uma visão atual sobre o planejamento tributário abusivo na esfera
TRANSCRIPT
SÉRGIO MAGALHÃES LIMA
UMA VISÃO ATUAL SOBRE O PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NA ESFERA FEDERAL
Trabalho de Conclusão de Curso - Monografia apresentada ao Departamento de Estudos da Escola Superior de Guerra como requisito à obtenção do diploma do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia. Orientador: Cel Av R/1 Carlos Frederico Affonso
Sampaio.
Rio de Janeiro 2014
C2014 ESG
Este trabalho, nos termos de legislação que resguarda os direitos autorais, é considerado propriedade da ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA (ESG). É permitido a transcrição parcial de textos do trabalho, ou mencioná-los, para comentários e citações, desde que sem propósitos comerciais e que seja feita a referência bibliográfica completa. Os conceitos expressos neste trabalho são de responsabilidade do autor e não expressam qualquer orientação institucional da ESG _________________________________
Assinatura do autor
Biblioteca General Cordeiro de Farias
Lima, Sérgio Magalhães.
Uma visão atual sobre o planejamento tributário abusivo/Sérgio Magalhães Lima. - Rio de Janeiro : ESG, 2014.
49 f.: il.
Orientador: Cel Av R/1 Carlos Frederico Affonso Sampaio Trabalho de Conclusão de Curso – Monografia apresentada ao
Departamento de Estudos da Escola Superior de Guerra como requisito à obtenção do diploma do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia (CAEPE), 2014.
1. Planejamento Tributário Abusivo. Justiça Fiscal I.Título.
A minha gratidão aos meus pais Edy e
Isabel e aos meus filhos Bruno e Pedro
pela compreensão sobre minhas
ausências decorrentes da dedicação às
atividades da ESG; e, especialmente, à
minha esposa Marlene pelo amor,
amizade e companheirismo
demonstrados em nossos 23 anos de
união e traduzidos no empenho para que
eu completasse mais esta etapa de
minha vida.
AGRADECIMENTOS
A Deus, em primeiro lugar, por guiar meus passos nesta caminhada
A todo corpo docente, em especial ao meu orientador, que tornou possível a
conclusão dessa monografia.
À turma “ESG 65 anos pensando o Brasil” pelo compartilhamento de momentos
inesquecíveis que iluminaram de maneira especial meus pensamentos.
A todos aqueles que de alguma forma me apoiaram e incentivaram a fim de tornar
possível a conclusão do presente trabalho.
RESUMO
A presente monografia versa sobre o Planejamento Tributário Abusivo (PTA) na área
federal, em seus aspectos teóricos e práticos, com vistas à propositura de medidas
que minimizem a sua ocorrência e a insegurança jurídica na relação Fisco-
contribuinte. Embora fora desse escopo de estudo, abordagens sobre o
planejamento tributário e sonegação são necessárias por representarem os
extremos entre os quais se situa o terreno fértil para a realização de planejamentos
tributários abusivos. A metodologia empregada, consistente em pesquisas
bibliográfica e documental, tem por alvos não somente a doutrina e jurisprudência
relacionadas à questão principal, como também fatos econômicos e sociais
decorrentes do tema em estudo. Nesse sentido, o trabalho aborda questões relativas
às dimensões da justiça fiscal, tais como a carga tributária desigual, o desequilíbrio
do orçamento público, e a concentração da renda nos mais ricos. Identifica que a
elevação dos princípios (expressão concreta dos valores) à qualidade de normas,
em conjunto com a instituição da lei antiabuso, constitui o importante marco para o
Estado se liberar das amarras positivistas que protegem os abusos cometidos sob a
máscara da legalidade. Contudo, constata que, após treze anos da publicação da
citada lei, ainda existe um relevante grau de insegurança jurídica. Por esse motivo,
considera que a interpretação axiológica por meio de argumentos e provas não é
suficiente para o combate ao PTA, e conclui com a proposta de medidas
complementares cuja implementação pode reduzir a incidência dessa prática
abusiva, ao mesmo tempo em que confere maior segurança às relações jurídico-
tributárias.
PALAVRAS-CHAVE: Planejamento Tributário Abusivo. Justiça Fiscal. Princípios.
Doutrina. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. Lei Antiabusiva. Insegurança
Jurídica.
ABSTRACT
This monograph focuses on the systematic manipulation of the federal tax code
(Abusive Tax Planning - PTA) and its theoretical and practical aspects with a view of
proposing measures that minimize its occurrence and reduce the legal ambiguity
between the federal government and the taxpayer. Although outside the scope of
study, I will discuss some approaches to tax planning and tax evasion that represent
the extreme conditions between which lies the fertile ground for tax code
manipulation. The methodology employed consists of bibliographic and documentary
research that targets the doctrine and jurisprudence as well as the economic and
social factors of taxation. This study addresses the issues relating to dimensions of
fair taxation, such as the unequal tax burden, the public budget imbalance and the
concentration of wealth. This work determines that elevating the standards (concrete
expressions of values) in conjunction with the institution of an anti-abuse law,
constitute important milestones that will release the government from the binds that
protect those who abuse the system under the mask of legality. However, after
thirteen years of the publication of laws, there is still a relevant degree of legal
uncertainty. For this reason, the thorough axiological interpretation of the arguments
and evidence is not sufficient to combat the PTA. This study proposes additional
measures whose implementation can reduce the incidence of the abusive practice of
PTA while providing greater security to the legal-tax environment.
KEYWORDS: Abusive Tax Planning. Tax Justice. Principles. Doctrine. Board tax
Appeals. Anti-abuse Rule. Legal Insecurity.
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Carga Tributária do Brasil (Total) ............................................................. 25 Tabela 2 Carga Tributária do Brasil (por Ente Federativo) ...................................... 25 Tabela 3 Participação das Bases de Incidência na Arrecadação Total ................... 25 Tabela 4 Participação dos Tributos Diretos e Indiretos na Renda Total das Famílias
no Brasil................ .................................................................................... 26 Tabela 5 Índice de Evasão (Países com Maior Custo de Evasão) .......................... 31 Tabela 6 Índice de Evasão (Países da América do Sul) ......................................... 31
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul)
CARF Conselho Administrativo de Recursos Fiscais
COFINS Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social
CSRF Câmara Superior de Recursos Fiscais
CTN Código Tributário Nacional
DIEESE Departamento Intersindical de Estatística e Estudos
Socioeconômicos
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IBPT Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação
IDH Índice de Desenvolvimento Humano
IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
IRPF Imposto de Renda Pessoa Física
IRPJ Imposto de Renda Pessoa Jurídica
OCDE Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
PLOA Projeto de Lei Orçamentária Anual
PIB Produto Interno Bruto
PIS Contribuição para o Programa de Integração Social
PTA Planejamento Tributário Abusivo
RFB Receita Federal do Brasil
SINDIFISCO Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do
Brasil
SINPROFAZ Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................. 10
2 ELISÃO, ABUSO E EVASÃO ...................................................................... 14
2.1 ELISÃO FISCAL ........................................................................................... 14
2.2 ELUSÃO FISCAL ......................................................................................... 15
2.2.1 Abuso de Direito ........................................................................................ 16
2.2.2 Fraude à Lei ................................................................................................ 19
2.2.3 Abuso de Forma ......................................................................................... 19
2.3 EVASÃO FISCAL ......................................................................................... 20
2.3.1 Fraude (Conta à Lei), Conluio, e Sonegação ............................................ 21
2.3.2 Simulação .................................................................................................... 21
3 JUSTIÇA FISCAL – UMA ABORDAGEM SOCIAL E ECONÔMICA. ......... 23
3.1 A CAPACIDADE CONTRIBUTIVA ............................................................... 24
3.2 OS RECURSOS NECESSÁRIOS AO ESTADO .......................................... 28
3.3 A SEGURANÇA JURÍDICA .......................................................................... 32
4 DISCUSSÃO DOUTRINÁRIA. ..................................................................... 34
5 A POSIÇÃO DO CARF. ............................................................................... 38
6 CONCLUSÃO............................................................................................... 44
REFERÊNCIAS ............................................................................................ 47
10
1 INTRODUÇÃO
O positivismo, tal qual idealizado por Hans Kelsen, não consegue
atualmente responder a questões que nascem em função do dinamismo com que
ocorrem as transformações sociais no mundo. Como resultado, abre-se uma lacuna,
cada vez maior, entre a produção normativa e a realidade fática, na qual teses que
encampam ideologias de toda ordem encontram vasto campo para florescer. Tal
situação ganha relevo na medida em que detentores de poder nas áreas econômica
e jurídica exploram ferozmente esse espaço na defesa de interesses normalmente
dissociados de valores alinhados ao bem comum.
No Brasil, a idéia de que normas legais são suficientes para acobertar toda a
sorte de situações vem se diluindo em razão da elevação dos princípios
constitucionais à categoria de norma, fazendo com que valores sociais insculpidos
em nossa Carta Magna também sejam considerados quando da interpretação das
leis. Nesse terreno, o discurso argumentativo torna-se a arma mais utilizada nas
inúmeras batalhas travadas em órgãos julgadores administrativos e judiciais,
decorrentes de questões tormentosas que nascem a todo o momento no seio da
sociedade.
Seguindo essa tendência, no Código Civil, em vigor desde 2002, foram
positivados os princípios dos negócios jurídicos a boa-fé, ao mesmo tempo em que
se repudiou o abuso de direito.
Na seara do Direito Tributário esse amplo espectro na interpretação de
normas vem gerando grande insegurança jurídica na medida em que, mesmo diante
da inexistência de parâmetros legais regulamentares (parâmetros positivados), estão
sendo desconsiderados, pelos órgãos fiscalizadores, efeitos de negócios jurídicos
que, embora obedeçam à forma prescrita em lei, dissimulam a prática do verdadeiro
negócio realizado. Tais negócios normalmente decorrem de planejamentos criados
com a única intenção de driblar a norma de incidência tributária por meio do
desdobramento de um negócio jurídico passível de tributação em outros não
tributáveis, mas que em seu conjunto, e em sequência, podem atingir a mesma
finalidade econômica da real operação encoberta.
Essa prática abusiva, aliada às práticas evasivas, vem causando sérios
danos aos cofres públicos, motivo pelo qual se levanta a seguinte questão central:
11
como combater de forma eficaz esses planejamentos tributários abusivos na esfera
federal?
A busca por alternativas eficazes ao combate desses planejamentos
abusivos traduziu-se no objetivo principal do presente trabalho, conduzido a partir do
exame da literatura disponível sobre o tema planejamento tributário, bem como de
julgados administrativos. Nessa linha, objetivos específicos associados à questão
principal foram traçados com vistas à identificação e à analise não somente das
atuais e principais idéias da doutrina sobre planejamento tributário abusivo (PTA), a
fim de se apurar as posições doutrinárias e os pontos fortes e fracos dos
argumentos que as sustentam, como também dos principais acórdãos do Conselho
Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) sobre o PTA na esfera federal na
tentativa de buscar tendências da jurisprudência administrativa.
Os objetivos propostos se justificam em função da correspondência da
questão central ao ofício deste pesquisador na fiscalização de tributos federais em
grandes contribuintes que realizam negócios jurídicos com reflexos tributários
bastantes sensíveis aos cofres públicos. Por sua vez, há grande relevância na área
acadêmica, uma vez que esse tema até hoje suscita discussões doutrinárias, sendo
certo que alguns livros e muitas teses e artigos vêm sendo elaborados na
atualidade. Por fim, não se pode desconsiderar o relevante efeito social do estudo
proposto em função da alta carga tributária concentrada naqueles que cumprem
suas obrigações sem a utilização de artifícios abusivos, uma vez que boa parte
desses contribuintes acaba por suportar o ônus financeiro necessário à manutenção
da arrecadação tributária.
O marco teórico da questão principal envolve o conhecimento acerca de
conceitos próprios do direito tributário brasileiro, mais especialmente a elisão fiscal
(planejamento tributário lícito), a elusão fiscal (planejamento tributário abusivo), a
evasão fiscal (dolo, fraude e, simulação), a segurança jurídica, a capacidade
contributiva, bem como a correlação desses conceitos ao fato concreto. Parte da
Doutrina representada pelos professores Ricardo Lobo Torres, Marco Aurélio Greco,
Ricardo Lodi Ribeiro e Marcos Abraham, dentre outros, apresentam entendimento
mais aberto à participação dos valores constitucionais enquanto normas-princípios,
conforme a denominada jurisprudência dos valores. Essa visão permite o
preenchimento de lacunas necessárias à identificação do tipo de planejamento
tributário utilizado e sua qualificação como lícito ou ilícito (abusivo). Por outro lado há
12
doutrinadores como o ilustre professor Alberto Xavier que se contrapõe a essa linha
acima citada, na defesa, em síntese, de que as normas tributárias possuem
tipicidade fechada, constituindo toda forma de tributação sobre fatos não
expressamente previstos na norma de incidência tributária um mecanismo vedado
pelo sistema tributário brasileiro. Notadamente, por não representar um trabalho tão-
somente afeto à seara jurídica, reflexos sociais e econômicos relacionados aos
elementos balizadores da justiça fiscal serão apresentados de forma a emoldurar a
questão central na tentativa de trazer à sociedade a relevância do tema, e ampliar o
escopo de entendimento deste trabalho por parte daqueles que não militam no
mundo jurídico.
Considera-se no presente estudo a hipótese de que é possível minimizar a
insegurança jurídica relativa aos limites entre as duas formas de planejamento
tributário (elisão e elusão), bem como entre estas e a evasão fiscal, por meio da
adoção de critérios objetivos e subjetivos mínimos por parte do aplicador da norma,
bem como dos órgãos julgadores.
Acerca da metodologia aplicada, trata-se de uma pesquisa bibliográfica de
cunho qualitativo sobre as questões delimitadas já apresentadas à luz da posição de
cinco doutrinadores selecionados pelas linhas de argumentação expostas no marco
teórico, pela pesquisa documental em acórdãos do CARF a fim de colher o
posicionamento desse Órgão sobre as matérias relacionadas ao PTA julgadas nos
últimos três anos, e pelo conhecimento sobre o tema manifestado nos livros
indicados a título de referência bibliográfica.
Convém ressaltar, no entanto, que em razão dos prazos reduzidos para
elaboração do presente estudo, houve limitações quanto ao aprofundamento na
pesquisa dos julgados administrativos, bem como na análise comparada do
tratamento dessa questão entre os demais países.
A presente monografia encontra-se estruturada em seis seções. A
introdução descreve o problema e sua problemática, as principais finalidades da
pesquisa, sua justificativa e as opções teórico-metodológicas empregadas. A
segunda seção apresenta o suporte jurídico teórico necessário às análises, reflexões
e conclusões esboçadas neste estudo. A terceira apresenta a noção de justiça fiscal,
suas principais dimensões e os efeitos do PTA sob o prisma econômico e social, ao
resumir os impactos atuais do planejamento tributário no Brasil e no mundo. A
quarta descreve as principais linhas doutrinárias sobre o tema por meio de
13
argumentos apresentados em resposta às questões principais em debate. A quinta
apresenta alguns dos principais julgados do CARF e procura identificar a visão
desse órgão sobre a matéria no que tange às questões levantadas pela doutrina.
Por fim, a última seção reúne as conclusões com base nos argumentos majoritários
apresentados e com enfoque na sugestão da adoção de propostas que minimizem a
insegurança jurídica atualmente existente e maximizem a justiça social.
14
2 ELISÃO, ABUSO E EVASÃO
Nesta seção, pretende-se discorrer sobre os três níveis de conduta que
acarretam o não pagamento de tributos em uma escala de gradação com origem
nas práticas aceitáveis até as condutas condenáveis.
2.1 ELISÃO FISCAL
Elisão, do verbo elidir, significa afastamento. Logo, elisão fiscal pode ser
caracterizada pela ação tendente a evitar a prática de fatos geradores tributáveis ou,
sendo possível a escolha, praticar fatos sujeitos a uma tributação menos gravosa.
Pode ser lícita - denominada de planejamento tributário, economia fiscal, ou,
simplesmente, elisão fiscal -, ou ilícita - também chamada de elisão ilícita, elisão
abusiva ou elusão fiscal -, em face do cometimento de abuso de direito.
Tomando-se em ordem a elisão fiscal e a elusão fiscal, traz-se à colação a
seguinte lição:
No primeiro caso, é economia de imposto alcançada por interpretação razoável da lei tributária; no segundo, é a economia do imposto obtida pela prática de um ato revestido de forma jurídica que não se subsume na descrição abstrata da lei ou no seu espírito. (TORRES, 2013, p. 8)
De plano, convém esclarecer que não tratam tais definições de ilicitude
penal tributária (grau máximo de ilicitude), que ocorre na evasão fiscal1, definida no
presente estudo pela atitude dolosa em se esconder do Fisco a ocorrência de fato
gerador tributário típico, normalmente por meio de fraude (contra a lei) ou simulação.
Exemplos de elisão fiscal lícita são observados no cálculo anual do imposto
de renda da pessoa física por meio da opção pela declaração simplificada ou
completa, ou mesmo na escolha pela declaração conjunta ou em separado com o
cônjuge. No caso de empresas, pela opção entre a apuração pelo lucro real ou
presumido. Importante notar que esses mecanismos de escolha por uma tributação
menos gravosa não somente é lícita, como também é incentivada pela
administração tributária federal.
A ilicitude, ou abusividade, aqui tratada pode ser verificada em negócios
efetuados com o objetivo de driblar a finalidade de comando legal (mens legis) por
1 Há autores que desdobram o conceito de evasão em lícita (no caso, a elisão) e ilícita. (Nota nossa).
15
meio da prática de atos lícitos em sua forma. Exemplo é a fuga à apuração do ganho
de capital pela venda de um imóvel através de um contrato de locação (prazo
determinado) com valores acima do mercado que dilua o valor relativo à mais-valia
(exemplo: se o ganho de capital corresponder a R$ 96 mil, faz-se um contrato de
locação de doze meses, no valor de R$ 8 mil, para, ao fim, se estabelecer um preço
de venda equivalente ao custo de aquisição do imóvel. Note-se que não houve
quaisquer atos, negócios ou contratos que se pretendeu esconder do Fisco, e todos
os contratos (locação seguido de compra e venda) eram típicos e lícitos.
Em verdade, alguns doutrinadores não consideram a existência de ilicitude
em práticas abusivas de elisão fiscal sob o argumento de que a ilicitude no direito
tributário somente ocorre por meio da figura conhecida como evasão fiscal. Portanto,
sob essa ótica, a elisão fiscal, ainda que abusiva, seria uma prática lícita. Defensor
dessa corrente, o Professor Alberto Xavier destaca que a tese do abuso de direito
somente é aplicável ao Direito Privado, em função limites existentes à liberdade de
contratar entre as partes, mas não ao Direito Público. Nesse sentido afirma que
Nenhuma singularidade do Direito Tributário justifica a adoção de uma construção civilística manifestamente inadequada ao Direito Público, onde o exercício das competências pelas autoridades públicas não pode depender de motivos individuais. (XAVIER, 2001, p. 108).
2.2 ELUSÃO FISCAL
Em matéria fiscal, os comportamentos abusivos que caracterizam a elusão
fiscal se revelam tipicamente por meio das figuras jurídicas denominadas abuso de
direito, abuso de forma e fraude à lei, próximas e afins, normalmente identificáveis
pela sua preponderância nas diversas estratégias adotadas. Para algumas correntes
doutrinárias, encampadas por Torres (2013) e Ribeiro (2003), o abuso de direito é
tido como gênero de figuras como a fraude à lei e o abuso de forma. Outros
enxergam o abuso de forma como instrumento do abuso de direito, da fraude à lei e
da simulação, conforme abordagem de Greco (2011).
Tal rigor acadêmico na distinção entre essas figuras, contudo, não irá
interessar ao presente estudo, uma vez que, ante a ocorrência de qualquer uma
dessas práticas abusivas de direito, os efeitos fiscais decorrentes serão
desconsiderados, atitude esta aceita majoritariamente pelos tributaristas com
16
fundamento em valores como o bem comum, a justiça fiscal, e a solidariedade, bem
como nos princípios da boa-fé e da moralidade, entre outros.
Parte-se da idéia de que o tributo não é mais instrumento do príncipe, de
dominantes e de exploradores; de que não vivemos mais em uma colônia que deve
cumprir suas obrigações para com sua metrópole, bem como em um império em que
o povo deve atender às necessidades de seu imperador. Estamos em uma república
(do latim res publica “coisa pública”), em um Estado democrático (portanto, social)
de direito, com valores que fundamentam princípios que, por sua vez, norteiam a
aplicabilidade de leis. Assim, não existem leis desprovidas de orientações
valorativas, especialmente no campo tributário onde os recursos alimentam o cofre
do povo, denominado cofre público.
Deve-se lembrar que em um contrato social do qual resulta o Estado,
segundo a formulação do filósofo iluminista Jean-Jacques Russeau, os indivíduos
condicionam a sua liberdade ao bem comum. Logo, a liberdade de contratar, de
realizar negócios jurídicos, não é absoluta, oponível a tudo e a todos, e,
especialmente, ao Estado.
2.2.1 Abuso de Direito
O abuso de direito constitui um dos problemas sociais de maior frequência
na atualidade em face dos inúmeros direitos conferidos pela nossa carta-magna
quando combinados com as diversas relações jurídicas a que estamos submetidos
em razão dos inúmeros fatos presentes em um mundo cada vez mais veloz e
globalizado.
Não se trata aqui de conflitos gerados pela violação de direitos por parte de
pessoas que não detêm direito algum, mas sim de danos causados a terceiros por
parte de titulares de direitos em face do seu exercício com excessos condenáveis.
Foi, na verdade, na área civil, que esse fenômeno ganhou contornos mais
definidos, uma vez que as relações privadas são ricas e acobertadas pelo princípio
da autonomia da vontade, onde todos os negócios jurídicos são válidos, desde que a
lei não proíba. Por esse motivo, a necessidade de imposição de limites veio a se
materializar no artigo 187 do Código Civil, que assim dispõe: “Também comete ato
ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites
17
impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé, ou pelos bons costumes.”
(BRASIL, 2002a).
Conforme lição do professor de Direito Civil Francisco Amaral (2003, p. 550)
“O abuso de direito consiste no uso imoderado do direito subjetivo, de modo a
causar dano a outrem”. Pode-se concluir, portanto, que não basta ser titular de um
direito, é necessário saber exercê-lo, e o limite no exercício de determinado direito
constitui um reflexo de princípios como o da boa-fé, que, assim como aqueles
consagrados pela nossa magna carta, foram elevados à categoria de norma
(normas-princípio), embora com um grau de abstração mais elevado.
Várias questões que se apresentam no mundo contemporâneo possuem
como raiz a forma e o alcance do exercício de um determinado direito subjetivo de
forma a não violar outro direito pertencente a terceiros. Na verdade, os abusos
cometidos são muito frequentes em nosso dia a dia e ocorrem no trânsito em nossas
rodovias, nas relações trabalhistas e nas relações familiares.
Note-se que nessas situações podemos perceber a inexistência de um limite
normativamente definido nas relações sociojurídicas de forma a caracterizar
determinadas condutas como abuso. Em regra, tais conflitos deságuam no Poder
Judiciário, o que tem contribuído sobremaneira no elevado número de ações
aguardando julgamento.
Podem-se citar os conflitos entre o direito de manifestação e a liberdade de
ir e vir2, entre o direito à intimidade e o direito à informação, entre o direito de livre
exercício de culto religioso e o direito de vizinhança, além de excessos decorrentes
do direito de greve.
Como exemplo, colacionamos abaixo duas ementas de decisões.
Ementa: DIREITO CIVIL. DANO MORAL. MATÉRIA JORNALÍSTICA. ABUSO DO DIREITO DE INFORMAR. INDENIZAÇÃO DEVIDA. 1. O direito `liberdade de imprensa não pode extrapolar o direito de informar, violando os direitos personalíssimos, como o direito à honra, à dignidade e à privacidade. 2. No caso, o repórter extrapolou o direito de informar ao imputar à autora conduta desonrosa enquanto presidente da OAB/DF, afirmando fatos não comprovados relativos à sua gestão [...]. (BRASIL, 2012, grifo nosso).
Ementa: EXERCÍCIO ABUSIVO DO DIREITO DE GREVE. OBSTRUÇÃO DA ENTRADA DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL. CONCESSÃO DO MANDADO PROIBITÓRIO E APLICAÇÃO DE MULTA. [...]. Havendo, nos autos, prova da posse e dos excessos cometidos no exercício do
2 Vide petição que reclama pelo direito de ir e vir, assinada por 15 acadêmicos. Disponível em <http://www.peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR72309>. Acesso em: 09 jul. 2014.
18
direito de greve, consistentes na obstrução da entrada principal do estabelecimento, mantém-se a determinação de desobstrução estabelecida pelo juízo primário, bem como multa aplicada pelo descumprimento da ordem judicial. (BRASIL, 2007a, grifo nosso).
Embora tais exemplos se refiram a relações particulares, é certo que o
Estado pode ser parte em relações privadas ou terceiro interessado por elas
atingido. Em outras palavras negócios jurídicos, ainda que legalmente previstos,
podem vir a gerar danos ao Estado. Como exemplo, a ementa seguinte, expõe caso
em que os sócios de determinada empresa inidônea constituem nova empresa com
o objetivo de participação em licitação.
Ementa: ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. LICITAÇÃO. SANÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR. EXTENSÃO DE EFEITOS À SOCIEDADE COM O MESMO OBJETO SOCIAL, MESMOS SÓCIOS E MESMO ENDEREÇO. FRAUDE À LEI E ABUSO DE FORMA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA ESFERA ADMINISTRATIVA. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA E DA INDISPONIBILIDADE DOS INTERESSES PÚBLICOS. - A constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto social, com os mesmos sócios e com o mesmo endereço, em substituição a outra declarada inidônea para licitar com a Administração Pública Estadual, com o objetivo de burlar à aplicação da sanção administrativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei de Licitações Lei n.º 8.666/93, de modo a possibilitar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para estenderem-se os efeitos da sanção administrativa à nova sociedade constituída.[...]. (BRASIL, 2003, grifo nosso).
Contudo, é na seara tributária onde ocorrem os maiores danos que se
revelam nos recursos financeiros que deixam de ser recolhidos aos cofres públicos,
pois são os fatos da vida civil que expressam a capacidade contributiva das pessoas
e constituem fatos geradores da obrigação tributária. Por esse motivo, abusos em
negócios jurídicos privados podem prejudicar os interesses do Estado na
arrecadação tributária.
O professor Marco Aurélio Greco, ao transportar a definição do
supramencionado artigo 187 do Código Civil para o campo tributário, entende que o
abuso de direito consiste em um “limite funcional do direito”, e que, independente de
ser considerado um ato lícito ou ilícito, a “[...] consequência perante o Fisco será
sempre a sua inoponibilidade e de seus efeitos.” Sintetizando, conclui que “[...] no
abuso de direito há uma norma, um direito e um excesso no seu exercício [...]”.
(GRECO, 2011, p. 203 – 204, 286).
Por sua vez, Xavier (2001, p. 102), ao discorrer sobre as doutrinas de abuso
de direito, cita Klaus Tipke, que defendia o respeito à liberdade dos particulares em
19
organizar a sua vida econômica conforme as regras do Direito Privado, porém não
de forma ilimitada, uma vez que o direito de terceiros, entre os quais o Estado,
também deve ser respeitado.
Exemplo concreto de abuso é o da doação fracionada em valores abaixo de
limites tributáveis. Se determinada norma impõe a tributação de doações acima de
determinado valor, duas doações efetuadas para uma mesma pessoa, cujo total
exceda o limite de isenção, em curto espaço de tempo, pode ser vista como abuso
de direito perante o Fisco.
2.2.2 Fraude à Lei
Por sua vez, a fraude à lei é uma figura jurídica assim prevista no Código
Civil, art. 166, inciso VI: “’É nulo o negócio jurídico quando tiver por objetivo fraudar a
lei imperativa.” (BRASIL, 2002a). Trata-se de dispositivo de proteção contra a
ocorrência de manobras formais que, embora atendam ao conteúdo da norma,
afrontam o seu objetivo, a sua razão de existir.
Abraham (2007) conclui que na fraude à lei há o respeito da letra da lei de
uma norma primária, mas há uma segunda norma utilizada, secundária, de
cobertura, que contorna a finalidade da primária. Há, portanto, uma violação “[...] por
meio indiretos, através do uso de mecanismos jurídicos apoiados em outras normas,
com finalidades distintas.” (ABRAHAM, 2007, p. 218). Nessa linha, Greco (2011, p.
286) resume “[...] na fraude à lei, são duas normas para um único ato.”
Para melhor compreensão, tomem-se como exemplo duas normas
tributárias: a primeira, proibitiva de importação de automóveis fabricados no exterior;
a segunda, permissiva de importação de peças de veículos. A fraude à lei proibitiva
consistiria na importação de todas as peças de determinado veículo, por meio da
norma permissiva (norma de cobertura), com o fim de proceder à montagem do
veículo em território nacional. (GRECO, 2011, p. 252).
2.2.3 Abuso de Forma
O abuso de forma pode ser identificado na substituição de um negócio típico
tributável por negócios indiretos atípicos, ou por um conjunto de negócios
20
estruturados em uma sequência lógica e cronológica a fim de constituir um todo não
tributável.
Importante ressaltar que o negócio indireto propriamente dito ou mesmo um
conjunto de transações negociais, ainda que complexas, por óbvio, não representam
por si só a pratica de abuso. Para adquirirem a qualificação de forma abusiva é
necessário que apresentem uma finalidade de contorno de determinada norma
tributária.
Um exemplo conhecido no meio jurídico relativo a uma sequência de
negócios típicos é o da operação “casa-separa”, onde o vendedor de determinado
imóvel, para fugir ao pagamento de ganho de capital, resolve, em acordo com o
comprador, constituir uma sociedade que, em regra, tem curtíssima existência (horas
ou dias), por meio da integralização de bens e capital: um oferece o imóvel, o outro,
importância monetária correspondente ao valor de mercado do imóvel . Com a
dissolução quase que imediata ao nascimento da empresa, na fase de liquidação
dos haveres, o imóvel passa para as mãos do outro sócio (pretenso comprador),
enquanto aquele que pretendia vender recebe a importância que representa metade
do capital integralizado.
2.3 EVASÃO FISCAL
Conforme mencionado anteriormente, elisão abusiva não é evasão fiscal.
Em que pese existirem terminologias como evasão lícita, evasão permitida, tratar-se-
á no presente estudo da evasão como conduta delituosa (fraude, conluio, sonegação
e simulação) que representam ilícito penal tributário.
Diferença fundamental entre elisão e evasão segundo a doutrina majoritária
se encontra no aspecto temporal de concretização desses fenômenos, pois a prática
da evasão fiscal, ilicitude de natureza qualificativa da infração que aqui não se
confunde com abusividade, normalmente se opera após a ocorrência do fato gerador
da obrigação tributária, ao contrário da elusão fiscal. O professor Ricardo Lobo
Torres bem esclarece a natureza da referida figura jurídica:
A evasão ilícita (tax evasion em inglês e Steuerhinterzierhung em alemão) dá-se após a ocorrência do fato gerador e consiste na sua ocultação com o objetivo de não pagar o tributo devido de acordo com a lei, sem que haja qualquer modificação na estrutura da obrigação ou da responsabilidade do contribuinte. (TORRES, 2013, p. 9-10).
21
Trata-se de manobras ilícitas tendentes a eliminar, reduzir ou retardar
obrigação tributária, ações criminosas em que notas e livros fiscais e dados
contábeis são adulterados, informações falsas ou inexatas inseridas, e as
verdadeiras encobertas.
2.3.1 Fraude (Contra à Lei), Conluio, e Sonegação
Conforme definição prevista na Lei 4.502, de 30 de novembro de 1964,
assim foram definidos sonegação, fraude e conluio:
Art. 71. Sonegação é tôda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, o conhecimento por parte da autoridade fazendária: I - da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, sua natureza ou circunstâncias materiais; II - das condições pessoais de contribuinte, suscetíveis de afetar a obrigação tributária principal ou o crédito tributário correspondente. Art. 72. Fraude é tôda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, ou a excluir ou modificar as suas características essenciais, de modo a reduzir o montante do impôsto devido a evitar ou diferir o seu pagamento. Art. 73. Conluio é o ajuste doloso entre duas ou mais pessoas naturais ou jurídicas, visando qualquer dos efeitos referidos nos arts. 71 e 72. (BRASIL, 1964).
Note-se que Fraude, em sentido estrito, não se confunde com fraude à lei.
Nesta há alteração de fatos que já ocorreram, enquanto naquela há alteração do
enquadramento legal.
Importante também observar que há diferença entre o conceito legal de
sonegação em comparação ao conceito de domínio público, mais amplo, relativo a
todas as figuras que constituem espécies de evasão tributária.
2.3.2 Simulação
A definição de simulação foi assim disciplinada, em 2002, pelo Código Civil:
Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma. § 1o Haverá simulação nos negócios jurídicos quando: I - aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem; II - contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira; III - os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.
22
§ 2o Ressalvam-se os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraentes do negócio jurídico simulado. (BRASIL, 2002a).
A doutrina em regra separa a simulação em duas espécies, a absoluta e a
relativa. A primeira se caracteriza pela criação de um ato ou negócio jurídico falso
sob o qual inexiste ato ou negócio que se pretendeu encobrir. Exemplo no campo
civil é de um falso casamento, e no campo tributário, da constituição de uma falsa
obrigação fiscal (por exemplo: falsa despesa) com o fim de redução de tributos. A
segunda, por sua vez, procura encobrir um ato ou negócio verdadeiro (negócio
dissimulado). Sob o manto da falsidade se busca retardar ou mesmo impedir que a
verdade seja de conhecimento de terceiros interessados (entre os quais se inclui o
fisco), normalmente com o fito de prejudicá-los. Acabam por constituir o meio pelo
qual decorre a sonegação.
Um dos pontos de divergências doutrinárias que será visto a frente reside na
amplitude no conceito de “dissimulação”. Discute-se se o ato dissimulado
compreende tão somente a figura do ato encoberto por simulação, conforme o caput
do art. 167 retrocitado (Brasil, 2002a), ou também abrange a figura dos atos ou
negócios “contornados” pelos comportamentos abusivos.
23
3 JUSTIÇA FISCAL – UMA ABORDAGEM SOCIAL E ECONÔMICA
Segundo Sandel (2012), há três abordagens sobre justiça, a saber: a visão
utilitarista baseada na maximização do bem-estar, onde a busca pela felicidade da
maioria é a verdadeira finalidade do Estado, colocando em segundo plano os direitos
fundamentais em sacrifício ao bem da maioria; a visão liberal baseada na defesa de
direitos fundamentais que permita a qualquer cidadão exercer sua livre escolha e
defesa de sua propriedade, inclusive a ponto de não permitir que o Estado promova
a distribuição de renda entre seus cidadãos, seja por meio de uma tributação direta
e progressiva, seja por meio de gastos direcionados à camada mais pobre da
população; e a visão aristotélica fundamentada na virtude como forma de alcançar a
justiça, ao estabelecer que a riqueza deve se distribuída entre todos que a mereçam.
Nessas três abordagens se percebem como raízes as influências liberais e sociais.
A atual Constituição Federal Brasileira (Brasil, 1988), em seu preâmbulo,
destacou a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a
justiça como valores supremos, para então, em seu artigo 3º, fixar como objetivos a
construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e a promoção do bem de todos.
Percebe-se que nossa carta magna mesclou os valores inerentes àquelas três
visões, buscando atingir um equilíbrio entre os três ideários de justiça, o que por
vezes contrapõe forças liberais e sociais na busca em se estabelecer a denominada
justiça fiscal.
Segundo a visão de Abraham (2007, p. 49), “Falar de justiça em seara fiscal,
nada mais é – ao nosso ver – do que discutir temas como a dimensão da carga
fiscal, as relações entre fisco e contribuinte e a harmonia do sistema tributário.”
Desenvolve que esses temas se desdobram nos princípios da capacidade
contributiva, da igualdade (e equidade), e da segurança jurídica das relações fiscais.
Há, contudo, correntes doutrinárias que definem justiça fiscal não somente sob a
ótica do sistema tributário, mas também sob o controle e gastos dos recursos
públicos.
A partir dessas óticas, pode-se sintetizar que Justiça fiscal é um valor que se
materializa na cobrança de tributos de todos aqueles que podem pagar, na medida
de sua capacidade contributiva, determinado valor necessário e suficiente para
manutenção do aparelho estatal por meio de um sistema juridicamente estável.
24
Desse conceito podem-se extrair as três principais dimensões-princípios da
justiça fiscal: (1) comutatividade e distributividade; (2) igualdade e capacidade
contributiva; e (3) segurança jurídica. Quando se fala em carga tributária injusta, não
se está falando tão somente do volume de arrecadação em relação ao Produto
Interno Bruto (PIB), discurso de domínio popular e empírico, mas sim do espectro da
população atingida pelo poder estatal de cobrança de tributos, ou seja, de “todos
aqueles que podem pagar” (igualdade formal), da graduação segundo a capacidade
econômica do contribuinte (igualdade material ou capacidade contributiva), do
montante arrecadado na exata medida das necessidades efetivas do Estado
(comutatividade e distributividade), e da estabilidade das relações jurídicas
(segurança jurídica).
3.1 A CAPACIDADE CONTRIBUTIVA
Segundo nossa carta constitucional (BRASIL, 1988), o princípio da
igualdade, traduzido pela capacidade contributiva dos cidadãos, dispõe, em seu art.
145, parágrafo único, sentido de que “sempre que possível, os impostos terão
caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte
[...]”.
Diante desse comando o principal embate de idéias surge em função da
proporção entre impostos diretos (sobre a renda, patrimônio ou capital de uma
pessoa), e indiretos (os que recaem sobre bens e serviços), bem como sobre
regressividade e progressividade no sistema tributário que revelam a graduação
segundo a riqueza dos contribuintes. Em outras palavras, a orientação de justiça
revelada nesse princípio é a de que os impostos sejam apurados diretamente em
relação à pessoa, de forma que quem tenha mais recursos econômicos pague mais
que os menos abastados. Contudo, os impostos indiretos, regressivos, pelo fato de
ricos e pobres pagarem o mesmo valor de tributo na aquisição de produtos e
serviços, possuem elevado peso na carga tributária brasileira.
Entende-se por carga tributária a relação percentual entre o montante de
tributos arrecadados e o produto interno bruto de determinado país. Por meio deste
indicador, contudo, não é possível proceder a uma avaliação qualitativa acerca do
peso dos tributos diretos e indiretos envolvidos, bem como do grau de dispersão
existente sobre os valores que formam o montante arrecadado. Os tributos, por sua
25
vez, são receitas derivadas do Estado. Suas espécies são as taxas, contribuições e
impostos. Ao lado das demais receitas dos órgãos das três esferas do Poder
Executivo, constituem a fonte principal de recursos de Estado para o cumprimento
de suas funções típicas definidas constitucionalmente.
De acordo com o último estudo publicado pela Receita Federal do Brasil
(RFB) acerca da carga tributária brasileira, seguem-se os dados relativos ao período
de 2008 a 2012 (até o presente momento não há dados oficiais sobre 2013):
Ano Produto Interno Bruto
(R$ bilhões)
Arrecadação Tributária
(R$ bilhões)
Carga Tributária
2008 3.032,10 1.047,29 34,54%
2009 3.239,04 1.078,60 33,30%
2010 3.770,32 1.264,19 33,53%
2011 4.143,01 1.463,02 35,31%
2012 4.392,09 1.574,59 35,85%
Tabela 1: Carga Tributária do Brasil (Total) Fonte: Receita Federal do Brasil (2013)
Ano União Estados Municípios
2008 24,01% 8,76% 1,77%
2009 22,95% 8,53% 1,81%
2010 23,15% 8,53% 1,85%
2011 24,74% 8,63% 1,95%
2012 24,75% 9,02% 2,07%
Tabela 2: Carga Tributária do Brasil (por Ente Federativo) Fonte: Receita Federal do Brasil (2013)
A importância do estudo sobre a carga tributária, contudo, não reside
somente no seu aspecto quantitativo, conforme já mencionado, mas também no seu
atributo qualitativo, verificado pela participação dos tributos diretos e indiretos na sua
constituição, conforme a tabela seguinte:
Ano Renda Folha de
Salários Propriedade
Bens e
Serviços
Transações
Financeiras
Outros
Tributos Total
2008 20,32% 24,59% 3,51% 49,50% 2,02% 0,06% 100%
2009 19,50% 26,42% 3,86% 48,31% 1,78% 0,14% 100%
2010 18,18% 26,14% 3,75% 49,73% 2,10% 0,10% 100%
2011 19,02% 25,76% 3,70% 49,22% 2,19% 0,10% 100%
2012 17,84% 26,53% 3,85% 49,73% 0,10% 0,09% 100%
Tabela 3: Participação das Bases de Incidência na Arrecadação Total Fonte: Receita Federal do Brasil (2013)
26
Observe-se que o total dos tributos indiretos, aqueles que incidem sobre
bens e serviços, anualmente alcança aproximadamente 50% da carga tributária
brasileira, sendo que, em 2012, segundo dados deste estudo, respondem por esse
total 34,8% das receitas federais, 88,2% das receitas estaduais e 60,3% das receitas
municipais.
Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada3 (2011),
sintetizados em estudo sobre a progressividade na tributação brasileira publicado
pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos4 (2011),
IPEA e Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil
(SINDIFISCO NACIONAL), a participação da carga tributária relativa aos tributos
diretos e indiretos na renda total das famílias no Brasil, nos períodos de 2008 e
2009, é a seguinte:
Décimos de Renda Participação dos
Tributos Indiretos
Participação dos
Tributos Diretos Participação Total
10% 28% 4% 32%
20% 22% 4% 25%
30% 19% 4% 23%
40% 18% 4% 23%
50% 17% 4% 22%
60% 16% 4% 22%
70% 15% 6% 21%
80% 15% 7% 21%
90% 13% 8% 21%
100% 10% 11% 21%
Tabela 4: Participação das Bases de Incidência na Arrecadação Total Fonte: DIEESE, IPEA, SINDIFISCO (2011)
Diante desse contexto, no que tange à distribuição da carga tributária entre
ricos e pobres, o ex-presidente do IPEA, Márcio Pochmann, afirmou que:
Os 10% mais ricos, que concentram três quartos de toda a riqueza do país, estão praticamente imunizados contra o vírus da tributação, seja pela falta de impostos que incidam direta e especialmente sobre eles – como tributo sobre grandes fortunas -, seja porque contam com assessorias sofisticadas para encontrar brechas legais para planejar ganhos quase ausentes de impostos, taxas e contribuições. (POCHMANN, 2008).
No entanto, as reações dos mais ricos ao aumento de sua carga tributária se
manifestam em estratégias, por meio da expressão econômica do poder que
3 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)
4 Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE)
27
possuem, baseadas, principalmente, na mudança de domicílios e transferência de
lucros para locais e países com tributação favorecida, e nos planejamentos
tributários que em muitos casos se tornam abusivos.
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE),
em 2014, registrou em seu plano de ação para combate de tais práticas que a
preocupação com o comportamento dos grandes conglomerados empresariais
cinge-se ao fato de que suas economias, que representam importante fatia do PIB
dos Estados, e cadeias logísticas estão cada vez mais integradas em escala
mundial, e a crescente globalização na prestação de serviços e na comercialização
de produtos, especialmente pela internet, abre espaço para identificação de lacunas
e arbitragens legais por parte de especialistas em planejamentos tributários que
proporcionam às empresas alternativas para adoção de posições fiscais agressivas.
Recentes casos ilustram essa afirmação, como o do ator Gerard Depardieu
que solicitou cidadania russa em resposta à taxação imposta pelo governo socialista
francês de 75% sobre os rendimentos anuais dos que recebem acima de um milhão
de euros. Trata-se de um caso de elisão fiscal, atitude considerada lícita, calcada em
valores liberais, mas que para muitos se afasta dos valores sociais em que se
baseia o ideal de justiça. Outros casos que estamparam as manchetes dos jornais
de vários países foram os das empresas Google e Starbucks. A primeira declarou,
por meio de seu presidente, ter orgulho em criar um esquema tributário que permitiu
a economia de 1,5 milhões de euros, e reponde aos críticos com a afirmação de que
essa manobra é fruto do capitalismo5. A segunda, por sua vez, virou notícia em
função da revelação de que pagou ao Reino Unido, ao longo de 13 anos, o total de
apenas 8,6 milhões de libras (13,74 milhões de dólares) em comparação à receita
obtida no mesmo período da ordem de R$ 3,1 bilhões de libras6. Neste caso, em
função de movimentos sociais dos cidadãos ingleses ante o sentimento de injustiça,
a Starbucks resolveu voluntariamente pagar 16 milhões de dólares a mais que o
devido nos anos de 20137.
A “Declaração de Fortaleza”, aprovada, em 15 de julho de 2014, pelos
Chefes de Estado e de Governo do Brasil, da Rússia, da Índia, da China e da África 5 Disponível em <http://www.noticiasaominuto.com/mundo/28401/presidente-da-google-orgulhoso-por-fugir-
aos-impostos&utm_medium=LeiaTambem>. Acesso em 14 jun. 2014. 6 Disponível em <http://br.reuters.com/article/internetNews/idBRSPE8AB04V20121112>. Acesso em 14 jun.
2014. 7 Disponível em <http://opiniaoenoticia.com.br/economia/negocios/starbucks-tenta-evitar-impostos-na-gra-bre
tanha/>. Acesso em 14 jun. 2014.
28
do Sul, durante a VI Cúpula países integrantes do bloco formado pelos países Brasil,
Rússia, Índia, China e África do Sul (BRICS), demonstra, em seu item 17, a
preocupação e as ações desses Estados em relação a essa situação:
Acreditamos que o desenvolvimento sustentável e o crescimento econômico serão facilitados pela tributação dos rendimentos gerados nas jurisdições onde a atividade econômica transcorre. Manifestamos nossa preocupação com o impacto negativo da evasão tributária, fraude transnacional e planejamento tributário agressivo na economia global. Estamos cientes dos desafios criados pelo planejamento tributário agressivo e práticas de não cumprimento de normas. Afirmamos, portanto, nosso compromisso em dar continuidade a um enfoque cooperativo nas questões relacionadas à administração tributária e aprimorar a cooperação nos foros internacionais devotados à questão da erosão da base tributária e intercâmbio de informação para efeitos tributários. Instruímos também nossas autoridades competentes a explorar formas de reforçar a cooperação na área aduaneira. (BRICS, 2014, grifo nosso).
Em nosso cenário doméstico, no tocante aos planejamentos tributários
abusivos no âmbito federal, a Receita Federal do Brasil vem intensificando sua
atuação nesse sentido, desde 2001, por meio de uma gestão mais atenta aos
grandes contribuintes. Nesse particular podemos elencar duas medidas como a
criação, em 2010, de equipes fiscais regionais e duas delegacias especiais voltadas
para os maiores contribuintes com estratégia na busca do enfrentamento do
planejamento tributário abusivo.
Somente para se ter uma idéia da importância dessas unidades
especializadas, em 2013 foram lavrados autos de infração no valor total de 105,4
bilhões, o que corresponde a 55,4% do total lançado pela Receita Federal do Brasil8
(BRASIL, 2014a). Tal valor representa 4,66% do orçamento previsto no Projeto de
Lei Orçamentária Anual (PLOA), de 2014, percentual equivalente a quase três vezes
o que o país dedica ao orçamento da defesa brasileira, no valor de 1,58%, conforme
documento divulgado pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão9
(BRASIL, 2012, p. 50 – 51).
3.2 RECEITAS TRIBUTÁRIAS NECESSÁRIAS AO ESTADO
Outro ponto de embates argumentativos entre as correntes sociais e liberais
reside na qualidade dos gastos e na proporção dos recursos atribuídos a cada
demanda típica do Estado. Contudo, no Brasil, a questão principal se manifesta na
8 Receita Federal do Brasil (RFB)
9 Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MP)
29
desproporção entre carga tributária e o retorno em serviços dignos à população,
especialmente porque boa parte da sociedade acredita que os recursos hoje
arrecadados são mais que suficientes para manutenção do chamado Estado do
bem-estar social. Segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação
(IBPT), os principais resultados encontrados no estudo da relação da carga tributária
comparada ao retorno dos recursos à população em termos de qualidade de vida
(IBPT, 2013) podem ser demonstrados por meio do Índice de Retorno de Bem-Estar
à Sociedade (IRBES), resultado do somatório da carga tributária (ponderada em
15%) e o Índice de desenvolvimento Humano – IDH (ponderado em 85%).
Ressalvado o critério arbitrário de ponderação em face da importância de cada
parâmetro, entre os 30 países de maior carga tributária, o Brasil apresenta o menor
índice, ficando atrás, inclusive de países como o Uruguai e Argentina.
Contudo, a análise do orçamento público federal do ano de 2014 disposto no
PLOA de 2013 (R$ 2.362 bilhões, sem considerar o Orçamento de Investimento das
Empresas Estatais) revela que boa parte das receitas (cerca de 65%) estão
comprometidas com despesas dirigidas para o refinanciamento, os juros e as
amortizações da dívida pública (41,95% - R$ 991 bilhões); e para a previdência e
assistência social (22,93% - R$ 541,6 bilhões). Em verdade, em função de o
refinanciamento da dívida representar a substituição de títulos anteriormente
emitidos por títulos novos com vencimento posterior, se anulado o valor de R$ 654,7
bilhões, que constitui ao mesmo tempo receita e despesa, os percentuais de
aplicação de recursos ficam alterados para os seguintes valores: previdência e
assistência social: 31,72%, e dívida pública (apenas juros e amortizações): 19,70%.
Esses dados explicam, em parte, a grande defasagem entre os recursos
arrecadados e o seu retorno nas diversas funções do Estado, uma vez que somente
cerca de 35,12% do total de recursos financeiros do Estado (48,58% se
desconsiderado o refinanciamento da dívida) foram aplicados naquelas funções,
destacando-se as despesas com educação (R$ 81,2 bilhões) e saúde (R$ 92,3
bilhões) com um total de apenas 7,35% dos recursos destinados (10,16% se
desconsiderado o refinanciamento da dívida).
Tais dados sobre o orçamento público certamente são de desconhecimento
da sociedade em geral que credita tão-somente à corrupção e à má gestão os
fatores preponderantes da desproporção entre o PIB e o IDH. Essa percepção de
ineficiência da máquina administrativa governamental associada ao arraigado
30
sentimento, de construção histórico-social, de que inexiste cofre público, mas sim
cofre de governo (diga-se “do rei”) alimentado pelos velhos coletores de impostos,
faz surgir uma racionalização coletiva pela aversão ao pagamento de tributos que
cria um terreno perigoso e propício para justificar práticas que ultrapassam a
fronteira do planejamento tributário, caracterizando abusos e até mesmo ilicitudes
decorrentes da evasão fiscal (sonegação, por exemplo), principalmente pela classe
social detentora de maior poder econômico, conforme já abordado.
Nesse sentido - e já adentrando o terreno das práticas fiscais ilícitas (evasão
fiscal) que ultrapassam os limites dos abusos já comentados, embora haja muitas
vezes uma confusão entre abusos e ilicitudes por força da frágil fronteira existente
entre essas condutas -, segundo declarou o professor da London School Economics,
Jason Hickel, o custo decorrente dos ilícitos cometidos por multinacionais como a
sonegação é 25 vezes maior que o da corrupção em países em desenvolvimento,
calculado entre 20 e 40 bilhões de dólares anuais (HICKEL, 2014).
Com relação à evasão fiscal, estudo do Sindicato Nacional dos Procuradores
da Fazenda Nacional - SINPROFAZ (2013), que apresenta ressalvas acerca da
limitação sobre a carência de dados confiáveis acerca da estimativa de sonegação
específica para cada um dos tributos existentes, concluiu que a estimativa de
evasão tributária no Brasil, segundo dados do ano de 2013, foi da ordem de 8,44%
do PIB (indicador médio de sonegação de todos os tributos considerados nesse
trabalho). Por sua vez, considerando-se a média dos indicadores de sonegação de
tributos mais relevantes para a arrecadação, esse índice sobe para 10,4% do PIB, o
que equivaleria a R$ 501,9 bilhões segundo o estudo, total de recursos quase três
vezes maior que o montante hoje destinado à saúde e à educação (R$ 173,5 bi),
Importante mencionar que esse estudo teve como subsídio obra do IBPT
(2009) que analisou 9.925 autos de infração lavrados no período de 2006 a 2008 e
detectou fortes indícios de sonegação em 26,84% das empresas pesquisadas.
Concluiu que a sonegação estava diminuindo, mas ainda correspondia a 25% do
faturamento das empresas, e que o índice de sonegação fiscal no Brasil, somados
aos tributos sonegados pelas pessoas físicas, atingiu 9% do PIB.
A partir de outro estudo elaborado pela Tax Justice Network (2011) acerca
do custo da evasão fiscal em todo o mundo, com base em dados do banco mundial,
pode-se extrair a relação dos índices de evasão entre os 10 países que mais
perdem com evasão em termos absolutos (tabela 1) e os 10 países de maior
31
relevância na América do Sul (tabela 2). Nessas duas comparações, o Brasil amarga
a segunda colocação.
Posição Países PIB
(US$ Milhões)
Custo da Evasão
(US$ Milhões)
Índice de Evasão
(Custo / PIB)
1 Rússia 1.479.819 221.023 14,94%
2 Brasil 2.087.890 280.111 13,42%
3 Itália 2.051.412 238.723 11,64%
4 Espanha 1.407.405 107.350 7,63%
5 França 2.560.002 171.264 6,69%
6 Alemanha 3.309.669 214.996 6,50%
7 Reino Unido 2.246.079 109.216 4,86%
8 Japão 5.497.813 171.147 3,11%
9 EUA 14.582.400 337.349 2,31%
10 China 5.878.629 134.385 2,29%
Tabela 5: Índice de Evasão (Países com Maior Custo de Evasão) Fonte: Tax Justice Network (2011)
Posição Países PIB
(US$ Milhões)
Custo da Evasão
(US$ Milhões)
Índice de Evasão
(Custo / PIB)
1 Bolívia 19.786 3.727 18,84%
2 Brasil 2.087.890 280.111 13,42%
3 Peru 153.845 14.277 9,28%
4 Uruguai 40.265 3.647 9,06%
5 Colômbia 288.189 20.746 7,20%
6 Argentina 368.712 24.347 6,60%
7 Equador 58.910 3.054 5,18%
8 Venezuela 387.852 17.829 4,60%
9 Paraguai 18.475 846 4,58%
10 Chile 203.443 7.303 3,59%
Tabela 6: Índice de Evasão (Países da América do Sul) Fonte: Tax Justice Network (2011)
Quanto ao aporte de capitais em países com blindagem contra informações
bancárias e fiscais e que apresentam tributação favorecida - indício de fuga de
capitais decorrentes de evasão -, o Brasil ocupa o quarto lugar no ranking dos
países com mais recursos financeiros depositados em paraísos fiscais, segundo
estudo que detectou a soma de 520 bilhões de dólares depositados em fundos
brasileiros em jurisdição offshore (HENRY, 2012).
32
3.3 A SEGURANÇA JURÍDICA
A segurança jurídica no campo tributário corresponde, em sentido formal, à
estabilidade das relações entre o Fisco e os contribuintes, traduzida especialmente
pelos princípios da legalidade, da tipicidade, da anterioridade, dentre outros, que
visam garantir não somente a clareza e a anteposição das regras, como também o
estrito procedimento de interpretação destas com fim de aplicá-las em um
determinado caso concreto.
Por outro lado, embora a inexistência de um arcabouço jurídico com regras
claras e simples afaste investimentos, bem como a complexidade do sistema
tributário brasileiro constitua um obstáculo à fixação e à ampliação desses
investimentos, não se pode entender que a segurança de um ordenamento jurídico
dependa de um sistema fechado em que todas as regras necessárias ao deslinde de
qualquer questão tributária ali estejam dispostas literalmente, pois a produção
legislativa não consegue acompanhar a velocidade com que surgem novos fatos
sociais. Por esse motivo, a segurança jurídica somente pode ser alcançada por meio
de um procedimento dinâmico de interpretação do sistema normativo, segundo a
mutação dos valores da sociedade, que possa servir de orientação para a solução
das novas questões que se apresentam. Para melhor compreensão desta afirmação,
importante, pois, relatar, em síntese, a evolução das formas de interpretação jurídica
a partir do Estado Liberal.
No século XIX, até aproximadamente o início do século XX, vigorava a ideia
positivista de uma estabilidade jurídica totalmente pautada na legalidade, onde
justiça e direito eram dissociados, como reação da burguesia ao poder do monarca
característico de um estado absolutista. Um dos instrumentos de defesa decorrente
dessa ideia foi a formatação de um modelo de interpretação jurídica que se
denominou jurisprudência dos conceitos. Tratava-se de uma lógica baseada em
conceitos pré-definidos e hierarquicamente organizados na forma de uma pirâmide
que encarcerava o poder de tributar do Estado ao escopo delimitado por esse
modelo. Logo o fato que não se subsumisse às regras estabelecidas naquele
modelo não era objeto de tributação, ainda que idêntico, em sua essência, a outros
fatos tributáveis. Portanto, os abusos cometidos não eram alcançados pelo ente
tributante com base nessa lógica interpretativa.
33
Todavia, tal modelo, em determinado momento não mais passou a
responder às necessidades de um Estado agora preocupado com o bem estar social
de seus cidadãos. O capitalismo selvagem fruto do liberalismo mostrava sua face
negativa, principalmente pela proteção exacerbada que o sistema normativo
concedia ao direito de propriedade dos burgueses. A insatisfação das massas abria
espaço para proliferação de ideias socialistas, como o materialismo histórico e a
teoria da mais-valia, de Karl Marx. A visão de justiça utilitarista, na qual o bem-estar
da sociedade se sobrepõe aos direitos individuais, passou a sustentar a concepção
de um novo modelo, no direito tributário, que trouxe um maior poder ao Estado pela
possibilidade de relegar o estrito formalismo, decorrente do modelo de interpretação
até então vigente, para segundo plano. A essência econômica dos fatos praticados,
e não mais a forma jurídica, passava a ser o objeto de correspondência entre fato e
norma. Logo, independente de quaisquer outros motivos que serviram de
fundamento para a roupagem jurídica dada a determinado negócio, prevalecia o fato
econômico a ele subjacente. Segundo Ribeiro (2003, p. 2),
Nesse ambiente prosperou a ideia de justiça social, embebida por uma conotação positivista, de cunho cientifista, que desaguou na jurisprudência dos interesses, desenvolvida entre outros por Phillip Heck e Jhering. Tal concepção redundou, no direito tributário, na teoria da consideração econômica do fato gerador. Essas teorias foram marcadas por uma visão causalista de capacidade contributiva, erigida em detrimento do princípio da legalidade.
Tal qual um pêndulo, que inicialmente partiu de um extremo totalmente
legalista de proteção ao indivíduo, especialmente ao burguês, para, outro extremo
de proteção ao Estado, o modelo de interpretação que predomina atualmente se
fundamenta no equilíbrio entre os princípios da legalidade e da capacidade
contributiva. Nesse modelo os valores relativos à justiça passam a ganhar maior
relevância por meio da elevação dos princípios a categoria de normas.
Sob esse atual enfoque, a única certeza existente é de que o direito é
mutável, e as normas não podem dissociar-se de valores presentes, sob pena de
apartarmos o direito da justiça, sendo que a única forma de mantê-los em
convergência surge da análise tópica de cada caso (visão pós-positivista).
Representa, portanto a certeza de que mudanças ocorrerão em consonância com os
princípios jurídicos. Assim, “se alguma certeza ou segurança existiram (antes da
prolação da decisão), estas existirão na medida em que houver sintonia entre os
valores definidos pelo prolator da decisão e uma determinada alternativa de
resposta” (GRECO, 2011, p. 69).
34
4 DISCUSSÕES DOUTRINÁRIAS
Por se tratar de um tema complexo e sensível ao Estado brasileiro, a
doutrina, inspirada pelos valores da liberdade, justiça e bem comum, bem como
pelos princípios constitucionais da legalidade, segurança jurídica (de um lado) e da
igualdade e capacidade contributiva (de outro), manifesta divergência quanto ao
tratamento dos atos e negócios jurídicos abusivos no campo de incidência tributária,
especialmente ante o disposto no parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário
Nacional (CTN), introduzido pela Lei Complementar 104:
Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. (BRASIL, 1966).
Os principais debates decorrentes desse comando normativo podem ser
resumidos através das três seguintes questões cujas respostas serão apresentadas
em sequência a fim de conferir um todo lógico e compreensível.
Primeira questão: O que são atos ou negócios jurídicos com a finalidade de
dissimular a ocorrência do fato gerador?
Xavier (2001) defende que a norma prevista no parágrafo único do art. 116
do CTN representa uma norma anti-simulação, e não antielisiva. Entende que o
gênero “atos dissimulados” não compreende os atos abusivos, como os praticados
em fraude à lei ou por meio de abuso de formas, pois, ao seu ver, as declarações
manifestadas na execução de cada um desses atos ou negócios são verdadeiras.
Não havendo vício de vontade (divergência entre vontade real e vontade declarada)
não há ato ou negócio simulado que levaria à dissimulação do ato verdadeiro
encoberto.
Destas considerações decorre que nem os negócios indiretos nem os negócios fiduciários, por serem atos ou negócios verdadeiros, recaem no âmbito da aplicação do novo parágrafo único do art. 116 do CTN, que apenas abrange os atos ou negócios dissimulados. (XAVIER, 2001, p. 68).
Restringe, portanto, o conceito de ”dissimulação” à existência de um ato ou
negócio jurídico falso destinado a mascarar o conhecimento por terceiros do
verdadeiro ato ou negócio praticado. Em outras palavras, deriva o conceito de
dissimulação do conceito de simulação estampado no art. 167 do Código Civil. Por
esse motivo, afirma que o enquadramento de atos tidos como abusivos na presente
35
norma representa uma tentativa de tributação analógica de fatos extratípicos, o que
é vedado pelo nosso sistema tributário.
Não se trata, como é evidente (como não poderia tratar-se, dada a sua inconstitucionalidade, como adiante se demonstrará) de uma ‘cláusula geral antielisiva’, pois esta atua, não no domínio dos atos simulados ou dissimulados (sham transactions, Scheingeschäfte), mas no dos atos verdadeiros não previstos na norma tributária, mas produtores de efeitos econômicos equivalentes (avoidance transactions), preconizando a tributação de tais atos verdadeiros por analogia. (XAVIER, 2001, p. 52).
Por sua vez, Greco (2011) acredita que a simulação pode ser efetuada por
meio de atos verdadeiros. Abrange não somente a existência de um vício de
vontade, mas também um vício de motivo ou finalidade da prática do ato.
Esta, porém, não é a única maneira de conceber a figura da simulação no Código Civil. Assim, por exemplo, ORLANDO GOMES, examina a fenomenologia da simulação a partir da ideia da causa do negócio jurídico. Deste ângulo assume relevância aquilo que designa por ‘propósito negocial’ (negocial, aqui, no sentido de negócio jurídico e não de empreendimento ou ‘business’). [...] Ou seja, identificar a finalidade e a causa do negócio é o parâmetro para aferir a ocorrência ou não de simulação. Portanto, no exame de determinado caso concreto , para saber se estamos ou não diante da hipótese de simulação , importa não apenas perguntar se há uma dualidade de vontades, mas, principalmente, detectar se há um motivo real que não corresponda ao motivo aparente. (GRECO, 2011, p. 277, grifo nosso). .
Nessa mesma direção, Ribeiro (2003, p. 189) conclui que “A dissimulação é
a expressão verbal das condutas que dão origem ao abuso de direito, e engloba a
fraude à lei, o abuso de forma e a ausência de intenção negocial.” Afirma ainda
existe uma confusão por parte da doutrina entre os conceitos de simulação e
dissimulação.
Por essa visão, atos e negócios dissimulados passam também a ser aqueles
encobertos pelo uso de atos e negócios verdadeiros elaborados por meio de
instrumentos que caracterizam o negócio indireto ou outras formas complexas de
transações, mas que possuem a finalidade de apresentar resultado econômico
equivalente àqueles dissimulados. É justamente essa situação que revela o abuso
de direito e define a norma como antielisiva, sendo mais apropriado o termo
“antiabusiva”.
Nesse sentido caminhou a tentativa de regulamentação dessa norma por
meio de Medida Provisória que estabelecia em um de seus artigos (não convertido
em lei) os seguintes termos:
Art. 14. São passíveis de desconsideração os atos ou negócios jurídicos que visem a reduzir o valor de tributo, a evitar ou a postergar o seu
36
pagamento ou a ocultar os verdadeiros aspectos do fato gerador ou a real natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária. § 1º Para a desconsideração de ato ou negócio jurídico dever-se-á levar em conta, entre outras, a ocorrência de: I - falta de propósito negocial; ou II - abuso de forma. § 2º Considera-se indicativo de falta de propósito negocial a opção pela forma mais complexa ou mais onerosa, para os envolvidos, entre duas ou mais formas para a prática de determinado ato. § 3º Para o efeito do disposto no inciso II do § 1º, considera-se abuso de forma jurídica a prática de ato ou negócio jurídico indireto que produza o mesmo resultado econômico do ato ou negócio jurídico dissimulado. (BRASIL, 2002b, grifo nosso).
Segunda questão: quais critérios devem ser usados para distinção entre atos
e negócios dissimulados (abusivos) e a simulação enquanto ato evasivo, e que
enseja a qualificação da infração?
O professor Torres examina essa questão pelo critério temporal e da matéria
(de fato ou de direito), conforme a seguinte lição:
Mas ainda há diferenças relevantes a considerar: na simulação e na fraude contra a lei o fingimento e a manipulação acontecem após a ocorrência do fato gerador, enquanto na elisão abusiva e na fraude à lei a desinterpretação é anterior; naquelas discute-se sobretudo a respeito da matéria de fato, ao passo que na elisão a controvérsia gira em torno da questão de direito; conseguintemente, naquelas a prova é o seu ponto nevrálgico e incumbe ao Fisco produzi-la, ao contrário da elisão abusiva, na qual não se abre a instância de prova [...]. (TORRES, 2013, p.127).
Em outra linha, como visto anteriormente, Xavier (2001), por acreditar que os
atos dissimulados somente abrangem aqueles ocultados estritamente pelo pacto
simulatório relativo ao fato gerador (e não ao fato abstrato da norma), o que acaba
por incluir no campo do planejamento tributário lícito os atos denominados abusivos,
defende que os elementos essenciais do conceito de simulação são: “(i) a
intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração; (ii) o acordo
simulatório (pactum simulationis); (iii) o intuito de enganar terceiros.” (XAVIER, 2001,
p. 53).
Terceira questão: esses atos e negócios jurídicos podem ser
desconsiderados pelo Fisco por meio do parágrafo único do art. 116 do CTN ?
Quanto ao fato de o fisco poder desconsiderar atos e negócios, a maioria
dos doutrinadores não diverge quanto à possibilidade de desconsideração dos
efeitos tributários por parte da autoridade administrativa, mantendo-se válidos para
outros fins. Conforme lição de Xavier (2001, p. 68), “[...] o interesse do Fisco
contenta-se com a ineficácia relativa de tais atos, ineficácia esta que se traduz na
37
insuscetibilidade de os atos lhe causarem prejuízo, atingindo a sua esfera jurídica
[...]”
Contudo, ainda é tema de debate se o parágrafo único do art. 116 do CTN é
auto-aplicável, uma vez que essa própria norma condiciona a desconsideração à
observação de procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.
Por esse motivo, Xavier (2001, p.52) assim alerta: “Note-se, desde logo, que
a referida disposição não é auto aplicável, pelo que a sua vigência depende da
publicação da lei ordinária a que se refere e que até hoje não ocorreu”.
Em verdade o debate se cinge, em apertada síntese, à eficácia do
dispositivo legal, ou seja, se a norma é de eficácia contida ou de eficácia limitada.
Se por um lado, na esteira do argumento ora exposto, Greco (2011) defende
que a norma em questão é de eficácia limitada, e, portanto, dependente de uma lei
ordinária que regulamente os procedimentos a serem adotados para
desconsideração de atos e negócios dissimulados, Ribeiro (2003), em sentido
oposto, acredita que o parágrafo em debate possui eficácia contida, e, portanto, de
aplicação plena pelo Fisco. Nesse sentido, assim concluiu:
Embora o parágrafo único do art. 116 do CTN faça menção a uma regulamentação por lei ordinária, a edição desta, que deve ser feita no âmbito de cada entidade da Federação, não é condição para aplicação da cláusula geral antielisiva, uma vez que o aludido dispositivo é de eficácia contida e aplicação imediata. (RIBEIRO, 2003, p. 190).
38
5 A POSIÇÃO DO CARF
O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), órgão criado em 03
de dezembro de 2008, resultante da unificação do Primeiro, Segundo e Terceiro
Conselho de Contribuintes, paritário (representantes do Fisco e dos contribuintes),
integrante da estrutura do Ministério da Fazenda, tem por finalidade julgar recursos
de ofício e voluntário de primeira instância relativos a tributos administrados pela
Receita Federal do Brasil. A estrutura judicante é composta por três seções com
quatro Câmaras cada - integradas por turmas ordinárias e especiais -, e, ainda, a
Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), formada por três turmas.
Até aproximadamente o final da década de 1990 (e início da década
seguinte) as decisões do Conselho de Contribuintes (órgão anterior ao CARF) eram
pautadas pela formalidade dos negócios jurídicos, onde prevalecia a ótica dualista
da elisão, prática lícita, e da evasão, conduta dolosa e ilícita. Ao Fisco competia a
interpretação dos fatos, sua qualificação e, por fim, a subsunção do fato à norma -
se infração simples decorrente de erros, havia o lançamento do tributo com multa
(atualmente, 75% sobre o tributo) e juros; se provada a atitude dolosa, multa
qualificada (150%) -. Eram frequentes decisões, como a abaixo reproduzida, que,
embora revelassem a conduta abusiva, consideravam inapropriado, não somente o
lançamento da multa qualificada da multa, como também do imposto.
IRPF - GANHOS DE CAPITAL - SIMULAÇÃO - Para que se possa caracterizar a simulação, em atos jurídicos, é indispensável que os atos praticados não pudessem ser realizados, fosse por vedação legal ou por qualquer outra razão. Se não existia impedimento para a realização de aumentos de capital, a efetivação de incorporação e decisões, tal como realizadas e cada um dos atos praticados não é de natureza diversa daquele que de fato aparenta, isto é, se de fato e de direito não ocorreram atos diversos dos realizados, não há como qualificar-se a operação de simulada. Os objetivos visados com a prática dos atos não interferem na qualificação dos atos praticados, portanto, se os atos praticados eram lícitos, as eventuais conseqüências contrárias ao fisco devem ser qualificadas como casos de elisão fiscal e não de evasão ilícita. [...] (BRASIL, 1997, grifo nosso).
Contudo, o Conselho de Contribuintes, e posteriormente o CARF, não
ficaram imunes ao clamor da sociedade pela aproximação entre a justiça e o direito,
entre a legalidade e a igualdade, entre a segurança jurídica e a capacidade
contributiva. No Brasil, principalmente a partir da publicação da norma geral
antieleisiva, esse posicionamento em prol da estrita legalidade e da tipicidade
fechada começou a considerar a força dos argumentos e da interpretação valorativa
39
na busca da justiça fiscal, fazendo com que os debates acerca do equilíbrio entre
valores e princípios aparentemente opostos, ora traduzidos nas questões levantadas
na seção anterior, passassem a ter caráter dinâmico na medida em que orientam os
acórdãos do CARF e por eles são orientados. Surge, portanto, a necessidade de
avaliar aquelas questões anteriormente postas à luz de casos julgados pelo CARF.
O primeiro caso em análise, julgado em 2002, pelo então Conselho de
Contribuintes, trata de incorporação de empresa superavitária pela deficitária, a
denominada incorporação às avessas. Há narrativa nos autos do processo
administrativo de que no mesmo ato de incorporação, a incorporadora (deficitária),
que não possuía sede e equipamentos, passou a adotar a mesma razão social e se
situar no mesmo endereço da incorporada (superavitária), onde estava instalado o
complexo administrativo do grupo. O acórdão apresentou a seguinte ementa:
INCORPORAÇÃO ATÍPICA – NEGÓCIO JURÍDICO INDIRETO – SIMULAÇÃO RELATIVA – A incorporação de empresa superavitária por outra deficitária, embora atípica, não é vedada por lei, representando um negócio jurídico indireto, na medida em que, subjacente a uma realidade jurídica, há uma realidade econômica não revelada. Para que os atos jurídicos produzam efeitos elisivos, além da anterioridade à ocorrência do fato gerador, necessário se faz que revistam forma lícita, aí não compreendida hipótese de simulação relativa, configurada em face dos dados e fatos que instauram o processo. (BRASIL, 2002c).
Percebe-se já nesse momento posterior ao surgimento da norma antieleisiva
uma mudança de visão sobre os fatos apresentados. Segundo os julgadores, os
planejamentos tributários por intermédio de um negócio jurídico indireto sem que
contenha um propósito negocial caracterizam hipótese de simulação relativa.
Depreende-se desta ementa a visão ampliada desse conceito de forma a albergar as
situações de abuso de direito. Embora o crédito tributário tenha sido mantido, não foi
vislumbrado o “evidente intuito de fraude”, a intenção dolosa necessária para
caracterização da sonegação fiscal, situação qualificadora da infração, uma vez que
todos os atos de incorporação eram verdadeiros e foram registrados e publicados.
No segundo caso, contudo, já em 2006, a turma julgadora entendeu como
legítima a denominada “incorporação às avessas” porque foi vislumbrado, como
pode ser visto na ementa abaixo, o propósito negocial de melhorar “a eficiência das
operações entre ambas praticadas”. Logo, como o fator preponderante, segundo
entendimento, não foi a busca principal ou exclusiva de contorno da norma tributária,
o fato não foi enquadrado como dissimulação.
IRPJ – INCORPORAÇÃO ÀS AVESSAS – GLOSA DE PREJUÍZOS – IMPROCEDÊNCIA – A denominada “incorporação às avessas”, não
40
proibida pelo ordenamento jurídico, realizada entre empresas operativas e que sempre estiveram sob controle comum, não pode ser tipificada como operação simulada ou abusiva, mormente quando, a par da inegável intenção de não perda de prejuízos fiscais acumulados, teve por escopo a busca de melhor eficiência das operações entres ambas praticadas. Recurso especial negado. (BRASIL, 2006).
Depreende-se desses acórdãos a clara sinalização de que é possível a
prática de atos e negócios, sejam indiretos ou complexos, desde que a única e
principal razão seja obtenção de um resultado econômico não tributável equivalente
a um tributável obtido por meio de atos e negócios típicos (normalmente, mais
simples).
Já o terceiro caso, acórdão de 2010 - na mesma linha do acórdão de 2007
que após será analisado -, trata de coligação de negócios em sequência - sucessão
de vários negócios intermediários revelados pela: (1) subscrição de novas ações de
uma sociedade anônima, com a sua integralização em dinheiro e registro de ágio,
(2) subseqüente retirada da sociedade da sócia originária, (3) resgate das ações
para guarda, (4) e posterior cancelamento -. A turma julgadora entendeu que houve
simulação, no caso, relativa, uma vez que restou clara a certeza de que cada
negócio intermediário foi realizado sem causa específica e não havia outra finalidade
que a de contornar negócio típico tributável (ganho de capital na alienação de
participação societária). Da mesma forma que a posição manifestada no primeiro
caso acima reproduzido, deduz-se que os julgadores entendem o conceito de
simulação relativa (ou dissimulação) de forma ampliada a considerar os casos de
abuso de direito. No entanto, não foi reconhecida a existência de dolo para fins de
qualificação da multa.
Planejamento tributário, simulação. Negócio jurídico indireto - A simulação existe quando a vontade declarada no negócio jurídico não se coaduna com a realidade do negócio firmado, Para se identificar a natureza do negócio praticado pelo contribuinte, deve ser identificada qual é a sua causalidade, ainda que esta causalidade seja verificada na sucessão de vários negócios intermediários sem causa, na estruturação das chamadas step transactions. Assim, negócio jurídico sem causa não pode ser caracterizado como negócio jurídico indireto. O fato gerador decorre da identificação da realidade e dos efeitos dos fatos efetivamente ocorridos, e não de vontades formalmente declaradas pelas partes contratantes ou pelos contribuintes. [...]
PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO. MULTA. No planejamento tributário, quando identificada a convicção do contribuinte de estar agindo segundo o permissivo legal, sem ocultação da prática e da intenção final dos seus negócios, não há como ser reconhecido o dolo necessário à qualificação da multa, elemento este constante do caput dos arts. 71 a 73 da Lei n° 4.502/64. (BRASIL, 2010, grifo nosso).
41
O caso seguinte, de 2007, embora similar ao anterior, é relevante pela
manifestação da possibilidade de desconsideração de atos e negócios jurídicos
dissimulados (simulação relativa) em função das provas que demonstraram a
gravidade, a precisa e a concordância. Segundo disposto no voto vencedor, a
autoridade fiscal pode agir com discricionariedade na construção dos fatos jurídicos
mediante a apresentação de provas robustas: “[...] tal discricionariedade na
construção do fato jurídico é inerente à atividade do operados do direito e da própria
condição humana. O que se exige, é que esta construção esteja suportada por
provas ou indícios não passíveis de refutação [...]”. A ementa final assim foi redigida:
REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA - VERDADEIRA ALIENAÇÃO DE PARTICIPAÇÃO COM GANHO DE CAPITAL — Se os atos formalmente praticados, analisados pelo seu todo, demonstram não terem as partes outro objetivo que não se livrar de uma tributação específica, e seus substratos estão alheios às finalidades dos institutos utilizados ou não correspondem a uma verdadeira vivência dos riscos envolvidos no negócio escolhido, tais atos não são oponíveis ao fisco, devendo merecer o tratamento tributário que o verdadeiro ato dissimulado produz. [...]. (BRASIL, 2007b).
Nota-se aí um alargamento da atividade da possibilidade de requalificação
de fatos em relação à preconizada pelo professor Alberto Xavier. Por essa visão é
desnecessária a regulamentação, por lei ordinária, da lei antielisiva. Pode-se dizer
que desnecessária também essa própria norma, uma vez que a interpretação dos
fatos não fica restrita a apenas a cada negócio intermediário, mas sim ao todo
revelado pelo resultado da sucessão desses negócios, desde que alicerçado por
provas não refutáveis.
No sexto caso, julgado em 2013, em função de a legislação da Contribuição
para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS) ter estabelecido que o valor
das despesas com prestação de serviços de industrialização por encomenda
constitui crédito compensável no cálculo do tributo, empresa do ramo de calçados
passou a contratar outras empresas para industrializar seus produtos. Contudo, foi
comprovado nos autos estreito vínculo de dependência entre a contratante e as
contratadas, que eram na verdade meros desdobramentos das atividades produtivas
da contratante, caracterizando uma estrutura artificial exclusivamente criada para
aproveitamento dessas despesas na forma de créditos, conforme trechos da ementa
abaixo reproduzida:
[...]Tais fatos, no seu aspecto objetivo, revelam mácula finalística quando da constituição das empresas contratadas, posto que não norteada por aspectos de natureza empresarial/econômica, corroborando para tanto as
42
evidências que demonstram a inexistência de sua independência gerencial e financeira. Daí se deduz o viés subjetivo de que a estrutura foi criada com o intuito exclusivo de se obter vantagem tributária indevida. Abuso do direito caracterizado, o que legitima a desconsideração dos negócios jurídicos celebrados entre as empresas envolvidas, posto que a conduta se subsume à norma antielisão objeto do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional. Recurso a que se nega provimento. (BRASIL, 2013, grifo nosso).
Diante da robustez das provas apresentadas, os membros do colegiado, por
unanimidade, entenderam que o abuso de direito estava caracterizado, pois: a) a
contratante transferiu significativos montantes financeiros para o pagamento de
despesas operacionais das contratadas; b) uma das contratadas mantinha
identidade de endereço com a tomadora dos serviços (recorrente); c) os serviços
prestados pelas empresas contratadas eram quase que exclusivamente destinados
à reclamante; d) houve transferência de empregados da interessada para as
empresas contratadas quando da constituição destas; e) contratante e contratadas
operavam no mesmo ramo de negócio; f) sócios das empresas envolvidas
apresentavam ligação familiar.
Mais uma vez a desconsideração de atos e negócios teve por base a
apresentação de provas incontestáveis da dissimulação, desta feita, segundo o
colegiado, pela subsunção da conduta à norma antielisiva.
O sétimo caso, contudo, trouxe um revés aparente aos posicionamentos
anteriormente expostos. Embora não represente uma tendência, até porque há
poucos acórdãos nesse sentido, torna-se importante trazê-lo à colação, por ser bem
recente, de março de 2014, e por revelar que existem também divergências entre
conselheiros e turmas.
Por se tratar de caso em que há o desmembramento de uma empresa em
outras a fim de se aproveitar potencial redução de tributos, necessário se faz
investigá-lo com olhos mais atentos aos argumentos apresentados nos votos
(vencedor e vencido).
Segundo o relatório do acórdão, em razão da elevação dos tributos
incidentes sobre a produção, determinada empresa resolveu passar a sua atividade
produtiva para outra empresa do grupo e cuidar apenas da distribuição de produtos.
No voto vencedor há afirmações iniciais alinhadas aos princípios da
autonomia da vontade e da liberdade de organização, sob o argumento de que a
criação de pessoas jurídicas para cada tipo de atividade compreende a necessidade
de busca de uma estrutura econômica menos onerosa, fazendo parte da política
43
econômica, e não da tributária, “dizer como deve ser estruturada a economia, como
devem ser distribuídos os fatores de produção.” Atribuiu à queda de arrecadação o
único ângulo pelo qual o Fisco enxerga a abusividade. Por esses motivos entendeu
lícita a estrutura apresentada e, por fim, conforme a seguinte ementa, julgou
improcedente o lançamento fiscal.
Assunto: Contribuição para o PIS/Pasep Ano-calendário: 2000, 2001, 2002, 2003 PIS. REGIME MONOFÁSICO. PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO. SIMULAÇÃO ABSOLUTA. DESCONSIDERAÇÃO DE ATOS E NEGÓCIOS JURÍDICOS. ART. 116, P.U. DO CTN. UNIDADE ECONÔMICA. ART. 126, III, DO CTN. NÃO CARACTERIZAÇÃO. Não se configura simulação absoluta se a pessoa jurídica criada para exercer a atividade de revendedor atacadista efetivamente existe e exerce tal atividade, praticando atos válidos e eficazes que evidenciam a intenção negocial de atuar na fase de revenda dos produtos. A alteração na estrutura de um grupo econômico, separando em duas pessoas jurídicas diferentes as diferentes atividades de industrialização e de distribuição, não configura conduta abusiva nem a dissimulação prevista no art. 116, p.u. do CTN, nem autoriza o tratamento conjunto das duas empresas como se fosse uma só, a pretexto de configuração de unidade econômica, não se aplicando ao caso o art. 126, III, do CTN. Recurso voluntário provido. Recurso de ofício prejudicado. (BRASIL, 2014b, grifo nosso).
No voto vencido, por outro lado, o Conselheiro enxergou manifesta prática
simulatória, uma vez que embora formalmente a situação se apresente conforme os
ditames legais, vários fatos comprovam que: (1) a empresa que recebeu as
atividades industriais (empresa B) não tem autonomia patrimonial operacional e
gerencia em relação à empresa que as transferiu (empresa A) – a transferência dos
bens (imóveis, veículos, e direito de utilização de marca) sequer foi efetivada nos
registros públicos; (2) a empresa A possui o controle da empresa B, participando de
99,9999993% do seu capital; (3) a empresa B realiza suas atividades com preços
muito abaixo do mercado com o fim reduzir a base de cálculo do tributo incidente
sobre a produção; (4) toda essa produção é destinada quase com exclusividade
para a empresa A (agora, distribuidora); (5) inexiste qualquer outra vantagem
econômica na reestruturação societária, como aumento do poder de mercado ou
ganho de escala. Entendeu que há divergência entre a vontade real e a declarada,
motivo pelo qual concluiu que a simulação é incontestável.
44
6 CONCLUSÃO
Ao longo dessas linhas procurou-se demonstrar a importância do tema para o
Estado brasileiro, especialmente em relação à sua expressão econômica do poder,
que, indiretamente, impacta em sua soberania.
Exemplos dessa relevância residem nas estimativas de sonegação - que
chegam a alcançar em média cerca de 10% do PIB, sem contar os vultosos
montantes que escapam dos cofres públicos em função de práticas abusivas -, e da
carga tributária em menor percentual sobre aqueles com maior poder aquisitivo.
Sob essa inspiração, apresentam-se a seguir conclusões e propostas com
vistas a colaborar no combate aos planejamentos tributários abusivos.
Planejamento tributário é uma forma de desoneração para as empresas
brasileiras em razão não somente da busca de redução de despesas (tributos) com
vistas ao alcance do objetivo principal (apuração de lucro), como também pela alta
carga tributária suportada atualmente no Brasil em relação ao retorno destes
recursos na forma de serviços básicos à população.
Todavia a liberdade pela busca dos objetivos pessoais e empresariais
possuem limites ante outros princípios que clamam pela justiça fiscal, como a
igualdade e capacidade contributiva, que não contemplam a redução artificial da
carga tributária individual promovida por meio de condutas abusivas, especialmente
em razão do objetivo de Estado de promoção do bem da coletividade, do bem
comum.
Embora a justiça fiscal reclame pela adequada correspondência entre o PIB e
o IDH, principalmente em um país que possui atualmente a oitava economia do
mundo, o discurso contra a alta carga tributária deve ser relativizado aos olhos das
despesas orçamentárias concentradas em 51,42% nas funções de previdência
social, assistência social e encargos (juros e amortização da dívida pública).
Portanto, atribuir somente à má gestão e à corrupção a falta de investimentos em
setores fundamentais como a educação e saúde, reduz o escopo do problema a um
nível de ignorância que favorece a postura cultural contra o pagamento de tributos,
e, consequentemente, a conduta abusiva daqueles que efetivamente possuem poder
para realizar essa prática.
Também constitui terreno fértil para a abusividade a estrutura positivista
calcada no formalismo, pois constitui desigualdades caracterizadas pela
45
identificação de certas facilidades de contorno da norma por parte daqueles que, em
regra, detêm poder econômico para contratação de consultorias especializadas
nesse agressivo tipo de planejamento, normalmente abusivo, em relação àqueles
que não possuem margem para efetuar esse tipo de conduta, seja pela
concentração da carga tributária em impostos indiretos (considerando a camada
mais pobre da população), seja pela tributação de sua renda descontada
diretamente na fonte pagadora (em relação aos assalariados),
Nesse contexto, em função das várias singularidades dos tempos atuais
decorrentes da dinâmica dos fatos sociais e da constante evolução dos conceitos e
institutos de direito privado, a argumentação jurídica, principal instrumento de
interpretação dos fatos, apoiada em uma consistente instrução probatória, passam a
ter grande importância pela abertura da interpretação aos valores conforme a ótica
pós-positivista.
Por esse motivo, em que pese a possível insegurança jurídica, as situações
que envolvem a desconsideração de atos ou negócios jurídicos que dissimulam
fatos tributáveis devem ser analisadas caso a caso de acordo com os elementos de
prova existentes segundo orientação por critérios, como o do propósito negocial,
traduzido pela demonstração da vantagem de ordem econômica, exceto o efeito
fiscal, decorrentes de atos e negócios isolados.
Contudo, boa argumentação, baseada em uma interpretação valorativa, e
provas consistentes não podem constituir os únicos elementos de combate contra o
PTA, pois, como visto em determinados julgados trazidos à colação, há
posicionamentos fortes contra a insegurança jurídica derivada dessa linha
neoconstitucionalista.
Nesse sentido, embora para maioria da doutrina e dos julgados a
regulamentação da norma antielisiva seja desnecessária, propõe-se a positivação
dos procedimentos a que alude essa norma, especialmente para introdução de
critérios, em seu bojo, para identificação de atos e negócios jurídicos dissimulados.
Essa medida certamente diminuiria margem de discussão sobre o tema, o que
prestigiaria a segurança jurídica e reforçaria o princípio da capacidade contributiva.
Outra proposta que pode trazer mais estabilidade às relações jurídicas entre
Fisco e contribuinte consiste na elaboração, por parte das grandes empresas, de
declaração (obrigação acessória) dos negócios jurídicos indiretos e complexos
praticados, bem como da demonstração do propósito negocial associado.
46
Essa declaração, de caráter similar ao instituto da Consulta Sobre
Interpretação da Legislação Tributária, porém mais abrangente e menos burocrática,
constituiria um mero subsídio para averiguação posterior do fato pela Autoridade
Administrativa por meio de ação fiscal. Caso fosse constatada a existência de
prática dissimulatória, o lançamento do crédito tributário seria realizado tão somente
em relação ao tributo correspondente, sem multa e juros, com direito, ainda, ao
contraditório pelas leis que regulam o processo administrativo fiscal.
Por sua vez, no que tange à distinção entre o abuso e a evasão, o critério a
ser empregado deve consistir na demonstração da existência de dolo, aqui definido
como a ciência e vontade de cometimento do ilícito (ato ou negócio vedado por lei).
Trata-se de elemento subjetivo do tipo em que a instrução probatória torna-se
fundamental.
A prova pode ser produzida por todos os meios admitidos em direito, sendo
que, além da demonstração da vontade de praticar o ato ou negócio ilícito, a
principal é a comprovação do conhecimento da ilicitude por parte daquele que
praticou o ato ou negócio, fato este que tem pautado o CARF na distinção entre a
simulação, enquanto prática evasiva, e o abuso. A dúvida quanto à demonstração
desse conhecimento tem direcionado os votos dos Conselheiros no sentido do erro
de proibição ou no princípio do “in dubio pro réu”, argumentos que desconstituem a
qualificação da infração.
Por fim, e em face da considerável importância do intérprete nesse processo,
desde a fase de identificação do ilícito e constituição do crédito tributário até a fase
de julgamento, não se pode deixar de mencionar a necessidade de investimentos
em recursos humanos (juízes, conselheiros e auditores fiscais) capazes de proceder
a uma correta instrução probatória e uma adequada qualificação dos fatos.
47
REFERÊNCIAS
ABRAHAM, Marcus. O Planejamento tributário e o direito privado. São Paulo: Quartier Latin, 2007. AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 5. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 550. AMARAL, G. L. do et. al. Estudo sobre a sonegação fiscal das empresas brasileiras. IPEA, 5 mar. 2009. Disponível em: <https://www.ibpt.org.br /img/uploads/novelty/estudo/49/EstudoVeQuedaNaSonegacaoFiscalDasEmpresasBrasileiras.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2014. BARROSO, Luís Roberto (Org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. 3. ed. rev. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 4. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988: atualizada até a Emenda Constitucional n 46, de 10-08-2005, acompanhada de notas remissivas e dos textos integrais das Emendas Constitucionais de revisão. 38. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2006. BRASIL. Lei n 4.502, de 30 de novembro de 1964. Dispõe Sobre o Imposto de Consumo e reorganiza a Diretoria de Rendas Internas. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 nov. 1964. Seção 1, p. 1. BRASIL. Lei n 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 out. 1966. Seção 1, p. 12451. BRASIL. Lei n 10.406, de 10 de janeiro de 2002a. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Seção 1, p. 1. BRASIL. Medida Provisória nº 66, de 29 de agosto de 2002b. Dispõe sobre a não cumulatividade na cobrança da contribuição para os Programas de Integração Social (PIS) e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep), nos casos que especifica; sobre os procedimentos para desconsideração de atos ou negócios jurídicos, para fins tributários; sobre o pagamento e o parcelamento de débitos tributários federais, a compensação de créditos fiscais, a declaração de inaptidão de inscrição de pessoas jurídicas, a legislação aduaneira, e dá outras providências. - Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 ago. 2002. Seção 1, p. 1. BRASIL. Ministério da Fazenda. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. Acórdão n. 106-09.343, sessão de 18 set. 1997. Disponível em: <http://carf.fazenda.gov.br/sincon/public/pages/ConsultarJurisprudencia/consultarJurisprudenciaCarf.jsf>. Acesso em: 17 jul. 2014.
48
________. Acórdão n° 103-21.046, sessão de 16 out. 2002c. Disponível em: <http://carf.fazenda.gov.br/sincon/public/pages/ConsultarJurisprudencia/consultarJurisprudenciaCarf.jsf>. Acesso em: 17 jul. 2014. ________. Acórdão n° CSRF/01-05.413, sessão de 20 mar. 2006. Disponível em: <http://carf.fazenda.gov.br/sincon/public/pages/ConsultarJurisprudencia/consultarJurisprudenciaCarf.jsf>. Acesso em: 17 jul. 2014. ________. Acórdão n° 108-09.507, sessão de 5 dez. 2007b. Disponível em: <http://carf.fazenda.gov.br/sincon/public/pages/ConsultarJurisprudencia/consultarJurisprudenciaCarf.jsf>. Acesso em: 17 jul. 2014. BRASIL. Ministério da Fazenda. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. Acórdão n° 1401-00.155, sessão de 28 jan. 2010. Disponível em: <http://carf.fazenda.gov.br/sincon/public/pages/ConsultarJurisprudencia/consultarJurisprudenciaCarf.jsf>. Acesso em: 18 jul. 2014. ________. Acórdão n° 3802-001.558, sessão de 26 fev. 2013b. Disponível em: <http://carf.fazenda.gov.br/sincon/public/pages/ConsultarJurisprudencia/consultarJurisprudenciaCarf.jsf>. Acesso em: 18 jul. 2014.
________. Acórdão n° 3403-002.519, sessão de 20 mar. 2014b. Disponível em: <http://carf.fazenda.gov.br/sincon/public/pages/ConsultarJurisprudencia/consultarJurisprudenciaCarf.jsf>. Acesso em: 18 jul. 2014. BRASIL. Ministério da Fazenda. Receita Federal do Brasil. Resultado de fiscalização de 2013. [S.I.], 2014a. Disponível em: <http://www.receita.fazenda.gov. br /publico/Instituicao/Resultados/Fiscalizacao/AvaliacaoSufis2013.pdf>. Acesso em: 8 jul. 2014. BRASIL. Ministério do Planejamento Orçamento e Gestão. Secretaria de Orçamento Federal. Orçamento Federal ao Alcance de Todos: Projeto de Lei Orçamentária Anual – PLOA 2014. Brasília, 2013a. Disponível em: <http://www.planejamento.gov. br /secretarias/upload/Arquivos/sof/publicacoes/Revista_OFAT_2014.pdf>. Acesso em 15 jul. 2014. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso ordinário em mandado de segurança RMS 15166 BA 2002/0094265-7, sessão de 7 ago. 2003. Disponível em: <http://stj.jusbrasil.com.br jurisprudencia/227245/recurso-ordinario-em-mandado-de-seguranca-rms-15166-ba-2002-0094265-7>. Acesso em: 9 jul. 2014. BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal (1. Região). Apelação cível APL 746353120108070001 DF 0074635-31.2010.807.0001, sessão de 28 mar. 2012. Disponível em: <http://tj-df.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21461550/apelacao-ci-vel-apl-746353120108070001-df-0074635-3120108070001-tjdf>. Acesso em: 8 jul. 2014. BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho (22. Região). Recurso ordinário RO 697200600222005 PI 00697-2006-002-22-00-5, sessão de 29 out. 2007a. Disponível
49
em: <http://trt-22.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/4484082/recurso-ordinario-ro-69720 0600222005-pi-00697-2006-002-22-00-5>. Acesso em: 8 jul. 2014. BRICS, VI Cúpula. Declaração de Fortaleza. Disponível em <http://www.itamaraty. gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/vi-cupula-brics-declaracao-de-fortaleza>.
Acesso em: 16 jun. 2014. DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil. A Progressividade na tributação brasileira. São Paulo, 2011. Disponível em: <http://www.robertodiasduarte.com.br/wp-content/uploads/downloads/2013/02/Carti lha _Progressividade_da_Tributacao.pdf>. Acesso em: 7 jun. 2014. GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2011. HENRY, James S. The price of offshore revisited: new estimates missing global private wealth, income, inequality, and lost taxes. Tax Justice Network, jul. 2012. Disponível em: <http://www.taxjustice.net/cms/upload/pdf/Price_of_Offshore Revisited_120722.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2014. HICKEL, Jason. Sonegação dos ricos é 25 vezes maior que corrupção nos países em desenvolvimento. Carta Maior, 25 fev. 2014. Disponível em: http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia/Sonegacao-dos-ricos-e-25-vezes-maior-que-corrupcao-nos-paises-em-desenvolvimento/7/30342. Acesso em: 14 jul. 2014. INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Equidade fiscal no Brasil: impactos distributivos da tributação e do gasto social. Comunicado nº. 92, mai. 2011. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/ comunicado/110519_comunicadoipea92.pdf>. Acesso em: 13 jun. 2014. INSTITUTO BRASILEIRO DE PLANEJAMENTO E TRIBUTAÇÃO. Estudo sobre a sonegação fiscal das empresas brasileiras. mar. 2009. Disponível em: < https://www.ibpt.org.br/img/uploads/novelty/estudo/49/EstudoVeQuedaNaSonegacaoFiscalDasEmpresasBrasileiras.pdf>. Acesso em: 9 jul. 2014. INSTITUTO BRASILEIRO DE PLANEJAMENTO E TRIBUTAÇÃO. Estudo sobre a carga tributária/PIB x IDH. abr. 2013. Disponível em: <https://www.ibpt. org.br/img/uploads/novelty/estudo/787/ESTUDOFINALSOBRECARGATRIBUTARIAPIBXIDHIRBESMARCO2013.pdf>. Acesso em: 9 jul. 2014. ORGANIZAÇÃO para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Plano de ação para combate à erosão da base tributária e à transferência de lucros. OECD Publishing. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1787/9789264207790-pt.>. Acesso em: 15 jun. 2014. POCHMANN, M. O mito da tributação elevada. Folha de São Paulo, São Paulo, SP, set. 2008. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/z1409200808 .htm>. Acesso em: 16 jun. 2014.
50
RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, interpretação e elisão tributária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Tradução Heloisa Matias et al. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. SINDICATO NACIONAL DOS PROCURADORES DA FAZENDA NACIONAL. Sonegação no Brasil: uma estimativa do desvio de arrecadação do exercício de 2013. Disponível em: <http://www.quantocustaobrasil.com.br/artigos/sonegacao-no-brasil-uma-estimativa-do-desvio-da-arrecadacao-do-exerc%C3%ADcio-de-2013>. Acesso em: 10 jul. 2014. TAX JUSTICE NETWORK. The Cost of tax abuse: a briefing paper on the cost of tax evasion worldwide. Tax Justice Network, jul. 2011. Disponível em: http://www.taxjustice.net/wp-content/uploads/2014/04/Cost-of-Tax-Abuse-TJN-2011.pdf. Acesso em: 10 jul. 2014. TORRES, Ricardo Lobo. Planejamento tributário: elisão abusiva e evasão fiscal. Rio de Janeiro: Elsevier-Campus, 2013. XAVIER, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva. São Paulo: Dialética, 2001.