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UNIVERSIDADE DE CUIABÁ UNIC/BARÃO COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO, PESQUISA E EXTENSÃO GRADUAÇÃO EM DIREITO O CONTRATO NUMA PERSPECTIVA SOCIAL IVONETE DE FÁTIMA CALLEGARI PADOIN CUIABÁ 2006

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UNIVERSIDADE DE CUIABÁ – UNIC/BARÃO

COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO, PESQUISA E EXTENSÃO

GRADUAÇÃO EM DIREITO

O CONTRATO NUMA PERSPECTIVA SOCIAL

IVONETE DE FÁTIMA CALLEGARI PADOIN

CUIABÁ

2006

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UNIVERSIDADE DE CUIABÁ – UNIC/BARÃO

COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO, PESQUISA E EXTENSÃO

GRADUAÇÃO EM DIREITO

O CONTRATO NUMA PERSPECTIVA SOCIAL

Monografia apresentada à banca examinadora da

Faculdade de Direito da UNIC, como exigência parcial

para obtenção do grau de bacharel em direito.

Aluna: Ivonete de Fátima Callegari Padoin

Orientadora: Professora Marli Teresinha Deon Sette

CUIABÁ

DEZEMBRO/2006

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Agradeço primeiramente a Deus pela inspiração e força diárias;

Aos amigos que me ajudaram das mais variadas maneiras;

De modo especial, aos professores orientadores pela paciência em

receber com tanta compreensão as inúmeras dúvidas e pedidos de

dilações de prazo.

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Quando o direito é desalojado do lugar em que deveria estar, a injustiça não é a culpada

desse fato, mas sim quem se conformou com essa situação.

(Rudolf Von Ihering)

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RESUMO

O estudo pretende observar as alterações introduzidas no Código Civil,

principalmente tendo em vista o fenômeno da constitucionalização dos microssistemas

jurídicos que, por conseqüência, culminou numa releitura do direito privado, destacando-

se o âmbito contratual. Os contratos não mais refletem o modelo que imperava no Estado

Liberal, cujo princípio central era o da autonomia da vontade. Com as transformações

políticas, econômicas e sociais que deram origem ao Estado Social, o contrato assume

nova diretriz, mais comprometida com os interesses sociais, deixando de ser um mero

instrumento de realização individual dos contratantes. O contrato avoca para si uma

função social, pela qual há preponderância dos valores metaindividuais sobre os

estritamente patrimoniais.

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SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS.....................................................................................................................2

EPÍGRAFE.......................................................................................................................................3

RESUMO.........................................................................................................................................4

INTRODUÇÃO................................................................................................................................9

CAPÍTULO I

A AUTONOMIA DA VONTADE E A CRISE DO CONTRATO...............................................13

CAPÍTULO II

DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL........................................................................................17

CAPÍTULO III

O SISTEMA DE CLÁUSULAS GERAIS E OS PRINCÍPIOS DO NOVO CÓDIGO ...............20

3.1 SISTEMA DE CLÁUSULAS GERAIS...................................................................................20

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3.2 PRINCÍPIOS DO CÓDIGO CIVIL DE 2002..........................................................................21

3.2.1 Eticidade..................................................................................................................22

3.2.2 Socialidade..............................................................................................................23

3.2.3 Operabilidade..........................................................................................................26

CAPÍTULO IV

COTEJO ENTRE OS PRINCÍPIOS DA LEI CONSUMERISTA E OS PRINCÍPIOS DO

CÓDIGO CIVIL.............................................................................................................................27

4.1 PRINCÍPIO DA VULNERABILIDADE.................................................................................27

4.2 PRINCÍPIO DA HIPOSSUFICIÊNCIA CONTRATUAL......................................................28

4.3 PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA....................................................................................28

4.4 PRINCÍPIO DA REVISÃO CONTRATUAL POR SIMPLES ONEROSIDADE OU

PRINCÍPIO DA EQÜIDADE CONTRATUAL............................................................................29

4.5 PRINCÍPIO DA CONSERVAÇÃO DO CONTRATO...........................................................31

4.6 PRINCÍPIO DA EQUIVALÊNCIA CONTRATUAL.............................................................32

4.7 PRINCÍPIO DA TRANSPARÊNCIA......................................................................................32

4.8 PRINCÍPIO DA REPARAÇÃO INTEGRAL DE DANOS....................................................33

4.9 PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE CONTRATUAL..........................................................34

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4.10 PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO.......................................................34

CAPÍTULO V

INOVAÇÕES PRINCIPIOLÓGICAS DO CONTRATO NA NOVA CODIFICAÇÃO

PRIVADA......................................................................................................................................36

5.1 PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE X PRINCÍPIO DA AUTONOMIA

PRIVADA......................................................................................................................................36

5.2 PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DA ORDEM PÚBLICA.....................................................40

5.3 PRINCÍPIO DA FORÇA OBRIGATÓRIA DOS CONTRATOS...........................................42

5.4 PRINCÍPIO DA RELATIVIDADE DOS EFEITOS CONTRATUAIS..................................44

5.5 PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA....................................................................................45

5.6 PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO.........................................................52

5.6.1 Função social do contrato como princípio constitucional.......................................53

5.6.2 Função social do contrato e os negócios jurídico-formais......................................54

5.6.3 Função social do contrato e lesão subjetiva............................................................55

5.6.4 Função social e a possibilidade de conversão do contrato nulo..............................60

5.6.5 Função social do contrato e o abuso de direito.......................................................61

5.6.6 Função social do contrato e os contratos de adesão................................................62

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5.6.7 Função social do contrato e a revisão contratual.....................................................65

5.7 QUESTÕES DE DIREITO INTERTEMPORAL....................................................................67

CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................................69

BIBLIOGRAFIA............................................................................................................................73

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INTRODUÇÃO

Pretende-se demonstrar algumas das mais significativas mudanças

implantadas pelo novo Código Civil consistentes na previsão explícita de normas que

consagram a boa-fé objetiva, a função social do contrato e a relatividade dos contratos,

tornando possível a sua revisão toda vez que houver necessidade de reequilibrar a sua

equação econômica. Com o seu advento, novos rumos se anunciam para o direito privado,

calcados na eticidade, socialidade e economicidade.

É incontestável que a noção de contrato preconizada pelo Código Civil

de 1916 transformou-se ao longo do tempo, seja no conteúdo, seja nas funções, em

decorrência do próprio desenvolvimento da sociedade. Novas modalidades de contratação,

como os contratos de adesão, os padronizados e, mais recentemente, os eletrônicos,

apareceram e, como efeitos dessa situação, o tratamento clássico para as relações

contratuais tornou-se impróprio, por tolerar que contratos injustos fossem ratificados, sob o

amparo do axioma pacta sunt servanda ou do contractus ex conventione partium legem

accipiunt (os contratos são lei por convenção entre as partes).

Verificar-se-á até que ponto a autonomia da vontade é efetivamente

exercida, principalmente quando se vive outra realidade contratual. Esse novo contexto

deve ser enfrentado para que seja definido se o contrato está ou não em crise ou até mesmo

se corre o risco de desaparecer.

Perceber-se-á que o novo Código Civil busca a coexistência harmônica

entre os interesses particulares dos contratantes e os anseios da coletividade, empreitada na

qual são imprescindíveis os princípios tendentes a flexibilizar velhos brocardos de direito

civil, em verdadeira expressão da socialidade em sentido amplo.

A partir dessa reformulação do diploma legal que rege as relações

privadas, iniciou-se o que vem sendo intitulado de “novo direito civil”, que tem, repita-se,

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como umas de suas principais características a previsão expressa de princípios que já

deveriam incidir nas relações entre os indivíduos, mas que ganharam mais força com a

mencionada positivação, a maioria deles com lastro na própria Constituição Federal, daí

originando-se o epíteto “direito civil constitucional”.

A Constituição Federal de 1988 modificou de forma extraordinária o

Direito Privado, principalmente quanto à configuração tradicional de contrato,

fundamentada em interesses eminentemente individuais. Essa ingerência vem sendo

designada de constitucionalização do Direito Civil, circunstância essa que tem ocasionado

o seu exame em conformidade com o texto constitucional e seus limites.

Ainda que a livre iniciativa esteja entabulada no caput do art. 170 do

Texto Maior, está ela agregada à valorização do trabalho humano, à existência digna,

conforme orientam as máximas da justiça social. Esta, por sua vez, para ser alcançada,

requer a diminuição das desigualdades sociais. Nesse aspecto, o princípio constitucional da

dignidade da pessoa humana é inconciliável com cláusulas contratuais que sejam desiguais,

de forma que todo ajuste que provoque a qualquer dos pactuantes uma diminuição de sua

dignidade ofenderá um preceito constitucional basilar, sendo certo que o Direito tem por

propósito constante diligenciar a preservação da dignidade humana.

À teoria geral do contrato somam-se, portanto, os novos princípios

positivados na novel codificação privada. Por conseguinte, o contrato, que é a mais

importante fonte do direito obrigacional, vem sofrendo alterações substanciais, pois o

fundamento da autonomia plena da vontade sobre o qual se sustentou por longo tempo vem

sendo construído com base na realidade social, não se olvidando, no entanto, a importância

da vontade na sua criação e a força obrigatória que ostenta.

O legislador brasileiro, ao promover o Código de Defesa do Consumidor,

deu vigência aos rigorosos termos do art. 170 do Texto Constitucional, que estabelece a

defesa do consumidor como um de seus princípios.

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Nesse ponto, procurar-se-á demonstrar o papel que a Lei do Consumidor

assumiu perante a reformulação da codificação privada. Verificar-se-á que antes mesmo do

advento do Código Civil de 2002, a Lei nº 8.078/90 já havia modificado os princípios da

autonomia da vontade, da força obrigatória e da relatividade dos contratos, sendo

precursora de uma verdadeira revolução doutrinária que culminou com a alteração de

arraigados dogmas do Direito Civil. Essa tendência é consagrada pelo novo Código Civil,

que segue, dentre outros, os princípios da autonomia privada, da boa-fé objetiva e da

função social do contrato, considerados princípios sociais contratuais.

Em síntese, o intuito do presente trabalho é tentar definir o conteúdo de

cada um dos novos princípios aplicáveis aos contratos, combatendo a negligência com que

têm sido tratados pela doutrina, ainda escassa e confusa sobre o tema. Há acentuada

preocupação em delimitar objetivamente o princípio da função social do contrato e

demonstrar as suas características próprias.

Procurar-se á, ainda, chamar a atenção para os limites a serem

respeitados na aplicação dos novos princípios do contrato. A intervenção judicial na

autonomia do contrato deve ser comedida, não podendo o Juiz substituir a vontade

contratual pela sua, ou seja, os princípios da boa-fé, do equilíbrio e da função social do

contrato devem ser utilizados como técnicas de hermenêutica, que não impliquem na

supressão da vontade lícita declarada pelos sujeitos do negócio. A positivação de

princípios sociais no Código Civil de 2002 não fez com que os critérios clássicos do

Direito Civil perdessem importância, mas apenas que sua análise se faça à luz de valores e

princípios, e não somente de normas.

O ideal, na verdade, é que seja feita uma interpretação sistemática de

todo o ordenamento jurídico, promovendo uma “interdisciplinariedade” entre os

microssistemas legais, mas orientando-se sempre pelo ponto de vista constitucional, cuja

essência indica a necessidade de se atribuir ao contrato uma função social, para que ele seja

firmado em benefício dos contratantes, mas sem conflitar com o interesse público, o que

constitui o já citado processo de constitucionalização do direito privado.

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Ao colocar em prática o novo diploma civil, deve-se dar prevalência à

posição intermediária, em que são intercalados o interesse individual e o social, numa

relação de complementaridade, na qual seja possível encontrar soluções eqüitativas, uma

vez que somente uma aplicação escorreita e honesta fará com que o Código Civil de 2002

possa eficazmente orientar a vida em sociedade, deixando de ser apenas um amontoado de

palavras sem força para sair do papel.

Na etapa final, devidamente enfrentadas as cizânias que circundam a

matéria, poder-se-á chegar a uma idéia do que seja o processo modernamente desejado.

Reforça-se, dessa maneira, a concepção do processo como relação de direito público, na

qual o Julgador desempenha função estatal de extrema importância. É essencial que o Juiz

ultrapasse a figura de mero árbitro do litígio, assumindo papel decididamente ativo na

condução da controvérsia entre os litigantes e na aplicação da nova carga axiológica que

rege os contratos, notadamente o princípio da função social.

Por isso, o que se propõe é tão-somente apontar as alterações

principiológicas que pairam sobre o direito obrigacional, para que ao fim desta obra seja

possível traçar um lume de suas implicações práticas.

Feitas estas considerações, pode-se alcançar as condições necessárias

para que seja procedida uma apreciação crítica dos objetos de nossa abordagem.

Apanhando elementos da moderna e mais atualizada doutrina do processo, esforçar-se-á

por apontar os caminhos que levem à efetividade dos princípios introduzidos na nova

codificação privada, perpassando pelos problemas mais relevantes trazidos conjuntamente

com todas as inovações.

Como objetivo preeminente deste trabalho científico está a tentativa de

colaborar na reflexão sobre as possíveis soluções para o avanço do direito contratual e, por

conseqüência lógica, a melhoria da vida das pessoas, visto que este deve ser o fim máximo

da ciência.

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CAPÍTULO I

A AUTONOMIA DA VONTADE E A CRISE DO CONTRATO

Diversos elementos influenciam no aparecimento de novos contratos e de diferentes

maneiras de contratação, não sendo mais aceitável que o direito se atenha a conceitos

herméticos, que foram suficientes para atender a um determinado período.

As inovações no âmbito contratual, viabilizada pela variedade de contratos (de

adesão, por telefone, pelos meios da informática, contratos internacionais, etc.), exigem

que o sistema legal se transforme para se adequar e alcançar as novas situações jurídicas

que surgem diariamente.

Diante desse quadro fático, o princípio da autonomia da vontade – base do direito

contratual – vem sendo substituído pelo princípio da autonomia privada. Por meio deste,

estão sendo inseridas limitações concernentes à constituição e à validade dos negócios

jurídicos, dentre elas a eficácia social. Por conseguinte, verifica-se nítida ligação do

princípio da autonomia privada com o princípio da função social do contrato – objeto deste

estudo.

Nesse ponto, é pertinente citar a conclusão resultante da I Jornada de Direito Civil,

realizada em setembro de 2002, cujo enunciado 23 segue transcrito:

A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não

elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance

desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse

individual relativo à dignidade da pessoa humana. (retirado do endereço

eletrônico

http://www.cjf.gov.br/revista/enunciados/IJornada.pdf#search=%22I%20jornada

%20de%20direito%20civil%22).

Da leitura do referido enunciado, pode-se notar que ele indica a interação entre os

direitos patrimoniais e os direitos da personalidade, preconizada pelo direito civil moderno,

para o qual o contrato atual é constituído por uma sucessão de fatores e não mais somente

pela vontade dos contratantes. Essa é a essência do princípio da autonomia privada.

De volta à análise do que hodiernamente tem acontecido, pode ser constatada a

habitual celebração de contratos em que há, de um lado, uma parte economicamente mais

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forte, que direciona as cláusulas contratuais, e, de outro, a parte mais frágil, cuja vontade

fica prejudicada. Mas tal domínio de uma pessoa sobre outra não é somente econômico,

podendo ser de também de ordem política, como ocorre, por exemplo, em contratos

administrativos.

Igualmente costumeira a imposição do conteúdo do contrato em razão de a

contraparte, por premente necessidade ou inexperiência, não ter opção diferente, que não

seja a realização do contrato, fato que configura o instituto da lesão subjetiva, que é vício

do negócio jurídico previsto no art. 157 do novo Código Civil.

Pelas considerações expendidas, pode-se afirmar que o princípio da autonomia

privada é regra de ordem particular, mitigável quando confrontada com normas cogentes,

de ordem pública, que têm por finalidade suavizar o desequilíbrio entre o contratante

economicamente hígido e o consumidor fraco.

Em síntese, significa que, na formação do contrato, além da vontade das partes,

outros fatores são determinantes, como os psicológicos, os econômicos e os sociais.

A substituição do princípio da autonomia da vontade pelo da autonomia privada

traz relevantes conseqüências para o direito contratual. Francisco Amaral, citado por

Flávio Tartuce, indica com maestria a relação entre a autonomia privada e a função social

do contrato:

emprestar ao direito uma função social significa considerar que os interesses da

sociedade se sobrepõem aos do individuo, sem que isso implique,

necessariamente, a anulação da pessoa humana, justificando-se a ação do

Estado pela necessidade de acabar com as injustiças sociais. (AMARAL,

Francisco, apud TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos: do Código de

Defesa do Consumidor ao novo Código Civil. São Paulo: Método, 2005, p. 148).

Da relação acima referida resulta que o ato de contratar não deve se converter em

abuso do direito, nem em aproveitamento de uma condição subalterna da outra parte. Por

isso, o Código Civil estabelece nulidade para o negócio jurídico firmado com lesão e prevê

o abuso de direito (arts. 157 e 187, CC, respectivamente). Além disso, o contrato deve ser

interpretado à luz da boa-fé (art. 113, CC), que é princípio de convivência social e deve ser

observada na origem do contrato, e, no decorrer de sua vigência, a probidade e a lealdade

devem acompanhá-lo.

De igual maneira, a excessiva onerosidade é causa de resolução do contrato. Isso

revela que, se as condições existentes no momento da celebração do pacto sofrerem

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modificação durante a sua execução e, em razão de acontecimentos extraordinários e

imprevisíveis, a prestação se tornar excessivamente onerosa, o contrato não obrigará (art.

478, CC). Não é socialmente aceitável que uma parte tenha lucro em razão de algum fato

imprevisível, sendo quase inevitável a resolução do contrato. Para estes casos, é entregue

ao Juiz, como intérprete da consciência pública, o poder bastante para suspender ou pôr

fim ao cumprimento ou para efetuar a revisão do contrato.

Mas não é de se supor que a intenção seja a de desprestigiar o cumprimento dos

contratos, principalmente diante da exagerada quantidade de ações em que devedores

relapsos ou contumazes objetivam tão-somente o amparo legal para continuarem

descumprindo as avenças.

Com o advento do novo Código Civil, a expectativa é de que incontáveis demandas

sejam ajuizadas para pleitear a anulação, a extinção ou a revisão de contratos, e, muitas

vezes, os autores de tais ações não poderão ser considerados inocentes, ao contrário,

poderão se caracterizar como verdadeiros descumpridores de contratos assumidos,

procurando desviar o sentido natural dos institutos jurídicos.

Registre-se que a autonomia da vontade não deixou de existir, nem o contrato está

“em crise”. Há, sim, uma mudança interpretativa, em que a manifestação da vontade, em

contratos de adesão, por exemplo, não se caracteriza pela vontade livre e consciente do que

está sendo deliberado, mas do que está sendo imposto pela parte mais forte.

Entretanto, não há o que justifique a distorção de institutos jurídicos, como a atitude

de má-fé, a flagrante intenção de não cumprir os pactos, para simplesmente ignorar o seu

conteúdo. Por tais razões, é indispensável que o exercício da jurisdição seja feito com

muita cautela para somente afastar o consentimento em situações de evidente abuso.

A decadência do dogma pacta sunt servanda como algo absoluto e o desequilíbrio

que pode haver entre aquele que contrata com esperteza, valendo-se do estado de

subordinação da contraparte, levaram à polêmica de que o contrato está em crise.

Há que se refletir em como se admitir esta crise quando há uma surpreendente

proliferação de contratos, que se reproduzem a todo instante. Talvez seja o caso de se

reconhecer uma crise de crescimento e/ou o rompimento do contrato com a sua concepção

clássica para que possa ser adaptado ao mundo econômico e social do século XXI.

A crise que pode sim ser vislumbrada diz respeito à autonomia da vontade, mais

especificamente no tocante ao direito dos negociantes em determinar o conteúdo da relação

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negocial. Assim, não se constata um declínio do tipo contratual nem se afigura o seu fim,

mas não há como negar que ele está sofrendo um processo de transformação e de

renovação.

Há aqueles, no entanto, apegados ainda aos preceitos originários do contrato, que

insistem na aplicação plena e absoluta da autonomia da vontade, reivindicando a

restauração da noção clássica do instituto. Ponderam, entretanto, que o retorno ao

inveterado pacta sunt servanda somente será efetivo quando forem restabelecidos os seus

elementos estruturais: a liberdade, a moralidade e a legalidade.

O foco do presente trabalho é demonstrar que o contrato traz em si uma função

social que se destina à concretização do bem comum. A socialidade e a eticidade

disseminadas no Código Civil de 2002 refletem bem esse aspecto, indicando a passagem

da moral individual para uma mais comprometida com o social e, por óbvio, o direito não

pode ficar imune às alterações que ocorrem na realidade do mundo empírico.

O objetivo perseguido é que a declaração formulada em qualquer contrato esteja de

acordo com o ordenamento jurídico, sem vulnerar os grandes pilares assentados nos

princípios da sociabilidade e da eticidade; que o contrato seja instrumento de utilidade,

tanto individual como social, já que a liberdade de contratar está subordinada à função

social. Seguidos estes preceitos, a avença terá força, pautada na garantia de que houve

justiça na operação materializada no instrumento de contratação.

As palavras finais desse capítulo são as de Antonio Jeová Santos:

Em conclusão, diante do inevitável progresso econômico, irmão gêmeo do

desenvolvimento tecnológico, a autonomia da vontade, tal como concebida no

liberalismo econômico, está em franca decadência. Não que isso seja negativo.

Pelo contrário, a constatação de que os mais débeis não podem ser espremidos

por quem detém o poder é fator de pacificação social. Se as partes não têm

oportunidade de negociar o conteúdo do contrato, diante do fenômeno dos

pactos de adesão, a autonomia da vontade sustentada pelo princípio da

liberdade de contratar já não está incólume e necessita de adaptações que tanto

o Código Civil como o Código de Defesa do Consumidor estão conseguindo

sustentar.

Era insustentável que o legislador efetuasse a revisão de estruturas arcaicas,

fontes de indesejável injustiça, fundamentada na teoria clássica do contrato. O

diálogo entre o forte e o débil, se não é possível na contratação massiva, pois ao

interessado somente resta aceitar ou rejeitar o que lhe é posto, é feito pelo

direito positivo que consagra a boa-fé, o efeito relativo do contrato, pune o

abuso do direito e reafirma que a interpretação deve ser feita favor debilis.

(SANTOS, Antonio Jeová. Função social do contrato. 2. ed., São Paulo: Editora

Método, 2004, p. 57/58).

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CAPÍTULO II

DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL

É indubitável que o direito civil está intrinsecamente atrelado ao direito

constitucional. Apesar de ser o óbvio, essa afirmação sintetiza a nova visualização do

direito privado.

A abordagem da acepção constitucional do direito civil servirá para indicar o

fundamento constitucional do princípio da função social do contrato, que está fortemente

ligado à proteção da dignidade da pessoa humana, à solidariedade social, à igualdade em

sentido genérico, à busca de uma ordem econômica de acordo com os ditames da justiça

social e à socialização da propriedade.

Proceder-se-á a algumas considerações a respeito da relação entre o direito civil e o

direito constitucional.

A Constituição visa à disciplina da organização fundamental do Estado e à

limitação do poder. Já o Código Civil regulamenta a relação entre os particulares, de forma

concreta, não abstrata e genérica.

A distância entre os dois diplomas e entre os próprios direitos público e privado foi

sendo encurtada em razão, preponderantemente, do fenômeno da busca do Estado Social.

Não se pode deixar de lado o momento histórico em que foi elaborado o Código

Civil de 1916. Teve influências do Código Napoleônico e das Codificações do século XIX.

A relação entre indivíduo e propriedade era o centro do universo do direito privado, não

sofrendo interferência do Poder Público, fato que culminou numa extrema valorização da

garantia do livre desenvolvimento da atividade econômica privada.

Critica-se, nesse aspecto, a codificação emergente, por ter perdido uma grande

oportunidade de inserir no seu texto a descrição e a explicação dos princípios

constitucionais, trabalho que agora competirá ao intérprete.

À primeira vista, a própria definição de direito civil constitucional pode dar a falsa

impressão de ser um paradoxo.

Flávio Tartuce traz importantes esclarecimentos a respeito desse assunto, que

seguem transcritos:

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A verdade é que o chamado direito civil constitucional é apenas uma variação

hermenêutica, uma mudança de atitude no ato de interpretar a lei civil em

confronto com a Lei Maior. Muitas vezes, ademais, necessário confirmar a

afirmação que as principais novidades do direito privado não foram trazidas

pela codificação emergente, mas com a promulgação da Constituição Federal

de 88. (Op. cit, p. 63).

A consagração do direito civil constitucional traz uma inversão na forma de

interação dos dois ramos do direito, o público e o privado, passando a interpretar o Código

Civil segundo a Constituição Federal, diferentemente do que se costumava fazer. Há hoje

uma relação de complementaridade, em oposição à incomunicabilidade até então pregada

entre direito civil e direito constitucional.

De todo o exposto, já se pode concluir que o direito constitucional e o direito civil

não devem ser isolados um do outro, mas sim sistematicamente interpretados.

Não se quer aqui afirmar que essa interpretação deva levar a uma fusão de

conceitos, até porque a norma constitucional é uma regra geral voltada para a atuação do

Estado em face da sociedade, mas havendo regra específica para as relações entre os

particulares, é natural que a interpretação de tal norma seja feita em harmonia com a regra

geral.

Mais uma vez, cita-se Flávio Tartuce, que ensina:

Há, dessa forma, não uma invasão do direito constitucional sobre o civil, mas

sim uma interação simbiótica entre eles, funcionando ambos para melhor servir

o todo (...).

Assim o direito civil constitucional nada mais é do que a harmonização entre os

pontos de intersecção do direito público e o direito privado, mediante a

adequação de institutos que são, em sua essência, elementos de direito privado,

mas que estão na Constituição, sobretudo em decorrência das mudanças sociais

do último século e das transformações das sociedades ocidentais. (Op. cit., p.

64).

Não se pode mais conceber o Código Civil como a Constituição do direito privado,

pois o texto constitucional está sendo permeado, aos poucos, de conceitos principiológicos

relacionados a matérias anteriormente reservadas de forma exclusiva ao Código Civil,

como a função social da propriedade, os limites da atividade econômica e a organização da

família.

Será demonstrado, ao longo deste trabalho, que o direito público mantém estreita

relação com o direito contratual, devendo ser exercida uma interpretação civil-

constitucional do contrato, principalmente no que concerne ao princípio da função social,

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que tem previsão na Carta da República. Por isso, o estudo está estruturado nos três

princípios básicos do direito civil constitucional: dignidade da pessoa humana (art. 1º, III,

CF), solidariedade social (art. 3º, I, e art. 170, CF) e isonomia (art. 5º, caput, CF).

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CAPÍTULO III

O SISTEMA DE CLÁUSULAS GERAIS E OS PRINCÍPIOS DO NOVO CÓDIGO

3.1 SISTEMA DE CLÁUSULAS GERAIS

O novo Código Civil foi instituído pela Lei nº 10.406/2002. Dentre as diretrizes

básicas seguidas pela comissão revisora do novo Código, encontra-se enfatizada a

alteração principiológica do direito privado, em relação aos preceitos básicos que

constavam na codificação anterior, buscando o novo Código Civil valorizar a eticidade, a

socialidade e a operabilidade, que serão abordados oportunamente.

Além da mudança no âmbito dos princípios, o novo Codex busca também a

valorização de um sistema baseado em cláusulas gerais, que possibilitam certa margem de

interpretação ao Julgador.

Há quem discorde, contudo, desse sistema de cláusulas gerais. É o que observa

Flávio Tartuce, ao mencionar a crítica desenvolvida por Gustavo Tepedino, nos seguintes

termos:

Gustavo Tepedino critica esse sistema de cláusulas gerais, lembrando que ele

não deu certo entre nós em outras oportunidades. Salienta que a cláusula de

boa-fé objetiva constava do Código Comercial de 1850 e sequer foi utilizada.

(...) Tepedino continua a sua crítica, apontando que o sistema de cláusulas

gerais gera desconfiança, incerteza e insegurança, tornando árduo o trabalho

da jurisprudência. Em codificações anteriores, exemplos do direito comparado,

tendo em vista o alto grau de discricionariedade atribuído ao aplicador do

direito, as cláusulas gerais tornaram-se letra morta ou dependiam de uma

construção doutrinária capaz de lhe atribuir um conteúdo mais objetivo.”

(TEPEDINO, Gustavo, apud TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos:

do Código de Defesa do Consumidor ao novo Código Civil. São Paulo: Método,

2005, p. 41/42).

Parece mais prudente, no momento, formular dois questionamentos e deixar que o

tempo e a prática indiquem a resposta.

Será que o sistema de cláusulas gerais é realmente interessante para a nossa

realidade política, social e jurídica?

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Será que ele irá, efetivamente, funcionar na prática?

O conceito de função social do contrato se enquadra como cláusula geral do direito

contratual, diante de sua grande generalidade, a ser preenchida pelo aplicador do direito, a

quem compete completar o trabalho do legislador (que inseriu inúmeras cláusulas gerais no

novo Código Civil), criando o direito caso a caso.

Na análise dos institutos jurídicos presentes no novo Código, muitos deles abertos e

genéricos, o jurista e o magistrado deverão adentrar profundamente nos fatos que

circundam o caso, para então, de acordo com os seus valores – constituídos após anos de

estudo e de experiências – aplicar a norma conforme os seus limites, procurando sempre

interpretar sistematicamente a legislação privada.

A teoria tridimensional do direito, fundada nos elementos de fato, valor e norma,

tão difundida por Miguel Reale, tem plena incidência nesse processo de exegese.

De acordo com a teoria de Reale, primeiro o Magistrado apreciará as questões de

acordo com a sua cultura, sendo que os aspectos culturais e valorativos do Juiz serão

essenciais para que ocorra o preenchimento da discricionariedade deixada pela norma.

Segundo, o fato é de grande relevância, ou seja, a história do processo e dos

elementos jurídicos a ele relacionados, das partes que integram a lide e também a história

do Julgador, repercutem no processo de interpretação.

E ainda, a experiência do aplicador do direito, responsável pela junção de fato e

valor, para que seja aplicada a norma.

3.2 PRINCÍPIOS DO CÓDIGO CIVIL DE 2002

O estudo dos princípios que sustentam a emergente codificação privada é de suma

importância para que se possa entender os institutos e condições básicas que surgem com

esse novo ordenamento e as repercussões geradas para o direito contratual, especificamente

no que concerne à adoção do princípio da função social do contrato.

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3.2.1 Eticidade

O novel Código Civil se distancia do tecnicismo institucional advindo do direito

romano, procurando, em vez de valorizar formalidades, reconhecer a participação dos

valores éticos em todo o direito privado. É o desapego ao formalismo jurídico que fora tão

presente no Código de 1916. Por isso, muitas vezes, nota-se a previsão de preceitos

genéricos e cláusulas gerais, sem a preocupação de que haja perfeita subsunção entre as

normas e os fatos. O novo Código abandona o excessivo rigor conceitual, possibilitando a

criação de novos modelos jurídicos, a partir da interpretação da norma diante de fatos e

valores. É sob esse enfoque que o conceito de função social do contrato deve ser analisado.

Na aplicação do direito, passa-se a ter uma amplitude maior de interpretação.

Muitas vezes, os profissionais do direito terão de preencher as brechas e as margens de

interpretação deixadas pelas cláusulas gerais, sempre lembrando da proteção da boa-fé, da

moral, da ética e dos bons costumes. Em projeção da função social do contrato, menciona-

se como exemplo a possibilidade de uma cláusula negocial ser considerada abusiva, fato

que gera a sua nulidade absoluta.

Apreende-se o princípio da eticidade pela leitura de diversos dispositivos da nova

codificação. Dá-se como exemplo do sólido conteúdo ético da codificação de 2002 o art.

113, que traz a boa-fé como forma de interpretação dos negócios jurídicos e a sua

observância a quem se predispuser a contratar (art. 422), bem como a positivação do abuso

do direito (art. 187). Em razão de sua importância, colaciona-se a norma do art. 113 que

preconiza que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos

do lugar de sua celebração”.

Tal dispositivo repercute profundamente nos contratos, mantendo relação direta

com o princípio da função social do contrato, conforme tópicos adiante abordados.

Da mesma forma, na parte geral do Código Civil, o art. 167, § 2º, ao tratar da

simulação, enuncia que estarão protegidos os direitos dos terceiros de boa-fé em face dos

contratantes do negócio jurídico simulado.

O art. 187, por sua vez, prevê sanção para a pessoa que contraria a boa-fé, a função

social ou econômica de um instituto – hipótese em que se enquadra a função social do

contrato – ou os bons costumes. Confira-se o seu teor:

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“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que,

ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu

fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”

A eticidade é valorizada ainda pelo art. 422 ao dispor que a boa-fé deve integrar a

conclusão e a execução do contrato, trazendo, este dispositivo legal, conseqüências

importantes a serem enfrentadas nos tópicos seguintes. Pode-se afirmar, desde já, sua

íntima relação com o princípio da função social do contrato.

Vale citar também outros arts. do Código Civil atual que fazem menção expressa à

boa-fé: arts. 164, 242, 286, 307, 523, 606, 686, 689, 765, 814 e art. 856.

3.2.2 Socialidade

Deve-se atentar para o fato de que o novo diploma legal procura superar o caráter

individualista dominante no Código anterior, valorizando o vocábulo “nós”, em detrimento

da palavra “eu”. É o enaltecimento do princípio da socialidade ou socialibilidade, precursor

da função social do contrato.

Antonio Jeová Santos demonstra a idéia trazida pela socialidade:

O apego exagerado à declaração de vontade, o tomar o indivíduo em si por si,

como se fosse uma entidade que pudesse viver com auto-suficiência, é

substituído pela pessoa encadeada à comunidade em que atua, confundindo-se

indivíduo e meio social. Os fatores internos, de cada um, já não podem ser

materializados sem que seja pensada a finalidade social do ato manifestado.

(Op. cit., p. 100).

Ao analisar o princípio intitulado, não se pode esquecer inúmeras modificações

pelas quais passou a sociedade, dentre elas o incremento dos meios de comunicação, a

estandardização dos negócios e o surgimento da sociedade de consumo em massa, ou seja,

o aparecimento de uma nova realidade que atingiu os alicerces de praticamente todos os

institutos privados. Nesse novo contexto, deverá prevalecer o social sobre o individual, o

coletivo sobre o particular.

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É interessante mencionar que a socialidade não é inovação do novo diploma

privado, uma vez que já se encontrava, há muito tempo, positivada no ordenamento

jurídico pátrio, mais especificamente no art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil –

LICC, sendo este o verdadeiro nascedouro da socialidade.

Mais uma vez, busca-se a obra doutrinária de Flávio Tartuce para esclarecer o tema:

a socialização dos modelos jurídicos é uma das características mais marcantes

do novo Código e seu significado é o da prevalência dos valores coletivos sobre

os individuais, e da revisão dos direitos e deveres dos cinco personagens do

direito privado tradicionais: “o proprietário, o contratante, o empresário, o pai

de família e o testador". (Op. cit., p. 47).

Quanto ao proprietário, percebe-se a expressa previsão legal de proteção de sua

função social no art. 1.228, § 1º, do Código Civil de 2002, confirmando o que já era

consubstanciado na Constituição da República (art. 5º, XXII e XXIII, e art. 170, III).

Na esfera dos direitos pessoais, a função social do contrato está identificada nos

arts. 421 e 2.035, parágrafo único, do novo Código, sendo estes dispositivos legais o

enfoque principal do presente trabalho.

Também a empresa comporta uma função social. Prova disso são os vários

comandos do Código de 2002 que valorizam a função social da pessoa jurídica.

A família, cerne da vida em comunidade, obviamente tem função social, já que é

instrumento básico para a vida fraterna do ser humano, inserindo-se dentre os direitos de

terceira geração. Remete-se ao art. 1.511 do novo Código Civil, no qual há o

reconhecimento da igualdade entre os cônjuges, em atenção à função social da família.

No aspecto sucessório também há repercussões sociais, como se dá, por exemplo,

com a morte. Deve ser observado que o art. 1.848 do novel Codex, ao tratar das cláusulas

testamentárias de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade, prescreve a

necessidade de justificação de tais cláusulas, atribuindo, portanto, função social ao

testamento.

Como se vê, o novo Código abandonou o formalismo técnico-jurídico para assumir

um sentido mais aberto e compreensivo, sobretudo numa época em que o desenvolvimento

dos meios de informação vem ampliar os vínculos entre os indivíduos e a comunidade.

Reforça-se, com isso, a já defendida idéia de uma concepção civil-constitucional do

direito privado, pois seu estudo não é possível se não se der de maneira conjunta com os

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princípios da dignidade (art. 1º, CF), da solidariedade (art. 3º, CF) e da isonomia ou

igualdade lato sensu (art. 5º, CF), que constituem elementos estruturais do direito civil

constitucional.

O direito moderno está vivenciando a sua terceira fase, em que se faz presente a

influência do mundo digital, da informática, da computação, da cibernética. O novo

Código Civil possibilitou a utilização da expressão “moderno direito civil”.

Passa-se por um momento em que tudo se transformou em modelo, sendo

estandardizado, e, na seara contratual, como já asseverado, impera os contratos modelo. É

crucial que diante desse quadro seja efetivada uma interpretação sociológica do direito, a

partir também das experiências pelas quais já passaram as pessoas, os governantes, os

juristas.

Essa é a tendência do direito atual, sendo dela decorrente a já conhecida emergência

dos direitos difusos e coletivos, bem como a crescente ingerência que a esfera pública

passou a exercer sobre a esfera privada.

Dessa forma, ao deparar-se com contratos abusivos, o Magistrado deve abandonar

aquela velha interpretação pela qual o que foi pactuado deve ser rigorosamente cumprido,

que não tem mais espaço em um direito civil moderno. Percebe-se um elastecimento da

liberdade do Juiz para afastar o que foi pactuado entre os contratantes.

Enfim, já que o espírito que conduziu o legislador ao alterar o Código Civil foi

romper com o individualismo, nada como atribuir ao contrato a sua verdadeira feição que é

condicionar a liberdade de contratar à sua função social. Não se nega que o contrato seja

um elemento de circulação de riqueza, mas essa riqueza não deve ser buscada com o

menosprezo da dignidade humana. Ao viver em sociedade, não é dado ao homem enganar,

iludir seu semelhante, aproveitando-se de uma situação de fragilidade para impingir sua

vontade em contratos, cujo bem da vida pretendido, não será verdadeiramente entregue.

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3.2.3 Operabilidade

A operabilidade é entendida como o estabelecimento de soluções normativas

visando à facilitação da interpretação e da aplicação pelo operador do direito. Nesse

processo, várias dúvidas que rondavam o Código de 1916 foram dirimidas.

Com o advento do sistema de cláusulas gerais, o novo Código Civil buscou dar

concretude e efetividade, possíveis de serem alcançadas mediante interações feitas pelo

aplicador do direito, visando o direito prático, fático, concreto.

O princípio da operabilidade objetiva auxiliar na compreensão dos institutos

previstos no Código Civil e a eliminação das incertezas que imperavam na codificação

anterior, fundada no tecnicismo jurídico.

Em outras palavras, o novo Código resolveu grandes questões obscuras que antes

dele existiam. Exemplificativamente, trouxe a diferenciação entre associação e sociedade;

deu disciplina diversa de mais fácil apreensão à prescrição e à decadência; concretizou o

sistema de cláusulas gerais, introduzindo axiomas como o da probidade e o da boa-fé.

É quanto a esse ponto que recaem as maiores críticas ao novo Código Civil,

consistentes na argumentação de que a nova codificação dá margem ao surgimento de

juízes ditadores, em razão de ter lhes sido possibilitado amplo espectro de interpretação,

culminando na criação do direito pelo Magistrado, com base no sistema de cláusulas

gerais.

Ainda sob o prisma da simplicidade, o princípio da operabilidade pode ser

percebido, em matéria contratual, na previsão taxativa e conceitual dos contratos em

espécie, como se dá com a compra e venda, a doação, o comodato, o mútuo, a locação, a

empreitada, a prestação de serviços, o transporte, o seguro, bem como os demais contratos

típicos constantes no novo Código.

A divisão do Código Civil em uma parte geral e uma parte especial é herança do

Código Civil de 1916 e está em consonância com a simplicidade buscada pelo princípio em

tela.

A preocupação do legislador no Código Civil de 2002 foi a máxima operatividade,

a proximidade com o real, o esquecimento de abstrações sem nenhuma serventia.

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CAPÍTULO IV

COTEJO ENTRE OS PRINCÍPIOS DA LEI CONSUMERISTA

E OS PRINCÍPIOS DO CÓDIGO CIVIL

Grande parte dos conceitos que constam da lei privada emergente encontram suas

raízes na Lei nº 8.078/90, que instituiu o Código de Defesa do Consumidor – CDC.

Há entre os referidos diplomas legais um diálogo sistemático, uma relação de

subsidiariedade e de adaptação.

O próprio princípio da função social do contrato do Código Civil começa pela

compreensão do sentido da função social do contrato prevista no CDC.

A abordagem da Lei nº 8.078/90 também se faz importante pelo fato de que a

maioria dos contratos assume a forma de contrato de consumo, devendo ser aplicado esse

microssistema jurídico, que é norma de ordem pública de grande interesse social. É

evidente que se não ficar configurada a relação de consumo, incidirá o Código Civil.

Pela maciça utilização dos contratos de consumo nas relações negociais

contemporâneas, é necessário o conhecimento profundo da teoria contratual construída

pelo direito do consumidor.

Para não delongar desnecessariamente o estudo nem tirar o foco no tema central do

trabalho, serão mencionados, en passant, os princípios informadores do direito do

consumidor.

4.1 PRINCÍPIO DA VULNERABILIDADE

Diante da perda do poder de barganha antes existente entre as partes e da cada vez

mais ausente posição de equivalência nas relações obrigacionais existentes na sociedade de

consumo, surgiu a necessidade de proteger o consumidor de tal situação.

Presume-se então a vulnerabilidade do consumidor, em razão da significativa

mitigação da autonomia da vontade e da disseminação dos contratos em massa.

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Nessa linha de raciocínio, o consumidor vulnerável terá direito à revisão contratual

por mera onerosidade, à interpretação que lhe for mais favorável, à proteção contra

cláusulas abusivas, ininteligíveis ou incompreensíveis e assim sucessivamente.

4.2 PRINCÍPIO DA HIPOSSUFICIÊNCIA CONTRATUAL

Trata-se de um dos princípios do direito civil constitucional, pois a tutela do

hipossuficiente encontra respaldo no art. 5 º, caput, da CF.

O significado de hipossuficiência não pode ser analisado de maneira restrita,

levando-se em conta apenas o critério de desequilíbrio econômico ou político, pois pode

ser igualmente de natureza técnica. Requer conceito mais amplo, devendo ser apreciado

pelo aplicador do direito caso a caso, no sentido de reconhecer a disparidade técnica.

A constatação da hipossuficiência traz ainda mais uma vantagem ao consumidor,

que é a possibilidade de pleitear judicialmente o benefício da inversão do ônus da prova.

4.3 PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA

É decorrência do princípio do equilíbrio da relação de consumo, pelo qual deve

existir uma correta harmonia entre as partes em todos os momentos relacionados com a

prestação e o fornecimento.

O conceito de boa-fé que consta no novo Código Civil tem grande aplicação para o

contrato e sua raiz está na legislação consumerista.

A I Jornada de Direito Civil, já citada precedentemente, editou o seguinte

enunciado (nº 27):

art. 422: na interpretação da cláusula geral da boa-fé, deve-se levar em conta o

sistema do Código Civil e as conexões sistemáticas com outros estatutos

normativos e fatores metajurídicos. (retirado do endereço eletrônico

http://www.cjf.gov.br/revista/enunciados/IJornada.pdf#search=%22I%20jornada

%20de%20direito%20civil%22).

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Originariamente, a definição de boa-fé somente se relacionava com a intenção das

partes no momento de elaboração do ato jurídico, ou seja, a boa-fé estaria incluída nos

limites da vontade da pessoa, indicando que se tratava, na verdade, da boa-fé subjetiva.

No entanto, este conceito não levava em consideração a conduta que, em última

instância, nada mais é do que a própria concretização dessa vontade. Diante dessa

percepção, é que surge o conceito de boa-fé objetiva, significando que também a atuação

concreta das partes é relevante para verificar a existência ou não de boa-fé.

Vejamos, por oportuno, a manifestação da doutrina sobre o princípio em questão,

nos trechos abaixo transcritos:

“boa-fé é cooperação e respeito, é conduta esperada e leal, tutelada em todas as

relações sociais.” Por esse princípio exige-se no contrato de consumo o máximo

de respeito e colaboração entre as partes, devendo aquele que atua com má-fé

ser penalizado por uma interpretação a contrario sensu, ou por sanções que

estão previstas na própria lei consumerista. (TARTUCE, Flávio. Op. cit., p. 90).

Em síntese, registra-se que a boa-fé objetiva traz sempre a idéia de equilíbrio

contratual, que, na esfera do direito do consumidor, deve ser mantido em todos os

momentos pelos quais passa o contrato. Tal princípio é importantíssimo para o direito do

consumidor, podendo ser percebido em vários de seus dispositivos (arts. 9º, 12, 14, 18, 31,

36, 37, 39, 42, 48, 49, 51, 52, 53 e 84 da Lei nº 8.078/90), e também para o direito civil

moderno, principalmente em matéria contratual (art. 422, CC).

4.4 PRINCÍPIO DA REVISÃO CONTRATUAL POR SIMPLES ONEROSIDADE

OU PRINCÍPIO DA EQÜIDADE CONTRATUAL

Por meio desse princípio, dá-se ao consumidor a possibilidade de obter a revisão de

seu contrato, caso haja até mesmo uma simples onerosidade, podendo afastar cláusulas

abusivas, onerosas, ambíguas ou confusas. Em todo caso, a interpretação do contrato

ocorre sempre em benefício do consumidor.

Como já afirmado no tópico anterior, o papel da função social do contrato está

intimamente ligado ao ponto de equilíbrio que o negócio celebrado deve atingir e ao

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princípio da eqüidade contratual. Se o contrato traz onerosidade a uma das partes

(considerada hipossuficiente ou vulnerável), não está cumprindo o seu papel sociológico,

sendo passível de revisão pelo Judiciário.

Entretanto, a aceitação da teoria do cumprimento da função sociológica do contrato

por nossos tribunais ainda se faz de maneira tímida, muito por conta da resistência em

romper a teoria clássica, enraizada na jurisprudência e admitida pelo Código Civil de 1916.

Deve ser anotado que, para a revisão contratual, não há necessidade de provar a

existência de fato imprevisível a desequilibrar o negócio, mas tão-somente a simples

onerosidade ao vulnerável. Porém, essa posição não é unânime na doutrina.

Defende-se aqui nesse estudo o entendimento jurisprudencial contemporâneo pela

admissão da revisão pura do contrato de consumo, sem a necessidade de ser provada a

existência de um fato imprevisível. O Superior Tribunal de Justiça vem seguindo essa

tendência em vários de seus julgados (Precedente: AgRg no REsp nº 374351/RS, Relª.

Minª. Nancy Andrighi, DJ 24.06.2002).

A possibilidade de rever um contrato por mera onerosidade pretende dar efetividade

ao princípio da eqüidade contratual, trazido pelos anseios de socialização do direito,

rompendo-se com a concepção contratual tradicional.

Atente-se para o seguinte excerto extraído da obra de Arnoldo Wald:

No fundo, o que o legislador e o juiz pretendem é desintoxicar e purificar a

manifestação da vontade, dela retirar os „elementos perversos‟ exógenos, para

retificá-la e retificá-la na forma que teria, se o consumidor conseguisse obter a

mesma soma de informações que o seu fornecedor. A finalidade da legislação do

consumidor consiste, pois, em restabelecer a plena autonomia efetiva da vontade

das partes, substituindo-a as declarações que decorrem de uma vontade

aparentemente livre, mas, na realidade, subordinada a fatos externos, mesmo

que não conhecidos pelas partes. (WALD, Arnoldo, apud TARTUCE, Flávio.

Função social dos contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao novo

Código Civil. São Paulo: Método, 2005, p. 101).

Toda essa tendência surgiu a partir da valorização, no âmbito contratual, dos

chamados direitos de terceira geração, ligados ao princípio da fraternidade, à pacificação

social e à busca do equilíbrio nas relações negociais. Nessa conjuntura, procura-se colocar,

em primeiro plano, os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, em desfavor

do interesse particular.

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A interpretação dos casos práticos relacionados aos contratos de consumo, na busca

de decisões justas, é tarefa difícil. Essa pretensão mantém relação direta com os princípios

do direito civil constitucional: dignidade da pessoa humana, solidariedade social, ordem

econômica justa e isonomia entre os contratantes.

A revisão dos contratos em sentido amplo, se bem manejada e aplicada, será um

golpe de morte àqueles que se enriquecem aviltando o patrimônio alheio, esquecendo-se da

função social que deveriam representar e não, apenas, o desejo de lucro em nome de um

mercado danoso, autodestrutivo e enganador da boa-fé alheia.

4.5 PRINCÍPIO DA CONSERVAÇÃO DO CONTRATO

O contrato, regra geral, deverá ser mantido e conservado, sendo a revisão hipótese

que deve ser utilizada apenas quando estiver presente situação desfavorável ao

consumidor, de modo a tornar insuportável a manutenção do seu vínculo contratual.

Este princípio não se confunde com o princípio do pacta sunt servanda previsto no

direito civil, mas a regra continua sendo de manutenção da autonomia privada exposta

pelas partes no momento da celebração da avença.

A aplicação do princípio em referência pode ser observada pela norma que veda a

nulidade automática de todo o contrato pela presença de uma cláusula abusiva (art. 51, §

2º, CDC). A conservação do contrato deve ser privilegiada, perquirindo-se formas de

integração, com a anulação da cláusula desproporcional, mas mantendo-se todo o resto do

negócio jurídico, mediante um esforço de exegese da vontade manifestada no pacto, atitude

que também tem em mira atender o princípio da boa-fé objetiva, pois protege a vontade

anteriormente manifestada.

O aproveitamento do negócio jurídico é de suma importância para a sociedade, de

forma que a conservação possui ligação com o princípio da função social do contrato.

Percebe-se também, o cuidado destinado à manutenção dos pactos já celebrados e

aperfeiçoados, atribuindo mais certeza e mais segurança ao ordenamento jurídico.

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4.6 PRINCÍPIO DA EQUIVALÊNCIA CONTRATUAL

É garantida a igualdade de condições no momento da contratação ou do

aperfeiçoamento da relação jurídica patrimonial.

O Código de Defesa do Consumidor veda que os destinatários finais sejam

expostos a práticas desproporcionais, afastando as cláusulas e práticas abusivas, geradoras

do abuso de direito e da responsabilidade civil contratual.

De acordo com esse raciocínio, a lei proíbe qualquer tipo de discriminação no

momento de contratar, sob o pretexto constitucional de que todos são iguais perante a lei.

Depreende-se, ainda, um contato direto entre o princípio da equivalência e o da

boa-fé objetiva, exigindo-se condutas de lealdade por parte dos profissionais da relação de

consumo, que deverão, de maneira igualitária, fornecer condições iguais na fase contratual,

pré-contratual e pós-contratual do negócio jurídico.

Defende-se que essa responsabilidade pós-contratual também existe na ótica do

direito civil, pela relação que o princípio da boa-fé objetiva mantém com o princípio da

função social do contrato. Por certo que, se o contrato traz uma onerosidade excessiva, não

se constata a equivalência entre as prestações, merecendo, portanto, ser revisto.

4.7 PRINCÍPIO DA TRANSPARÊNCIA

No âmbito do direito consumerista, há o dever de quem oferece o produto ou

serviço de informar sobre ele, e o direito do consumidor vulnerável de ser informado.

Diante disso, o Código de Defesa do Consumidor estabelece um regime próprio em

relação aos meios de propagação da informação, tendente a assegurar que a comunicação

do fornecedor e a do produto ou serviço se façam de acordo com as regras

preestabelecidas, adequadas às prescrições éticas e jurídicas que regulam a matéria.

O princípio da informação encontra-se inserto no princípio da transparência -

constante do art. 4º, caput, do CDC - sendo tratados comumente como sinônimos.

Flávio Tartuce traduz a idéia central do princípio em evidência:

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possibilitar a aproximação contratual mais sincera e menos danosa entre

consumidor e fornecedor. Transparência significa informação clara e correta

sobre o produto a ser vendido, sobre o contrato a ser firmado, significa lealdade

e respeito nas relações entre fornecedor e consumidor, mesmo na fase pré-

contratual, isto é, na fase negocial dos contratos de consumo. (Op. cit., p. 111).

4.8 PRINCÍPIO DA REPARAÇÃO INTEGRAL DE DANOS

O consumidor tem direito ao ressarcimento integral pelos danos materiais e morais

causados por fornecimento de produtos, prestação de serviços ou má informação

relacionada a eles e que, normalmente, têm origem em um contrato.

Cumpre mencionar que não se admite qualquer tipo de tarifação sobre danos

morais, procedimento que já vem sendo adotado pela jurisprudência, mas que conflita com

o princípio da reparação integral de danos, devendo este prevalecer sempre, pois o Código

de Defesa do Consumidor é norma principiológica de ordem pública.

Na Lei do Consumidor há previsão, ainda, de que todos os prejudicados pelo

evento, mesmo não tendo relação direta de consumo com o prestador ou fornecedor,

podem ingressar com ação fundada no Código de Defesa do Consumidor, visando à

responsabilização objetiva do profissional. Ou seja, equiparam-se a consumidores todas as

pessoas expostas às práticas comerciais, representando verdadeira exceção ao princípio da

relatividade dos efeitos dos contratos.

Para melhor entendimento, confira-se o exemplo trazido pela doutrina:

(...) caso um produto inseguro tenha sido colocado no mercado, entendemos

existir a responsabilidade da empresa, mesmo diante daquele com quem não

manteve relação direta, já que causou o dano e retirou da colocação do produto

no mercado lucros e riqueza. Se gerou riscos, deve assumir os ônus deles

decorrentes, sendo essa a melhor concepção da denominada teoria do risco-

proveito. (TARTUCE, Flávio. Op. cit., p. 124).

O novo Código Civil não dispõe de regra semelhante, constituindo esse conceito do

Código de Defesa do Consumidor uma ampliação interessante da teoria do risco, que pode

repercutir contratualmente. Muitas vezes, esse conceito de consumidor equiparado tem

sido aplicado pelo entendimento jurisprudencial em casos que envolvem contratos

bancários, o que comprova a sua aplicação também aos negócios jurídicos patrimoniais.

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Há situações que excluem a responsabilidade civil contratual ou extracontratual,

como a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, a inexistência de vício no produto ou no

serviço e o caso fortuito e a força maior internos, ou seja, que decorrem diretamente da

fabricação ou da prestação.

Vê-se, portanto, que não há como aplicar a teoria do risco integral na esfera

consumerista, como pretendem alguns, sob pena de se abrir um precedente perigoso à

coletividade.

4.9 PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE CONTRATUAL

Apresenta estreita ligação com a responsabilidade civil objetiva, pois prevê a

responsabilidade solidária de todos os envolvidos na relação de consumo, quanto à

indenização a ser paga no caso de ato ilícito ou abuso de direito, tanto na esfera contratual

quanto na extracontratual.

A norma do Código de Defesa do Consumidor, nesse ponto, contraria a codificação

privada que em seu art. 265 estabelece que a solidariedade oriunda de uma obrigação não

pode ser presumida, tendo origem na lei ou na convenção firmada entre as partes.

Nos contratos de natureza civil não se pode falar em solidariedade caso não haja

responsabilidade além da pessoa que firmou o contrato pela decorrência lógica do princípio

da relatividade dos efeitos da convenção.

4.10 PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO

Já nos referimos à possibilidade de revisão ou anulação dos contratos de consumo

se neles forem constatados abusos de direitos, onerosidades excessivas ou advirem fatos

supervenientes, bem como à responsabilidade civil contratual objetiva e solidária entre

todos aqueles que contribuíram para o evento danoso.

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Mencionou-se também que, tendo em vista as mudanças na sociedade dominada

pelo capital, não se pode mais aceitar o contrato da maneira como antes era instituído,

principalmente os contratos de consumo.

Em decorrência de tal situação, o Código de Defesa do Consumidor trouxe como

princípio, ainda que implicitamente, a chamada função social do contrato, conceito básico

para a própria concepção do contrato de consumo. Tem como objetivo principal a tentativa

de equilibrar uma situação que sempre foi desigual, em que o consumidor sempre foi

vítima das abusividades da outra parte da relação de consumo.

O princípio da função social do contrato também pode ser percebido na regra do

art. 47 da Lei do Consumidor, que orienta pela interpretação contratual mais benéfica ao

usuário. Da mesma forma, o art. 46 do mesmo Codex dispõe sobre a não-vinculação de

cláusulas incompreensíveis, ininteligíveis ou desconhecidas por parte do consumidor

vulnerável.

E mais, quando o Código Consumerista reconhece a possibilidade de uma cláusula

considerada abusiva declarar a nulidade de um negócio está totalmente antenado com a

intervenção estatal nos contratos e com aquilo que se espera de um direito moderno, mais

justo e equilibrado.

Em síntese, pode-se afirmar que a primeira tentativa relevante de trazer ao nosso

sistema o princípio da função social do contrato, por tudo o que até aqui fora demonstrado,

ocorreu com a promulgação da Lei nº 8.078/90, restrita, em princípio, a sua aplicação aos

contratos de consumo.

Mas com o novo Código Civil, houve uma ampliação do uso do princípio da função

social do contrato, inicialmente pelas previsões gerais que constam dos seus arts. 421 e

2.035, parágrafo único, bem como de outros dispositivos legais específicos, que serão

melhor estudados nos próximos capítulos, começando pelos princípios contratuais

existentes na codificação privada novel, correlacionando-os com a função social do

contrato e com os institutos jurídicos que visam à sua concretização.

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CAPÍTULO V

INOVAÇÕES PRINCIPIOLÓGICAS DO CONTRATO NA NOVA CODIFICAÇÃO

PRIVADA

5.1 PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE X PRINCÍPIO DA

AUTONOMIA PRIVADA

O contrato está inserido no âmbito dos direitos pessoais, fato que faz com que a

vontade tenha grande importância sobre ele, constituindo verdadeiro instrumento da

liberdade humana.

Para melhor compreender a matéria, é interessante registrar aqui a diferenciação

clássica entre a liberdade para contratar e a liberdade de contratar.

Primeiramente, percebe-se, no mundo negocial, uma plena liberdade para a

celebração dos pactos e avenças, sendo o direito à contratação inerente à própria concepção

da pessoa humana, um direito da personalidade advindo do princípio da liberdade, que não

se confunde com a liberdade de contratar.

Em um primeiro momento, esta última está relacionada com a escolha da pessoa

com quem o negócio será celebrado. Visto sob outro aspecto, ela pode estar relacionada

com o conteúdo do negócio jurídico, ponto em que residem limitações ainda maiores à

liberdade da pessoa humana, já que o velho modelo individualista de contrato encontra-se

superado.

O novo Código Civil instrumentaliza a liberdade para contratar em seu art. 425, em

que se abre espaço à celebração de contratos atípicos, admitindo o legislador que a lei

muitas vezes não pode acompanhar o poder inventivo do ser humano.

É plena a liberdade para contratar, consistente na opção que cada um tem de

realizar ou não contratos, de acordo com a sua exclusiva vontade. Mas, diferentemente,

apresenta-se a liberdade contratual, pois sobre ela incide limitações previstas na própria

codificação novel, como em seu art. 424, que indica a nulidade de cláusulas nos contratos

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de adesão, como a de renúncia a direitos inerentes à natureza do negócio, como será

abordado em capítulo próprio.

O art. 421 da nova codificação também se refere à liberdade contratual, mostrando

que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do

contrato”.

Acrescenta o art. 422 que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na

conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e da boa-fé”,

seguindo o estatuto civil de 2002 a regra básica de que a liberdade de contratar não pode

ser tomada em termos absolutos.

É pertinente que se diga, nesse momento, que à luz do novo direito civil não se

pode mais conceber direito absoluto. Até mesmo os direitos da personalidade, quando

confrontados entre si, encontram limitações. Por exemplo, quando a favor da proteção da

vida, a própria liberdade pode ser relativizada.

O direito de propriedade encontra vedações no próprio dispositivo legal que traz o

seu conceito (art. 1.228, § 1º, CC), relacionadas com a proteção ambiental e o interesse

social da propriedade. Assim, a propriedade tem mais do que mera função social, tem

função sócio-ambiental.

Se os direitos da personalidade e o direito de propriedade sofrem limitações, não

poderia ser diferente com os direitos pessoais negociais.

Desde que afete a lei, as normas de ordem pública, a moral, os bons costumes, a

função social do contrato, a boa-fé e os direitos de terceiro, a autonomia da vontade não

pode ter caráter soberano, pois o direito positivo se incumbe de cortar os excessos.

A propósito, observe-se a lição ensinada por Antonio Jeová Santos:

É justo que o ordenamento jurídico reconheça liberdade às pessoas, porém

também é justo que as pessoas reconheçam liberdade à sociedade e às demais

pessoas que a integram, e este reconhecimento implica a própria liberdade com

o fim de harmonizar os interesses individuais com o interesse geral. Por isso, na

medida em que o necessitado ou o desejado por uma pessoa não afete os

interesses da comunidade nem de outra pessoa em particular, o ordenamento

atribui plena autonomia para estabelecer e regular suas relações jurídicas. (Op.

cit., p. 51).

Como pode haver liberdade de contratar quando a parte mais fraca se coloca diante

da mais forte? A observação do que frequentemente acontece leva à constatação de que

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causas econômicas, decorrentes do avanço do capitalismo, ocasionaram a concentração de

riquezas em mãos de alguns poucos grupos. São eles que decidem o que e como contratar,

fixando cláusulas gerais e redigindo contratos por adesão.

Em suma, o ato de vontade é captado sem que haja verdadeiro consentimento.

No atual estágio a que chegou a economia, em que o mercado é absoluto, senhor

todo-poderoso que tudo pode e tudo quer, a vontade perdeu o verdadeiro significado,

predominando a prática de atos repetitivos e uniformes, como ocorre nos contratos

predispostos (de adesão, por exemplo). A crise na auto-regulação dos negócios privados

exige do ordenamento jurídico soluções que tratem novamente de proteger o mais fraco,

diante da cobiça desvairada pelo lucro que contamina a maioria dos contratos.

Nesse ponto, o equilíbrio é fundamental. Nem o cego pacta sunt servanda nem o

simples descumprimento sob qualquer pretexto. O respeito pela palavra empenhada

continua sendo o fundamento moral da força vinculante do contrato. Mas essa força deve

ser interpretada rebus sic standibus, ou seja, desde que as circunstâncias que cobriam a

formação e a conclusão do contrato não tenham se modificado durante o período de sua

execução.

É nesse contexto que tem se desenvolvido a substituição do princípio da autonomia

da vontade pelo princípio da autonomia privada, o que conduzirá à adoção sem volta do

princípio da função social do contrato.

Ainda em estudo o princípio da autonomia privada, é de se notar que a vontade

perdeu a importância que exercia no passado para a formação dos contratos. Outros

critérios entram em cena para a concretização do instituto.

O princípio da autonomia privada atua no campo patrimonial, no qual também se

situam os contratos – ponto central do direito privado. Esse princípio traz limitações claras,

sobretudo no que concerne à formação e ao reconhecimento da validade dos negócios

jurídicos. A eficácia social pode ser apontada como uma dessas limitações, havendo nítida

relação com o princípio da função social do contrato.

Hoje o contrato é constituído por uma gama de fatores e não mais pela pura vontade

dos contratantes.

É por certo desejável que o legislador deixe aos contratantes o máximo de

liberdade, porém isso não pode ser senão sob uma reserva: a liberdade contratual não deve

atentar contra outras liberdades mais essenciais.

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Cite-se trecho da obra de Antonio Jeová Santos:

modernamente, é preciso restabelecer a verticalidade do fiel da balança da

Justiça quando confrontam fortes e débeis, porque estes (os mais fracos),

pressionados pela necessidade, estão obrigados a querer o que os mais fortes

são livres para impor. (Op. cit., p. 55).

Não faltam, porém, os saudosistas da aplicação plena e absoluta da autonomia da

vontade, reivindicando a restauração da noção clássica do contrato. Mas até mesmo eles

ponderam que o retorno à sentença do pacta sunt servanda somente se tornará pleno

quando for recuperada a liberdade, a moralidade e a legalidade.

O amplo princípio da liberdade contratual sofre restrições em face da intervenção

do legislador, dos pactos de adesão e das condições gerais dos contratos.

Quanto à intervenção legislativa, o Estado, por razões de ordem pública atua para

fixar como deve ser o conteúdo de certos contratos. É o que acontece quando protege os

mais vulneráveis, os trabalhadores, etc.

Nesses contratos, por motivos de ordem pública econômica ou de ordem pública

social, o Estado fixa imperativamente algumas cláusulas que nos contratos têm de existir,

sendo que a parte não pode dispor dessas avenças da forma que melhor lhe convier, porque

está subordinada ao que o Estado predispôs.

Na ocorrência de contratos de adesão, há proteção do mais fraco para diminuir a

arbitrariedade do poder privado, pois a liberdade de contratar nesses casos é praticamente

inexistente, razão pela qual o legislador tenta compensar essa situação com regras

interpretativas que retirem o consumidor da posição de fragilidade, já que não teve

nenhuma possibilidade de discutir o contrato. Uma dessas regras consta no art. 423 do

Código de 2002, segundo o qual “quando houver no contrato de adesão cláusulas

ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao

aderente”.

Cite-se como exemplo de pacto de adesão a situação do passageiro que dificilmente

lê as condições gerais impressas no bilhete de sua passagem de avião. A verdade é que

diante do contrato predisposto e padronizado pelas grandes empresas, pelos conglomerados

e pelas instituições financeiras, o usuário não tem faculdade de opção alguma, devendo

necessariamente aderir ao contrato ou renunciar os bens ou os serviços oferecidos.

Por outro lado, ainda existem contratos em que a liberdade contratual é ampla e os

contratantes estudam e negociam as cláusulas e condições do pacto, sem que seja causado

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prejuízo a nenhum deles. O problema é que durante o cumprimento do contrato, podem

ocorrer mudanças exteriores e imprevisíveis, que não foram desejadas pelas partes, e que

tornam exagerada a prestação, deixando um dos contratantes em situação de extrema

inferioridade. Nesse ponto é que o princípio da força obrigatória do contrato sucumbe,

gerando a controvérsia de como conseguir conciliar tais situações sem que o conteúdo do

contrato passe a ser alterado ao capricho das partes.

Exemplificativamente, não são causas possíveis de relativizar a força do contrato a

alteração na situação econômica da parte, que deve cumpri-lo, nem a perda do emprego, ou

seja, o acontecimento imprevisível capaz de modificar a força vinculante do pacto não

advém de condições puramente pessoais.

5.2 PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DA ORDEM PÚBLICA

O contrato não pode trazer preceitos em conflito com a moral, com as normas de

ordem pública e com os bons costumes. É a mais importante limitação à liberdade de

contratar, não podendo o pacto trazer cláusulas que estejam em choque com as normas que

interessam à coletividade.

Cada vez mais perde força a concepção individualista do direito privado,

conquistando mais adeptos a tese que defende a visualização dos institutos a partir da

proteção da coletividade, pois a autonomia da vontade manifestada em negócio jurídico

encontra limitações nas normas de interesse público.

Talvez o maior desafio do jurista seja saber se determinada norma jurídica é de

direito privado ou de direito público, pois esta diferenciação tem grande importância.

Tratando-se de norma da primeira espécie, não há qualquer limitação para dispor de

maneira diferente no pacto, não se podendo adotar o mesmo procedimento no segundo

caso.

O dirigismo contratual é a melhor expressão da supremacia do interesse público,

representando claro limite à autonomia privada e à vontade. Em nosso sistema, as normas

relativas aos contratos de consumo e a previsão da função social do contrato no novo

Código Civil vieram demonstrar essa tendência.

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Obtempera Flávio Tartuce:

Seguindo a esteira de Nery Jr., repudiamos qualquer tipo de pessimismo em

relação ao direito civil, acreditando em um sistema renovado pelas modificações

sociais advindas do fim da carga individualista. Não acreditamos na

publicização do direito privado, mas sim no equilíbrio entre esses dois ramos do

direito, em total interdependência, emergindo dessa interação um direito difuso

único, superior à velha dicotomia aqui visualizada, melhor concepção da

disciplina direito civil constitucional. (Op. cit., p. 150).

Nos contratos de adesão, a importância da intervenção estatal é marcante, já que

uma das partes se encontra em situação desprivilegiada. Muitas vezes, na prática, todo o

contrato é imposto, não havendo qualquer possibilidade de discussão do seu conteúdo,

ainda que parcial. Dentro dessa realidade, é necessária a intervenção legislativa e judicial

para o afastamento de abusos e injustiças sociais.

A Constituição Federal de 1988 teve influência decisiva nesta intervenção estatal

no mundo privado, uma vez que há previsão expressa de uma ordem econômica e social

(art. 170), que consagra de forma indireta a solidariedade social (art. 3º, I). É interessante

notar que o próprio Texto Maior faz referência à defesa dos direitos do consumidor, no

inciso XXXII do art. 5º, que é cláusula pétrea, de aplicação inafastável.

Dessa forma, o que se percebe, não raras vezes, é o intuito do legislador em limitar

e ampliar direitos nos contratos, em detrimento até mesmo de princípios já consagrados

anteriormente, como a autonomia da vontade, a força obrigatória e a relatividade dos

efeitos da avença. A liberdade de escolha da cláusula contratual, por exemplo, encontra

limites nas normas de ordem pública, como no caso da função social do contrato, o que não

deixa de ser uma restrição ou um intervencionismo estatal.

Enquanto as limitações contratuais decorrentes das normas de ordem pública

encontram certa segurança no dirigismo contratual, o mesmo não se pode dizer quanto às

vedações advindas da moral e dos bons costumes.

O conceito de moral é muito amplo, não se confundindo com o de direito. Uma

cláusula negocial pode ser considerada imoral quando traz em seu bojo uma ilicitude ou

mesmo um abuso de direito, conduta reprovável que também gera o dever de indenizar, por

força do art. 187 do novo Código Civil.

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A indeterminação é menor no que se refere aos bons costumes, mas não está imune

a dificuldades. Enquadra-se como fonte do direito pela determinação do art. 4º da Lei de

Introdução ao Código Civil.

A estimativa sobre se o pacto afetou os bons costumes e/ou a moral é entregue ao

Juiz que, de forma prudente, dirá se o contrato é válido ou se infringiu regras de moral ou

os bons costumes.

O princípio da supremacia da ordem pública está mais relacionado com as normas

de direito público do que com a proteção da moral e dos bons costumes, conceitos sobre os

quais não há certeza jurídica, podendo variar a opinião do aplicador e do estudioso do

direito.

5.3 PRINCÍPIO DA FORÇA OBRIGATÓRIA DOS CONTRATOS

É decorrência direta do princípio da autonomia da vontade, estipulando que tem

força de lei o ajuste entabulado pelas partes, ou seja, há imposição do seu cumprimento aos

contratantes.

Tem origem no direito romano, segundo o qual deveria prevalecer o pacta sunt

servanda – a força obrigatória dos termos pactuados. O contrato não poderia, por nenhuma

razão, ser revisto ou extinto, sob pena de acarretar insegurança jurídica ao sistema romano.

Não há previsão expressa desse princípio no novo Código Civil, o que contraria o

princípio da operabilidade, no sentido da simplicidade que deve permear o direito privado.

Mas, pela leitura dos arts. 389, 390 e 391 do Código de 2002, que versam sobre o

cumprimento da obrigação e das conseqüências do inadimplemento, fica evidente o

reconhecimento da obrigatoriedade das convenções como princípio do nosso ordenamento

jurídico.

O princípio em questão instrumentaliza a idéia de que o direito reconhece que os

contratos, desde o momento em que adquirem existência jurídica, são definitivos quanto ao

seu conteúdo e têm, a respeito deste, a mesma força obrigatória que uma lei.

Orlando Gomes ensina com maestria que:

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O princípio da força obrigatória consubstancia-se na regra de que o contrato é

lei entre as partes. Celebrado que seja, com observância de todos pressupostos e

requisitos necessários à sua validade, deve ser executado pelas partes como se

suas cláusulas fossem preceitos legais imperativos. O contrato obriga os

contratantes, sejam quais forem as circunstâncias em que tenha de ser

cumprido. Estipulado validamente o seu conteúdo, vale dizer, definidos os

direitos e obrigações de cada parte, as respectivas cláusulas têm, para os

contratantes, força obrigatória.” (GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro:

Forense, 2001, p. 36).

Duas são as teses quanto à atual concepção desse importante instituto de direito

privado – o contrato.

A primeira teoria, mais conservadora, é contrária a qualquer intervenção externa,

sendo conhecida como voluntarista e clássica. Por meio dela, o contrato traz em si um

ordenamento jurídico suficiente às partes, uma espécie de microssistema legal alheio a

fatores externos. Apóia-se no sentido de que o pacta sunt servanda impõe às partes o dever

de cumprir tudo aquilo que foi pactuado e que consta do instrumento negocial.

Havia, por óbvio, exagero na concepção de que o contrato obrigava em qualquer

circunstância e de que o Juiz não tinha poder para modificar o que as partes contrataram,

até porque o pacto nunca pareceria injusto, pois as regras teriam sido aceitas como justas

pelas partes que as acordaram.

Parece-nos que tal corrente encontra-se totalmente superada, mormente quando

emergem os direitos de terceira geração, ligados ao princípio da fraternidade, à valorização

da dignidade da pessoa humana e à solidariedade social.

Pela segunda teoria, mais condizente com a socialidade e com aquilo que aqui é

defendido, admite-se a intervenção externa, em razão do interesse coletivo presente no

contrato. A conservação do pacto deve ser almejada enquanto forem observadas as regras

de equidade, de equilíbrio contratual, de boa-fé objetiva e da função social do contrato. Por

tais razões, entende-se que esta deve prevalecer.

Seguindo a concepção romana atribuída ao contrato, há doutrinadores que

entendem que a revisão contratual somente pode ocorrer em casos excepcionais.

No entanto, a realidade jurídica e fática do mundo capitalista atual não possibilita

mais a idéia hermética de contrato.

Washington de Barros Monteiro há mais de três décadas já enunciava que:

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Acentua-se, contudo, modernamente, um movimento de revisão do contrato pelo

juiz; conforme as circunstâncias, pode este, fundando-se em superiores

princípios de direito, boa-fé, comum intenção das partes, amparo do fraco

contra o forte, interesse coletivo, afastar aquela regra, até agora tradicional e

imperativa. (MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. São

Paulo: Saraiva, 1990, p. 10).

Assim, o princípio da força obrigatória não tem mais encontrado a predominância

que exercia no passado, apresentando relativizações a serem apontadas nesse trabalho.

Mesmo assim, não se pode concordar com o posicionamento defendido por alguns

autores de que o princípio da força obrigatória do contrato foi definitivamente extinto pela

nova codificação, pois tal entendimento recusa o mínimo de segurança e certeza que

devem existir no ordenamento jurídico.

Aponta-se como o maior problema da força obrigatória do contrato a

imprescindibilidade de se conciliar a sua manutenção, sem afastar os princípios da justiça,

da boa-fé, da segurança jurídica, do equilíbrio contratual e da liberdade e responsabilidade

dos indivíduos.

Ressalte-se apenas que a função social do contrato constitui a principal limitação ao

princípio da força obrigatória das convenções.

5.4 PRINCÍPIO DA RELATIVIDADE DOS EFEITOS CONTRATUAIS

O negócio celebrado, por regra, somente atinge as partes contratantes, não

prejudicando nem beneficiando terceiros estranhos a ele.

Entretanto, o princípio da relatividade dos efeitos contratuais encontra limitações

no próprio Código Civil e até mesmo na legislação extravagante aplicável aos contratos.

Citem-se como exemplos o art. 1.792 do Código de 2002 que regulamenta a

responsabilidade dos herdeiros do contratante; os arts. 436 a 438 do mesmo diploma que,

ao tratarem da estipulação em favor de terceiro, estendem seus efeitos a outras pessoas,

criando-lhes direitos e impondo deveres, apesar de elas serem alheias à constituição da

avença; os arts. 17 e 29 da Lei do Consumidor que prevêem a figura do consumidor por

equiparação, já aludida neste trabalho.

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Percebe-se assim uma ampliação do conceito de parte contratante, merecendo

destaque por atingirem situações em que estão presentes os riscos decorrentes da prestação

ou do fornecimento.

Não é prudente perfilhar da tese que defende que a função social do contrato rompa

com o princípio em tela. Seria um precedente perigoso, pois essa exegese contraria a

própria idéia do princípio da autonomia privada bem como o conceito de contrato.

Confira-se a respeito o Enunciado 21 do Conselho Superior da Justiça Federal:

art. 421: a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil,

constitui cláusula geral, a impor a revisão do princípio da relatividade dos

efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do

crédito. (retirado do endereço eletrônico

http://www.cjf.gov.br/revista/enunciados/IJornada.pdf#search=%22I%20jornada

%20de%20direito%20civil%22).

A tutela externa do crédito mencionada no Enunciado acima transcrito pode ser

observada no art. 608 do novo Código Civil, trazendo em seu conteúdo o princípio da

função social dos pactos, ao dispor que:

Aquele que aliciar pessoas obrigadas em contrato escrito a prestar serviço a

outrem pagará a este a importância que ao prestador de serviço, pelo ajuste

desfeito, houvesse de caber durante 2 (dois) anos.

Vê-se que o aliciador que pretende a intromissão em contrato do qual não faz parte

poderá ser responsabilizado, prevendo a lei o pagamento de indenização correspondente à

remuneração de dois anos ao prestador de serviço.

Enfim, a função social do contrato limita de forma parcial a relatividade dos efeitos

contratuais.

5.5 PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA

A previsão expressa do princípio da boa-fé objetiva representa uma das mais

importantes mudanças introduzidas pela codificação emergente, destacando-se a sua

ligação com a boa-fé consumerista.

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O conceito originário de boa-fé remetia a seu aspecto subjetivo e mantinha relação

direta com a pessoa que ignorava um vício relacionado com uma pessoa, um bem ou

negócio, conforme pode-se entrever no art. 1.201 do Código de 2002.

Com o decorrer dos tempos, o conceito de boa-fé evoluiu, passando a existir no

plano objetivo que leva em conta as condutas dos envolvidos na relação jurídica.

Diversamente do que se possa imaginar, a boa-fé objetiva, em seu cunho contratual,

já tinha previsão expressa no ordenamento jurídico pátrio, no art. 131, inciso I, do Código

Comercial de 1850, que dispunha que “a inteligência simples e adequada que for mais

conforme a boa-fé e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato deverá sempre

prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras”.

Até mesmo o princípio da função social do contrato pode ser subentendido no

dispositivo legal transcrito ao afastar a validade das palavras que compunham o

instrumento negocial para prestigiar a verdadeira essência do contrato. É uma pena que a

referida norma não tenha tido a utilização que se esperava na prática.

O novo Código Civil ratificou o princípio da eticidade, valorizando os

comportamentos ditados pela boa-fé, principalmente no campo obrigacional, perceptível

pela leitura dos seus arts. 1.175 e 1.337.

Para Flávio Tartuce:

a boa-fé objetiva é um estado de espírito, que conduz a parte negocial a agir

dentro das regras da ética e da razão. Mas esse estado de espírito somente pode

ser analisado, no plano concreto, com a conduta leal e de probidade que a parte

mantém em todas as etapas pelas quais passa o negócio jurídico. Por certo é que

a ética e a boa-fé não podem somente ficar no plano das idéias; a atuação da

parte é que demonstrará se realmente há essa boa intenção. (Op. cit., p. 166).

Cumpre esclarecer que dentro do conceito de boa-fé objetiva já está compreendido

a boa-fé subjetiva, já que uma conduta correta tem inseparável ligação com uma boa

intenção.

É o que esclarece Fernando Noronha:

(...) mais do que duas concepções da boa-fé, existem duas boas-fés, ambas

jurídicas, uma subjetiva e outra objetiva. A primeira diz respeito a dados

internos, fundamentalmente psicológicos, atinentes diretamente ao sujeito; a

segunda a elementos externos, a normas de conduta, que determinam como ele

deve agir. Num caso, está de boa-fé quem ignora a real situação jurídica; no

outro, está de boa-fé quem tem motivos para confiar na contraparte. Uma é boa-

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fé estado, a outra boa-fé princípio. (NORONHA, Fernando, apud TARTUCE,

Flávio. Função social dos contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao

novo Código Civil. São Paulo: Método, 2005, p. 167).

Percebe-se também nítida relação do princípio da boa-fé objetiva com o princípio

da socialidade, que pode ser traduzida pelos conceitos de lealdade, confiança e

colaboração.

O princípio da boa-fé objetiva carrega consigo ainda a orientação de que o credor

deve evitar o próprio prejuízo. É o que vaticina o Enunciado 169, resultante da III Jornada

de Direito Civil do Conselho Superior da Justiça Federal, ao dispor que “o princípio da

boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo.” (retirado

do endereço eletrônico

http://www.cjf.gov.br/revista/enunciados/IIIJornada.pdf#search=%22III%20JOrnada%20d

e%20direito%20civil%22). Fica aí evidenciado o dever de colaboração que deve fazer

parte de todas as etapas do contrato.

Para esclarecer a situação delineada, utilizamo-nos dos exemplos citados por Flávio

Tartuce: “no caso de uma locação, haveria um dever por parte do locador de ingressar

tão logo seja possível com a competente ação de despejo, não permitindo que a dívida

atinja valores excessivos.” (Op. cit., p. 172). Igualmente para os contratos bancários, não

pode a instituição financeira permanecer inerte, aguardando que, diante da alta taxa de

juros prevista no contrato, a dívida alcance montante astronômico.

A solução proposta pela doutrina contra condutas como essas seria a imputação ao

credor do pagamento de eventuais perdas e danos ou a redução do seu próprio crédito.

A tendência é de que tais institutos jurídicos sejam postos em prática, em

atendimento efetivo do princípio da boa-fé objetiva, levando o Julgador à concretização do

novo direito civil.

Assinalemos, então, os dispositivos legais que tratam do princípio da boa-fé no

Código Civil de 2002.

O art. 113 do novo Código serve para auxiliar o aplicador do direito na

interpretação dos contratos, ao dispor que “os contratos jurídicos devem ser interpretados

conforme a boa-fé e os usos do lugar da sua celebração”, exegese que deve ser

acompanhada da regra pela qual “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção

nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem” (art. 112, CC).

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Exatamente quando a norma faz referência à intenção das partes é que podemos

constatar a boa-fé subjetiva. Por outro prisma, verifica-se nele também a boa-fé objetiva,

pois a boa-fé é apresentada como cláusula geral que se faz presente em todos os negócios

jurídicos, agregando aos contratos deveres anexos para as partes, dentre eles o de

comportarem-se de acordo com a lei, de agirem com probidade, de informarem a

contraparte sobre todo o conteúdo do negócio etc..

Há um Enunciado criado na III Jornada de Direito Civil (nº 168) que confirma a

existência dos deveres anexos, quando prescreve que “o princípio da boa-fé objetiva

importa no reconhecimento de um dever de cumprir a favor do titular passivo da

obrigação”. (retirado do endereço eletrônico

http://www.cjf.gov.br/revista/enunciados/IIIJornada.pdf#search=%22III%20JOrnada%20d

e%20direito%20civil%22).

Mais uma vez, detecta-se a ligação desses deveres com o princípio da função social

do contrato, cuja finalidade é a proteção da parte menos favorável da relação contratual,

que, regra geral, é o devedor.

Os arts. 112 e 113 do Código Civil comportam a possibilidade de flexibilizar aquilo

que os contratantes pactuaram na avença. Desse modo, uma interpretação em consonância

com a boa-fé e com a genuína intenção das partes na realização do negócio pode levar à

sucumbência do pacta sunt servanda, o que também se harmoniza com o princípio da

função social do contrato.

Uma pesquisa jurisprudencial pode comprovar que isso já vem ocorrendo, sendo

que a verdade real e a socialidade estão suprimindo cada vez mais a verdade formal e o

tecnicismo exagerado.

A principal mensagem a ser passada com o princípio da boa-fé é a de que ele deve

ser utilizado como instrumento para acudir o Magistrado no procedimento de subsunção da

norma ao contrato, com observância da eqüidade e das regras de razão que devem nortear a

atividade do Poder Judiciário.

O art. 422 do novo Código atribui sentido ao princípio da boa-fé objetiva ao

patentear que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato,

como em sua execução, os princípios da probidade e da boa-fé”.

Observa-se no artigo em destaque a instrução para que as partes mantenham

durante todo o contrato uma conduta pautada na rigorosa boa-fé que pode ser identificada

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pela lealdade, pela confiança, pela eqüidade, pela razoabilidade, pela cooperação e pela

colaboração.

A violação de qualquer desses deveres anexos configura espécie de inadimplemento

contratual, gerando a responsabilização civil, independentemente de culpa, daquele que os

descumprir.

A fundamentação constitucional do princípio da boa-fé reside na cláusula geral de

tutela da pessoa humana, constante no art. 1º, III, e em vários incisos do art. 5º, da

Constituição Federal.

Persiste ainda a dúvida quanto à exigência da boa-fé na fase pré-contratual. Não há

menção expressa no novo Código Civil no que tange à responsabilidade pré-contratual, não

existindo expressão concreta na lei quanto à necessidade de as partes agirem com boa-fé na

fase de negociações do contrato futuro. Propõe-se, portanto, a ampliação do conceito de

responsabilidade contratual, exigindo a boa-fé, de forma expressa, na fase de negociações

preliminares e também na fase pós-contratual.

Nessa senda, o Enunciado 25 do Conselho Superior da Justiça Federal esclarece

que “o art. 422 do Código Civil não inviabiliza a aplicação, pelo julgador, do princípio da

boa-fé nas fases pré e pós-contratual” (retirado do endereço eletrônico

http://www.cjf.gov.br/revista/enunciados/IJornada.pdf#search=%22I%20jornada%20de%2

0direito%20civil%22), no que é seguido por enunciado aprovado pela III Jornada de

Direito Civil, em que assentou-se que a boa-fé objetiva deve ser observada pelas partes na

fase de negociações preliminares e após a execução do contrato, quando tal exigência

decorrer da natureza do contrato.

Exemplo recente da denominada responsabilidade pré-contratual é o chamado

“caso dos tomates”, em que a “Companhia CICA” distribuiu sementes a agricultores,

fazendo-os crer que adquiriria a safra, deixando, porém, de fazê-lo, ao argumento, afinal

desacolhido, de que não se havia a tanto obrigado.

Na fase pós-contratual são inúmeros os casos de aplicação da boa-fé objetiva,

podendo ser mencionada a prática do recall, muito comum entre as empresas fabricantes

de veículos, que chamam os consumidores para troca de peças, visando evitar prejuízos

futuros.

Ante a omissão do aparato legislativo, adverte-se que a inserção de normas que

versem sobre a responsabilidade pré-contratual é de excelsa valia na medida em que os

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profissionais do direito seguem limitadamente o exato texto da lei, correndo-se grave risco

de a jurisprudência pautar seu entendimento pela não-obrigatoriedade de a boa-fé

acompanhar a fase de negociações.

O art. 187 do novo Código Civil, por sua vez, exibe uma das mais sobressalentes

dentre as inovações trazidas com a codificação emergente, pois equipara o abuso de direito

a verdadeiro ato ilícito, nos termos que seguem:

“Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-

lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim

econômico e social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”

Do dispositivo transcrito depreende-se a relação direta que mantém com o princípio

da socialidade, já que o Julgador é orientado a dar a sua sentença levando em consideração

a conduta das partes e os bons costumes.

Do mesmo modo, há relação com o princípio da eticidade, pois o ilícito previsto

destina-se também à pessoa que age em contrariedade à boa-fé objetiva, manifestada pela

conduta leal e íntegra que se espera de todos os que vivem em comunidade, principalmente

no exercício de suas atividades negociais.

É o art. 166 do Código de 2002 que fundamenta a nulidade do negócio jurídico

quando houver nele ilicitude.

Já se pode antever as dificuldades que serão enfrentadas pelos executores do direito

que, diante de casos concretos, se depararem com a figura do abuso do direito, pois

deverão buscar nas regras da hermenêutica e da eqüidade a melhor solução empregável, já

que o conceito de responsabilidade civil, que antes era objetivo, foi ampliado para abranger

conceitos legais indeterminados, conforme acima explicado.

Em suma, a conseqüência para quem desrespeita a boa-fé e, por conseguinte,

comete abuso de direito – ato ilícito – é a alta probabilidade de ter o seu contrato extinto

por nulidade absoluta.

Por fim, no que se refere ao princípio da revisão contratual por imprevisibilidade,

assinala-se que o novo Código o consagra e que é de grande utilização na prática para

tutelar os prejudicados por uma situação de substancial mudança das particularidades

fáticas em que se encontravam no momento da celebração do contrato, causando séria

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desigualdade contratual por fato superveniente e imprevisível para as partes, legitimando,

por tais razões, o reajuste das prestações ou até mesmo a extinção do negócio.

Por oportuno, é bom que seja desfeito o equívoco que alguns doutrinadores

perpetram de indicarem o art. 478 da codificação novel como o fundamento da revisão

contratual, até porque tal dispositivo está inserto no capítulo dos contratos em geral, que

cuida da extinção do pacto e não de sua revisão. Por isso, aponta-se o art. 317 daquele

Codex como o amparo legal a tal pretensão, sendo pertinente a sua transcrição:

Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o

valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz

corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quando possível, o valor

real da obrigação.

Observe-se apenas que tais alterações fáticas devem ser comprovadas, inclusive o

caráter de imprevisibilidade, além de só se aplicar o princípio em análise aos contratos de

execução continuada ou de trato sucessivo (aquele que o adimplemento da prestação se dá

periodicamente) e aos de execução diferida (aquele em que a satisfação da obrigação

ocorre de uma vez só no futuro).

Pode-se afirmar que o contrato deve ser cumprido enquanto se mantiverem

incólumes as condições externas, que, se alteradas, causam implicações na execução e,

consequentemente, a incidência da regra rebus sic standibus, em que há a reabilitação do

status quo ante.

Conclui-se, portanto, que se a onerosidade excessiva advir de fenômeno natural e

não de fato imprognosticável, a revisão contratual de que estamos tratando não será a via

adequada.

Para finalizar, registre-se que a teoria da imprevisão, muito embora tenha sido

aceita pacificamente, não vem tendo a aplicação significativa nos Tribunais, atitude que se

esperava principalmente com o advento do novo Código Civil.

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5.6 PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO

O art. 421 do novo Código é de elevada estima para o presente estudo, pois

preceitua que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função

social do contrato”.

Além disso, já na exposição de motivos do anteprojeto do Código Civil, que teve

como autor o ilustre Miguel Reale, continha o seguinte esclarecimento acerca de um dos

principais objetivos da codificação emergente:

tornar explícito, como princípio condicionador de todo o processo

hermenêutico, que a liberdade de contratar só pode ser exercida em

consonância com os fins sociais do contrato, implicando os valores primordiais

da boa-fé e da probidade. Trata-se de preceito fundamental, dispensável talvez

sob o enfoque de uma estreita compreensão do Direito, mas essencial à

adequação das normas particulares à concreção ética da experiência jurídica.

(TARTUCE, Flávio. Op. cit., p. 195/196).

A nova sistemática é incisiva no sentido de que os contratos devem ser

interpretados segundo a realidade do meio social em que estão inseridos, com o cuidado de

não trazer onerosidades excessivas a nenhuma das partes contratantes bem como garantir a

igualdade entre elas. Às situações em que se constatar a preponderância da situação de um

dos contratantes sobre a do outro deve ser procedido o equilíbrio necessário, baseando-se

na eqüidade, na razoabilidade, no bom senso e na proteção contra o enriquecimento sem

causa, sendo este último vedado expressamente pelos arts. 884 a 886 do Código de 2002.

É bom que se atente para o fato de que a função social do contrato, prevista no

novo Código Civil, não se circunscreve ao art. 421, pois está compreendida também no art.

2.035, parágrafo único, do mesmo Código, de não menos importância para a compreensão

acerca do conteúdo e da extensão do princípio que dá título a esta monografia.

Por ser muitas vezes esquecido, registra-se a literalidade do parágrafo único do

mencionado art. 2.035:

“Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de

ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para

assegurar a função social da propriedade e dos contratos.”

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É interessante anotar que todas essas mudanças foram muito esperadas para

iniciarem o movimento de releitura do direito contratual, instaurando uma nova visão do

instituto, para que haja perfeita harmonia com todas as tendências socializantes do direito,

seja na valorização da dignidade da pessoa humana, seja na busca de uma sociedade mais

justa e solidária, com aplicação da igualdade lato sensu, que são caracteres do direito civil

constitucional.

Nos subtítulos seguintes, objetiva-se o aprofundamento do tema, relacionando-o

com institutos jurídicos irrompidos e com outras inovações presentes no Código Civil de

2002.

5.6.1 Função social do contrato como princípio constitucional

Por ser de interesse de toda a coletividade, os arts. 421 e o 2.035, parágrafo único,

do Código de 2002, constituem normas cogentes, inderrogáveis por convenções ou

disposição contratual.

É evidente a essência constitucional dessa determinação. Primeiro porque a função

social do contrato está atrelada à idéia de proteção dos direitos essenciais à dignidade da

pessoa humana, constituída como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil

no art. 1º, inciso III, do Diploma Constitucional. Igualmente, o caput do art. 170 assegura a

justiça social e o art. 3º, inciso III, a solidariedade entre todos.

Com a crescente dissipação do fenômeno da função social do contrato, externa-se a

já constitucionalmente idealizada valorização da pessoa humana, com a qual pretende-se

assegurar ao indivíduo o mínimo para que viva com dignidade.

São diversas as normas da nova codificação que relegam o valor absoluto da força

obrigatória do contrato, procurando alcançar o estado de sua perfeita coexistência com os

aspectos sociais circundantes.

Reporta-se exemplificativamente: ao art. 157 que prevê a possibilidade de

anulabilidade dos contratos quando estiver presente a lesão subjetiva; ao art. 187 que

imputa responsabilidade civil àquele que age com abuso de direito também no âmbito

contratual; ao art. 423 que protege o aderente no contrato por adesão ao dispor que a

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interpretação de tal pacto será a que lhe for mais favorável; ao art. 2.035, parágrafo único,

ao elevar o status da função social como matéria de ordem pública.

Nosso principal objetivo é demonstrar que a função social do contrato não existe

somente no plano das idéias, mas também no mundo prático, tendo em vista a

expressividade sua repercussão, visto que com a sua aplicação haverá uma mitigação da

força obrigatória dos contratos, desprezando-a sempre que as cláusulas do ajuste chocarem

com os ditames de ordem pública, já que a igualdade substancial entre os negociantes é a

meta pretendida com a utilização de tal princípio.

O princípio em enfoque leva à nova concepção do contrato, que se funda nos

dispositivos inaugurais da Lei Maior – a dignidade, a socialidade e a igualdade. Por esta

concepção, não só o momento da manifestação da vontade, mas também a condição social

e econômica dos envolvidos, além dos efeitos do contrato na realidade social, serão

considerados para a validade, a eficácia e a conservação do pacto.

A autonomia da vontade, que em tempo anterior pautava as regras da avença, não é

mais elemento essencial dos contratos, até porque vive-se sob o império dos contratos de

adesão, sendo que as cláusulas contratuais não são mais debatidas como antes.

É óbvio que o contrato, regra geral, tem finalidade econômica e financeira, mas

deve estar ajustado à realidade fática social que o cerca, não podendo a parte

hipersuficiente buscar o seu lucro à custa de sacrifícios patrimoniais do outro, sobressaindo

que o novo perfil do contrato requer que ele esteja adaptado aos valores constitucionais.

5.6.2 Função social do contrato e os negócios jurídico-formais

Assim como o Código Civil de 1916 (art. 129), a nova codificação, em seu art. 107,

manteve a regra pela qual os negócios jurídicos são, de maneira geral, informais, fato que

melhor viabiliza a circulação de riqueza e de interesses a serem buscados por meio dos

contratos.

Já quanto ao art. 108, o novo Código atualizou o seu comando para estatuir:

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Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos

negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou

renúncia de direitos reais sobre imóvel de valor superior a 30 vezes o maior

salário mínimo vigente no País.

Pelo art. 490 do Código de 2002 as despesas de escritura e registro competem ao

comprador, salvo se houver previsão contratual em sentido contrário.

Pode-se perceber que exatamente aí é que o dispositivo supratranscrito guarda

estreita relação com o princípio da função social do contrato, pois, na prática, o legislador

trouxe a possibilidade de a pessoa economicamente frágil que celebrou um contrato de

adesão ser dispensada do pagamento das despesas de escritura, sendo esta uma norma de

ordem pública, inafastável no negócio. Esta determinação é coerente, já que a pessoa que

compra um imóvel com valor inferior ou igual a 30 salários mínimos é vulnerável.

5.6.3 Função social do contrato e lesão subjetiva

O conceito de lesão subjetiva não é inovação do novo Código Civil e consiste na

proibição de conduta que objetive o enriquecimento sem causa, agora vedado

expressamente pela novel codificação em seus arts. 884 a 886.

Infelizmente, a previsão da lesão subjetiva como vício do negócio foi extirpada do

Código de 1916 e revigorada no de 2002 como infração capaz de gerar a anulabilidade do

negócio jurídico, pelo teor do art. 171, inciso II.

A lesão, diferentemente dos demais defeitos do negócio jurídico, relaciona-se

essencialmente com a função social do contrato.

Em atendimento ao princípio da operabilidade, visando facilitar a aplicação dos

institutos com respaldo em previsão expressa, o novo Código prevê a lesão subjetiva no

art. 157:

“Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade,

ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente

desproporcional ao valor da prestação oposta.”

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A lesão é vício que acomete a vontade ou o consentimento, mas também é um vício

social do negócio jurídico (assim como a simulação e a fraude contra credores), pela

reverberação que pode ocasionar a sua manutenção no negócio, ao cerne da sociedade.

Em prosseguimento à análise do artigo acima exposto, o seu § 1º orienta que a

desproporção seja avaliada segundo os valores vigentes à época em que foi celebrado o

negócio jurídico, procedimento que está em consonância com a teoria tridimensional do

direito de Miguel Reale, que prima pela apreciação valorativa, indissociável do direito

privado moderno.

O § 2º do art. 157 expõe a possibilidade de, em vez de ser cogitada a anulabilidade

do negócio jurídico, com base no art. 171, II, ambos do Código de 2002, ser retirada a

ineficácia negocial caso seja oferecido suplemento suficiente ou a parte favorecida

concordar com a redução do seu proveito. Em outras palavras, o dispositivo legal em

referência propõe a revisão extrajudicial ou judicial do negócio, caso a parte beneficiada

pela lesão assinta em restabelecer o equilíbrio contratual.

Pode-se afirmar que o mencionado § 2º alberga em seu conteúdo o princípio da

conservação do contrato, que, como já vimos, é contíguo à função social dos contratos. O

Magistrado deve buscar primeiro a revisão do negócio e só depois, frustrada esta, decretar

a invalidade daquele.

Acerca do tema, o Enunciado 22 do Conselho Superior da Justiça Federal explicita

a relação entre os dois princípios, ao registrar que “a função social do contrato, prevista

no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral, que reforça o princípio da

conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas”. (constante em

http://www.cjf.gov.br/revista/enunciados/IJornada.pdf#search=%22I%20jornada%20de%2

0direito%20civil%22). No mesmo diapasão, a III Jornada de Direito Civil emitiu

enunciado (nº 149) que fortaleceu o Enunciado 22, com o seguinte teor: “em atenção ao

princípio da conservação dos contratos, a verificação da lesão deverá conduzir, sempre

que possível, à revisão judicial do negócio jurídico e não à sua anulação, sendo dever do

magistrado promover o incitamento dos contratantes a seguir as regras do art. 157,

parágrafo 2º, do Código Civil de 2002”. (disponível em

http://www.cjf.gov.br/revista/enunciados/IIIJornada.pdf#search=%22III%20JOrnada%20d

e%20direito%20civil%22).

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58

É manifesto que casualmente, diante da impossibilidade absoluta de manutenção do

negóci,o a sua anulabilidade poderá ser decretada de pronto para proteger a dignidade da

parte mais fraca.

Os requisitos para que seja caracterizada a lesão são: o elemento objetivo,

consistente na desproporção das prestações, causando onerosidade ou prejuízo a uma das

partes, e, o elemento subjetivo, que é a premente necessidade ou inexperiência. É

interessante constatar que para a configuração do instituto da lesão não há necessidade da

existência do dolo de aproveitamento, entendimento corroborado por enunciado

sancionado na III Jornada de Direito Civil.

A lesão subjetiva não pode ser confundida com a lesão objetiva, constante no art.

480 do Código de 2002. Enquanto naquela o aspecto da volição tem relevância, nesta

última nem é discutido, pois se caracteriza pela simples constatação da onerosidade. Não

se nega, no entanto, que a definição de lesão subjetiva abrange a lesão objetiva, porquanto

o art. 157 trata do desequilíbrio e da desproporção contratual.

O conceito de premente necessidade é completamente genérico e depende da

apreciação discricionária do Julgador que, diante de um direito civil moderno, deverá

visualizar os contornos sociais do caso concreto, tendo como norte seguro a proteção da

dignidade da pessoa humana.

Igualmente, o vocábulo inexperiência é controvertido, como já acontece com o

significado de hipossuficiente para a legislação consumerista. Da mesma forma que se

interpreta a hipossuficiência, por analogia, a inexperiência pode ser também detectada na

análise de fatores econômicos, financeiros, políticos, sociais ou técnicos.

Se a desvantagem contratual decorrer exclusivamente da desídia de quem

contratou, inserindo-se na própria álea contratual, não há falar-se em invalidação do

negócio, em respeito ao princípio da segurança jurídica.

Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho tecem indispensáveis

considerações a respeito da matéria:

Analisando ainda o art. 157, pode-se concluir ter havido uma verdadeira

mudança axiológica no Novo Código Civil, prevendo este vício de consentimento

como uma verdadeira limitação à autonomia da vontade individual, não mais

admitindo o chamado „negócio da china‟, uma vez que não se aceitará mais

passivamente a ocorrência de negócios jurídicos com prestações manifestamente

desproporcionais. (GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo.

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Novo curso de direito civil. v. 1, 6. ed. rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 2005, p.

398).

Portanto, o elemento objetivo da lesão é sem dúvida a onerosidade excessiva

almejada por um dos pactuantes em desfavor do mais fraco, provocando o desequilíbrio

contratual, situação em que o contrato poderá ser anulado pelo Juiz.

Pode-se apontar como uma falha relacionada à lesão subjetiva o fato de o legislador

não ter instituído uma punição direta ao lesionador, sendo certo, no entanto, que poderá ser

utilizado o art. 187 do Código de 2002, cujo conteúdo indica como abuso de direito a

atitude daquele que contraria a função sócio-econômica de um instituto, a boa-fé e os bons

costumes, surgindo, nesse caso, o dever de indenizar.

Flávio Tartuce demonstra a sua visão sobre a posição acima exposta:

Tal entendimento segue a tendência de um direito ético e social, de acordo com

dois principais pilares da nova codificação (eticidade e socialidade), em total

sintonia com o moderno direito civil que se espera, visando à pacificação social.

(Op. cit., p. 218).

Repetidas vezes afirmamos que a nova concepção do contrato prima pelo aspecto

social e seu norte fundamental é o princípio da função social do contrato, consagrado como

preceito de ordem pública e que deve orientar todas as avenças. Os fundamentos dessa

nova sistemática estão nos arts. 421 e 2.035, parágrafo único, do Código de 2002, nos

quais a tutela da parte sucumbente da relação negocial é erigida como ordem que diz

respeito a toda a coletividade, uma vez que a liberdade contratual tem de ser

desempenhada sob a égide da função social do contrato, até porque (e principalmente por

isso) tal proteção está jungida à previsão constitucional de sublimação da dignidade da

pessoa humana (art. 1º, III, CF).

A relativização do pacta sunt servanda, quando se detectar onerosidade desmedida

no contrato, especialmente se unilateralmente impostas as suas cláusulas, é uma realidade e

atribui grande efetividade ao princípio da função social do contrato.

Há na doutrina entendimento de que a aplicação da função social do contrato não

pode estar desprendida da eticidade, da lealdade negocial, da probidade, da boa-fé objetiva.

Por isso, recomenda-se aos que optarem pela revisão ou pela anulabilidade judicial de seus

contratos, que efetuam o depósito do valor pactuado ou do que entender devido, para

demonstrar o intuito de adimplir o pacto. Flávio Tartuce denomina essa situação de

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“relação simbiótica existente entre a função social do contrato (art. 421), a boa-fé

objetiva (art. 422) e a consignação em pagamento (art. 334, CC e art. 890, CPC)”. (Op.

cit., p. 221).

Também aí denota-se o elevado discernimento do legislador que inseriu

expressamente no art. 334 do novo Código a possibilidade, já amparada pelo art. 890 do

Código de Processo Civil, de consignação judicial, demonstrando, mais uma vez, a

aplicação da operabilidade e da simplicidade, mencionando-se, ainda que o depósito

poderá se dar em instituição bancária para facilitar a reação daquele que sofre onerosidade

excessiva.

Não se pode deixar de lado os aspectos éticos e sociais de tal medida, pois a

consignação do valor da obrigação revela a boa-fé do autor da demanda de revisão

contratual (eticidade), que pretende, essencialmente, a aplicação do princípio da função

social do contrato (socialidade).

Flávio Tartuce adverte:

O normativista terá sérias dificuldades em compreender o sentido do princípio

da função social do contrato, bem como de outros que surgiram com a

codificação novel.

Nesse contexto, a lesão, novo vício do negócio jurídico – e daí defeito

contratual, já que todo contrato é negócio -, está situada nessa nova concepção

culturalista, eis que possibilitará ao aplicador do direito a sua interpretação de

acordo com uma forte carga axiológica. (Op. cit., p. 222).

Um dos aspectos mais importantes de todas as inovações da novel codificação,

senão o maior, é que o direito civil moderno valoriza o trabalho e não o enriquecimento

sem causa (art. 884), à custa do capital de outrem.

De forma conclusiva, define-se que a lesão é vício que recai sobre a vontade, mas

que possui repercussões sociais, mantendo, por isso, contato direto com o princípio da

função do contrato, pois as circunstâncias fáticas que envolvem o negócio e a demanda

serão determinantes para solucionar casuístico pedido de anulabilidade do pacto. O certo é

que a sustentação da onerosidade excessiva no contrato reflete em todo o meio social,

devendo ser exterminada.

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5.6.4 Função social e a possibilidade de conversão do contrato nulo

Diferentemente do anterior, o novo Código Civil renovou-se ao permitir a

conversão do negócio jurídico nulo em outro de natureza diferente. É o que designa o art.

170:

“Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro,

subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor

que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade.”

Na sistemática precedente, o negócio jurídico nulo não poderia ser convalidado.

A possibilidade inserida pelo Código de 2002 exige, no entanto, um elemento

subjetivo, consistente na vontade dos contratantes de converter o pacto celebrado (nulo)

em outro.

A respeito, Orlando Gomes aponta como requisitos:

Para haver conversão é preciso: a) que o contrato nulo contenha os requisitos

substanciais e formais de outro; b) que as partes quereriam o outro contrato, se

tivessem tido conhecimento da nulidade. (Op cit., p. 195).

Verifica-se nesse procedimento a busca pela verdade real e pelo restabelecimento

do equilíbrio entre as partes, relegando-se o caráter individualista e tecnicista do Código

Civil de 1916.

O princípio da função social do contrato marca presença nesse raciocínio, pois o

negócio é analisado no plano prático, com a valorização da vontade concreta das partes, só

que com uma manifestação posterior. Há, assim, um aproveitamento dos negócios jurídicos

e das vontades neles unificadas.

Por fim, o artigo em estudo, sem referência na codificação anterior, guarda relação

como princípio da boa-fé objetiva, uma vez que enaltece a confiança e a colaboração entre

as partes, que devem se manifestar pela conversão caso seja essa a vontade.

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5.6.5 Função social do contrato e o abuso de direito

Além de advir do desrespeito à boa-fé contratual, o abuso de direito também estará

caracterizado quando se constatar aviltamento ao fim social e econômico de um instituto

jurídico.

O Código Civil brasileiro, em seu art. 50, demonstra o abuso de direito na esfera

contratual quando prevê a desconsideração da personalidade jurídica, ou seja, em situações

nas quais há o desacato à função social do contrato social da empresa.

A desconsideração só é possível mediante decisão judicial e quando deferida,

geralmente será em decorrência do desrespeito à função social do contrato social ou função

social da empresa, pois o negócio jurídico de constituição da empresa é um contrato,

podendo a desconsideração, diante disso, ser enquadrada como abuso de direito contratual.

Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho elucidam que:

Claro está que a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade que

serviu como escudo para a prática de atos fraudulentos, abusivos, ou em desvio

de função não pode significar, ressalvadas hipóteses excepcionais, a sua

aniquilação.

A empresa é pólo de produção e de empregos. (Op. cit., p. 253).

(...)

A grande virtude, sem sombra de dúvida, da desconsideração da personalidade

jurídica prevista no art. 50 – e todos reconhecem ser esta uma das grandes

inovações do CC-02 – é o estabelecimento de uma regra geral de conduta para

todas as relações jurídicas travadas na sociedade, o que evita que os operadores

do Direito tenham de fazer – como faziam – malabarismos dogmáticos para

aplicar a norma – outrora limitada a certos microssistemas jurídicos – em seus

correspondentes campos de autuação (civil, trabalhista, comercial etc.). (Op.

cit., p. 260).

Busca-se defender que o art. 50 não pode ser empregado de forma apartada, mas

sistematicamente com o que institui o art. 187 do mesmo diploma legal, pois o abuso da

personalidade jurídica nada mais é do que uma modalidade de abuso de direito.

Nesse mesmo eito, a interpretação subjetiva que se pode retirar do texto do art. 50 é

de que se o sócio ou o administrador em exercício irregular de direito não agiu com má-fé

nem contrariou os bons costumes, não poderá ser responsabilizado diretamente.

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5.6.6 Função social do contrato e os contratos de adesão

O contrato de adesão é resultado do fenômeno da “estandardização”, exigido pela

celeridade e intensidade das relações negociais que tomou conta da vida das pessoas,

necessitando de caminhos mais rápidos e práticos.

Nessa obra, tomam-se os termos “contratos de adesão” e “contratos por adesão”

como sinônimos, buscando-se uma facilitação didática e terminológica, até porque o

conceito de contrato de adesão deve ser contemplado em sentido amplo, representando a

moderna uniformização nos modelos de contrato.

Caio Mário da Silva Pereira esclarece que:

Chamam-se contratos de adesão aqueles que não resultam do livre debate entre

as partes, mas provêm do fato de uma delas aceitar tacitamente cláusulas e

condições previamente estabelecidas pela outra. (PEREIRA, Caio Mário da

Silva. Instituições de direito civil. 11. ed., vol. 3: Contratos, Rio de Janeiro:

Forense, 2004, p. 72).

Orlando Gomes arremata a idéia, atribuindo-lhe situação exemplificativa:

O que caracteriza o contrato de adesão propriamente dito é a circunstância de

que aquele a quem é proposto não pode deixar de contratar, porque tem

necessidade de satisfazer a um interesse que, por outro modo, não pode ser

atendido. Assim, quem precisa viajar, utilizando determinado meio de

transporte, há de submeter-se às condições estipulados pela empresa

transportadora, pois não lhe resta outra possibilidade de realizar o intento. A

alternativa é contratar ou deixar de viajar, mas se a viagem é necessária, está

constrangido, por essa necessidade, a aderir às cláusulas fixadas por aquele que

pode conduzi-lo. (Op. cit., p. 119/120).

A definição está agregada, portanto, ao take it or leave it do direito anglo-

americano.

O art. 54 do Código de Defesa do Consumidor cuidou de conceituar o contrato de

adesão:

Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela

autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de

produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar

substancialmente seu conteúdo.

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Também os parágrafos desse dispositivo legal retratam o fato de que a Lei do

Consumidor acolheu o princípio da função social do contrato. O § 1º prescreve que a

inserção de cláusulas eventualmente discutidas no modelo-padrão não exime a natureza de

contrato de adesão. O § 2º permite que haja no pacto cláusula resolutória, mas desde que

esta não atribua um prejuízo exorbitante ao consumidor. O § 3º preceitua que tais contratos

deverão ser redigidos de maneira que o consumidor entenda o seu conteúdo.

É bom que se esclareça, ab initio, que o conceito de contrato de consumo não se

confunde com o de contrato de adesão. O contrato de consumo é aquele em que há a

presença dos elementos elencados nos arts. 2º e 3º da Lei nº 8.078/90. Ou seja, nem todo

contrato de consumo é de adesão e nem todo contrato de adesão é de consumo,

entendimento ratificado por enunciado (nº 171) aprovado na III Jornada de Direito Civil,

no qual estabeleceu-se que “o contrato de adesão, mencionado nos artigos 423 e 424 do

novo Código Civil, não se confunde com o contrato de consumo”. (disponível em

http://www.cjf.gov.br/revista/enunciados/IIIJornada.pdf#search=%22III%20JOrnada%20d

e%20direito%20civil%22).

Essa discussão tornou-se incólume já que o novo Código Civil trouxe determinação

especial quanto ao contrato de adesão.

Toda situação em que prepondere a natureza jurídica da imposição contratual

quanto às cláusulas e às condições do negócio deve ser olhada como indício forte para a

caracterização do contrato de adesão, devendo o Julgador agir com bom senso, fazendo uso

da eqüidade e da razoabilidade na aplicação das normas de proteção do Código de Defesa

do Consumidor (art. 54) e do novo Código Civil (arts. 423 e 424), conforme o contrato seja

de natureza consumerista ou civilista, na devida ordem.

O fato de o legislador trazer manifestação explícita a esse respeito no novel Codex

parece ter tido a intenção de englobar como “de adesão” todo negócio em que a expressão

da vontade não foi exercida em sua plenitude, acompanhando a atual propensão por um

direito civil socializante, sendo o amparo ao aderente uma das maiores representações do

princípio da função social do contrato presente na legislação civil emergente.

Para se adequar à realidade social, o novo Código regulamentou o contrato de

adesão, situação que é de grande valia tendo em vista que inúmeros contratos, apesar de

não se enquadrarem como de consumo, inserem-se naquela modalidade. Antes de tal

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inovação, aos contratos de natureza civil não poderia incidir o art. 54 da Lei nº 8.078/90,

porquanto este diploma legal só se destinava aos contratos de consumo.

Mas agora há positivação civil quanto ao contrato de adesão e a primeira delas está

à vista no art. 423, de acordo com o qual quando “houver no contrato de adesão cláusulas

ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao

aderente”, norma bem parecida com a que consta no art. 47 do Código de Defesa do

Consumidor.

Parece-nos que tal disciplina constitui norma de ordem pública e de interesse

social, em perfeita consonância com o princípio da função social do contrato e com o da

boa-fé objetiva, o que implica em que possa ser declarada de ofício e torna inválida

qualquer cláusula do ajuste que derrogue a incidência dessa regra interpretativa.

O novo Código Civil, no entanto, deixou de conceituar o contrato de adesão,

diversamente do que diligenciou o Código de Defesa do Consumidor.

O amparo do aderente continua no art. 424 ao estatuir que “nos contratos de

adesão, são nulas de pleno direito as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do

aderente a direito resultante da natureza do negócio”, dispositivo que também possui

correspondente na Lei nº 8.078/90 (art. 51).

Para dissipar quaisquer dúvidas porventura resultantes do cotejo entre o Código

Civil e a Lei do Consumidor a III Jornada de Direito Civil sufragou o enunciado (nº 172)

pelo qual “as cláusulas abusivas não ocorrem exclusivamente nas relações jurídicas de

consumo. Dessa forma, é possível a identificação de cláusulas abusivas em contratos civis

comuns, como por exemplo, aquela estampada no art. 424 do Código Civil de 2002”.

(retirado do endereço eletrônico

http://www.cjf.gov.br/revista/enunciados/IIIJornada.pdf#search=%22III%20JOrnada%20d

e%20direito%20civil%22)

Note-se que as hipóteses do art. 51 da legislação consumerista abrigam uma

amplitude notável, alcançando maior encaixe de situações como abusivas, que dependerão

da interpretação do Magistrado. Essa abrangência se faz presente também no art. 424 do

CC/2002, pois qualquer cláusula de renúncia a direito inerente ao negócio é inquinada de

abusiva, não tendo sido efetuado o trabalho desnecessário de elencar exemplificativamente

algumas situações, como o fez o Código de Defesa do Consumidor no art. 51.

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Também ficará ao alvedrio do aplicador do direito dimensionar o que seja “direito

resultante da natureza do negócio”, pois simboliza mais uma cláusula geral e consiste em

norma cogente, inderrogável pelo talante das partes, limitando a autonomia da vontade por

ser decorrência do princípio da função social do contrato.

Como exemplo prático do que seja a condição geral referida no parágrafo anterior

tem-se a denominada cláusula de eleição de foro, admitida pelo art. 78 do Código de 2002,

pelo qual “nos contratos escritos, poderão os contratantes especificar domicílio onde se

exercitem e cumpram os direitos e obrigações deles resultantes”. Se for constatado que o

contrato é de adesão e houver renúncia do aderente/devedor ao direito de demandar ou ser

demandado em seu domicílio, tal cláusula não merecerá ser cumprida e vários são os

motivos. O art. 94 do Código de Processo Civil reconhece ao devedor a possibilidade de

ser demandado no foro de seu domicílio, bem como, pelo art. 327 do novo Código Civil, é

cediço que a obrigação deve ser satisfeita no domicílio do devedor, salvo disposição em

contrário em contrato paritário (aquele em que há discussão plena e em igualdade de

condições dos termos do contrato), e, para terminar, é direito do devedor/aderente

responder pelo ajuste no foro do seu domicílio.

5.6.7 Função social do contrato e a revisão contratual

A cláusula rebus sic standibus, como já discorrido precedentemente, está

consagrada no art. 317 do novo Código Civil.

A revisão por imprevisibilidade requer a coexistência de alguns fatores que devem

ser rigorosamente observados pelo Julgador em uma provável revisão judicial, que só será

possível quando o contrato for bilateral ou sinalagmático, com a presença do caráter da

onerosidade e do interesse patrimonial. Além disso, o contrato deve ser comutativo, com

conhecimento dos contratantes sobre o conteúdo do pacto e só podem ser objeto deste tipo

de revisão os contratos de execução diferida (aqueles em que a satisfação se dá de uma vez

só no futuro; ex.: cheque pós-datado) e os de execução periódica, continuada ou de trato

sucessivo (o cumprimento acontece repetidamente no tempo, de forma sucessiva; ex.:

pagamento de parcelas de financiamento). Não poderá sobrevir, entretanto, em contrato

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unilateral ou gratuito, nos aleatórios (arts. 458 a 461, CC) e nos instantâneos, cuja

execução se dá imediatamente.

Para que seja possível a revisão judicial por fato imprevisto, deve constar, ainda, a

onerosidade excessiva ou lesão objetiva, já definidas em tópicos precedentes. E,

finalmente, o elemento da imprevisibilidade tem de ser comprovado, pois enquanto

mantidas as condições externas o contrato deve ser cumprido, só sendo cabível a incidência

da regra rebus sic standibus quando constatadas alterações que gerem conseqüências para a

execução, momento em que deve ser tentado o restabelecimento do status quo ante.

Flávio Tartuce discorda do texto do art. 317 do CC/2002 ao estabelecer a

necessidade de existência de “motivos imprevisíveis” para a revisão do negócio, pois para

ele tal regra está dissonante do princípio da função social do contrato, explicitamente

adotado pela codificação privada em seu art. 421. É o que o ilustre doutrinador questiona:

(...) se o Código de Defesa do Consumidor, que adotou a função social do

contrato como princípio, abraçou também a teoria da eqüidade contratual –

revisão por simples onerosidade, não necessitando de prova de fato imprevisível

–, como poderia o Código Civil, que traz o mesmo regulamento básico

contratual, adotar a teoria da imprevisão, com a necessidade de prova de fatos

imprevisíveis, para a revisão dos negócios jurídicos patrimoniais? Muitas vezes,

na verdade, percebem-se equívocos cometidos pela jurisprudência em relação às

duas órbitas. (Op. cit., p. 260).

Daí decorre uma antinomia real entre o art. 317 e o art. 480, sendo que este dispõe

que “se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear

que sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a

onerosidade excessiva”. O dispositivo transcrito não exige a demonstração cabal de

“motivos imprevisíveis”, surgindo dúvida acerca de qual deles deve se valer o Magistrado

no caso concreto.

Ousa-se afirmar que o art. 480 é o que deve ser utilizado, pois ele está em

concordância com o princípio da função do contrato.

Vislumbra-se um deslinde para a questão com o Enunciado 17 da I Jornada de

Direito Civil, pelo qual “a interpretação da expressão „motivos imprevisíveis‟, constante

do art. 317 do novo Código Civil, deve abarcar tanto causas de desproporção não

previsíveis, como também causa previsíveis, mas de resultado imprevisíveis”. (retirado do

endereço eletrônico

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http://www.cjf.gov.br/revista/enunciados/IJornada.pdf#search=%22I%20jornada%20de%2

0direito%20civil%22)

Apesar de não ser o entendimento majoritário, entende-se que o mais acertado seria

reputar o resultado como imprevisível para a parte e não para a coletividade, equívoco que

se pratica ao se utilizar a teoria da imprevisão e que deveria ser corrigido para se amoldar

ao princípio da socialidade, até porque a relativização da força obrigatória e a função social

do contrato são regras cogentes e de interesse social, motivo por que o art. 317 não teria

plena aplicação, já que contraria tais princípios.

Observa-se, no entanto, que não tem sido esse o posicionamento seguido por parte

da jurisprudência. Para que o meio social seja preservado, a mudança do art. 317 é de

premente necessidade para que passe a estabelecer que, se por fatos supervenientes e

alheios à vontade das partes e à sua atuação culposa, sobrevier desproporção, a revisão do

negócio jurídico é um caminho possível.

Mencione-se, ainda, que o Projeto nº 6.960/2002 busca promover modificações na

codificação novel para adequá-la ao princípio da função social do contrato, concepção tida

como mais justa, principalmente tendo como parâmetro o aspecto civil-constitucional do

direito privado, cujos pilares podem ser indicados como sendo a dignidade, a solidariedade

e a igualdade.

Realça-se a incoerência do novo Código ao alargar a proteção do aderente, ao

mesmo tempo em que se lhe exige a comprovação de fatos imprevisíveis para que tenha

direito à revisão contratual, contrariando a tutela da parte mais vulnerável, cuja essência é a

dignidade da pessoa humana, bem como o princípio da função social do contrato, que é

máxima de ordem pública.

Nesse aspecto, seria conveniente a inserção no Código Civil de um comando com a

mesma orientação do art. 6º, V, da Lei do Consumidor.

5.7 QUESTÕES DE DIREITO INTERTEMPORAL

Debate-se a respeito do parágrafo único do art. 2.035 do CC/2002, no tocante à

possibilidade que traz de promover a aplicação do novo Código aos contratos

aperfeiçoados antes de sua vigência.

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Nesse trabalho, defende-se a constitucionalidade de tal norma, sendo cabível a

anulação de contrato firmado antes da nova codificação pela configuração da lesão

subjetiva (art. 157, CC), por exemplo.

O caput do aludido dispositivo orienta:

A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada

em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores referidas no art.

2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos

preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes

determinada forma de execução.

Ou seja, quanto aos aspectos concernentes à existência e à validade do negócio

devem incidir as regras da lei anterior. Fortuitamente, a respeito da eficácia do negócio,

poderão ser aplicadas, regra geral, as normas da nova codificação.

Não há falar em inconstitucionalidade da referida norma nem em violação ao

direito adquirido, à coisa julgada ou ao ato jurídico perfeito, pois o desrespeito a um

princípio é muito mais grave do que a uma norma. Ademais, há respaldo constitucional

pela retroatividade de tal lei, pois protege a função social da propriedade lato sensu (art. 5º,

XXII e XXIII, CF) – englobando, por óbvio, a função social do contrato -, princípio

considerado inerente à ordem econômica nacional (art. 170, III, CF) e de natureza cogente.

De qualquer maneira, a preservação da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) é

pano de fundo relevante para a posição aqui adotada.

Há aparente confronto entre o ato jurídico perfeito e o direito adquirido, de um

lado, e a função social da propriedade, de outro. Utilizando como norte os arts. 4º e 5º da

Lei de Introdução ao Código Civil, bem como a busca da justiça social, o princípio da

função social do contrato, preceito de ordem pública, deve ser encarado como limitação ao

contrato. É a adoção do princípio da retroatividade justificada ou motivada, aplicável em

casos excepcionais em benefício da função social do contrato.

Conclui-se, portanto, que é viável anular judicialmente contrato celebrado antes da

vigência da atual codificação quando for constatada a presença da lesão. Para que isso se

torne possível, o Judiciário deve estar atento à nova carga axiológica introduzida pelo

direito civil moderno, zelando pela aplicabilidade do parágrafo único do art. 2.035.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No desfecho deste trabalho, afigura-se relevante compendiar e realçar as principais

conclusões oriundas do desenvolvimento de cada capítulo. Desde o limiar da pesquisa, o

objetivo maior esteve voltado a aprofundar a análise da nova concepção do Direito Civil,

reforçada pelos princípios nele inseridos com a alteração ocorrida em 2002.

Os novos princípios introduzidos na teoria dos contratos não anularam os princípios

clássicos que sempre dirigiram esse importante segmento do direito das obrigações.

Apenas foram a eles acrescidos para enriquecê-los e aprimorá-los, tendo em vista os

valores éticos e sociais.

O sistema do novo Código Civil, para valorizar os princípios da eticidade e da

socialidade, adotou o critério normativo das chamadas cláusulas gerais, que transfere para

os juízes a pesada tarefa integrativa no que diz respeito à interpretação e concretização da

vontade da lei.

O quadro de evolução do direito contratual não consiste apenas no desenrolar de

um fenômeno independente dos demais microssistemas legais. Há nítido anseio pelo

intercâmbio entre todos esses diplomas, utilizando-se sempre como norte a Constituição

Federal. É importante ter a consciência de que o direito negocial não pode ser tratado de

forma desligada da realidade, como se quis fazer em certa época de seu desenvolvimento,

em que ficou constatada a insuficiência de um direito concebido sob uma visão

introspectiva, distante das realidades sociais. As leis protetivas do consumidor, por

exemplo, vieram equilibrar situações de total disparidade.

Os tribunais pátrios começam a perceber e a entender a amplitude dessas alterações,

com a aplicação correta da lei protetiva. Entretanto, visualizam-se grandes resistências,

uma vez que a Lei nº 8.078/90 quebra regras tradicionais do Código de 1916, como a

responsabilidade subjetiva e a força obrigatória do contrato. Agora, o Código de Defesa do

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Consumidor encontra um grande aliado – o novo Código Civil – que repete muitas de suas

regras e princípios.

Com o novo Código Civil, ter-se-á uma alteração substancial no nosso sistema,

uma verdadeira revolução em matéria contratual, com a quebra definitiva da regra

tradicional do pacta sunt servanda absoluto e com a instituição, de maneira ampla e

definitiva, dos princípios de socialização, particularmente o da função social do contrato.

Na realidade, essa quebra já poderia ser percebida pelos princípios que constam do Texto

Constitucional, mas o papel da novel codificação é o de regulamentar de forma específica a

matéria negocial.

Todas essas mudanças devem ser encaradas com otimismo, pois a cogitada crise do

contrato é uma falácia criada por aqueles que não concordam com as importantes

alterações possibilitadas por essas duas leis – CDC e Código Civil de 2002 – que

trouxeram uma nova concepção sobre o direito.

A função social do contrato, preceito de ordem pública, encontra fundamento

constitucional no princípio da função social do contrato lato sensu (art. 5º, XXII e XXIII, e

170, III), bem como no princípio maior de proteção da dignidade da pessoa humana (art.

1º, III), na busca de uma sociedade mais justa e solidária (art. 3º, I) e na isonomia (art. 5º,

caput).

Como todas as mudanças trazem dificuldade, não há dúvidas de que serão

detectadas fortes resistências à adoção de tal princípio. Entretanto, o tempo e a prática irão

demonstrar que as novas teses têm aplicação precisa na nova realidade jurídica.

Parece-nos, assim, delineado um panorama, ainda que limitado e não tão profundo

quanto seria o ideal, do que seja o contrato na sistemática atual, revelando a semelhança

existente com o Código de Defesa do Consumidor que foi o pioneiro na abertura dessa

nova tendência. Estamos agora um pouco mais habilitados a compreender os institutos

civis a partir de uma visão global, permitindo que possamos encontrar soluções mais

legítimas e consentâneas à expectativa dos jurisdicionados.

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Cabe ao Poder Judiciário, com aplicação desses novos preceitos do novo Código

Civil, atentar para tais mudanças, como se passou a fazer com a aplicação da Lei nº

8.078/90, com vistas a uma maior pacificação social, intuito primário do direito e da lei.

O princípio da força obrigatória dos contratos vem sendo atenuado em razão de

vários fatores, dentre os quais se destaca o fenômeno da publicização do processo. A

observância dos novos princípios civilistas pelos sujeitos da relação contratual contribui

para a humanização do contrato, dotando-o de efetividade, de modo a tornar-se verdadeiro

instrumento ético de concretização social.

A evolução científica, política e cultural exige a substituição de paradigmas

superados pela nova realidade. Visto por esse prisma, o fenômeno da positivação dos

novos princípios no ordenamento privado requer a revisão de certos conceitos e princípios,

convertidos em dogmas, na esfera do Direito Contratual, para que este se mantenha em

consonância com as exigências dos novos tempos.

Este estudo teve a singela intenção de prestigiar tão nobre tema no âmbito do

direito civil brasileiro, sem, no entanto, ter a pretensão de esgotar o assunto, que comporta

um sem número de análises e implicações. Fundamentalmente, considera-se que a

mensagem principal é a de que o contrato exerce uma função essencial na sociedade, mas

deve ser validado na medida em que cumpra o seu papel social. Não há a ilusão de

transferir a solução de todos os problemas concernentes à questão contratual para a nova

ordem principiológica inserida no Código Civil de 2002. Mas, diante de tudo o que foi

ponderado, é inegável que os novos princípios auxiliam na redução das desigualdades,

buscando-se a efetivação da função social do contrato.

Por fim, uma reflexão deve ser suscitada.

Verificada a extensão dos poderes que o ordenamento jurídico confere ao Juiz para

revisar o contrato, resta grave inquietação. Esta consiste em aparelhar o Poder Judiciário,

(inclusive atualizando-o) suficientemente para possibilitar que o Juiz atue ampla e

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concretamente no exercício dos poderes que lhes são juridicamente conferidos enquanto

diretor do processo.

Creio que não bastam os ideais de tantos abnegados Magistrados conscientes do

relevante papel jurídico, político e social do poder, atividade e função que exercem. É

preciso difundir cada vez mais tal consciência. Porém, além disso, que os Juízes

aprofundem o estudo do direito civil constitucional, para aplicá-lo com coerência e justiça.

Em caso contrário, tudo não passará de vazio discurso, a respeito do qual o povo há muito

está cansado e desiludido.

Será este o desafio do civilista do novo século: encontrar um ponto de equilíbrio

entre a função social do contrato e a segurança jurídica.

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BIBLIOGRAFIA

BASTOS, Celso Ribeiro; e MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários da

Constituição Federal. vol. 2, Saraiva, 1998.

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 18.ed. amp. São Paulo : Saraiva,

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BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz. 2. ed. rev. e ampl. -

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UNIC

UNIVERSIDADE DE CUIABÁ

Reitor

Dr. ALTAMIRO BELO GALINDO

Pró-Reitora Acadêmica

Dra. CELIA CALVO GALINDO

FACULDADE DE DIREITO

Diretor

Dados CIP – Biblioteca Central da UNIC – 2006.

Padoin, Ivonete de Fátima Callegari

O contrato numa perspectiva social. Cuiabá: UNIC – Departamento de Direito, 2006.

Trabalho de Conclusão do Curso de Direito orientada pelrofessores Marli

Teresinha Deon Sette e

Frederico Capistrano.

1. DIREITO CIVIL. 2. DIREITO DOS CONTRATOS. 3. FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS.

Coordenador da disciplina de Monografia Jurídica

_________________________________________

Professores da Banca

_________________________________________

_________________________________________

_________________________________________

Padoin, Ivonete de Fátima Callegari

O contrato numa perspectiva social. Cuiabá: UNIC – Departamento de Direito, 2006.

Trabalho de Conclusão do Curso de Direito orientada pela Professora Marli Teresinha Deon Sette.

1. DIREITO CIVIL. 2. DIREITO DOS CONTRATOS. 3. FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS.

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