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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM LINGUÍSTICA Ato estético numa perspectiva bakhtiniana: as charges de Carlos Latuff no contexto do conflito árabe-israelense KAREN DANTAS DE LIMA Orientador: Prof. Dr. Carlos Augusto Baptista de Andrade Dissertação apresentada ao Mestrado em Linguística, da Universidade Cruzeiro do Sul, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Linguística. SÃO PAULO 2015

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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

MESTRADO EM LINGUÍSTICA

Ato estético numa perspectiva bakhtiniana: as charges de

Carlos Latuff no contexto do conflito árabe-israelense

KAREN DANTAS DE LIMA

Orientador: Prof. Dr. Carlos Augusto Baptista de Andrade

Dissertação apresentada ao Mestrado em Linguística, da Universidade Cruzeiro do Sul, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Linguística.

SÃO PAULO

2015

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AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA

UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL

L698a

Lima, Karen Dantas de. Ato estético numa perspectiva bakhtiniana: as charges de Carlos

Latuff no contexto do conflito árabe-israelense / Karen Dantas de Lima. -- São Paulo; SP: [s.n], 2015.

91 p. : il. ; 30 cm. Orientador: Carlos Augusto Baptista de Andrade. Dissertação (mestrado) - Programa de Pós-Graduação em

Linguística, Universidade Cruzeiro do Sul. 1. Charges 2. Latuff, Carlos – Charges (Análise do discurso) 3.

Estética 4. Enunciados – Charges (Análise do discurso). I. Andrade, Carlos Augusto Baptista de. II. Universidade Cruzeiro do Sul. Programa de Pós-Graduação em Linguística. III. Título.

CDU: 741.5(043.3)

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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

Ato estético numa perspectiva bakhtiniana: as charges de

Carlos Latuff no contexto do conflito árabe-israelense

KAREN DANTAS DE LIMA

Dissertação de mestrado defendida e aprovada

pela Banca Examinadora em 31/03/2015.

BANCA EXAMINADORA:

Prof. Dr. Carlos Augusto Baptista de Andrade

Universidade Cruzeiro do Sul

Presidente

Profa. Dra. Sonia Berti Santos

Universidade Cruzeiro do Sul

Prof. Dr. Jarbas Vargas Nascimento

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por me permitir alcançar mais uma etapa da minha

formação.

Aos meus familiares, que souberam compreender minhas ausências,

e pelo apoio recebido.

Ao meu orientador, Prof. Dr. Carlos Augusto Baptista de Andrade,

pela dedicação à pesquisa e aos ensinamentos que levo para toda a

vida.

Aos professores do Programa de Mestrado em Linguística da

Universidade Cruzeiro do Sul.

Aos membros da banca de qualificação e defesa, Prof. Dr. Jarbas

Nascimento e Prof.ª Dr.ª Sônia Sueli Berti, cujas observações foram

significativas para a pesquisa.

Ao Diogo, por sua amizade e parceria nas reflexões.

Aos meus amigos de turma que, de alguma forma, fizeram parte

desse momento, principalmente pela troca de experiências.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

(Capes), pelo apoio financeiro que muito contribuiu para minha

formação e dedicação à pesquisa.

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LIMA, K. D. de. Ato estético na perspectiva bakhtiniana: as charges de Carlos Latuff no contexto do conflito árabe-israelense. 2015. 91 f. Dissertação (Mestrado em Linguística)–Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2015.

RESUMO

Neste estudo apresentamos uma reflexão sobre o processo da atividade estética.

Como os atos humanos éticos revelam uma postura responsiva do sujeito

participativo diante dos acontecimentos sociais e um modo de ressignificá-los com

efeito estético. Na manifestação artística, ao analisar um enunciado concreto do

gênero híbrido, composto pelos elementos verbal e visual, partimos para uma

investigação a fim de compreender o ato estético e, consequentemente, a inserção

do objeto na unidade da cultura e no mundo das artes. Atualmente, dada as

transformações sociais e a agilidade de acesso à informação, principalmente em

razão do uso da tecnologia no cotidiano das pessoas, há a adaptabilidade dos

gêneros de forma diferenciada. Considera-se inclusive, novas formas de produção,

circulação e recepção. Nesse sentido, realizar um estudo sobre estética resvala em

questões como a gradação no universo das artes. Nosso objeto é a charge, as

especificidades do gênero como cômico-sério, a proximidade com produções

gráficas, temporalidade ou a efemeridade com que a temática muda, esfera de

circulação, entre outros elementos que nos estimulam o estudo enquanto objeto

estético sob a perspectiva da análise dialógica do discurso de orientação

bakhtiniana. São elementos caracterizadores que, em tese, distanciam a charge das

grandes obras de arte. Nossa proposição é mostrar que em uma visão sociológica, o

sujeito atuante, na condição de produtor do enunciado ou receptor, está no cerne da

questão, instituindo sentido além da materialidade. Sabemos que há muito tempo a

discussão sobre estética privilegiou o estudo do objeto em detrimento do sujeito, ou

ainda, a relação do sujeito-receptor com o objeto por via intuitiva. Orientados pelos

estudos sobre a atividade estética e a inter-relação entre o mundo da vida e o

mundo das artes, focamos no sujeito, na instância criadora para apreender como se

dá ao enunciado o acabamento estético.

Palavras-chave: Charge, Ato, Ético e estético, Atividade estética.

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LIMA, K. D. de. Aesthetic act in bakhtin’s perspective: the cartoons of Carlos Latuff in the context of the arab-israeli conflit. 2015. 91 f. Dissertação (Mestrado em Linguística)–Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2015.

ABSTRACT

In this study we present a reflection on the process of aesthetic activity. As ethical

human actions reveal a responsive attitude of the participating subject before social

events and a way of offering new significance in with aesthetic effect. In artistic

expression, to analyze a concrete statement of the hybrid genre, composed of verbal

and visual elements, we went to an investigation in order to understand the aesthetic

act and, consequently, the insertion of the object in the unity of culture and in the art

world. Currently, given the social changes and the speed of access to information,

mainly due to the use of technology in daily life, there is the adaptability of the

genders differently. It is considered even new forms of production, circulation and

reception. Accordingly, to conduct a study on aesthetics slips on issues such as

gradation in the art world. Our object is the charge, the specifics of the genre such as

comic-serious, proximity to graphic productions, temporality or ephemerality with the

theme changes, circulation sphere, among other things that stimulate the study as an

aesthetic object from the perspective of dialogical discourse analysis of bakhtiniana

orientation. Are characteristic elements which, in theory, distancing the charge of the

great works of art. Our proposition is to show that in a sociological view, the acting

subject, the producer of the condition statement or receiver is at the heart of the

matter by instituting sense beyond materiality. We know that long discussion on

aesthetics favors the study of the object rather than the subject, or the relationship of

the subject-receiver with the object by intuitive means. Guided by studies on the

aesthetic activity and the interrelationship between the world of life and the art world,

we focus on the subject, the creator instance to understand how is the statement the

aesthetic finish.

Keywords: Charge, Act, Ethical and aesthetic, Aesthetic activity.

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SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS ................................................................................. 8

CAPÍTULO 1

1 CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO DO CONFLITO ÁRABE-ISRAELENSE ... 9

1.1 Império Otomano .......................................................................................... 11

1.2 Reconfiguração Territorial do Oriente Médio ............................................. 12

1.3 Movimento Sionista ...................................................................................... 15

1.4 Criação do Estado de Israel ......................................................................... 18

1.5 Nacionalismo Árabe ..................................................................................... 19

1.6 Religião Islâmica ........................................................................................... 20

CAPÍTULO 2

2 A ARQUITETÔNICA DO ATO ESTÉTICO ..................................................... 23

2.1 Criação da Personagem ............................................................................... 26

2.2 Excedente de Visão Constitutiva da Obra .................................................. 29

2.3 Gêneros Discursivos .................................................................................... 36

2.4 Charge ........................................................................................................... 39

2.4.1 Charge: Gênero Discursivo ......................................................................... 43

2.4.2 Comicidade ................................................................................................... 47

CAPÍTULO 3

3 ANÁLISE DIALÓGICA DO DISCURSO CHARGÍSTICO ............................... 51

3.1 Linguagem Visual ......................................................................................... 52

3.1.1 Charges: Esferas Discursivas ..................................................................... 55

3.2 Mother Palestine: Primeira Charge ............................................................. 63

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3.3 Uma Leitura da Segunda Charge ................................................................ 71

3.4 A Obra Pietà .................................................................................................. 75

3.5 A Estética Bakhtiniana na Inter-Relação das Obras .................................. 76

3.6 Terceira Charge ............................................................................................ 82

3.7 Quarta Charge ............................................................................................... 84

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 87

REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 90

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

As reflexões contidas na presente dissertação foram construídas por meio de

um percurso analítico-metodológico que visa compreender a linha tênue que se

estabelece entre as fronteiras dos discursos produzidos na vida social, seja no

cotidiano ou no campo das artes, retratado neste trabalho.

Observando as ponderações acerca da relação existente entre vida e arte,

buscamos apreender como ocorre a interação entre as quais em determinados

enunciados concretos.

Considerando a dinâmica dialógica nas diversas esferas de produção e

circulação dos discursos que acompanham as modificações sociais, apontamos para

um modo de arte que dialoga com algumas dessas esferas em seu tempo. Tal

diálogo, com o advento da internet, desencadeou uma profusão de possibilidades de

circulação e recepção da arte chargística, objeto de estudo da nossa discussão.

Entendemos que há todo momento realizamos atos humanos, ações

propriamente ditas. A aparente praticidade dos atos cotidianos nos leva a

reconhecer que, como sujeitos ativos, são reveladores de nosso ser, tanto na

individualidade quanto na coletividade.

Interessa-nos nesse momento discutir sobre os atos éticos e estéticos e suas

reverberações no âmbito social. Para tanto, pautamo-nos em pressupostos teóricos

de Bakhtin e de seu Círculo, considerando as discussões sobre a estética e a

análise estética, sobretudo na adoção de conceitos relacionados ao ato, entre os

quais o excedente de visão, a arquitetônica e a responsibilidade ativa.

Dividida em três capítulos, a dissertação segue a seguinte organização: no

primeiro capítulo apresentamos uma introdução ao contexto sócio-histórico em que

está inserido o corpus; no segundo refletimos sobre o suporte teórico-metodológico

que norteou a pesquisa; o terceiro capítulo apresenta a análise, seguida das

considerações finais e das referências bibliográficas.

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CAPÍTULO 1 – CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO DO CONFLITO

ÁRABE-ISRAELENSE

Expõe-se neste capítulo introdutório um panorama da inextricável conjuntura

em que se estabelece a relação entre Israel e Palestina e desses com outros países

da região do Oriente Médio e, finalmente, sob o aspecto global com a influência

ocidental.

Para compreender as implicações do conflito árabe-israelense, impõe-se um

percurso geopolítico, sociocultural e econômico que desvela um contorno complexo

dessas relações.

São aspectos multifatoriais que corroboram para desvendar os obscuros

desdobramentos dos conflitos regionais, suas implicações e reverberações em nível

mundial.

Geograficamente, o Oriente Médio está posicionado entre três continentes:

Europa, África e Ásia. A localização estratégica favorece o vínculo a fatores

econômicos impulsionados por conter em seu território grandes reservas de

petróleo. Sobretudo a partir do século XX, o “ouro negro” passou a ser exportado

para os Estados Unidos, União Europeia, China e Japão. Atualmente, devido a

acordos comerciais entre outros países e vicissitudes políticas, diminuiu-se a

exportação do mineral dessa região.

Segundo Fromkin (2008), antes disso, a questão petrolífera não era de

fundamental importância para os envolvidos no grande jogo, os quais estavam mais

interessados nas aberturas marítimas:

[...] poucos políticos previram a importância futura do óleo e, além disso, ainda não se sabia que ele existia em grande quantidade no Oriente Médio. A maior parte do petróleo da Grã-Bretanha (mais de 80%, antes e durante a Primeira Guerra Mundial) vinha dos Estados Unidos. Na época, a Pérsia era o único produtor significativo no Oriente Médio, mas até mesmo essa produção era insignificante diante da produção mundial. Em 1913, por exemplo, os Estados Unidos, produziram 140 vezes mais petróleo do que a Pérsia (FROMKIN, 2008, p. 34).

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Fromkin (2008) adota o termo grande jogo para designar a aliança

estabelecida entre os responsáveis pelas mudanças geopolíticas na região do

Oriente Médio. Segundo esse estudioso, o termo foi cunhado pelo oficial britânico

Arthur Conolly, morto no Uzbequistão. Seus escritos, nos quais usou a expressão

grande jogo, foram descobertos posteriormente, a propósito do evento da Primeira

Guerra Afegã.

A configuração geográfica do que hoje admitimos como Oriente Médio é um

rearranjo territorial imposto pelo poder hegemônico ocidental. O expansionismo do

imperialismo europeu ambicionava a colonização da região. A esse respeito,

Fromkin (2008, p. 28) argumenta que:

Nos primeiros anos do século XX, quando Churchill e seus convidados viajaram a bordo do Enchantress, era normal supor que os povos europeus continuariam a desempenhar por longo tempo um papel dominante nos negócios mundiais. Também não era incomum supor que, tendo cumprido a maior parte da missão histórica do Ocidente e moldado os diversos destinos políticos dos outros povos, algum dia essa missão seria concluída. Entre os domínios a serem cuidados destacavam-se os do Oriente Médio, uma das poucas regiões do planeta que ainda não tinham sido social, cultural e politicamente moldadas à imagem da Europa.

Após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), os países bem-sucedidos na

empreitada bélica aliaram-se para definir os novos traçados de fronteiras no Oriente

Médio. Nessas relações diplomáticas, ocorridas por volta dos anos de 1920 e 1922,

as potências europeias intervieram não apenas na reconfiguração da região, mas no

modo de vida de povos com cultura muito enraizada e que encontravam na religião

seu embasamento político.

Os acontecimentos de 1914-1922, apesar de colocarem um fim a questão do Oriente Médio Na Europa, deram ensejo a uma questão do Oriente Médio no próprio Oriente Médio. No que concerne aos europeus, o acordo de 1922 (como é chamado hoje, apesar de alguns pactos terem sidos concluídos um pouco antes ou um pouco depois disso) resolveu a questão do que_ e de quem _deveria substituir o Império Otomano (FROMKIN, 2008, p.61).

Ao que tudo indica, os intermitentes conflitos que eclodem no Oriente Médio

têm por trás uma difícil adaptação dos povos a uma nova realidade tida como um

ideal civilizatório imposto pelo Ocidente após a queda do Império Otomano.

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1.1 Império Otomano

De acordo com Fromkin (2008), por volta de 1000 depois de Cristo, cavaleiros

pagãos, falantes de turco ou de línguas mongóis, vindos do Nordeste e Centro da

Ásia, invadiam e conquistavam terras. Com as conquistas, vieram as divisões

territoriais e a criação de reinados, como os de Gengis Khan e o Império Otomano

(1299-1922).

Fundado por cavaleiros convertidos ao Islã, esse império também foi

chamado de Osmanli. A origem do nome remonta ao século XII e faz referência a

Osman, nascido em 1258, um ghazi que significa guerreiro da fé muçulmana.

O Império Otomano foi uma grande potência, expandindo seus domínios não

apenas pelo Oriente Médio, como também pela Europa e África.

Com um ideal expansionista também de sentido religioso, visando uma

hegemonia mulçumana, os turcos, liderados por Osman, conquistaram boa parte do

Império Bizantino cristão. No ano de 1453, tomaram a capital bizantina,

Constantinopla, rebatizando-a de Istambul.

Sob o governo de um sultão, califa considerado sucessor de Maomé, o

Império Otomano apresentava na fé islâmica uma população de maioria sunita.1

Embora existissem seitas antagonistas, como os xiitas2, além de outras, como

judeus, católicos e protestantes.

Várias etnias compunham o perfil da população na região que foi definida pelo

desígnio europeu de forma genérica como “árabe”.

Dentro dessa multiculturalidade, insere-se um governo que não era formado

apenas por turcos, mas por súditos vindos de vários lugares, falantes de línguas

diversas, entre as quais curdo, grego, eslavo e armênio. Consequentemente,

formavam grupos que não se misturavam entre si.

1Membro de uma das quatro seitas muçulmanas ortodoxas, que consideram a Suna como

complemento do Alcorão; muçulmano ortodoxo.

2Designação dada aos membros dos xiitas, muçulmanos que sustentam somente serem verdadeiras

as tradições de Maomé transmitidas por meio de membros de sua família.

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Anacrônicos no seu modo de pensar e agir, a partir do século XIX, os

otomanos sentiram a necessidade de crescimento em todos os níveis. Almejavam

uma reforma política com um governo central e escolas, planos que não chegaram a

alcançar.

Até a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o Oriente Médio foi tomado pela

Rússia e Grã-Bretanha. Regiões como Pérsia e Afeganistão fizeram parte de um

acordo anglo-russo (1907) de divisão territorial entre as partes.

Enquanto reinados de xeques árabes estavam sob domínio britânico, o

Império Otomano resistia, conservando sua independência.

Apesar de independente, mostrava sinais de viver sob a sombra do passado.

O sultanato não conservava uma organização administrativa comparável aos

padrões europeus.

Nunca deixaram o perfil de saqueadores e sequestradores, eram

essencialmente guerreiros. Sem muita racionalização, os escravos turcos

conseguiam ocupar os lugares daqueles que os comandavam, alcançando poder

com a invasão de novos territórios, como diretriz de sua vida econômica.

Nos derradeiros anos antes do início da Primeira Guerra Mundial, homens obscuros, mas ambiciosos, tomaram o poder no Império Otomano, relegando o sultão a uma posição de figura decorativa. Esses novos homens, líderes do Partido dos Jovens Turcos, foram ao mesmo tempo o resultado e a causa da efervescência em Constantinopla, a capital otomana, conforme tentaram enfrentar o desafio de levar o império ao século XX antes que o mundo moderno tivesse tempo de destruí-lo (FROMKIN, 2008, p.43).

Aliado da Alemanha na Primeira Guerra Mundial, sucumbiu após o término da

mesma. Com a queda da soberania otomana, os domínios foram se decompondo. O

que sobrou do Império tomado pelos jovens turcos deu origem à República da

Turquia.

1.2 Reconfiguração Territorial do Oriente Médio

Para Fromkin (2008) o acordo entre Grã-Bretanha, França e Rússia modificou

a antiga ordem no Oriente Médio. Tentou-se implantar um sistema que funcionava

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há séculos no Ocidente, no entanto, ficou em segundo plano a milenar questão

religiosa que governa a vida das pessoas da região.

Assim, criaram países, nomearam governantes, delinearam fronteiras e

introduziram um sistema de Estado do tipo que existe em todos os outros lugares,

mas não dominaram a forte oposição local a essas decisões.

Um vasto cenário político e econômico do expansionismo demonstrou que a

empreitada de europeização já teria sido iniciada sem que se pudesse dar

sustentação ao que fora estabelecido como sistema político no Oriente Médio, não

conseguindo evitar os antagonismos autóctones insurgentes que se encontram no

cerne dos conflitos endógenos da atualidade.

Em 1919, os países aliados reuniram-se na liga das Nações, corpo sui generis, estabelecido por um acordo entre os Estados vitoriosos da guerra, que visavam estabelecer seu conceito de ordem nas relações internacionais – segundo o qual os territórios asiáticos e africanos ficariam sob a “tutelagem das nações avançadas”, reproduzindo as ideias de missão civilizadora da raça europeia vigentes no século XIX (GATTAZ, 2003, p. 48).

A Turquia resistiu e conseguiu manter-se existente. Definiu fronteiras com a

Pérsia – atual Irã –, com o Afeganistão e, mais tarde, ao final da década de 1930,

com a Síria.

Como mencionado o grande jogo em referência ao acordo a que chegaram

Grã-Bretanha, França e Rússia, destruiu a antiga ordem na região.

Um vasto cenário político e econômico do expansionismo sugeriu que a

empreitada de europeização teria sido iniciada sem que se pudesse dar sustentação

ao que fora estabelecido como sistema político no Oriente Médio.

Outros traçados foram delineados pela Grã-Bretanha e França. Países como

Iraque e Jordânia foram concebidos pela Inglaterra, que interveio também nos

limites do Kuwait e Arábia Saudita, no governo egípcio como protetorado e na

defesa de um “lar nacional judeu” em território palestino.

A Síria e o Líbano sofreram intervenção francesa e a Rússia também teve

influência política naquela região, fechando acordos com a Turquia, Pérsia e

Afeganistão. Segundo alguns historiadores, sua delimitação territorial consta na

primeira Constituição da União Soviética.

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Os seguintes mapas, extraídos do site UOL Notícias Internacionais,

apresentam como foi mudada a conformação territorial e como se deu a queda dos

impérios no Oriente Médio após a Primeira Guerra Mundial (1914).

Figura 1 – Mapa da configuração territorial antes da Primeira Guerra Mundial.

Fonte:<http://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2014/07/26/primeira-guerra-fez-imperios-sumirem-confira-mapa-antes-e-depois-do-conflito.htm>.

Figura 2 – Mapa do rearranjo territorial após a Primeira Guerra Mundial.

Fonte: <http://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2014/07/26/primeira-guerra-fez-imperios-sumirem-confira-mapa-antes-e-depois-do-conflito.htm>.

Nesse contexto, há Estados que batalham pela própria existência e

autonomia em seu território, buscando uma identidade para seu povo. É o que

ocorre com a Palestina, que esteve sob domínio britânico da Primeira Guerra

Mundial até 1948.

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1.3 Movimento Sionista

A origem do sionismo remonta ao final do século XIX na Europa e tem em

Theodor Herzl, autor de O Estado judeu (1896), o precursor do movimento quando

em Basiléia (Suíça), no ano de 1897, promoveu um congresso que tratava da

questão sionista.

O fundamento sionista propunha a ocupação do território palestino e a

retirada da população local. No entanto, na maior parte das vezes em que o termo é

retomado, é no sentido de que o movimento sionista advoga unilateralmente os

interesses para a criação de um “lar nacional judaico”, em que palestinos os

acolhessem como imigrantes que foram perseguidos e, assim, pudessem reconstruir

suas vidas naquele território.

Dessa forma, tentou-se convencer a população árabe palestina de que

poderiam conviver pacificamente com a presença dos imigrantes judeus sionistas e

que estes não retirariam o que lhes pertencia.

Com o processo de emancipação na Europa, os judeus passaram a ter os

mesmos direitos civis dos povos das regiões em que viviam. Em face disso,

iniciaram-se questionamentos acerca da descontinuidade de toda uma cultura na

qual projetavam seu ideal identitário e era iminente ser preservada, dando ensejo à

concepção de um nacionalismo judeu. Dessa maneira, não se dispersariam por

várias regiões, mas constituiriam uma nação própria e trariam de volta à Terra Santa

todos os seus filhos.

Segundo esse pensamento, os judeus acreditavam que a Palestina lhes

pertencia, enquanto que os árabes somente a habitavam, logo, o slogan sionista

“Uma terra sem povo para um povo sem terra” evidenciava a não aceitação da

coexistência na região.

O movimento sionista era novo, mas suas raízes eram tão antigas quanto a Judéia, cuja independência foi minada e mais tarde esmagada por Roma antiga e cuja maioria dos habitantes foi levada para terras estrangeiras no século II d.C. Mesmo no exílio, os judeus se agarraram à sua religião, com leis e costumes próprios, que os separavam dos povos com quem viviam e se movimentavam. Status inferior, perseguições, massacres frequentes e expulsões repetidas de um país depois do outro reforçaram seu senso de identidade separada e de destino especial. No final _ de acordo com os ensinamentos de sua religião _, Deus os traria de volta a Sião. Durante a

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cerimônia de Páscoa, repetiam a reza ritual: “No ano que vem em Jerusalém!” (FROMKIN, 2008, p. 296).

Segundo dados de Gattaz (2003, p. 21), provenientes do sionismo político

surgiram várias vertentes, as quais associadas a outros campos, como o sionismo

trabalhista, o sionismo cultural e o sionismo espiritual. O trabalhista propunha uma

organização em classes, de modo que toda força de trabalho deveria ser formada

unicamente por judeus; já o cultural defendia a noção de Estado como forma de se

tornar uma sociedade com identidade própria e reconhecida; enquanto o espiritual

projetava-se seguindo a mesma linha de raciocínio do cultural, legitimar sua cultura,

sobretudo na questão religiosa com o judaísmo.

Hipoteticamente, o pensamento sionista estaria em desacordo com o discurso

antissemita, no entanto, vislumbrou-se na segregação racial existente um possível

“aliado” para impulsionar o retorno dos judeus à Palestina, para, em grande número,

constituir um Estado-nação.

Iniciou-se, então, aquele que é, até hoje, um dos maiores motivos de

discussão entre a autoridade palestina e israelense: a questão dos avanços dos

assentamentos judaicos em território palestino.

Com o advento da Declaração de Balfour, em 2 de novembro de 1917,

assinada pelo lorde Arthur James Balfour, Winston Churchill firmou-se como um dos

mais influentes na disseminação do pensamento sionista. Em 1921, exercia a função

de secretário colonial e intermediava os interesses de árabes e judeus para o

estabelecimento da comunidade judaica no território palestino.

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Figura 3.

O sintético documento possui relevância histórica, por meio do qual, segundo

analisa Gattaz (2003, p. 42-43), estavam dadas as condições políticas para o início

da grande migração judaica para a Terra Santa.

Para esse historiador, alguns detalhes da declaração chamam a atenção.

Uma das questões levantadas é que, ao se referir aos palestinos, maioria no local,

Balfour os chamou de comunidades não judaicas da Palestina. Outro enunciado que

muda o sentido, no momento, foi o uso de um lar nacional para o povo judeu, ao

invés de um lar nacional judeu, como se houvessem vários.

Pressionados por todos os lados, os ingleses decidiram encaminhar o problema às Nações Unidas em fevereiro de 1947, ameaçando abandonar o mandato antes do período estipulado. Progressivamente, todo o pessoal da administração inglesa começava a deixar a Palestina. Quinze meses depois, as últimas tropas inglesas abandonaram a Palestina, sob a mira dos fuzis de colonos sionistas (GATTAZ, 2004, p. 83).

Em 24 de junho de 1922, a Liga das Nações concedeu o mandato britânico na

Palestina, que permaneceu até 1948, logo após a fundação do Estado de Israel.

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1.4 Criação do Estado de Israel

A Resolução aplicada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 29 de

novembro de 1947, aprovava a divisão do território palestino para criação de um

Estado judeu.

Empiricamente, a divisão do território palestino tornou-se motivo de vários

conflitos sangrentos que perduram até a atualidade, dividindo opiniões entre os

chamados rejeicionistas – conceito que define de ambos os lados do eixo de tensão,

aqueles que não aceitam dois povos em um mesmo território, e até mesmo a não

aceitação do outro – e os acomodacionistas – que ensejam o direito dos dois povos

existirem em dois Estados.

Uma instabilidade geopolítica instalou-se com a não aceitação por parte de

outros países da Liga Árabe da Resolução diplomática da ONU.

Estados Unidos e União Soviética foram favoráveis à divisão da Palestina em

dois Estados, motivando a Primeira Guerra Árabe-Israelense (1948-1949).

Imediatamente após a desocupação das forças inglesas e da fundação de

Israel, países como o Iraque, Egito, Síria e Líbano uniram-se para invadir o novo

país.

Para Gattaz (2003, p. 104-105) o plano de partilha da ONU atendeu às

intenções sionistas, mas não como conquista do reconhecimento de Estado judeu, e

sim como respaldo para um avanço maior sobre o território palestino.

Para se compreender a aceitação sionista do plano de partilha aprovado pela ONU, é necessário desvincular, o discurso externo das organizações sionistas, das discussões que eram travadas internamente. Enquanto o discurso oficial destacava a vocação democrática do povo judeu e daqueles que o ajudavam na humanitária campanha da criação de seu Estado. [...] Para os sionistas, a partilha era vista como um compromisso provisório, até que fossem dadas as condições para a realização total de suas aspirações. O Estado proposto pela ONU, assim, era o meio, e não o fim, do projeto colonialista [...] (GATTAZ, 2003, p. 104-105).

O avanço dos judeus ocasionou a expulsão de milhares de palestinos de seu

território, o qual foi ocupado por Israel, aumentado consideravelmente a porção que

lhe coube, segundo a Resolução da ONU.

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Israel mostrou-se forte com seu exército e táticas de ocupação em diversos

conflitos, como a Guerra de Suez (1956), a Guerra dos Seis Dias (1967), a Guerra

do Yom Kippur (1973), a invasão do Líbano (1982), a Intifada (1987-1993), até os

dias de hoje.

Todas essas designações possuem no âmago da questão o expansionismo

territorial.

1.5 Nacionalismo Árabe

Acerca do nacionalismo árabe, trata-se de uma noção que se perpetuou ao

longo da história do Oriente Médio, norteada pela intenção de unidade religiosa e

linguística, visando à legitimação de uma hegemonia árabe. Algo que não se

consolidou quando diversos países, entre os quais o Egito, a Síria e o Iraque,

iniciaram movimentos de liderança, motivados pela ambição da soberania política

regional.

Com a entrada do Irã, sobrevém uma proposição impetrada pelo

fundamentalista Khomeini, quem afirmava que a unidade deveria ser nos termos

religiosos dominantes muçulmanos, já que o mesmo não é um país árabe.

Certos aspectos estão intrinsecamente associados e se confundem quando

em relação à questão Israel-Palestina e a questão árabe-israelense. Como as

denominações sugerem, uma é mais específica nos envolvidos no eixo de tensão,

enquanto a outra é mais abrangente e se refere a vários estados árabes e suas

relações com Israel. A razão que nos leva à frágil conclusão de se tratar do mesmo

assunto é que o movimento sionista está no embrião da questão árabe-israelense.

Nesse ponto, do qual surgiram todos os conflitos citados, havia outras

motivações para as violentas irrupções com outros árabes.

Noções como o nacionalismo fundamentado no pan-arabismo, este liderado

pelo governo egípcio Nasser, estavam no foco de tensão na Guerra de Suez.

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Nos primeiros meses de 1967 [...]. Em maio, espalhou-se o rumor que Israel estava concentrando suas forças armadas na fronteira síria – suspeita-se que essa informação tenha sido fornecida ao Egito pela União Soviética, que acreditava que os Estados Unidos queriam derrubar o Baa’th na Síria e isolar Nasser. Em resposta a concentração de tropas israelenses, em 14 de maio formou-se um comando unificado entre Egito, Síria e Jordânia visando a condução da guerra.

Em 05 de junho [...] o novo primeiro-ministro israelense Moshe Dayan ordenou um ataque surpresa [...] seis dias depois, a guerra havia terminado – daí tornar-se conhecida como Guerra dos Seis Dias. As forças israelenses ocupavam toda a Cisjordânia (incluindo Jerusalém Oriental), a Faixa de Gaza, a Península do Sinai e as Colinas de Golã. Pela terceira vez, em menos de 20 anos, Israel havia derrotado os exércitos árabes (GATTAZ, 2003, p. 141-142).

Nesse contexto, em que Egito e Israel estavam envolvidos, deu-se o acordo

diplomático de Camp David (1979).

Tal acordo foi assinado em Washington (Estados Unidos) e a situação era

conveniente para o Egito que, à época, não defendia mais a causa árabe.

Segundo o que foi ajustado entre as partes, o Egito receberia de volta o Sinai.

O ato político desagradou outros países árabes e os impulsionou a levar adiante

seus projetos pela liderança regional.

1.6 Religião Islâmica

Doutrina religiosa fundada por Maomé, que nasceu por volta de 570 depois de

Cristo e ficou órfão cedo, passando a viver no deserto com beduínos. A experiência

no deserto lhe possibilitou a observação das necessidades de variadas ordens dos

homens daquela região.

Antes da volta de Maomé à Meca, a cidade crescia sem que houvesse um

sistema que a organizasse, do ponto de vista político e social.

Nesse contexto sócio-histórico, Maomé tornou-se guia de caravanas e se

casou aos 25 anos de idade com Khadija, viúva e com muitas posses.

Durante os retiros espirituais que frequentemente fazia no deserto, teve a

visão de um anjo chamado Gabriel e que lhe teria dito ser o profeta de Alá.

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Em Meca, pregava a doutrina monoteísta em frente à Caaba. A Caaba era um

lugar onde os coraixitas se encontravam para adorar seus deuses e a Pedra Negra.3

Os coraixitas eram influentes comerciantes da região. Maomé era da família

haxemita e sem posses.

Maomé tinha seguidores e começou a incomodar, pois a orientação de

acreditar em um único Deus diminuiria a visitação à cidade de Meca e à Caaba,

interferindo na lucratividade do comércio local.

Sentindo-se ameaçado por suas ideias, Maomé foi para Yatreb, onde tinha

seguidores, mas também uma força opositora à conversão em uma nova forma de

fé. A ida à cidade é conhecida como Hégira e inicia o calendário mulçumano.

Muitas pessoas morreram nesse acontecimento. Assim, Maomé instituiu um

governo na cidade e a batizou de Medina.

Ademais, a conversão de forma pacífica não aconteceu e deu ensejo à

Guerra Santa em seu retorno à Meca.

Com o apoio de seus seguidores beduínos,essa guerra culminou com a

destruição dos ídolos de Caaba, restando somente a Pedra Negra.

Finalmente, em 630, o islamismo se impôs como forma de governo teocrático.

Dois anos após ser instituído como governo centralizador de todas as

decisões de ordem política e/ou religiosa, Maomé faleceu, não deixando um

sucessor, mas um legado para a história do Estado árabe.

Maomé foi, por assim dizer, seu próprio Constantino. Na sociedade religiosamente concebida que fundou e comandou em Medina, o Profeta e seus sucessores enfrentaram as realidades do Estado, e não muito depois, de um império vasto em expansão. Em nenhum momento eles criaram qualquer instituição correspondente, ou mesmo remotamente assemelhada à Igreja da cristandade. Frequentemente, porém, a tensão entre considerações religiosas e necessidades políticas era sentida, e as polêmicas e conflitos resultantes foram um tema recorrente na história muçulmana (LEWIS, 2002, p. 115).

3 Muitos acreditam se tratar de um pedaço de asteroide caído na Terra.

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Nesse contexto, a doutrina islâmica prega o monoteísmo centrado no profeta

Maomé.

Os ensinamentos deixados pelo profeta estão registrados no Corão, o livro

sagrado dos muçulmanos, escrito por Said.

Os preceitos do islamismo contidos no livro são reflexos das experiências

vivenciadas por Maomé no contato com cristãos e judeus, em um organizado

sincretismo religioso.

Alguns dos preceitos a serem seguidos pelos muçulmanos são: aceitar a Alá

como único Deus, fazer peregrinação à Meca, ao menos, uma vez ao ano, rezar

cinco vezes ao dia em direção à Meca e jejuar no Ramadã.

A Shari’a é a Lei Sagrada que rege os mulçumanos mesmo nos países que

possuem uma constituição. Difere-se do pensamento laico ocidental com formação

cristã, onde se intenciona uma separação entre Estado e religião.

No século XIX e no início do século XX os visitantes europeus achavam notável como a religião governava a vida quotidiana no Oriente Médio, pois a religião não desempenhava esse papel na Europa havia séculos.

Europeus acorriam ao Oriente Médio, em grande parte, para ver o passado. Visitavam locais bíblicos, ou maravilhas escavadas do mundo antigo, ou observavam nômades que viviam como no tempo de Abraão (FROMKIN, 2008, p.41).

No século XIX surgiu o conceito de secularismo para designar a separação

entre Estado e religião. Segundo Lewis (2002), o termo era uma posição ideológica

que tinha por trás a doutrina de que as decisões de caráter humano, aquelas

relativas ao homem em sociedade, deveriam ser pautadas no racional, em

detrimento de questões de ordem religiosa.

O Oriente Médio moderno mostra que a religiosidade permanece como

condição basilar na cultura política de seu povo, haja vista a resistência da

Irmandade Muçulmana no campo sunita, dos xiitas do aiatolá Khomeini e da crença

saudita Wahhabi, motivos pelos quais a colonização europeia se deu de forma

diferenciada de outros lugares do mundo, resultando na terrificante situação em que

se encontra atualmente.

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CAPÍTULO 2 – A ARQUITETÔNICA DO ATO ESTÉTICO

A presente dissertação fundamenta-se nos pressupostos teóricos de Mikhail

M. Bakhtin (1895-1975) e de seu Círculo. Considera-se a observância do caráter

dialógico da obra bakhtiniana em relação aos aspectos teóricos nos quais os

conceitos apresentam uma unidade de pensamento. Desse modo, sob a perspectiva

da análise dialógica do discurso, definem-se os procedimentos metodológicos e

pretende-se refletir, observando-se as reflexões teóricas realizadas, para análise dos

enunciados e, principalmente, no que tange aos preceitos de ato estético e

arquitetônica.

Têm-se como eixo norteador os textos Arte e responsabilidade (1919) e Para

uma filosofia do ato (1920-1924). Parte-se desses escritos bakhtinianos, os quais

direcionam a outros estudos dos membros do Círculo, por meio da progressão das

noções apresentadas.

Em princípio, encontra-se na primazia desses textos uma postura teórica do

filósofo, cujo projeto compreendia sua atenção mais voltada ao agir humano, à

relação do eu com o outro e aos atos da vida, do que especificamente à linguagem.

Além do interesse na possível interpenetração da vida humana e da arte

estética por meio do ato responsável, nos anos subsequentes a 1920 Bakhtin

mostrava sua oposição ao formalismo russo e problematizava a arte no âmbito

literário com a conjectura do conhecimento científico que não considerava o sujeito.

Em Para uma filosofia do ato, Bakhtin inicia sua reflexão versando sobre a

estética e perpassa pela precedente proposta defendida em Arte e responsabilidade,

procurando mostrar que não há uma ruptura entre a arte e a vida.

De acordo com a proposição, essa cisão é particularmente disseminada pelas

teorizações que têm como foco principal o objeto estético. Assim, o pós-ato, como

algo que possa se descrever e contemplar, não compreende o todo arquitetônico do

ato em si.

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Na visão do objeto, o cientificismo focado no material alcança o processo de

criação, no sentido de que a técnica da atividade estética o insere em um

determinado conhecimento objetivo e o legitima como parte de um movimento, de

uma tendência, de uma época. São questões pertinentes à sociedade de uma forma

generalizada, mas não dão conta de reconhecer o Ser e a realização real do ato

histórico.

Em O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária

(1924), discute-se a estética geral e sua significância na arte.

Segundo a concepção, qualquer Ciência que se proponha estudar a arte deve

considerar o conceito de estética, não de modo intuitivo – para que não incorra em

um subjetivismo ingênuo –, mas por meio de um sistema filosófico e estético para

estar de acordo com o domínio da cultura.

Pode-se articular que na contemplação de um objeto estético, a apreensão do

sentido se dá de modo subjetivo e coletivo, é intuitiva e interpretativa, para abranger

a inteireza do Ser-evento no ato.

Sob esse prisma, a intuição estética inter-relaciona o mundo do sensível com

o mundo inteligível, pois para atribuir sentido à obra é ativada a cognição teórica do

receptor de acordo com as suas práticas de relações dialógicas.

Os preceitos do filósofo russo ponderam a impenetrabilidade entre o mundo

da cultura e o mundo da vida. Assim, no mundo da vida, no qual se vivencia as

experiências, realiza-se as atividades nas mais diversas esferas e adquire-se os

valores éticos, atuando ativamente na sociedade que permite a realização do ato

pelo Ser responsável.

Cada ato é único e irrepetível, embora mantenha traços generalizantes que

propiciam o seu reconhecimento no âmbito social.

A responsabilidade por um ato advém da imposição da própria existência de

um não álibi ao sujeito que é participativo e consciente sem qualquer associação

transcendental.

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Na dinâmica das relações dialógicas, nenhum enunciado é inteiramente novo,

ocorre um movimento contínuo de retomada de enunciados anteriores em uma

postura responsiva ativa do sujeito.

Aspecto relevante da obra bakhtiniana e que reforça a sua coerência

encontra-se nos estudos ulteriores com a proposição de conceitos que, na sua

essência, resguarda a mesma noção dos dualismos unicidade e repetitividade,

assim como o generalizante e o singular. Como em significação e tema em que a

significação traz a informação que está sedimentada no social, porém, é na sua

realização enquanto tema que se torna evento único, o qual engendrado com todos

os elementos contextuais significativos e cronotópicos que o caracterizam como tal.

O conhecimento objetivado em vários campos tende a considerar os atos

concretos de nossa atividade no caráter universal em detrimento do que é singular

do Ser. Ainda que o racionalismo apresente um interesse genuíno, buscando

entender o sujeito por meio de uma obra, ou nessa buscar uma explicação

autobiográfica da presença de elementos da vida do autor-criador, será infrutífero

para o cerne da questão colocada por Bakhtin, a saber: se o homem está na arte ou

vice-versa.

Segundo a concepção defendida do ato responsável, não basta instituir um

sentido ao objeto estético pautado na junção de elementos marcados no tempo e no

espaço, em um todo mecânico, pois esses estariam organizados para a

interpretação de um sentido que pode trazer à tona os valores axiológicos do sujeito,

mas não traz o momento do ato vivido.

O universo das artes na contemporaneidade é muito vasto e é preciso

considerar que da época em que Bakhtin fez suas reflexões até a atualidade novas

possibilidades de manifestações artísticas se impuseram em um mundo que

apresenta uma dinamicidade dialógica, no qual se dá a metamorfose dos gêneros e

a evolução das técnicas e dos materiais acompanhando as necessidades do agir do

sujeito nas esferas da atividade humana.

Baseado no escopo da construção arquitetônica do enunciado concreto e das

relações socioideológicas do sujeito, o corpus de estudo desta dissertação será

analisado enquanto objeto estético. Consideram-se as possibilidades e coerções

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impostas pelo gênero no qual se realizam, tal qual a postura volitivo-emocional do

autor-criador frente a outros pontos de vista significativos nos campos da cultura e

da arte. Há um movimento no ato artístico que é ressaltado por Bakhtin (1990, p.

30), ao afirmar que

[...] o ato artístico: também ele não vive nem se movimenta no vazio, mas na atmosfera valorizante, tensa daquilo que é definido reciprocamente. A obra de arte enquanto coisa é tranquila e inexpressivamente delimitada no espaço e no tempo, é separada de todos os outros elementos: uma estátua ou um quadro afastam fisicamente todo o restante do espaço que ocupam;[...] a obra é viva e significante do ponto de vista cognitivo, social, político, econômico e religioso num mundo vivo e significante.

De acordo com a noção de arquitetônica,“[...] é uma existência estética

singular que cresce nos limites da obra graças à superação de sua determinação

extra-estética e material-objetal” (BAKHTIN, 1924, p. 51), concebida em Arte e

responsabilidade (1919),ao tratar da unidade interna de sentido, um todo harmônico

que se dá na inter-relação dos elementos envolvidos no processo, os quais não

podem estar vinculados somente pelo elemento espaço-temporal externo.

Nesse sentido, para apreensão arquitetônica de um ato estético, não

podemos desmembrar a obra de arte em seus elementos constituintes. A forma

composicional com os recursos técnicos empregados na realização da obra deve

estar intimamente ligada ao seu conteúdo, o juízo presente nos valores éticos e

cognitivos e a ação humana.

2.1 Criação da Personagem

É importante, para este estudo, compreender que a análise da arquitetônica

do corpus exige que se considere todos os elementos do ato criativo, o qual

necessariamente deverá passar pela orientação bakhtiniana da construção de uma

personagem.

Sobre isso, em Estética da criação verbal (2011), no capítulo O autor e a

personagem, Bakhtin analisa a criação das personagens na ficção de Dostoiévski,

Púchkin, entre outros, considerando o alcance do relacionamento entre criador e

criatura e a condição de individuação da personagem decorrente do ato criativo.

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O texto versa acerca de um todo da personagem, a construção de uma

arquitetônica que engloba a sua forma composicional e o seu conteúdo valorativo

diante dos princípios éticos.

Segundo o raciocínio aplicado à “[...] luta do artista por uma imagem definida

da personagem é, em um grau considerável, uma luta dele consigo mesmo”

(BAKHTIN, 2011, p. 4-5). Dessa maneira, a personagem vivencia uma realidade que

pertence a si e não ao autor-criador, o qual tem como função ser a instância criadora

por meio da qual a personagem se realiza, tomando corpo e ganhando vida própria.

Nesse processo de construção da personagem, isento de imediatismos, a

tentativa de concebê-la segundo a postura volitivo-emocional do artista vai se

esvanecendo à medida que seus gestos idiossincráticos vão lhe conferindo uma

identidade no universo da obra da qual faz parte.

A visão estética do autor-criador tem na personagem um todo acabado de

algo que vivenciou enquanto sujeito situado participante e consciente. A postura

responsiva ativa de tal autor permite que em sua obra a personagem também

possua uma resposta, como elemento vivo e não estático, seus atos são acentuados

pela especificidade de sua personalidade que, como na vida, sua complexidade

interior não deverá ser caracterizada em uma espécie de maniqueísmo como boa ou

má. Interessa-nos seus atos diante de pontos de vista reais receptivos e avaliativos

fundamentalmente dialógicos.

Segundo a proposição aferida, não há no processo de responsividade na

construção da personagem, seja da mesma para com o receptor, ou do artista no

ato criativo, um cunho em demasiado psicológico. Isto se dá somente em nível da

obra como objeto estético para contemplação, pois não cabe ao domínio da estética.

O objeto estético é um todo enformado de concepção de ideia que traz em si

uma postura volitiva-emocional da personagem, que não é uma transferência em

nível psicológico do autor para a personagem, mas sim uma relação postural de

exterioridade do artista no ato criativo, permitindo a independência identitária da

criatura. Por esse motivo, quando o autor comenta a sua obra de arte, pode-se

considerar a tecnicidade da realização no objeto, entretanto, o criador articula uma

significação a partir das impressões que esse objeto estético age sobre aquele que o

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concebeu, uma espécie de receptáculo de suas vivências e não mais o ato

efetivamente vivenciado na obra pela personagem.

Discutindo tal questão, Faraco (2011, p. 22) registra a seguinte afirmação:

É também a partir desse pivô axiológico-estético que se dará forma composicional ao conteúdo assim enformado (Bakhtin afirma, em seu artigo The problem of the content, the material, and the form (1990, p.270), que a forma arquitetônica – a forma do conteúdo – é determinante da forma composicional); e é também a partir dele que se fará a apropriação do material que serve de aparato técnico para concretizar o todo da forma artística – a linguagem verbal, no caso da literatura.

Conjectura-se o nível de envolvimento do pensamento ético do autor na

influência da construção de uma personagem representante de sua postura

avaliativa e axiológica, de acordo com os seus princípios ideológicos norteadores.

Assim, a identificação em relação aos valores sociais, segundo sua perspectiva

responsiva em face às questões de sua contemporaneidade enquanto sujeito

situado, implicaria em uma linha tênue entre a estética e o simples ativismo.

O ato estético é uma ação de um autor-criador que assume a sua

responsabilidade ou culpa no momento concreto de sua realização, imprimindo no

objeto estético, produto do ato, o seu estilo por meio de um gênero não selecionado

aleatoriamente e que permite o alcance de sua intenção. Sabemos que na

concepção de toda obra tem-se em mente o efeito que se quer instituir no receptor,

este que é participativo, por isso também elemento constitutivo da mesma.

A construção de uma personagem colabora para o todo de sentido de uma

obra de arte, é mais um elemento na concepção do objeto, porém de grande

relevância, pois sua caracterização permite intuir, no sentido contemplativo, qual a

intenção do autor.

Aspectos da personagem em seus traços de personalidade que se

contrapõem ou não aos outros elementos constituintes do objeto estético. Se esses

elementos apoiam para enaltecê-la ou ridicularizá-la, possibilitam questões

pertinentes à compreensão da obra em si e do ato arquitetado como um todo.

Considerando que o objeto de nosso estudo possui o elemento visual na sua

forma composicional, tentaremos transpor os meandros da construção de uma

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personagem dos domínios da literatura em função de uma edificação arquitetônica

dessa personagem para o domínio chargístico.

Parece-nos relevante a conformação da personagem que na literatura ficaria

a cargo da imaginação do leitor e neste corpus se configura em uma representação

visual, portanto, não descritiva e que certamente age sobre o receptor de forma

diferenciada. Tal personagem possui vida própria, é ativa na obra, mas a

apresentação de certa aparência, primordialmente, confere-lhe uma imagem pré-

concebida por parte do receptor.

2.2Excedente de Visão Constitutiva da Obra

A propósito do ato criativo na construção de uma personagem, considera-se

como se dá nas relações humanas o olhar exotópico de um sujeito sobre o outro que

o enxerga como um todo acabado e possibilita a expressão artística.

No capítulo II de Estética da criação verbal (BAKHTIN, [2000?]), denominado

A forma espacial da personagem, o conceito de excedente de visão tem em cada

sujeito o portador de uma visão única, uma singularidade em relação aos outros

exteriores, pessoas e ambientes incorporados para um todo arquitetônico.

Compreendemos a posição de um sujeito em relação ao outro em uma

determinada situação e a possibilidade de acesso a dados circunstanciais de sua

vivência inacessíveis ao próprio indivíduo contemplado. O sujeito que observa o

indivíduo situado fora dele tem diante de si um horizonte concreto para dotá-lo de

sentido.

O excedente de visão de um sujeito em relação a outro, do seu lugar em um

contexto único e insubstituível, propicia a percepção de detalhes significativos no

agir do outro, as reações, emoções e manifestações fisionômicas que o próprio não

possui ciência.

Mutuamente os sujeitos se desvendam inseridos em uma dada situação e

enquadrados em uma paisagem real, ou seja, que é viva, ativa e irrepetível. Assim

como todos os objetos presentes, a ação dos fenômenos naturais, como o vento a

mudar algo de lugar, a chuva e sua intensidade, se o brilho do Sol reflete no sujeito,

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se há variação da cor dos seus olhos com a iluminação, entre outros, contribuem

para que se constitua a própria imagem do outro, a qual evidentemente é diferente

da percepção que possui de si.

Nessa troca não há reciprocidade no sentido face a face. Ocorre uma

visualização “do” e “para” o sujeito como mais um entre todos os outros. Ao mesmo

tempo em que o indivíduo é único, insubstituível do lugar que ocupa na dinâmica das

relações humanas, é mais um rosto capaz de ser cooptado no ato contemplativo.

Conforme Bakhtin (2011, p. 23), “[...] as ações de contemplação que

decorrem do excedente de visão externa e interna do outro indivíduo, também são

ações puramente estéticas”. Assim, para a realização do ato estético, o indivíduo

deve entrar em empatia com o alvo da contemplação, vivenciar as experiências do

outro como se fossem suas e retornar ao seu lugar, não trazendo a realidade que foi

vivenciada para si, mas completando aquele horizonte a partir de uma perspectiva

artística.

Qualquer dada situação em que o indivíduo se conecte a outro a partir de seu

excedente de visão, buscando articular uma ação para intervir em algum

acontecimento e mudar os prognósticos, resulta em ativismo e em ato ético.

Quando o indivíduo toma a dor do outro para si, não mantém o

distanciamento necessário para criar. É a partir do que se apreendeu da vivência do

outro que o artista pode vir a completá-lo por meio do ato estético.

Exercendo a compenetração, o indivíduo se coloca vivenciando tal situação

como se fosse o outro e deverá sentir todos os tons volitivo-emocionais advindos da

experiência e aceitar esse horizonte concreto para que, no momento em que

regressar ao seu lugar, consiga completá-lo com os elementos significativos que

somente a sua posição, enquanto contemplador, teve acesso.

Todas as reações do sujeito para o contemplador, no momento da

compenetração, representam uma apresentação plástico-pictural que não é

absorvida pelo próprio observado. Um olhar extraposto detecta as nuances das

reações emocionais.

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O modo como o indivíduo compenetrado sente e reage aos acontecimentos

da vida são autossensações não fidedignas por sofrer influência de sua visão

axiológica dos fatos.

Dessa maneira, somente outro indivíduo do seu ponto de vista exotópico é

capaz de ter a percepção do horizonte concreto com todos os elementos

transgredientes imbricados na questão. Esse mergulho no viver do outro e o

submergir para a própria vida, posteriormente retornando a si permite que o

conteúdo observado possa se transpor para algo como conteúdo a ser enformado e

acabado por via artística.

De A imagem externa extraímos a seguinte citação de Bakhtin (2011, p. 27), a

qual bem resume o ato criativo:

[...] o que diferencia o mundo da criação artística do mundo do sonho e da realidade da vida: todas as personagens estão igualmente expressas em um plano plástico-pictural de visão, ao passo que na vida a personagem central – o eu – não está externamente expressa e dispensa imagem. Revestir de carne externa essa personagem central da vida e do sonho centrado na vida é tarefa do artista.

Essas reflexões sobre o excedente de visão para a realização do ato estético

se aplicam na criação da personagem pelo autor-criador. A ação artística visa um

todo harmônico, mas quando a obra analisada traz em sua composição uma

personagem notadamente como elemento integrador de todos que a constituem,

deve-se considerar quais foram as motivações decorrentes de sua consciência

ideológica individual para concebê-la.

Nesse sentido, o princípio de excedente de visão como o distanciamento do

indivíduo em relação ao outro, o processo de compenetração e vivência do

acontecimento e o retorno desse criador a si, já de posse do conteúdo apreendido

como um todo acabado e a sua realização na experiência estética, é condição

necessária para o autor-criador arquitetar uma personagem.

O autor-criador possui uma função estético-formal imanente e desenvolvida

no ato criativo. Enquanto sujeito situado, é atravessado por uma pluralidade de

vozes sociais que determinam sua posição valorativa e axiológica, das quais

necessariamente deve se distanciar para conceber o material artístico.

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O ato estético como atitude responsiva do sujeito dialógico reflete e refrata

uma voz social, um modo de ver e se posicionar axiologicamente frente aos

acontecimentos que emergem do meio no qual está inserido e o definem

ideologicamente.

Na concepção bakhtiniana, a atividade estética compreende um processo

interacional entre o objeto decorrente do ato criativo e a recepção estética,

denominado, segundo a tradução consultada, de vivenciamento empático. Tal noção

se distancia das teorizações de cunho psicológico e que visam compreender a

empatia em sua origem.

Em O corpo exterior – item 6, do capítulo II, de Estética da criação verbal –,

Bakhtin ([2000?]) aponta sua crítica em relação aos fundamentos da estética

expressiva, posição que vem ao encontro das colocações anteriores acerca da

recepção estética de uma personagem na obra e a sua relação com outros

elementos que a constituem.

Compreende-se que a recepção estética apreende o objeto como um todo

harmônico, mas cada personagem parece exigir uma empatia. Nesse caso,

particularizar um vivenciamento empático com uma personagem em específico

poderia comprometer o todo artístico. Sob essa ótica, a colocação aponta para um

refúgio no autor, em busca da obra em sua plenitude e questiona-se o

vivenciamento do autor com o de suas personagens.

Bakhtin aponta que o ilogismo da estética expressiva está no fato de não

ilustrar a obra como um todo ao desmembrá-la em seus elementos composicionais e

desvinculá-la de um autor.

Para o estudioso, de acordo com os seus princípios norteadores dialógicos

nos quais o sentido dos discursos se constrói nas múltiplas relações entre sujeitos e

no embate do plurilinguismo social, o todo artístico é arquitetado ativamente tanto

pelo autor quanto pelo receptor-espectador, e enfatiza que, em relação às

personagens, “[...] é indispensável vivenciar empaticamente, só que aí ainda não se

trata de um elemento propriamente estético: só o acabamento é esse elemento”

(BAKHTIN, 2011, p. 63, grifo nosso).

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Nesse sentido, a noção arquitetônica de um todo da personagem deve

considerar a inter-relação existente entre a mesma e o seu autor. Quando se

observa a concepção de uma personagem, faz-se necessário reconhecer que a

mesma é uma criação de um indivíduo com uma visão socioideológica que, no seu

ato criativo, efetua sua função imanente de refratar uma dada realidade e a compõe

em linguagem estética.

Bakhtin pondera acerca da criação de uma personagem não acontecer de um

autor trabalhar desde o início somente com elementos puramente estéticos, pois a

mesma ficaria destituída de vivacidade, portanto, é a realidade extraestética que

primeiramente promove o acabamento estético.

Nessa relação, o autor confere à personagem um determinado caráter que a

sustentará na obra e na sua relação com os outros elementos contextuais do

horizonte da qual.

À medida que no processo de criação a personagem vai se delineando dentro

de um determinado perfil caracterológico, há uma tentativa de desprendimento de tal

personagem do controle autoral ao mostrar-se independente em seus valores éticos.

O movimento, encarado pelo autor como ativismo da personagem, revela as

nuances pelas quais se estabelece essa relação, onde o primeiro impõe sua visão

artística.

De acordo com a noção bakhtiniana, a construção do caráter de uma

personagem corresponde a duas escolhas, respectivamente: a clássica e a

romântica. Sinteticamente, a primeira estaria designada a seguir um destino

previamente determinado, no qual a sua atuação desempenharia um percurso em

que se reconheceria o cumprimento dos objetivos que amparam a sua existência.

No caráter romântico, a personagem apresenta-se imbuída de valores éticos

e de sua consciência axiológica. Tal autonomia é trabalhada artisticamente pelo

autor dentro de uma relação que requer certa habilidade para lidar com as

divergências que emergem das apreciações ético-cognitivas que, por sua vez,

surgem de ambos os lados.

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Nessa relação personagem-autor, o caráter da personagem é um fator que

predispõe a atuação do autor no seu ato criativo a apresentar um determinado nível

de interação. Segundo a noção, se a personagem possui um perfil conclusivo,

enquadra-se em um tipo que é pictural.

No excedente de visão do autor, na criação da personagem está implicado

um grau de intervenção de seu elemento cognitivo, considerado em face de suas

peculiaridades que o designa dentro de duas concepções avaliativas, a primeira

como generalização intuitiva e a segunda como dependência intuitivo-funcional.

Essas avaliações decorrem do distanciamento do autor segundo as

especificidades da personagem. Enquanto tipo, a posição exotópica revela-se maior

e insere-se na generalização intuitiva devido seu caráter definitivo, que não exige

grandes ingerências, por não haver um embate de posições axiológicas. Ao mesmo

tempo, em uma dependência intuitivo-funcional, compreendendo a personagem

como parte de um ambiente que a sintetiza, onde está inserida, origina-se e se

completa.

O ato de criação artística é um dos muitos que o sujeito desempenha ao

longo da vida, pois viver é uma realização de atos constantes. Cada agir humano de

pensar, sentir, interagir e criar são sequências de atos éticos.

Nos valores estéticos, aqueles em que se realizam as diversas criações

artísticas, não há uma transferência da consciência individual do sujeito para o ato.

A sua determinação não é fator motivacional para o ato, no momento da criação o

sujeito em sua consciência pensa em ponderações relacionadas a questões que

estão mais exteriores a si e menos voltadas a um pensamento em si próprio.

Para Bakhtin (2011, p. 175, grifo nosso) “[...] em todas as formas estéticas, a

força organizadora é a categoria axiológica de outro, é a relação com o outro

enriquecida pelo excedente axiológico da visão para o acabamento transgrediente”.

A consciência individual criadora existe e possibilita justificar as suas

habilidades artísticas, no entanto, essa é somente um reflexo das suas vivências e

das suas práticas de interação social nas várias esferas do agir humano, não

determinante para o ato em si.

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Para a concepção do ato criativo, essa vivência que o constitui como sujeito

não é algo que se apresenta como motivação para o acontecimento do ato; o que se

dá é uma relação do autor com o próprio objeto que vem a ser, com as significações

valorativas antedadas pelo objeto que se pretende realizar.

Para Bakhtin (2011, p. 180) “[...] só o objeto e o sentido se contrapõem ao

ato”, assim, o objeto é resultado de um ato consumado e inserido em um contexto

em que se deve considerar o que está por vir e não em algo preexistente.Tal

percepção nos leva a refletir sobre o processo, pois desta forma, conceber-se-á uma

noção mais assertiva do ato e do pós-ato quando nos detivermos no objeto para

estudo.

Em Ato/atividade e evento, Sobral (2012b, p. 28) explana que o ato e o

processo em que se realiza estão inter-relacionados, mas são distintos.

Segundo esse apontamento, haveria uma tendência que se encontra em

algumas propostas filosóficas em dar maior relevância ao conteúdo do ato e menor

ao processo.

Sobre o pensamento bakhtiniano em relação ao conceito, Sobral (2012b, p.

30, grifo nosso) afirma que

[...] a união desses dois aspectos torna possível descrever a arquitetônica do ato, sua totalidade, significativa, em vez de tomar uma ou outra parte pelo todo. Isso se evidencia precisamente em sua insistência no ato em seu processo de realizar-se e não tomado post-factum como mero conteúdo.

No texto Ético e estético, Sobral (2012a) comenta que é por meio do ato que

a potência de noção aristotélica se concretiza. Assim, o objeto estético é

compreendido como produto do ato, e este, por sua vez, decorrência da potência.

Em relação ao processo, afirma estar intrinsecamente ligadas as formas

arquitetônica e composicional, de modo que enquanto a primeira engendra a

concepção da ideia, a segunda é o modo como aquela empiricamente se realiza.

A forma arquitetônica une todos os elementos da obra que se pretende como

conteúdo estético em um determinado gênero para que a forma composicional

possa efetivar o processo de textualização.

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Consubstanciar o arranjo do procedimento estético inclui considerar, como

consta em O conteúdo, a forma, o material, a interdependência desses elementos

que nomeiam o capítulo para atender à finalidade artística.

Nessa percepção, o artista intenciona alcançar um conteúdo e para isso

necessitará enformá-lo por meio de um material, dando vida à ideia pré-concebida e

que estará vinculada a uma forma que atenda a tal especificidade configurativa.

Nesse sentido, a chamada lógica imanente da criação compreende a atuação

do artista em sua habilidade com um material desprovido de qualquer função

artística, portanto, é a consciência criadora que concede ao mesmo um olhar

estético que atenda ao desígnio artístico.

2.3 Gêneros Discursivos

Na perspectiva bakhtiniana os gêneros do discurso estão associados ao uso

da linguagem nas diversas esferas de atividade humana.

A linguagem entendida como material linguístico em uso é um enunciado

discursivo que está de acordo com as especificidades dos grupos sociais.

Dessa maneira, os gêneros são considerados relativamente estáveis, pois

conservam seus traços distintivos ao mesmo tempo em que acompanham as

transformações sociais e a necessidade de atendê-las.

Os gêneros do discurso compreendem três elementos: conteúdo temático,

estilo e construção composicional intrinsecamente associada em cada enunciado –

oral ou escrito – produzido pelo sujeito.

A vasta heterogeneidade dos gêneros vislumbra a dinâmica das relações

sociais em suas diversas formas de manifestação, seja no cotidiano do qual

resgatamos os gêneros primários, ou nas mais complexas apresentações de

enunciados, os quais designados gêneros secundários. Nesse sentido, os gêneros

primários estão inseridos nos secundários, pois a partir de um se tem o outro em um

enunciado mais elaborado.

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Assim, para Bakhtin (2011, p. 265) “[...] cada enunciado é um elo na corrente

complexamente organizada de outros enunciados”.

Gêneros do discurso são formas típicas de enunciado que trazem em seu

cerne traços generalizantes que os enquadram em um determinado modo de

comunicação discursiva. Sempre no âmbito social, é a dinamicidade dos campos de

atuação do sujeito, quem qualifica o gênero a atender a uma intenção de interação.

A dualidade existente entre o singular e o generalizante evidencia a

individualidade do discurso, pois cada vez que este é produzido, encontra-se

inserido em um novo contexto sócio-histórico imbuído de um tom valorativo e de

marcas de subjetividade. No entanto, o discurso conserva traços generalizantes,

atravessado de múltiplas vozes que são retomadas de discursos proferidos

anteriormente, tornando-se compreensível na prática de interação social.

Além disso, a singularidade do enunciado permite reconhecer o estilo

notadamente traço-pessoal-distintivo. Alguns gêneros do discurso não permitem o

emprego de um estilo pessoal no uso da linguagem, esses possuem uma finalidade

social na qual não contempla a subjetividade, visando atender a uma função

específica de um campo.

Para Bakhtin, a comunicação discursiva, compreendida como enunciado vivo,

acontece entre sujeitos que apresentam postura responsiva ativa, confirmando-a,

refutando-a, completando-a etc.

Dessa maneira, “[...] os limites de cada enunciado concreto como unidade da

comunicação discursiva são definidos pela alternância dos sujeitos do discurso, ou

seja, pela alternância dos falantes” (BAKHTIN, 2011, p. 284).

A responsividade ativa do sujeito pode não acontecer imediatamente após a

compreensão do discurso, mas ocorrerá como efeito retardado manifestado por

meio de atos.

Tem-se uma apreensão do enunciado como unidade da comunicação

discursiva, que abarca a oração como unidade da língua, mas é na alternância das

falas entre sujeitos portadores de uma compreensão ativa, delimitando-a frente a

outros discursos que se afirmam como tal.

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Outra característica apontada por Bakhtin é a conclusividade do enunciado.

Intrinsecamente associada à alternância dos sujeitos nas falas, no que se refere à

dinâmica da interação quando um responde ao outro à medida que vai

compreendendo que o enunciado já está concluído e pode receber resposta.

Segundo essa concepção, o acabamento do enunciado é definido por três

fatores: exauribilidade do objeto e do sentido; projeto de discurso ou vontade do

falante; formas típicas composicionais e de gênero do acabamento.

De modo sucinto, a exauribilidade semântico-objetal indica o término de um

determinado tema, sempre considerando o gênero que está em curso. Na vontade

do falante, pontua-se a postura responsiva ativa do sujeito ao compreender a

intenção discursiva no todo do enunciado. No terceiro item, encontra-se o gênero do

discurso, onde o falante integra um grupo social com especificidades e, em razão

disso, seleciona o gênero que atenda à sua intenção discursiva.

Os gêneros discursivos são responsáveis por organizar a comunicação entre

os falantes. Cada indivíduo é, portanto, conhecedor de um número mínimo de

gêneros disponíveis, os quais poderão ser selecionados nas diversas situações do

cotidiano para sua enunciação. Acentuando a questão do gênero, Bakhtin (2011, p.

262) afirma que:

A riqueza e adversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo.

Para Bakhtin os gêneros do discurso apresentam peculiaridades constitutivas

que os diferem considerando a quem será dirigido o enunciado e em que contexto.

A escolha de um gênero é uma postura responsiva ativa do sujeito em função

da sua intenção discursiva. O emprego de um estilo individual garante o valor

expressivo da subjetividade e o tom valorativo-emocional. Dessa maneira, o material

linguístico como unidade da língua, acrescenta um sentido concreto alcançado por

meio do enunciado com a entonação expressiva.

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2.4 Charge

Entre as dimensões da linguagem humana que se constituem nas interações

dialógicas, a charge é meio de suscitar reflexão e provocar polêmica em torno de um

acontecimento social da atualidade com efeito cômico, dado que na charge há uma

representação satírica para mostrar uma posição crítica frente aos desdobramentos

dos assuntos comentados no momento. Em geral no campo da política, os temas

abordados podem, de alguma forma, interferir no cotidiano das pessoas e no

funcionamento do país.

A sátira apresentada no cartum se diferencia da charge por seu caráter e

conteúdo mais atemporal. Quadrinhos ou tirinhas são sequenciais e geralmente

apresentam regularidade na exposição dos valores sociais. Ainda, a caricatura é um

modo de representar uma pessoa, destacando de forma exagerada sua

característica física mais marcante. Pode estar representada em uma charge.

Usualmente, autoridades do mundo da política são representadas graficamente de

forma caricatural na charge.

A origem da charge remonta ao ano de 1831, quando Honoré-Victorien

Daumier (1808-1879) produziua charge intitulada Gargantua, em uma crítica ao rei

da França, Luís Felipe. Por tal manifestação, o autor ficou preso por alguns meses.

Figura 4.

Fonte: <http://charge.openbrasil.org/2014/05/honore-daumier.html>.

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No Brasil, a primeira charge foi produzida por Manoel de Araújo Porto-Alegre

e publicada no Jornal do Commércio, em 1837. Fazia uma crítica à nomeação de

Justiniano José da Costa como diretor do Correio Oficial. O material verbal da

charge trazia os seguintes dizeres: “Quem quer; Quem quer redigir o Correio Oficial!

Paga-se bem. Todos fogem?! Nunca se viu coisa igual”.

Figura 5.

Fonte: <http://educacao.uol.com.br/disciplinas/artes/caricatura-um-passeio-bem-humorado-pela-historia-do-brasil.htm>.

Dicionarizada (HOUAISS, 2003), a palavra charge está definida como: s.f.

desenho humorístico sobre evento geralmente atual.

Provém do francês charger, com o significado de carregar, exagerar na

caracterização visando o burlesco, espécie de sátira teatral.

Para Flores (2002, p. 11) o estudo da charge possui relevância por ser um

meio pelo qual temos representado o imaginário coletivo:

O discurso da charge dirige-se a sujeitos socialmente situados, ou seja, a sujeitos já inscritos na ideologia, pois só na medida em que o são tornam-se receptores capazes de decodificar as referências ativadas e cooperar na construção do sentido das mesmas.

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Seguindo a perspectiva bakhtiniana, a decodificação a que Flores (2002)

alude pode ser entendida como a capacidade do sujeito reconhecer os signos

ideológicos refratantes do meio social em que está inserido.

Assim, a compreensão da linguagem chargística em uma leitura profícua,

exige, antes de tudo, uma responsividade ativa e uma postura axiológica, as quais

se dão por meio da empatia do receptor-leitor com a representação gráfica.

Essa compreensão da dimensão do enunciado associada ao fator empático

determinará, de certa forma, o grau humorístico da charge. À medida que há

empatia, ratifica-se o discurso sob sua valoração ética e moral, assim, a intenção de

riso objetivada pelo autor é alcançada.

Inversamente, se não houver reciprocidade de pensamento ideológico, ou de

questões de ordem religiosa, éticas e/ou morais, o grau humorístico não se institui.

Portanto, tanto o autor da charge quanto o leitor são elementos constituintes do

sentido de um enunciado a depender do ponto de vista de ambos, o que gera certo

inacabamento da obra, pois sempre será possível uma nova leitura no

entrecruzamento de vozes sociais a reafirmar ou refutar o discurso produzido.

Presente essencialmente na esfera jornalística, o texto verbo-visual institui um

diálogo com as notícias do veículo em que circula e com as vozes sociais que o

reafirmam ou o refutam.

A diagramação desse tipo de texto-enunciado no jornal estará

arquitetonicamente organizada em uma inter-relação com outros gêneros que o

integram, entre os quais: editorial, publicitário, notícia, artigo, carta do leitor, crônica,

entre outros.

De modo geral, a charge é disposta no canto superior direito do editorial, em

concordância com a temática abordada e com o viés ideológico que norteia a

publicação.

Assim, considera-se também um perfil pré-estabelecido de leitor, como aquele

que possui pontos de vista em acordo com a linha editorial do jornal, pois

acompanha os desdobramentos dos acontecimentos sociais por meio desse veículo

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de comunicação e estaria apto a alcançar o sentido empregado nas charges a partir

do seu conhecimento prévio.

Acerca de texto/discurso, nas palavras de Brait (2012c, p. 19):

O termo “texto” não corresponde de maneira nenhuma à essência do conjunto do todo do enunciado. Assim, se um determinado texto, um editorial, por exemplo, for recortado do jornal em que apareceu, e se for analisado, interpretado, sem relação com os demais textos que compunham o jornal naquele dia, ou seja, as matérias do dia e/ou anteriores cujas temáticas ajudam a entender esse texto não poderá ser considerado bakhtinianamente, isto é, como parte do todo do enunciado concreto, completo.

Um texto puramente verbal pode apresentar um tom irônico e humorístico. No

entanto, a hibridização do material linguístico e visual, os quais engendrados em um

plano de expressão chargística, evidenciado pelo caráter semiótico que é

respaldado pela unidade cultural, mostra-se mais producente para o intento cômico,

principalmente no editorial, servindo de contraponto com o modo de dizer mais

objetivo da linguagem jornalística, ao mesmo tempo que a complementa.

Assim, além da capa, o jornal apresenta cadernos como: cotidiano, veículos,

imóveis, carreira, entretenimento, revista etc. Em todas as partes que o integram há

algum tipo de mensagem visual, desde aquelas que ilustram as matérias, passando

pelos anúncios publicitários.

Nesse sentido, o discurso chargístico tem em comum com os demais o

cumprimento de uma determinada função, afinal, enquanto o anúncio oferta um

produto para um público-alvo, a charge se aproxima da ilustração ao acompanhar o

discurso ao redor.

Dentro dessa noção de função, atentemos para a charge como parte das

artes aplicadas.

Segundo Dondis (2000, p. 9), as tendências vigentes correspondem ao

momento sócio-histórico em que as artes visuais foram produzidas para incluí-las em

uma espécie de eixo organizador que separa as belas artes das artes aplicadas,

onde se enquadraria o desenho.

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2.4.1 Charge: Gênero Discursivo

Traços denotadores de estilo pessoal se concretizam em uma forma

composicional na qual as semelhanças – aspectos generalizantes – e diferenças –

aspectos singulares – a definem como pertencente a um determinado gênero

discursivo.

Distinguir gêneros compostos por desenhos humorísticos em suas

especificidades exige percepção visual apurada e se mostra um desafio mesmo para

profissionais da área, haja vista a possível e recorrente miscelânea nesse tipo de

texto verbo-visual.

Todo híbrido estilístico intencional é, em certa medida, dialogizado. Isto significa que as linguagens, que nele se cruzam, estão relacionadas umas com as outras, como réplicas de um diálogo; trata-se de uma luta entre linguagens e entre estilos de linguagens (BAKHTIN, 1990, p. 390).

A asserção bakhtiniana acerca do hibridismo se refere à paródia como meio

de retomar e dar novo sentido ao discurso de outrem, permitindo o embate não

apenas de vozes sociais, mas também de estilos, do ponto de vista linguístico.

Seguindo esse raciocínio, a charge, como gênero híbrido, traz em sua forma

composicional o elemento verbal e visual, muitas vezes em conjunto com a

caricatura. Esse engendramento dos elementos constituintes do enunciado

compreende três requisitos: tema, forma composicional e estilo.

No projeto enunciativo o estilo é o elemento constituinte do gênero que pode

revelar marcas de individualidade do enunciador como, por exemplo, as escolhas

lexicais.

Nem todo gênero admite traços de expressividade individual, alguns

apresentam maior objetividade e, em geral, atendem a funções sociais específicas,

como os documentos oficiais.

Assim, gêneros discursivos são considerados relativamente estáveis, pois

atendem às necessidades de comunicação nas diversas esferas de atividade

humana em constante modificação.

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Em um gênero híbrido como a charge, o estilo pode estar marcado pelo

elemento visual. Quando vemos uma charge, logo a reconhecemos enquanto

gênero, porém, cada chargista aplicando uma técnica no ato de criação poderá

desenvolver uma expressão pessoal que o distinguirá de outros autores.

Na linguagem visual, aspectos como traços do desenho, exageros,

distorções, uso das cores e das formas, aspectos aliados a uma posição valorativa

ante os acontecimentos do mundo real de uma posição criadora exotópica devem

ser considerados.

A forma composicional é o emprego na materialidade de certa técnica e

procedimentos que atendam à concepção arquitetônica da criação.

Ao abordar o problema dos gêneros, Medviédev (2010) indaga: “O que seria a

unidade temática da obra?”

Opõe-se ao pensamento formalista, o qual defende a unidade temática como

a combinação de elementos linguísticos, cada qual com seu significado que, ao se

combinarem entre si, resultaria em uma manifestação artística.

Considerando que versava sobre os estudos literários, esse autor aponta que

o tema inclui a materialidade linguística, mas não se restringe a essa, “[...] o tema

transcende a língua”.

O conteúdo temático orienta-se no todo do enunciado, estabelecendo

relações com os acontecimentos da vida real no tempo e no espaço.

Os eventos da vida contidos no gênero da comunicação compreendem uma

dupla orientação de realidade. Assim, a obra está direcionada a determinado local

de realização, considerando empiricamente as circunstâncias envolvidas e o perfil

do receptor. Da mesma forma, está direcionada ao mundo da vida, à medida que, ao

se realizar em uma possível condição, entra em contato com vários aspectos da

vivência dos sujeitos que se inter-relacionam e visões diversas de mundo.

O gênero expõe traços da realidade, porém, não a abarca em sua

completude. Associado a uma esfera de circulação, reflete a realidade dentro de

princípios coercitivos, delimitando-se pelo alcance que tem dos acontecimentos.

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Em uma obra de arte essa realidade contemplada no gênero é ressignificada,

pois o gênero se realiza no cotidiano, nas conversas informais, ou nas atividades de

criação com efeito estético.

Dentro dessa noção temos o que Bakhtin distingue entre gêneros primários e

secundários, onde os primeiros se realizam nas atividades cotidianas, enquanto os

segundos são mais complexos e elaborados como, por exemplo, os gêneros

literários. Frise-se que os gêneros secundários compreendem os primários,

reelaborando-os para atender à outra expectativa.

Nessas formulações o sujeito participativo possui papel central, pois é a partir

do domínio de técnicas aprendidas, de um conhecimento compartilhado, que

possibilita a habilidade de executar algo singular.

Ademais, a partir desses, outros poderão surgir, um novo olhar criador a

conferir-lhe um sentido distinto. No entanto, cada ato criativo será singular ao se

realizar em diferente realidade cronotópica.

Essa abordagem dialógica e sociológica empregada por Bakhtin e seu Círculo

defende o gênero como algo inerente à prática das atividades humanas.

A diversidade de gêneros existentes acompanha a dinâmica das relações

sociais, pois nos comunicamos por meio de gêneros, orais ou escritos, entre outros

advindos da necessidade de novos meios de interação humana. Nosso dizer estará

sempre orientado por certo modo de realização no momento da interação.

Na noção dialógica há a participação do eu e do outro e, certamente, dos

outros, a fim de não incorrer em uma visão subjetivista. Quando dois falantes

estabelecem comunicação, necessariamente há nos discursos pronunciados o eco

de dizeres diversos, de ideologias contrastantes que imperam no meio circundante.

Considera-se que, de acordo com a orientação teórica abordada, os dizeres

dos sujeitos funcionam em turnos de fala, segundo princípios da organização

normativa da língua, compreendidos pelas unidades dessa mesma língua.

Bakhtin distingue as unidades da língua da unidade real de comunicação

discursiva, o enunciado.

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Essa distinção é importante, pois na concepção bakhtiniana, “[...] os limites de

cada enunciado concreto como unidade da comunicação discursiva são definidos

pela alternância dos sujeitos dos discursos, ou seja, pela alternância dos falantes”

(grifo nosso).

No momento da interação, a alternância dos sujeitos revela sua

especificidade, diferenciando-a da noção de turno de fala. Desse modo, é o sujeito

participativo e ativo que empreende, na sua fala, um tom valorativo e sua postura

axiológica em um diálogo com a pluralidade de vozes existentes na sociedade.

Qualquer enunciado não é algo inteiramente novo, mas integra uma rede

dialógica de dizeres, onde cada um dos participantes consegue reconhecer não

somente a língua, mas toda uma gama de significações sedimentadas no social.

Ainda, na dinâmica discursiva a comunicação mediada por gêneros só é

possível porque todo membro de uma mesma comunidade, ou esfera de atividade

humana é capaz de reconhecer o gênero discursivo produzido, uma vez que

aprendemos de maneira natural, junto com a aquisição da língua, os seus modos de

realização.

Segundo a concepção bakhtiniana, a alternância dos sujeitos do discurso

emoldura e confere certo acabamento ao enunciado, permitindo ao participante do

diálogo o direito de resposta, proporcionando a troca por meio da conclusibilidade

específica do enunciado.

Essa conclusibilidade expõe certos aspectos no momento da fala, que serão

reconhecidos pelo outro devido à sua postura compreensiva ativa, permitindo a

resposta.

Em qualquer prática de relação dialógica ocorre um entrecruzamento de

vozes sociais e dimensões axiológicas que perpassam o discurso. Todo ponto de

vista explicitado é, de alguma forma, uma resposta a algum outro discurso dito

anteriormente e suscitará uma resposta posterior, implicada na – e pela – dinâmica

discursiva.

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Nessa percepção, a dominação de um código linguístico pelos falantes é

também a capacidade de reconhecer o caráter semiótico da linguagem e suas

significações.

A contraposição de Bakhtin aos estudos literários impetrados pelos

formalistas estava situada no fato de não considerar o gênero como fator

preponderante para a criação poética.

Essa apreciação mais filosófica da linguagem está presente em Para uma

filosofia do ato (1920-1924) e apreende a inter-relação entre os atos humanos

realizados na vida e pelos quais somos responsáveis, assim como ao mundo das

artes.

Por conseguinte, o que Bakhtin chamou de objeto estético não pode ser

compreendido somente por um estudo dos elementos na construção,

desconsiderando o pensamento participativo.

Como expôs em Arte e responsabilidade (grifo nosso), texto de 1919 e parte

de Estética da criação verbal (2011), “[...] chama-se mecânico ao todo se alguns de

seus elementos estão unificados apenas no espaço e no tempo por uma relação

externa e não penetra a unidade interna de sentido”.

Nisso implica a compreensão de acabamento, pois se todo gênero apresenta

um conteúdo temático, este não se esgota, pois sempre haverá um ponto de vista

diferente, uma nova possibilidade de entendimento do discurso proferido.

Para Medviédev (2012, p. 194) “[...] fora da arte, todo acabamento, todo final,

é convencional e superficial e, antes de tudo, determinados por causas externas, e

não pelo acabamento interno e exaurido do próprio objeto”.

2.4.2 Comicidade

A concepção de comicidade foi objeto de estudo do formalista russo Vladimir

Propp (1992) no período sócio-histórico em que a conjuntura política na União

Soviética – ou seja, Rússia Pós-Revolução – proporcionava aos intelectuais material

político, econômico e cultural propício para suscitar reflexões e o debate de ideias.

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O teórico partiu de estudos literários de clássicos como Gógol, entre outros,

para sustentar a relevância de uma teoria sobre o cômico e suas nuances.

Segundo Propp (1992), havia necessidade de compreensão das

especificidades do cômico, visto até então como propunha Aristóteles, de que se

trataria do contrário ao trágico. Ou, ainda, o cômico visto com uma carga negativa,

relativo a algo sem valor ou como “cômico baixo”, vulgar, em contraposição ao belo

e ao sublime.

A expressão de uma visão dicotômica entre o cômicofino e o cômico

grosseiro, definições fragilmente dadas pelo grau que o absurdo é adotado na obra

para inseri-la em uma ou em outra vertente.

O humor mais prosaico e menos refinado está presente nos textos de Gógol,

entre outros clássicos da literatura. Ponderava a resistência e não aceitação desse

tipo de comicidade considerada exterior no âmbito da estética.

No estudo de Propp (1992) o cômico e o ridículo são equivalentes, estão no

mesmo nível para, a partir disso, defender que existem formas diferentes de

provocar o riso.

Atentou-se ao fato de que para entender como a comicidade faz rir e

apresenta diversidade de risos nas relações interpessoais e estéticas, é necessária

a junção dos elementos que compõem o quadro cômico e não os analisar

separadamente.

Nesse sentido, o objeto ridículo e o sujeito são partes do processo que

provoca o riso, no entanto, não se trata de algo inerente à condição humana, dado

que está associado a questões culturais e históricas determinantes para o efeito da

comicidade.

Além da questão de ordem, tempo e espaço na história que molda o humor

do sujeito, existem nuances de humor entre homens pertencentes a nacionalidades

diferentes. E, ainda, no mesmo país ocorrem variações de grau de humor de acordo

com a classe social; além do caráter individual do sujeito, mais ou menos propenso

ao riso.

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Em sua visão sobre a estética, discussão vigente naquele momento na Rússia, e

dada sua orientação formalista, Propp ponderava a problemática de a comicidade

estar vinculada à forma e ao conteúdo dos objetos. Assim, cita o filósofo

Schopenhauer para refutar sobre sua asseveração de que a forma não

correspondente à imagem que temos daquela, o que provocaria o riso.

Salientamos que Bakhtin, nos seus textos iniciais entre 1919 e 1920,

contrapunha-se ao formalismo que privilegiava o material em detrimento do sujeito.

Entretanto, para Propp era necessário o estudo do material concreto para alcançar o

efeito cômico.

Já para Bakhtin e o Círculo o estudo da materialidade se mostrava infrutífero

para alcançar a plenitude de sentido de uma obra, pois não poderia ir além do

reconhecimento de uma técnica aplicada.

Assim, o conteúdo do objeto é o que lhe confere sentido, processo que se dá

desde o momento da criação, quando o autor-criador arquiteta os elementos em

uma determinada forma composicional a partir de sua postura axiológica diante dos

eventos da vida. Nesse processo interacional, o sujeito participativo é perpassado

pelos índices sociais de valor, em uma dimensão axiológica que possui partes

constituintes e atuantes de um enunciado concreto.

Do ponto de vista sociológico, vejamos a consideração de Pável Medviédev

(2012, p. 156) acerca dos formalistas e sua percepção da criação:

Não importa qual conceito dos formalistas tomemos – “desautomatização”, “estranhamento”, “deformação” etc.–, torna-se claro que ele trata apenas de uma mudança externa, de uma transferência local, enquanto tudo que tem a ver com o conteúdo e a qualidade é pressuposto como já existente. Por conta dessa particularidade fundamental, o pensamento formalista é profundamente a-histórico. Para ele, o crescimento qualitativo da existência e do mundo ideológico, que constitui a história, é inatingível.

Nessa abordagem de cunho social-histórico-ideológico a relação dos sujeitos

com o objeto se dá semioticamente, por meio de signos, cuja significação estará

sedimentada por uma determinada sociedade, grupo ou esfera de atividade

permeada por valores.

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Outro membro do Círculo, Volochínov (2012, p.33), em seu Marxismo e

Filosofia da Linguagem, ao abordar a natureza sociológica dos signos, reflete

também sobre a materialidade:

Cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da realidade, mas também um fragmento material dessa realidade. Todo fenômeno que funciona como signo ideológico tem uma encarnação material [...]. Nesse sentido, a realidade do signo é totalmente e, portanto, passível de um estudo metodologicamente unitário e objetivo.

Assim como Propp, Bakhtin também realizou estudos sobre o cômico

considerando os textos de Gógol. Nesse aspecto, como ponderou, não colocou em

primeiro plano as influências de Rabelais em Gógol, dado que ambos tiveram suas

obras estudadas pelo teórico russo acerca do cômico e do riso carnavalesco.

Interessava a Bakhtin em Gógol sua profunda ligação com as festas

populares de sua terra e a menção dos acontecimentos subversivos presentes

nessas festividades e que evidenciavam as crenças e a sensação de

permissividade, compondo uma visão carnavalesca.

Gógol sentia profundamente o caráter universal da sua visão de mundo cômica e, ao mesmo tempo ele não podia encontrar um lugar adequado, nem um fundamento teórico e nem uma interpretação para este cômico nas condições da cultura “séria” do século XIX. Quando nas suas digressões explicava porque ria, ele, evidentemente, não estava se atrevendo a desvendar a natureza cômica a fundo, o seu caráter universal, popular e envolvente; frequentemente ele justificava o seu cômico por meio da moralidade limitada da época (BAKHTIN, 1990, p. 434).

As considerações de Bakhtin sobre o cômico tanto em Rabelais como em

Gógol partia da um viés popular e não oficial. Esteticamente nas obras dos autores

jaz uma verve de dessacralização do discurso moralizante das respectivas épocas.

O teórico se mostrava contrário ao pensamento dominante da crítica literária

que tentava impetrar uma visão clássica às obras em detrimento do reconhecimento

da presença de uma cultura popular e de resistência ao discurso hegemônico.

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CAPÍTULO 3 – ANÁLISE DIALÓGICA DO DISCURSO CHARGÍSTICO

O corpus da presente análise se realiza no gênero discursivo charge e sua

esfera de circulação e recepção ocorrem no meio digital, a internet.

Concebe-se refletir, nesse momento, sobre as fronteiras entre o verbal e o

visual nos enunciados que estabelecem relações dialógicas entre os campos da

política e das artes. E sobre atemática abordada por meio de um olhar estético que

compreende o evento contextualizado como um todo enformado.

Na dinâmica das relações dialógicas, apreende-se que a produção das

charges se deu muito incentivada pela interação existente entre o autor-criador e o

público receptor-leitor.

Em seus trabalhos, o chargista brasileiro Carlos Latuff desenvolve a temática

política, abordando nesse campo vários acontecimentos mundiais. Tornou-se

reconhecido principalmente por suas interpretações artísticas sobre a Primavera

Árabe.

O evento ocorrido no início de 2010 foi um movimento popular que deu

origem à derrocada de algumas ditaduras na região do Oriente Médio. Por meio das

redes sociais ocorreu a adesão dos jovens para lutar por algo mais próximo de uma

realidade democrática.

As charges foram recebidas pelos insurgentes autóctones, os quais

começaram a reproduzi-las nas manifestações. Ou seja, o público receptor começou

a interagir com o artista, de modo que este concebia sua visão artística sobre o fato,

ao passo que alguns leitores da região em conflito faziam a tradução para a língua

local.

Para este trabalho dissertativo, optou-se por selecionar charges desse

cartunista que versam acerca do conflito entre árabes e palestinos também na

região do Oriente Médio.

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A mesma dinâmica ocorreu com as charges com essa temática. Houve

reprodução de uma em um jornal local, ilustrando uma matéria; assim como foi

repetidamente pintada em muros e vista em outdoors.

Evidentemente, ocorreram outras respostas que não estavam alinhadas com

a mesma noção ideológica contida nas charges e o artista tornou-se persona non

grata, recebendo algumas intimidações, as quais respondeu com novas produções.

Optou-se por esse objeto analítico pelo mesmo apresentar esse histórico

dialógico e constituir-se relevante material para uma abordagem teórica sobre os

estudos da verbo-visualidade, assim como acerca da visão do autor-criador, em que

as circunstâncias de uma dada realidade servem de inspiração para o ato criativo.

Outra motivação para a seleção das charges foi que, até o momento da

definição do corpus, não tomamos conhecimento de uma produção de Latuff em que

esse concebesse uma personagem específica para abordar um tema, como o fez

com o conflito árabe-israelense.

Desse modo, a representatividade da personagem oferece material para

tratarmos da concepção de uma figura e a sua relevância no todo arquitetônico da

obra.

3.1Linguagem Visual

Segundo Dondis (2000), a motivação fundamental para uma criação visual é

atender a uma necessidade humana que se apresenta em diversos aspectos da

vida.

No universo das comunicações visuais, as manifestações podem estar

inseridas em um contexto mais imediato, o qual ligado a questões do cotidiano ou a

questões mais subjetivas, como a representação de um estado de espírito.

Para a autora, a mensagem visual com uma aplicação prática está

relacionada a preservar, registrar ou reproduzir algum acontecimento e, mesmo nas

criações de cunho artístico, haverá informação a ser dada.

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Assim, entende-se que a informação presente na obra artística poderá ser

captada ou não pelo receptor-apreciador, mas sempre estará presente

metalinguisticamente, ou sobre o universo valorativo nessa representado.

Compreende-se que na criação com intuito artístico subjaz uma

representação de natureza interior do ser humano, visando à manifestação da

complexidade das emoções vivenciadas pelo indivíduo, questões de cunho mais

existencialista, nas quais o sujeito impetra um diálogo consigo, em um embate entre

o racional ligado à sua realidade concreta e a não linearidade de seus anseios

sentimentais, logo, estéticos.

É possível um diálogo entre as colocações apresentadas por Dondis e a

teoria bakhtiniana no que se referem aos gêneros discursivos que também trazem à

baila os diálogos do plano cotidiano, os gêneros primários, para empreenderem a

criação de outros mais elaborados, os secundários no contexto social, cultural,

científico, etc.Segundo Bakhtin (2011, p. 261), em Os gêneros do discurso:

Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua, mas acima de tudo, por sua construção composicional.

Dessa maneira, entre os três elementos primordialmente apontados por

Bakhtin para a concepção de um gênero, destacamos o conteúdo temático e

adotamos para esse a mesma linha de raciocínio.

Assim, retoma-se o pensamento de Bakhtin em relação aos gêneros, com a

intenção de adaptá-lo para a influência do cotidiano nas produções artísticas.

Uma vez que o advindo do plano cotidiano se apresenta reelaborado,

desassocia-se de sua perspectiva matriz-basilar para se inserir em uma nova

realidade concreta, atribuindo-se novas significações.

Nesse sentido, o corpus analisado que se realiza no gênero charge, possui

como conteúdo temático o conflito árabe–israelense. Essa relação desarmoniosa

entre os territórios tornou-se um acontecimento do cotidiano, na medida em que a

situação se prolonga por anos e se acompanha o transcorrer dos fatos diariamente

por meio da imprensa.

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Para Dondis (2000) a manifestação visual do cotidiano está associada a

informar. Na concepção bakhtiniana, os gêneros simples, os do cotidiano, são

incorporados em formas mais complexas, secundárias, como em uma obra artística,

assim acrescenta-se, atende a uma finalidade estética que pode ser também

informativa.

O que indica isso é obviamente o caráter da obra que, ao mesmo tempo,

alcança a manifestação de uma forma artística por meio de uma forma

composicional anteriormente arquitetada e contém em si o diálogo com outras vozes

discursivas que a reafirmam ou a refutam na visão socioideológica nessa contida.

No corpus analisado, o autor partiu de um acontecimento social cotidiano para

vislumbrar uma atitude estética. Além dessa função principal, a artística, cumpre

outra secundária que é informar, como apontado por Dondis (1997), dado que por

meio de sua representação do assunto é possível intuir acerca dos desdobramentos

do conflito e a posição valorativa-axiológica do autor.

A informação de uma obra de arte pode estar mais implícita, o que exigirá

uma competência leitora maior por parte do apreciador ou apresentada de forma

mais clara e explícita.

A obra analisada no seu conjunto apresenta uma unidade de pensamento,

pois se trata de uma série cujas charges possuem caracterizações parecidas e

mesmo conteúdo temático, aspectos que se reafirmam.

Nessas charges evidencia-se o posicionamento do autor sobre o assunto,

mostrando-se partidário do pensamento que privilegia a causa palestina. Em razão

disso, afirma-se que a charge também cumpre o papel de informar ou, ao menos, de

suscitar o diálogo sobre o tema.

A informação nessa obra é explícita justamente por trazer à tona o tema do

conflito territorial no Oriente Médio, evento que faz parte do cotidiano político e

desperta discussões de interesse mundial e, ainda, por ser polêmico, trata-se de, em

relação aos diretamente envolvidos, dois pontos de vista de um mesmo problema.

Conforme Dondis (2000, p. 184), as motivações que levam a representações

visuais devem considerar “[...] a natureza de cada meio de comunicação, sua função

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ou níveis de função, sua adequação, a clientela a que se destina e, por último, sua

história e sua maneira de servir as necessidades”.

Tal qual comentado na contextualização do corpus, as charges de Carlos

Latuff são divulgadas pela internet, o que proporciona uma reposta mais rápida de

recepção por seus seguidores nos meios disponíveis, incluindo blog e redes sociais.

Além disso, o gênero charge se enquadra na adequação apontada por Dondis

(1997) na escolha da esfera de circulação do seu trabalho, atingindo um público

específico, ou seja, que se interessa tanto pela temática política quanto em

produções artísticas.

Algumas formas de arte não suscitam dúvidas quanto ao seu caráter estético,

no entanto, têm-se cada vez mais novas formas de manifestações artísticas e, de

certa forma, a necessidade de inseri-las em algum movimento artístico que as

justifiquem.

Em relação às charges analisadas, a intenção deste trabalho é desvinculá-las

de qualquer ativismo político ou de enquadrá-las essencialmente em atos éticos,

questão primordial levantada para dar início ao estudo.

Pondera-se tal aspecto em razão do conteúdo temático das charges envolver

uma questão social polêmica: ainda que o trabalho de Latuff se apresente com

notável destreza na técnica adotada enquanto forma composicional, o conteúdo

temático poderia gerar alguma dúvida. Dúvida essa sanada no exercício de

pesquisa, ao reconhecer em sua produção um olhar estético sobre a causa

palestina.

3.1.1 Charges: Esferas Discursivas

O sentido de um enunciado se institui no cruzamento dos discursos que

circulam socialmente; na dinâmica das práticas discursivas que o sustentam e no

embate de pontos de vista ideológicos.

Qualquer enunciado está respaldado por uma esfera discursiva na qual esse

se realiza. Tal esfera impõe aspectos coercitivos, cuja especificidade está

intrinsecamente associada à produção, circulação e recepção do discurso.

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Todos os sujeitos envolvidos na interação são membros ativos de uma esfera

discursiva. Tanto autor quanto leitor-receptor são, ao mesmo tempo, sujeitos de

seus tempos e sujeitos históricos. São perpassados pelas heranças dos discursos

anteriores e produzem história.

A experiência dialógica desses os constitui enquanto sujeitos, não como uma

esponja absorvendo tudo ao redor, mas como sujeitos atuantes, que recebem o

mundo pronto desde o nascimento. Uma realidade carregada de ideologias e

valorações que se fundirão com suas experiências de relações dialógicas, assim,

constituindo suas identidades, a saber, individual e social.

Reconhecendo o texto/enunciado e os discursos que o constroem, que nele circulam, que dele podem ser depreendidos, como unidade de sentidos, é possível afirmar que essa dimensão significativa está articulada por um projeto discursivo, um projeto de dizer. Esse projeto de dizer não é autônomo, livre, solto. Ele ocorre dentro de uma esfera ideológica, um campo ideológico, de acordo com coerções aí existentes em termos de condições de produção, circulação e recepção (BRAIT, 2014, p. 15)

As esferas acompanham a diversidade das atividades humanas. Ao tratar de

charge, apreendemos ser um gênero com suas especificidades, as quais regulam o

fazer da produção. No entanto, suas características abrem possibilidades para

ampliar horizontes, especialmente no que diz respeito às esferas de circulação e

recepção. Desse modo, a produção pode se distanciar dos veículos em que

normalmente circula e alcançar outros tipos de leitores.

É sabido que para cada esfera de circulação há, respectivamente, um tipo de

leitor, um público-alvo específico. Por exemplo, a charge veiculada em jornal atende

a um público leitor que busca o conteúdo daquele dia, ou seja, charge pautada nos

acontecimentos do cotidiano, enquanto a charge publicada em livro atende

especificamente ao leitor que tem um interesse especial pelo gênero e terá acesso a

conteúdos datados, mas que no livro, no conjunto enunciativo, tornam-se

atemporais.

Em seu artigo sobre Histórias em Quadrinhos (HQ), Andrade (2008, p. 66)

reflete sobre a questão do gênero:

[...] ao tratar de gêneros, estamos falando estritamente de textos materializados, encontrados no dia a dia. Esses textos possuem propriedades funcionais para atender ao contexto em que estão inseridos e possuem características sociocomunicativas que são definidas pelos

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conteúdos, estilo e composição característica, no momento da ação comunicativa realizada pelos interlocutores.

O contexto citado pelo autor nada mais é que as esferas onde o gênero

charge, enquanto enunciado concreto, circula.

Acerca do texto na perspectiva dialógica bakhtiniana, Brait (2012c, p. 10),

aponta que

[...] o conceito bakhtiniano de texto produzidos pelos trabalhos de Bakhtin/Voloshinov afasta-se de uma concepção que o colocaria como autônomo, passível de ser compreendido somente por seus elementos linguísticos, por exemplo, ou pelas partes que o integram, para inseri-lo numa perspectiva mais ampla, ligado ao enunciado concreto que o abriga, a discursos que o constituem, a autoria individual ou coletiva, a destinatários próximos, reais ou imaginados, as esferas de produção, circulação e recepção, interação.

Então, o texto está materializado no gênero charge, mas na dinâmica das

esferas comunicativas– o contexto – é um enunciado concreto, único e irrepetível.

As charges criadas por Latuff são veiculadas na esfera digital, em blog e

redes sociais. Dessa forma, a responsividade ativa tanto do autor quanto do leitor é

mais rápida. Com a interação na mídia digital, alcançando seu leitor-receptor de

forma quase imediata, o autor passa a ter maior conhecimento de seu público-alvo.

Considerando que o trabalho de Latuff é essencialmente de cunho político, o

discurso produzido é atravessado pela polêmica, provocando o posicionamento

axiológico de ambos os lados da interação.

As charges de Latuff começaram a ganhar visibilidade nas redes sociais,

motivadas por um evento cronotópico: a Primavera Árabe. Por meio de sua

produção, mostrava seu tom valorativo e postura axiológica acerca do tema. Assim,

seu discurso encontrou aceitação em outros discursos que o reafirmavam.

Houve uma interação na qual os jovens insurgentes solicitavam novas

produções ao chargista e ainda realizavam a tradução do português para o árabe e

as disseminavam nas redes sociais e nas manifestações.

A mesma dinâmica se deu com a charge Mother Palestine. Embora nas duas

situações ocorra um ativismo político, com essa charge, devido às características

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que a tornam diferente das outras, entendemo-la como ato ético que se tornou

também estético.

A dimensão verbo-visual enunciativa apreende a concepção de uma

personagem retratada com marcas precisas e que formam no conjunto da série uma

unidade de sentido, reafirmando o discurso introduzido por cada uma,

individualmente.

Essa caracterização é relevante para a questão das esferas comunicativas

devido à identificação que o público-receptor tem para com a personagem, não

somente do ponto de vista da circunstância em que estão envolvidos, mas além

disso, trata-se da representação de um sujeito social.

Como representação e obra de arte, Latuff possui a liberdade poética para

concebê-la segundo sua visão artística e de mundo. No entanto, é interessante

perceber que o autor direcionou seu olhar contemplativo para uma figura feminina,

emergida do seio social, pessoa comum e sem nome, e não como amiúde se dá em

outras charges, as quais focadas em figuras de autoridades.

Tal charge extrapolou os meios digitais e foi veiculada em um outdoor.

Segundo consta na página digital de Latuff, o painel teria sido exposto em

frente a um prédio ao Norte de Gaza.

Uma instituição em defesa de presos palestinos em Israel o assinava,

responsabilizando-se pelo ato.

Eis uma foto do local:

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Figura 6.

Na próxima figura, observa-se que o outdoor com a imagem da charge Mother

Palestine está posicionado ao lado de outro, este que traz o anúncio de um produto

alimentício ou de um restaurante.

Figura 7.

A reprodução da personagem Mother Palestine no outdoor se refere à

seguinte charge:

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Figura 8.

Nesta charge, a personagem aparece segurando a mão de alguém que está

preso sem que tenha acesso ao rosto da pessoa. A caracterização da porta remete

à bandeira do Estado de Israel, com as cores azul e branca e uma estrela ao meio.

Considerando-se que o outdoor é um veículo da esfera publicitária, meio de

anúncios de algum produto ou serviço para um cliente em potencial, neste caso, a

charge se desvincula, até certo ponto, da posição de um objeto estético, podendo

estar presente concomitantemente na esfera do ativismo político, assim como no

mundo das artes, predominando para o primeiro cenário em um ato ético.

Levando-se em consideração que o anúncio veiculado é de uma instituição

para a defesa de presos palestinos em Israel, o outdoor vende uma ideia, uma

posição valorativa frente a uma realidade concreta, logo, trata-se de ato ético.

A charge reproduzida no outdoor não está entre as que selecionamos como

corpus desta pesquisa, porém, como dissemos, as mesmas compõem uma série da

personagem Mother Palestine que, em seu conjunto, apresenta uma unidade de

sentido, reafirmando o discurso de cada charge individualmente.

A intenção, neste momento, é mostrar o alcance que o discurso produzido por

meio da força da personagem obteve, extrapolando a sua esfera de predominância.

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Nas figuras a seguir, a charge utilizada compõe nosso corpus.

Dessa vez, tal charge foi empregada como estampa de camiseta, produto

esse colocado à venda no site AliExpress, de origem chinesa.

Figura 9.

Figura 10.

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As duas charges analisadas na qualidade de objeto estético, na configuração

estampa de camiseta, deixam de ser ato fundamentalmente estético para

transfigurarem-se em ato ético. Dito de outra forma, quem as comprar, consumirá

uma ideia, posicionar-se-á axiologicamente frente a uma causa.

Por se tratar de vendas online, as esferas de circulação e recepção também

se dão no meio digital. No entanto, como todo enunciado produz seu sentido na

esfera discursiva, o público-receptor pode não ser necessariamente o mesmo.

Embora algum leitor de Latuff possa querer adquirir as camisetas, os anúncios

veiculados estão direcionados a um público consumidor, ou seja, intencionando a

venda de produtos. Assim, as camisetas estão circundadas por elementos de outra

esfera da comunicação, como a da moda.

Na Figura 11 a charge Mother Palestine está reproduzida em um muro na

Palestina:

Figura 11.

A materialidade linguística do enunciado está em árabe e em inglês. O uso do

idioma inglês garante o alcance a outras pessoas, não apenas às falantes da língua

árabe.

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Os dizeres denotam a descrença na situação atual: sem retorno, sem justiça e

sem paz.

Não se sabe quem é o autor da pintura no muro. Ademais, na fotografia o

homem encostado no mesmo muro, ao lado da charge, é o autor do desenho

original, Carlos Latuff.

Ainda que a reprodução da charge seja iniciativa do próprio Latuff, há algo de

significativo em transpor sua arte para o ambiente que o inspirou.

Desse modo, poderá provocar alguma reação valorativa em um público que

não é o das redes sociais, pois como afirma Bakhtin, é o conteúdo da obra que

desperta as emoções do público-espectador e não o material em que a obra é

realizada.

3.2 Mother Palestine: Primeira Charge

Figura 12.

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64

O enunciado concreto híbrido está organizado em um plano de expressão

onde os elementos verbo-visuais estão articulados com maior destaque para a

imagem do que para a escrita.

A concepção visual da charge mostra disposta à esquerda uma mulher idosa

com uma bengala. Com a mão direita, apoia-se na bengala e com a esquerda

levanta do chão uma grande construção.

Sua vestimenta é uma roupa típica feminina da região palestina, espécie de

vestido que cobre todo o corpo. Tal vestido é branco e na parte de cima, no peitoral,

traz três listras nas cores verde, branca e preta; ademais, centralizado um pouco

acima, há um triângulo invertido na cor vermelha. Na cabeça, a mulher usa um lenço

branco. Somente seu rosto e suas mãos ficam aparentes.

Do centro para a esquerda há um conjunto de prédios de cor cinza, dois

telhados vermelhos, uma espécie de construção com dois guindastes içados sobre

os quais.

Na ponta esquerda do prédio há uma bandeira hasteada, a qual possui três

listras, na sequência das cores azul, branca – esta como a listra mais larga – e azul,

além de uma estrela de seis pontas no meio da listra branca.

Na lateral da construção está escrito settlements em cor branca.

Embaixo dos prédios, em um fundo preto, há uma pomba branca esmagada

sob uma mancha de sangue; o animal traz no bico um galho verde.

Na parte superior esquerda da charge constam as palavras Mother Palestine

e uma bandeira com a mesma disposição de formas e cores presentes no vestido da

mulher.

Para completar, o solo é branco e irregular.

Esse projeto enunciativo denota a postura valorativa do autor como defensor

da causa palestina. Para chegarmos nessa avaliação, partimos também do

conhecimento de outros trabalhos de Carlos Latuff e de algumas entrevistas

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concedidas por esse artista. Tais registros mostram um ativista com interesse

especial pelos acontecimentos sociais de ordem política na região do Oriente Médio.

É característica de seu trabalho uma proximidade com o caricatural na

representação gráfica de figuras públicas. No entanto, para abordar o tema conflito

árabe-israelense, no desenho em questão, marcado pela presença das bandeiras

dos dois países, Latuff nomeia a charge como Mother Palestine e concebe uma

personagem fixa para uma série.

As charges da série Mother Palestine apresentam sempre a mesma temática

e a mesma personagem, de modo que cada charge se constitui em um enunciado

singular, porém, vistas no conjunto, um enunciado reafirma o dizer do outro.

Para alcançar o sentido e o efeito de sentido do enunciado, o leitor-receptor

da charge deve possuir um conhecimento prévio dos desdobramentos do conflito

pelo ponto de vista político, assim como da cultura do Oriente Médio.

Há nuances de cunho cultural e religioso entre os países que compõem a

região, aspectos fundamentalmente diferentes da cultura ocidentalizada.

Ao escolher a figura feminina para centrar seu discurso, o autor a extrai da

sociedade palestina e refrata um perfil social; além disso, destaca um dos perfis

humanos que mais sofrem com o conflito intermitente. Outrossim, estão presentes

as questões de gênero e do abismo existente entre os direitos concedidos aos

homens e às mulheres naquela sociedade.

Sendo o chargista cidadão brasileiro, a sua formação ideológica, moral e ética

está instituída por uma visão ocidental, mais liberal, fruto de uma sociedade com

características democráticas. Nesse sentido, a compreensão que o autor tem do

papel social da mulher é a de um estrangeiro que toma conhecimento dos fatos por

meio da mídia, ou pelo dizer do outro, ainda que eventualmente possa verificar a

situação in loco.

Do lugar de onde se observa o outro imbuído de valoração social, o autor

concebe uma personagem que contraria o que o senso comum entende como o

perfil da mulher palestina.

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Ainda que busque uma compreensão ativa, é difícil discernir o que sente a

mulher palestina. Podemos levantar a hipótese de que, dada a sua condição

autóctone, respeitar rígidas leis sociais impostas, de certa forma, é parte da

alteridade feminina integrada à sociedade regida pela religião.

Desse ponto de vista, avaliamos que a situação de guerra entre Palestina e

Israel, assim como a sensação de insegurança – de não possuir uma terra onde

viver –, é o que está no cerne da questão do enunciado.

A compenetração do sujeito na realidade do outro, o colocar-se no lugar do

outro e sentir seu sofrimento, mostra-se uma experiência capaz de provocar uma

reação ou uma responsividade ativa. De alguma forma, a experiência com o outro

exigirá uma resposta que aparecerá cedo ou tarde em seus atos.

Esse ato de responder a algo e se responsabilizar pode acontecer de diversas

formas, contudo, o que implicará é a postura axiológica do sujeito no ato ético.

O ato ético, de julgamento, de valoração, considerando a formação ideológica

e religiosa que norteia o sujeito, sempre estará presente nas suas ações. Toda

escolha ou decisão envolve a negação de outra e está pautada no ponto de vista

valorativo do sujeito frente às questões.

Quando, nessa posição valorativa, o sujeito responde por meio da atividade

estética, o que engendra através da experiência com o outro se realiza em uma

forma composicional, criando o objeto estético.

O conteúdo temático da charge, o sentido do enunciado, está centrado muito

mais nas relações dialógicas exteriores à obra e no processo exotópico da instância

criadora do que na materialidade em si.

Toda essa vivência permite ao autor-criador a constituição de uma

personagem partindo de um evento sócio-histórico, marcada cronotopicamente no

conflito entre árabes e israelenses, ou seja, parte da vida real para a ressignificar na

atividade estética.

Essa concepção de criação se diferencia de outras charges de Latuff, onde o

que há é uma representação gráfica caricatural de alguma conhecida autoridade

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política. Nesse tipo de trabalho a intenção é satirizar, colocando a figura política em

situações constrangedoras, de modo que para o leitor se torne facilmente inteligível

o político retratado na charge.

Quando de seu excedente de visão, o autor cria a personagem sem a

caracterizar fidedignamente. Na obra de arte a realidade nunca estará presente

como de fato é, ou o acontecimento tal qual ocorreu. Se existe criação, no ato em si

está implicado um jeito de interpretar o mundo.

Assim, não aparece na criação da personagem aqui analisada a intenção de

proximidade com a mulher real palestina, esta vista como subserviente, submissa,

sofredora e sem voz na sociedade.

A personagem Mother Palestineé caracterizada forte, tanto fisicamente

quanto na sua personalidade.

Nessa charge a personagem levanta uma faixa territorial inteira de

construções com apenas uma das mãos. Sua proporção corporal não corresponde à

de um ser humano. Sua grandeza corpórea lhe garante dimensão compatível com

as construções. Dimensões hiperbólicas revelam um aspecto carnavalesco da

criação.

Por meio da expressão facial da personagem é possível denotar seu tom

volitivo-emocional, uma vez que, diante da situação de guerra, mostra-se resiliente.

Essa percepção se confirma no conjunto das charges, onde sua expressão fica entre

demonstrar indignação e resiliência.

Poucas vezes é retratada com lágrimas, revelando tristeza diante da situação

retratada, mas nunca um choro de desespero que pudesse provocar no leitor a

sensação de pena. Ao invés disso, a forma como a personagem aparece nas

charges provoca reflexão sobre cada tema abordado.

Ainda que realizado em um gênero humorístico, o desenho não faz rir. Os

efeitos subversivos e transgressores da personagem são revelados nas atitudes

desafiadoras que vão de encontro às circunstâncias com as quais não concorda.

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Ademais, no enunciado estão contidas questões identitárias e relativas à

alteridade.

O autor não deu um nome para a personagem, pois esta representa qualquer

mulher palestina. Ao invés disso, Latuff denominou a charge como Mother Palestine.

Desse modo, apreendemos que acima da individualidade está a condição da mulher

no papel de mãe vivendo em circunstância adversa.

Na materialidade linguística a palavra “mãe” está carregada de valoração

social, denota aquela capaz de gerar outro ser e produzir seu sustento por um

período, no próprio corpo.

Outra questão pertinente é o nacionalismo presente nas vestes da

personagem.

O lenço palestino é um signo ideológico e está vinculado a um povo.

Além de usar uma roupa típica, a bandeira da Palestina está estampada no

vestido da personagem, na altura do peito.

Apreendemos que a população palestina tem suas raízes na história, possui

cultura e uma alteridade que os faz sentir pertencentes àquela terra.

Motivo de tanta disputa, possivelmente a extensão geográfica territorial é para

o povo palestino muito além de um pedaço de chão. Estão nesse meio ambiente os

valores e tudo aquilo que institui o palestino enquanto sujeito.

O conjunto de prédios que a personagem levanta enquanto observa a pomba

branca esmagada é uma referência à política do governo israelense em avançar

com as construções de assentamentos no território palestino, ação afirmada pela

bandeira de Israel hasteada na construção e pela palavra assentamento escrita na

lateral do aglomerado imobiliário.

Abaixo desses assentamentos, destaca-se a figura de uma pomba branca,

signo ideológico aceito socialmente como símbolo da paz. Nesse caso, a mensagem

da charge é que a paz não existe, pois a ave aparece sangrando, esmagada pelos

assentamentos.

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Uma metáfora em que a figura perecida da pomba representa o povo

palestino, justificada pelas cores que compõem a cena – branco da pomba,

vermelho do sangue e verde do ramo – serem as mesmas da bandeira palestina.

Assim, fica inferido que o avanço dos assentamentos israelenses na região palestina

motiva a violência.

Ademais, a presença da pomba branca remete mais diretamente ao discurso

religioso cristão. Dito de outra forma, há uma dessacralização do discurso religioso

na representação da pomba, remetendo ao texto bíblico da Arca de Noé.

No capítulo Gênesis, do Antigo Testamento, consta a passagem bíblica sobre

a Arca de Noé. A narrativa expõe que, enquanto aguardava o dilúvio cessar, Noé

soltara uma pomba para que a ave mensageira pudesse descobrir terra. Entretanto,

no texto religioso a ave não é descrita como branca, a posterior atribuição dessa cor

ao animal agregou-lhe a simbologia de pureza e paz.

Na segunda tentativa de Noé, a pomba teria retornado com um ramo de

oliveira no bico, o que seria indício de que a água estava abaixando e havia terra.

Assim, o ramo de oliveira trazido significava que a terra possuía alimento.

Outra simbologia religiosa cristã referente à pomba é a que o Espírito Santo

de Deus teria descido àTerra na ocasião do nascimento de Jesus Cristo.

Na Antiguidade, o ramo de oliveira simbolizava força, coragem e conquista.

Era o material usado para a confecção das coroas de folhas, prêmios aos atletas

vencedores das competições esportivas.

Consta também como elemento em algumas estórias da mitologia grega,

entre as quais o mito do Minotauro, a disputa entre Poseidon e Atena e em Hércules,

quem teria matado um leão com uma estaca feita de ramo de oliveira.

A representação de uma pomba branca com um ramo de oliveira no bico

também serviu de inspiração para o pintor Pablo Picasso.

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No ano de 1949, motivado pelo nascimento de sua filha Paloma – que em

espanhol significa pomba –, Picasso trabalhou na litografia A pomba. No mesmo

ano, a imagem foi utilizada para ilustrar o cartaz do Congresso pela paz em Paris.

Abaixo a litografia de Picasso:

Figura 13.

Picasso e outros artistas usaram suas obras como menções à paz ou à

guerra.

Na charge de Latuff, especificamente a referência à passagem bíblica de Noé

deixa inferir que o recomeço da humanidade deveria ser compartilhado em união e

igualdade; entretanto, a mesma novamente dividiu-se em nações e crenças, levando

o homem a guerrear com seu próximo.

No contexto árabe-israelense retratado, tratam-se de dois povos incapazes de

coabitar o mesmo território de forma pacífica.

Finalmente, no que tange à materialidade linguística em inglês, apreendemos

que é uma língua falada em todo o mundo atual, proporcionando o aumento do

número de leitores da charge em questão, visto que não está direcionada

especificamente ao público brasileiro e sua esfera de circulação é a internet.

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3.3 Uma Leitura da Segunda Charge

Figura 14.

Nesta charge, o discurso remete à conhecida imagem da representação de

Jesus Cristo no colo da Virgem Maria. Abaixo segue a referência a que o discurso

alude:

Figura 15.

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Trata-se da escultura Pietá, feita por Michelangelo entre 1498 e 1500.

Contemplar uma obra de relevância histórica e cultural como a Pietá nos

proporciona o reconhecimento do momento marcado cronotopicamente, assim como

a inserção da mesma em determinado movimento do mundo das artes.

Um movimento artístico pode ser entendido como reflexo dos acontecimentos

sociais de uma época e intenciona certa mudança de paradigma tanto no universo

das artes, como no pensamento dos sujeitos.

Um dos autores mais importantes do Renascimento, Michelangelo Buonarroti

(1475-1564) sofreu forte influência da Antiguidade Clássica e do humanismo. Além

de Pietá, em seu portfólio constam obras de grande relevância, como a escultura

Davi e a pintura do teto da Capela Sistina, entre outras.

A raiz histórica do Renascimento remonta aos séculos XII e XIII. Durante a

Idade Média a Igreja Católica era a única instituição com forte influência social,

detentora do saber após a queda do Império Romano, sua atuação não resguardava

os princípios basilares cristãos e voltava-se à aquisição de terras e riquezas.

A hierarquização dividia-se entre alto e baixo clero, sendo o primeiro

composto por membros advindos da nobreza e exercendo a função de abades e

bispos, e o segundo formado por membros oriundos de camadas menos favorecidas

edelegadas às funções de monges, padres, entre outros.

A Igreja procura, principalmente, satisfazer os seus próprios interesses sem se preocupar com as razões dos Estados bárbaros – como já não se preocupara com as do Estado romano. Acumula a custa de doações arrancadas aos reis e aos grandes, e até aos mais humildes, terras, rendimentos, isenções; e, num mundo em que o entesouramento só pode esterilizar cada vez mais, a vida econômica, aplica a produção a mais grave sangria. Os seus bispos, que pertencem quase sempre à aristocracia dos grandes proprietários, são todos poderosos nas suas cidades e nas suas circunscrições episcopais e procuram sê-lo também no reino (LE GOFF, 1995 p. 62).

Força motriz do feudalismo, a partir do século XI, a Igreja Católica viu-se

frente a um desequilíbrio populacional que não mais comportava a continuidade do

sistema como tal.

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Surgiu então a necessidade de expansão territorial, ocupações em nome de

Deus e as Cruzadas realizadas pela cristandade. Consequentemente, a abertura do

Mediterrâneo possibilitou o uso das vias marítimas, aumentando o comércio e uma

propensão a uma vida urbanística.

Se antes a sociedade organizava-se em torno do senhor feudal, com o

advento do crescimento populacional e uma mudança de mentalidade, visandoà

liberdade e à proximidade com o capitalismo, passava a ocorrer uma espécie de

renascimento no modo de se viver, agindo segundo pensamentos emancipatórios.

A propósito de um mercado consumidor em potencial, dava-se a valorização

das habilidades, da produção artesanal e o surgimento das oficinas onde o ofício era

passado pelo mestre ao aprendiz.

Após os séculos XIV e XV, os quais marcados pelo arrefecimento do

feudalismo e o crescimento do comércio, eventos concomitantes, como a Guerra

dos Cem Anos, a fome e a Peste Negra provocaram uma queda na curva

ascendente do capitalismo na Europa.

Segundo Le Goff (1995, p. 62), nesse período, a Igreja elegia para o papado

Gregório Magno (590-604). Diante do surto da Peste Negra que abalava Roma, suas

convicções eram de que os acontecimentos anteviam o fim do mundo; desse modo,

os cristãos deveriam precaver-se com penitências a salvaguardar para o outro

mundo que os aguardava. Superados esses desafios, o século seguinte foi marcado

por uma nova aceleração do crescimento populacional e da demanda de um

mercado consumidor, gerando uma crise de desenvolvimento na Europa.

A origem do Renascimento está marcada pelo enfraquecimento do sistema

feudal e o surgimento de uma nova mentalidade socioeconômica, muito mais

próxima do pensamento burguês-capitalista e se distanciando de uma formação

pautada nas imposições da aristocracia cristã.

O Renascimento foi, especialmente, progresso técnico; deu ao homem do Ocidente maior domínio sobre um mundo mais bem conhecido. Ensinou-lhe a atravessar oceanos, a fabricar ferro fundido, a servir-se das armas de fogo, a contar as horas com um motor, a imprimir, a utilizar dia a dia a letra de câmbio e o seguro marítimo. Ao mesmo tempo,o progresso espiritual paralelo ao progresso material, iniciou a libertação do indivíduo ao tirá-lo do

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seu anonimato medieval e começando a desembaraçá-lo das limitações coletivas (DELUMEAU, 1983, p. 23).

Essa renovação do pensar e agir humano a partir dos séculos XII e XIII deu

ensejo a uma postura do sujeito que vislumbrava uma nova ordem cultural, voltada à

valorização do individualismo e busca de referências na Antiguidade. Por meio de

um fazer com propriedade, procurava-se o seu reconhecimento individual.

As transformações sociais provocaram no homem um profundo despertar

intelectual, científico e cultural, os quais propiciados pelo humanismo. Na Itália, o

favorecimento à admiração das tradições da Antiguidade Clássica se deu devido à

manutenção dos monumentos, além disso, a cidade tornou-se um grande centro de

comercialização.

Devido à falta de um poder centralizador, com o papado enfraquecido e

exilado por volta dos anos 1377 e 1417, a sociedade viveu um despertar, ou

renascer para a sua força pessoal. Entretanto, a ambição de muitos buscou na arte

a própria imortalidade, surgindo o que conhecemos como mecenas, figura

importante no Renascimento.

As características do movimento renascentista manifestam uma oposição ao

teocentrismo imposto na Era medieval, dessa maneira, favorecendo o

antropocentrismo, o homem com ideais racionalistas e espírito humanista.

Com o racionalismo, atém-se ao conhecimento que pode ser explicado pelas

ciências em detrimento de suposições de ordem mística, favorecendo, assim, as

experimentações em vários campos do saber. Ademais, a negação de qualquer tipo

de criação que não estivesse de acordo com a realidade fez surgir o naturalismo.

Entre todos esses aspectos, um dos mais relevantes é o humanismo que

bebia na fonte greco-romana. Sua concepção antropocentrista orientava o

pensamento crítico do homem, porém, ainda com influência cristã dos autores

clássicos. Dessa maneira, buscava-se os escritos de teor filosófico, literário e

científico, visando trabalhar a tradução, a valorização das línguas clássicas e a

erudição.

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O individualismo naquele momento designava como ideal o reconhecimento

das potencialidades artísticas e científicas, a fama e o respeito dos outros homens,

algo que fizesse o indivíduo ser lembrado pela posteridade e o imortalizasse.

Do ponto de vista cultural renascentista, a concepção do movimento esteve

presente na arquitetura, na pintura e na escultura. Na arquitetura, as construções

buscavam o equilíbrio das proporções em contraponto às construções góticas,

norteando-se pelas construções romanas. Na pintura, assim como na escultura,

existia a busca de um estilo realista e a associação da beleza ao ideal cristão.

Michelangelo dominou com maestria os três campos – arquitetura, pintura e

escultura.

3.4 A Obra Pietá

Segundo as proposições de Delumeau (1983), o Renascimento foi um retorno

ao passado para avançar. Um movimento de volta à fonte das obras da Antiguidade

para, muitas vezes, superá-las. Assim, consideramos que Pietá é uma obra

exemplar desse período marcado pelo individualismo do escultor na superação de

seu ofício.

Pietá foi esculpida em mármore de carrara, entre 1498 e 1500, possuindo

quase dois metros de altura. A obra-prima do Renascimento está exposta na

Basílica de São Pedro, no Vaticano.

Foi uma encomenda do Cardeal Jean de Villiers, quem ambicionava a mais

bela obra de Roma executada por um autor vivo, ao jovem artista Michelangelo, à

época com 23 anos de idade.

Michelangelo trabalhou arduamente por dois anos, chegando à perfeição no

molde, na polidez e no acabamento da escultura.

O esmero com que talhou a obra, conferindo-lhe tamanha magnitude, causou

espanto a todos, principalmente pela jovialidade do artista, quem assegurou autoria

gravando seu nome na estátua.

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A obra retrata a imagem da Virgem Maria segurando Jesus Cristo em seus

braços, apoiando-o em seu colo. A face de Maria possui juventude e uma beleza

inigualável, sua expressão facial demonstra serenidade e resignação – e não

desespero – diante do sofrimento do filho.

A escultura apresenta perfeito equilíbrio entre as formas em formato de

pirâmide. Jesus está disposto de maneira que Maria consegue acomodá-lo em seu

colo e o acolher em seu braço, enfatizando a relação entre mãe e filho.

Em 21 de maio de 1972, Pietá sofreu um ataque causado pelo húngaro

Laszlo Toth, desferindo golpes de martelo sobre a escultura renascentista,

danificando-a.

Depois de muito conjecturar acerca de uma possível restauração,

historiadores de arte e o Vaticano optaram por um método em que a olho nu não

ficaria visível qualquer reparo realizado na obra. Discutia-se se deveria ou não haver

uma intervenção na criação de Michelangelo.

Atualmente, a escultura está exposta na Basílica de São Pedro, protegida por

vidro à prova de balas.

3.5 A Estética Bakhtiniana na Inter-Relação das Obras

Para Bakhtin uma obra de arte não pode ser entendida do ponto de vista

factual, de ordem meramente psicológica ou histórica. A fim de se atribuir sentido e

valoração ao ato criativo e ao objeto estético decorrente do ato, este

necessariamente deve estar inserido na unidade de cultura.

Os ideais do pensador russo acerca de que a estética pode contribuir para o

conhecimento objetivo e ir além do material, do método e da inserção em

movimentos artísticos estão presentes nos textos Para uma filosofia do ato e no

capítulo O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária, este

presente em Questões de literatura e de estética.

Segundo essa concepção, o estético de uma obra apenas será alcançado na

sua inserção social, nos diversos domínios da cultura valorizante, atribuindo sentido

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nos entrecruzamentos de vozes presentes no discurso que, por sua vez, norteará a

contemplação de modo a vislumbrá-la, não tão subjetivamente, como também não

de forma arbitrária, dada pelo conhecimento objetivo.

É na junção do conhecimento prévio do apreciador e receptor em relação ao

método de composição, assim como o estabelecimento de relações sócio-históricas

imbuídas na obra que haverá sentido ao objeto estético.

O método formal cunhado sem uma orientação de ordem estética, semântica

e cultural, cai em um racionalismo exacerbado, desconsiderando todo o âmbito da

dinamicidade dialógica de uma sociedade, o ético, em função dos limites exercidos

pelo cognitivismo.

Não podemos relativizar o valor do material de obra, reconhecer o meio em

que se realiza um pensamento arquitetado esteticamente é aceitar sua relevância

dentro da qual.

Neste estudo, temos à disposição a charge com material linguístico e visual

na construção de um enunciado que dialoga com um outro enunciado realizado na

matéria-prima pedra-mármore.

Apesar de sua significância no todo arquitetônico de um enunciado, o material

sozinho não dá conta da apreensão da obra e, para não ir por via intuitiva ou

subjetiva, deve-se ter um olhar extraestético, a fim de se posicionar cognitiva e

axiologicamente para estabelecer relações dialógicas imbricadas no enunciado.

Dessa maneira, alcançamos o princípio bakhtiniano de que nenhum

enunciado é novo, original, pois decorre de um movimento de revisitação ou

retomada de algo dito anteriormente, em outro contexto sócio-histórico e capaz de

mudar o sentido original, por isso é único e irrepetível.

Nesse caso, relacionando a charge de Latuff à escultura de Michelangelo, o

material pode ser revelador de questões da temporalidade, no sentido de que se

hoje nos dispusermos diante da obra Pietá, na tentativa de nos abstermos do

conhecimento das circunstâncias históricas em que está inserida e nos atermos ao

material e ao método, possivelmente chegaremos ao entendimento de que se trata

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de um material e modo de produção não em voga atualmente, portanto,

correspondendo a uma obra da Antiguidade.

Do mesmo modo, ao depararmo-nos com uma charge com efeito estético,

entendemos se tratar de uma forma composicional dos dias atuais. Seriam

observações pertinentes, mas não suficientes para entendê-las individualmente,

tampouco na relação que o autor da charge possivelmente intencionou alcançar.

A forma material não abarca as noções de cunho sociológico, ético e

religioso, nem as demonstrações de posicionamento axiológico, tampouco pode

refratar as reações volitivo-emocionais dos envolvidos na interação. Enquanto

enunciado concreto, a obra suscita tanto no autor quanto no apreciador emoções

que não emergem do material em si.

Em relação à instância criadora, apresenta reações emocionais de acordo

com o momento da obra, ou seja, uma postura valorativa e axiológica na concepção

e outra diferente diante do objeto estético, pós-ato, que exerce sobre o qual

influências, despertando outros pontos de vista.

Na charge, a personagem Mother Palestine tem reafirmado o seu papel

materno pela referência à obra Pietá, condição designada pelo nome dado por seu

criador. Enquanto a Virgem Maria de Michelangelo sofre de forma serena a morte do

filho em seu braço, a personagem de Latuff contempla a da pomba branca em uma

alusão à extinção da paz na Palestina, cena justificada pela perfuração no peito da

ave, ferimento causado pelos assentamentos como fator motivador de dor e

sofrimento, ao que tudo assiste resignadamente.

Outro aspecto relevante é a condição da pomba na relação com a

personagem que a acolhe no braço, demonstrando um processo de humanização da

ave não condizente à veracidade da vida real.

Nesse sentido, além de ser um símbolo da paz, podemos atribuir à pomba

uma metáfora para inferir o sofrimento das mães palestinas que perdem seus filhos

devido ao conflito intermitente.

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Em qualquer das criações, tanto a Pietá quanto a Mother Palestine, a

disposição que temos para com a obra é de contemplação, ato ligado muito mais ao

conteúdo do que à forma material na análise estética.

Sobre isso, Bakhtin (2010) aponta para a atenção ao material apresentar uma

necessidade de uso, uma aplicação prática, enquanto que a contemplação passaria

por sensações emocionais de cunho psíquico, filosófico,o que se pode observar em

Bakhtin (2010, p. 20) ao afirmar que:

Quando um escultor trabalha o mármore, indiscutivelmente ele também o prepara na sua determinação física, mas não é sobre ele que está dirigida a atividade artística valorizante do criador, e não é a ele que se refere a forma realizada pelo artista, ainda que a própria elaboração não se realize um único momento sem o mármore, aliás, também é impossível se realizar sem o cinzel, que de forma alguma entra no objeto artístico como seu elemento; a forma escultural criada é a forma esteticamente significativa do homem e do seu corpo; a intenção da criação e da fruição caminha nesse sentido, mas a relação do artista e do espectador com o mármore como um corpo físico definido, tem um caráter secundário, derivado, regido por uma certa relação primária com os valores objetais, no caso em questão, com os valores do homem corpóreo.

Segundo o filósofo russo, a análise estética deve perpassar três etapas:

i)apreender a obra enquanto objeto estético; ii)abordar a obra em sua realidade

concreta; e iii)entender o material como aparato técnico, meio realizador do objeto

estético.

Assim, norteados por tal concepção, busca-se o valor estético das obras,

cada uma na sua singularidade, entendendo que o ato estético é, antes de tudo, um

ato ético resultante de uma postura axiológica da instância criadora.

Tanto Michelangelo quanto Latuff expuseram suas visões de mundo, seus

posicionamentos ideológicos e axiológicos em obras de arte dentro dos parâmetros

e coerções dos materiais utilizados. Nos conteúdos de suas criações estão

presentes os valores filosóficos-culturais-religiosos emergentes do respectivo

momento sócio-histórico em que estavam inseridos.

O artista renascentista quis realizar uma obra relevante e ser reconhecido

pelo ato ao assinar sua autoria. Soube realizar com maestria o ofício, visando o

perfeito equilíbrio entre as formas e demonstrando o racionalismo que emergia

naquele contexto. Esculpiu a face da Virgem Maria e o corpo de Jesus Cristo com a

singeleza e as referências do belo e do realismo influenciado pelo humanismo e pela

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Antiguidade Clássica. Por fim, trabalhou no campo estético nas principais esferas

das artes renascentistas, como a pintura, a arquitetura e a escultura.

Quanto a Latuff, sua visão estética compreende um mundo enformado e

acabado diante da realidade dos eventos da vida contemporânea. Posicionou-se

axiologicamente em favor da causa palestina sem que o fizesse de modo cômico, o

que seria mais óbvio em se tratando de uma charge, ou trágico em demasia, pois a

situação conflitante em si já é deprimente.

Criou uma série de charges na qual a personagem Mother Palestine é uma

expressão metafórica da sociedade palestina. Por meio dos traços de personalidade

da figura retratada como forte e resignada, estabelece-se o tom valorativo. O olhar

extraposto do autor não buscou a fidedignidade do sofrimento humano, de modo a

solidarizar-se com sua dor, mas deixou no ato criativo sua responsividade ativa com

efeito estético.

Temos na questão da influência da obra Pietá, de Michelangelo, construída

com motivações muito diferentes das de Latuff. Talvez a única semelhança seja a

presença do discurso religioso em ambas as obras, o retorno a um enunciado

anterior para moldá-lo segundo as intenções estéticas do chargista, instituindo um

novo sentido.

Todo ato artístico vive por essência sobre fronteiras, dessa maneira, o

pensamento bakhtiniano defende a importância de todos os elementos imbricados

no discurso, os de ordem cognitiva e científica, focados no material e na sua

aplicação prática; assim como os de ordem do conteúdo, da contemplação.

O ponto de vista da contemplação possibilita a forma arquitetônica, o elaborar

de forma artística o entrecruzamento de vozes sistêmicas que perpassam todo o

conteúdo da obra.

A forma arquitetônica rege a forma composicional, fornecendo-lhe os dados

sociais, de individualização do autor e da obra, informações que farão parte do

conteúdo a desempenhar sua forma composicional por meio de um método.

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O ato estético de Latuff não pode ser recuperado, é por meio de seu objeto

estético arquitetônico que intuímos as motivações volitivo-emocionais, o tom

valorativo, uma atitude responsiva advinda de sua participação social.

Assim, a concepção da personagem Mother Palestine, as definições de sua

personalidade, as características físicas, o tom valorativo, as referências que o leitor

precisará alcançar para instituir sentido são evidentes e racionalmente arquitetadas,

mas estão pautadas nas suas experiências vivenciadas, na capacidade individual de

contemplação e nas fronteiras dialógicas. Cada ato artístico é ao mesmo tempo

único e parte de uma sistematização concreta, na qual se realiza de forma

autônoma, porém, inserida na unidade da cultura.

A charge é resultado de um ato artístico só concebido e aceito nessa

condição porque se encontra apoiada no social, onde o sentido se estabelece na

atmosfera valorizante. Sem essa inserção social, o enunciado não possuiria

significado algum, não responderia a nada e nem receberia um retorno que o

reafirmasse ou o refutasse na interação.

Com essa charge, pode-se, como objetivo, direcionar a análise para se refletir

sobre o ato estético. Buscaram-se as noções de material, conteúdo e suas

reverberações no objeto estético.

Por se tratar de uma série de charges na qual algumas características e

elementos constituintes se repetem, foi desnecessário expor questões já abordadas

na análise de outra charge como, por exemplo, aspectos identitários do vestuário,

discurso religioso com a presença do ramo de oliveira e da pomba branca, assim

como os assentamentos israelenses.

Consideramos que o corpus possui uma unidade de sentido no todo e nos

detivemos na informação nova, que é a referência à obra do Renascimento em um

diálogo interessante do ponto de vista analítico.

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3.6 Terceira Charge

Figura 16.

Esta charge não faz menção ao nome da personagem, mas ela é reconhecida

como a Mother Palestine. Suas vestes são as mesmas das outras charges.

O que chama a atenção nessa imagem é a expressão facial da figura, com

certa proximidade com a charge anterior, em que segurava a pomba branca em seu

braço e demonstrava resignação.

Em suas charges, Latuff sempre a caracteriza de maneira que suas

expressões faciais denotem um sentimento, um tom valorativo emocional diante dos

acontecimentos. A personagem efetivamente possui uma personalidade forte,

corajosa, crítica e resignada, nunca desesperada ou dominada pela angústia.

A expressão facial da personagem é tão relevante nas charges que poucas

vezes o autor fez uso de balões de diálogo para dar voz à Mother Palestine, no

entanto, podemos apreender claramente seu estado emocional.

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O olhar da personagem está voltado ao seu braço, onde, sangrando, está

escrito o número 1948.

A materialidade linguística do enunciado estabelece sentido na junção dos

elementos da charge, diante da vestimenta típica de uma mulher palestina e das

cores da bandeira em sua roupa; por sua vez, os algarismos produzem sentido nas

interações dialógicas produzidas pela vida em sociedade.

Nenhum enunciado é neutro, possui sempre uma intenção. Para o leitor

alcançar uma leitura proficiente na conexão entre material linguístico e visual é

necessária uma postura ativa do sujeito a acionar o seu conhecimento de mundo e

estabelecer relações dialógicas que nortearão o seu ato contemplativo.

Pela contemplação alcançamos o conteúdo do objeto estético, elemento

integrante do mesmo e que desperta no apreciador as reações volitivo-emocionais,

mesmo não estando aparentes. O conteúdo está no entrecruzamento de vozes,

condição que perpassa todo o saber acumulado do sujeito atuante.

Em uma consideração metafórica cristã em alusão ao que é aceito

socialmente pela maioria das pessoas, o conteúdo está para o discurso como a alma

está para o corpo, sem o mesmo não existe nada, somente o vazio. Dito de outra

forma, é no conteúdo que está presente o tom valorativo, a alteridade do sujeito, o

posicionamento ideológico e a postura axiológica tanto do autor como do leitor.

A arte é viva e age sobre o sujeito na interação por meio de seu conteúdo.

Por esse motivo, cada pessoa sente de forma diferente diante de uma mesma obra,

pois é o leitor de posse de suas experiências dialógicas nos campos da Filosofia, da

Psicologia, da política, das artes, entre outros segmentos, quem delimitará o alcance

de sua apreensão e empatia à peça artística.

Assim, o número 1948 escrito no braço da mulher é uma referência ao ano de

criação do Estado de Israel e da deflagração da Guerra Árabe-Israelense, um

desdobramento da Guerra Civil Palestina, pois os árabes rejeitaram o plano de

partição territorial do local, formulado pela ONU.

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Um dos motivos pelosquais o ano aparece cravado na carne da mulher

corresponde ao sentido de trazer à tona o momento histórico vivenciado pelos

judeus, povo que, trabalhando em campos de concentração nazista, era em sua

maioria submetido a essa espécie de tatuagem para fins de identificação.

O olhar de resignação e tristeza para a data marcada cronotopicamente no

braço da personagem palestina denota que essa sente na pele a mesma dor pela

qual passaram os judeus.

Na relação entre o número e o sangue que escorre desse, pode-se inferir que

é algo que sorve desde o ano de 1948, ou seja,a marca não cicatriza, é profunda e

ocupa uma parte significativa do antebraço.

3.7 Quarta Charge

Figura 17.

Nesta charge não aparece o nome Mother Palestine, mas é possível

identificá-la como a mesma personagem devido aos seus trajes. Observa-se ainda

que, nesse momento, tal figura não está representada com dimensões hiperbólicas,

ou seja, em relação à figura masculina,a mencionada personagem palestina aparece

em menor estatura.

O homem retratado na charge é o cantor Bono Vox, da banda irlandesa U2,

reafirmado pelo material linguístico escrito em sua camiseta.

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A celebridade em questão é conhecida não apenas por ser o líder de uma

banda de sucesso mundial, mas também por sua atuação ativista em diversas

causas.

A disposição da personagem em menor estatura em relação ao cantor possui

o sentido de que essa mulher não possui a mesma visibilidade que o artista a ponto

de chamar atenção para a causa palestina.

Está inferida uma relação entre a visibilidade na mídia de ambos, devido a

isso, a personagem tenta puxá-lo pelo braço, apontando para um muro, despertando

a atenção do cantor para uma construção muito maior e marcada pela bandeira do

Estado de Israel, se comparada para onde a atenção do artista estava direcionada, a

queda do muro de Berlim.

Enquanto o muro maior é indicado pela mulher palestina, o corpo do cantor

está voltado ao outro e menor muro, de modo que na charge seu olhar apenas se

volta ao muro maior em função do puxão no braço que recebe da personagem

feminina.

Este enunciado possui o sentido de dar destaque ao problema da Palestina,

região que não estaria recebendo a mesma atenção. Dito de outra forma, nota-se

que no enunciado há uma crítica à falta de atenção dada à situação que se agravava

na Palestina, indicada pelos holofotes em cima do muro menor, denotando que este

atrairia mais atenção.

O muro menor apresenta como elemento verbal a expressão em inglês Berlin

wall– na tradução, muro de Berlim.

Essa conhecida construção foi uma barreira física adotada pela Alemanha

Oriental em 1961 com a intenção de dividir a cidade de Berlim, estabelecendo um

lado socialista e outro capitalista.

A construção tornou-se símbolo da Guerra Fria e, após o colapso da União

Soviética, foi derrubada em 1989, marcando a reunificação da Alemanha. Sua

extensão alcançava 37 quilômetros.

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Por sua vez, o muro apontado pela personagem é uma referência à

construção que se realiza na Cisjordânia pelo governo israelense, muro reafirmado

no enunciado pela bandeira de Israel, hasteada sobre o qual.

Essa construção teve início em 2004 e foi uma política que visava separar a

região da Cisjordânia de Israel para, supostamente, defender-se de ataques

palestinos.

A extensão dessa construção é de 721 quilômetros e possui oito metros de

altura, os quais altamente protegidos por torres de vigilância e outros recursos, tais

como trincheiras, a fim de se evitar qualquer passagem não autorizada.

Os dados numéricos apresentados confirmam o sentido do enunciado.

Há na representação do muro de Berlim alguns traçados que lembram teias

de aranha, ou podem significar a desestabilidade do próprio muro alemão, indicando

que o assunto está ultrapassado, pois tal construção fora derrubada há décadas;

enquanto que o muro de Israel se mostra uma construção forte e protegida,

chamando a atenção para um problema que ocorre já na ocasião da publicação da

charge, estendendo-se aos dias atuais.

Ademais, nessa charge, a personagem Mother Palestine reafirma a

característica de ser dotada de uma personalidade forte e altiva, lutando pelos seus

ideais.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa teve como objetivo a análise de quatro charges cuja

combinação dos materiais linguísticos e visuais nos enunciados está articulada no

todo arquitetônico para instituir sentido ao leitor-espectador.

O foco principal da análise está direcionado à charge como produto de um ato

estético. A intenção foi mostrar que a charge pode ser apreendida como objeto

estético. Para isso, o trabalho fundamentou-se em pressupostos teóricos de Bakhtin

e de seu Círculo, principalmente nos conceitos de ato estético e de análise estética.

Estudos em que o pensador russo criticava o objetivismo científico que não

considerava as relevantes contribuições que a estética geral poderia dar para uma

efetiva apreensão do todo significativo da obra. Ponderava que o cognitivismo

pautado na estética material não alcançaria todas as fronteiras de diálogos possíveis

advindos do social tanto por parte do autor, como do leitor-espectador.

Entre todas as possibilidades e coerções estipuladas pelo gênero charge,

vislumbramos que nem sempre está associada à esfera jornalística ou à produção

do humor exacerbado, características comumente designadas à essa forma de

expressão.

Selecionamos para análise as charges do brasileiro Carlos Latuff por entender

que vinham ao encontro das aspirações de nossa pesquisa.

Do ponto de vista analítico, as charges apresentam no conjunto uma unidade

de pensamento, apesar da singularidade de cada enunciado, tornando-a irrepetível

na dinâmica dialógica social. Trata-se da criação de uma personagem para abordar

um determinado tema, o conflito árabe-israelense.

O ativismo político do autor-pessoa deu lugar ao autor-criador na medida em

que a partir das suas experiências vivenciadas e das interações dialógicas superou

a finalidade da charge, imprimindo em sua criação um ponto de vista com efeito

estético.

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Do portfólio de Latuff, a charge Mother Palestine pode ser apreendida como

obra artística, pois não é meramente a representação de algum acontecimento.

A sua posição axiológica frente ao tema abordado nas charges poderia

favorecer um ato ético e solidário aos que vivem no território em conflito. Porém, o

seu ato ético é também estético, no sentido de que o seu momento de contemplação

do sofrimento do outro proporcionou um horizonte completo diante de si, de modo

que sua postura responsiva ativa vislumbrou o fazer estético.

Segundo Bakhtin (2011), até o momento da contemplação não existe ato

estético. As práticas de interações dialógicas de Latuff fazem com que se posicione

diante dos eventos que ocorrem no Oriente Médio e forme o seu ponto de vista

acerca da situação.

Um olhar estrangeiro, de quem vê de longe, que pouco pisou naquelas terras,

influenciado por sua formação ética e moral e todo o seu conhecimento de mundo

ativado no momento da contemplação.

É o olhar para outro e do outro para Latuff, onde um pode ver no outro o que

não é possível em si. Nem mesmo ao olhar no espelho ou tirar uma fotografia já não

tem diante de si a veracidade de suas expressões faciais, sua manifestação

espontânea e emocional que somente quem olha de fora pode contemplar.

Somos sempre um entre todos e entre todos um despertará a atenção, de

modo a enquadrá-lo com todo o ambiente que o cerca e os elementos naturais ou

não que agem sobre o outro.

Esse movimento natural da vida só proporciona o ato estético no momento do

retorno a si. De posse do que sabe e do que viu, como isso será trabalhado em seu

interior? De que forma e em que ocasião da vida será dada uma resposta ao

vivenciado ao se colocar no lugar do outro?

Em algum momento, que não necessariamente precisa ser logo. O que é

contemplado e experimentado retorna em um ato, ação do sujeito atuante. É nessa

circunstância de retorno a si, do despertar para uma vontade criadora, que ocorre o

ato estético.

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Tudo o que foi apreendido e contemplado é arquitetado na junção de todas as

vozes discursivas, entrecruzando-se no embate de pontos de vista, no tom valorativo

dado à obra, condição a ser realizada em uma forma composicional.

Latuff é, então, a instância criadora que dará vida à obra. Segundo Bakhtin

(2011), a obra é viva, depois de pronta fala por si porque encontra no meio

sociocultural o que lhe atribui sentido.

Assim, a personagem Mother Palestine não é um estereótipo do que nós,

brasileiros, entendemos ser a mulher palestina. Os padrões de subserviência e falta

de voz ativa não são aspectos representados dessa forma pelo autor.

Como ato estético, Latuff arquitetou uma figura que carrega as tradições no

peito, sua alteridade como que impressa nas cores da bandeira de sua roupa típica.

Com a cabeça coberta por seu lenço palestino, é a representação da valorização de

um nacionalismo, de suas tradições, de sua cultura e de seu território. Os elementos

semióticos presentes na sua caracterização reforçam sua ligação àquela terra.

Mother Palestine possui uma personalidade forte e inconformada com a

realidade. Sua expressão facial revela seu estado emocional, ora resignada, ora

brava, ora indignada, mas nunca desesperada, angustiada. Sua personalidade forte

é reforçada pela intensidade de suas ações e estatura descomunal em comparação

a um ser humano real.

Analisou-se uma obra híbrida, ou seja, que exige do leitor atenção especial e

uma postura crítica para apreendê-la em todos os seus aspectos. Sua temática é

polêmica e desvela uma pluralidade de vozes imbricadas nos discursos. Por meio

das referências e retomadas de discurso, a obra reafirma o princípio do dialogismo,

onde os entrecruzamentos de vozes estabelecem novos sentidos.

Em uma obra, o sentido se estabelece nas relações dialógicas, no seu

conteúdo. Por esse motivo, é impossível apreender uma produção somente pelo seu

material, o qual pode revelar um modo de fazer que é importante para que outros

também possam produzi-la, mas o ato criativo apenas se dá com a influência do

elemento principal: o ser humano, sujeito de seu tempo, ativo e atuante.

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