aparecem

sobre seu jogo de xadrez, mesmo sem abandonar suas

armas e vestimentas de guerra, pois afinal os gregos

sabiam bem a importância da arte da estratégia

desenvolvida nesse jogo.

6 Sobre uma análise mais detalhada do método egípcio para representar a figura humana, Cf. E. H. Gombrich: The Story of Art. A História da Arte (trad. Álvaro Cabral), LTC Editora, Rio de Janeiro 1999, p. 60 ff. 7 Cf. Idem, p. 81.

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Ilustração 3

Ilustração 4

Page 7: Marcia Hegel

Mas o que está em jogo nessa nova imagem do corpo humano presente na arte

grega clássica é - do ponto de vista não apenas da história da arte, mas da história da

humanidade em geral sob a perspectiva filosófica sustentada por Hegel - diz respeito à

afirmação dos gregos antigos do homem como medida de todas as coisas.

Nesse sentido, devemos observar que aquela importante resposta que Édipo

dá à esfinge significa muito mais do que uma afirmação da autonomia do corpo

humano; ela apresenta esteticamente uma antiga sabedoria divina dos gregos que será

mais tarde adotada pelo filósofo, fortalecendo definitivamente o início da filosofia:

trata-se da máxima apolínea „conhece-te a ti mesmo!“8. O que se inicia na tragédia

grega e se desenvolve com a filosofia antiga é, exatamente, o processo da

autoconsciência. Esse processo transcende, por um lado, a consciência meramente

corpórea de si mesmo, ao mesmo tempo em que – por outro lado – se inicia com a

consciência de que essa corporalidade humana se difere – e muito – da corporalidade

animal.

Mas antes que nos atemos ao entusiasmo de ver na Grécia antiga uma espécie

de ápice da evolução espiritual, é importante dizer que a arte clássica ainda não é,

segundo Hegel, o momento onde o conteúdo da idéia predomina sobre a forma

sensível, ou onde a subjetividade atinge um nível de interioridade, capaz de quase

dispensar a forma sensível objetiva. Na verdade, do ponto de vista estético, essa

possibilidade está longe de significar o ponto mais elevado da arte. Ao contrário, o

predomínio da idéia sobre a forma sensível significa um novo desequilíbrio, uma nova

ruptura da harmonia conquistada pela arte clássica.

De fato, esse momento do desenvolvimento da arte será identificado

historicamente por Hegel a partir do período medieval cristão até a modernidade,

incluindo os movimentos artísticos de seu próprio tempo. Hegel denomina essa última

forma de arte, historicamente tão persistente, através do adjetivo “romantisch”,

provavelmente para provocar em seus contemporâneos alemães fundadores do

movimento estético que intitularam “Romantik”9 a reflexão de que a pretensa

8 Cf. G.W.F. Hegel: Vorlesungen über die Ästhetik, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989, vol I, p. 466; Cursos de Estética (trad. Marco Aurélio Werle), São Paulo, 2000: EdUSP, vol II, p. 85. 9 Hegel mantinha com o movimento estético da escola romântica de Jena, especialmente com seus fundadores, os irmãos Schlegel, uma relação no mínimo tensa, tendo expresso alguns comentários críticos nada amistosos sobre eles. Talvez o mais incisivo seja o de sua História da Filosofia, onde, referindo-se a pretensão tipicamente romântica de inovar a filosofia dando-lhe uma linguagem poética, escreve sobre Friedrich Schlegel, que ele, ao contrário de atingir a verdade, oscilaria entre a universalidade do conceito e a determinidade e indiferença de figuras que (transcrevendo aqui suas

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Page 8: Marcia Hegel

revolução que acreditavam promover na história da arte não passaria de uma

continuidade da tendência iniciada com a ruptura da harmonia do ideal conquistada na

arte grega clássica.

Na chamada forma de arte romântica, o corpo humano é novamente reduzido,

não ao esquema funcional do simbolismo, presente, por exemplo, na arte egípcia

antiga, mas à bi-dimensionalidade sem volume de uma pintura cristã que tem como

um de seus principais ícones a figura de Jesus, cujo corpo é representado acima de

tudo como expressão suprema da espiritualidade.

A arte passa quase que predominantemente a

servir como instrumento à religiosidade10, e essa

integração entre arte e religião se difere essencialmente

daquela que ocorria na forma de arte clássica, posto que

o corpo do deus grego era conteúdo da arte por sua

força, beleza e infinidade, enquanto que o corpo do

deus cristão é esteticamente exposto como um corpo

finito, um corpo que morre, e que através dessa sua

negatividade e finitude afirma a espiritualidade invisível,

em uma dimensão além da matéria sensível e

conseqüentemente além da obra de arte.

A arte romântica dá inicio assim ao processo de subjetivação da arte, que

envolve necessariamente sua desmaterialização11. Não é por acaso que um tipo de

obra de arte romântica descrita por Hegel como mais característica é a música12, onde

todo o material, todo corpóreo parece dar lugar à pura idealidade, à extrema

espiritualidade.

Na forma de arte clássica, ao contrário – por situar-se no meio termo entre as

duas formas extremas de desequilíbrio dos elementos fundamentais da obra de arte,

ou seja: entre o simbólico, presente na arte oriental antiga, e o romântico, presente

nas obras de arte medievais e modernas – não haveria, segundo Hegel, nem o

irônicas e conhecidas palavras) “não são nem peixe, nem carne, nem poesia, nem filosofia” (“... die weder Fisch noch Fleisch, weder Poesie noch Philosophie sind") (G.W.F. Hegel: Geschichte der Philosophie, vol. III. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1993, p. 417). 10 Cf. G.W.F. Hegel: Vorlesungen über die Ästhetik, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989, vol II, p. 142ff; Cursos de Estética (trad. Marco Aurélio Werle), São Paulo, 2000: EdUSP, vol. II, p. 265ff. 11 Cf. Idem, vol. II, p. 127ff; vol. II, p. 249ff. 12 Cf. Idem, vol. III, p. 131ff; vol. III, p. 277ff.

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Ilustração 5

Ilustração 6

Page 9: Marcia Hegel

predomínio da matéria sensível sobre o conteúdo da idéia, nem a sobre-medida da

idéia ou da interioridade subjetiva sobre a forma material. A arte clássica constitui

então, segundo Hegel, a perfeita realização do ideal, enquanto unidade adequada

entre idéia e forma sensível13. E é por isto que a representação estética do corpo

humano é tão importante na arte clássica.

No período histórico da arte grega, acontece um fenômeno fundamental que

ainda estaria ausente na arte simbólica e que caracteriza para Hegel o início da arte

propriamente dita. Trata-se da antropomorfização da divindade14 – um processo que

só pode ser plenamente compreendido através do simples, mas definitivo, fato de que

o deus grego possui - ao menos em suas representações estéticas (e elas são de fato a

única e verdadeira fonte de acesso ao divino) – um corpo humano15. Isto se efetiva

especialmente quando essas representações estéticas ganham o espaço tridimensional

da obra de arte plástica16, ou seja: quando o deus esculpido, ou quando as esculturas

dos deuses – ao contrário das formas corpóreas mistas com a animalidade dos deuses

antigos orientais, e mesmo das figuras divinas gregas mais primitivas – se erguem

firmes e altivos com seus individualizados corpos humanos, sejam eles masculinos ou

femininos.

Quando Hegel faz referência à arte plástica dos antigos

gregos, como realização do belo, ele tem em mente basicamente

um período especificamente clássico da história da escultura grega

antiga - um período que produziu principalmente as mais

conhecidas estátuas de mármore dos deuses olímpicos. O corpo

material do deus grego pensado por Hegel é o corpo de mármore.

E o mármore é imediatamente a matéria mais bruta existente; a

mais dura; a mais fria; a mais imediatamente distinta do corpo

orgânico do homem. Entretanto, o fascínio desperto por essas

imagens concretas está exatamente na possibilidade que elas nos

oferecem de suspender a apreensão sensível imediata da pedra e imaginar no corpo de

mármore o mesmo calor e maciez do corpo humano. A suavidade de cada gesto, ou

13 Cf. G.W.F. Hegel: Vorlesungen über die Ästhetik, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989, vol II, p. 25ff; Cursos de Estética (trad.Marco Aurélio Werle), São Paulo, 2000: EdUSP, vol. II, p. 166ff. 14 Cf. Idem, vol. II, p. 73; vol. II, p. 205. 15 Cf. Idem, vol. II, p. 84; vol. II, p. 214.16 Cf. Idem, vol. II, p. 366ff; vol. III, p. 114ff.

99

Ilustração 7

Page 10: Marcia Hegel

mesmo a energia de cada ato de luta representado por essas estátuas é tão realista que

nos faz superar a imediatidade de uma percepção sensível, dando a impressão de que

esses corpos esculpidos pulsam e vivem.

A arte bela é então para Hegel a arte realista, a arte que nos leva a crer que

aquilo que é representado – o corpo humano – é real, vive. Por outro lado, esse

perfeito realismo, só é possível, porque ele é constituído através de um processo de

formação da própria idealidade. Esse processo é denominado por Hegel de

idealização do sensível. A arte bela é então, para Hegel, arte ideal. Mas é preciso

compreender exatamente o que significa idealização do sensível. No caso da

escultura, a idealização pode ser compreendida em duas dimensões. A primeira é a

própria espiritualização da matéria sensível, ou seja, uma espécie de “transformação”,

no sentido do termo „Umbildung”, empregado por Hegel, que, além de mudança de

forma, significa reorganização, mudança estrutural, mudança de ordem. Assim, a

mudança da forma bruta da pedra em forma humana da escultura, que é a própria

formação da obra, é a reorganização da matéria sensível em espírito. Vale aqui ainda

lembrar que os termos “Bilden” ou “Bildung”, usados por Hegel para descrever o

trabalho do artista muitas vezes é traduzido como formação e cultura. Desse modo, o

trabalho do escultor clássico é muito mais do que uma mera mediação na mudança de

forma da pedra, pois essa transformação é de fato espiritualização da matéria,

idealização. E esse artista, por sua vez, só é capaz de realizar tarefa tão grandiosa e

importante, porque ele é o próprio espírito, o espírito de seu próprio povo, o espírito

da Grécia antiga:

O espírito grego é o artista plástico, que forma (bildet) a pedra em obra de arte. Nesse formar (Bilden), a pedra não permanece mais uma mera pedra e não traz em si mesma apenas exteriormente a forma (Form), ela é, ao contrário de tal modo (so) transformada (umgebildet) e tornada (gemacht) - também contra a sua natureza - em expressão do espírito.17

A outra dimensão da idealização ou espiritualização da matéria sensível

através da plástica clássica diz respeito à própria corporalidade já formada, pois o

corpo humano do deus grego é já um corpo ideal, ou seja, é um corpo apresentado

livre das contingências naturais que afetam um corpo humano vivo contingente. É

como se, ao esculpir a estátua do deus, o artista não estivesse apenas lapidando os

17 G.W.F. Hegel: Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1990, p. 293 f.

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Page 11: Marcia Hegel

inúmeros ângulos obtusos e imperfeitos da pedra, dando a ela suavidade, esfericidade

e maciez, mas também lapidando as imperfeições características de um corpo humano

em sua constituição natural.

As maiores provas encontradas por Hegel do processo de idealização do

natural realizado intencionalmente pelo próprio artista ao esculpir o deus estão em

certos detalhes da forma, localizados (não por acaso) na face - espaço físico que

concentra os órgãos mais espirituais do corpo humano. O primeiro desses detalhes é a

linha quase vertical do nariz das esculturas gregas clássicas, que muitas vezes foi

interpretada como um traço natural específico de um grupo étnico supostamente

predominante entre os gregos. Mas segundo Hegel, ao representar a cabeça humana

com esse traço, o artista estaria reforçando a diferença entre o ser humano (em geral)

e o animal, pois uma das grandes diferenças entre a cabeça humana e a cabeça de

grande parte dos animais é exatamente a horizontalidade desse traço18.

Outra prova da idealidade do corpo do deus esculpido é encontrada por Hegel

na forma da boca dessas estátuas. Segundo ele, mesmo quando o artista a representa

de forma entreaberta, nunca permite que se mostrem os dentes, o que significa que

sua intenção era revelar não a função animal desse órgão - a mastigação, ou o ato de

comer -, mas a sua função exclusivamente espiritual, para a qual a boca se abriria: a

fala19.

Um terceiro detalhe para demonstrar a idealidade do

corpo do deus esculpido, e ainda localizado na face, são os olhos.

Segundo Hegel os olhos dos deuses de mármore são cegos20. Ele

até considera a possibilidade histórica de que as estátuas gregas

teriam sido originalmente pintadas ou incrustadas com pedras

preciosas, mas prefere considerar que o aspecto dos olhos das

esculturas gregas pertencentes ao período propriamente clássico

sugere a ausência de um sentido em sua forma meramente externa, promovendo assim

um afastamento do deus esculpido em relação próprio mundo sensível em sua

imediatidade. Além disso, ele percebe um certo recuo anti-natural dos olhos na face, o

18 Cf. G.W.F. Hegel: Vorlesungen über die Ästhetik, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989, vol II, p. 383f; Cursos de Estética (trad. Marco Aurélio Werle), São Paulo, 2000: EdUSP, vol. III, p. 127f. 19 Cf. Idem, vol. II, pp. 387 e 393f; vol. III, pp. 129 e 134f.20 Cf. Idem, vol. II, p. 388f; vol. III, p. 130f.

1111

Ilustração Ilustração 88

Page 12: Marcia Hegel

que demostraria a necessidade de acentuar um caráter de interioridade. É como se o

deus esculpido não olhasse para fora, mas voltasse o seu olhar para si mesmo, é como

se ele refletisse:O perfil grego não pode ser considerado como uma forma (Form) apenas exterior ou contingente, ao contrário: o ideal de beleza se faz presente em e para si, primeiro, porque ele é apenas aquela formação do rosto (Gesichtsbildung), na qual a expressão do espiritual coloca o mero natural totalmente em segundo plano, e, segundo, [porque] na maioria das vezes, se retira da contingência da forma (Form), sem mostrar uma mera conformidade a leis (Geseztmaßigkeit), nem excluir toda e cada individualidade21.

Os três exemplos são obviamente questionáveis como “provas históricas”

concretas para demonstrar a aparente tese sobre a intencionalidade do artista.

Poderíamos até afirmar que eles não passariam de “projeções” do próprio filósofo da

arte. Mas é justamente nesse sentido, que eles são extremamente interessantes como

ilustração da compreensão hegeliana sobre a idealidade do corpo representado de

forma bela pela arte. O corpo só pode ser belo se ele for representado idealmente, ou

seja: artisticamente, já que o conceito mais forte de beleza da filosofia da arte de

Hegel se concentra na esfera espiritual e absoluta da arte e não no nível da natureza

imediata. Essa última definição parece então fechar um certo círculo dialético,

iniciado com aquela primeira “definição” de ideal. Vejamos se conseguimos

reproduzir esse círculo através de uma descrição simplificada do desenvolvimento

dialético desse conceito em cinco momentos:

a) O belo ideal é a manifestação sensível adequada da idéia; b) A única forma

material sensível existente no mundo capaz de revelar imediatamente o espírito ou a

idéia é o corpo humano; g) O ideal só se realiza completamente através da

corporificação antropomórfica da idéia ou do conteúdo divino, ou seja, na bela

escultura do deus, que transpõe a forma natural viva e espiritual por excelência para a

natureza imediatamente inanimada; d) O corpo humano só é belo, quando apresentado

de forma ideal, ou seja, não como corpo natural, mas como corpo espiritualizado,

unificado e harmonizado com a idéia; e) O ser humano realiza o ideal quando sua

natureza alcança a unificação entre corpo e idealidade, tornando-se espírito

autoconsciente que intui arte, ou seja, que transforma ou idealiza a forma natural em

obra de arte.

21 Cf. G.W.F. Hegel: Vorlesungen über die Ästhetik, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989, vol II, p. 387; Cursos de Estética (trad. Marco Aurélio Werle), São Paulo, 2000: EdUSP, vol. III, p. 131.

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Page 13: Marcia Hegel

Embora o desenvolvimento do conceito de belo ao longo da filosofia da arte

de Hegel seja um complexo processo dialético que envolve muitas contradições, cuja

descrição mais profunda não caberia aqui22, é possível concluir que a interpretação

mais completa do conceito de obra de arte bela presente na estética hegeliana consiste

no que eu denomino de “co-presença do espiritual e do natural”, uma estrutura que

aparentemente contradiz uma certa lógica exposta inicialmente na estética, cujo

sentido principal aponta para um processo fortemente hierárquico, enquanto

suprassunção gradativa do nível menos espiritual pelo mais espiritual, ou, ao menos,

enquanto elevação a um nível superior de conciliação dessa contradição. Na forma de

arte clássica descrita como momento de realização do ideal, há - a meu ver - um

convívio não hierárquico dos dois elementos, o que insurge na própria contradição do

conceito hegeliano de belo ideal. Essa contradição, longe de ser um erro lógico é

racionalmente apresentada como constituinte do próprio fenômeno do belo. Na

verdade, a convivência harmônica do divino e do sensível no fenômeno mesmo da

obra de arte ideal comporta, contraditoriamente, também uma espécie de tensão

interna entre a espiritualidade e a matéria, o que por sua vez constitui o que eu

denomino de uma “dupla natureza”, a qual caracteriza não apenas a obra de arte em

geral, mas também e acima de tudo a própria essência humana. O conceito hegeliano

de „Trauer“ - que pode ser traduzido como “luto” ou simplesmente “tristeza” -

utilizado para descrever uma espécie de essência pré-trágica do deus esculpido, revela

essa tensão interna ou contradição imanente ao ideal. Os deuses bem-aventurados se entristecem (trauern), ao mesmo tempo, com a sua bem-aventurança e a sua corporalidade (Leiblichkeit), lê-se em sua figuração (Gestaltung) o destino que se lhes antecipa e cujo desenvolvimento - enquanto penetração efetivamente real daquela contradição (Widerspruchs) entre a elevação (Hoheit) e a particularidade; entre a espiritualidade e o ser-aí sensível (sinnlichen Dasein) - conduz a arte clássica de encontro à sua decadência.23

A interiorização do deus esculpido na matéria sensível é descrita por Hegel

ora como sinal de sua espiritualidade, ora como um modo de aprisionamento do

espírito infinito na natureza tão finita da pedra. O deus esculpido é assim a

“repetição” estética da imagem mitológica de Prometeu acorrentado: um deus

22 De fato, essa foi uma das tarefas de minha pesquisa de doutorado desenvolvida em Berlim sob orientação do Prof. Walter Jaeschke e publicada com o título de “O Belo e o Destino”, em 2001, pelas Edições Loyola. 23 Cf. G.W.F. Hegel: Vorlesungen über die Ästhetik, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989, vol II, p. 86; Cursos de Estética (trad. Marco Aurélio Werle), São Paulo, 2000: EdUSP, vol. II, p. 216.

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Page 14: Marcia Hegel

eternamente aprisionado na rocha. É como se, através do fenômeno da beleza, a

divindade, ou – logicamente falando – a idéia, perdesse a alegria ou a bem-

aventurança de sua abstração eterna (enquanto mera idéia de deus, ou como sua

representação religiosa), ganhando – por outro lado e ao mesmo tempo – em beleza

infinita. É desde modo, que eu acredito ver surgir na estética de Hegel a primeira e

mais fundamental transformação do conceito de belo ideal: a partir do surgimento do

que eu denomino de “belo triste” – um precursor do belo trágico. Pois o deus

esculpido – assim como o deus Prometeu – é já o germe do herói trágico, que, ao

elevar ao máximo o processo de antropomorfização do conteúdo divino da arte,

torna-se homem em seu sentido máximo – enquanto ser submetido ao destino de ter

em si uma dupla natureza (a espiritual e a sensível) –, penetrando e inaugurando na

arte o processo de autoconsciência do espírito em sua manifestação no mundo.

Do ponto de vista de sua forma, a tragédia é a entrada em cena do ator, do

homem vivo, que não apenas empresta o seu espírito para representar a tragédia do

destino humano em sua essencialidade, mas que está presente com seu próprio corpo,

em movimento e ação. O corpo vivo do ator trágico é, em sua origem clássica,

revestido ainda por máscara, a qual promove uma continuidade da obra de arte

plástica ideal. Mas essa máscara não tem a função de idealizar um corpo finito, e sim

– contraditoriamente – de exacerbar sua finitude. Por outro lado, o movimento e a

dramaticidade do corpo do ator, longe de libertar a idéia de sua prisão ao sensível –

que caracterizava o deus esculpido – (o que se poderia supor se o processo de

idealização fosse um progresso contínuo), agravam a sua bela tristeza, transformando-

a em beleza trágica.

Nesse sentido, é possível compreender o conceito hegeliano de belo não mais

apenas em sua estaticidade plástica, e sim como impelido dialeticamente a mover-se

através da historicidade revelada pelas diferentes manifestações de obras de arte. O

reconhecimento da historicidade da arte é – por um lado – o reconhecimento de sua

finitude, de seu “fim” como arte bela ou ideal; mas – por outro lado – é também o

reconhecimento de seu infinito movimento no mundo real e efetivo das finitudes. Esse

duplo reconhecimento só é possível, na medida em que se aceita a transformação do

próprio conceito hegeliano de belo. Ele é como o habitar do deus infinito no homem

mortal, que gera uma espécie de tristeza bela, característica do início da

autoconsciência espiritual. O fenômeno da beleza trágica significa – seguindo essa

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Page 15: Marcia Hegel

mesma razão dialética - o momento de superação de um ideal estático de harmonia e

reconciliação, onde, pela primeira vez na história da arte, se acolhe e se aceita a

contra-posição da desarmonia, da morte, do feio de forma não menos bela. Mas essa

nova forma de beleza não é mais tão evidente. A máscara portada pelo ator trágico –

ao contrário da face ideal do deus esculpido – não é imediatamente bela, já que é o

espelho da dor humana, o eco do grito de um ser mortal, que reivindica sua

imortalidade. Mas essa imortalidade é alcançada através da própria realização da obra

de arte.

Se, por um lado, corporalidade sensível da escultura sobrevive além da

corporalidade humana meramente natural – pois que, afinal, a estátua não é uma

múmia –, a partir da tragédia (do teatro), essa corporalidade atinge um grau ainda

mais profundo de infinidade, pois a idéia (o personagem) se incarna nos corpos

múltiplos dos diferentes atores, provando assim não apenas sua infinidade mais

própria, mas também a infinidade da materialidade própria (alcançada através) da arte.

A beleza trágica – que ainda se mostra eternamente atual, na medida em que o

ser humano continua vivendo o drama de sua existência contraditória – sobrevive,

efetivando-se continuamente, como um deus imortal, através dos corpos mortais dos

atores do teatro.

Referências:

Hegel, Gorg Wilhelm Friedrich: Vorlesungen über die Ästhetik (I, II e III). In Werke [in 20 Bänden] (Bd. 13, 14, 15). Frankfurt am Main: Suhrkamp 1989-1990.

__________________________: Cursos de Estética (I, II e III). Trad. Marco Aurélio Werle. São Paulo: EdUSP 2000 – 2001.

__________________________: Philosophie der Geschichte. In Werke [in 20 Bänden] (Bd. 12). Frankfurt am Main: Suhrkamp 1992.

__________________________: Geschichte der Philosophie (III). In Werke [in 20 Bänden] (Bd. 20). Frankfurt am Main: Suhrkamp 1993.

Gombrich, Enst H.: A História da Arte. Trad. Álvaro Cabral, Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Cieníficos Editora 1999.

Gonçalves, Márcia C.F.: O Belo e o Destino. Uma introdução à Filosofia de Hegel. São Paulo: Edições Loyola 2001.

Índice das Ilustrações:

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Page 16: Marcia Hegel

Ilustração 1: “Relevo de Akhenaten como Esfinge”. Relevo em pedra do período da 18ª dinastia do Egito (1349-1336 a C). Egyptian New Kingdom Gallery.

Ilustração 2: “Édipo e a Esfinge”. Vaso no estilo de “figura preta” (470 a 460 a. C.). Museo Etrusco, Vaticano.

Ilustração 3: Pintura de parede do túmulo de Thutakhamon do período de 1330 a. C. Museu Egípcio do Cairo.

Ilustração 4: “Aquiles e Ajax jogando damas”. Vaso no estilo de “figura preta”, assinado por Exekias, do período clássico (aproximadamente 540 a. C.). Museo Etrusco, Vaticano.

Ilustração 5: Alonso Cano: “The Dead Christ Supported by na Angel” (1646-52). Museo del Prado, Madrid.

Ilustração 6: “Apolo de Belvedere”. Escultura em mármore de c. 350 a. C. Cópia romana em mármore segundo uma estátua grega original. Museu Pio Clementino do Vaticano.

Ilustração 7: Cabeça de Hígia (deusa da saúde). Escultura de mármore do templo de Atena Alea, em Tegea, atribuída ao escultor Scopas de Paros, de c. 360 a. C. Museu Arqueológico National de Atenas.

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