o combate ao planejamento tributÁrio abusivo no … · somente em meados da década de 90...

169
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO DIREITO BRASILEIRO Andréa Karla Ferraz Belo Horizonte 2009

Upload: others

Post on 11-Aug-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Direito

O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO DIREITO BRASILEIRO

Andréa Karla Ferraz

Belo Horizonte

2009

Page 2: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

Andréa Karla Ferraz

O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO DIREITO BRASILEIRO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Público.

Orientador: Prof. Dr. Marciano Seabra de Godoi

Belo Horizonte

2009

Page 3: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Ferraz, Andréa Karla F381c O combate ao planejamento tributário abusivo no direito brasileiro / Andréa Karla Ferraz. – Belo Horizonte, 2009. 168 f. Orientador: Marciano Seabra de Godoi

Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Direito Público

Bibliografia. 1. Planejamento tributário – Brasil. 2. Elisão fiscal. 3 Direito

tributário. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito Público. CDU: 336.2.022

Bibliotecária – Valéria Mancini – CRB-1682

Page 4: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

Andréa Karla Ferraz

O combate ao planejamento tributário abusivo no dir eito brasileiro

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,

Belo Horizonte, 2009.

Marciano Seabra de Godoi

____________________________________________________________

Marciano Seabra de Godoi (orientador) – PUC Minas

Marco Aurélio Greco

_____________________________________________________________

Marco Aurélio Greco – FGV

Álvaro Ricardo de Souza Cruz

______________________________________________________________

Álvaro Ricardo de Souza Cruz – PUC Minas

Flávio Couto Bernardes

_____________________________________________________________

Flávio Couto Bernardes – PUC Minas

Page 5: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

À Laura, minha filha, com muito amor.

Page 6: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

AGRADECIMENTOS

A meu orientador Professor Marciano Seabra de Godoi, cuja imensa

cultura é proporcional à simplicidade, meu agradecimento especial pela

dedicação, disponibilidade, paciência e pelas valiosas lições.

Aos Professores Álvaro Ricardo de Souza Cruz, José Adércio Leite

Sampaio e Alexandre Travessoni, pelos ricos ensinamentos transmitidos nas

aulas, no decorrer do curso de mestrado.

Ao meu esposo, Fernando Antônio Rolla de Vasconcellos, e a minha

querida amiga, Raquel Melo Urbano de Carvalho, pela troca constante de

idéias, apoio incondicional, carinho e incentivo no desenvolvimento do trabalho.

Aos colegas de mestrado, Marcos Antônio da Costa e Flávia Renata

Vilela Caravelli, pela convivência prazerosa nestes dois anos de curso.

Aos colegas da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, em especial,

Dr. Cláudio Roberto Leal Rodrigues, Dra. Marília Aparecida Silva do Carmo e

Dr. André Luiz da Silva Cristino, pela compreensão e pelo deferimento do meu

pedido de licença capacitação. A Anna Carla Duarte Chrispim, Ana Maria

Campos Bicalho de Lana e Fábio Guimarães Bensoussan, pelo apoio e

incentivo de sempre. Ao Dr. Paulo Roberto Riscado Júnior e Dr. Fernando

Boiteux, pelo valioso aprendizado, no período em que defendi os interesses da

Fazenda Nacional na Terceira Câmara do Terceiro Conselho de Contribuintes

do Ministério da Fazenda.

A minha mãe, Silvia, por ter me proporcionado a tranqüilidade

necessária para que eu pudesse concluir este trabalho, cuidando de sua neta,

Laura, nas infindáveis horas em que eu estava mergulhada nos estudos.

A todos vocês, meu muito obrigado!

Page 7: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

RESUMO

A presente dissertação tem por objetivo a análise do quadro legal em

vigor no ordenamento jurídico brasileiro visando a combater o planejamento

tributário abusivo, com destaque para a função desempenhada pela norma

introduzida pela Lei Complementar nº 104, de 2001 que adicionou o parágrafo

único ao artigo 116 do Código Tributário Nacional.

Durante o processo de desenvolvimento deste trabalho buscou-se traçar

um panorama das posições doutrinárias a respeito do princípio da legalidade

tributária, de modo a expor seu novo perfil que não mais se coaduna com a

noção clássica da legalidade tributária como sinônima de uma “reserva

absoluta de lei”. Além disso, pretende-se demonstrar, que, hodiernamente, o

Direito Tributário utiliza-se cada vez mais dos tipos legais, de conceitos

jurídicos indeterminados e de cláusulas gerais.

Através da exposição da evolução do conceito de simulação, procurou-

se realçar sua relação estreita com o conceito de negócio jurídico que, por sua

vez, liga-se fundamentalmente às ideologias que influenciaram cada escola do

pensamento jurídico. Essa exposição teve por objetivo demonstrar que, na

atualidade, vem sendo moldado, no Direito Tributário, um conceito de

simulação para fundamentar a desconsideração de condutas elusivas,

praticadas com fraude à lei, abuso de direito, abuso de forma.

Sem embargo das posições contrárias, procurou-se fundamentar o

entendimento de que a norma contida no parágrafo único do artigo 116 do

Código Tributário Nacional é mera explicitação de uma regra geral antielusiva

ínsita no ordenamento jurídico brasileiro a qual deriva-se diretamente dos

princípios da igualdade, da capacidade contributiva e da progressividade.

Portanto, o combate ao planejamento tributário pode ser realizado

independentemente dessa regra.

Palavras-chave: legalidade e tipicidade tributárias; simulação; norma geral

antielusiva; planejamento tributário abusivo; desconsideração pelo Fisco.

Page 8: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

ABSTRACT

The attending essay’s purpose is to analyze the legal framework in force

in Brazilian legal system aiming to combat the planning taxation abusive, with

highlight to the function performed by the rule introduced by Supplementary

Law No 104, 2001 which added the sole paragraph to the article 116 of the

National Tributary Code.

During the development process of this work it pursue to chart a

panorama of doctrinal positions in respect of the principle of legality taxation, to

display its new profile that is not anymore in line with the traditional concept of

legality taxation as a "reserve absolute of law". Furthermore, it seeks to

demonstrate, that, now at days, the Tributary Law uses increasingly legal kinds

of indeterminate juridical concepts and general clauses.

Through the exposure of the evolution of the concept of simulation, it

sought to emphasize its close relationship to the concept of legal business,

which leagues fundamentally to ideologies that had influenced each Juridical

thinking school. This display’s objective was to demonstrate that, actually, it has

been drawn, in Tributary Law, a concept of simulation to substantiate the insult

of decorative elusive, committed fraud to the law, abuse of right, abuse of form.

Notwithstanding of contrary positions, it aimed to base the understanding

that the rule inside the Article 116’s sole paragraph of the National Tributary

Code is mere explanation of a general rule antielusive inborn at juridical

brazilian system in which drift directly from the principles of equality, of the

contributory capacity and the progressiveness. Therefore, the fight against tax

planning may be performed regardless of the rule.

Key-words: legality and specificity tributaries; simulation; standard general

antielusive; planning taxation abusive; disregard by the tax authorities.

Page 9: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ......................................................................................................11

2. TIPICIDADE, LEGALIDADE E CONTROLE DO PLANEJAMENT O TRIBUTÁRIO:

PANORAMA DAS CORRENTES DOUTRINÁRIAS................ .................................15

2.1. Introdução.................................... .....................................................................15

2.2. O princípio da tipicidade no Direito Tributári o ..............................................20

2.2.1. A distinção entre tipo, tipicidade e tipific ação ...........................................20

2.2.2. A diferenciação entre tipo e conceito....... ...................................................22

2.2.3. O método tipológico e sua aplicação ao Direi to Tributário: divergências

doutrinárias e princípios subjacentes.............. .....................................................24

2.3. A tipicidade como corolário do princípio da le galidade e da segurança

jurídica ........................................... ..........................................................................28

2.3.1. A vertente formalista e a tipicidade como co nceito determinado e

fechado............................................ .........................................................................28

2.3.2. A vertente formalista afasta a adoção da clá usula geral antielisiva por

incompatibilidade com o ordenamento jurídico pátrio ........................................34

2.4. A alternativa teórica à corrente formalista do Direito Tributário Brasileiro 42

2.4.1. O constitucionalismo contemporâneo do Estado Democrático de Direito

e a tributação..................................... ......................................................................42

2.4.2. A compatibilidade da chamada cláusula geral antielisiva com a

Constituição Federal. As posições de Ricardo Lobo T orres, Marco Aurélio

Greco e Marciano Seabra de Godoi................... ....................................................46

2.4.3. A indeterminação dos tipos legais no Direito Tributário e sua

compatibilidade com o princípio da legalidade tribu tária ...................................55

3. SIMULAÇÃO NO DIREITO TRIBUTÁRIO................. ...........................................61

3.1. Introdução.................................... .....................................................................61

3.2. A teoria dos negócios jurídicos e sua influênc ia na conceituação da

simulação. As concepções subjetivista, objetivista e estruturalista e seus

respectivos conceitos de simulação ................. ....................................................62

3.2.1. A concepção subjetivista e o conceito de sim ulação................................62

3.3.2. A concepção objetivista e o conceito de simu lação..................................72

Page 10: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

3.3.3. A concepção estruturalista e o papel da vont ade e da causa no negócio

jurídico ........................................... ..........................................................................77

3.4. Em busca de um conceito de simulação: a orien tação teórica adotada pelo

Código Civil de 2002 ............................... ................................................................83

3.5. A distinção entre a simulação e figuras afins a partir da análise de casos

julgados pelo Conselho de Contribuintes do Ministér io da Fazenda.................90

3.5.1. Caso da subscrição de ações com ágio (também conhecida como

operação “casa-e-separa”).......................... ...........................................................92

3.5.1.1. Apresentação do caso ...................... .........................................................92

3.5.1.2. Resumo do processo........................ .........................................................92

3.5.1.3. Ementa .................................... ....................................................................94

3.5.1.4. Análise do julgado........................ ..............................................................95

3.5.2. Caso da incorporação às avessas: compensação de prejuízos fiscais .108

3.5.2.1. Apresentação do caso ...................... .......................................................108

3.5.2.2. Resumo do processo........................ .......................................................108

3.5.2.3. Ementa .................................... ..................................................................111

3.5.2.4. Análise do julgado........................ ............................................................111

3.5.3. Contrato entre pessoas jurídicas cujo objeto se refere à atuação pessoal

de um dos sócios ................................... ...............................................................117

3.5.3.1. Apresentação do caso ...................... .......................................................117

3.5.3.2. Resumo do processo........................ .......................................................117

3.5.3.3. Ementa .................................... ..................................................................120

3.5.3.4. Análise do julgado........................ ............................................................120

3.5.4. As controvérsias doutrinárias quanto ao enqu adramento de situações

concretas no conceito de simulação................. ..................................................129

4. O ARTIGO 116, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO TRIBUTÁ RIO NACIONAL

E O QUADRO LEGAL EM VIGOR PARA O CONTROLE DOS PLANE JAMENTOS

TRIBUTÁRIOS........................................ ................................................................131

4.1. Introdução.................................... ...................................................................131

4.2. Os princípios constitucionais da nova fiscalid ade .....................................133

4.3. O quadro legal em vigor para o controle dos pl anejamentos tributários..142

4.3.1. A distinção entre os casos de fraude penal e os de fraude à lei tributária,

para fins de aplicação do artigo 72 da Lei nº 4.502 /64 (BRASIL, 1964) ............142

Page 11: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

4.3.2. As principais posições doutrinárias a respei to do combate ao

planejamento tributário abusivo .................... ......................................................150

4.4. A existência de um princípio geral antielusivo implícito no ordenamento

jurídico brasileiro ................................ ..................................................................151

4.5. O alcance e a utilidade da norma prevista no p arágrafo único do artigo 116

do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966) ....... ...........................................154

5. CONCLUSÃO ....................................... ..............................................................159

REFERÊNCIAS.......................................................................................................164

Page 12: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

11

1. INTRODUÇÃO

Atualmente, a elusão fiscal ou o planejamento tributário abusivo constitui um dos

mais graves problemas enfrentados pelo Fisco. O combate a esse tipo de comportamento

do contribuinte é um dos objetivos mais assinalados das administrações tributárias, a

despeito de uma atuação legislativa ambígua e incoerente e da desconstrução intentada por

renomados doutrinadores dos meios de reação contra os procedimentos dos contribuintes

que tenham por objetivo criar condições individuais mais favoráveis àquelas fundamentadas

nos princípios da igualdade, da justiça e da capacidade contributiva na repartição da carga

tributária.

Autores renomados do Direito Tributário brasileiro propugnam apenas o combate à

evasão fiscal (sonegação) através da defesa de uma interpretação lógico-subsuntiva da lei -

considerada expressão máxima do Estado de Direito. Dessa forma, afasta-se qualquer

interpretação que possa abranger atos e negócios antielusivos, mas que resultem efeitos

econômicos idênticos àquelas situações previstas e que o Estado pode e deve tributar, em

atenção ao princípio da igualdade.

Aliada a essa construção doutrinária formalista, o ordenamento jurídico tributário

brasileiro prima-se pela complexidade, ambiguidade, lacunosidade e incoerência, que, longe

de observar o princípio democrático e seus subprincípios concretizadores, como o da

igualdade tributária (art. 150, II, CF) e o da capacidade contributiva (art. 145, § 1º, CF), ou

de assegurar a todos uma existência digna e a redução das desigualdades regionais e

sociais (art. 170, “caput” e inciso VII, CF), a referida legislação presta-se muito mais à

manutenção dessas desigualdades e à disseminação de técnicas de “planejamento

tributário” cada vez mais complexas.

Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de

Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas construções doutrinárias sobre o tema do

planejamento tributário partem de uma concepção da atual Constituição mais propriamente

social, tendo como pressupostos o princípio da justiça e o da igualdade na repartição da

carga tributária de acordo com a capacidade contributiva.

Vê-se, portanto, que o tema “planejamento tributário” envolve não só aspectos

propriamente jurídicos, mas também e, principalmente, aspectos econômicos e políticos, os

quais não são enfrentados apenas no Brasil. Em um contexto de economia globalizada e

altamente interdependente como a que vivemos hodiernamente, todos os países do mundo,

em maior ou menor grau, enfrentam o problema da evasão e da elusão fiscais.

Page 13: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

12

Para enfrentarem a concorrência cada vez mais acirrada e as exigências cada vez

maiores dos acionistas por lucros e dos consumidores por baixos preços, as corporações

vão buscar em outros países condições sociopolítico-econômicas que lhes permitam

segurança, mão-de-obra barata e tributação altamente favorecida.

Essa realidade foi muito bem exposta por Thomas L. Friedman, em seu livro O

Mundo é Plano: Uma Breve História do Século XXI. Segundo o mencionado autor, num

mundo globalizado, observa-se um conflito crescente entre os diversos papéis

desempenhados pelos homens na sociedade, seja como consumidores, funcionários,

cidadãos, contribuintes ou acionistas. Para melhor explicar esse conflito, o autor cita uma

matéria publicada em 1º de novembro de 2004, no The New York Times, na qual “cerca de

1,3 bilhão da receita de 256 bilhões de dólares do Wal-Mart em 2003 foi gasto com os

planos de saúde dos funcionários – 537 mil pessoas, ou cerca de 45% de sua força de

trabalho. Seu maior concorrente, porém, a Costco Wholesale, assumiu as despesas de 96%

dos seus funcionários detentores desse direito. [...] De acordo com o Times, os funcionários

em tempo integral do Wal-Mart ganham cerca de 1.200 dólares por mês, ou 8 dólares por

hora; a empresa exige ainda que arquem com 33% dos custos de seus benefícios [...]. A

mensalidade dos seus planos de saúde, para cobertura familiar, alcança os 264 dólares,

com despesas extras que podem chegar a 13 mil dólares em alguns casos – o que torna o

plano de saúde inviável mesmo para muitos dos funcionários do Wal-Mart com direito ao

benefício, relata o Times.” (FRIEDMAN, 2005, p. 246-247)

Prossegue a matéria relatando que uma pesquisa feita por órgãos públicos do estado

da Geórgia constatou que “mais de 10 mil filhos de funcionários do Wal-Mart estavam no

programa público de saúde infantil, a um custo anual de quase 10 milhões de dólares para

os contribuintes” e que “um hospital da Carolina do Norte descobriu que 31% de 1.900

pacientes que se disseram funcionários do Wal-Mart dependiam do Medicaid1, ao passo que

outros 16% não contavam com nenhum tipo de seguro.” (FRIEDMAN, 2005, p. 247-248).

Salienta ainda o autor que, para os analistas de Wall Street, a Costco possui custos

trabalhistas demasiado altos, o que fez sua margem de lucro antes dos impostos ficar em

apenas 2,7% da receita, menos da metade da margem de 5,5% do Wal-Mart. Ou seja, para

Wall Street a política do Wal-Mart é a considerada correta.

Prossegue o autor: “O comprador do Wal-Mart que vive dentro de cada um de nós

quer o menor preço possível, sem nenhum intermediário, gordura e entrave para atrapalhar.

E o acionista do Wal-Mart que há em nós quer que a empresa seja implacável na remoção

de atritos e obstáculos de sua cadeia de fornecimento e pacotes de benefícios dos

1 Programa de reembolso dos gastos de médicos e instituições hospitalares americanos com

pacientes sem condições de arcar com suas despesas de saúde.

Page 14: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

13

funcionários, a fim de engordar seus lucros. Já o funcionário do Wal-Mart em nós considera

abomináveis os pacotes de benefícios e remuneração oferecidos pela empresa aos seus

novatos. E o cidadão que todos somos sabe que, porque o Wal-Mart, a maior empresa dos

Estados Unidos, não cobre os cuidados de saúde de todos os seus funcionários, alguns

deles vão parar na emergência do hospital público local, e quem acaba pagando a conta é o

contribuinte.” (FRIEDMAN, 2005, p. 247-248).

Ao final, o autor nos questiona: “você prefere a abordagem do Wal-Mart ou a da

Costco?”. A resposta a essa pergunta será fundamental na agenda política e econômica

dos próximos anos e dependerá, essencialmente, da concepção ideológica que cada um

tem em relação ao papel do Estado. Mas não é o objetivo deste trabalho explorar as

variáveis econômicas determinantes para esse tipo de escolha. O que nos interessa é saber

se, do ponto de vista jurídico, a Constituição Brasileira atual, de alguma forma, faz uma

escolha entre essas abordagens, em termos das suas consequências para efeito do

estabelecimento de uma política fiscal, mais especificamente no que concerne ao controle

de legalidade dos atos dos contribuintes que se enquadram no conceito de elusão fiscal.

Na tentativa de dar uma resposta a essa questão, o presente trabalho propõe-se a

examinar o tema do planejamento tributário, seus limites e controle, expondo, no primeiro

capítulo, as construções e divergências doutrinárias sobre o tema, principalmente no que diz

respeito ao princípio da legalidade tributária, de modo a ressaltar seu novo perfil, que não

mais se coaduna com a noção clássica da legalidade tributária como sinônima de uma

“reserva absoluta de lei”.

No segundo capítulo, a proposta é a análise do conceito de simulação e de sua

vinculação estreita com as teorias em torno do negócio jurídico que, por sua vez, ligam-se

fundamentalmente às ideologias que influenciaram cada escola do pensamento jurídico. A

partir da análise de decisões do Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda,

atualmente Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, será apresentado o conceito de

simulação que, longe de ser um conceito fechado e de cunho classificatório, possui traços

característicos do tipo (em sentido próprio), como a abertura, a generalidade, a gradação, a

valoração e que o fisco, nos últimos anos, vem desconsiderando os atos abusivos de

planejamento tributário (os chamados atos elusivos), com base em um conceito alargado de

simulação.

No último capítulo, serão exibidos os princípios estruturantes da fiscalidade

contemporânea, com ênfase nos princípios da segurança jurídica, legalidade, igualdade e

capacidade contributiva, e de que modo esses princípios servem como fundamento para o

exercício do controle do planejamento tributário. Também será analisado o quadro legal em

vigor para o combate das técnicas artificiosas de redução ou eliminação da carga tributária,

Page 15: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

14

com destaque para a regra prevista no artigo 149, VII, do Código Tributário Nacional

(BRASIL, 1966) e para o parágrafo único do artigo 116 do aludido diploma legal, introduzido

no ordenamento jurídico brasileiro através da Lei Complementar nº 104/2001 (BRASIL,

2001), salientando a importância fundamental da jurisprudência (administrativa e judicial) no

controle dos atos exercidos pela Administração Tributária (no combate ao planejamento

tributário) e pelos contribuintes (na adoção das técnicas de planejamento tributário).

Page 16: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

15

2. TIPICIDADE, LEGALIDADE E CONTROLE DO PLANEJAMENT O TRIBUTÁRIO: PANORAMA DAS CORRENTES DOUTRINÁRIAS

2.1. Introdução

O primeiro capítulo do presente trabalho tem por objetivo traçar um panorama das

posições doutrinárias a respeito do princípio da legalidade tributária, de modo a expor seu

novo perfil, que não mais se coaduna com a noção clássica da legalidade tributária como

sinônima de uma “reserva absoluta de lei”.

Entre os anos setenta e meados dos anos noventa, a associação da legalidade em

matéria tributária a uma tipicidade fechada era uma idéia corrente e bastante difundida nas

obras dos grandes doutrinadores do Direito Tributário. Essa vertente, capitaneada por

Alberto Xavier, baseia-se numa visão positivista-formalista do Direito Tributário, fortemente

vinculada à jurisprudência dos conceitos, que defende a associação do princípio da

legalidade em matéria tributária a uma tipicidade cerrada ou fechada, a uma idéia de reserva

absoluta de lei em sentido formal.

De acordo com essa teoria, a reserva absoluta de lei em matéria tributária pressupõe

uma valoração definitiva da realidade pela lei, a qual será aplicada, tanto pela

Administração, quanto pelo Judiciário, de forma automática e subsuntiva (XAVIER, 2002, p.

18). Assim, “a aplicação da norma tributária a um caso concreto traduz-se num raciocínio

lógico subsuntivo que tem como premissa maior a norma tributária geral e abstrata, como

premissa menor a situação fática da vida apresentada ao órgão de aplicação do Direito e

como conclusão um juízo afirmativo ou negativo acerca da correspondência da referida

situação fática à hipótese normativa.” (XAVIER, 2002, p. 34).

Essa corrente de pensamento defende a idéia de que somente o Estado,

exclusivamente através do Poder Legislativo, pode estabelecer o Direito, sendo a atividade

interpretativa da lei restrita aos cientistas do Direito, os quais a exercem através de métodos

jurídicos lógico-formais, para afastar qualquer interpretação que possa deformar a vontade

do legislador prevista na lei. Nesse sentido, a lei passa a deter um caráter de supremacia e

de controle do poder estatal a serviço da proteção do direito de propriedade, da liberdade

econômica e da segurança jurídica.2

2 Torres (2005a, p. 409) leciona que “No Brasil o positivismo formalista é temporão. Afirma-se a partir

da publicação do Código Tributário Nacional (1965) e tem a nítida intenção de promover o predomínio da nascente burguesia brasileira mediante o apoio financeiro do Estado [...]. Enquanto na via da despesa pública incentiva-se o desenvolvimento econômico com a concessão de isenções e

Page 17: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

16

Para essa corrente de pensamento, ainda que não dito expressamente, o Direito é

compreendido, decididamente, como um sistema de regras, que vão se proliferando, de

forma casuística, com o objetivo de regular, detalhadamente, respeitando todas as

formalidades, cada nova circunstância. Essa corrente de pensamento centra o Direito no

indivíduo, conferindo-lhe direitos subjetivos absolutos 3, de contornos bem delineados,

que lhe garantam a posse e a propriedade dos seus bens ou a realização de ações com

ampla liberdade, que podem ser rigorosamente exigíveis e devem ser plenamente

respeitados e protegidos pelo Estado. Dessa perspectiva exclusivamente positivista, que

remonta ao Estado Liberal, o Direito Tributário seria orientado, em suma, pela exclusividade

da lei e pela aplicação lógico-subsuntiva desta.

Nas palavras do Professor Álvaro Ricardo de Souza Cruz:

Essa concepção se sustenta por meio da incorporação das noções clássicas (Locke e Montesquieu) da divisão qualitativa dos poderes, pela qual somente à legislação atribuir-se-ia um caráter de ação volitiva, ficando à jurisdição e a administração como ações meramente cognitivas. Logo, ao magistrado caberia tão-somente descobrir, por meios exegéticos, a vontade do legislador ou da própria lei, empregando-se, de modo geral, os métodos de Savigny, acrescidos da interpretação teleológica da obra de Von Ihering. A Teoria da Decisão positivista tem por fim a busca da certeza, da estabilidade e da predizibilidade. Perquire sentidos unívocos aos quais Wröblewski chama de “ideologia estática da interpretação jurídica.” O positivismo não distingue o texto da norma jurídica. É incapaz de vislumbrar a indissociação do texto com seu contexto de aplicação. Não percebe o caráter meramente alográfico do texto da norma, vez que o mesmo somente se completa pela fusão de horizontes que se produz entre o texto e o intérprete. (CRUZ, 2006, p. 2-3).

Essa corrente ganhou muitos adeptos e representou uma forte reação ao arbítrio da

Administração no tocante à tributação, na medida em que objetivava conter os desvios de

poder e efetivar a consolidação do Estado de Direito e dos seus princípios, dentre eles o do

rule of law4 (XAVIER, 2002, p. 17).

Entretanto, pensamos que essa teoria baseada no dogma da completude do sistema

jurídico através do legislador precisa ser revista. Isto porque, se realmente existisse uma

reserva absoluta de lei em matéria tributária, que fornecesse não somente o fim, mas

também o conteúdo da decisão do caso concreto, como defende Xavier (2002, p. 18), a

atuação da Administração seria totalmente previsível e infalível, na medida em que a lei teria

benefícios a mancheias, sob o influxo das idéias keynesianas, na vertente de receita procede-se à interpretação fundada na idéia de legalidade estrita e tipicidade fechada.” 3 Sobre o desenvolvimento do sistema de direitos subjetivos e a importância da contribuição de

Grócio e Hobbes sobre o tema, vide Michel Villey (2005, p. 656-720). 4 Segundo Gomes Canotilho (1995, p. 350), o princípio da rule of law tinha como características

marcantes a proibição do arbítrio, o princípio da “pré-determinabilidade” do direito penal, o princípio da legalidade da administração, a igualdade perante o direito, a independência dos tribunais e a proteção das liberdades civis e políticas.

Page 18: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

17

sempre uma única resposta – a resposta correta - cabendo ao Poder Judiciário tão-somente

assegurar a aplicação da lei naqueles casos em que a Administração se recusasse a aplicá-

la.

Todavia, esta não é a realidade que se apresenta. Como bem salienta o Professor

Álvaro Ricardo de Souza Cruz, “a reviravolta lingüística está aí já há quase um século para

mostrar que a procura por segurança jurídica traduzida por ‘certeza’ e univocidade de

sentidos jamais será bem sucedida nesses termos.” (CRUZ, 2007, p. 184). A dogmática

defendida pelos adeptos do positivismo-formalista, ainda fortemente aplicada e defendida na

seara do Direito Tributário brasileiro, como se depreende das obras de diversos

doutrinadores desse ramo, baseada no princípio da tipicidade fechada da lei tributária e

numa valoração definitiva da realidade pela lei, desconsidera o fato de que o legislador

tributário vem se utilizando cada vez mais de conceitos jurídicos indeterminados5, bem como

de dispositivos que conferem considerável margem de liberdade de apreciação à

Administração6, os quais demandam, para sua operacionalidade, a edição de inúmeras

normas regulamentares, resultando em um quadro jurídico incompatível com as especiais

exigências de determinação que caracterizariam a reserva absoluta de lei em matéria

tributária7.

Além disso, a teoria tradicional que defende a idéia da reserva absoluta de lei em

matéria tributária aliada à idéia de que o papel do juiz é o de assegurar somente a aplicação

da lei (a figura do juiz como simples “boca da lei”), desconsidera a relevante função de

controle da juridicidade atualmente exercida pelo Poder Judiciário em relação aos atos

administrativos discricionários. Isto porque, se é correto afirmar que a discricionariedade

confere à Administração certa margem de liberdade na aplicação da lei, não menos correto

é afirmar que tal discricionariedade não se confunde com o exercício arbitrário e imotivado

da vontade pessoal do agente fiscal e que o princípio da inafastabilidade do controle

5 A título exemplificativo podem ser citados os seguintes conceitos indeterminados largamente

utilizados pela legislação tributária: “proventos de qualquer natureza ” (art. 43, II, CTN); ”o momento em que se dará a sua disponibilidade ” (art. 43, § 2º, CTN); “[...] as demais receitas e os resultados positivos decorrentes de receitas não abrangidas pelo inciso anterior e demais valores determinados nesta Lei, auferidos naquele mesmo período.” (art. 25, II, da Lei nº 9.430/96). 6 “O Poder Executivo poderá reduzir ou restabelecer os percentuais [...].” (art. 24-A, da Lei nº

9.430/96); “A alíquota de contribuição de um, dois ou três por cento, destinada ao financiamento do benefício de aposentadoria especial ou daqueles concedidos em razão do grau de incidência de incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais do trabalho, poderá ser reduzida, em até cinqüenta por cento, ou aumentada, em até cem por c ento, conforme dispuser o regulamento , em razão do desempenho da empresa em relação à respectiva atividade econômica, apurado em conformidade com os resultados obtidos a partir dos índices de frequência, gravidade e custo, calculados segundo metodologia aprovada pelo Consel ho Nacional de Previdência Social .” (art. 10 da Lei nº 10.666/03). 7 Segundo Xavier (2002, p. 18), são corolários do princípio da reserva absoluta de lei em matéria

tributária os seguintes princípios: o princípio da seleção, o princípio do numerus clausus, o princípio do exclusivismo, o princípio da determinação ou da tipicidade fechada.

Page 19: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

18

jurisdicional constitui direito e garantia fundamental prevista no artigo 5º da Constituição

(BRASIL, 1988), o qual confere ao Poder Judiciário a competência para decidir se a

discricionariedade foi exercida dentro dos limites definidos pelos princípios explícitos e

implícitos informadores do ordenamento jurídico.

No Brasil, o processo de desmitificação do dogma da tipicidade fechada iniciou-se a

partir das obras precursoras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cuja

importância para o debate em torno do tema é inquestionável, na medida em que

representaram um novo paradigma até então não desenvolvido entre nós. A partir de então,

essa nova vertente do Direito Tributário brasileiro, impulsionada pela virada kantiana e

baseada nas idéias da jurisprudência dos valores, ganhou novos adeptos, dentre eles os

Professores Marciano Seabra de Godoi, Douglas Yamashita, José Marcos Domingues e

Ricardo Lodi Ribeiro.

O pensamento desses doutrinadores funda-se no novo paradigma surgido na Europa

a partir da década de 1970, denominado mais comumente de pós-positivismo, o qual retoma

o relacionamento entre Direito e moral e a noção de justiça, sob o influxo da releitura da

obra de Kant. Nesse contexto, dissemina-se a jurisprudência dos valores, que rompe com o

positivismo-formalista e sua sobrevalorização do indivíduo em detrimento dos valores de

justiça social, propugnando a superação do positivismo jurídico por meio de um modelo

hermenêutico baseado nos valores e nos princípios.

Dworkin (2002, p. 36-42), um dos expoentes do pós-positivismo, sustenta que “os

princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso e da

importância”, enquanto que o modelo do positivismo baseado no sistema de regras “nos

força a ignorar os papéis importantes desempenhados pelos padrões que não são regras”.

Ainda que seja muito forte a corrente positivista-formalista entre os doutrinadores do

Direito Tributário no Brasil, os quais se valem de argumentos completamente

descontextualizados8 e até mesmo caricaturais9, incompatíveis com a noção de Estado

8 Exemplo desta descontextualização é a vinculação das cláusulas gerais antielisivas com regimes

autocráticos de extrema-direita, de índole nazi-fascita, como faz Xavier em sua obra (2002, p. 153-154). O Professor Marciano de Seabra de Godoi ressalta a falta de rigor científico da vinculação entre a teoria da interpretação econômica do direito tributário e as ideias nazistas. Segundo Godoi, (2007, p. 257-264), a proposta inicial da chamada “escola da interpretação funcional” preconizava a interpretação e aplicação da hipótese de incidência tributária com os olhos postos nas relações econômicas privadas subjacentes aos atos e negócios jurídicos, privilegiando os propósitos empíricos das partes – intentio facti - e não as formas jurídicas adotadas. Tal proposta, nascida na Alemanha dos anos 20 do século passado, serviu como reação às condutas dos contribuintes mais ricos e bem assessorados que se utilizavam de interpretações extremamente formalistas para explorar, sem quaisquer limites, as lacunas da legislação tributária. Esclarece o referido Professor que esta ideia foi posteriormente apropriada pelo governo nazista alemão, como ocorreu com outros inúmeros institutos jurídicos. Godoi ensina, ainda, que tampouco se deve concluir que a teoria da consideração econômica era feita sob medida para atender aos interesses da voracidade arrecadatória do Fisco, uma vez que referida teoria leva à rejeição da intentio juris que não esteja adequada à finalidade

Page 20: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

19

Democrático de Direito, para defender a tese da inconstitucionalidade de qualquer espécie

de norma geral antielusiva e da supremacia do princípio da tipicidade fechada, não se pode

olvidar o fato de que a sociedade evoluiu e com ela a noção de Direito.

Se é correto afirmar que a Constituição Federal (BRASIL, 1988) assume os valores

da livre iniciativa e o princípio da propriedade privada como fundamentos da ordem

econômica (art. 170), não menos correto é a afirmação de que tais valores e princípios não

são pela Carta Magna absolutizados, mas inseridos em uma ordem econômico-social que

tem por fim assegurar a justiça social (art. 170, “caput”), bem como a construção de uma

sociedade livre, justa e solidária; a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução

das desigualdades sociais e regionais (art. 3º).

É nesse contexto que se pretende estabelecer a leitura e a análise da legalidade em

matéria tributária e da norma geral antielusiva do parágrafo único do art. 116 do Código

Tributário Nacional (BRASIL, 1966), bem como a análise de algumas decisões do Conselho

de Contribuintes do Ministério da Fazenda acerca do combate ao planejamento tributário

abusivo e da utilização de um conceito amplo de simulação, para coibir a elusão fiscal10.

Por oportuno, cumpre esclarecer que não é propósito do presente trabalho a defesa

de qualquer teoria que conceda amplos e irrestritos poderes ao Fisco; que amesquinhe a

função das regras jurídico-tributárias ou que defenda a cobrança de tributo por meio da

analogia. Não se pretende aqui defender nenhuma hermenêutica que despreze os direitos

individuais do cidadão-contribuinte ou princípios como o da segurança jurídica, ou que

defenda a utilização do tributo como instrumento de dominação pelo Estado. Mas não se

pode olvidar que os estreitos limites delineados pela hermenêutica jurídica tradicional não

mais se compatibilizam com as mudanças ocorridas na sociedade e no Direito nos últimos

tempos, e que o Direito Tributário, como ramo autônomo, ainda que para fins puramente

didáticos, não se encerra nas amarras dos métodos lógico-dedutivos de forte inspiração

formalista, como desejam fazer crer muitos dos teóricos do Direito Tributário brasileiro.

empírica ou ao business purpose, mesmo se a consequencia não é um aumento, mas sim uma diminuição da arrecadação. 9 Xavier (2002, p. 152) chega a afirmar que “a tributação com base em cláusula antielisiva é, em

suma, uma ‘tributação psicanalítica’ pela frustração de um desejo – o desejo do Fisco de que tivesse sido escolhido o caminho alternativo mais oneroso, mas que o particular não escolheu, por na sua autonomia da vontade ter preferido um caminho menos oneroso.” (destaques no original) 10

No presente trabalho, o termo elusão fiscal será utilizado para qualificar o planejamento tributário abusivo.

Page 21: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

20

2.2. O princípio da tipicidade no Direito Tributári o

2.2.1. A distinção entre tipo, tipicidade e tipificação

No Brasil, o princípio da tipicidade continua sendo invocado, erroneamente, como

sinônimo de conceito determinado e fechado. Segundo Derzi (2005, p. 262-263), essa

acepção foi introduzida nos países latino-americanos pelos juristas do Direito Penal, graças

a uma tradução errônea do termo alemão Tatbestand utilizado na obra de Ernst Von Beling.

Dessa forma, o princípio da tipicidade difundiu-se como sinônimo de Tatbestand, para

designar conceitos determinados e fechados do delito penal, em sentido diametralmente

oposto àquele inicialmente desenvolvido pela doutrina alemã. Daí a importância de

estabelecer, de início, as diferenciações entre tipo, tipicidade e tipificação, para se chegar à

noção correta dos termos tipo e conceito enquanto inseridos na Metodologia.

O tipo é a representação das situações concretas tidas como normais e

semelhantes, extraídas da realidade social, e que, por sua complexidade, não pode ser

enquadrado em uma definição rígida, em um conceito. Nas palavras de Torres (2008, p.

137), “o tipo representa a média ou a normalidade de uma determinada situação concreta,

com as suas conexões de sentido. Segue-se daí, que a noção de tipo admite as

dessemelhanças e as especificidades, desde que não se transformem em desigualdade ou

anormalidade.”

O tipo pressupõe abertura, aproximação com a realidade, evolução constante e

interação com os valores. Segundo ensina a Professora Misabel Derzi (2005, p. 267), são

notas próprias do tipo a fluidez em seus contornos; a indefinibilidade; a abertura real; a

aptidão para ordenar os fatos mediante comparação, sem a utilização de um seccionamento

rígido. Tudo isto faz com que o tipo esteja mais próximo da realidade do que o conceito

classificatório, o qual se caracteriza por limites bem definidos e notas rigidamente

assentadas. Salienta a Professora a incorreção da expressão tipo fechado, uma vez que por

definição, os tipos são sempre abertos. Afirma, então, que, “nesse contexto, a expressão

‘tipo fechado’ será uma contradição e uma impropriedade.” (DERZI, 2005, p. 260).

A abertura do tipo faz com que determinada situação possa ser enquadrada como

típica, mesmo que lhe faltem determinadas características que são verificadas nas demais

situações representativas da média ou da normalidade daquele tipo. O tipo não trabalha

com conceitos classificatórios que separam rigidamente as espécies e que identificam

precisamente o gênero. Ao contrário, o tipo tem como nota característica a gradação, ou

seja, pode ir do mais ao menos típico, até o limite do atípico, da anormalidade, sem que isso

Page 22: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

21

represente insegurança ou ausência de clareza do tipo, porquanto seus traços formam uma

estrutura que lhe confere totalidade e inteireza (DERZI, 2007, p. 96-98). Nas palavras da

mencionada Professora, “O conhecimento do modo de vinculação entre as características

de um tipo, sua combinação e interdependência é que levam à totalidade e clareza do tipo.

Essa estrutura ou inteireza são o sentido, a identidade do sentido do todo, que é de

fundamental importância para o reconhecimento do tipo.” (DERZI, 2005, p. 260).

O tipo é, portanto, uma estrutura aberta, flexível, graduável, dotada de sentido. O tipo

encontra-se entre o objeto (dado concreto) e o conceito abstrato classificatório, que possui

uma estrutura rígida, fechada, inflexível. Nesse contexto, pensamos que, no campo do

Direito, principalmente no do Direito Tributário, em que a dinâmica de sua aplicação exige

uma atualização constante, praticamente diária, o método tipológico é extremamente útil, na

medida em que a realidade jurídica, em constante mutação, não se afeiçoa à cristalização

em um conceito de classe. Antes pelo contrário, a realidade jurídica necessita desta

plasticidade, desta estrutura flexível, para sua representação.

A tipicidade, por sua vez, é a qualidade de que se reveste o tipo e necessária à sua

configuração. Entretanto, o princípio da tipicidade, no Direito, é utilizado em acepções bem

diferentes, até mesmo antagônicas.

Uma primeira acepção seria o uso do princípio da tipicidade como “instrumento de

ordenação científica do conhecimento” (DERZI, 2005, p. 261). Nesse sentido, o princípio da

tipicidade presta-se à análise de institutos jurídicos, utilizando do método tipológico, cujas

características principais, consoante já salientado, seriam a fluidez e a abertura, o que se

ajusta à concepção de Direito como sistema aberto, inacabado, flexível.

Em sentido oposto, a tipicidade é utilizada, incorretamente, no campo do Direito

Penal e no Direito Tributário como conceito determinado e fechado. Como dito antes, essa

acepção foi introduzida nos países latino-americanos pelos juristas do Direito Penal, graças

a uma tradução errônea do termo Tatbestand utilizado na obra de Ernst Von Beling. Em

razão disso, o estudo da tipicidade, como sistema fluido, flexível, aberto, restou

sobremaneira prejudicado nos países de língua portuguesa e espanhola. Tal acepção

errônea do princípio da tipicidade perdurou por muitas décadas e encontra eco até os dias

de hoje11.

No Direito Tributário Brasileiro, tal acepção ganhou força e se difundiu. Alberto Xavier

é o maior defensor do princípio da tipicidade como princípio da determinação, sendo

considerada sua obra Tipicidade da Tributação, Simulação e Norma Antielisiva, um clássico

11

Misabel Derzi, influenciada pela tese de doutoramento do Prof. Celso Cordeiro Machado, intitulada Limites e conflitos de competência tributária no sistema brasileiro (UFMG, Belo Horizonte, 1968), lança-se ao estudo do tipo no Direito Tributário, o que resultou, em 1988, no lançamento do clássico Direito Tributário, Direito Penal e Tipo, obra esta em que a Professora realça a complexidade do tema e chama a atenção para o sentido impróprio da tipicidade que foi introduzido no Direito Brasileiro.

Page 23: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

22

do tema. Torres (2008, p. 143-144) afirma que Alberto Xavier adotou o conceito de tipicidade

fechada baseado na afirmativa do jurista português Castanheira Neves, que teria, por sua

vez, se utilizado de uma versão antiga da obra do alemão Karl Larenz, quando este admitia

os tipos fechados. Entretanto, consoante esclarece Derzi (2005, p. 259), Larenz refez seu

ponto de vista a partir da terceira edição de sua obra e passa a afirmar que os tipos, por

definição, são sempre abertos.

A terceira acepção corresponderia ao sentido e função conferidos à praticidade ou

praticabilidade12. Segundo ensina Derzi (2005, p. 263-264), tal acepção é ainda utilizada na

teoria do Direito Público alemão, como técnica para simplificar e viabilizar a aplicação das

leis. Para redução dos custos na aplicação da lei, o princípio da praticidade leva à adoção

de presunções legais, as quais pressupõem, via de regra, uma anterior tipificação, com o

acolhimento do tipo médio, do caso padrão. Todavia, Derzi (2007, p. 357-362) critica tal

acepção, pois a praticidade age em sentido oposto ao tipo, adotando conceitos abstratos e

determinados. Em razão disso, conclui a Professora que tecnicamente não se poderia falar

em tipificação, mas em “conceitualização determinada e especificante” (DERZI, 2005, p.

263).13

Tipificação, por sua vez, é o processo de formação normativa do tipo e “significa

ordenar, separar do atípico, porém não guarda relação com individualizar nem diferenciar

ilimitadamente” (ZILVETI, 2008, p. 37). Tipificação é, pois, a atividade legislativa de criação

do tipo, consistente no recorte da realidade para a ordenação de situações semelhantes.

2.2.2. A diferenciação entre tipo e conceito

Derzi (2005, p. 264-266) aponta três posições existentes na Ciência do Direito a

respeito da relação entre tipo e conceito.

A primeira posição foi defendida por Hassemer e Arthur Kaufmann, que propunham a

aceitação ampla e irrestrita do pensamento tipológico no Direito, como método de 12

Sobre o princípio da praticabilidade tributária, vide a obra de Regina Helena Costa, Praticabilidade e Justiça Tributária: Exeqüibilidade de Lei Tributária e Direitos do Contribuinte (2007). 13 Vários exemplos podem ser extraídos da legislação tributária no que se refere à aplicação do princípio da praticidade. Dentre eles podemos citar o desconto simplificado do imposto de renda da pessoa física, que consiste em dedução de vinte por cento do montante dos rendimentos tributáveis recebidos no ano-calendário, dispensada a comprovação da despesa e a indicação de sua espécie, conforme prescreve o artigo 10 da Lei nº 9.250/95 (BRASIL, 1995), alterado pela Lei nº 11.482/2007 (BRASIL, 2007), e regulamentado pelo artigo 84 do Decreto nº 3.000/99 (BRASIL, 1999). Outro exemplo citado por Derzi (2007, p. 330) é o imposto de renda retido na fonte, o qual “supõe a ocorrência de fato gerador ‘futuro’, determinando-se a devolução do tributo antecipadamente recolhido a maior, caso não se confirme, ao final do exercício-base, o montante da ‘renda estimada’”.

Page 24: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

23

investigação jurídica. Por essa visão, a fluidez seria uma característica inata ao fenômeno

jurídico, pelo que o pensamento tipológico se estenderia a todos os campos do Direito.

Nesse contexto, conceito e tipo seriam dependentes um do outro, “uma vez que o conceito

carece da imprecisão terminológica do tipo, da mesma forma que o tipo precisa da

orientação descritiva conceitual.” (ZILVETI, 2008, p. 40).

A segunda corrente, defendida por Strache e Wolff, propunha uma posição

intermediária, com a aceitação parcial do pensamento tipológico no Direito, sem

desconsiderar o pensamento conceitual tradicional. Essa corrente ora identificava pontos em

comum entre o tipo e os conceitos abertos, ora diferenciava os conceitos abertos e

indeterminados dos tipos propriamente ditos.

A terceira corrente é justamente aquela que adota a concepção errônea do princípio

da tipicidade como sinônimo de Tatbestand e, em razão disso, rejeita por completo o

pensamento tipológico, para defender a adoção do pensamento conceitual tradicional no

Direito, afastando tipos fluidos e abertos em favor de conceitos fechados e determinados.

Para Derzi (2005, p. 265), tipo e conceito não podem ser diferenciados de forma

radical, por dois motivos. O primeiro é que tanto o tipo quanto o conceito são abstrações da

realidade. Como abstrações, devem colher o que há de semelhante, comum, repetitivo,

relevante, segundo o ponto de vista normativo. Não devem, portanto, colher o que

individualiza, o que confere concretude ao objeto. Identificada a abstração como ponto

comum entre tipo e conceito, a Professora salienta que a principal característica do tipo é a

abertura, sendo o mesmo rico em notas referenciais do objeto, comportando, dessa forma,

flexibilidade estrutural, o que não ocorre com o conceito. “Nele, no tipo, sempre há notas,

características, não necessariamente constantes em todos os objetos que abrange, mas que

permitirão distinguir o típico do atípico.” (DERZI, 2005, p. 265).

O segundo motivo é que os conceitos jurídicos, mesmo os mais abstratos, oferecem

um grau mínimo de referência à realidade, ou seja, de “tipificação”. Mesmo nos conceitos

indeterminados, cujas características principais são a vagueza e a carência de referência

em relação à realidade, é possível perceber um grau mínimo de tipificação.

Com apoio nos ensinamentos de Leenen, Derzi (2005, p. 265) esclarece que quanto

mais irrenunciáveis e necessárias se tornam determinadas características utilizadas na

determinação, mais perto do conceito fechado estaremos. Ao contrário, se as características

são renunciáveis e graduáveis, estaremos próximos do tipo. Para a mencionada Professora,

determinados ramos do Direito não se coadunam com normas fluidas, como é o caso do

Direito Penal e do Direito Tributário. Tais ramos exigiriam da Ciência do Direito a elaboração

de conceitos com poucas notas e estas devem ser fixas, rígidas, irrenunciáveis. Ao

contrário, no Direito Civil, no campo das obrigações contratuais, a referência a contratos

Page 25: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

24

típicos e atípicos reclamaria a elaboração de tipos, com notas referenciais ricas em detalhes

e fluida em seus contornos. Isso porque “os modelos legais de contratos são supletivos à

autonomia da vontade e podem ser substituídos, complementados ou inovados no tráfego

jurídico.” (DERZI, 2005, p. 267).

Em sentido contrário ao entendimento da mencionada Professora, Torres (2008, p.

138) assume uma posição que separa claramente o tipo do conceito jurídico, destacando a

inexistência de pontos comuns entre ambos. Para o mencionado jurista, o conceito jurídico

“é a representação abstrata de dados empíricos, podendo de certa forma violentar a

realidade”, enquanto “a formação dos tipos e a concretização dos princípios jurídicos

conduzem a uma forma específica de pensamento orientado pelos valores e pelo sistema.”

(TORRES, 2008, p. 138).

O certo é que tipo e conceito são movimentos em constante conflito no Direito e,

consoante a seguir será demonstrado, a adoção do pensamento tipológico ou do conceitual

dependerá dos princípios ou dos valores jurídicos que se pretende proteger. Assim é que

veremos como o tipo, em razão de suas características, serve mais de perto a princípios

como o da igualdade e da justiça fiscal, enquanto que o conceito se presta ao reforço do

princípio da segurança jurídica e, por conseguinte, da primazia da lei.

2.2.3. O método tipológico e sua aplicação ao Direi to Tributário: divergências doutrinárias e princípios subjacentes

No subitem 1.2.1. do presente trabalho, destacamos as três distintas acepções do

tipo dentro da ciência do direito, na linha do pensamento desenvolvido pela Professora

Misabel Derzi (2007), que chama a atenção para o fato de que o estudo do tipo não se

esgota nessas três acepções, mas, no campo jurídico, elas são capazes de revelar os

desdobramentos mais importantes relativos ao tema sob análise (DERZI, 2007, p. 363).

Segundo ainda a mencionada Professora, por detrás dessas distintas acepções do

tipo e do princípio da tipicidade (ordem fluida e transitiva; legalidade material rígida da

hipótese da norma; técnica de praticidade), há um pano de fundo comum, que é o

significado de tipo como uma forma básica de repetição de fenômenos semelhantes, sendo,

portanto, mais próximo da realidade e, por conseguinte, mais “concreto” do que o conceito

abstrato (DERZI, 2007, p. 366).

Nesse ponto, questiona-se: no Direito Tributário prepondera o pensamento tipológico

ou o conceitual? A que princípios e valores servem o tipo e o conceito abstrato

classificatório?

Page 26: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

25

Respondendo a essas questões, a Professora Misabel Derzi esclarece que “embora

os princípios abstratos, os conceitos obscuros e indeterminados existam em qualquer área

do direito, esses ramos (direito penal e tributário) não conhecem os tipos (a não ser

resíduos), nem tampouco as cláusulas gerais, que atuem em prejuízo do cidadão,

exatamente em razão da segurança jurídica.” (DERZI, 2007, p. 371).

Para Derzi (2005, p. 272), no Direito Penal e no Direito Tributário prevalece a

tendência conceitual classificatória, em razão da preeminência da segurança sobre os

demais princípios, admitindo-se o tipo apenas residualmente, “pois a segurança que leva à

estabilidade das relações jurídicas é condição da observância de outros relevantes

princípios constitucionais, como vedação do confisco, capacidade contributiva e igualdade,

como isonomia de tratamento.”

Ricardo Lobo Torres, por sua vez, defende a idéia de que “os conceitos

indeterminados são inevitáveis no direito tributário” (2008, p. 152) e, apoiando-se na

doutrina e jurisprudências alemãs, afirma que o princípio da determinação, segundo o qual

os conceitos jurídicos no direito tributário devem, sempre que possível, ser determinados,

trazendo toda a conformação do fato gerador, bem como a fixação da base de cálculo e

alíquota, deve ser compreendido em outros termos, ou seja, para a elaboração das normas

de direito tributário é suficiente uma determinação mínima, não sendo necessário o

esgotamento pelo legislador de todas as questões.14 Nesse sentido, esclarece que:

Por isso mesmo o direito tributário tem que conviver com a tensão entre os conceitos determinados e indeterminados. A cada dia cresce o número de conceitos indeterminados, desde a disciplina constitucional dos tributos (ex: renda, circulação de mercadorias, grandes fortunas, etc.) até as tentativas de fechamento dos conceitos no plano dos impostos individualmente considerados (no imposto de renda: que é rendimento, disponibilidade econômica e jurídica, renda derivada do mercado?). Em alguns casos é difícil distinguir o conceito indeterminado da cláu sula geral e até dos tipos . Alguns juristas chegam a assimilar o conceito indeterminado ao tipo, com o que se desvanece a riqueza do pensamento tipológico. O problema da clareza da norma também se aproxima da pergunta sobre a indeterminação. O direito tributário, por conseguinte, assiste à permanente tensão entre as técnicas de fechamento dos conceitos para fazer prevalecer o princípio da determinação (enumerações casuísticas e taxativas) e as de abertura, como o emprego dos conceitos indeterminados, das cláusulas gerais, cada vez mais comuns, e dos tipos. (TORRES, 2008, p. 153 – grifo nosso).

14

Amílcar de Araújo Falcão reconhecia a utilização de conceitos indeterminados pelo direito tributário, mas deixa claro que o conceito indeterminado não enseja uma opção ou liberdade de escolha entre várias soluções ou atividades possíveis. Segundo o doutrinador, “chama-se indeterminado o conceito, não porque ele seja indeterminável, mas porque, na norma em que está indicado, a determinação integral do seu conteúdo não foi possível, por isso que para tanto é necessário considerar dados empíricos, fáticos, técnicos ou científicos de que somente o intérprete e o aplicador, em cada hipótese concreta, disporão.” (FALCÃO, 1995, p. 61-62).

Page 27: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

26

A par disso, Ricardo Lobo Torres assinala que o direito tributário, embora

subordinado ao princípio da determinação, convive também com as chamadas cláusulas

gerais, citando, como exemplo, a eqüidade, prevista no artigo 172, IV, do Código Tributário

Nacional (BRASIL, 1966), que fundamenta a remissão do crédito tributário pela autoridade

administrativa (2008, p. 154), e com os tipos.

E o que distinguiria os conceitos indeterminados das cláusulas gerais e dos tipos?

Consoante se depreende da citação acima em destaque, Torres (2008) proclama a

dificuldade de distinção entre conceito indeterminado, cláusula geral e tipos. Todavia, a

Professora Misabel Derzi afirma que a diferença é acentuada e pode ser explicitada da

seguinte forma: os tipos se caracterizariam pela fluidez, renunciabilidade, riqueza de suas

notas relativamente às condutas ordenadas quando do processo de tipificação. Já as

cláusulas gerais “seriam meios legislativamente postos que, por sua vagueza, introduziriam

no sistema princípios tradicionalmente considerados metajurídicos.” (DERZI, 2005, p. 266).

Ao contrário dos tipos, que se aproximam da realidade, as cláusulas gerais, em razão de sua

vagueza, são carentes de determinação e pobres de conteúdo semântico. O ponto em

comum entre os tipos e as cláusulas gerais é que ambos se permitem abrir à realidade.

Todavia, “enquanto os tipos são abertos à realidade pela renunciabilidade de suas notas [...],

as cláusulas gerais são abertas em razão de sua vagueza.” (DERZI, 2005, p. 267-268).

Karl Engisch, citado por Torres (2008, p. 154), afirma que “as cláusulas gerais não

possuem, do ponto de vista metodológico, qualquer estrutura própria. Elas não exigem

processos de pensamento diferentes daqueles que são pedidos pelos conceitos

indeterminados [...]. De todo o modo, as cláusulas gerais aumentam a distância que separa

aqueles outros conceitos dos conceitos que lhes são correlativos: os conceitos

determinados [...].”.

Judith Martins Costa sustenta que “Enquanto os conceitos indeterminados se limitam

a reportar ao fato descrito na hipótese cujos efeitos já foram predeterminados

legislativamente, ‘na cláusula geral, além de o juiz averiguar a possibilidade de uma série de

casos-limites na fattispecie, deverá também determinar as conseqüências, os efeitos e sua

graduação’.” (apud DERZI, 2005, p. 269). Vale dizer: os conceitos indeterminados atuam por

meio da subsunção, esgotando-se a liberdade do aplicador na fixação da premissa, não

havendo, portanto, criação de direito por parte do aplicador, mas apenas interpretação. Já

nas cláusulas gerais, não haveria subsunção, mas verdadeira criação do direito, já que o

aplicador concorre ativamente na formulação da norma.

Nesse contexto, também as cláusulas gerais seriam distintas dos princípios. Com

base ainda no ensinamento de Judith Martins Costa, Derzi (2005, p. 268) esclarece que os

princípios são normas estruturais do sistema jurídico e podem estar implícitos no

Page 28: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

27

ordenamento, ao contrário das cláusulas gerais, que devem sempre ser expressas. Também

os princípios podem ser utilizados como fundamentos de outras normas, enquanto as

cláusulas gerais sempre reenviam o aplicador do direito a outras normas ou standards ou

tipos. Outra diferença é que as cláusulas gerais podem conter princípios, mas nem todo

princípio será, por isso, uma cláusula geral.

Ao final, Derzi (2005, p. 269) conclui que “de um lado encontram-se os tipos; de outro

lado, em conjunto, encontramos os princípios abstratos, os conceitos indeterminados e as

cláusulas gerais, cujos pontos comuns se opõem aos tipos. Tais pontos comuns residem na

vagueza e pobreza de conteúdo, de concreção, de aproximação aos dados da experiência,

enfim, de tipificação. Os tipos, ao contrário, são ricos de sentido e de conteúdo, porque as

normas os extraem da experiência, erigindo-os em modelos legais. Nesse aspecto,

distinguem-se vigorosamente dos princípios muito abstratos, dos conceitos indeterminados

e das cláusulas gerais. São com eles inconfundíveis.”15

Em suma: os autores mencionados concordam que, no direito tributário, como em

outros ramos do direito, são utilizados conceitos indeterminados e princípios abstratos.

Entretanto, Misabel Derzi defende ao máximo o fechamento do sistema, em respeito ao

princípio da segurança jurídica, razão pela qual devem prevalecer os conceitos abstratos

classificatórios naquele ramo jurídico. Já em relação aos tipos, a Professora somente os

admite no direito tributário de forma residual, rechaçando a possibilidade de utilização de

cláusulas gerais, em razão de sua vagueza.

Já Ricardo Lobo Torres afirma que a utilização dos conceitos indeterminados no

direito tributário é inevitável, sendo certo que em algumas situações torna-se difícil distinguir

o conceito indeterminado da cláusula geral e até dos tipos. Argumenta, por fim, que o direito

tributário deve conviver com as técnicas de fechamento dos conceitos e as de abertura,

decorrentes da utilização cada vez mais frequente dos conceitos indeterminados, das

cláusulas gerais e dos tipos.

15 Misabel Derzi (2007, p. 373) indica os modelos legais de contratos como exemplos de tipos. J. J. Gomes Canotilho (1995, p. 586) cita a “segurança jurídica”, o “sigilo”, a “segurança do Estado” como exemplos de conceitos indeterminados. Laura Beck Varela e Marcos de Campos Ludwig (2002, p. 778), com base no pensamento de Judith Martins-Costa, apontam a tríplice função atribuída à cláusula da boa-fé objetiva, como cânone hermenêutico e integrativo, fonte de deveres jurídicos e limite ao exercício de direitos subjetivos, Assim, a boa-fé objetiva pode funcionar como cláusula geral, fonte de criação de deveres para as partes na relação obrigacional (2002, p. 777), ou como princípio, segundo ensina Judith Martins-Costa (2002, p. 640).

Page 29: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

28

2.3. A tipicidade como corolário do princípio da le galidade e da segurança jurídica

2.3.1. A vertente formalista e a tipicidade como co nceito determinado e fechado

Neste ponto, já alcançamos uma visão de como tipo e conceito são movimentos em

conflito no Direito e que tal conflito reflete o modo de pensar o Direito e a Ciência do Direito.

Aqueles que consideram o Direito como um sistema aberto, caracterizado pela constante

mutação e comunicação com outros sistemas (econômico, político, sociológico, etc.), veem

no método tipológico um importante instrumento para o reforço de princípios como o da

igualdade e o da justiça social e de adaptação da estrutura normativa do ordenamento às

rápidas e constantes mutações socioeconômicas.

Por outro lado, aqueles que consideram o Direito como um sistema fechado, adotam

o método conceitual tradicional e se utilizam do conceito determinado e fechado

caracterizado por notas fixas, rígidas, irrenunciáveis, em que as espécies são classificadas

rigorosamente e de forma taxativa (numerus clausus), como instrumento de proteção da

segurança jurídica e da primazia da lei. Os defensores desse modo de pensar o Direito

consideram que o método tipológico enfraquece a segurança jurídica e a lei como fonte

exclusiva de criação do Direito. Esse método, portanto, é completamente avesso ao modo

de pensar fluido, renunciável e flexível dos tipos.

Também restou assentado que o termo “tipo” foi utilizado pelo Direito alemão na

metodologia jurídica, como “instrumento de ordenação científica do conhecimento” e

também como “meio de formação do próprio objeto de conhecimento, que é o Direito

vigente” (DERZI, 2005, p. 261). Entretanto, por obra dos juristas penalistas, o termo “tipo”

entrou no Direito luso-espanhol, equivocadamente, como conceito jurídico fechado. Essa

acepção foi muito difundida no Direito Tributário brasileiro, sendo a mesma adotada por

renomados tributaristas, dentre eles, Alberto Xavier e Sacha Calmon Navarro Coêlho.

No presente trabalho, a corrente doutrinária acima mencionada será denominada de

formalista, cujo traço característico é a sobrevalorização do princípio da segurança jurídica

em matéria tributária e a defesa intransigente da impossibilidade de adoção de uma cláusula

geral antielisiva pelo ordenamento jurídico pátrio. Ao examinar o modelo formalista, Godoi

(2005, p. 26, tradução nossa – destaques no original) ressalta que “Segundo o modelo

formalista, o ordenamento normativo é íntegro e coerente, a atividade de aplicação do

Direito se rege pela lógica do silogismo subsuntivo e a interpretação não supõe nenhuma

Page 30: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

29

carga criativa, pois, segundo o princípio da separação de poderes, só o legislador cria

Direito.”16

No Brasil, Xavier é considerado o maior representante dessa vertente, sendo sua

obra, indiscutivelmente, a mais desenvolvida do ponto de vista metodológico e axiológico,

influenciando, até os dias de hoje, doutrina e jurisprudência.

Segundo Xavier (2002, p. 17), o princípio da legalidade da tributação exigiria uma lei

revestida de características especiais, ou seja, uma lei qualificada. Por esta afirmativa, já se

percebe que o jurista se enquadra no modo de raciocinar por conceito, muito embora tenha

adotado uma acepção de tipo tecnicamente incorreta, resultante da tradução equivocada da

palavra Tatbestand para o espanhol.

A qualificação da lei a que se refere Xavier seria designada como reserva absoluta

de lei , o que significa “a exigência constitucional de que a lei deve conter não só o

fundamento da conduta da Administração, mas também o próprio critério de decisão do

órgão de aplicação do direito no caso concreto [...]” (XAVIER, 2002, p. 17), o que acabaria

por transformar o princípio da legalidade em princípio da “tipicidade” da tributação, ou seja, a

lei tributária não fornece apenas o fim, “mas também o conteúdo da decisão do caso

concreto, o qual se obtém por mera dedução da própria lei, limitando-se o órgão de

aplicação a subsumir o fato na norma, independentemente de qualquer valoração pessoal.”

(XAVIER, 2002, p. 18).

Vê-se que Alberto Xavier pensa o Direito e, em especial, o Direito Tributário através

de conceitos rígidos, inflexíveis, irrenunciáveis, não permeáveis às mutações sociais. Para

Xavier, o Direito é um sistema fechado e assim deve permanecer, sob pena de ruir toda a

estrutura em que se assentam os direitos e garantias individuais, protegidos pelos princípios

da autonomia da vontade, da livre iniciativa e da segurança jurídica.

Segundo Xavier (2002), no Direito Tributário, que se afirmou a partir do século XVIII,

deve predominar, mesmo no século XXI, a visão liberal-individualista-normativista do Direito.

Nessa linha de raciocínio, Xavier (2002, p. 26) reconhece que todo conceito pressupõe uma

indeterminação imanente, mas em razão do princípio da tipicidade ou da reserva absoluta

de lei, a lei tributária não pode se utilizar de conceitos indeterminados ou de cláusula geral,

mas apenas de conceitos determinados (aqueles que contenham um grau mínimo de

indeterminação), ou seja, aqueles que não afetem a segurança jurídica dos cidadãos.

Para o mencionado autor (2002, p. 21-22), a consagração do princípio da tipicidade

da tributação encontra-se na alínea “a” do inciso III do art. 146 da Constituição Federal

(BRASIL, 1988), à qual impõe que a lei complementar deve estabelecer normas gerais em

16

Según el modelo formalista, el orden normativo es íntegro y coherente, la actividad de aplicación del Derecho se rige por la lógica del silogismo subsuntivo y la interpretación no supone ninguna carga creativa, pues, según el principio de separación de poderes, sólo el legislador crea Derecho.

Page 31: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

30

matéria de legislação tributária, especialmente sobre a definição de tributos e de suas

espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados na Constituição, a dos

respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes. Explica o autor (2002, p. 23-

24) que a lei complementar, cujo caráter é meramente interpretativo, tem o objetivo de

encapsular o núcleo essencial da Constituição num conceito determinado, ou seja, o de

enquadrar, em conceitos determinados, os fatos geradores, bases de cálculo e

contribuintes, cabendo à lei ordinária a função de atuar sempre dentro dos parâmetros da lei

complementar.

Preocupa-se o autor em traçar uma relação estreita entre os princípios da tipicidade

e da segurança jurídica, ao argumento de que a função de criar ou aumentar tributos é

monopólio do Poder Legislativo, e que os Poderes Judiciário e Executivo não podem exercer

tal atribuição, ainda que de forma indireta ou oblíqua. Nas palavras do autor, “este

monopólio poderia ser destruído, operando-se uma ‘inversão de competências’ se a lei

pudesse utilizar cláusulas gerais, conceitos indeterminados e faculdades de delegação que

abririam as portas para que os órgãos de aplicação do direito pudessem ‘criar’ ou ‘aumentar

tributos’, pelo exercício do poder regulamentar, da aplicação analógica e do poder

discricionário.” (XAVIER, 2002, p. 26). O princípio da tipicidade teria por objetivo então a

proteção da segurança jurídica e a garantia da separação de poderes e poderia ser

traduzido na imperiosa necessidade de formulação das leis de modo casuístico e de forma

clara e precisa, com a proibição de utilização de cláusulas gerais, conceitos indeterminados,

de normas de reenvio17 e da analogia.

Para o mencionado Professor, o princípio da tipicidade da tributação consiste em

verdadeira garantia, um direito subjetivo de caráter instrumental, que visa a garantir o direito

de propriedade e a liberdade econômica, direitos fundamentais, consagrados na

Constituição Federal, cujo corolário é o princípio da liberdade de contratar.

Nesse contexto, afirma Xavier (2002, p. 32) que enquanto o princípio da tipicidade

protege a propriedade e a liberdade econômica, concedendo garantias ao contribuinte para

exercer sua liberdade fiscal em face do “poder compressor do fenômeno tributário”, ao

Estado compete o dever de garantir a continuidade destes direitos fundamentais

(propriedade e liberdade econômica), mantendo-se distante da área reservada ao particular

para o exercício de sua liberdade fiscal, correspondente a uma conduta omissiva na

tributação por parte do Estado. Vale dizer: o particular tem um “direito subjetivo defensivo”

de não sofrer nenhuma das agressões não permitidas pela Constituição, como a utilização

17

Segundo Xavier (2002, p. 19 e 25) a “proibição de reenvios, remissões ou delegações para fontes infralegais” decorrente do princípio do exclusivismo, “não admite quaisquer elementos adicionais não completamente contidos na descrição normativa”, impedindo a utilização de métodos indiretos de criação do Direito Tributário pelos Poderes Executivo e Judiciário.

Page 32: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

31

das cláusulas gerais, dos conceitos indeterminados, dos regulamentos autônomos, das

delegações legislativas, da analogia, do poder discricionário, os quais não se coadunam

com o método de aplicação lógico-subsuntivo que prevalece no Direito Tributário.

Para Xavier (2002, p. 36-37), este método consiste em um processo interpretativo da

norma tributária dividido em três etapas. A primeira etapa corresponde à interpretação do

conceito de ato ou negócio jurídico consagrado na lei. A segunda na interpretação do ato

concreto, ou seja, na determinação do significado e alcance da declaração de vontade. Por

fim, o processo estaria completo com a qualificação, ou seja, operação que consistiria na

subsunção do caso concreto ao conceito utilizado pela norma.

Todo esse processo interpretativo, que deve ser realizado por métodos jurídicos,

resulta no fato de que o Fisco deve se vincular aos efeitos jurídicos dos atos ou negócios

realizados pelos contribuintes, em respeito ao princípio da verdade material, restando-lhe

apenas o “poder-dever” de requalificar o ato jurídico se o contribuinte, por engano, alterou o

“nomem iuris” do negócio. Exemplo: se o contribuinte chamou de mútuo uma operação em

que não há a obrigação de restituir. Desse processo interpretativo que o mencionado autor

(2002, p. 39) designa de raciocínio lógico-subsuntivo pode resultar que o ato ou negócio

jurídico se subsuma no tipo abstrato constante da lei ou não. Neste segundo caso, o ato ou

negócio jurídico é considerado um fato extratípico, inidôneo para produzir os efeitos da

norma tributária, estando, portanto, fora do alcance do poder do Estado.

Alerta o supracitado autor (2002, p. 40-45) que o princípio da legalidade vem

sofrendo tentativas de agressões de forma direta e indireta em todas as etapas do processo

interpretativo em questão denominado “raciocínio lógico-subsuntivo”. Tais agressões

consistiriam na defesa da interpretação econômica, que atribui maior relevância aos efeitos

econômicos dos conceitos e dos atos ou negócios jurídicos, e na integração pela via

analógica, através da qual um ato extratípico poderia vir a ser tributado, caso seja

considerado uma lacuna da lei tributária. E é nesse contexto que o autor analisa o tema das

cláusulas gerais antielisivas, para concluir que as mesmas seriam então a tentativa de

tributação analógica de fatos extratípicos.

Outro não é o pensamento de Sacha Calmon Navarro Coêlho, para quem o princípio

da legalidade exige, em matéria tributária, a reserva absoluta de lei formal, como forma de

proteção da segurança jurídica e da confiança na lei fiscal, já que as concepções

contemporâneas do Estado Democrático de Direito têm esmaecido a força desse princípio,

propiciando à Administração intervir, com abuso de poder, na esfera de liberdade do

cidadão-contribuinte. Assevera o Professor que a proteção desse princípio encontra-se a

cargo dos juízes, “até porque a Constituição de 1988 consagra profusamente a supremacia

do Judiciário em prol da cidadania.” (COÊLHO, 1999, p. 198).

Page 33: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

32

Pensamos que essa leitura da Constituição Federal demonstra como é arraigada no

pensamento jurídico-tributário do Brasil a concepção de que os direitos fundamentais se

esgotam nos direitos subjetivos de liberdade voltados para a defesa contra a ingerência do

Estado, cabendo ao Judiciário apenas e tão-somente a garantia dos direitos fixados no

ordenamento, através da aplicação das leis aos casos concretos, mas sem que isso

signifique agir de forma a aproximar a norma da realidade18. Para essa corrente, deve ser

afastado qualquer método que não seja o conceitual formalista. Tanto assim, que o citado

Professor declara que a lei fiscal deve conter todos os elementos estruturais do tributo e,

portanto, a norma tributária deve estar prevista na lei, de forma inequívoca, já que qualquer

vagueza ou indeterminação na lei fiscal abriria espaço para que o Poder Executivo pudesse

interpretá-la (interpretação aplicativa do Executivo) ou integrá-la, via analogia.

Coêlho adota o termo tipicidade (em seu sentido impróprio) para designar a precisão

conceitual da lei tributária. Na visão do Professor, o princípio da tipicidade é o mesmo que

princípio da legalidade em sentido material, pois diz respeito ao conteúdo da lei, exigindo do

legislador tributário a descrição rigorosa do fato gerador e de todos os deveres daí

decorrentes (sujeitos ativos e passivos, bases de cálculo, alíquotas, penalidades, os casos

de exclusão, suspensão e extinção do crédito tributário). E mais: segundo o mencionado

autor, a tipicidade em matéria tributária é ainda mais rígida do que a tipicidade do Direito

Penal. Neste, o princípio nullum crime nulla poena sine lege exige que o delito decorra de

uma tipificação normativa precisa, mas permite ao juiz a dosimetria da pena, quando da

prolação da sentença. Essa relativa liberdade não é aceita na seara tributária, uma vez que

“a idéia tipificante, abomina o concurso da Administração e do Judiciário na estruturação da

lei fiscal.” (COÊLHO, 1999, p. 200 – destaques no original). É a chamada tipicidade

cerrada19.

18

Segundo Azevedo (2007), a diferença entre as atividades exercidas pelo legislador e pelo juiz, do ponto de vista das fontes constitutivas do direito objetivo, não é tão radical, como faz crer a doutrina tradicional. Para o mencionado autor, tanto o legislador quanto o juiz são simultaneamente criadores e aplicadores do direito objetivo, diferindo a atividade de um e de outro somente no tocante ao grau com que a executam. Também esta é a opinião de Kelsen (2006, p. 264), para quem “Uma decisão judicial não tem, como por vezes se supõe, um simples caráter declaratório. O juiz não tem simplesmente de descobrir e declarar um direito já de antemão firme e acabado, cuja produção já foi concluída. A função do tribunal não é simples ‘descoberta’ do Direito ou júris-‘dição’ (‘declaração do Direito) neste sentido declaratório. A descoberta do Direito consiste apenas na determinação da norma geral a aplicar ao caso concreto. E mesmo esta determinação não tem um caráter simplesmente declarativo, mas um caráter constitutivo.” 19 O professor Sacha Calmon enaltece a produção doutrinária brasileira a respeito do princípio da legalidade da tributação, salientando que em nenhum lugar do mundo o referido tema foi tratado com tanta profundidade como no Brasil e que, se não fosse a língua portuguesa, esta escola teria hoje renome internacional. Nem poderia ter sido diferente. Afinal, o pensamento jurídico no Brasil nunca conheceu, até o recente constitucionalismo, ideias que não fossem as vinculadas ao pensamento liberal-formalista. Por isso mesmo, não surpreende o fato de que os tributaristas brasileiros tenham se apegado de tal forma ao chamado princípio da “tipicidade cerrada”.

Page 34: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

33

Em suma: para os Professores Alberto Xavier e Sacha Calmon Navarro Coêlho, o

princípio da tipicidade, extensão do princípio da legalidade material, determina que somente

a lei pode estabelecer todos os elementos estruturantes dos tributos, nos termos do artigo

97 do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966). Isso significa dizer que se a lei foi omissa,

descabe ao administrador ou ao juiz integrá-la, suprindo a lacuna por analogia. Ao contrário,

deve o juiz decretar a inaplicabilidade da lei por insuficiência normativa, servindo o princípio

da tipicidade como instrumento de controle do Poder Executivo e do Poder Legislativo pelo

Poder Judiciário.

Como já salientado linhas atrás, coube à Professora Misabel Derzi esclarecer a

impropriedade e a contradição do termo “tipo fechado”, uma vez que o tipo é

necessariamente aberto. Entretanto, como bem salienta Ricardo Lobo Torres, “a concepção

de Misabel Derzi, do ponto de vista substancial, se aproxima da de Alberto Xavier, embora

tenham esses autores desenvolvido argumentos diferentes.” (TORRES, 2008, p. 146). Isso

porque a Professora Derzi defende o fechamento operacional do sistema, ao argumento de

que tanto no Direito Penal, quanto no Direito Tributário deve prevalecer a tendência

conceitual classificatória, ante a preeminência do princípio da segurança jurídica sobre os

demais princípios, como o da igualdade e justiça social. Nas palavras da autora, “a decisão

entre tipo e conceito depende, então, não só da distinção entre uma e outra forma de

pensamento, mas, em especial, da compreensão em torno daqueles princípios a que

servem, daqueles valores que, no Direito Tributário, por detrás deles subjazem.” (DERZI,

2005, p. 271-272).

Assim como Sacha Calmon, a Professora ressalta que, no Direito Penal, verificam-se

resíduos tipológicos no que concerne à pena e sua graduação, bem como em relação às

causas excludentes da ilicitude. No Direito Tributário, este resíduo tipológico é também

observado em espécies tributárias que admitem a alteração de suas alíquotas por ato do

Poder Executivo (imposto de importação e exportação, imposto sobre produtos

industrializados e sobre operações de crédito, câmbio, títulos e valores mobiliários), com

vistas a alcançar as metas de política econômica, cambial e aduaneira. Mas salienta que, no

Direito Tributário, a admissão de tipos só se dá em caráter incipiente, na medida em que

deve prevalecer neste ramo do Direito a segurança necessária à estabilidade das relações

jurídicas.

Com apoio nas lições de Luhmann, Derzi (2005, p. 272-278) sustenta que o sistema

jurídico é fechado e que os princípios da segurança, da confiança e da boa-fé objetiva são

estabilizadores, ou seja, mecanismos de acoplamento e desacoplamento estrutural, através

dos quais o Direito pode cumprir sua função essencial que é a de atender às expectativas e

Page 35: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

34

sustentar-se na previsibilidade e na estabilidade, pelo que cabe ao sistema jurídico

diferenciar-se do ambiente mutante e complexo que o circunda.

Vários, portanto, são os pontos comuns relativamente ao pensamento dos três

doutrinadores: a preeminência do princípio da segurança jurídica; a exigência de lei formal e

material para a instituição ou majoração de tributos; proibição de analogia e, por

conseguinte, das presunções; rejeição de conceitos indeterminados, de cláusulas gerais e

de tipos no Direito Tributário; prevalência do método conceitual classificatório; enfim, o

Direito Tributário, do ponto de vista desses doutrinadores, deve ser visto como um sistema

rigorosamente fechado, previsível e estável.

2.3.2. A vertente formalista afasta a adoção da clá usula geral antielisiva por incompatibilidade com o ordenamento jurídico pátrio

Após abordar o princípio da legalidade e da tipicidade no Direito Tributário, sob a

ótica da vertente formalista, passa-se à análise das concepções dessa corrente do

pensamento jurídico no que tange à chamada cláusula geral antielusiva prevista no

parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966), introduzida

pela Lei Complementar nº 104, de 10 de janeiro de 2001 (BRASIL, 2001).

Xavier conceitua as cláusulas gerais antielusivas como “normas que têm por objetivo

comum a tributação, por analogia, de atos ou negócios jurídicos extratípicos isto é, não

subsumíveis ao tipo legal tributário, mas que produzem efeitos econômicos equivalentes aos

dos atos ou negócios jurídicos típicos sem, no entanto, produzirem as respectivas

conseqüências tributárias.” (XAVIER, 2002, p. 85, destaque no original).

O mencionado autor assevera que a norma prevista no parágrafo único do art. 116

do Código Tributário Nacional explicita, na realidade, uma “cláusula antissimulação”, que já

vem sendo adotada pelo Fisco e pela jurisprudência, conforme previsão contida no artigo

149, VII, do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966). Para o autor, a adoção de uma

cláusula geral antielisiva pelo ordenamento jurídico pátrio é incompatível com a ordem

constitucional, por ofensa aos princípios da legalidade e da tipicidade da tributação, da

segurança jurídica, da separação de poderes e da liberdade de iniciativa20.

20

Destaca-se mais uma vez a concepção que se desvela por detrás deste argumento e que pode ser resumida na ideia da prevalência da autonomia privada sobre a esfera pública, típica do pensamento liberal. Conforme esclarece o Professor Álvaro Ricardo de Souza Cruz, para os defensores deste pensamento, “o Estado é visto como uma entidade programada para respeitar tais direitos e, sendo assim, garantir a intangibilidade da liberdade desses mesmos indivíduos.” (CRUZ, 2007, p. 346).

Page 36: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

35

Em defesa da tese da inconstitucionalidade da norma geral antielisiva, Xavier (2002,

p. 111) sustenta que a Constituição Federal não estabelece e não permite estabelecer

restrições às garantias individuais que protegem o direito à propriedade e à liberdade

econômica, a qual inclui a liberdade de contratar. Com base na teoria da “reserva de

Constituição originária”, o autor proclama que o princípio da legalidade da tributação (é

vedado exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça) e a liberdade de contratar

incluem-se entre os direitos e garantias individuais, que representam verdadeiros limites

materiais ao poder constituinte derivado, nos moldes preconizados pelo art. 60, § 4º, da CF,

razão pela qual as normas gerais antielisivas não podem ser adotadas nem mesmo

mediante emenda constitucional, por configurarem restrições aos direitos e garantias

individuais protegidos pela Constituição (2002, p. 112-113).

Aprofundando um pouco mais, Xavier (2002, p. 93-96), a partir de uma análise

comparativa das doutrinas que defendem as chamadas leis antielisivas, constata a

existência de três pressupostos cumulativos de aplicação das chamadas cláusulas

antielisivas, a saber: a) a liberdade de escolha de um ato ou negócio jurídico não tipificado

(ou tipificado de forma menos onerosa) pela norma tributária, para a obtenção de um

resultado econômico equivalente ao do ato ou negócio jurídico previsto na hipótese de

incidência da regra tributária21; b) o objetivo único de eludir a aplicação da lei tributária

(subtrair o ato praticado do âmbito de aplicação da regra jurídico-tributária); c) a

inusualidade do modelo negocial adotado pelas partes (utilização de negócios jurídicos

atípicos).

Portanto, somente seriam passíveis de desconsideração os atos ou negócios

jurídicos que preenchessem de forma cumulativa todos os pressupostos acima indicados.

Na ausência de apenas um dos pressupostos, o ato ou negócio jurídico deve ser

considerado excluído do âmbito de aplicação das normas antielisivas.

Nesse ponto, Xavier tece interessante crítica aos doutrinadores e às leis gerais

antielisivas que se apóiam sobre o tripé “equivalência dos efeitos econômicos -

exclusividade ou preponderância dos fins elisivos - anormalidade do modelo negocial

escolhido”, para caracterizar o ato ou negócio jurídico sujeito ao âmbito de aplicação da

norma geral antielisiva. Segundo o autor, tais doutrinadores e leis, ao sustentarem a

ocorrência cumulativa de tais pressupostos, afastam-se dos fundamentos jusfilosóficos que

inspiram a adoção de tais normas (os princípios da igualdade e da capacidade contributiva),

na medida em que não conferem tratamento igualitário para todos os atos de efeitos

21

A Lei Geral Tributária portuguesa dispõe em seu art. 38, nº 2, que: “são ineficazes os atos ou negócios jurídicos quando se demonstre que foram realizados com o único ou principal objetivo de redução ou eliminação dos impostos que seriam devidos em virtude de atos ou negócios jurídicos de resultado equivalente, caso em que a tributação recai sobre estes últimos.”

Page 37: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

36

econômicos equivalentes, independentemente do fim visado e do modelo negocial adotado,

o que acaba por conferir tratamento discriminatório entre contribuintes, submetendo apenas

uns e não outros à norma geral antielisiva, “embora todos reveladores de capacidade

contributiva equivalente.” (XAVIER, 2002, p. 97). Ainda segundo o mencionado autor, ao

permitirem este tratamento discriminatório, as normas gerais antielisivas se distanciariam de

sua função estritamente fiscal, para assumirem uma função essencialmente sancionatória.

A Professora Misabel Derzi concorda com Xavier quanto à inexistência no Direito

positivo nacional de uma cláusula geral antielisiva. Argumenta que a Constituição Federal,

através do art. 150, I, consagra o princípio da legalidade, tanto em seu aspecto material,

quanto formal, como uma limitação ao poder de tributar dos entes políticos e que no Direito

Tributário, assim como no Direito Penal, “são prevalecentes os princípios de segurança,

certeza e previsibilidade” (DERZI, 2002, p. 224).

Nesse contexto, sustenta que “o parágrafo único do art. 116 do CTN não consagra

cláusula geral antielisiva a coibir o planejamento tributário, nem tampouco introduz a

interpretação econômica” (DERZI, 2002, p. 230). Para a Professora,

Insere-se o dispositivo comentado em um contexto jurídico que nos fornece, indubitavelmente, o seu verdadeiro sentido e alcance. A segurança jurídica se assenta na legalidade formal e material (especificidade conceitual determinante ou tipicidade), consagradas nos artigos 5º e 150, I, da Constituição Federal; reforçadas pela exclusividade da lei que concede subsídio, isenção ou outro benefício fiscal (artigo 150, § 6º da CF/88); minuciosamente explicitadas pelo artigo 97 do Código Tributário Nacional; confirmadas e reconfirmadas pela proibição da analogia (artigo 108, § 1º) e, conseqüentemente, das presunções; pela rejeição da interpretação econômica (artigo 110) e da cláusula geral antielisiva (artigo 109); pelo caráter estritamente vinculado dos atos administrativos de cobrança do tributo (artigo 3º e 142), etc.(DERZI, 2007, p. 302).

O referido dispositivo, do ponto de vista da renomada jurista, teria uma aplicação

muito restrita, “conformando-se a sistematizar os procedimentos já incorporados, de longa

data, à prática administrativa e aceitos pela doutrina e pela jurisprudência” (DERZI, 2002, p.

212), no combate à simulação fraudulenta e à sonegação. “O planejamento empresarial,

como redução dos custos da atividade econômica, é direito do contribuinte, que não pode

ser reduzido por interpretações analógicas e presunções, não previstas em lei.” (DERZI,

2002, p. 232).

A mencionada Professora sustenta, ainda, que no Direito Tributário, não há espaço

para a chamada interpretação econômica,22 pois quando a Constituição se utiliza de um

22

“A chamada interpretação segundo o critério econômico consiste em apreender o sentido das normas, institutos e conceitos jurídicos, de acordo com a realidade econômica subjacente por detrás das formas jurídicas. Desenvolveu-se plenamente na Alemanha, em distintos períodos, mas serviu

Page 38: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

37

conceito do Direito Privado para delimitar ou assegurar a discriminação de competência, a

interpretação deve se realizar conforme a conotação que o instituto ou forma do Direito

Privado tem em sua ciência jurídica particular, ressalvada a alteração oposta pelo legislador

tributário com base no art. 109 do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966)23, sendo

vedado ao intérprete ou legislador ordinário alterar o sentido e o alcance deste instituto ou

forma, sob pena de ofensa ao pacto federativo e à discriminação de competência traçada no

texto constitucional. “Sendo assim, o art. 110 do CTN24 determina a cristalização da

denotação e da conotação jurídicas daqueles institutos, conceitos e formas, vedando-se ao

legislador tributário a alteração de sentido que é própria do Direito Privado.” (DERZI, 2002,

p. 221).

Sacha Calmon, com apoio nas lições de Ives Gandra, Sampaio Dória, Alberto Xavier,

Gerado Ataliba e Ulhôa Canto, também considera inconstitucional o parágrafo único do art.

116 do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966), introduzido pela Lei Complementar nº

104, de 2001 (BRASIL, 2001), na medida em que o “exclusivismo da lei obsta a

interpretação econômica a que visa a ‘norma geral antielisiva’” (COÊLHO, 2002, p. 304) e

que a própria redação conferida ao dispositivo revela que se trata de norma que visa a coibir

a evasão fiscal e não a elisão fiscal. Além disso, preconiza que o direito fundamental da livre

iniciativa, da auto-organização e da liberdade de contratar não pode sofrer nenhuma

limitação e que a importação de teorias européias (como a da fraude à lei, abuso de direito e

abuso de formas), permitiria a cobrança de tributos por analogia, o que provocaria

insegurança jurídica, com reflexos negativos sobre a economia do País (elevação do risco-

País e menor crescimento do PIB)25.

Sacha Calmon Navarro Coêlho centra sua tese na inaplicabilidade da teoria da

interpretação econômica no Direito Tributário Brasileiro, teoria esta, que, para o mencionado

Professor, serviria de fundamento para a adoção das cláusulas gerais antielisivas, na

medida em que permitiria ao Fisco desconsiderar os atos praticados pelos contribuintes,

cujo único objetivo seja o de economizar tributo.

em certa época, ao desenvolvimento do fiscalismo e da insegurança jurídica, ao direito do Reich fascista e totalitário.” (DERZI, 2002, p. 220). 23

“Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários.” 24

“Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.” 25

Chama atenção o fato de que o professor Sacha Calmon faça referência aos reflexos da adoção de uma cláusula geral antielisiva sob o aspecto econômico. Trata-se de um argumento que não condiz com sua visão do Direito como um sistema fechado e, portanto, dissociado de qualquer interpretação que leve em consideração o aspecto econômico.

Page 39: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

38

Assevera Coêlho que a teoria da interpretação econômica é muito defendida pelo

Fisco para ampliar a tributação, mas que a substituição da interpretação jurídica por uma

econômica implica insegurança e arbítrio, e que o princípio da legalidade da tributação, pilar

do sistema tributário brasileiro, impõe que a lei preveja todos os elementos estruturais do

tributo (princípio da especificidade conceitual fechada), oferecendo resistência à

interpretação extensiva, à analogia e à interpretação econômica26. Nas palavras do

Professor,

Efetuando-se uma interpretação sistemática da Constituição Federal e do Código Tributário Nacional, restam claras as razões pelas quais a interpretação econômica não encontra guarida no direito tributário pátrio. O princípio da legalidade, de cunho constitucional, é previsto no artigo 5º, II da Carta Magna de forma genérica e, especificamente no que tange à lei tributária, no inciso I do artigo 150 do mesmo diploma. Este se desdobra em três outros princípios: o da reserva absoluta de lei formal; o da estrita legalidade; e o da especificidade conceitual fechada. Assim, somente lei em sentido formal e material pode instituir ou majorar tributos. (COÊLHO, 2007, p. 359).

A par da defesa da inconstitucionalidade da cláusula geral antielisiva prevista no

parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966), os formalistas

defendem a possibilidade de adoção pelo contribuinte da denominada elisão fiscal que,

segundo os mencionados autores, corresponderia às formas e meios lícitos empregados

pelos contribuintes, com vistas a evitar a ocorrência do fato gerador do tributo, de modo a

reduzir ou impedir o surgimento do dever ou da obrigação tributária (DERZI, 2007, p. 294).

Para tanto, os contribuintes se utilizariam daquele espaço em que se constata a

intenção deliberada do legislador de não legislar ou de conferir um caráter incompleto à lei,

Ou seja, inexistiria uma vontade favorável do legislador ao preenchimento da lei. Nesse

caso, haveria um direito de liberdade que permitiria ao particular agir livremente naquelas

situações que não se encontram expressamente previstas em lei. A este direito de liberdade

corresponderia o dever do Poder Público de adotar um comportamento omissivo. Isto

porque, segundo os formalistas, tais casos não se confundem com as lacunas no direito, as

quais pressupõem o dever de integração, por via da analogia. Para eles, como o Direito

Tributário alicerça-se sobre os princípios da legalidade e da tipicidade, não há que se falar

em relação a este ramo do Direito em lacunas, mas sim em “espaços livres e vazios” ou em

“espaços de liberdade juridicamente protegida” (XAVIER, 2002, p. 148), onde o Poder

Público não pode entrar, muito menos agir, posto que esse espaço encontra-se protegido

26

Assim como Alberto Xavier e Derzi, o autor proclama que a teoria da interpretação econômica surgida no início do século XX, na Alemanha, por obra de Enno Becker, “serviu de apoio ao regime nazista que imperou na Alemanha” (COÊLHO, 2007, p. 358).

Page 40: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

39

pelas muralhas intransponíveis do princípio da tipicidade, o qual exige o caráter “fechado” e

“completo” do tipo legal tributário.

Para o Professor Sacha Calmon, a verdadeira elisão é aquela em que o contribuinte

age utilizando-se das “falhas da legislação”, objetivando a economia de tributos, através dos

chamados negócios jurídicos indiretos. O Professor atenta para o fato de que “a

estruturação dos negócios jurídicos de modo a arcar-se com menor ônus tributário,

utilizando-se de formas legais (não vedadas pelo ordenamento jurídico) é prática comezinha

das empresas.” (COÊLHO, 2007, p. 357) e que o planejamento tributário, mais que direito

do contribuinte, é também um dever do administrador de sociedades anônimas, a teor do

que se infere dos artigos 153 e 154, “caput”, da Lei nº 6.404/76 (BRASIL, 1976)27.

Além disso, ele critica arduamente a corrente que defende o princípio da igualdade

como justificativa para a eliminação da elisão fiscal e para a construção de uma sociedade

livre, justa e solidária. Salienta, ainda, que tudo isso “não passa de falácia a serviço do

Estado onipotente e opressor” e que deve ser resguardado ao particular o direito de

competir, sendo certo que “o resto é moralismo hipócrita, com laivos de idealismo,

insustentável diante de um Estado [...] que, ao invés de ser neutro, desorganiza a economia,

em prol de interesses puramente arrecadatórios.” (COÊLHO, 2002, p. 283, destaques no

original).

Derzi (2007, 305-313) alerta para o fato de que a legislação européia e a legislação

interna dos países europeus, que coíbem os planejamentos tributários e até mesmo as

fraudes, vêm sofrendo sérias restrições pela Corte de Justiça Européia28. Salienta a

Professora que, nos dias atuais, a jurisprudência européia estaria mais inclinada a dar

proteção aos interesses das empresas, a fim de atender às exigências do mercado cada vez

mais competitivo. Em termos de tributação, caberia ao Estado adotar políticas que atendam

ao princípio da neutralidade, garantindo-se ao setor econômico a segurança jurídica e a

27

“Art. 153. O administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios.” “Art. 154. O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa.” 28 A professora assenta sua fundamentação no 22º Relatório do Conselho de Impostos da França, de 2004, e em duas decisões do Tribunal de Justiça Europeu e em uma do Conselho de Estado Francês. Cita ainda a Diretiva nº 435/23-07-90 da União Européia, que regula as relações matriz-filial, que afasta a incidência do imposto nos casos de reorganização societária e impõe como diretriz a neutralidade da tributação, permitindo às empresas se adequarem a um cenário econômico mundial altamente competitivo. Nas palavras da renomada jurista, “constata o Relatório citado que os países europeus não possuem mais normas eficazes antielisivas, quer aquelas que coíbem o abuso de direito (como as francesas), quer aquelas que pretendem identificar o planejamento com a fraude à lei, ou seja, aquelas existentes e ainda não revogadas não são válidas ou aplicáveis.” (DERZI, 2007, p. 312).

Page 41: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

40

liberdade necessárias para o desenvolvimento do comércio e da economia. Dessa forma, a

legislação deveria coibir apenas aqueles casos em que se possa extrair um mínimo de

intencionalidade delituosa, ou seja, aqueles em que se verifiquem sinais de evasão e

sonegação.

Salienta ainda que as decisões dos Estados em matéria de tributação não podem

desconsiderar os sistemas tributários de outros Estados e, muitas vezes, as decisões ditas

“soberanas” dos Estados são apenas uma reação a outras medidas adotadas por outros

países, a fim de adequarem suas legislações internas em matéria tributária às exigências

cada vez maiores do mercado por um ordenamento jurídico que garanta liberdade,

segurança jurídica, redução de custos e maximização de lucros. Nessa ordem de idéias, aos

Estados compete atender a todas essas expectativas, criando um ambiente

macroeconômico e jurídico que promova a proteção da confiança e da boa-fé objetiva, com

vistas à manutenção das bases tributáveis (lucro, patrimônio e renda) em seus territórios,

assegurando, assim, um nível de arrecadação que lhes permitam sustentar as despesas

com a prestação de serviços públicos. Isto porque, hoje em dia, o lucro, o patrimônio e a

renda, bases tributáveis por excelência, encontram grande facilidade na migração para

outros países onde o ônus tributário é mais baixo ou até mesmo inexistente (paraísos

fiscais).

A mencionada Professora esclarece que, nas duas últimas décadas, os Estados

passaram a tributar mais a renda dos assalariados e do consumo, reduzindo sobremaneira a

tributação sobre o capital, o patrimônio, o lucro e a renda das pessoas (físicas e jurídicas)

mais ricas. Além disso, as despesas relativas aos serviços públicos ditos essenciais (saúde,

educação, segurança pública, dentre outros) passaram a ser controladas e reduzidas, a fim

de que o Estado possa direcionar mais recursos ao financiamento da infra-estrutura

necessária ao desenvolvimento das atividades dos agentes econômicos. A conclusão a que

se chega é que há pouco ou quase nenhum espaço para que a tributação seja utilizada

como instrumento estatal para a redistribuição da riqueza a promoção do bem estar geral29.

Em suas conclusões, Derzi (2007, p. 309) chama a atenção para a nova Lei de

Falências e Recuperação da Empresa, Lei nº 11.101, de 2005 (BRASIL, 2005), cujo objetivo

29 Na Exposição de Motivos nº 00016/MF, de 26/02/2008, o Ministro de Estado da Fazenda, Guido Mantega, esclarece que o Projeto de Reforma Tributária encaminhado ao Congresso Nacional no final de abril de 2008 concentra-se na proposta de tornar o Brasil mais competitivo no cenário de globalização, mediante a construção de uma estrutura tributária capaz de reduzir os custos e agilizar as transações econômicas. O Projeto não ampara nenhuma proposta de efetivação dos comandos constitucionais da pessoalidade, capacidade contributiva, generalidade e progressividade em relação ao imposto de renda da pessoa física, muito menos toca na possibilidade de imediata instituição do imposto sobre as grandes fortunas, previsto no art. 153, VII, da Constituição Federal (BRASIL, 1988). De fato, verifica-se a preocupação dos Estados, diante da nova ordem econômica mundial, em garantir ao capital e aos investidores um ambiente propício ao investimento.

Page 42: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

41

é a preservação da empresa, de sua função social e o estímulo à atividade econômica30.

Para que as empresas possam cumprir sua função social e não tenham que enfrentar

dificuldades financeiras que possam pôr em risco o exercício de sua atividade, conclui a

Professora que deve o Estado observar como limite à tributação o princípio da capacidade

contributiva, previsto no § 1º do art. 145 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), bem como

o princípio que veda o confisco por meio de uma carga tributária excessiva. Além disso, a

segurança jurídica, como base do Estado de Direito, protege o direito do contribuinte à

economia de tributos através de planejamentos tributários, sendo certo que esse direito “não

pode ser reduzido por interpretações analógicas e presunções, não previstas em lei.”

(DERZI, 2007, p. 326).

Em suma, para a vertente formalista, não há possibilidade de adoção no Brasil de

uma cláusula geral antielisiva, por incompatibilidade com os princípios da legalidade formal

e material, da livre iniciativa e da segurança jurídica. A norma prevista no parágrafo único do

artigo 116 do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966) se resume a uma norma

“antissimulação”, que possibilita ao Fisco desconsiderar os atos simulados, como já prevê o

artigo 149, VII, do mencionado diploma legal.

Por fim, os formalistas ressaltam que os tribunais europeus, atentos às exigências do

mercado global cada vez mais competitivo, têm restringido, nos últimos tempos, a utilização

das normas gerais antielisivas pelos países europeus. Os interesses das grandes

corporações e do mercado exigem do Estado, nos dias atuais, uma postura neutra . Em

nossa opinião, o que defendem os formalistas, na realidade, é que a política fiscal deve

buscar a desoneração do capital, da renda e do patrimônio dos mais ricos, concentrando a

tributação sobre os salários e o consumo e promovendo cada vez mais cortes nas despesas

relativas aos direitos sociais (educação, saúde, assistência e previdência social). Nessa

ordem de idéias, ao Estado cabe, tão-somente, garantir as condições de estabilidade e

segurança para o desenvolvimento econômico, o que inclui a aceitação dos planejamentos

tributários que não sejam praticados com simulação.

30

“Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.”

Page 43: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

42

2.4. A alternativa teórica à corrente formalista do Direito Tributário Brasileiro

2.4.1. O constitucionalismo contemporâneo do Estado Democrático de Direito e a tributação

Vimos que os teóricos formalistas são unânimes em afirmar a primazia da lei,

formalmente compreendida, como ato do Poder Legislativo, na medida em que serve de

veículo e fundamento de todos os atos e intervenções no Estado de Direito (DERZI, 2007, p.

117), garantindo, assim, a segurança e a certeza jurídicas.

No Estado de Direito, os métodos interpretativos tradicionais conferiam às

Constituições uma estabilidade apropriada à garantia das liberdades e da segurança, não

obstante as mudanças sociais, políticas e econômicas. Com efeito, a noção de hierarquia

entre as leis propiciava a aplicação de esquemas interpretativos como os da regra da

superioridade e da especialidade, bem como as interpretações ditas extensivas ou restritivas

do sentido e alcance das regras jurídicas. Essa visão escalonada das regras também se

estendeu às normas constitucionais, surgindo daí as diferenças entre as normas que

reconhecem os direitos fundamentais, os princípios, as regras de organização do Estado, as

normas programáticas, etc. Ou seja, a Constituição deixou de ser um complexo

indiferençado de normas para se tornar um sistema de normas coordenadas e integradas

entre si, hierarquicamente dispostas, passando a exigir uma interpretação que lhe conferisse

uma unidade de sentido.

Todavia, essa concepção formal não era suficiente para compreender a realidade.

Aspectos econômicos, sociais, políticos não poderiam ser hierarquicamente dispostos,

obedecendo à lógica formal do Estado de Direito. Nesse contexto, a Constituição passa a ter

não apenas a dimensão formal, mas também outra dimensão fundamentada nos valores

constitucionais albergados pela Carta Magna. Essa transformação, porém, passou a exigir

novos procedimentos interpretativos, que levassem em consideração a legitimação dos

valores constitucionais e das aspirações sociais.

No Brasil, a, então, passagem do Estado de Direito (exercício de direitos individuais,

liberdade, segurança) para o chamado Estado Social possui características bastante

peculiares. A começar pela proposta constante do artigo 1º da Constituição Federal

(BRASIL, 1988), segundo o qual a República Federativa do Brasil, formada pela união

indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado

Page 44: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

43

Democrático de Direito, ou seja, em um modelo de Estado híbrido, resultante da

compatibilização do Estado de Direito e do Estado Social.

Todavia, essa compatibilização do Estado de Direito e do Estado Social trouxe

algumas dificuldades significativas em decorrência do caráter distinto de ambos. O contorno

constitucional traçado pelo Estado de Direito caracteriza-se por uma delimitação formal, em

seu sentido técnico-jurídico. Enquanto o contorno delineado pelo Estado Social pressupõe

um Estado intervencionista, politicamente ativo e que desempenha funções distributivas,

consoante ensina Tércio Sampaio Ferraz Junior (2005, p. 210). Dessa forma, a Constituição

do Brasil alberga não só exigências de uma democracia social, mas também as do Estado

liberal, o que pode ser verificado pela riqueza de detalhes que caracteriza a Carta Magna.

Esta experiência recente do constitucionalismo acabou por repercutir em todos os

ramos do Direito. E não poderia ser diferente no Direito Tributário, principalmente quando se

discute o papel do tributo para o Estado e para a sociedade.

Na linha dos que defendem um Estado mínimo e que se limita a garantir as regras do

“livre-mercado”, a tributação deve ser caracterizada por uma postura neutra e, em razão das

exigências cada vez mais crescentes da concorrência em âmbito internacional, advindas do

fenômeno da globalização, pouca ou quase nenhuma função distributiva deve ser

perseguida através dela. E mais: para os formalistas, consoante restou demonstrado linhas

atrás, nenhuma norma geral antielusiva pode ser adotada pelo ordenamento jurídico pátrio,

para o combate ao planejamento tributário mais sofisticado e realizado de forma artificiosa,

sob pena de ofensa ao princípio da legalidade formal.

Para o jurista italiano Cláudio Saccheto, essa resistência pode ser justificada por

duas razões. A primeira razão seria o dualismo entre Estado e sociedade, que se identifica

pela rígida separação entre o público e o privado e pelo caráter absenteísta próprio do

Estado de Direito. A segunda, dar-se-ia pela concepção de que o tributo não se justifica

como dever de contribuir para o projeto de Estado Social, mas como “uma prestação

correspectiva-comutativa diante da distribuição de vantagens específicas para o obrigado”

(SACCHETTO, 2005, p. 21).

Referindo-se à rígida separação entre poder burocrático e sociedade na estrutura do

Estado Moderno, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes (2002) explica que este distanciamento

entre os cidadãos e a administração resulta na percepção do Estado como um adversário ou

mesmo um agente opressor. Essa concepção de Estado provoca inúmeras distorções,

dentre elas a incompreensão da tarefa estatal de fiscalização tributária e o combate à

sonegação. Nas palavras do eminente Ministro:

Com efeito, na medida em que se constrói a descrição de que a fiscalização tributária e o combate à sonegação consubstanciam manifestações

Page 45: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

44

opressivas do Estado rival, confina-se, na esquemática oposição conceitual entre Estado e indivíduo, todo o horizonte hermenêutico em que se aferiria a legitimidade da atuação dos órgãos administrativos. Adensada essa distorção pela invocação de hipotéticas invasões a esferas da intimidade pelo emprego de instrumentos mais eficientes de fiscalização tributária (registre-se, entre nós, a controvérsia acerca da eventual reserva de jurisdição para o acesso a dados de registro bancário), busca-se tornar ainda mais plausível a dicotomia Estado-indivíduo. A distorção consolida-se no imaginário com a especialização dos agentes do Estado: o político e o burocrata, entendidos como a materialização última da alienação do cidadão comum em relação às esferas deliberativa e executiva da vida pública e, assim, como os ícones da deslegitimação estatal.(MENDES, 2002).

No Brasil, a resistência à noção de tributo como um dever constitucional de concorrer

para os gastos que constituirão o chamado Estado Democrático de Direito é ainda maior,

predominando na sociedade e, até mesmo no meio acadêmico, a noção de tributo como

obrigação imposta de forma autoritária e opressora, que limita a liberdade e retira parcela do

lucro, da renda e do patrimônio do contribuinte, para financiar um Estado que “desorganiza a

economia, em prol de interesses puramente arrecadatórios.” (COÊLHO, 2002, p. 283).

Com a passagem do Estado de Direito para o Estado social, muitas foram as

transformações ocorridas e que exigiram não apenas a consideração dos valores que regem

o Estado Democrático de Direito, mas a realização desses valores, inseridos no corpo da

Constituição. Em outras palavras: este novo modelo interpretativo não se exaure apenas na

captação do sentido dos valores constitucionais, mas busca a efetiva realização destes

valores, como elemento transformador da realidade. Este novo método interpretativo não

desconsidera a estrutura formal das normas constitucionais, mas vai além desta estrutura.

Nesse sentido, “o intérprete não busca, apenas, revelar o sentido da norma constitucional

em seu contexto real, nem mesmo somente concretizar padrões genéricos de sentido em

casos particulares, mas modificar a própria realidade, em conformidade com aquele

sentido.” (FERRAZ JUNIOR, 2007, p. 8 – destaques no original).

Nessa nova configuração, o Estado viu-se então diante de novas e inúmeras

exigências. Os direitos fundamentais, antes consubstanciados no primado da liberdade em

sentido negativo e na proteção da segurança e da propriedade privada, foram ampliados

para alcançar os direitos sociais, econômicos, políticos, culturais, etc. Tudo isto convergiu

para uma nova configuração do poder político, do poder econômico e da estrutura social, a

exigir do Estado uma nova postura em relação à responsabilidade na gestão dos recursos

públicos e, especialmente, em relação à tributação.

Page 46: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

45

Assim é que o Estado social, declaradamente transformador,31 confere à tributação

um papel importantíssimo na consecução dos seus objetivos e na realização dos princípios

informadores da ordem econômica e financeira. De fato, no Estado social, subjaz à noção

de tributação a idéia de justiça distributiva, pelo que a expressão inglesa no taxation without

representation deve ser entendida, hoje em dia, em termos bem diversos daquele que

comumente é entendido. Segundo NABAIS (2005, p. 129), a referida expressão, sempre

invocada como suporte do princípio da legalidade tributária, tem hoje um sentido mais

democrático do que o clássico sentido de auto-imposição, autotributação ou

autoconsentimento dos impostos. Isso porque, no Parlamento, têm assento não só os

representantes eleitos pelos contribuintes, mas também pelos não-contribuintes, os quais,

em alguma medida, se beneficiam dos tributos pagos pelos contribuintes.

Nessa linha de raciocínio, a consecução de objetivos como assegurar a todos

existência digna, conforme os ditames da justiça social (art. 170, caput, da Constituição

Federal), demanda a adoção de um sistema tributário informado pelos princípios da

igualdade e da progressividade dos impostos, de modo que a redistribuição da riqueza seja

garantida. Todavia, alerta NABAIS (2005, p. 132) para o fato de que a progressividade, nos

dias atuais, enfrenta grandes dificuldades em razão da concorrência fiscal entre os Estados

no mundo globalizado. Assinala o mencionado Professor:

[...] esse objetivo, por vezes fixado expressamente ao nível dos próprios textos constitucionais, como acontece, por exemplo, com a Constituição da República Italiana, com a Constituição Portuguesa de 1976 e com a Constituição Brasileira de 1988, depara-se, presentemente, com obstáculos de monta, o mais importante dos quais reside no fato de a progressividade dos impostos (e eventualmente do sistema fiscal) correr o risco de ser debitada por inteiro apenas a alguns dos contribuintes. Mais especificamente às empresas e trabalhadores sedentários, deixando inteiramente de fora dessa progressividade e da solidariedade social que a mesma suporta os contribuintes nômades, por via de regra as grandes empresas (entre as quais se destacam as empresas transnacionais) e os trabalhadores altamente qualificados, os quais, por desenvolverem a sua atividade num mercado tendencialmente mundializado, podem facilmente deslocar-se para os países ou territórios com uma fiscalidade mais atrativa, ou seja, para os países ou territórios em que incorrem em menores custos fiscais. (2005, p. 132).

E é justamente em razão do esvaziamento cada vez maior da base tributável,

principalmente ocorrida a partir de meados da década de 90, que os Estados passaram a

31

José Casalta Nabais chama a atenção para o fato de que a tributação realiza os ideais da solidariedade social de forma mais visível no Estado social, mas isto não significa que no Estado liberal não tenham os tributos sido utilizados para a concretização desta idéia. Nas palavras do referido autor: “[...] do simples fato de termos um Estado que financeiramente é suportado fundamentalmente por tributos unilaterais ou impostos, e não por tributos bilaterais ou taxas, ou seja, pelo fato de termos um Estado fiscal e não um Estado tributário (no sentido de Estado suportado por taxas), decorre logo uma plataforma mínima de solidariedade social.” (NABAIS, 2005, p. 127-128).

Page 47: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

46

adotar novos métodos de combate à elusão, dentre eles a adoção de cláusulas específicas

e gerais antielusivas, as quais são consideradas de extrema importância para a consecução

de princípios como igualdade e justiça fiscal.

2.4.2. A compatibilidade da chamada cláusula geral antielisiva com a Constituição Federal. As posições de Ricardo Lobo T orres, Marco Aurélio Greco e Marciano Seabra de Godoi

A partir de meados da década de 90 do século XX, com a intensificação das relações

comerciais, com o processo de privatização das estatais e com a abertura do capital social

de grandes corporações, o tema do planejamento tributário ganhou bastante relevo no

Brasil, visto que passou a representar um importante instrumento de redução dos custos das

empresas e de aumento dos lucros.

Nessa época, começaram a ser divulgadas, em nosso meio jurídico e acadêmico, as

posições teóricas atuais como a jurisprudência dos valores e o pós-positivismo, as quais

tiveram amplo desenvolvimento, no Direito Público, nas áreas do Direito Constitucional e do

Direito Administrativo. Entretanto, no Direito Tributário, esse novo paradigma ainda sofre

muita resistência, como já acentuamos linhas atrás. Mas, graças às obras precursoras de

Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, uma nova geração de pensadores e

doutrinadores desse ramo jurídico começa a surgir e inclui, por certo, o Professor Marciano

Seabra de Godoi, um dos representantes desta vertente teórica no meio acadêmico de

nosso Estado.

Ao contrário do que afirmam os formalistas, os mencionados autores não defendem

posições apriorísticas favoráveis ou contrárias ao planejamento tributário. Antes, aceitam o

planejamento fiscal como forma de economizar tributo, mas procuram, através da

Metodologia, fixar os limites legítimos ao exercício desse direito pelo contribuinte. Assim,

somente seria ilícito o planejamento caracterizado pela manipulação de formas jurídicas

lícitas, com o objetivo de reduzir ou eliminar a carga tributária.

Também são unânimes em afirmar que a evasão, com sentido de ilícito penal,

conforme previsão contida na Lei nº 4.502/64 (BRASIL, 1964) e na Lei nº 8.137/90 (BRASIL,

1990), que compreende a sonegação, a simulação, o conluio, a fraude, a falsificação de

documentos fiscais, as declarações falsas, a inserção de elementos inexatos na escrita

fiscal, não se confundem com a elusão, ou seja, com o planejamento tributário abusivo.

Além disso, defendem a constitucionalidade da adoção, pelo sistema jurídico

brasileiro, de uma norma geral antielusiva, como a prevista no parágrafo único do artigo 116

Page 48: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

47

do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966)32, bem como a adoção de conceitos jurídicos

indeterminados e dos tipos pelo legislador tributário.

Torres (2006, p. 222-223) ensina que “O desenvolvimento da metodologia jurídica e

da teoria de interpretação, com a superação dos positivismos economicistas e

conceptualistas, constitui uma das principais causas para a nova visão da necessidade e da

possibilidade de combate à elisão e ao planejamento abusivos.”, além da “emergência do

princípio da transparência, em íntima conexão com o processo de globalização.”,

demandando do Estado uma gestão financeira responsável, bem como a adoção de

cláusulas gerais antielisivas, a abertura do sigilo bancário e o combate à corrupção.

Nesse sentido, entende-se que a Lei Complementar nº 104/2001 (BRASIL, 2001)

trouxe uma verdadeira norma antielisiva, influenciada pelo modelo francês, e não uma

norma antievasiva ou antissimulação. Para fundamentar sua tese, alinha os seguintes

argumentos:

a) não tem peso argumentativo concluir-se que o Congresso Nacional, legitimamente eleito, teria se reunido para votar lei inócua, que repetiria a proibição de simulação já constante do CTN (arts. 149, VII e 150, § 4º);

b) não faz sentido admitir-se que a lei inócua foi votada por engano ou ignorância, já que a Mensagem que encaminhou o projeto se referia expressamente à necessidade de introdução da regra antielisiva no ordenamento jurídico brasileiro;

c) não pode haver nenhuma incompatibilidade da norma antielisiva com o Estado de Direito, senão até que se tornou necessidade premente nas principais nações democráticas na década de 1990;

d) em nenhum país democrático levantou a doutrina a tese da inconstitucionalidade, e muito menos a declararam os Tribunais Superiores;

e) quando muito se encontra a afirmativa de que certas nações não estão “maduras” para a prática das normas antielisivas, como acontece naquelas em que o planejamento tributário se tornava freqüentemente abusivo;

f) as teses da legalidade “estrita” e da tipicidade “fechada” têm conotação fortemente ideológica e se filiam ao positivismo formalista e conceptualista;

g) as normas antielisivas equilibram a legalidade com a capacidade contributiva;

h) as normas antielisivas no direito comparado têm fundamento no combate à fraude à lei (Alemanha, Espanha, Portugal), ao abuso de direito (França) ou ao primado da substância sobre a forma (Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, etc.), e não há motivo para que tais fundamentos não possam ser invocados no Brasil.

32

“Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos na lei ordinária.”

Page 49: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

48

Para o Professor (2006, p. 246), o combate à elusão (elisão fiscal abusiva) pode ser

feito pela legislação, através do fechamento dos conceitos jurídicos, ou pela administração

tributária, mediante a requalificação dos atos e negócios jurídicos praticados pelos

contribuintes, a qual se faz não pela interpretação do fato gerador concreto, mas pela

valoração deste fato concreto de acordo com a lei, ou melhor, pela qualificação deste fato

segundo as categorias estabelecidas pela norma. Para Torres, “Entre a interpretação da

norma e a qualificação do fato há, por conseguinte, uma relação de subsunção, que não é

meramente lógica formal, mas também valorativa.” (2006, p. 248).

Esta requalificação pelo fisco do ato ou negócio jurídico praticado pelo contribuinte

não implicaria, na visão do mencionado Professor, as consequências previstas para a

simulação, quais sejam, a anulação prevista no artigo 167 do Código Civil (BRASIL, 2002) e

a revisão do lançamento, mas apenas a “qualificação do verdadeiro conteúdo material do

ato decorrente do desenho da hipótese de incidência.” (2006, p. 249).

Desse modo, podemos afirmar que a característica marcante do pensamento de

Ricardo Lobo Torres corresponde à consideração da elusão (para o Professor elisão

abusiva) como um abuso de direito na subsunção do fato gerador concreto à norma

tributária. Em outras palavras, a elusão (elisão abusiva) operaria no plano do tipo descrito na

regra de incidência, distorcendo o seu sentido para dissimular a ocorrência do fato gerador

concreto (2006, p. 257). Seria uma “subsunção malograda”, utilizando a expressão de Paul

Kirchhof (apud Torres, 2006, p. 251). Ocorreria um fingimento em relação ao fato gerador

abstrato, e não em relação ao fato gerador concreto, que realmente aconteceu. Nas

palavras de Klaus Tipke (apud Torres, 2006, p. 253), “Fingida é apenas a forma jurídica

correspondente, não o fato econômico.” Já na simulação, o fato gerador concreto não existiu

ou só parcialmente era verdadeiro. Como exemplos de planejamento tributário abusivo, o

mencionado Professor cita os casos da Grendene33 e do seguro dotal34.

Segundo Torres (2006, p. 254), a vertente formalista se apega à expressão

“dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos

da obrigação tributária”, para defender a tese de que o parágrafo único do artigo 116 do

33 A Grendene, empresa industrial com faturamento acima do limite máximo de enquadramento no regime do lucro presumido, criou, no mesmo dia, oito empresas atacadistas (todas de propriedade dos próprios diretores da empresa industrial), de modo a reduzir o seu volume de faturamento, com o objetivo de escapar à tributação pelo regime do lucro real. Todavia, restou demonstrado que quatro delas tinham apenas um empregado e todas tinham o mesmo endereço da Grendene. O caso foi examinado pelo extinto TFR, em 18/02/1987 (AC 115.478, relator Ministro Américo Luz), que considerou a operação como sendo uma simulação. 34

O caso do seguro dotal, em linhas gerais, corresponde à contratação de seguros de vida por contribuintes pessoas físicas, nos últimos dias do ano, seguido do cancelamento e desfazimento do seguro nos primeiros dias do ano seguinte, com a restituição do prêmio pela seguradora, com pequeno deságio, de modo que o contribuinte aproveitava o abatimento do prêmio do seguro da base tributável do imposto de renda.

Page 50: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

49

Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966) nada mais seria do que uma norma de combate

à simulação, que já existe no ordenamento jurídico, consoante se depreende do artigo 149,

VII, do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966). Todavia, esclarece o mencionado

Professor que o termo dissimulação possui dois sentidos: o primeiro seria identificado com a

simulação relativa, como fizeram os formalistas, e o segundo seria considerá-lo como

elemento da elusão (elisão abusiva).

No segundo sentido, a dissimulação refere-se a ato ou negócio jurídico que

realmente aconteceu, sem qualquer simulação, seja absoluta ou relativa, uma vez que, na

elusão (elisão abusiva), o fato gerador concreto é verdadeiro.

Nesse ponto, constatamos que Torres não inclui a simulação no âmbito da elusão,

ou seja, o planejamento tributário abusivo não abrangeria os atos simulados, mas apenas

aqueles praticados com abuso de direito, em suas diversas configurações: fraude à lei,

ausência de propósito mercantil, abuso de forma jurídica, dissimulação do fato gerador

abstrato e dos elementos constitutivos da obrigação (TORRES, 2007, p. 344). Para o

mencionado Professor, quando o parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário

Nacional diz que “a administração pode desconsiderar atos ou negócios praticados com a

finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador tributário” está se referindo à

dissimulação do fato gerador abstrato e não à simulação do fato gerador concreto. “O ato ou

negócio praticado (fato gerador concreto) não é dissimulado, mas dissimulador da

verdadeira compreensão do fato gerador abstrato, o que, sem dúvida, é uma das

características da elisão.” (TORRES, 2006, p. 256-257). A elusão (elisão abusiva), para

Torres, pressupõe, portanto, o contorno da lei tributária, ou, nas palavras de Klaus Tipke,

“um abuso da possibilidade formal do direito, que se apega não à finalidade, mas à letra da

lei.” (apud TORRES, 2006, p. 258).

De acordo com as lições de Ricardo Lobo Torres:

[...] na simulação e na fraude contra a lei o fingimento e a manipulação acontecem após a ocorrência do fato gerador, enquanto na elisão abusiva e na fraude à lei a desinterpretação é anterior; naquelas discute-se sobretudo a respeito da matéria de fato, ao passo que na elisão a controvérsia gira em torno da questão de direito; conseguintemente, naquelas a prova é o seu ponto nevrálgico e incumbe ao Fisco produzi-la, ao contrário da elisão abusiva, na qual não se abre a instância da prova; na simulação ou fraude aplica-se a multa qualificada e na elisão abusiva não há penalidade no ordenamento tributário brasileiro; na simulação existe o pacto ou conluio entre as parte e na elisão, não. (TORRES, 2007, p. 337).

No caso Grendene, por exemplo, Torres (2006, p. 256) considera que a criação das

oito empresas atacadistas foi verdadeira, malogrando-se apenas a subsunção da situação

econômica ao fato gerador abstrato previsto na hipótese de incidência, pelo que não haveria

Page 51: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

50

que se falar em simulação. Os elementos fáticos coletados demonstraram que, na prática,

as oito empresas continuaram funcionando no mesmo endereço da Grendene, sendo que

quatro delas tinham apenas um empregado. Vale dizer: a criação dessas oito empresas

atacadistas pelos próprios diretores da Grandene se deu apenas “no papel”, de modo que

essa empresa pudesse se enquadrar em um regime tributário que lhe fosse mais favorável.

Tanto assim, que o antigo TFR, no julgamento da AC 115.478, relator Ministro Américo Luz,

considerou que a criação dessas empresas pela Grendene foi feita de forma simulada.

De acordo com nosso entendimento, houve, no caso Grendene, fraude à lei

tributária. Uma vez que a Grendene pretendeu, na realidade, contornar o regime do imposto

de renda da pessoa jurídica com apuração pelo lucro real. Mas, como essa conduta se fez a

partir da manipulação de modelos jurídicos, com a utilização de instrumentos lícitos, ou seja,

sem falsas declarações, com o único objetivo de reduzir a carga tributária, não podemos

afirmar que houve prática de ilícito penal ou que houve fraude no sentido de sonegação,

conluio.

Mas, independentemente de considerarmos a teoria de Ricardo Lobo Torres (abuso

do direito) ou o fundamento do Acórdão do TRF (simulação), o certo é que essa conduta do

contribuinte não pode ser considerada eficaz, ou seja, não pode ser amparada pelo

ordenamento jurídico como válida, pelo menos para fins tributários. Neste contexto, deve o

fisco promover a requalificação do ato ou negócio, sem necessidade de decretação de sua

nulidade, para enquadrá-lo na norma tributária contornada, utilizando, como fundamento, a

regra prevista no artigo 149, VII, do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966)35.

Outro ponto importante a ser ressaltado é que a teoria de Torres parte de um

conceito de simulação restritivo adotado pela maioria dos doutrinadores do direito tributário,

correspondente à desconformidade entre a vontade real e aquela declarada, com o intuito

de prejudicar terceiros. Disso se deduz que o mencionado Professor estabelece

peremptoriamente a diferenciação entre simulação e elusão36, para concluir pela

35

Luciano Alaor Bogo, nosso colega na Procuradoria da Fazenda Nacional em Curitiba/PR, entende que o Fisco não pode declarar o negócio abusivo e proceder ao lançamento, sem prévio ajuizamento de ação declaratória de nulidade do ato ou negócio jurídico. Segundo o referido autor, “o abuso do direito é um ilícito atípico, cujo reconhecimento demanda um grau de subjetividade e a ponderação de valores constitucionais colidentes, que não pode ser conferido a uma das partes envolvidas na relação jurídica, o que não significa, porém, que essa conduta está imune a qualquer controle repressivo.” (BOGO, 2006, p. 280). Discordamos inteiramente dessa assertiva. Para nós, o negócio permanece válido entre as partes contratantes, mas não é eficaz em relação ao fisco. Desse modo, nenhuma nulidade há de ser decretada previamente para fins de instauração de procedimento administrativo fiscal, cujo objetivo seja a desconsideração de atos elusivos, praticados com abuso de direito, fraude à lei, simulação, abuso de forma, etc. 36

O autor acaba por concluir que “[...] tanto na simulação quanto na elisão abusiva há o desencontro entre forma e substância jurídica.”, mas salienta que “na elisão abusiva pretende o contribuinte prevalecer a forma jurídica sobre a substância, enquanto na simulação procura revestir o conteúdo fático com o nomen juris ou a forma jurídica inadequados.” (TORRES, 2007, p. 337 e 344).

Page 52: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

51

inaplicabilidade aos casos de simulação da norma prevista no parágrafo único do artigo 116

do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966).

Entretanto, consoante será examinado no Capítulo II da presente dissertação, o

conceito de simulação, hodiernamente, vem se afastando cada vez mais de uma

perspectiva meramente individualista, com ênfase no subjetivismo, na vontade do indivíduo,

como a que vigorou nos séculos XVIII e XIX, para se aproximar de uma perspectiva mais

objetiva, atenta à função social dos negócios jurídicos. A partir dessa perspectiva objetiva,

pode-se concluir que o conceito de simulação, nos dias atuais, não mais se enquadra em

um conceito restrito de sonegação, conluio e fraude, como sinônimos de ilícito penal.

Também defendendo a constitucionalidade material do parágrafo único do artigo 116

do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966), Marco Aurélio Greco assinala que, ao

contrário do que afirmam os formalistas, a referida norma prestigia a legalidade e a

tipicidade, pois a mesma “não autoriza a exigência de tributo em relação a hipótese que não

configure fato gerador; não autoriza a exigência sem lei ou fora dos tipos que a lei pertinente

tiver previsto; não cria fato gerador novo!” (GRECO, 2008, p. 458).

Para o referido autor, a norma em comento foi inserida, de forma correta e

sistemática, em artigo que regula a ocorrência do fato gerador, donde se conclui que, se não

ocorreu o fato gerador, não haverá a materialização da hipótese de incidência do parágrafo

único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966) e, dessa forma, não

haverá ato ou negócio a ser desconsiderado pelo fisco (GRECO, 2008, p. 459). “Em suma –

conclui o autor – legalidade e tipicidade (como ‘substantivos’) permanecem íntegras e, na

medida em que o parágrafo único se reporta a fato gerador ocorrido, será indispensável que

a situação de fato ou de direito atenda, materialmente, aos requisitos do caput do próprio

artigo 116, do qual a norma que autoriza a desconsideração é parágrafo.” (GRECO, 2008, p.

459).

O mencionado Professor é contundente ao afirmar que a norma do parágrafo único

do artigo 116 do Código Tributário Nacional não altera o conteúdo e alcance do princípio da

legalidade e da tipicidade; não autoriza a definição do fato gerador por analogia; não se

refere às hipóteses de simulação (absoluta ou relativa), menos ainda introduz a

interpretação econômica no sistema tributário.

Inicialmente, Greco considerava que o termo dissimulação, em sentido amplo,

deveria abranger figuras como a fraude à lei, o abuso de direito e o negócio jurídico indireto.

Em recente edição de seu livro Planejamento Tributário, o autor deixa claro que os casos de

simulação, fraude à lei, abuso de direito e de negócio jurídico indireto celebrado em fraude à

lei ou com abuso de direito, por configurarem ilícitos típicos, devem ser desconsiderados

pelo fisco, comportando lançamento de ofício. Nas palavras do mencionado Professor:

Page 53: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

52

“Simulação, fraude à lei e abuso de direito sofrem reações do ordenamento tributário

independente do artigo 116, parágrafo único e comportam lançamento de ofício; portanto,

não se submetem às regras procedimentais específicas do dispositivo.” (GRECO, 2008, p.

468).

Estariam, portanto, abrangidos pela norma do parágrafo único do artigo 116 do

Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966), os negócios jurídicos que não padecem das

patologias da fraude à lei ou do abuso de direito. Nesse caso, “trata-se de situação em que

a exigência tributária resultaria da eficácia positiva do princípio da capacidade contributiva

em cotejo com a liberdade individual. Daí a necessidade de um procedimento especial para

compor a hipótese.” (GRECO, 2008, p. 468). Conclui o autor:

Em suma, para deflagrar as conseqüências pertinentes às patologias dos negócios jurídicos (simulação, abuso de direito e fraude à lei) não havia necessidade do parágrafo único do artigo 116 do CTN. A eles o ordenamento reage por si só mediante um lançamento de ofício. A inclusão do parágrafo único ao artigo 116 do CTN tornou a figura da elisão uma categoria tributária não dependente das patologias; ainda que os negócios jurídicos não padeçam de qualquer vício, o dispositivo abre espaço para aferir a sua conformidade ao princípio da capacidade contributiva, daí a necessidade de procedimentos especiais para tanto. (2008, p. 468).

A tese de Marco Aurélio Greco distingue-se da de Ricardo Lobo Torres nos

seguintes aspectos: 1) para Torres, as figuras da fraude à lei, do abuso de direito, do abuso

de formas, etc. estariam abrangidas pela norma do parágrafo único do artigo 116 do Código

Tributário Nacional (BRASIL, 1966), enquanto a simulação e a fraude estariam abrangidas

pela regra do artigo 149, VII, do referido diploma legal, sendo estas últimas sinônimas de

ilícito penal. Para Greco, as figuras da fraude à lei, do abuso de direito e da simulação já

seriam objeto de reação pelo ordenamento jurídico com fundamento na regra do artigo 149,

VII, do CTN (BRASIL, 1966), pelo que a norma do parágrafo único do artigo 116 do referido

diploma legal destinar-se-ia aos negócios jurídicos indiretos não praticados em fraude à lei

ou com abuso de direito; 2) para Torres, seria útil a existência da regra procedimental

específica prevista no parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (BRASIL,

1966), mas sua inexistência não inviabiliza a aplicação da norma antielisiva, se o ente

público possui regras genéricas de processo tributário administrativo, como é o caso do

Decreto nº 70.235/72 (BRASIL, 1972), que regula as normas relativas ao processo

administrativo tributário na esfera federal. Para Greco, mister a existência da regra

procedimental específica para os casos em que venha a ser utilizada; 3) para Torres, o fisco

somente tem o ônus de provar, no plano fático, a simulação, ou seja, a inexistência do fato

gerador concreto, para fins de aplicação da regra do artigo 149, VII, do Código Tributário

Nacional (BRASIL, 1966). Na elisão abusiva, como o fato gerador concreto é verdadeiro,

Page 54: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

53

não haveria essa necessidade, porquanto a hipótese seria discutida em termos de direito, e

não de fatos. Para Greco, o ônus da prova cabe ao fisco em qualquer situação; 4) para

Torres, a norma antielisiva do artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional

(BRASIL, 1966) visa à desconsideração ou à requalificação do fato gerador concreto, isto é,

do ato ou fato praticado com a dissimulação da mens legis e do fato gerador abstrato. Para

Greco, a referida norma visa a aferir a conformidade dos negócios jurídicos indiretos ao

princípio da capacidade contributiva.

Na linha dos que defendem a constitucionalidade da norma antielusiva prevista no

parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional, cumpre-nos destacar a posição

do Professor Marciano Seabra de Godoi.

Em 2001, na Revista Dialética nº 68, o mencionado Professor apresenta artigo de

sua autoria intitulado “A figura da fraude à lei tributária prevista no parágrafo único do artigo

116 do CTN.”, em que defende abertamente a adoção da figura da fraude à lei no Direito

Tributário, ao contrário do que defendem Sampaio Dória37, Alberto Xavier e Sacha Calmon

Navarro Coêlho. Segundo Godoi, a norma prevista no parágrafo único do artigo 116 do

Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966) teria, finalmente, introduzido uma norma geral

antielusiva no Brasil, como já existe em outros países, para o combate dos casos de fraude

à lei tributária38. Entretanto, considera que o referido parágrafo único somente seria aplicado

em casos de fraude à lei, e não em casos de simulação, já que esta tem seu sentido

solidificado e vinculado a atos de evasão tributária (sonegação). Nesse ponto, argúi que o

ordenamento jurídico pátrio não adota a noção causalista da simulação, pelo que não é

possível incluir na elusão os atos simulados, como faz Heleno Tôrres.

Em 2002, na Revista Dialética nº 79, o mencionado Professor apresenta outro

artigo intitulado “A figura da fraude à lei tributária na jurisprudência do Supremo Tribunal

Federal.”, como contraponto às teses defendidas por Alberto Xavier e Sacha Calmon

37

Cfr. Sampaio Dória, na elisão ou evasão legítima, “o agente visa a certo resultado econômico mas, para elidir ou minorar a obrigação fiscal que lhe está legalmente correlata, busca, por instrumentos sempre lícitos, outra forma de exteriorização daquele resultado dentro do feixe de alternativas válidas que a lei lhe ofereça, prevendo não raro, para fenômenos econômicos substancialmente análogos, regimes tributários diferentes, desde que diferentes as roupagens jurídicas que os revestem.” (1977, p. 39). Chama a atenção para o fato de que o autor é um dos que se alinham à vertente formalista, mas em seu conceito lança mão da consideração econômica dos fatos, para concluir que os contribuintes podem realizar negócios jurídicos com uma roupagem jurídica diversa daquela prevista na lei tributária, a fim de se enquadrarem em uma situação econômica substancialmente análoga àquela prevista na lei impositiva. Ou seja, o autor nega a possibilidade de se levar em consideração o fenômeno econômico, para coibir os atos elisivos abusivos, mas aceita tal possibilidade quando se defende a prática dos atos elisivos abusivos. Parece-nos um tanto contraditório. 38

Esta não é a primeira vez que se tenta introduzir uma norma geral antielusiva no Brasil. Na elaboração do anteprojeto do Código Tributário Nacional, Alfredo Augusto Becker (2004, p. 30-31) nos conta que lhe foi encomendado por Gilberto Ulhôa Canto parecer pela incompatibilidade desta norma com o ordenamento jurídico brasileiro. Vemos que o tema não é tão recente e que há 50 anos, já se discutia a possibilidade ou não de adoção de uma norma geral antielusiva no Brasil.

Page 55: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

54

Navarro Coêlho, no qual demonstra que o Supremo Tribunal Federal já se utilizou, por

diversas vezes, da figura da fraude à lei para “[...] coibir as atuações dos contribuintes que,

mesmo amparados na letra da lei e na higidez formal de seus atos, atentam contra o espírito

da norma e distorcem os institutos civilísticos num uso de sua autonomia e liberdade

contratual que o direito contemporâneo não ampara.” (GODOI, 2002, p. 76). Para tanto,

fundamenta-se na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal das décadas de 50 e 60, em

doutrinadores considerados clássicos, como Rubens Gomes de Sousa, Amílcar de Araújo

Falcão, Ruy Barbosa Nogueira e Geraldo Ataliba, bem como nas recentes alterações do

Código Civil (BRASIL, 2002), e afirma que a mudança legislativa mais significativa ocorrida

nos últimos tempos foi o abandono do formalismo exacerbado do Código de 1916 (BRASIL,

1916) pelo legislador do século XXI, para acolher a figura da “fraude à lei imperativa” como

causa de nulidade do negócio jurídico, nos termos do artigo 166, VI, do Código Civil de 2002

(BRASIL, 2002). Nesse sentido, esclarece:

Codificar a sanção da fraude à lei ou incluí-la num dispositivo legal expresso não é portanto necessário para combater as fraudes, como demonstra a jurisprudência brasileira. É contudo conveniente positivar a figura, já que com isso pode-se desenhar de forma mais nítida os contornos do instituto, seus requisitos e suas conseqüências, arrojando mais segurança jurídica e previsibilidade ao ordenamento. Mas ainda que o instituto esteja previsto num artigo de lei (como ocorre agora com o artigo 166, VI do Código Civil de 2002), o protagonismo continuará sendo da jurisprudência, pois a fraude à lei, como o abuso do direito e a boa-fé, é um conceito jurídico indeterminado, uma cláusula geral que somente vai se cristalizando com sucessivas aplicações jurisprudenciais. (GODOI, 2007, p. 252 – grifos no original).

Contudo, a par da defesa de que a Lei Complementar nº 104, de 2001 (BRASIL,

2001), teria introduzido uma norma de combate e prevenção à fraude à lei no Direito

Tributário, o mencionado Professor aponta a tendência jurisprudencial que veio se

afirmando nos últimos anos, que é justamente a de coibir os planejamentos tributários

abusivos a partir de um conceito ampliado de simulação, sem recorrer ao parágrafo único do

artigo 116 do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966), o que demonstra que “o direito

brasileiro vem desenvolvendo um sistema de controle dos limites do planejamento tributário

que parece haver superado definitivamente os exageros formalistas do passado” (GODOI,

2002), como já é prática corrente em outros países.

Em suma, o mencionado Professor defende que a norma prevista no parágrafo

único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966): 1) aplica-se aos casos de

fraude à lei; 2) necessita de regulamentação; 3) não é aplicável a multa agravada, mas tão-

somente a multa moratória; 4) não alcança os atos simulados.

Page 56: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

55

Esclarece, ainda, que os casos de “elusão” vêm sendo enfrentados pela

jurisprudência administrativa e judicial recorrendo-se ao conceito de simulação (ampliado-

causalista), sem qualquer vinculação ao referido art. 116, parágrafo único, do Código

Tributário Nacional (BRASIL, 1966) e que, neste conceito, o modo de conceber a realidade e

de limitar a conduta dos contribuintes é similar (intercambiável) ao que se passa nas normas

gerais antielusão espalhadas pelo mundo (Alemanha, Espanha, França).

Ao final, conclui que o “conteúdo” e o “propósito” que o legislador procurou

introduzir no ordenamento em 2001 pela inclusão do art. 116, parágrafo único, vem se

mostrando cada vez mais presente mas por outra via, pela via da evolução jurisprudencial

do conceito de simulação.

2.4.3. A indeterminação dos tipos legais no Direito Tributário e sua compatibilidade com o princípio da legalidade tribu tária

Viu-se que a doutrina e a jurisprudência mais recentes têm procurado desmitificar a

crença numa legalidade tributária como sinônima de uma “tipicidade fechada”. Isso se deu,

no Brasil, a partir da década de 90, com as obras precursoras de Ricardo Lobo Torres e de

Marco Aurélio Greco.

Esse novo paradigma coaduna-se com as novas exigências constitucionais em

matéria fiscal e com a complexidade crescente em relação à tributação, em especial a

tributação sobre a renda das pessoas jurídicas, que não pode prescindir de “tipos abertos” e

de conceitos jurídicos indeterminados. O reconhecimento da inevitabilidade da abertura do

sistema jurídico e, por conseguinte, da indeterminação dos conceitos, representou um

importante passo no desenvolvimento da Teoria do Direito39, o que acabou por influenciar os

demais ramos desta Ciência.

39

Já em 1961, Hart, um dos expoentes do positivismo jurídico, ressaltava a inevitabilidade da indeterminação legal em sua obra “O Conceito de Direito”. No capítulo VII do mencionado livro, Hart desenvolve a idéia da textura aberta do direito contido na lei e no precedente do sistema commom law. Segundo o jus-filósofo (p. 141/142): “É, contudo, importante apreciar por que razão [...] não devemos acarinhar, mesmo como um ideal, a concepção de uma regra tão detalhada, que a questão sobre se se aplicaria ou não a um caso particular estivesse sempre resolvida antecipadamente e nunca envolvesse, no ponto de aplicação efetiva entre alternativas abertas. Dito de forma breve, a razão reside em que a necessidade de tal escolha é lançada sobre nós porque somos homens, não deuses. [...] os legisladores humanos não podem ter conhecimento de todas as possíveis combinações de circunstâncias que o futuro pode trazer. [...] Quando surge o caso não contemplado, confrontamos as soluções em jogo e podemos resolver a questão através da escolha entre os interesses concorrentes, pela forma que melhor nos satisfaz. [...] O vício conhecido na teoria jurídica como formalismo ou conceitualismo consiste numa atitude para com as regras formuladas de forma verbal que, ao mesmo tempo, procura disfarçar e minimizar a necessidade de tal escolha, uma vez editada a regra geral. [...] Fazer isto é conseguir uma medida de certeza ou previsibilidade à custa de

Page 57: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

56

No Direito Tributário, não foi diferente. Hodiernamente, os operadores do Direito que

militam na área tributária se deparam com situações em que, muitas das vezes, a lei não é

capaz de dar nenhuma resposta definitiva, na medida em que tais situações não se

enquadram no conceito legal e acabam por cair em uma zona cinzenta, correspondente aos

“casos difíceis”.

Neste contexto, o desafio que se nos apresenta é o de traçar as exigências mínimas

de determinação da lei, necessárias que são à preservação da segurança jurídica, e a

margem de liberdade decorrente da abertura dessa lei, necessária à sua concretização pela

Administração Tributária. Essa preocupação encontra-se bem caracterizada nas palavras de

DERZI (2005, p. 279), para quem:

[...] Não se trata de negar o inegável: a falibilidade humana, a mutabilidade e a complexidade da realidade social e do direito, a diversidade e a circularidade das fontes de criação jurídica, a existência de conceitos obscuros, indeterminados, das cláusulas gerais e dos princípios abstratos e vagos ou meramente implícitos, a formação da norma “em processo”... O sistema jurídico é, do ponto de vista potencial da pluralidade de sentido, da interpretação, aberto, inegavelmente aberto... Trata-se antes de saber como o sistema jurídico, dentro da extrema mobilidade do mundo, presta-se a fornecer estabilidade, presta-se a acolher as expectativas legitimamente criadas e, portanto, a proteger a confiança. Se assim não for, a ordem jurídica confundir-se-á com os elementos do ambiente, sociais, econômicos, morais... enfim, fundir-se-á com os demais sistemas e desaparecerá como instrumento que possibilita a vida, o convívio e a tomada de decisões assentadas em um mínimo de confiança. [...].

Conquanto a mencionada Professora reconheça a existência de conceitos

indeterminados e a abertura do sistema jurídico, afirma que o pensamento tipológico não é

adequado à Ciência do Direito Tributário e do Direito Penal, campos onde o espaço

reservado aos tipos é muito pequeno (2007, p. 32). Neste contexto, considera princípios

como legalidade, determinação e especificidade conceitual (tipicidade) verdadeiros marcos

de conquista democrática, os quais representam o início de uma caminhada de busca da

igualação material, que extinga as grandes diferenças sócio-econômicas, existentes entre os

indivíduos e os grupos (2007, p. 33-34).

considerar, de forma cega e preconceituada, o que deve fazer-se numa série de casos futuros, sobre cuja composição nos encontramos em estado de ignorância. [...] Seremos forçados por esta técnica a incluir no âmbito da regra casos que desejaríamos excluir, de forma a dar efeito a finalidades sociais razoáveis e que os termos da textura aberta da nossa linguagem teriam permitido excluir, se os tivéssemos deixado menos rigidamente definidos. A rigidez das nossas classificações entrará assim em conflito com as nossas finalidades de ter ou de manter a regra.”

Ao final conclui (p. 148): “A textura aberta do direito significa que há, na verdade, áreas de conduta em que muitas coisas devem ser deixadas para serem desenvolvidas pelos tribunais ou pelos funcionários, os quais determinam o equilíbrio, à luz das circunstâncias, entre interesses conflitantes que variam em peso, de caso para caso.”

Page 58: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

57

A Professora conclui que o princípio da legalidade em sentido material corresponde

ao princípio da especificação conceitual determinante , impropriamente denominado por

alguns juristas de princípio da tipicidade. Em conformidade com aquele princípio, a lei

formalmente emanada do Poder Legislativo, instituidora de determinado tributo, para ser

considerada válida e possibilitar a cobrança do tributo, deve conter conceitos

determinantes “das abstrações conceituais das descrições e prescrições inerentes à norma

tributária” (DERZI, 2002, p. 223), não se permitindo, portanto, a delegação de competência

do Legislativo ao Executivo das matérias arroladas no art. 97 do Código Tributário

Nacional40, posto que privativas de lei (em sentido material e formal).

Em razão da prevalência desses conceitos determinantes no Direito Tributário, deve

prevalecer, segundo a Professora, neste ramo específico do Direito, o modo de raciocinar

por conceito que pressupõe a utilização do método binário da alternativa excludente

“ou...ou”, ou seja, a dualidade estrita de lícito/ilícito, sem possibilidade de escolha entre

alternativas equivalentes, como ocorre no método tipológico.

Assevera a citada Professora que “a legalidade estrita, a segurança jurídica, a

uniformidade e a praticidade determinam a tendência conceitual prevalecente no Direito

Tributário” (DERZI, 2002, p. 224), mas não há como negar a existência de uma “zona

cinzenta ou da chamada zona de penumbra de Carrió, no Direito Tributário” (DERZI, 2002,

p. 225), bem como a presença de conceitos indeterminados. Todavia, a Professora deixa

claro que no Direito Tributário, mesmo diante da zona cinzenta, os “casos-limites são

submetidos, assim como aqueles claramente identificáveis, a uma subsunção alternativa

excludente” e que “os tributos e as formas de exoneração especificam-se por meio de

conceitos determinados classificatórios (e não tipos fluidos e flexíveis).” (DERZI, 2002, p.

225-226). Vê-se aqui a preocupação da Professora com o conteúdo da norma jurídica

tributária, como única forma de apreensão do Direito Tributário41.

Entendemos, contudo, que, do ponto de vista metodológico, a indeterminação legal

é inevitável. E não é apenas a inevitabilidade ao se justificar a utilização dos conceitos

indeterminados. Há outros argumentos que justificam sua imprescindibilidade, tais como o

princípio da igualdade em matéria fiscal, que recomenda a plasticidade do sistema, de modo

a evitar que a criação artificiosa de situações, embora substancialmente idênticas a outras já

40

De acordo com o art. 97 do Código Tributário Nacional somente a lei pode estabelecer a majoração de tributos ou sua redução; a definição do fato gerador da obrigação tributária principal; a fixação da alíquota do tributo e de sua base de cálculo; a cominação de penalidades para as ações ou omissões contrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações nela definidas; as hipóteses de exclusão, suspensão e extinção de créditos tributários, ou de dispensa ou redução de penalidades. 41

A linha de pensamento da professora se ajusta ao ensinamento de Kelsen (2006, p. 79), que afirmava que “Apreender algo juridicamente não pode, porém, significar senão apreender algo como Direito, o que quer dizer: como norma jurídica ou conteúdo de uma norma jurídica, como determinado através de uma norma jurídica.”

Page 59: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

58

tributadas, mas que não estejam previstas formalmente em lei, possam provocar desvios e

injustiças, acarretando a sobrecarga tributária sobre determinada parcela dos contribuintes,

geralmente os assalariados, cujo rendimento não escapa à retenção do tributo diretamente

pela fonte pagadora.

Por outro lado, pensamos que do mesmo modo que não se pode pretender

absolutizar o princípio da “tipicidade fechada”, sob pena de se cair no formalismo

exacerbado, também não se pode pretender conferir aos conceitos jurídicos indeterminados

uma feição que acabe por conduzir à violação dos direitos fundamentais dos contribuintes.

Nesse sentido, o legislador não pode abdicar de seu dever de definir os elementos

essenciais dos tributos (sujeito ativo, sujeito passivo, fato gerador, base de cálculo,

alíquota), com base na competência tributária outorgada pela Constituição Federal, sob

pena de conceder à Administração um poder que excede os limites que lhe são impostos na

concretização da lei.

Cremos que foi este o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal no

julgamento do RE nº 343.446 (Relator Ministro Carlos Velloso, DJ 04/04/2003), que marcou

definitivamente a jurisprudência ao proclamar a compatibilidade dos conceitos jurídicos

indeterminados com o princípio da legalidade em matéria tributária.

No referido RE, o Plenário do Supremo Tribunal Federal enfrentou a questão de

saber se houve violação ao princípio da legalidade em matéria tributária a delegação contida

no inciso II do artigo 22 da Lei nº 8.212/91 (BRASIL, 1991). Esse dispositivo previu a base

de cálculo e três alíquotas (1%, 2% e 3%) da contribuição do SAT, devida pelas empresas

ao INSS (agora União), para o custeio das indenizações pagas pela seguridade social aos

trabalhadores que sofrerem acidentes do trabalho.

Estas três alíquotas seriam aplicáveis a “empresas em cuja atividade preponderante”

o risco de acidentes do trabalho for considerado – por decreto do Poder Executivo –

respectivamente leve, médio ou grave. Ou seja, a lei não determina quais as atividades

empresariais que devem ser enquadradas em uma das três alíquotas: isso fica a cargo do

Poder Executivo. Além disso, o § 3º do artigo 22 da Lei nº 8.212/91 (BRASIL, 1991)

determina que tais enquadramentos podem ser revistos e alterados por decreto, caso as

estatísticas venham a demonstrar, por exemplo, que uma atividade antes considerada de

risco leve, passe a apresentar risco crescente de acidentes do trabalho.

Segundo o Supremo Tribunal Federal, esta delegação não violou o princípio da

legalidade estrita. Para o mencionado Sodalício, o princípio da legalidade em matéria

tributária, insculpido no texto constitucional e regulado no Código Tributário Nacional, exige

que a lei fixe o fato gerador, a base de cálculo e a alíquota incidente, com fundamento na

segurança jurídica ou certeza do direito, não sendo dado à lei instituidora do tributo deferir a

Page 60: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

59

normas de hierarquia inferior a definição dos elementos que obrigatoriamente deve conter.

Todavia, isso não significa dizer que o legislador, pode, por meio da lei, esmiuçar a matéria,

tendo em conta o universo de atividades que são desenvolvidas pelas empresas. Assim,

entendeu o Tribunal que o regulamento (Decreto nº 3.048/99) veio atender perfeitamente à

necessidade de fiel cumprimento da lei no sentido de pormenorizar as condições de

enquadramento de uma atividade ser de risco leve, médio e grave, tomando como

elementos para classificação a natureza preponderante da empresa e o resultado das

estatísticas em matéria de acidentes do trabalho. De acordo com o acórdão recorrido, que

foi acompanhado pelo Ministro Relator Carlos Velloso:

O que ficou submetido ao critério técnico do Executivo, e não ao arbítrio, foi a determinação dos graus de risco das empresas com base em estatística de acidentes do trabalho, tarefa que obviamente o legislador não poderia desempenhar. Trata-se de situação de fato não só mutável mas que a lei busca modificar, incentivando os investimentos em segurança do trabalho, sendo em conseqüência necessário revisar periodicamente aquelas tabelas. A lei nem sempre há de ser exaustiva. Em algumas situações o legislador é forçado a editar normas “em branco”, cujo conteúdo final é deixado a outro foco de poder, sem que nisso se entreveja qualquer delegação legislativa. Essa atribuição não precisa ser, necessariamente, ao Chefe do Executivo ou a Ministro de Estado. As circunstâncias dirão a quem deferir essa competência. (TRF 4ª Região, relatora Desembargadora Federal Ellen Gracie).

Esse entendimento do Supremo Tribunal Federal acena para uma mudança

importante de paradigma no tocante ao princípio da legalidade em matéria tributária e

revela, em última análise, o modo pelo qual a Constituição Federal assumiu o compromisso

de respeitar duas necessidades sociais: a segurança jurídica e a igualdade. Sem ignorar a

necessidade de que as leis devem ser elaboradas de modo a prever o maior número

possível de condutas, reforçando o princípio da segurança jurídica e os direitos e garantias

dos cidadãos-contribuintes, o Tribunal considerou que algumas questões são deixadas em

aberto, para resolução ulterior, porquanto só podem ser adequadamente resolvidas e

analisadas quando surgem num determinado caso concreto. Em outras palavras: nosso

sistema jurídico não mais convive com teorias que, ao argumento de que a certeza e a

segurança não podem ser sacrificadas, pregam o formalismo exacerbado e, assim, não

conseguem responder àqueles casos que se encontram na chamada zona cinzenta (os

casos difíceis) e que só podem ser devidamente solucionados quando considerados à luz

das finalidades sociais.

Dessa forma, diante da impossibilidade de a lei disciplinar toda a atuação da

Administração Tributária, de modo a torná-la previsível; diante do fato de que inexiste, na

Constituição Federal, a consagração do princípio da tipicidade fechada e diante da

necessidade de harmonização do princípio da legalidade tributária (no sentido de exigência

Page 61: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

60

de reserva absoluta de lei formal) com o da igualdade tributária, de idêntica estatura

constitucional, parece-nos mesmo inevitável o recurso a conceitos jurídicos indeterminados,

pelo que entendemos perfeitamente aplicável ao Direito Tributário o pensamento tipológico.

As consequências daí decorrentes, como a atribuição à Administração Tributária, no

momento da aplicação da lei a um caso concreto considerado difícil, de uma certa margem

de liberdade na apreciação das circunstâncias específicas que envolvem o caso concreto,

não podem resultar no exercício arbitrário do poder, muito menos resultar em tributação por

analogia. Ao contribuinte deve sempre ser assegurado o exercício do direito à ampla defesa

e do contraditório, do além da garantia consubstanciada no princípio da inafastabilidade do

controle jurisdicional. Nesse sentido, assevera Marciano Seabra de Godoi:

Parece-nos totalmente aplicável ao direito brasileiro a justificativa da tipicidade (ressaltada pela doutrina e jurisprudência alemãs) como exigência de que seja dada ao contribuinte a possibilidade de conhecer e computar seus encargos tributários com base exclusivamente na lei. Daí concordarmos com Carlos Palao que a vedação da analogia na aplicação das normas instituidoras de tributos tem raiz constitucional e portanto constitui algo mais do que simplesmente uma opção política do legislador. (2008, p. 83).

Além disso, cumpre-nos ressaltar que a investigação do tema sob análise levou-nos

a uma nova visão, segundo a qual o Direito Tributário está intrinsecamente ligado ao Direito

Constitucional (os princípios da legalidade, da capacidade contributiva, da igualdade e os

direitos e garantias dos cidadãos-contribuintes estão disciplinados na Constituição Federal),

ao Direito Penal (a tipicidade tem raízes na dogmática penal), à Teoria do Direito (os

conceitos jurídicos indeterminados são uma questão de metodologia jurídica), ao Direito

Administrativo (a questão da margem de livre apreciação administrativa não pode ser

resolvida sem levar em consideração os estudos sobre o tema realizados pelos

administrativistas), ao Direito Financeiro (a tributação relaciona-se diretamente com as

finanças públicas), ao Direito Econômico (a tributação representa importante elemento para

consecução dos princípios da ordem econômica) e ao Direito Civil (o Direito Tributário incide

sobre relações jurídicas privadas). Defendemos, portanto, o constante diálogo do Direito

Tributário com esses outros ramos do Direito, a fim de evitar seu empobrecimento

dogmático.

Page 62: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

61

3. SIMULAÇÃO NO DIREITO TRIBUTÁRIO

3.1. Introdução

No capítulo anterior, viu-se que a corrente formalista assevera que inexiste, em

nossa ordem jurídica, uma norma geral antielisiva, e que sem a prática de qualquer ilicitude

(simulação, fraude), prevalece o direito à economia de tributo, cuja materialização se dá

através do planejamento tributário. Já a corrente doutrinária que defende a tese de que o

parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966) é uma norma

geral antielusiva (ressalvando-se a posição de Marco Aurélio Greco, para quem a norma em

comento deve ser compreendida em conformidade ao princípio da capacidade contributiva,

de modo a conferir-lhe eficácia positiva), propugna que não só os atos simulados (em

sentido restrito) estariam sujeitos à desconsideração pelo fisco, mas também os praticados

em fraude à lei, com abuso de direito ou com abuso de forma, ou seja, os chamados ilícitos

atípicos.

Viu-se que as duas correntes convergem em um ponto: havendo simulação e fraude

(como sinônimo de sonegação, crime) o negócio não é válido, sendo inoponível ao fisco, o

qual deverá desconsiderá-lo e aplicar a multa agravada. Além disso, o contribuinte responde

na esfera penal, quando configurado crime contra a ordem tributária, nos termos da Lei nº

8.137/90 (BRASIL, 1990).

Todavia, o consenso em torno da simulação como limite de validade dos atos ou

negócios jurídicos praticados pelos particulares é meramente aparente. Isso porque o

conceito que se adota em relação à simulação encontra-se umbilicalmente ligado ao

conceito de negócio jurídico e, como será demonstrado a seguir, as teorias em torno do

negócio jurídico se ligam fundamentalmente às ideologias que influenciaram cada escola do

pensamento jurídico. Assim, a teoria do voluntarismo jurídico, cujo fundamento se assenta

no dogma da teoria da vontade, surgiu do ideário liberalizante da Revolução Francesa, de

1789. Para os seguidores dessa teoria, a vontade humana é o fator essencial na criação,

modificação e extinção dos direitos e obrigações. Com o surgimento do Estado Social e as

pressões da nova ordem social, surgem novas teorias acerca do negócio jurídico, mais

voltadas à proteção da confiança e da boa-fé nas relações econômicas, o que também

acabou por modificar o conceito tradicional de simulação, ampliando-o, de modo a torná-lo

mais adaptado ao constante processo de desenvolvimento das operações econômicas, as

quais se utilizam cada vez mais de negócios jurídicos atípicos e anômalos, que não se

ajustam aos conceitos tradicionais referentes aos negócios típicos, exigindo dos teóricos do

Page 63: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

62

direito uma nova concepção, uma nova metodologia para abordagem de tão intricado e

complexo tema.

Dessa forma, o conceito de simulação como “um caso de divergência entre a

vontade (vontade real) e a declaração (vontade declarada), procedente de acordo entre o

declarante e o declaratário e determinada pelo intuito de enganar terceiros.” (XAVIER, 2002,

p. 52), não mais se ajusta à evolução econômica e social, muito menos às exigências do

Estado Democrático de Direito.

Consoante será demonstrado a seguir, o conceito de simulação, longe de ser um

conceito fechado, de cunho classificatório, possui traços característicos do tipo (em sentido

próprio), como a abertura, a generalidade, a gradação, a valoração. Tal fato foi claramente

percebido pelo Professor Godoi (2007, p. 284-293) que alude ao fato de que o fisco, nos

últimos anos, com o apoio do Conselho de Contribuintes e do Poder Judiciário, vem

desconsiderando os atos abusivos de planejamento tributário (os chamados atos elusivos),

com base em um conceito alargado de simulação .

A simulação será, portanto, o tema central do presente capítulo. Demonstrar-se-á

que o Brasil, na linha das mais modernas legislações ocidentais, vem adotando mecanismos

para coibir a prática abusiva do planejamento tributário, seja pela adoção de normas

específicas antielusivas42, seja pela adoção de um conceito de simulação muito próximo ao

modo de pensar tipológico.

3.2. A teoria dos negócios jurídicos e sua influênc ia na conceituação da simulação. As concepções subjetivista, objetivista e estruturalista e seus respectivos conceitos de simulação

3.2.1. A concepção subjetivista e o conceito de sim ulação

Para a (re)construção do conceito de simulação no Direito Tributário e para a melhor

compreensão da utilização deste instituto no combate ao planejamento tributário abusivo,

42

Exemplo desta regra específica adotada no ordenamento jurídico brasileiro é o artigo 74 da Medida Provisória n° 2.158-34, o qual prevê que “para fim de determinação da base de cálculo do imposto de renda e da CSLL, nos termos do art. 25 da Lei n° 9. 249, de 26 de dezembro de 1995, e do art. 21 desta Medida Provisória, os lucros auferidos por controlada ou coligada no exterior serão considerados disponibilizados para a controladora ou coligada no Brasil na data do balanço no qual tiverem sido apurados na forma do regulamento.” Sobre o assunto vide GODOI, Marciano Seabra de. O imposto de renda e os lucros auferidos no exterior. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes questões atuais de direito tributário..São Paulo: Dialética, Volume 6, 2002. Vide também MACIEL, Taísa Oliveira. Tributação dos lucros das controladas e coligadas estrangeiras. Rio de Janeiro: Renovar. 2007.

Page 64: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

63

mister o estudo das concepções de negócio jurídico, porquanto o conceito de simulação

adotado por cada autor conecta-se com a sua respectiva posição em relação à teoria do

negócio jurídico.

Duas são as concepções tradicionais acerca dos negócios jurídicos: a subjetivista e a

objetivista. Segundo Miranda (1980, p. 1-2), para a corrente doutrinária subjetivista, o

negócio jurídico é, antes de mais nada, uma manifestação de vontade, destinada a criar

determinados efeitos. Para esta corrente, a manifestação de vontade pode ser analisada a

partir de dois elementos: a vontade e a declaração.

Em um negócio jurídico dito normal, os elementos vontade e declaração estão em

perfeita harmonia43. Entretanto, há situações em que se constata uma divergência entre tais

elementos e, então, se põe o problema de qual elemento deve prevalecer na solução a ser

dada à divergência existente, que inquina o negócio jurídico de um vício ou defeito.

Conforme a importância que é conferida a cada um desses elementos (vontade e

declaração), pode-se subdividir a corrente subjetivista em duas concepções: a voluntarista e

a declaracionista.

A teoria voluntarista, também conhecida como teoria da vontade real ou teoria

volitiva, foi desenvolvida por Savigny, e preconizava que vontade e declaração não são dois

elementos independentes um do outro, mas ligados “por um vínculo natural de dependência”

(SANTOS, 1999, p. 8), na medida em que a vontade necessita de um sinal exterior para ser

reconhecida, que é justamente a declaração. Todavia, havendo contradição entre a vontade

e a declaração, tem-se uma declaração sem vontade e, em decorrência da importância

primacial desta, diz-se que o negócio é ineficaz, já que nenhum valor pode ter uma

declaração que não seja a revelação de uma vontade real. Vale dizer: a vontade necessita

da declaração para ser exteriorizada, todavia, em decorrência da maior importância daquela,

o efeito jurídico decorrente da constatação de divergência entre vontade e declaração é a

ineficácia do negócio jurídico.

Se por um lado, essa concepção é aceitável e rigorosamente fundamentada, por

outro, se levada ao extremo, conduziria a consequências injustas e perigosas, além do que

causaria instabilidade e insegurança nas relações jurídicas, dificultando as transações. Nas

palavras de José Beleza dos Santos,

[...] Por esta doutrina, quem confiasse na verdade, na seriedade, na eficácia de um ato jurídico poderia ver a sua confiança iludida, a sua boa-fé ludibriada pela existência imprevista de um desacordo entre a vontade e a declaração que afetasse a formação jurídica desse ato e o ferisse de nulidade. E isto poderia acontecer mesmo que o declarante desse causa,

43

Nas palavras de José Beleza dos Santos, esta harmonia entre vontade e declaração pode ser assim expressa: “Quis-se juridicamente aquilo que se declarou e declarou-se aquilo que realmente se quis.” (SANTOS, 1999, p. 6).

Page 65: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

64

por dolo ou culpa sua a essa falta de conformidade entre a vontade e a sua manifestação e ainda que aquele que confiou na eficácia da declaração procedesse com inteira boa-fé e com a mais cuidadosa diligência. (SANTOS, 1999, p. 10).

Nessa linha de pensamento, Ferrara alertava que “o dogma da vontade deriva duma

concepção exagerada do arbítrio humano, a que talvez não seja alheia a influência das

doutrinas do direito natural, dominantes no século XVIII, duma homenagem incondicional à

soberania e poder do indivíduo.” (FERRARA, 1999, p. 25). Ferrara não era um defensor do

voluntarismo extremado. Ao invés disso, defendia que a ordem jurídica não poderia abdicar

de sua função reguladora de todo o mundo econômico e que, protegendo o interesse de um

só indivíduo, deixaria sem amparo os interesses sociais.

Em decorrência dos excessos e injustiças dessa concepção voluntarista, os juristas

propuseram formulações para corrigir-lhe o rigor e remediar suas consequências, mas sem

atacar seus princípios fundamentais. Assim, surgem as teorias da culpa in contrahendo de

Ihering e do compromisso tácito de garantia de Windscheid44.

De acordo com a teoria desenvolvida por Ihering, não seria justo que aquele que deu

causa à ineficácia do negócio jurídico não ficasse sujeito a qualquer espécie de

responsabilidade. Para evitar tal injustiça, caberia ao declarante a responsabilidade pelo

ressarcimento, ao destinatário da declaração, de todos os prejuízos sofridos por este em

decorrência de uma declaração de vontade divergente da vontade real. Acentua Miranda

(1980, p. 6) que a teoria desenvolvida por Ihering se baseia no princípio de que cabe ao

contraente agir com diligência, não só nas relações jurídicas já estabelecidas, mas também

nas que esteja formando, não deixando quem queira contratar de boa fé à mercê da

negligência de outrem. Dessa forma, todo contratante deveria responder por danos

culposamente causados à outra parte pela celebração de contrato posteriormente declarado

nulo.

A teoria do compromisso tácito de garantia, formulada por Windscheid, preconizava

que o declarante deveria assumir, na celebração de um negócio jurídico, uma obrigação de

garantia tácita por todos os prejuízos causados com sua declaração divergente da vontade

real. Tal teoria se assenta sobre a responsabilidade incondicionada, que vai muito além da

culpa, colocando o declarante em uma situação de injustiça comparável à do outro

contratante que sofre os prejuízos decorrentes de uma declaração divergente da vontade

real.

44

Para não deixar margem à dúvida, esclareça-se que as teorias da culpa in contrahendo e do compromisso tácito de garantia integram a concepção voluntarista. Seriam teorias menos radicais do que a proposta por Savigny, mas que mantêm a linha da preeminência da vontade sobre a declaração.

Page 66: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

65

Impende ressaltar, nesse ponto, que as definições da concepção voluntarista

difundiram-se no Brasil e foram adotadas pela maioria dos doutrinadores civilistas

tradicionais, como Pontes de Miranda, Homero Prates, Eduardo Espínola, Paulo de Lacerda,

Vicente Ráo, Antônio Joaquim Ribas, Silvio Rodrigues, Washington de Barros Monteiro45,

João Franzen Lima, Serpa Lopes, Orlando Gomes46 e Clóvis Beviláqua. Corresponde, ainda,

grosso modo, à definição do artigo 81 do Código Civil de 1916 (BRASIL, 1916).

Para os autores adeptos dessa concepção, que professam o dogma da vontade, a

simulação seria conceituada como uma divergência intencional entre a vontade real, isto é,

aquilo que as partes efetivamente pretendiam em seu íntimo e a declaração47. Nas palavras

de Ubaldino Miranda:

Na simulação – diz-se – as partes emitem uma declaração deliberadamente desconforme com a intenção; a divergência entre o que aparentam querer, na declaração, destinada a ser conhecida do público, e a vontade real, a verdadeira intenção e que deverá permanecer secreta, é deliberada de comum acordo entre as partes. (MIRANDA, 1980, p. 13).

Segundo Pontes de Miranda (1954, p. 373), o verbo simular deriva do termo latim

simul, que significa fingir ser, ou aparentar o que não se é. Com base nesses significados, a

doutrina passou a se referir à simulação absoluta como ficção, disfarce, ilusão, fantasma,

embuste, máscara, etc; enquanto que, na simulação relativa, o negócio simulado era

considerado invólucro, capa ou roupagem destinada a encobrir o negócio subjacente. Como

o negócio simulado, para os voluntaristas, tinha como finalidade enganar terceiros, tal intuito

era descrito também como malícia, ludíbrio, artifício, destreza, astúcia, estratagema, dentre

outros. Foi com base nestas expressões que a doutrina tradicional passou a designar a

simulação:

Negócio simulado é o que tem uma aparência contrária à realidade, ou porque não existe em absoluto ou porque é diferente da sua aparência. Entre a forma extrínseca e a essência íntima há um contraste flagrante: o negócio que, aparentemente, é sério e eficaz, é, em si, mentiroso e fictício, ou constitui uma máscara para ocultar um negócio diferente. Esse negócio, pois, é destinado a provocar uma ilusão no público, tal como aparece declarada, quando, na verdade, ou não se realizou um negócio ou se realizou outro diferente do expresso no contrato. (FERRARA, 1999, p. 51).

45

“A característica primordial do ato jurídico é ser um ato de vontade.” (MONTEIRO, 1989, p. 175). 46

“Negócio jurídico é toda declaração de vontade destinada à produção de efeitos jurídicos correspondentes ao intento prático do declarante, se reconhecido e garantido pela lei.” (GOMES, 1988, p. 280 – destaques no original). 47

Orlando Gomes adota a concepção tradicional, mas em determinada passagem de sua obra parece concordar com a concepção objetivista que conceitua a simulação como a divergência entre a intenção prática das partes e a causa do negócio (função econômico-social do negócio).

Page 67: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

66

Para José Beleza dos Santos, na simulação se observa a divergência entre a

vontade e a declaração, que tem por fim enganar, “fazendo-se com que os outros confiem

em uma declaração aparente como se ela correspondesse a uma vontade real.” (SANTOS,

1999, p. 48).

Caio Mário da Silva Pereira, seguindo essas orientações tradicionais, diz que a

simulação consiste “em celebrar-se um ato, que tem aparência normal, mas que, na

verdade, não visa ao efeito que juridicamente devia produzir. Como em todo negócio

jurídico, há aqui uma declaração de vontade, mas enganosa.” (PEREIRA, 1995, p. 339).

Washington de Barros Monteiro, com apoio nas lições de Clóvis Beviláqua, ensina

que a simulação “é a declaração enganosa da vontade, visando a produzir efeito diverso do

ostensivamente indicado.” (MONTEIRO, 1989, p. 207).

Com efeito, para os adeptos da corrente voluntarista, “o que existe de mais

característico no negócio simulado é a divergência intencional entre a vontade e a

declaração. [...] as partes não querem o negócio; querem somente fazê-lo aparecer e, por

isso, emitem uma declaração não conforme com a sua vontade.” (FERRARA, 1999, p. 52).

“Na simulação, pois, os contratantes concordam sobre a aparência do ato que não efetuam

realmente, ou que efetuam, mas não sob aquela forma visível de que se servem, como

forma de enganar terceiros.” (FERRARA, 1999,p. 52).

Nesse ponto, identificam-se os requisitos essenciais da simulação para a concepção

tradicional: a) uma declaração enganosa, ou seja, deliberadamente não conforme com a

intenção das partes; b) concertada com a outra parte; c) para enganar ou iludir terceiros

(FERRARA, 1999, p. 52; MONTEIRO, 1989, p. 208).

Em suma, aqueles que simulam pretendem que aos olhos de terceiros apareça uma

situação que, na realidade, não existe, mas que precisa ser exteriorizada mediante uma

declaração deliberadamente não conforme com a vontade real, para que seja atingido o

objetivo que é o de tão-somente iludir, enganar terceiros. Vale dizer: aquele que simula

emite de forma deliberada, consciente, uma declaração fictícia, concertada com a outra

parte, com a finalidade de enganar terceiros. As partes recorrem a este artifício para fazer

crer na existência de um ato que na verdade é inexistente ou que é de natureza diversa do

ato verdadeiro que pretendem esconder, com o objetivo de “defraudar terceiros ou ocultar

uma violação da lei.” (FERRARA, 1999, p. 53).

A doutrina, nesse ponto, distingue o intuito de enganar do intuito de prejudicar,

bastando o primeiro para caracterizar a simulação. O fim de prejudicar caracterizaria a

simulação fraudulenta, realizada com o objetivo de “frustrar direitos de terceiros ou de

ocultar a violação da lei.” (MIRANDA, 1980, p. 15).

Page 68: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

67

Tais conceitos, contudo, revelam muito pouco quanto à repercussão que tal instituto

possa ter no campo do Direito, além do que geram muitas confusões quando comparados a

outros conceitos como o de erro ou fraude à lei. De fato, a tese da divergência entre a

vontade e a declaração é incapaz de explicar os vários e complexos aspectos do fenômeno

simulatório, os quais exigem soluções insusceptíveis de redução a uma tese única que

proclama a preeminência da vontade.

Diante da insuficiência da tese voluntarista, começaram a surgir críticas, inclusive

entre os próprios adeptos do conceito tradicional de simulação, discordando da tese única

da divergência entre a vontade e a declaração com o fim de enganar terceiros.

As discordâncias, em regra geral, se baseavam nos seguintes argumentos: a) a

divergência é sempre unilateral, deixando de ser relevante quando conhecida pela outra

parte, como ocorre na simulação; b) a redução da simulação à divergência entre a vontade e

a declaração redundaria na aceitação, por qualquer uma das teorias subjetivistas (da

vontade ou da declaração), da prevalência do negócio simulado (declarado) ou do negócio

real (querido), soluções estas inexatas e contrárias à ordem jurídica; c) nenhuma das partes

manifesta uma vontade em contraste com o íntimo querer, posto que há uma concordância

de ambas em dar uma certa forma a uma vontade diversa da verdadeira; d) não se pode

falar em conflito entre vontade e declaração, na medida em que há na simulação um

entendimento entre as partes sobre o valor das duas declarações; e) segundo a doutrina

tradicional, a simulação, embora tenha como escopo o engano, não se dirige diretamente a

terceiros de boa-fé, mas é feita de modo que estes tivessem dela conhecimento. Entretanto,

ao defender a tese de que haveria uma reserva mental bilateral na simulação, e sendo a

reserva mental juridicamente irrelevante em face do contraente que a ignora, a doutrina

tradicional levaria à conclusão de que a simulação necessariamente se dirigiria a terceiros, o

que contradiz os próprios fundamentos da doutrina voluntarista (MIRANDA, 1980, p. 18-21).

Diante dessas críticas e da constatação de que as teorias de Ihering e de

Windscheid não resolviam as injustiças a que conduzia o rigor da teoria volitiva de Savigny,

e diante do fato de que não atendiam às exigências de certeza e segurança que deveriam

presidir as relações jurídicas surge, na tentativa de solucionar este problema, a teoria da

declaração formulada inicialmente por Röver, seguido por outros autores alemães

(MIRANDA, 1980, p. 7)48.

A essência desta teoria encontra-se no princípio de que a declaração emitida por

pessoa capaz produz efeitos jurídicos sem se considerar se o declarado foi realmente

querido ou não (MIRANDA, 1980, p. 7; FERRARA, 1999, p. 60). Ou seja, deve prevalecer a

48

Para Pedro Arruda França (2006, p. 3), a formulação da teoria da declaração teve início com os estudos de Liebe, os quais foram aperfeiçoados por Bülow.

Page 69: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

68

declaração de vontade, na sua forma objetiva, na medida em que é a base do negócio

jurídico. Para os adeptos da teoria da declaração, o ordenamento jurídico não pode atribuir

consequências jurídicas à vontade interior, às abstrações, à subjetividade, ao desejo do

declarante, à consciência individual, aos domínios da psicologia, porque qualquer

investigação nesse campo seria arbitrária e colocaria em risco a segurança, a agilidade e a

facilidade dos negócios, características cada vez mais acentuadas nas modernas

organizações econômicas. Pode-se concluir que, para essa teoria, a declaração depois de

formulada ganha vida própria, devendo ser interpretada em conformidade com os princípios

da boa-fé, da equidade e das necessidades do comércio jurídico, e não em conformidade

com o subjetivismo preconizado pela teoria da vontade real. “Por isso, em princípio, na

doutrina da declaração não é a divergência entre a vontade real e a declarada que pode

anular o ato jurídico, mas sim qualquer defeito emergente da declaração.” (SANTOS, 1999,

p. 17).

Diversos autores seguiram contribuindo para a evolução do tema, até que se chegou

a uma versão mais adiantada e menos radical da corrente declarativista, que foi a

desenvolvida por Köhler. Segundo este teórico, a simulação deveria ser vista como um

fenômeno unitário, isto é, o ato simulado seria o resultado de duas declarações que se

anulariam ou se neutralizariam. Na realidade, as partes envolvidas não desejariam operar

nenhuma alteração em suas situações jurídicas. Nesse contexto, a duplicidade de

declarações conferiria unidade ao ato simulado não por uma divergência entre vontade e

declaração, mas pela troca de declarações entre as partes que se anulariam ou se

neutralizariam, criando uma nova declaração, de modo a fazer crer a terceiros que existiria a

mencionada divergência.

Essa idéia de que existem no negócio simulado duas declarações que se anulam ou

se neutralizam, segundo ensina Miranda (1980, p. 21), foi de suma importância para a

evolução do tema e para explicar a razão da nulidade do ato simulado. Ensina o

mencionado autor que o fenômeno da simulação pressupõe a aquiescência dos simuladores

em conferir a uma situação jurídica real uma aparência que não corresponde à realidade, ou

seja, um fingimento. Assim sendo, não se pode desconsiderar a importância do momento

psicológico em que os simuladores unem suas duas declarações negociais com o fim de

criar uma aparência enganadora. Disso resulta a importância do acordo de simular ou

acordo simulatório que é a essência do fenômeno simulatório. Esta visão unitária do

fenômeno simulatório somente foi possível a partir dos fundamentos da teoria de Köhler (daí

a sua importância para o desenvolvimento do tema), a qual preconizava, no tocante aos

efeitos da simulação, a necessidade de se reduzirem os efeitos nocivos do negócio

aparente, invocando o postulado da justiça. Nesse sentido, proclama que um negócio

Page 70: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

69

destinado a aparecer como verdadeiro deve valer como tal em relação a terceiros de boa-fé

(MIRANDA, 1980, p. 22).

Entretanto, as teorias declaracionistas também foram objeto de críticas. A principal

delas era a de que, se por um lado, a doutrina da vontade real atendia demasiadamente aos

interesses do declarante, por outro, a teoria da declaração punha inteiramente de lado

aquele interesse, o que acabaria por também provocar insegurança e incerteza nos

negócios.

Reportando a Voigt, Ferrara preconizava que “Eliminando a investigação subjetiva e

tornando decisiva a fórmula da declaração, abre-se campo à dialética, às cavilações e aos

imbróglios, [...] os menos inteligentes breve serão vítimas dos mais astutos, que saberão

utilizar-se do equívoco.” (FERRARA, 1999, p. 27). Vale dizer: a teoria declaracionista

também se mostrou inadequada como meio de proteção jurídica, em razão do excesso de

formalismo, que relegava a vontade a um plano inferior, conferindo importância somente à

declaração, que poderia ser concretamente falsa ou diversa da vontade. A teoria

declaracionista não fez mais do que deslocar o defeito que informava a teoria da vontade,

que protegia unicamente o declarante, para proteger unicamente o declaratário,

permanecendo o problema da consideração unilateral de interesses, com a concessão de

um favor a uma das partes, com prejuízo injusto para a outra.

Com o objetivo de atenuar os exageros das teorias extremas, surgem duas teorias

intermediárias: a teoria da confiança, mais próxima da doutrina da declaração, e a teoria da

responsabilidade, que se aproxima mais da doutrina da vontade real.

Pela teoria da confiança ou teoria do crédito social49, deve-se atender mais à

declaração do que à vontade real, uma vez que o direito deve se basear mais na certeza e

na segurança do que na verdade. Para tanto, a declaração, ainda que não corresponda à

vontade real, deve ser séria, pois é necessário que o destinatário tenha fundadas razões

para crer que a declaração se baseia em uma vontade séria, verdadeira. É, portanto, no

princípio da proteção da boa-fé das pessoas a quem a declaração se dirige que se traduz

essa teoria (SANTOS, 1999, p. 40). “Enquanto, pois, um dos contratantes tiver razão para

acreditar que a declaração corresponde à vontade do outro, há de se considerá-la perfeita,

por ter suscitado a legítima confiança em sua veracidade.” (GOMES, 1988, p. 289). O

negócio somente será anulado se comprovada a má-fé do destinatário da relação jurídica,

consistente no conhecimento daquela divergência (MIRANDA, 1980, p. 8).

Todavia, consoante acentua França (2006, p. 6), o fundamento social que é atribuído

à teoria da confiança não significa a superioridade do interesse coletivo em detrimento do

49

Segundo França (2006, p. 7) e Gomes (1998, p. 290), encontra-se no pensamento de Grotius, a origem da teoria da confiança.

Page 71: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

70

interesse individual, muito embora se valha de princípios opostos àqueles que fundamentam

a teoria da vontade. O que se pretende proteger, através desta teoria, é, em última análise,

o interesse individual daquele que acredita numa declaração de vontade realizada com

vícios.

Nesse sentido, Orlando Gomes, para quem o fundamento social que se atribui à

teoria da confiança não tem o sentido de uma imposição do interesse coletivo, muito embora

contribua para dar maior segurança ao comércio jurídico. Segundo o mencionado autor,

“Pela teoria da confiança, não se tutelam interesses gerais contrapostos aos interesses

individualísticos protegidos nos esquemas jusnaturalistas, senão o interesse individual de

quem acredita numa declaração de vontade, tão individual quanto o do proponente que

consente defeituosamente.” (GOMES, 1988, p. 290)50.

Paralelamente, surgiu a teoria da responsabilidade, formulada por Windscheid. Essa

teoria parte da formulação feita por Savigny, de que é a vontade real que o ordenamento

jurídico deve proteger e não se baseia apenas no princípio da proteção do comércio jurídico

e na boa-fé daqueles a quem se destina a declaração, mas também na proteção da boa-fé

do declarante. Dessa forma, constatada a divergência entre a vontade e a declaração, não

basta o ressarcimento dos prejuízos ao destinatário, com a conseqüente anulação do

negócio. O negócio subsistirá e o declarante ficará vinculado ao prometido, mas desde que

tenha agido com dolo ou culpa (MIRANDA, 1980, p. 8). Em outras palavras: havendo o

desacordo entre o declarado e o querido, e sendo o declarante o responsável por esse

desacordo, não poderá se valer de seu proceder ilícito para invalidar o negócio jurídico.

Neste ponto, Ferrara ensina que a lei deve impor limites à eficácia da vontade e à sua

proteção. O direito deve proteger “as determinações sérias da vontade, que correspondem a

um interesse lícito, que se emitem ex fide bona, não as malícias e os caprichos da

autonomia privada.” Doutro modo, os negócios jurídicos ficariam à mercê dos contratantes

de má-fé ou negligentes (FERRARA, 1999, p. 30 e 46).

50

Humberto Theodoro Júnior considera que o novo Código Civil, “[...] ao disciplinar genericamente os vícios de consentimento tomou, apenas em aparência, partido da defesa da vontade real, permitindo a anulação dos negócios em que o consentimento não for livre e conscientemente manifestado (coação, dolo, lesão, estado de perigo). [...] Como se vê, o sistema geral dos vícios de consentimento, na evolução do Código de 1916, para o atual, submeteu-se, predominantemente, à teoria da confiança, onde o destaque maior é conferido à boa-fé, à lealdade, e à segurança das relações jurídicas. Essa teoria é a que corresponde ao princípio de socialidade, de que fala o Prof. MIGUEL REALE, ao revelar a visão geral do Projeto que se converteu no novo Código Civil, dentro da qual “o sentido social é uma das características mais marcantes (...) em contraste com o sentido individualista que condiciona o Código Civil ainda em vigor (o de 1916).” Ainda segundo Humberto Theodoro Júnior, os tempos atuais são os do “triunfo da socialidade, fazendo prevalecer os valores coletivos sobre os individuais, sem perda, porém, do valor fundante da pessoa humana.” Realmente, é a teoria da confiança que, valorizando a segurança do tráfico jurídico proporciona a supremacia no campo dos vícios de consentimento do interesse social sobre o individual.” (THEODORO JÚNIOR, 2003, p. 28 – destaques constantes do original).

Page 72: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

71

Ferrara considerava a teoria da responsabilidade a que melhor equilibrava os

interesses das partes. “No ato jurídico devem concorrer, conjuntamente, vontade e

declaração. [...] Ao fazer a estimativa do valor declarado, deve remontar-se à intenção

daquele que quis, aclarando assim e devidamente iluminando o conteúdo volitivo

manifestado na declaração. [...] Verdade é que esta consideração interna tem limites que lhe

são impostos pelo interesse geral, mas não se pode prescindir dela a priori, declarando que

a vontade é um quid sem importância.” (FERRARA, 1999, p. 30).

Coerente com seu entendimento de que a teoria da responsabilidade é a melhor

solução para resolver os problemas ocasionados pela constatação da divergência entre

vontade e declaração, o mencionado autor, no tocante à simulação, enumera seus

requisitos: uma declaração deliberadamente não conforme com a intenção; concertada de

acordo entre as partes; para enganar terceiras pessoas, acentuando a essencialidade do

último requisito, qual seja, a intenção de enganar terceiros de boa-fé. Segundo o

mencionado teórico:

O que existe de mais característico no negócio simulado é a divergência intencional entre a vontade e a declaração. O interno, aquilo que se quer, e o externo, ao que se declarou, estão em oposição consciente. Com efeito, as partes não querem o negócio; querem somente fazê-lo aparecer e, por isso, emitem uma declaração não conforme com a sua vontade, que predetermina a nulidade do ato jurídico e, ao mesmo tempo, serve para provocar a ilusão falaz da sua existência. Os que simulam pretendem que aos olhos de terceiros apareça formada uma relação que, na realidade, não deve existir, mas da qual se quer mostrar a exterioridade enganadora, mediante uma declaração efêmera, vazia, fictícia, que não representa uma vontade real e é, por essa razão, nula, destinada unicamente a iludir o público. (FERRARA, 1999, p. 52)

A despeito da evolução do tema e do surgimento de posições menos radicais, que

buscavam conferir uma maior estabilidade às relações jurídicas e um meio termo justo para

fugir das soluções rígidas e inadaptáveis à complexidade das situações criadas pelo

comércio jurídico, nem por isso tais teorias se desvincularam do voluntarismo e da ideologia

própria do liberalismo, baseado no individualismo. Neste contexto, o fenômeno da simulação

continuava a suscitar muitas dúvidas e conflitos, demandando esforços da teoria jurídica

para identificar critérios de objetivação da vontade. Assim é que, a partir dos estudos de

Emilio Betti, surgiu a concepção objetivista do negócio jurídico, que trouxe novas luzes ao

fenômeno da simulação, conforme será a seguir exposto.

Page 73: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

72

3.3.2. A concepção objetivista e o conceito de simu lação

Em outro extremo, mas ainda na linha do positivismo normativista, surge a teoria

objetivista, que defende a tese da prevalência da autonomia da vontade sobre o dogma da

vontade, em razão da função econômico-social do negócio jurídico (FRANÇA, 2006, p. 9).

Seu idealizador, Emilio Betti51, sustentava que a vontade não deveria ser vista

apenas como um fato psíquico interno, mas sim em relação à sua função, ao lugar que lhe

deveria ser atribuído na estrutura de um fato social. A vontade não estaria, portanto, em

primeiro plano no negócio jurídico, na medida em que, no momento em que o negócio se

realiza, ela já teria percorrido o seu iter e atingido sua meta definitiva, que é a de concretizar

uma resolução firme, cabendo à ordem jurídica, a partir daí, determinar os efeitos desta

declaração, em conformidade com a função do negócio.

Vale dizer: o preceito da autonomia privada (o poder de auto-regulamentação dos

interesses pelas partes) aparece pela primeira vez com a declaração de vontade. A partir

daí, adquire vida própria, separando-se da figura do declarante e da vontade que lhe deu o

ser, podendo, inclusive, se contrapor a esta52. Neste contexto, o negócio jurídico, para a

corrente objetivista, deve ser conceituado como instrumento dinâmico posto à disposição

dos particulares para o exercício do poder de auto-regência dos próprios interesses, ou seja,

o negócio jurídico seria assim “o ato de autonomia privada a que o direito liga o nascimento,

a modificação e a extinção das relações jurídicas entre os particulares” (MIRANDA, 1980, p.

3)53, e não mais a declaração de vontade destinada a produzir efeitos jurídicos.

Entretanto, “A autonomia concedida aos particulares – escreve Betti – não é

absoluta, porquanto se lhes compete escolher livremente os escopos que melhor se

adaptem à satisfação de seus interesses, a ordem jurídica continua sendo soberana em

valorar tais escopos, de acordo com a relevância social destes e de harmonia com as

exigências da função ordenadora do direito.” (MIRANDA, 1980, p. 4). 51

Sua obra Teoria generale del negozio giuridico foi publicada pela primeira vez em 1943. 52

Em sua obra, Teoria Pura do Direito, Kelsen deixa clara sua visão objetiva em relação ao negócio jurídico. Diz o autor: “Na medida em que a ordem jurídica institui o negócio jurídico como fato produtor de Direito, confere aos indivíduos que lhe estão subordinados o poder de regular as suas relações mútuas, dentro dos quadros das normas gerais criadas por via legislativa ou consuetudinária, através de normas criadas pela via jurídico-negocial.” (KELSEN, 2006, p. 284-285). 53 Orlando Gomes (1988, p. 278-279) critica a corrente objetivista, ao argumento de que o negócio jurídico não pode ser considerado um poder de auto-regulamentação dos próprios interesses dos particulares, ou seja, o negócio jurídico não pode constituir um comando, uma norma jurídica concreta, com efeito vinculante. Para o renomado civilista, a idéia de auto-regulamentação implica o poder de um sujeito dispor sobre a conduta de outras pessoas, sendo certo que aos particulares é vedado estatuir preceitos ou normas vinculantes por conta própria. Em outras palavras: a ordem jurídica reconhece a autonomia privada como fonte criadora de relações jurídicas e não como fonte de normas jurídicas.

Page 74: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

73

Assim, não interessa ao direito os motivos que levaram as partes à celebração do

negócio jurídico, mas apenas o objetivo prático perseguido com o aludido negócio. O

objetivo a ser alcançado pelo negócio firmado entre as partes, contudo, deve se reduzir a

uma daquelas típicas funções econômico-sociais da autonomia privada (causas dos

negócios), que são dignas e merecem tutela jurídica. “Serve, em particular, para verificar se

o intuito concretamente visado [...] não é incompatível com a causa típica do negócio

celebrado, ou se, pelo contrário, é de natureza a desviar e corromper, pela sua ilicitude [...],

ou futilidade social, a destinação econômico-social do tipo de negócio escolhido [...].”

(BETTI, 2003, p. 174). Vale dizer: não é o querer individual que importa (o motivo), mas a

causa do negócio jurídico, de modo que sua falta ou ilicitude desviariam o negócio de sua

função social, para torná-lo anti-social.

Esta teoria se ajusta perfeitamente aos negócios típicos, ou seja, aqueles em que a

causa final abstrata, isto é, a causa típica do negócio, coincide com a causa final concreta,

ou seja, aquela que se verifica em concreto. Mas esta teoria poderia ser aplicada aos

negócios atípicos, cuja causa final concreta não coincide com a causa típica do negócio

jurídico constituído pelas partes? Para a teoria causalista, os negócios atípicos podem ser

objeto de tutela jurídica? Em que medida os negócios atípicos são admissíveis?

Para responder a essas perguntas, o mencionado teórico italiano apóia-se no

conceito da tipicidade social. Segundo Betti (2003, p. 271-272), os negócios atípicos

também podem ser merecedores de tutela jurídica, desde que possam ser elevados a

negócios típicos em razão de sua relevância social, isto é, se se puder verificar que o

negócio atípico foi inspirado em finalidades sociais, não se poderá afirmar que o mesmo

esteja destituído de causa. Para Betti (2003, p. 273-274), no direito moderno, não se

trabalha com a tipicidade rígida, mas com uma outra tipicidade, que também desempenha a

função de limitar e orientar a autonomia privada, mas que é muito mais elástica na

configuração dos tipos, e que atua remetendo para as valorações econômicas ou éticas da

consciência social historicamente determinada.

É a consciência social que, em última análise, dirá, em dado momento e espaço

histórico, se um negócio, embora atípico, é merecedor de tutela jurídica ou não. Produto

essencialmente relativo de uma avaliação contingente e dependente das concepções

dominantes na consciência social, a incompatibilidade não é algo de absoluto e

exteriormente verificável.

Dessa forma, para que o negócio atípico possa ser tutelado pelo direito, mister a

comprovação de sua função econômico-social, seu devido enquadramento numa causa. Se

verificada a ocorrência de algum vício concernente à causa, o negócio jurídico será afetado,

ainda que realizado de modo a se enquadrar em um tipo admitido pelo ordenamento,

Page 75: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

74

quando seja utilizado para servir a um interesse ilícito, reprovado por normas proibitivas, ou

quando não tenha causa típica idônea para justificar a tutela do direito (BETTI, 2003, p.

246). Vale dizer: os vícios concernentes à causa compreenderiam não só os casos em que

restaria caracterizada a ilicitude da causa, como também os casos em que se verifique a

ausência absoluta de causa e aqueles casos em que o negócio não se configura idôneo

para a tutela jurídica, como ocorre nos negócios atípicos que não satisfaçam,

concretamente, sua destinação (BETTI, 2003, p. 271). De acordo com a teoria de Betti, seria

preciso “exigir a correspondência positiva entre os negócios celebrados e certas funções de

interesse social, susceptíveis, como tais, de serem classificadas por tipos, ainda que não

previstos e não incluídos nos esquemas tradicionais.” (MIRANDA, 1980, p. 25).

Neste contexto, o negócio contra legem, uma vez caracterizado pela violação frontal

e direta ao preceito da lei, é obviamente ilícito, não havendo que se falar na necessidade de

proceder a uma investigação quanto à causa. O que já não mais acontece em relação aos

negócios in fraudem legis. Nesses, a necessidade aparece quando o ato do indivíduo,

embora aparentemente lícito e respeitando a letra da lei, consegue violar-lhe o preceito de

forma indireta. Nesse caso, faz-se necessário remontar à causa e ao interesse concreto a

esta subjacente. Isto porque, segundo Betti, “[...] em tal caso, a oposição já não se verifica

entre a norma e o conteúdo preceptivo do ato, mas sim entre a norma e a causa do negócio,

encontrada na sua concreta realização, ou seja, na regulamentação dada pelas partes aos

seus interesses. Esta oposição configura, em vez de uma violação direta, resultante do teor

do ato, uma violação indireta e não aparente que, ao mesmo tempo em que respeita a letra

da norma, lhe esconde a finalidade e lhe ilude a proibição, empregando um instrumento

legal num sentido contrário à sua verdadeira destinação.” (BETTI, 2003, p. 255-256).

Segundo a teoria objetivista, inclui-se, ainda, nos vícios concernentes à causa do

negócio, a divergência consciente entre a causa típica do negócio e a determinação causal,

isto é, a intenção prática concretamente procurada (BETTI, 2003, p. 277). Em geral, a

intenção prática da parte corresponde a um tipo de negócio jurídico escolhido. Todavia,

pode suceder que o negócio seja realizado como meio para atingir um fim diverso daquele

que a sua causa representa. Em outras palavras: as partes optam por um negócio,

desviando-o de sua destinação normal, para conseguir um fim que não é o seu, ainda que

possa ser perfeitamente lícito. Elas exercem, nestes casos, um “abuso da função

instrumental do negócio” (MIRANDA, 1980, p. 24 – destaques no original; BETTI, 2003, p.

277-278).

Segundo Betti (2003, p. 278), esta divergência pode configurar uma verdadeira

incompatibilidade ou uma simples incongruência. No primeiro caso, teremos a simulação.

Page 76: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

75

No segundo caso, teremos o fenômeno do negócio indireto ou do negócio fiduciário.

Entretanto, ressalva o referido autor:

A incompatibilidade exclui qualquer verdadeira correspondência entre a causa típica do negócio e a determinação causal da parte: pelo que, neste caso, pode parecer que o negócio não é querido na realidade, mas apenas na aparência; não é o que, pelo contrário, sucede com a simples incongruência. Convém, todavia, acrescentar que a incompatibilidade não é uma coisa absoluta e exteriormente verificável, mas é, antes, o produto, essencialmente relativo, de uma avaliação contingente e dependente das concepções dominantes na consciência social. [...] Daí deriva que a distinção, convencional e puramente dogmática, entre negócio simulado e negócio indireto, nada tem de absoluto e de fixo, nem pode aspirar ao rigor científico de outras classificações. (BETTI, 2003, p. 279 – grifos não constantes do original).

Uma vez que a verificação da incompatibilidade depende das concepções

dominantes na consciência social de um dado momento histórico, assim também ocorre

com o tratamento dessa anormalidade pelo ordenamento jurídico. Neste contexto, a

simulação estaria inserida num fenômeno mais amplo do que a mera divergência consciente

entre a intenção prática das partes e a causa típica do negócio. Segundo a teoria de Betti, a

simulação deve ser analisada a partir de um conceito amplo, isto é, a simulação surgiria

como um meio de que a iniciativa privada lança mão, quer para contornar os limites postos

pelo direito objetivo a essa iniciativa, quer pela insuficiência dos meios legalmente

reconhecidos e postos à disposição dos particulares para a regência dos próprios interesses

(MIRANDA, 1980, p. 25). Em suma: a simulação ocorreria quando as partes, combinadas

entre si, estabelecem um regramento de interesses diverso daquele que pretendem

observar nas suas relações, procurando atingir um objetivo divergente da causa típica do

negócio escolhido (MIRANDA, 1980, p. 26-27).

Como a distinção entre incompatibilidade e incongruência, no tocante à relação entre

causa e tipo como método para distinguir os negócios simulados dos negócios indiretos e

fiduciários, nem sempre era tão nítida na prática, a doutrina, percebendo esta dificuldade,

avançou um pouco mais, consciente de que a teoria causalista representava um avanço

importante em relação à teoria subjetivista. Surge, então, importante estudo de Pugliati, o

qual desenvolveu o conceito de acordo simulatório e negócio simulado, já anteriormente

abordado por Messina e Köhler (TÔRRES, 2003, p. 293).

Segundo Pugliati (apud TÔRRES, 2003, p. 294), todos reconhecem na simulação um

acordo, um pacto realizado entre as partes sobre a não realidade do negócio e sobre o fim

de produzir a ficção. O acordo tinha por objetivo dar realidade a uma aparência. Mas sua

teoria inova em relação à de Köhler e à de Messina por defender que as duas declarações

não se neutralizariam, antes, produziriam efeitos e deveriam ser mantidas conjuntamente.

Page 77: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

76

Dessa forma, o procedimento simulatório consistiria no acordo simulatório e no

negócio simulado. O acordo simulatório teria como função criar um negócio que seria uma

mera ficção, ou seja, um negócio sem causa. O acordo simulatório seria, nesse sentido, um

meio para exprimir a vontade das partes de dar vida a uma mera aparência, daí o nome

negócio simulado. O acordo simulatório, dessa forma, teria uma objetiva função destrutiva

ou modificadora da causa do negócio jurídico simulado (TÔRRES, 2003, p. 295).

Outras inovações da teoria de Pugliati, em relação às teorias precedentes, podem

ser resumidas no fato de que a simulação já estaria completa quando presentes o acordo e

o negócio simulado, sem qualquer necessidade de verificar a consumação do engano, como

defendia Messina, e no fato de que sua teoria preconizava a distinção entre o acordo

simulatório e a justificativa documental, isto é, da contra-declaração, que não consistiria em

elemento essencial do referido esquema simulatório, podendo inclusive lhe faltar. A contra-

declaração, portanto, seria apenas uma das formas de provar o acordo simulatório e poderia

tomar feição documental, ou não, limitando-se, por exemplo, a uma confissão. (TÔRRES,

2003, p. 296)

Em resumo, o negócio jurídico, durante muito tempo, foi encarado sob o enfoque do

dogma da vontade, como um instrumento de modelação da vontade individual tida como

soberana e como tal tutelada pela ordem jurídica, aparecendo a declaração como simples

manifestação dessa vontade, isto é, como simples veículo de reconhecimento.

Em seguida, vieram as teorias declaracionistas, que não chegaram ao ponto de

negar o papel relevante da vontade como elemento produtor de efeitos jurídicos, mas

negaram-lhe importância exclusiva, na medida em que o direito tem em conta a vontade

manifestada, a que se infere da declaração, ainda que não todo coincidente com a vontade

real.

Já o ponto de vista dos objetivistas é totalmente diverso. Para esta corrente, o

conceito de negócio jurídico como uma manifestação de vontade destinada a produzir

efeitos jurídicos não lhe apreende a essência, a qual estaria na autonomia da vontade, no

auto-regramento dos interesses. O particular não se limita a declarar o seu querer, mas

estabelece uma relação de valor normativo. A vontade já não mais se encontra em primeiro

plano no negócio jurídico, nem mesmo a causa do negócio.

Tais concepções (a subjetivista e a objetivista) tiveram grande aceitação entre os

adeptos do método dogmático do positivismo, na medida em que se ajustavam, de uma

forma ou de outra, à ordem jurídica individualista e liberal do início do século XIX, onde o

poder da vontade individual sofria poucas limitações.

Segundo Orlando Gomes (1988, p. 276), esse poder foi considerado a expressão da

liberdade individual e proclamado a pedra angular do direito privado. Nesse contexto, os

Page 78: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

77

preceitos legais tinham caráter meramente supletivo e a lei, em razão disso, não estabelecia

maiores restrições à liberdade de contratar e ao conteúdo dos negócios jurídicos. A única

exigência era que os contratos fossem firmados com o consentimento das partes, sem

vícios, e que fossem cumpridos segundo o princípio pacta sunt servanda.

A doutrina atual, ao definir negócio jurídico, ainda adota uma das duas posições

acima: a voluntarista, que define o negócio jurídico como ato de vontade que visa produzir

efeitos; ou a objetivista, que o define como um preceito ou norma jurídica concreta. Na

primeira, confere-se maior importância à gênese do negócio jurídico. Na segunda, ressalta-

se a função do negócio jurídico. No Brasil, consoante já salientado, predomina a concepção

voluntarista. Entretanto, a doutrina brasileira também partilhou desse movimento renovador,

de revisão de conceitos vinculados ao dogma da vontade cuja crise coincidiu com o

movimento de reação ao Estado liberal.

Assim, ao argumento de que as duas concepções do negócio são insuficientes e de

que o ponto de partida de ambas não estava metodologicamente correto, Junqueira de

Azevedo formulou sua concepção acerca do conceito de negócio jurídico, cujo objetivo é ter

uma visão completa deste instituto, não se restringido apenas à gênese do negócio

(vontade) ou à função do negócio (auto-regramento). De acordo com esta concepção, o

negócio jurídico deve ser analisado em sua estrutura ou composição54.

3.3.3. A concepção estruturalista e o papel da vont ade e da causa no negócio jurídico

Junqueira de Azevedo, no início de sua obra55, critica as posições doutrinárias que

adotam, quanto à definição do negócio jurídico, a teoria da gênese (voluntaristas), ou da

função (objetivas). Adverte o mencionado Professor que “a vontade não é elemento

necessário para a existência do negócio (plano da existência), tendo relevância somente

para a sua validade e eficácia” e que “a transformação do negócio em norma jurídica

concreta é artificial, na medida em que a expressão norma jurídica implica sempre um

jubere que o negócio jurídico não possui.” (AZEVEDO, 2007, p. 9 e 12 – destaques

constantes do original). Esclarece, ainda, que as duas concepções de negócio são, pois,

insuficientes, pelo que se impõe a adoção de uma terceira concepção que, partindo do

54

Ubaldino Miranda (1980, p. 5) chama a esta concepção formulada por Junqueira de Azevedo de eclética. 55

Junqueira de Azevedo publicou sua obra Negócio jurídico: existência, validade e eficácia pela primeira vez em 1974.

Page 79: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

78

conhecimento já formulado por ambas as teorias precedentes, se concentra na estrutura ou

composição do negócio.

De acordo com a concepção estruturalista, o negócio jurídico “pode ser definido ou

como categoria, isto é, como fato jurídico abstrato, ou como fato, isto é, como fato jurídico

concreto.” (AZEVEDO, 2007, p. 16). Como categoria, ele é a hipótese normativa consistente

em uma manifestação de vontade cercada de certas circunstâncias (as circunstâncias

negociais) que fazem com que socialmente essa manifestação seja vista como dirigida à

produção de efeitos jurídicos56. Em outras palavras: o ordenamento jurídico procura tomar a

declaração de vontade como hipótese legal dessa espécie de fato jurídico, que é o negócio

jurídico. A declaração de vontade tende, portanto, a coincidir com o negócio, na medida em

que a visão jurídica corresponde à visão social (AZEVEDO, 2007, p. 16 e 18). Vale dizer:

somente quando a declaração é reconhecida no ambiente social, somente depois que a

declaração se torna um fato social passível de interpretação e de avaliação é que a vontade

será tomada em consideração pelo direito.

Ao contrário do que os adeptos da teoria da vontade defendem, num contrato, por

exemplo, não há uma única vontade resultante das vontades dos contratantes. Na realidade,

o que há é uma declaração comum de diversas vontades, de diversas manifestações de

vontade. Essa declaração é vista socialmente como uma única declaração e, juridicamente,

será um só fato jurídico57. Nas palavras do mencionado Professor:

O importante na caracterização do negócio é salientar que, se, em primeiro lugar, ele é um ato cercado de circunstâncias que fazem com que socialmente ele seja visto como destinado a produzir efeitos jurídicos, em segundo lugar, a correspondência, entre os efeitos atribuídos pelo direito (efeitos jurídicos) e os efeitos manifestados como queridos (efeitos manifestados), existe, porque a regra jurídica de atribuição procura seguir a visão social e liga efeitos ao negócio em virtude da existência de manifestação de vontade sobre eles. (AZEVEDO, 2007, p. 19 – destaque constante do original).

E o que esta terceira concepção traz de novo à teoria dos negócios jurídicos?

Segundo o seu idealizador, a concepção estrutural do negócio jurídico afasta-se das

concepções voluntaristas, na medida em que há uma mudança de perspectiva. O negócio

não é mais visto a partir de uma perspectiva individual, psicológica, mas passa a ser visto de

56

Nesse sentido, Caio Mário da Silva Pereira (1995, p. 303) para quem o negócio jurídico, segundo a doutrina moderna do Direito Civil, é aquela declaração de vontade hábil a produzir efeitos jurídicos queridos pelo agente. 57

O negócio jurídico é uma espécie de fato jurídico. Este, por sua vez, é todo fato do mundo real sobre o qual incide norma jurídica. Dessa forma, quando um fato ocorre no mundo real e sendo este fato previsto na norma, ele passa a ser qualificado como um fato jurídico. Passa a ter então existência jurídica. O fato entra no mundo jurídico e daí começa a produzir efeitos jurídicos, ou seja, tem ele eficácia jurídica.

Page 80: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

79

uma perspectiva social e mais propriamente jurídica . Nas palavras do mencionado autor,

“O negócio não é o que o agente quer, mas sim o que a sociedade vê como a declaração de

vontade do agente. Deixa-se, pois, de examinar o negócio através da ótica estreita do seu

autor e, alargando-se extraordinariamente o campo de visão, passa-se a fazer o exame pelo

prisma social e mais propriamente jurídico.” (AZEVEDO, 2007, p. 21).

Assim, o negócio deixa de ser um mero instrumento de modelação das vontades

individuais, para ser um meio de regulação de interesses que se reveste de um sentido

peculiar que transcende os limites de uma simples manifestação de vontade para alcançar

sua finalidade social, cabendo ao ordenamento jurídico, desde que respeitados certos

pressupostos (de existência, validade e eficácia), atribuir ao negócio efeitos jurídicos em

correspondência com os efeitos manifestados como queridos pelas partes (AZEVEDO,

2007, p. 21).

Portanto, na caracterização do negócio jurídico, sob a ótica da concepção

estruturalista, é importante salientar dois aspectos: o primeiro é que o negócio jurídico é

cercado de circunstâncias negociais que fazem com que ele seja visto socialmente como

destinado a produzir efeitos jurídicos. O segundo aspecto diz respeito à correspondência

entre os efeitos atribuídos pelo direito (efeitos jurídicos) e os efeitos manifestados como

queridos pela declaração de vontade dos contraentes. Essa correspondência se faz na

medida em que o direito procura seguir a visão social e cobre com seu manto o negócio,

atribuindo-lhe os efeitos que foram manifestados como queridos pelos contraentes58.

Para Azevedo (2007, p. 22), somente uma visão estrutural do negócio jurídico pode

resolver o conflito instaurado entre a concepção genética (voluntarista) e a funcional

(objetivista), que é o de definir o papel da vontade e o da causa do negócio jurídico. Para a

concepção estruturalista, vontade e causa não fazem parte da estrutura do negócio jurídico,

o qual existirá independentemente delas. Vontade e causa seriam meios de correção do

negócio, atuando no plano da validade e da eficácia, para evitar efeitos não queridos pelo

agente (vontade) ou para evitar efeitos não queridos pela ordem jurídica (causa). Nas

palavras do mencionado autor:

A nosso ver, a vontade não é elemento do negócio jurídico; o negócio é somente a declaração de vontade. Cronologicamente, ele surge, nasce, por ocasião da declaração; sua existência começa nesse momento; todo o processo volitivo anterior não faz parte dele, o negócio todo consiste na

58

Neste ponto, é importante esclarecer que o fato do direito considerar certas manifestações de vontade como declarações destinadas a produzir efeitos jurídicos, não significa que todo negócio jurídico seja um ato lícito. A qualificação lícito ou ilícito não faz parte da estrutura do negócio, porquanto extrínseca à composição interna do fato. De acordo com Azevedo (2007, p. 20), há crimes que são também negócios jurídicos (exemplo: a compra e venda de entorpecentes) e há casos de negócios jurídicos válidos, porém ilícitos (exemplo: a venda de imóvel próprio, mas que anteriormente fora prometido à venda a terceiro).

Page 81: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

80

declaração. Certamente, a declaração é o resultado do processo volitivo interno, mas ao ser proferida, ela o incorpora, absorve-o, de forma que se pode afirmar que esse processo volitivo não é elemento do negócio. A vontade poderá, depois, influenciar a validade do negócio e às vezes também a eficácia, mas, tomada como iter do querer, ela não faz parte, existencialmente, do negócio jurídico; ela fica inteiramente absorvida pela declaração, que é o seu resultado. O fato de ela poder vir a influenciar a validade ou a eficácia do negócio não a transforma em parte dele, como aliás, também ocorre com diversos outros requisitos e fatores de eficácia. (AZEVEDO, 2007, p. 82-83 – destaques no original).

No tocante à causa, como meio de correção do negócio, para evitar efeitos não

queridos pela ordem jurídica, o Professor Junqueira de Azevedo, em palestra proferida em

Mesa de Debates promovida pelo IBDT (Instituto Brasileiro de Direito Tributário de São

Paulo), em 2006, salientou a plurivocidade da palavra causa, ressaltando, contudo, que

apenas dois sentidos interessam ao Direito, que é o de atribuição patrimonial (que ele

denomina de correspectivo) e de função econômico-social do negócio jurídico.

No primeiro sentido, a causa estaria ligada a uma justificativa de deslocamento

patrimonial. O preço pago na aquisição de um imóvel, por exemplo, seria o correspectivo

desta coisa adquirida, ou seja, o pagamento justifica o deslocamento patrimonial ocorrido.

Quando se diz que houve enriquecimento sem causa é porque houve um deslocamento

patrimonial a favor de alguém, mas sem o correspectivo, sem a causa.

Já no sentido de função econômico-social, a causa se presta ao exame dos negócios

jurídicos indiretos e dos negócios simulados. Ensina o mencionado professor da

Universidade de São Paulo que a idéia da função econômico-social do negócio jurídico foi

adotada pelo Código Civil italiano por obra de Emilio Betti.

Segundo o professor, a concepção de Betti e de outros teóricos, como Ferrara, era a

de que os contratos deveriam ser analisados na perspectiva da função econômico-social,

mas tal pensamento era mais propriamente ligado aos contratos típicos. Como a função

econômico-social é mais dificilmente apreendida nos contratos atípicos, o Código Civil

Italiano dispunha que, nesses contratos, a causa deveria ser analisada pelo juiz no caso

concreto, a fim de verificar se os negócios eram ou não merecedores da proteção jurídica.

Todavia, segundo Azevedo (2006), há nessa perspectiva um certo autoritarismo, uma

maneira de controlar aquilo que seria uma criação espontânea da vida econômica e social

pelo Poder Público. A idéia do autor, contudo, adentrou no Código Civil Brasileiro de 2002

(BRASIL, 2002), consoante se depreende do artigo 42159, por obra de Miguel Reale, notório

admirador da obra de Betti.

Questionado acerca da interpretação que deve ser conferida aos negócios atípicos à

luz do artigo 421 do Código Civil (BRASIL, 2002) e do princípio da autonomia privada, o

59

Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

Page 82: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

81

mencionado professor passou a discorrer sobre os conceitos de causa final concreta e de

causa final abstrata60.

Segundo Junqueira de Azevedo (2006), nos contratos típicos, pode-se verificar

facilmente a causa típica (referente ao tipo), também chamada de causa final abstrata. O

problema do negócio indireto inicia-se a partir do momento que é verificada a não

coincidência entre a causa final abstrata (a que seria típica de um negócio) e a causa final

concreta (a que se verifica em concreto). Neste contexto, conclui o mencionado Professor

que o artigo 421 do Código Civil (BRASIL, 2002) deve ser aplicado levando-se em

consideração apenas a causa final concreta do negócio. O juiz verificará não a causa final

abstrata, de modo a saber se o negócio foi útil ou não, mas sim, a causa final concreta, que

visa a saber se ele continua cumprindo sua função econômico-social. Essa exegese poderia

ser muito útil, segundo a teoria de Azevedo (2006), para solucionar os casos em que os

negócios jurídicos perdem sua função econômico-social por fatos supervenientes. Exemplo:

um contrato firmado entre duas empresas para o exercício de determinada atividade e que

depois de um tempo verifica-se que esta atividade está causando danos ao meio ambiente.

Nesse caso, o juiz, verificando os danos ambientais causados pela atividade das empresas,

poderá aplicar o artigo 421 do Código Civil (BRASIL, 2002).

Sobre o conceito de simulação, Azevedo (2006) esclareceu, à luz da concepção

estruturalista, que se desenvolveu a partir das concepções objetivistas, que a simulação é

um defeito do negócio jurídico que supõe a existência de dois elementos: o primeiro seria o

pacto simulatório; o segundo corresponderia aos dois negócios que estariam coligados, que

são o negócio simulado aparente e o negócio oculto, dissimulado.

Explica o professor que a classificação tradicional que divide a simulação em

absoluta e relativa encontra-se superada, porquanto, insuficiente para explicar a realidade

da vida moderna, que não mais trabalha com simples contratos típicos (exemplo: mandato,

compra e venda, locação, comodato, depósito). Essa trabalha com negócios coligados,

altamente complexos, formados por uma série de operações encadeadas e coligadas, que

60

Segundo Emílio Betti, “A qualificação de ilicitude da causa resulta, não apenas de uma oposição entre causa em sentido objetivo – que seria sempre lícita – e “causa em sentido subjetivo”, que, pelo contrário, se admite que também possa ser ilícita, mas sobretudo de uma comparação entre a causa em si mesma – abstratamente concebida, sem ter em conta a sua realização concreta – e a causa apontada, considerada no seu funcionamento concreto, e portanto enquadrada nas circunstâncias específicas do negócio em concreto. A oposição que se exprime na qualificação de ilicitude, verifica-se, em suma, não entre a causa objetiva e uma pretensa “causa subjetiva”, que não teria qualquer sentido, mas sim entre a consideração abstrata e a consideração concreta de uma certa causa, no seu funcionamento prático,” (2003, p. 266 – destaques constantes do original). 62

Tôrres (2003, p. 310) comunga da mesma idéia, quando ensina que o conceito de pacto simulatório é fundamental para a identificação prática de atos simulados, superadas que estão as doutrinas volitiva e declarativista.

Page 83: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

82

não mais se ajustam nos modelos tradicionais do Código Civil, as quais devem ser

consideradas como uma única operação econômica, com causa final concreta própria.

Além disso, os teóricos tradicionais não consideram o fato de que o negócio aparente

e o negócio oculto estão coligados e constituem apenas um dos elementos da simulação. O

outro elemento, o pacto simulatório, torna-se essencial à caracterização da simulação e, por

não ter forma prescrita em lei, pode ser demonstrado por qualquer meio de prova. Nessa

perspectiva, salienta o professor que essas operações econômicas encadeadas formadas

por vários negócios coligados, não podem ser analisadas per se, mas em conjunto. E para

saber se houve simulação, mister a prova de que essas operações foram combinadas, e

que houve o pacto simulatório entre as partes envolvidas62.

Mais adiante, retornar-nos-emos aos ensinamentos de Azevedo, para a análise de

alguns casos julgados pelo Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda (agora

Conselho Administrativo de Recursos Fiscais)63. Por ora, o objetivo traçado para a

exposição do tema resume-se na apresentação da evolução das teorias do negócio jurídico

e na demonstração de que a teoria subjetivista, seja na sua vertente voluntarista, seja na

vertente declaracionista, encontra-se totalmente superada. O dogma da vontade e sua

ideologia baseada no individualismo de há muito não refletem o desenvolvimento das

relações sociais econômicas e os princípios e os valores do Estado Social. Todavia, a

concepção adotada pelo Código Civil de 1916 (BRASIL, 1916) foi a concepção voluntarista

que ganhou muitos defensores, entre os civilistas, o que acabou por influenciar a

conceituação de simulação fiscal adotada pelos tributaristas, que é vista, ainda, como uma

divergência entre a vontade e a declaração. Isto é, a vontade é tida como elemento

primacial do negócio jurídico.

Daí a dificuldade que hoje em dia se revela na caracterização pelo fisco e pelos

contribuintes do que seja um negócio jurídico simulado. A definição do conceito de

simulação é, na verdade, reflexo da crise da própria teoria do negócio jurídico, tomando o

negócio simulado como uma das suas anomalias (TÔRRES, 2003, p. 297), razão pela qual

o tema sob análise encontra-se bem distante daquela suposta clareza e logicidade formal

contidas na construção conceitualista de Alberto Xavier (2002).

Neste ponto, impende ressaltar que, em razão das mudanças sociais e econômicas

ocorridas nos últimos tempos, o Direito vem se inclinando para a proteção dos negócios

63

O artigo 23 da Medida Provisória nº 449, de 3 de dezembro de 2008, alterou o artigo 25, inciso II, do Decreto nº 70.235, de 06 de março de 1972, de modo que o julgamento dos processos administrativos fiscais administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, em segunda instância, será da competência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, nova designação para o Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda. Todavia, continuaremos, no presente trabalho, a nos referir à antiga designação do mencionado órgão colegiado integrante da estrutura do Ministério da Fazenda.

Page 84: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

83

jurídicos que atendam a sua função econômico-social64. Este é um novo paradigma que,

segundo Azevedo (2007, p. 21), tem o mérito de alargar extraordinariamente o campo de

visão do instituto, para examiná-lo a partir de uma perspectiva social e mais propriamente

jurídica. Daí a importância do conceito de pacto simulatório para a identificação prática de

atos simulados.

Expostas as concepções acerca do negócio jurídico e de como estas influenciam no

conceito de simulação, passa-se então à análise do conceito de simulação adotado pelo

Código Civil de 2002 (BRASIL, 2002), em busca de um conceito de simulação mais

consentâneo ao novo paradigma imposto pelo Estado Democrático de Direito.

3.4. Em busca de um conceito de simulação: a orien tação teórica adotada pelo Código Civil de 2002

O Código Civil de 1916 (BRASIL, 1916) foi elaborado por Clóvis Beviláqua, com base

no Código Civil alemão e em diversas noções do direito francês vigentes à época. Fato que

o levou a ser considerado um diploma legal de cunho fortemente individualista, fruto do

pensamento liberal clássico da Revolução Francesa, com destaque para o princípio da

autonomia da vontade, preconizado pela ampla liberdade de contratar por parte dos

particulares, desde que não houvesse proibição expressa em lei.

É nesse contexto que Alberto Xavier entende o princípio da liberdade de contratar,

ao afirmar que “Liberdade significa alternativa de comportamentos, pelo que a liberdade de

contratar é não só a possibilidade de opção entre uma pluralidade de tipos ou modelos

negociais [...] que o Direito Privado oferece para a realização do escopo prático dos

particulares, mas também a liberdade de configuração [...] ao abrigo da autonomia da

vontade.” (XAVIER, 2002, p. 31-32 – destaques no original).

Com o advento do Estado Social, o campo da autonomia privada passou a ser

restringido em benefício de uma ordem jurídica mais voltada para o interesse coletivo. Se,

por um lado, continua-se a definir a autonomia privada como a liberdade da pessoa de criar

negócios jurídicos de acordo com seus interesses e conveniência, por outro lado, crescem

64Nesse sentido, Orlando Gomes reconhece a importância dos negócios jurídicos, mais especificamente dos contratos, como fato econômico e salienta que a função econômico-social do contrato é a razão determinante de sua tutela jurídica. “Sustenta-se que o Direito intervém, tutelando determinado contrato, devido a sua função econômico-social. Em conseqüência, os contratos que regulam interesses sem utilidade social, fúteis ou improdutivos, não merecem proteção jurídica. Só merecem os que têm função econômico-social reconhecidamente útil.” (GOMES, 1979, p. 23-25).

Page 85: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

84

as limitações em consequência da intervenção do Estado sobre o domínio econômico,

exigindo-se do empresário a condução de seus negócios “para a realização de fins sociais,

conforme a programação global da vida econômica definida e planejada.” (GOMES, 1988, p.

275 – destaques no original).

Tais mudanças foram prognosticadas pelo já citado mestre Orlando Gomes:

Dois fatores concorrem, diferentemente, para as limitações da autonomia privada: a concentração de capitais e a intervenção do Estado. Em essência, porém, conserva-se incólume o princípio. As limitações sempre existiram, apenas se apertaram na atualidade, tornando-se tanto mais numerosas quanto mais se compenetra o Estado na necessidade de intervir na vida econômica com o objetivo de realizar superior justiça social. Do ponto de vista técnico, ocorrem limitações por efeito da multiplicação de normas cogentes. Não se permite a formação do conteúdo de alguns negócios, obrigando-se os interessados a adotarem a forma típica; a exclusão de certos efeitos jurídicos não é válida em outros; difunde-se o princípio da inserção automática de comando legal no conteúdo de determinados contratos, e assim por diante. Predominam, entretanto, as normas de caráter supletivo, que podem ser indiferentemente afastadas pelas partes contratantes. Prevalece, por outro lado, a liberdade de criar negócios atípicos. (GOMES, 1988, p. 277-278).

Mesmo adepto da concepção tradicional, o mencionado autor reconhece que a

autonomia privada encontra-se subordinada aos princípios constitucionais como o da função

social da propriedade, que deve ser exercida com vistas à valorização do trabalho e na sua

harmonização com o capital, para que se alcancem os “fins sociais juntamente com os

objetivos clássicos de toda organização empresarial.” (GOMES, 1988, p. 274-275 –

destaques no original).

Nesse novo contexto econômico, social, político e jurídico, o Código Civil de 1916

(BRASIL, 1916) passou por um vigoroso processo de transformação, que coincidiu com a

perda de sua centralidade no sistema de fontes normativas, na medida em que diversas leis

especiais passaram a regular relevantes matérias do ordenamento consideradas

ultrapassadas. Nesse processo, conhecido como descodificação, marcado pela

complexidade da produção normativa que vinha assumindo cada vez mais importância no

cenário jurídico, reservou-se à Constituição um papel fundamental de reunificação do

sistema.

Em 2002, quando a comunidade jurídica não mais acreditava na aprovação e na

promulgação do novo Código Civil, que já tramitava no Congresso Nacional desde 1975,

através do Projeto de lei nº 635, fruto do trabalho da Comissão formada pelos Professores

Miguel Reale, José Carlos Moreira Alves, Agostinho Alvim, Sylvio Marcondes, Ebert

Chamoun, Clóvis do Couto e Silva e Torquato Castro, foi promulgada a Lei nº 10.406, de 10

de janeiro de 2002 (BRASIL, 2002) que, como bem salienta Gustavo Tepedino, “Ao contrário

Page 86: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

85

do que de ordinário se verifica no processo de codificação, o Código Civil de 2002 não

traduz uma uniformidade política e ideológica, em razão da distância entre os contextos

políticos do início e da conclusão de sua elaboração.” (TEPEDINO, 2007, p. XVIII).

Salienta o mencionado autor que são duas as suas principais características, do

ponto de vista metodológico: a primeira é a unificação do direito das obrigações; a segunda

é a adoção da técnica das cláusulas gerais, ao lado da técnica regulamentar, “como

resultado de um processo de socialização das relações patrimoniais, introduzindo-se no

direito codificado a função social da propriedade privada e da atividade contratual.”

(TEPEDINO, 2007, p. XVIII).

Esclarece Tepedino (2007, p. XIX) que o legislador contemporâneo adota

amplamente a técnica da cláusula geral, procurando associar ao seu conteúdo genérico

valores e parâmetros hermenêuticos que possam servir como ponto de referência para o

trabalho interpretativo das demais disposições normativas. Esta é a tendência das leis

especiais promulgadas a partir da década de 90, podendo ser citados, como exemplos, o

Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto da

Cidade.

Nesse contexto, o Código Civil de 2002 (BRASIL, 2002) introduz inúmeras cláusulas

gerais e conceitos jurídicos indeterminados, porém, sem qualquer outro ponto de referência

valorativo (TEPEDINO, 2007, p. XX). Tal circunstância indica a complexidade axiológica da

nova codificação a exigir do intérprete um esforço de integração do sistema jurídico, que

deverá ser realizada em consonância com a legalidade constitucional, ou seja, é

imprescindível que “o intérprete promova a conexão axiológica entre o corpo codificado e a

Constituição da República, que define os valores e os princípios fundantes da ordem

pública. Desta forma, dá-se um sentido uniforme às cláusulas gerais, à luz da principiologia

constitucional, que assumiu o papel de reunificação do direito privado, diante da pluralidade

de fontes normativas e da progressiva perda de centralidade interpretativa do Código Civil

de 1916.” (TEPEDINO, 2007, p. XX).

Outra importante alteração trazida com o Código de 2002, na linha de outras

legislações (alemã e italiana), refere-se à simulação, que passou a ser considerada como

causa de nulidade do negócio jurídico. No sistema do Código Civil de 1916, a simulação era

causa de anulabilidade do negócio jurídico, ou seja, a simulação só era considerada um

defeito do negócio jurídico capaz de invalidá-lo, se fosse constatada a intenção de prejudicar

a terceiros, ou de violar disposição de lei65. Nesse contexto, a simulação dita inocente, isto

65

Ainda sob a égide do Código Civil de 1916, o Supremo Tribunal Federal, no RE 88.120/RS, Relator Ministro Soares Muñoz (j. 15/12/1977), decidiu que a corrente doutrinária e jurisprudencial que considerava a venda feita com vulneração do artigo 1.132 do Código Civil (BRASIL, 1916), apenas anulável, quando ocorrente a intervenção de interposta pessoa, cedeu passo ao entendimento de que

Page 87: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

86

é, aquela que não tinha o intuito de prejudicar terceiros, era considerada irrelevante para o

sistema e, portanto, não constituía causa de invalidade do negócio jurídico, “[...] agora se

enquadra no conceito geral de simulação, gerando nulidade, do mesmo modo que a

maliciosa, engendrada pelas partes com objetivo de afetar direitos alheios.” (GAINO, 2008,

p. 26).

Essa alteração muda radicalmente a abordagem do instituto, visto que não há mais

que se discutir sobre a intenção das partes de prejudicar ou não terceiros. O engano agora é

considerado imanente ao conceito de simulação66. De fato, quando se diz que a simulação é

um procedimento destinado a criar uma aparência contrária à realidade, ou seja, uma

mentira, já é pressuposta a idéia do engano. Constatada a simulação, sob o ponto de vista

objetivo, o negócio será nulo, ainda que desprovido do elemento subjetivo da intenção de

enganar ou prejudicar terceiros, isto é, ainda que se trate de uma simulação inocente

(GAINO, 2008, p. 26). Acentua Itamar Gaino:

Observa-se, então, que a inovação trazida pelo novo Código não é de simples deslocamento da matéria, do âmbito dos defeitos dos atos jurídicos para o âmbito da invalidade do negócio jurídico. A inovação diz também, e principalmente, quanto ao conceito de simulação. Para o Código de 1916, só se considerava defeito capaz de invalidar (anular) o negócio a simulação que fosse praticada com a “intenção de prejudicar a terceiros, ou de violar disposição de lei” (art. 103). A simulação inocente, ou seja, aquela que não tinha imanente o objetivo de causar prejuízos a esferas jurídicas alheias, era irrelevante para o sistema e, pois, não constituía causa de invalidação. Agora, conforme o Código de 2002, importa simplesmente a presença de um dos elementos objetivos referidos pela norma, para o efeito de reconhecimento da nulidade, não se devendo indagar sobre o aspecto subjetivo do acordo de vontades, qual seja, a intenção subjacente ao negócio; isto a despeito de a ratio legis compreender também a proteção dos terceiros de boa-fé contra os efeitos dos negócios simulados, como está no art. 167, § 2º. (GAINO, 2008, p. 27-28).

Segundo ensina Leonardo Mattietto, a decisão do legislador em transmutar a

simulação de causa de anulabilidade para causa de nulidade respalda-se na idéia de que tal

figura não se atém ao campo dos interesses privados. Ao contrário, ofende o interesse

tais vendas, independentemente da prova da simulação, são nulas pleno jure. Confira-se a ementa oficial do julgado: “Venda de ascendente a descendente. Interposta pessoa. Nulidade pleno iure, independentemente da prova da simulação. Recurso extraordinário conhecido e provido.” 66

Ubaldino Miranda já dizia que em toda a simulação existe o intuito de enganar. Para o autor, “[...] o engano é inerente à simulação porque inerente a toda a aparência que não corresponde à realidade. Quando se diz que a simulação é um procedimento destinado à criação de uma aparência contrária à realidade, já se sugere a idéia de engano, inerente à criação dessa aparência.” (MIRANDA, 1980, p. 42). Humberto Theodoro Júnior registra que; “Na verdade, a simulação que o Código trata como causa de nulidade do negócio jurídico é a que decorre de uma falsidade com o propósito de enganar a quem venha dele tomar conhecimento. É essa mentira contida no suporte fático do negócio que torna ilícito o seu objeto e, por isso, lhe acarreta a pena de nulidade. Não é necessário que a inveracidade cause dano efetivo a alguém. Ela, por si, é suficiente para invalidar o negócio simulado.” (THEODORO JÚNIOR, 2003, p. 469).

Page 88: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

87

público e põe em risco a veracidade que deve presidir as relações negociais. Segundo o

mencionado autor, “A questão não é puramente volitiva, de solução com base apenas na

vontade das partes, mas, muito pelo contrário, liga-se à causa do negócio jurídico, pois,

como ensina Pugliatti, ‘o acordo simulatório priva o negócio da sua causa’.” (MATTIETTO,

2007, p. 348).

A simulação, no atual quadro do Código Civil (BRASIL, 2002), caracteriza-se, então,

pelo acordo das partes, que de forma deliberada, combinam dar ao negócio uma aparência

diversa da realidade, podendo ou não haver, de modo oculto, outro negócio

verdadeiramente querido, que é chamado negócio dissimulado. Em outras palavras:

consiste a simulação no ato de alguém que, de forma consciente, acorda com outra pessoa,

a quem a sua declaração é dirigida, um negócio que nenhuma das duas quer (simulação

absoluta)67, ou um negócio diferente daquilo que ambas querem (simulação relativa)68,

visando a alcançar o êxito da aparência enganosa contra terceiros de boa-fé. Sendo a

simulação esta aparência que não traduz a realidade, não há que se perquirir se a mesma

visa ou não a prejudicar terceiros ou violar disposição de lei. De acordo com Heleno Tôrres,

“[...] faz-se mister compreender a simulação como o efeito da combinação de dois negócios

jurídicos, o acordo simulatório e o negócio simulado, visando a alcançar o êxito da aparência

enganosa contra terceiros de boa-fé.” (TÔRRES, 2003, p. 283).

A simulação pode ser consumada por meio de múltiplas formas. O artigo 167 do

Código Civil (BRASIL, 2002) prevê as hipóteses de simulação: a) quando o negócio jurídico

aparentar conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se

conferem, ou transmitem (interposição fictícia de pessoas); b) quando o negócio jurídico

contiver declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira (quando a simulação

atinge o próprio conteúdo do negócio); c) quando os instrumentos particulares forem

antedatados, ou pós-datados (quando houver falsidade na indicação da data de tais

67

Humberto Theodoro Júnior (2003, p. 481-482) indica os seguintes exemplos de simulação absoluta: 1) o cônjuge cria dívidas fictícias para desviar bens da partilha no divórcio; 2) o devedor que aliena falsamente seus bens para evitar sejam penhorados; 3) pessoa que é assediada por parentes para prestar fianças e avais e, para livrar-se dessa situação incômoda, passa seus bens para o nome de outrem; 4) dono do imóvel o coloca em nome de outrem apenas para criar lastro patrimonial para sustentar operações de crédito ou para facilitar a administração da propriedade. 68

Exemplo de simulação relativa: duas pessoas realizam um contrato de compra e venda de um imóvel, quando na verdade, o que se deu foi uma doação. Ou seja, o negócio da compra e venda foi feito para ocultar o negócio dissimulado, qual seja, a doação. Outros exemplos extraídos dos ensinamentos de Humberto Theodoro Júnior (2003, p. 483): 1) alguém que não pode doar a certa pessoa, pratica a liberalidade em favor de outrem, mas de modo que a vantagem afinal seja absorvida por quem não poderia receber a doação; 2) o serventuário da justiça, ou magistrado, impedido de adquirir bens levados à praça no juízo a que servem, ajustam com terceiro a arrematação, para em seguida transferir-lhes o bem licitado; 3) o amásio, que não pode doar à concubina, cria uma sociedade, cujo capital é na sua quase totalidade a ela atribuído; em seguida a doação é feita a essa sociedade, de maneira que, na realidade, quem recebe a liberalidade é a concubina.

Page 89: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

88

documentos). Entretanto, o que se deve ter em mente é que a simulação pressupõe a

existência de dois elementos: o acordo simulatório e o negócio simulado.

Na simulação ad personam, o negócio praticado é real, mas a parte nele figurante é

aparente. É o chamado “testa-de-ferro”, “homem-de-palha” ou “presta-nome”. O declarante

quer realmente vender, doar, permutar, emprestar, mas o sujeito a quem a declaração é

dirigida é aparente, ou seja, interposta pessoa. “Consiste, pois, esse tipo de simulação na

interposição fictícia de pessoa no negócio verdadeiro, de sorte que no contrato aparece

pessoa – a interposta, que é diversa da contratante real – a interponente. É o que, v.g., se

passa com o pai que quer vender algo a um filho e não obtém consentimento dos demais

(art. 496). Simula, então, a venda a um terceiro que, em seguida, passa o bem ao filho.”

(THEODORO JÚNIOR, 2003, p. 492).

Heleno Tôrres distingue a interposição fictícia de pessoas (por simulação ou fraude)

da efetiva ou real, “[...] na qual a pessoa interposta contrata em nome próprio, ou em nome

de outrem, mediante legítimos negócios jurídicos, permitidos pelo ordenamento, com os

efeitos dirigidos exclusivamente à esfera do interponente, quando este se encontre ausente

ou não se queira ter presente, no caso de mandato, representação, comissão e preposição,

ao que definimos como interposição efetiva de pessoas por substituição, ou mesmo

facilitando a aproximação entre pessoas, com caráter de comercialidade, como na

mediação, nunciação, agência e corretagem, ao que preferimos classificar como

interposição efetiva de pessoas por intermediação.” (TÔRRES, 2003, p. 423).

Para o referido autor, esta distinção é de suma importância, no que toca às

consequencias em face das normas tributárias, não sendo, portanto, correta a equiparação

dos efeitos de tais figuras. No caso da interposição fictícia, mediante simulação relativa ou

fraude à lei, em que há substituição do real titular do direito por um titular aparente, assevera

o mencionado autor que é inquestionável a aplicação pela administração tributária do

instituto da desconsideração da personalidade jurídica ou da forma negocial, em eventual

procedimento de fiscalização, quando a lei assim o permita, de modo a isolar o real titular do

direito e excluir o fictício. Todavia, em relação aos negócios jurídicos de interposição real de

pessoas, em respeito ao princípio da autonomia privada, não poderá o fisco proceder à

referida desconsideração, a não ser que demonstre, por provas inequívocas, que tal

interposição, na realidade, é fictícia.

A segunda modalidade de simulação prevista no § 1º do artigo 167 do Código Civil

(BRASIL, 2002) é a que se obtém pela inserção de declaração, confissão, condição ou

cláusula não verdadeira. O entendimento predominante é o de que a nulidade não alcançará

todo o negócio, mas apenas a parte em que se verifica a simulação. É o caso, por exemplo,

da compra e venda que é verdadeira, e apenas a menção ao preço ajustado não é correta.

Page 90: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

89

“Assim, apurada a falsidade do preço declarado, o que há de prevalecer é o preço

verdadeiro. Não há razão para ter-se como inválido todo o contrato.” (THEODORO JÚNIOR,

2003, p. 493-494).

Nos casos de antedata e pós-data, trata-se de simulação relativa, uma vez que

debaixo do negócio aparente existe um verdadeiro que, entretanto, consumou-se em

momento diverso do mencionado pelas partes contratantes. Segundo o já citado Professor

Humberto Theodoro Júnior (2003, p. 494), “a manobra astuciosa geralmente se faz para

fugir de concurso de credores ou para fraudar direitos de terceiros. A nulidade da simulação

afeta apenas a data, fazendo com que o negócio venha a ser situado no tempo verdadeiro

de sua celebração.”

Neste ponto, impende salientar o quão importante é a análise do tema simulação

para o Direito Tributário. Com efeito, dispõe o artigo 149, VII, do Código Tributário Nacional

(BRASIL, 1966) que quando se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício

daquele, agiu com dolo, fraude ou simulação, o lançamento será efetuado e revisto de ofício

pela autoridade administrativa, uma vez que o negócio simulado é inoponível ao fisco,

seguido da aplicação de sanção, com a incidência de multa de ofício de 75% ou 150%.

Os formalistas concordam que um limite à liberdade fiscal seria a prática de atos ou

negócios jurídicos simulados com o intuito de causar prejuízo ao fisco. A definição de

simulação, para os formalistas, se restringiria tão-somente àqueles casos em que o negócio

não correspondesse à vontade real das partes (teoria voluntarista). “Como se observa, na

simulação de negócio jurídico, a intentio facti divorcia-se da intentio iuris. A intenção das

partes é uma. A forma jurídica adotada é outra. Ou então, o ato é ficto.” (COÊLHO, 2006, p.

137). Dessa forma, estariam fora do âmbito da simulação os negócios indiretos e fiduciários,

bem como os praticados em fraude à lei, se estes forem realizados por via de atos

verdadeiros (XAVIER, 2002, p. 68).

Todavia, a realidade da vida moderna não mais trabalha com simples contratos

típicos (exemplo: mandato, compra e venda, locação, comodato, depósito). Com efeito, o

comum, hoje em dia, é que o operador do direito se depare com vários negócios jurídicos

atípicos e anômalos, muitas vezes conexos, que concorrem para a obtenção de um mesmo

resultado econômico-social (negócios concorrentes), ou negócios jurídicos realizados em

seqüência, isto é, que se sucedem um ao outro no tempo, visando também a um complexo

resultado econômico-social (negócios seqüenciais). Tais negócios não se ajustam aos

modelos tradicionais do Código Civil e demandam uma nova abordagem, muito diversa

daquela preconizada pela teoria voluntarista. Na verdade, estes negócios não devem ser

considerados isoladamente, porquanto constituem uma unidade funcional, que produz

Page 91: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

90

efeitos jurídicos não coincidentes com os efeitos de cada negócio individualmente

considerado (BETTI, 2003, p. 136). É o caso dos negócios indiretos e fiduciários.

Em razão disso, considera-se importante destacar as diferenças entre a simulação e

as figuras que lhe são correlatas. Para Betti (2003,p. 278-279), consoante já salientado, a

distinção convencional e puramente dogmática entre negócio simulado e negócio indireto,

por exemplo, nada tem de absoluto ou fixo, nem pode aspirar ao rigor científico de outras

classificações. Entretanto, Azevedo (2006) propõe soluções que, longe de pretender dar ao

tema um tratamento simplista, configuram valiosos subsídios para a análise dos casos

práticos levados a julgamento no Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda e no

Poder Judiciário. Assim, a partir da análise dos principais casos julgados pelo mencionado

tribunal administrativo, serão abordadas as diferenças entre a simulação e as figuras que lhe

são afins.

3.5. A distinção entre a simulação e figuras afins a partir da análise de casos julgados pelo Conselho de Contribuintes do Ministér io da Fazenda

Em trabalho publicado recentemente, Marciano Seabra de Godoi (2007, p. 281)

adverte que a jurisprudência do Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, nos

últimos tempos, vem abandonando as orientações da doutrina tradicional de considerar todo

e qualquer ato de planejamento que não se enquadre no conceito de simulação como

sinônimo de evasão e sonegação como um ato de elisão fiscal, plenamente válido à luz do

ordenamento jurídico.

Na prática, salienta o mencionado Professor, o Conselho de Contribuintes passou a

reconhecer três possibilidades de classificação de planejamento tributário (elisão, elusão e

evasão), e não mais apenas duas possibilidades (elisão e evasão). No conceito ampliado de

simulação, que vem sendo adotado pelo referido colegiado administrativo, estariam

incluídos os atos elusivos ou de fraude à lei tributária, mas sem a incidência das multas

agravadas, dada a diferença existente entre os atos elusivos, que pressupõem a prática de

ilícitos atípicos, e os atos evasivos, estes sim ilícitos típicos, que configuram crime, nos

termos da Lei nº 4.502/64 (BRASIL, 1964).

Todavia, chama atenção o autor para o fato de que a jurisprudência do Conselho de

Contribuintes “[...] não vem combatendo a elusão com uma metodologia clara e com

parâmetros uniformes e explícitos. [...] O que importa verdadeiramente é explicitar com

clareza os elementos do conceito a ser utilizado numa sentença ou num estudo doutrinário,

Page 92: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

91

e quais normas legais fundamentam sua construção e sua aplicação à realidade concreta.”

(GODOI, 2007, p. 282-283).

No mesmo diapasão, Heleno Tôrres salienta que:

É muito comum que, apressadamente, queiram os autores e aplicadores do direito resolver questões práticas sem uma tomada de posição prévia sobre o tipo de orientação a respeito da teoria dos negócios jurídicos em geral, considerando-os à luz da teoria da vontade, da declaração ou uma outra qualquer. O que se conclui é que, na maioria das vezes, a grande dificuldade está mais na definição de negócio jurídico do que propriamente na demarcação correta do conceito de simulação. É claro que a seleção de uma ou outra faz uma enorme diferença. Quando não, misturam tudo, inclusive autores, visando a alcançar o intento prático.” (TÔRRES, 2003, p. 302)69.

O fato é que a casuística dos negócios jurídicos é recheada de situações sujeitas à

simulação, à fraude à lei, ao abuso de direito, ao abuso de forma, demandando do Conselho

de Contribuintes uma nova postura metodológica, que defina parâmetros uniformes e

explícitos de julgamento, para coibir os planejamentos tributários abusivos. E não é só isso.

A interpretação a ser dada aos negócios jurídicos, na atualidade, não pode desconsiderar

sua causa, isto é, sua função econômico-social. Assim, aqueles que ainda se prendem aos

rigores do positivismo formalista não se dão conta de que o controle da simulação não mais

comporta a adoção das teorias voluntaristas, que se baseiam na preeminência da vontade.

A metodologia a ser utilizada na análise dos casos julgados pelo Conselho de

Contribuintes do Ministério da Fazenda compreenderá a apresentação sumária do caso, a

fim de que seja identificada a matéria que foi tratada pelo órgão julgador administrativo e o

resumo do processo, circunscrito aos elementos mais relevantes das autuações e das

defesas dos autuados. Não serão abordadas as decisões proferidas pelas Turmas das

Delegacias da Receita Federal de Julgamento (DRJ), evitando-se, dessa forma, a repetição

desnecessária. Em seguida, será transcrita a ementa do julgado, passando-se, finalmente, à

análise das decisões, mediante a abordagem do tema da simulação e das figuras que lhe

são correlatas, com vistas à sistematização da matéria.

69 Na tentativa de solucionar o problema, Heleno Tôrres, apoiando-se nos ensinamentos de Paulo de Barros Carvalho, propõe a teoria normativa da simulação, centrada nos paradigmas da teoria comunicacional do direito, para tentar alcançar melhores êxitos na interpretação dos negócios jurídicos simulados. O autor defende a tese de que na interpretação de qualquer negócio jurídico, deve-se realizar uma combinação semântico-pragmática, “visando a conhecer a relação entre os seus elementos de significantes com os elementos de um sistema de significados, pela determinação dos significados denotados na linguagem de cada negócio praticado.” (TÔRRES, 2003, p. 305).

Page 93: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

92

3.5.1. Caso da subscrição de ações com ágio (também conhecida como operação “casa-e-separa”)

3.5.1.1. Apresentação do caso

A Primeira Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda,

no julgamento do Recurso nº 138.166, interposto pela sociedade Pedro Muffato & Cia. Ltda

(Muffatão), foi instada a se manifestar sobre determinada operação de subscrição de ações

emitidas com ágio, para definir se houve ou não simulação.

3.5.1.2. Resumo do processo

A sociedade Pedro Muffato & Cia. Ltda. (Muffatão) foi autuada pela fiscalização da

Secretaria da Receita Federal do Brasil, relativamente ao Imposto de Renda Pessoa

Jurídica (IRPJ) e à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), referente ao ano-

calendário 1999, Exercício 2000, ao fundamento de que a autuada não ofereceu à tributação

o ganho de capital apurado na alienação de bens do ativo permanente.

A operação realizada pela empresa, de acordo com o auto de infração, deu-se da

seguinte forma: a empresa Sonae Distribuição Brasil S/A firmou com Pedro Muffato, Pedro

Muffato Júnior e David Guilherme Muffato, um “Contrato de Investimento, Segregação de

Interesses e Outros Pactos”, pelo qual assumiu as atividades varejistas da empresa

autuada, que anuiu com a operação. A isto se seguiram as seguintes operações:

Pedro Muffato, Pedro Muffato Júnior e David Guilherme Muffato constituíram a

empresa Muffatão Master S/A (Master), com capital social de R$ 5.000,00. Em seguida, a

Muffatão ingressou no quadro societário da Master, subscrevendo e integralizando ações

pelo valor nominal, em bens, direitos e dívidas, ou seja a totalidade dos ativos empregados

na exploração da atividade de comércio varejista, ato que elevaria o capital social da Master

para R$ 5.732.318,00.

Em 06 de outubro de 1999, foi constituída outra empresa, qual seja, a Comercial

Atacadista PML Ltda., com capital social de R$ 1.000,00, tendo como sócios as pessoas

físicas Pedro Muffato, Pedro Muffato Júnior e David Guilherme Muffato.

Cinco dias depois, isto é, em 11 de outubro de 1999, às 9 horas, em Assembléia

Geral Extraordinária, aprovou-se aumento do capital social da Master para R$ 6.635.475,00,

Page 94: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

93

em decorrência da subscrição integral de 898.157 ações pela Sonae Distribuição Brasil S/A,

tendo cada ação o valor nominal de R$ 1,00, com preço de emissão de aproximadamente

R$ 40,80, totalizando R$ 36.649.298,31, sendo R$ 898.157,00 destinados à conta capital e

R$ 35.751.141,31, destinados à conta de reserva de capital. Ou seja, houve pagamento de

ágio em percentual superior a 4.000%, o que flagrantemente foge aos padrões da

normalidade. Nenhuma ação, de uma hora para outra, se valoriza nessa proporção.

Às 10 horas, foi realizada nova Assembléia Geral Extraordinária da Master,

aprovando a cisão parcial da sociedade, com a versão imediata de R$ 36.649.295,00, para

a empresa Comercial Atacadista PML Ltda., e a saída dos sócios Pedro Muffato, Pedro

Muffato Júnior e David Guilherme Muffato, permanecendo em conta corrente da Master a

diferença de R$ 3,31. Em decorrência desta cisão, o capital social da Master foi reduzido

para R$ 898.157,00, representado pelas 898.157 ações, todas de propriedade da Sonae

Distribuição Brasil S/A, que assim passou a ser a única acionista da Master.

Às 14 horas, no Município de Cascavel, onde se encontra a sede da Master foi

aprovada, em Assembléia Geral Extraordinária, a incorporação da empresa pela Sonae

Distribuição Brasil S/A. Referida incorporação veio a ser formalizada em 25 de outubro de

1999, sendo avaliado o patrimônio líquido da Master em R$ 5.072.352,74.

Às 16 horas, na sede da Sonae Distribuição Brasil S/A, em Porto Alegre, foi realizada

nova Assembléia, com a aprovação do protocolo de incorporação da Master, cujo patrimônio

líquido foi estimado em R$ 5.973.569,00.

Ainda no mesmo dia, 11 de outubro de 1999, através da Vigésima Nona Alteração

Contratual, foi realizada a incorporação da Comercial Atacadista PML Ltda. pela Muffatão,

bem como o cancelamento das 5.732.318 cotas que a Muffatão havia integralizado no

capital social da Master e que foram transferidas, quando da cisão, para o capital social da

Comercial Atacadista PML Ltda.

O valor de R$ 30.885.040,00, correspondente à diferença entre o valor adquirido pela

Muffatão com a incorporação da PML Ltda. (R$ 36.617.358,00) e o valor investido na Master

(R$ 5.732.318,00), foi contabilizado diretamente na conta de Reservas de Capital, sem

transitar pelas contas de resultado e sem ser oferecido à tributação.

Para a fiscalização restou demonstrada, com a sequência de atos acima descritos, a

ocorrência de simulação. Para terceiros, o negócio firmado em 28 de setembro de 1999,

teria aparência de subscrição de ações com ágio, cujo objetivo era encobrir o negócio de

compra e venda firmado pela Sonae e Muffatão, através do qual seriam adquiridas as

atividades de comércio varejista da Muffatão, incluindo suas instalações, estoques e

créditos, deduzidos os débitos operacionais decorrentes destas atividades, sem o

pagamento dos tributos incidentes sobre o ganho de capital. Em razão disso, a fiscalização

Page 95: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

94

desconsiderou todos os negócios que foram praticados, exigindo o tributo devido na

operação, com base em ganho de capital, aplicando multa de ofício de 150% e encaminhou

representação fiscal para o Ministério Público Federal, para fins de apuração de crimes de

sonegação.

Em sua defesa, a empresa autuada sustentou que os negócios jurídicos realizados

pelas partes, para atingir o resultado pretendido, não são proibidos pela lei, tendo sido os

mesmos realizados às claras, sem qualquer ocultação. As partes tinham a intenção de

transferir a titularidade de certos ativos e utilizaram dos meios adequados a este desiderato,

sendo certo que o negócio envolveu apenas operações lícitas, tendentes à obtenção de um

resultado fiscalmente menos oneroso, inexistindo qualquer falsidade, engano ou ocultação,

que permitissem suscitar dúvidas acerca da absoluta coincidência entre a vontade real e a

vontade declarada pelas partes, pelo que não há que se falar em simulação, mas em

negócio jurídico indireto. Os negócios jurídicos realizados produziram efeitos análogos ao de

uma compra e venda, com resultados menos onerosos do ponto de vista fiscal, sendo certo

que qualquer ato de desconsideração praticado pelo fisco resultará em tributação analógica

ou com base na interpretação econômica dos fatos, procedimentos que violam direitos e

garantias individuais do contribuinte, bem como o princípio da legalidade. Aduziu que não

houve nenhum prejuízo causado a terceiros; que os negócios praticados configuram elisão e

não evasão fiscal; que os negócios jurídicos não poderiam ser desconsiderados pelo fisco,

ante a ausência de regulamentação do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário

Nacional (BRASIL, 1966), incluído pela Lei Complementar nº 104/2001 (BRASIL, 2001). Em

relação ao agravamento da multa, sustentou que não se está diante de atos

caracterizadores de evidente intuito de fraude.

3.5.1.3. Ementa

DESCONSIDERAÇÃO DE ATO JURÍDICO – Devidamente demonstrado nos autos que os atos negociais praticados deram-se em direção contrária a norma legal, com o intuito doloso de excluir ou modificar as características essenciais do fato gerador da obrigação tributária (art. 149 do CTN), cabível a desconsideração do suposto negócio jurídico realizado e a exigência do tributo incidente sobre a real operação. SIMULAÇÃO/DISSIMULAÇÃO – Configura-se como simulação, o comportamento do contribuinte em que se detecta uma inadequação ou inequivalência entre a forma jurídica sob a qual o negócio se apresenta e a substância ou natureza do fato gerador efetivamente realizado, ou seja, dá-se pela discrepância entre a vontade querida pelo agente e o ato por ele praticado para exteriorização dessa vontade, ao passo que a dissimulação contém em seu bojo um disfarce, no qual se encontra escondida uma

Page 96: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

95

operação em que o fato revelado não guarda correspondência com a efetiva realidade, ou melhor, dissimular é encobrir o que é. IRPJ – GANHO DE CAPITAL – Considera-se ganho de capital a diferença positiva entre o valor pelo qual o bem ou direito houver sido alienado ou baixado e o seu valor contábil, diminuído, se for o caso, da depreciação, amortização ou exaustão acumulada. MULTA AGRAVADA – Presente o evidente intuito de fraude, cabível o agravamento da multa de ofício prevista no inciso II, art. 44, da Lei nº 9.430/96. LANÇAMENTOS DECORRENTES – CSLL – A solução dada ao litígio principal, relativo ao Imposto de Renda Pessoa Jurídica aplica-se, no que couber, ao lançamento decorrente, quando não houver fatos ou argumentos novos a ensejar conclusão diversa. Recurso provido parcialmente.

3.5.1.4. Análise do julgado

O Relator, Conselheiro Valmir Sandri, inicia a fundamentação de seu voto com a

distinção entre simulação absoluta e simulação relativa, acentuando a sobreposição de dois

negócios: “o simulado, que não espelha o íntimo querer das partes e o negócio dissimulado

que se encontra oculto, esse como o negócio real efetivamente concretizado pelas partes.”

E mais adiante sustenta: “O fato é que foi desencadeado pelas empresas envolvidas nas

operações uma série de atos que não guardam qualquer correspondência com a real

intenção das partes [...].”

De início, verifica-se a adoção da concepção voluntarista, quando o julgador faz

referência à simulação como divergência entre o “íntimo querer das partes” e o negócio

aparente e quando diz que “os atos não guardam qualquer correspondência com a real

intenção das partes”.

Viu-se que o conceito de simulação como a divergência entre a vontade e a

declaração, com o intuito de enganar terceiros, já se encontra superado. De há muito a

vontade não mais é considerada o elemento primacial do negócio jurídico. Na esteira do

ensinamento de Azevedo (2007, p. 18), a nova concepção de negócio jurídico não admite

que se atribua relevância à divergência entre a vontade real e a declarada, porquanto a

declaração de vontade é, do ponto de vista social, o que o negócio é, do ponto de vista

jurídico, isto é, o negócio não é mais um mero instrumento de modelação das vontades

individuais, mas um meio de regulação de interesses que se reveste de um sentido peculiar

que transcende os limites de uma simples manifestação de vontade para alcançar sua

finalidade social.

Neste contexto, passa-se a buscar a objetivação do negócio, ressaltando-se a

importância da causa do negócio jurídico, isto é, sua função econômico-social ou, nas

Page 97: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

96

palavras de Castro y Bravo70 (1985, p. 30), o significado social do propósito perseguido com

o negócio.

Em razão da adoção da concepção volitiva pelo julgador da esfera administrativa, a

decisão considera a existência de dois negócios jurídicos distintos, quais sejam, o simulado

e o dissimulado, os quais deveriam ser examinados separadamente. Nas palavras do

relator: “[...] a simulação se caracteriza quando embaixo da aparência de um negócio

jurídico normal se oculta outro propósito negocial.” Contudo, o negócio simulado, de acordo

com Azevedo (2006), deve ser visto como um procedimento único, caracterizado pela

presença de dois elementos: o primeiro elemento correspondente ao pacto simulatório e o

segundo elemento correspondente aos dois negócios entre si coligados, quais sejam, o

negócio simulado e o negócio dissimulado.

O conceito de pacto simulatório é fundamental para a identificação da prática de atos

simulados, superadas que estão as doutrinas volitivas e declaracionistas. Neste sentido, o

ensinamento de Orlando Gomes, ao afirmar que “Para haver simulação, é necessário o

acordo simulatório. Por sua existência é que a simulação se distingue da reserva mental.”

(GOMES, 1988, p. 440-441 – destaques no original).

O pacto simulatório é norma decorrente do exercício da autonomia da vontade das

partes, as quais combinam entre si o estabelecimento de uma relação jurídica,

desconhecida aos terceiros de boa-fé, cujo objeto é uma manifestação de vontade contrária

ao ato aparente.

O outro elemento da simulação também decorre do exercício da autonomia da

vontade das partes, que criam um negócio com causa própria, aparentemente legítimo, que

poderá ser utilizado para encobrir um outro negócio de interesse das partes (simulação

relativa), como para criar uma ficção (simulação absoluta).

Ressalte-se que os teóricos tradicionais não consideram o fato de que o negócio

aparente e o negócio oculto estão coligados e que constituem apenas um dos elementos da

simulação, sendo o outro elemento o pacto simulatório71, este sim essencial à

caracterização da simulação e que, por não ter forma prescrita em lei, pode ser

demonstrado por qualquer meio de prova, inclusive por indícios, desde que convergentes e

concordantes. Nessa perspectiva, salienta Azevedo (2006) que essas operações

70

A primeira edição da obra El Negocio Juridico de Federico de Castro y Bravo foi publicada em 1971. 71 Consoante ensina Gomes (1988, p. 441), para haver simulação é necessário o acordo simulatório, que não confina a simulação aos negócios jurídicos bilaterais, podendo ocorrer também nos negócios jurídicos unilaterais receptícios, isto é, aqueles negócios cuja eficácia depende do conhecimento do conteúdo da declaração por aqueles a quem se dirigem. Em sentido contrário, Ferrara (1999, p. 143), para quem em relação aos atos unilaterais, a simulação não se distingue da reserva mental, na medida em que a simulação é necessariamente o resultado de um acordo entre os contratantes e fica fora, por isso, do campo dos atos unilaterais.

Page 98: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

97

econômicas encadeadas, formadas por vários negócios coligados, não podem ser

analisadas per se, mas em conjunto, e que para saber se houve simulação, mister a prova

de que estas operações foram combinadas, de que houve o pacto simulatório entre as

partes envolvidas.

Como este negócio normalmente não aparece, cumpre às partes prejudicadas

identificá-lo, mediante competente produção de provas. A prova da simulação não é de fácil

demonstração. Como bem esclarece Castro y Bravo, “Exige de los letrados máximo

esfuerzo imaginativo y hasta un cierto instinto policíaco; imponiendo a los Jueces una tarea

de la mayor delicadeza.” (CASTRO Y BRAVO, 1985, p. 366). Isso porque a aparência do

negócio simulado é a de um negócio sério e legítimo, sendo de difícil desconstituição.

Muitas das vezes, os negócios simulados estão documentados através de escrituras

públicas ou devidamente anotados nos demais órgãos de registros públicos, como por

exemplo, nas juntas comerciais e nos cartórios de registro de pessoas jurídicas. Daí sua

importância para a interpretação e o melhor entendimento acerca do negócio dissimulado,

revelando dados que, precisamente por seu caráter oculto, não se encontram consignados

no negócio dissimulado, como por exemplo, datas, partes intervenientes, certas condições e

obrigações, etc.

Nesse ponto, cumpre esclarecer que ao fisco, por não contar com a colaboração das

partes do acordo simulatório, é permitida a utilização de qualquer meio de prova, inclusive

presunções e indícios, desde que convergentes e concordantes. Para tanto, o negócio deve

ser analisado em sua inteireza, e não só a partir do teor literal das palavras empregadas.

Vale dizer: o significado do negócio deve ser compreendido através da análise do

comportamento total das partes, do conjunto das várias declarações e cláusulas, do intuito

prático visado, ou seja, deve ser levado em conta não somente a declaração final, mas

também o sentido das negociações precedentes. O negócio deve ser visto como um todo

unitário, não sendo possível separar o preceito contratual, isto é, a parte conclusiva do

negócio, do seu processo de formação.

Nesse sentido, o ensinamento de Heleno Tôrres, para quem: “Assim, quando

prejudicado por essa composição normativa, porque surge o efeito simulatório, em termos

jurídicos, faz-se lícito a qualquer sujeito sobre quem possa recair suas conseqüências,

(re)constituir, com apoio na linguagem das provas, o pacto simulatório e demonstrar a

ausência de causa no negócio jurídico (simulação absoluta) ou a dissimulação de outro

negócio jurídico desejado pelas partes (simulação relativa).” (TÔRRES, 2003, p. 309).

No caso em comento, os elementos coletados pela fiscalização revelam claramente

a ocorrência da simulação. No mesmo mês, entre os dias 6 e 11 de outubro de 1999, houve

a integralização de ações da Master pela Muffatão, a subscrição das ações com ágio pela

Page 99: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

98

Sonae, a saída dos sócios da Muffatão com o dinheiro, a cisão parcial da Master, a

incorporação da PML pela Muffatão. Saliente-se ainda que muitas destas operações foram

realizadas no mesmo dia, em horários seguidos. Tais elementos revelam a existência de

uma combinação entre as partes com vistas à criação de um negócio simulado, o qual foi

constituído através do “Contrato de Investimento, Segregação de Interesses e Outros

Pactos”, em razão da específica relação entre elas, com a finalidade de predispor, perante

terceiros de boa-fé, uma aparência de negócio jurídico legítimo, com causa própria, a partir

de concurso de declarações de vontade. Na hipótese, o negócio simulado foi utilizado para

encobrir o negócio dissimulado de interesse das partes, qual seja, a venda dos bens do

ativo permanente. O negócio jurídico realizado pelas partes, portanto, caracteriza-se por ser

uma simulação relativa.

Outro aspecto do voto que merece destaque e que também revela a influência da

concepção volitiva sobre o conceito de simulação adotado pelo julgador é o fato de

considerar essencial ao conceito de simulação o intuito de prejudicar terceiros. Afirma o

relator: “[...] é dever das autoridades fiscais coibir práticas de utilização no ordenamento

jurídico por meio de estratagemas, formalizados através de negócios simulados ou

dissimulados, com o objetivo de causar prejuízo ao Erário Público.” (destaques não

constantes do original).

Consoante já restou demonstrado, resta superada a teoria volitiva que vê a

simulação como um vício caracterizado pela divergência entre a vontade real e a declarada,

com o fim de prejudicar terceiros. O engano é considerado imanente ao conceito de

simulação. De fato, quando se diz que a simulação é um procedimento destinado a criar

uma aparência contrária à realidade, ou seja, uma mentira, já é pressuposta a idéia do

engano72. Constatada a simulação, sob o ponto de vista objetivo, o negócio será nulo, ainda

que desprovido do elemento subjetivo da intenção de enganar ou prejudicar terceiros, isto é,

ainda que se trate de uma simulação inocente (GAINO, 2008, p. 28).

Há ainda outra passagem do voto que merece especial consideração. O julgador

afirma que “a simulação é um vício que contamina o ato jurídico e encontra-se

regulamentada nos artigos 102 a 105 do Código Civil brasileiro vigente à época do

lançamento do crédito, cujas disposições hoje constam do artigo 167, do Código Civil

atualmente vigente, aprovado pela Lei nº 10.406/2002 [...].”, ou seja, o julgador da esfera

administrativa adota um conceito de simulação efetivamente mais amplo, posto que não se

72

Segundo Castro y Bravo, “[...] la simulación no se reduce a una divergencia entre voluntad y declaración, ni entre unas contrarias declaraciones. La declaración simuladora es querida y no sólo para ocultar o engañar; se quiere crear una apariencia y para un fin determinado. Existe, por tanto, un acuerdo de simular (“consilium simulationis”). No tiene éste una causa especial que le independice de lo simulado; antes bien, hace que sea causa falsa la declarada en el negocio simulado.” (1985, p. 338-339).

Page 100: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

99

limitou às hipóteses previstas na legislação penal, isto é, a simulação como sinônimo de

sonegação.

Alguns doutrinadores afirmam que os limites de aplicação traçados pelo artigo 167

do Código Civil (BRASIL, 2002) não se aplicam a outras áreas do direito, as quais dispõem

de normas específicas ou gerais para o tratamento das hipóteses de simulação. Isto não

significa que estes conceitos próprios do direito privado não possam ser utilizados por outras

áreas da ciência do direito. Na seara do direito tributário, por exemplo, o artigo 110 do

Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966), dispõe que “A lei tributária não pode alterar a

definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado,

utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos

Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou

limitar competências tributárias.” A contrario sensu, pode-se afirmar que o legislador

tributário tem plena autorização para alterar o conteúdo, os institutos e as formas de direito

privado, quando estes não se referiram à demarcação constitucional das competências

tributárias.

Nesse sentido, o ensinamento de Heleno Tôrres:

Por isso nada impede que o legislador tributário de qualquer uma das pessoas políticas, a título de redução de arbitrariedade ou de indeterminação conceitual, tipifique novas hipóteses de dissimulação em lei ordinária, segundo as competências materiais de cada pessoa política, válidas apenas para os fins fiscais e nas condições que especificarem, ou seja, quando relacionadas com as hipóteses de incidência vinculadas às materialidades que lhes foram conferidas pela Constituição. Do mesmo modo não há obstáculo para que se aplique um conceito geral de simulação sobre atos que lhe caracterizem, ocorridos no âmbito de aplicação dos tributos de competência de cada pessoa política, enquanto não estiver em vigor tal regramento específico. O único limite é que o fato esteja relacionado com as hipóteses de incidência dos seus tributos. Em resumo, somente a demonstração de vínculo com o respectivo “tipo” do fato jurídico tributário, nos termos da atribuição constitucional, é que poderá servir como fundamento para tal imputação de condutas simuladas. E diga-se o mesmo quanto às formas de identificação do “dolo” ou de fraude à lei. (TÔRRES, 2003, p. 365-366).

Da mesma forma que não se pode impor ao direito tributário a aplicação das

hipóteses taxativas previstas na legislação civil, não se justifica a limitação do conceito de

simulação fiscal apenas aos casos de maior gravidade constantes de “tipos” penais como,

por exemplo, os casos de evasão fiscal em que o sujeito suprime ou reduz o recolhimento

do tributo mediante simulação73.

73

Para Heleno Tôrres, o conceito de simulação para fins tributários pode ser distinto do civil, o que é negado peremptoriamente pela Professora Misabel Derzi que afirma: “Mas os atos ou negócios jurídicos somente poderão ser qualificados de simulatórios ou dissimulatórios e, pois, dignos de desconsideração pela Autoridade Administrativa, se reconhecidamente o forem no Direito Privado. Não há nenhuma peculiaridade introduzida dentro do Direito Tributário, por força do artigo 116 e de

Page 101: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

100

De fato, o sistema lógico desses conceitos não é suficiente por si para a apreensão

do fenômeno da simulação na multiplicidade das suas manifestações. Dessa forma, oferece-

se o tipo como forma de pensamento apto à apreensão desta realidade. É que o tipo,

consoante já visto, é “uma unidade dotada de sentido, ao mesmo tempo, uma abstração

mais concreta do que o conceito abstrato classificatório, estruturado de forma flexível, aberta

e graduável.” (DERZI, 2007, p. 76)74.

Disso decorre que a desconsideração de ato ou negócio jurídico praticada pelo fisco,

com base no artigo 149, VII, do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966), fundada na

simulação, não encontra nenhuma limitação seja na lista taxativa prevista no artigo 167, §

1º, do Código Civil (BRASIL, 2002), seja nos tipos penais correspondentes aos crimes

contra a ordem tributária. Com efeito, constatada a presença do pacto simulatório, que

compreende a criação entre as partes do contrato simulado e da relação dissimulada, os

quais formarão o segundo elemento do fenômeno simulatório, e forte na premissa de que a

simulação é moldável de acordo com o regime jurídico próprio em que se encontra inserida,

nada impede que o fisco se utilize de um conceito geral de simulação, com vistas à

aplicação do instituto sancionatório da desconsideração, que somente poderá recair sobre

atos que se amoldem às respectivas hipóteses de incidência dos tributos de competência de

cada pessoa política, nos termos traçados na Constituição (BRASIL, 1988), em atenção ao

princípio da legalidade.

A despeito da adoção de uma concepção ultrapassada da teoria do negócio jurídico

e da utilização de um conceito de simulação não mais condizente com as transformações

sofridas pelo Direito no último século, a decisão do Conselho de Contribuintes, na prática,

como bem acentua o Professor Marciano Godoi, acaba por se conformar a um conceito

ampliado e funcional de simulação. Nas palavras do mencionado autor:

Esse peculiar conceito de simulação é talhado sob medida para servir de arma certeira contra a elusão. Duas notas desse conceito de simulação-elusão merecem ser destacadas. Por um lado, a simulação passa a ser um conceito fluido e dinâmico, que atenta para o grau de “artificialidade” do planejamento tributário [...] e, levando em conta os “verdadeiros efeitos econômicos subjacentes”, não consente que o aplicador fique “aprisionado aos princípios do direito privado no que diz respeito à definição dos efeitos tributários dos atos e fatos jurídicos” [...]. Por outro lado, a jurisprudência mais recente das Câmaras do 1º Conselho de Contribuintes vem distinguindo essa simulação-elusão da tradicional simulação-evasão-sonegação (prevista no artigo 71 da Lei nº 4.502/64) e não vem aplicando à primeira as pesadas sanções previstas para a segunda.” (GODOI, 2007, 280 – destaques no original).

seu parágrafo único, de modo que os critérios que regem a simulação e a fraude são aqueles consagrados no Direito Privado.” (2007, p. 304). 74

Sobre a possibilidade de utilização dos tipos no direito tributário, vide Capítulo 1, item 1.

Page 102: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

101

Traçadas as noções sobre a simulação, cumpre, nesse ponto, distingui-la dos

negócios jurídicos indiretos. O principal ponto da defesa do contribuinte foi o de que os atos

praticados são formal e isoladamente perfeitos, e foram feitos “às claras”. Outro ponto seria

o de que os negócios praticados somente poderiam ser considerados simulados, se

demonstrada a intenção enganosa. Em não havendo prova deste intuito de prejudicar o

fisco, dever-se-ia classificar a operação como um simples negócio indireto, prevalecendo,

portanto, a vontade das partes sobre todos os elementos do negócio75.

Antes, porém, de abordar os traços distintivos entre simulação e negócio jurídico

indireto, cumpre esclarecer que, nas últimas décadas, tem-se percebido o recurso freqüente

aos negócios jurídicos anômalos, como é o caso dos negócios jurídicos indiretos, dos

negócios fiduciários, dos negócios em fraude à lei e dos negócios simulados. Consoante

ensina Castro y Bravo (1985, p. 329-330), a distinção entre estas figuras, muitas vezes, não

é bem nítida76. De fato, há casos em que pode ocorrer, cumulativamente, a presença de

simulação, negócio fiduciário e negócio em fraude à lei, quando, por exemplo, X aparenta

vender seus bens a Y, para que este, durante a vida de X, os administre por sua conta, para

que Y os herde quando X vier a falecer, frustrando, dessa forma, os direitos da mulher e dos

filhos de X. Em tal caso estariam presentes, cumulativamente, a simulação, a fraude à lei e

o negócio fiduciário.

O referido autor salienta, ainda, que esses negócios não podem servir de escudo

para evitar o controle sobre os fins práticos a que se destinam, muito menos para que as

partes se furtem ao princípio geral da boa-fé. Nesse sentido, a orientação de José Beleza

dos Santos, para quem “A ordem jurídica não reconhece uma autonomia completa e

ilimitada da vontade, que seria tão absurda como perigosa. E, porque o direito só protege os

interesses dignos dessa proteção, também só pode dar eficácia jurídica às determinações

75

Como seria a decisão do caso da subscrição das ações com ágio, caso o conselheiro relator fosse o Professor Alberto Xavier? Arriscamos a afirmar que as linhas mestras da decisão seriam as seguintes: 1) não há divergência entre a vontade real e a declarada, mas apenas uma divergência entre a causa-função típica e os motivos ou fins perseguidos pelas partes, divergência essa querida realmente e revelada às claras; 2) as partes realmente querem a transmissão do direito de modo claro, aberto e ostensivo e não de modo dissimulado ou oculto; 3) tratando-se de negócio indireto, por ser verdadeiro, não recai no âmbito de aplicação do novo parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966), que abrange apenas os atos ou negócios simulados, entendida a simulação como “um caso de divergência entre a vontade (vontade real) e a declaração (vontade declarada), procedente de acordo entre o declarante e o declaratário e determinada pelo intuito de enganar terceiros.” (XAVIER, 2002, p. 52 e 67-68). 76

A ausência de nítida distinção conceitual entres estas figuras foi ressaltada em voto proferido pelo Ministro Aníbal Freire, no julgamento do RE 16.984/RS (STF, Relator Ministro Luís Gallotti, j. 10/7/1950), ao afirmar que “[...] porque na doutrina a simulação ou negócio fiduciário e a simulação e a interposta pessoa são problemas jurídicos que se entrelaçam e que não têm, hoje, pontos absolutamente nítidos. Há elementos de configuração e de apreciação que entrosam os três problemas jurídicos.”

Page 103: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

102

sérias de vontade, que correspondam a um interesse legítimo, que se exprimam ex fide

bona e não às malícias e caprichos do declarante.” (SANTOS, 1999, p. 29).

Feitas essas considerações, passa-se à distinção entre as figuras jurídicas

mencionadas.

Viu-se que os tipos, especialmente os contratuais, são tipos jurídico-estruturais, isto

é, são tipos de contratos surgidos no tráfico jurídico que o legislador apreende na sua

tipicidade e adiciona-lhes as regras que considera adequadas para um tal tipo de contrato.

Em outras palavras: o legislador apreende os traços comuns dos contratos surgidos na

realidade jurídica, formando, assim, os tipos jurídico-estruturais e atribuindo-lhes efeitos

próprios, correspondentes à sua função instrumental, ou seja, em cada tipo de negócio se

encontra a causa que o legitima. Karl Larenz leciona que “O valor cognoscitivo do tipo como

uma forma de pensamento reside em que, ao invés do conceito abstrato, põe a claro e

permite conservar a plenitude de traços particulares neles contidos, precisamente na sua

união plena de sentido.” (LARENZ, 1997, p. 672).

Nos negócios típicos , a causa77 é facilmente verificada, posto que coincidente com

o tipo, ou a causa final abstrata, segundo ensina Azevedo (2006). Entretanto, nos negócios

indiretos não se verifica essa coincidência entre a causa final abstrata (a que seria típica de

um negócio) e a causa final concreta (a que se verifica em concreto) e, nesse ponto,

começam a surgir as infindáveis discussões entre os tributaristas sobre o que poderia ser

classificado como negócio indireto e, portanto, protegido pelo ordenamento jurídico, e

negócio simulado.

Os negócios jurídicos indiretos não se confundem com os negócios atípicos 78. Os

negócios atípicos são aqueles que não se enquadram nos tipos demarcados na lei, isto é,

não encontram na lei o modelo de sua disciplina. São figuras cada vez mais frequentes no

tráfico jurídico, oferecendo aos agentes econômicos maleabilidade no exercício de suas

atividades.

O Código Civil (BRASIL, 2002), em seu artigo 425 dispõe que “É lícito às partes

estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código.” Isto quer

dizer que mesmo atípico, o contrato estará sujeito às regras de interpretação e de eficácia

77

Segundo Castro y Bravo (1985, p. 190), “La causa puede ser así considerada como: aquel propósito negocial que es medido por la regla legal, y también como la regla que sirve para medir dicho propósito negocial.” Daí a confusão que pode ocorrer em relação à figura da causa do negócio jurídico. Ao nos referirmos à causa, podemos fazê-lo em relação àquilo com que se mede, bem como àquilo que é medido. Daí a advertência para o perigo que é ter uma visão incompleta ou parcial da causa, ou seja, puramente subjetivista ou puramente objetivista. É que os subjetivistas tendem a não valorar a função limitadora do direito sobre o exercício da autonomia privada, enquanto os objetivistas tendem a desconhecer a importância do papel da iniciativa privada. 78

Também não há que confundir contratos atípicos com contratos inominados. Um contrato pode ser atípico e nominado. Exemplo: contrato de swap. Entretanto, há autores, como Pedro Arruda França (2006), que utilizam os termos de forma indistinta.

Page 104: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

103

aplicadas aos demais contratos, ao sistema de nulidades, bem como aos três novos

princípios acolhidos pelo ordenamento jurídico, quais sejam: o da função social do contrato;

o da boa-fé objetiva e o do equilíbrio econômico do contrato, previstos, respectivamente, nos

artigos 421, 422 e 478 do Código Civil (BRASIL, 2002). Vale dizer: o fato de ser atípico não

confere às partes o poder de regulá-lo conforme sua vontade. Para ser válido e legítimo, o

contrato atípico deve apresentar causa específica, atender às cláusulas gerais relativas aos

contratos e que seu resultado prático não seja contrário à finalidade da lei.

E como delimitar a causa do negócio atípico? Castro y Bravo ensina que em todo

negócio deve-se perquirir o resultado prático daquilo a que se propõem alcançar os

particulares. Ou seja, não se buscam os motivos, os aspectos subjetivos, os desejos ou as

pretensões individuais ocultas para delimitar a causa concreta do negócio atípico. Para a

teoria objetiva, a causa concreta do negócio atípico revela seu sentido a partir do resultado

prático e da repercussão social do negócio. É a chamada teoria dos “motivos incorporados à

causa” (CASTRO Y BRAVO, 1985, p. 228-229). Em suma: há de se considerar causa o

significado social do propósito perseguido com o negócio.

Os negócios jurídicos indiretos também não se confundem com os negócios

fiduciários . Conforme assevera Orlando Gomes, “Admite-se, não obstante, que, em certos

casos, determinado tipo de negócio seja utilizado para a consecução de fim não

correspondente exatamente à sua causa. Essa discrepância ocorre, em princípio, nos

negócios fiduciários, nos negócios indiretos e nos negócios simulados.” (GOMES, 1988, p.

363 – destaques constantes do original).

A origem do negócio fiduciário ainda gera discussões entre os doutrinadores.

Orlando Gomes (1988, p. 363) assinala que o negócio fiduciário tem semelhança com a

fiducia romana. Entretanto, há autores, como Castro y Bravo (1985, p. 390-391), que

suscitam dúvidas em relação a essa afirmação. Para este autor, a fiducia romana se baseia

na concepção abstrata do negócio jurídico, pela qual se admite a propriedade meramente

formal (que legitimaria a atuação do fiduciário) separada da propriedade material (que seria

utilizada em favor dos interesses do fiduciante). Já nos sistemas jurídicos causalistas não se

admite a figura da “dupla propriedade” ou da titularidade comum entre fiduciante e fiduciário,

motivo por que a larga utilização da figura do negócio fiduciário pelos sistemas que se

baseiam numa concepção causalista do negócio jurídico ainda provoca alguma

perplexidade.

Essa perplexidade decorre do fato de que nos sistemas jurídicos que adotam o

sistema causal, uma vez firmado o negócio fiduciário, verificar-se-ia, desde logo, a

transmissão plena da propriedade ao fiduciário. Em consequência, o fiduciante não poderia

mais exercitar seu direito de “proprietário material”, para separar a coisa confiada do

Page 105: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

104

patrimônio do fiduciário, em caso de quebra da confiança ou de falência ou insolvência do

fiduciário. Em razão disso é que se afirma que o negócio fiduciário, nos sistemas

causalistas, caracteriza-se pelo fato de que o meio excede ao fim, uma vez que a pessoa

(no caso, o fiduciante) que transmite um direito em confiança a outra (o fiduciário) está a

usar de um instrumento jurídico inadequado ao fim que tem em vista (GOMES, 1988, p. 364-

365). É o que ensina Castro Y Bravo, com base no conceito de negócio fiduciário formulado

por Ferdinand Regelsberg, um dos precursores da introdução do negócio fiduciário na

dogmática jurídica:

[...] o negócio fiduciário se caracteriza em que as partes elegem para seu fim prático um negócio jurídico, cujos efeitos jurídicos – como elas sabem – excedem o daquele fim; por exemplo, transmissão da propriedade para garantir um crédito, cessão de um crédito para sua cobrança. Do negócio fiduciário nasce o efeito jurídico correspondente ao seu tipo, sem diminuição: o fiduciário se torna proprietário [...]. O fiduciário recebe um poder jurídico, o qual não pode dele abusar para fins distintos do que foi pressuposto. Quem transmite confia que isso não ocorrerá79. (CASTRO Y BRAVO, 1985, p. 381)

A diferenciação, portanto, entre negócio jurídico causal e abstrato é de suma

importância para a compreensão do tratamento que é conferido ao negócio fiduciário pelos

diversos sistemas jurídicos.

Assim, nos sistemas que se baseiam na fiducia romana, como é o caso da

Alemanha, o negócio fiduciário é visto como resultante da conclusão de dois negócios

independentes, porém conexos: o negócio real (abstrato) e o negócio obrigacional

(CASTRO Y BRAVO, 1985, 392-393). Já os sistemas causalistas, como é o caso da Itália e

da Espanha, cada negócio componente do negócio fiduciário deve ter uma causa específica.

Ora, no negócio fiduciário cum creditore, por exemplo, em que ocorre a venda de um bem

com vistas a garantir o direito de crédito do credor, o negócio da compra e venda carece de

causa própria, pois a causa concreta foi a garantia de uma dívida e não a transferência da

propriedade e, como tal, não poderia servir ao negócio fiduciário. É bom lembrar que nos

sistemas causalistas, há o esforço de demonstração da existência da causa do negócio,

uma vez que a causa é o requisito para a existência do negócio.

Para solucionar o impasse, desenvolveu-se, doutrinariamente, nos sistemas

causalistas, a noção de negócio fiduciário como um negócio unitário, com uma causa

79

“el negocio fiduciario se caracteriza en que las partes eligen para su fin práctico un negocio jurídico, cuyos efectos jurídicos – como ellas saben – exceden de aquel fin; por ejemplo, transmisión de la propiedad para garantizar un crédito, cesión de un crédito para su cobro. Del negocio fiduciario nace el efecto jurídico correspondiente a su tipo, sin disminución: el fiduciario se hace propietario […]. El fiduciario recibe un poder jurídico del que no ha de abusar para fines distintos del presupuesto. Quien transmite le hace confianza de que no lo hará.”

Page 106: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

105

própria e peculiar, ou seja, a causa fiduciária, a qual seria identificada com a finalidade de

mandato (fiducia cum amico) ou de garantia (fiducia cum creditore)80.

Contrário a essas posições, Castro y Bravo (1985) equipara o negócio fiduciário ao

negócio simulado81. Para o mencionado teórico, a compra e venda, como contrato causal e

não abstrato, requer uma causa. Inexistindo o preço, o negócio de compra e venda se revela

como negócio simulado que encobre outro negócio, o negócio de garantia (negócio

dissimulado). Nas palavras do autor, “Por mucha fuerza taumatúrgica que se vea en el

término negocio fiduciario, nunca llegará hasta convertir lo falso en verdadero.” (CASTRO Y

BRAVO, 1985, p. 408)

Além disso, o autor defende a idéia de que tanto no negócio fiduciário cum amico

(transmite-se a propriedade para fins de mandato ou de gestão) quanto no negócio fiduciário

cum creditore (transmite-se a propriedade para fins de garantia de uma dívida), a garantia

de uma dívida ou o cumprimento de um encargo não são justificativas suficientes para a

perda e a aquisição da propriedade de modo pleno e definitivo. Ao fim, conclui que o

negócio fiduciário mais parece se tratar de um procedimento anômalo e deformador do

negócio jurídico do que propriamente uma verdadeira figura de negócio jurídico.

No Brasil, admite-se a figura do negócio fiduciário. Segundo Gomes (1988, p. 365-

368), o negócio fiduciário desdobra-se em fases. A primeira se perfaz com a transmissão

plena da propriedade do bem pelo fiduciante ao fiduciário, o qual passa então a exercer o

domínio pleno sobre o referido bem com eficácia erga omnes. É o chamado negócio

translativo. A segunda fase corresponde a um negócio válido inter partes, em que o

fiduciante passa a deter um direito de crédito contra o fiduciário, relativo à obrigação deste

de utilizar a titularidade adquirida de modo a não contradizer a finalidade do negócio e a

confiança com base na qual o negócio jurídico foi firmado. É o chamado negócio

obrigacional, o qual gera apenas um direito de crédito em favor do fiduciante, sem força

suficiente para determinar o retorno do bem ao seu patrimônio, salvo no caso da alienação

fiduciária em garantia, em que a propriedade é transmitida sob condição resolutória.

Conquanto seja patente a não-correspondência, no negócio fiduciário, entre o fim

visado pelas partes e o fim típico do contrato adotado, na medida em que se verifica a

80

Orlando Gomes ensina que não haveria a descaracterização das causas dos dois negócios, o translativo e o obrigacional, para a formação de um só negócio com causa típica. Esclarece o mencionado autor: “A causa do negócio obrigacional, isto é, o pacto de fidúcia, não é a mesma do negócio translativo. No entanto, apresenta-se encoberta como a causa da atribuição patrimonial oriunda desse negócio. Causa do contrato e causa da atribuição patrimonial não se confundem, e é por não distingui-las que alguns sustentam somente ser possível o negócio fiduciário naqueles sistemas jurídicos que admitem como abstrato o negócio de transmissão.” (GOMES, 1988, p. 368 – destaques no original) 81

Em sentido contrário, Gomes (1988, p. 370-371) ensina que o negócio fiduciário não se confunde com negócio simulado. Para o civilista, o fiduciante quer transmitir a propriedade do bem, para que o fiduciário dele se utilize conforme determinado no negócio obrigacional concomitantemente realizado.

Page 107: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

106

utilização de uma forma jurídica mais forte para obter resultado mais fraco (FERRARA,

1999, p. 78), o mesmo é passível de tutela jurídica, se não for fraudulento (GOMES, 1988, p.

365).

Analisado o negócio fiduciário, passa-se ao estudo do negócio indireto .

A primeira abordagem sistemática da figura do negócio jurídico indireto surgiu a partir

dos estudos de Köhler, na Alemanha. Este teórico inicia sua argumentação a favor da

existência dessa figura jurídica fazendo a distinção entre os aspectos jurídicos e econômicos

dos negócios causais, chamando a atenção para o fato de que, muitas das vezes, tais

aspectos não são coincidentes.

Para o mencionado teórico, os negócios ‘ocultos’ são distintos dos negócios

simulados, na medida em que aqueles visam à obtenção de um fim especial mediante o uso

artificioso da forma jurídica. O fundamento para a utilização do uso anômalo das formas

jurídicas reside justamente no propósito de ocultar seu fim, o qual apareceria imediatamente

se fosse utilizada a forma jurídica ordinária (apud CASTRO Y BRAVO, 1985, p. 445).

Como bem assinala Castro y Bravo (1985, p. 445), esses primeiros estudos tiveram o

mérito de destacar o fim último que os particulares tinham em vista com a adoção dessa

forma anômala de negócio jurídico. Ao mesmo tempo, tais estudos pretendiam o

reconhecimento praticamente ilimitado da liberdade dos particulares para a realização de

seus interesses econômicos por meio de qualquer forma jurídica, exceto quando o

ordenamento proibisse direta e expressamente o exercício de determinada atividade

econômica (ou permitia o exercício sob certas condições). Afora esses casos excepcionais,

seria permitido aos particulares agir de forma livre, utilizando-se, para tanto, de toda e

qualquer forma para a consecução dos seus objetivos.

Esclarece o mencionado autor que doutrina e jurisprudência alemãs viam com

desconfiança esses rodeios e ocultações, os quais consideravam fraudulentos, mesmo que

se utilizando de formas legais, já que conduziam a um resultado contrário à finalidade da lei,

fosse essa proibitiva ou imperativa.

Todavia, essa figura do negócio clandestino ou oculto, o qual se utiliza de meios

jurídicos tortuosos para se esquivar das leis e atingir sua finalidade, foi considerada pelo

italiano Ascarelli uma figura normal e merecedora de tutela jurídica, que poderia ser utilizada

para superar o estreito formalismo dos negócios jurídicos existentes no início do século XIX,

de modo a proporcionar o maior desenvolvimento do comércio. Para tanto, essa figura foi

batizada de negócio jurídico indireto e contou com a influência do mencionado teórico para

sua divulgação e aceitação, o qual sustentava: “Não há acordo para simular nem interesse

algum em esconder de terceiros a finalidade última a que se dirige o ato; frequentemente,

dito fim resulta claro das cláusulas do negócio, cláusulas que não se subtraem de modo

Page 108: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

107

algum ao conhecimento de terceiros e que formam parte daquele mesmo documento que

menciona o negócio criado entre as partes. O procedimento se desenvolve à luz do sol e

nenhum homem se engana sobre seu fim último.” (CASTRO Y BRAVO, 1985, p. 446-447)

Há, portanto, negócio jurídico indireto quando as partes se utilizam de determinado

negócio para a obtenção de um fim distinto daquele que sua causa típica define (GOMES,

1988, p. 370). Ou, ainda, nas palavras de Heleno Tôrres, “negócio indireto é aquele no qual

as partes celebram um contrato usando um tipo-parâmetro, mas visando a um fim indireto,

i.e., distinto daquele que seria próprio do tipo.” (TÔRRES, 2003, p. 162). Em outras

palavras: nos negócios jurídicos indiretos verifica-se a alteração da causa correspondente

ao tipo utilizado. São, portanto, negócios típicos, mas cujos fins são diversos daqueles que

lhes seriam próprios.

Mais adiante, no capítulo 3, será discutida a questão da causa dos negócios

indiretos. Por ora, cumpre esclarecer que o caso julgado pelo Conselho de Contribuintes do

Ministério da Fazenda objeto de análise não se enquadra no conceito de negócio jurídico

indireto, seja porque restou demonstrada a existência do pacto simulatório entre as partes

pelo fisco, seja porque não se vislumbrou a adoção de um negócio típico, com vistas a

alcançar um fim distinto daquele que é previsto para o referido negócio.

Há, por fim, que se fazer referência ao argumento da defesa de que se todos os atos

e negócios jurídicos praticados pela Muffatão e a pela Sonae foram simulados, nenhuma

eficácia poderia advir daqueles atos ou negócios jurídicos e, assim, não poderia resultar em

nenhum efeito tributário e, consequentemente, não poderia ser objeto de lançamento, pois

todas as operações e negócios seriam nulos.

Cumpre esclarecer que os simuladores não podem opor o negócio simulado ao fisco,

ao argumento de que este seria nulo, com vistas à desconstituição do lançamento. No dizer

de Humberto Theodoro Júnior “[...] o sistema adotado pelo novo Código brasileiro é o da

nulidade de todo negócio simulado, não importa o intuito dos contratantes, nem o efeito

prático do negócio aparente. Este sempre será nulo e sempre prevalecerá para os figurantes

a situação jurídica dissimulada como a relevante para o direito, pouco importando a boa ou

má-fé dos simuladores. Verificada a simulação, a situação verdadeira (a oculta), é que a lei

irá coibir eventuais efeitos injurídicos, protegendo os interesses de terceitos acaso

prejudicados (art. 167, § 2º).” (THEODORO JÚNIOR, 2003, p. 474). Isso significa que a

tributação deverá recair sobre o negócio jurídico real e não sobre o negócio jurídico

simulado. É o que dispõe o artigo 167, caput, do Código Civil (BRASIL, 2002)82. Assim,

independente de vir a ser plenamente válido ou eficaz, o negócio efetivo da compra e venda

82

“Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma.”

Page 109: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

108

deve vir à tona, afastando-se os artifícios engendrados pelas formalidades societárias

praticadas num dia para serem anuladas no dia seguinte, de modo que o negócio

dissimulado seja tributado.

3.5.2. Caso da incorporação às avessas: compensação de prejuízos fiscais

3.5.2.1. Apresentação do caso

Na sessão de 2 de dezembro de 1996, a Câmara Superior de Recursos Fiscais do

Ministério da Fazenda foi instada a se pronunciar, através do recurso especial de

divergência interposto pela empresa REXNORD CORRENTES LTDA., sobre decisão

proferida pela Primeira Câmara do Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, que

manteve a glosa de prejuízos fiscais, nos exercícios financeiros de 1984 a 1987, efetuada

pela fiscalização da Secretaria da Receita Federal e confirmada em primeira instância.

3.5.2.2. Resumo do processo

A fiscalização da Secretaria da Receita Federal glosou prejuízos fiscais apurados

nos exercícios financeiros de 1984 a 1987 pela empresa REXNORD CORRENTES LTDA. O

fisco desconsiderou as sucessivas incorporações, precedidas de cisões parciais, onde a

mencionada empresa era incorporada por empresas deficitárias, para em seguida alterar (a

incorporadora) sua razão social, objeto social e endereço, os quais passavam a ser os da

empresa incorporada, com o propósito de compensar estes prejuízos com o imposto de

renda apurado pela empresa lucrativa (sucessivamente incorporada). À luz das regras

vigentes à época dos fatos (Regulamento do Imposto de Renda – RIR/80), a incorporadora

não podia compensar os prejuízos acumulados pela incorporada anteriormente à

incorporação, mas essa vedação não englobava o direito de compensar os prejuízos da

própria incorporadora. Passa-se, assim, a expor minuciosamente a operação realizada pelo

contribuinte, conforme consta do relatório do RD/101-0.910, relator Conselheiro Verinaldo

Henrique da Silva.

Em 1º de agosto de 1983, a REXNORD DO BRASIL INDÚSTRIA LTDA., empresa

deficitária, é cindida parcialmente, resultando na criação da empresa RACINE DO BRASIL

Page 110: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

109

INDÚSTRIA, COMÉRCIO, PARTICIPAÇÃO LTDA. e na transferência para esta nova

empresa dos bens e direitos da REXNORD DO BRASIL INDÚSTRIA LTDA., ficando esta

apenas com os prejuízos.

Em 21 de setembro de 1983, a REXNORD DO BRASIL INDÚSTRIA LTDA., empresa

deficitária, incorpora sua controlada, a empresa REXNORD CORRENTES LTDA., altamente

lucrativa.

Em 22 de setembro de 1983, no dia seguinte, a REXNORD DO BRASIL INDÚSTRIA

LTDA. passa a ser denominada de REXNORD CORRENTES LTDA., mantido o mesmo

endereço desta, bem como a atividade econômica.

Em 21 de dezembro de 1984, a HOBART INTERNATIONAL INC. e a HOBART

SALES AND SERVICE INC. transferem suas cotas da HOBART INDUSTRIAL LTDA. para a

REXNORD INC. No mesmo dia, a HOBART INDUSTRIAL LTDA passa a ser denominada

de REXNORD DO SUL LTDA.

Em 24 de dezembro de 1984, a REXNORD DO BRASIL INDUSTRIAL LTDA. (na

realidade REXNORD DO BRASIL INDÚSTRIA LTDA.), que ainda não havia sido registrada

na junta comercial, o que se deu apenas em 27 de dezembro de 1984, vende a totalidade

das cotas da REXNORD CORRENTES LTDA. para a REXNORD DO SUL LTDA. por uma

quantia de Cr$ 11.340.679.983,00. O pagamento seria efetuado entre janeiro de 1986 a

janeiro de 1987 pela própria empresa que fora vendida.

Em 28 de dezembro de 1984 (quatro dias depois), a REXNORD DO SUL LTDA

(antiga HOBART INDUSTRIAL LTDA.), empresa em estado de pré-falência, com patrimônio

líquido negativo, atividades industriais desativadas e elevado prejuízo fiscal, incorpora a

REXNORD CORRENTES LTDA., empresa superavitária.

No dia seguinte, em 29 de dezembro de 1984, a REXNORD DO SUL LTDA. (antiga

HOBART INDUSTRIAL LTDA.) tem sua razão social alterada para REXNORD

CORRENTES LTDA., bem como endereço e atividade econômica, os quais passam a

coincidir com os da empresa incorporada.

Em 26 de novembro de 1985, a KELLOGG BRASIL INC. e a GOLLEK INC., únicas

cotistas da sociedade por cotas de responsabilidade limitada PRODUTOS ALIMENTÍCIOS

KELLOGG’S (empresa esta que, em 31 de outubro de 1985, sofrera uma cisão parcial,

ficando só com os prejuízos fiscais) transferem suas cotas para a REXNORD DO BRASIL

INDUSTRIAL LTDA.

No mesmo dia, ou seja, em 26 de novembro de 1985, a empresa PRODUTOS

ALIMENTÍCIOS KELLOGG’S LTDA. passa a ser denominada REXNORD DO RIO GRANDE

LTDA. Ainda no mesmo dia, a REXNORD CORRENTES LTDA. procede à liquidação

referente à aquisição da PRODUTOS ALIMENTÍCIOS KELLOGG’S LTDA., mediante a

Page 111: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

110

emissão do cheque nº A-0103929 no valor de Cr$ 800.000.000,00, correspondente ao valor

do patrimônio líquido, e outro cheque de nº A-0103930, no valor de Cr$ 6.339.618.687,00

emitidos contra o Banco Bozzano Simonsen S/A.

No outro dia, em 27 de novembro de 1985, a REXNORD DO RIO GRANDE LTDA.

(antiga PRODUTOS ALIMENTÍCIOS KELLOGG’S LTDA.), empresa deficitária e desativada

do ramo de produtos alimentícios, incorpora a REXNORD CORRENTES LTDA., empresa

altamente lucrativa do ramo de fabricação de correntes.

No mesmo dia, ou seja, em 27 de novembro de 1985, a REXNORD DO RIO

GRANDE LTDA (antiga PRODUTOS ALIMENTÍCIOS KELLOGG’S LTDA) passa a ser

denominada de REXNORD CORRENTES LTDA, ou seja, mesma denominação social,

mesmo endereço e atividade econômica da incorporada.

Em 27 de dezembro de 1985, a empresa UNIÃO MINAS EMPREENDIMENTOS S/A

sofre uma cisão parcial, resultando na transferência de seus bens e direitos para a nova

sociedade, ficando na empresa cindida todo o prejuízo fiscal.

Em 28 de agosto de 1986, a REXNORD DO BRASIL INDUSTRIAL LTDA. adquire a

UNIÃO MINAS EMPREENDIMENTOS S/A pela importância de Cz$ 9.312.799,00, mediante

a emissão dos cheques nºs 202.142, no valor de Cz$ 4.656.399,50, e 202.140, no valor de

Cz$ 4.656.399,50, contra o Banco Meridional do Brasil S/A, cheques estes pertencentes a

REXNORD CORRENTES LTDA. Saliente-se que a empresa adquirida (UNIÃO MINAS)

estava totalmente desativada, mas possuía elevado saldo de prejuízo fiscal acumulado, que

seria utilizado para compensação, como de fato o foi.

Em 06 de outubro de 1986, a UNIÃO MINAS EMPREENDIMENTOS S/A passa a ser

denominada UNIÃO MINAS EMPREENDIMENTOS LTDA.

Em 15 de outubro de 1986, a UNIÃO MINAS EMPREENDIMENTOS LTDA., empresa

do ramo imobiliário, com patrimônio líquido de Cz$ 1.000,00, desativada, mas com saldo

acumulado de prejuízos bastante elevado, incorpora a REXNORD CORRENTES LTDA.,

empresa com patrimônio líquido da ordem de Cz$ 83.523.789,42, altamente lucrativa, com

atuação na área de fabricação de correntes.

Em 20 de outubro de 1986, a UNIÃO MINAS EMPREENDIMENTOS LTDA. passa a

ser denominada REXNORD CORRENTES LTDA. (a mesma denominação da empresa

incorporada), mantendo o mesmo endereço e atividade desta.

A empresa recorrente, em sua defesa, alega que: 1) todas as operações acima foram

realizadas dentro da lei (artigos 382 e 384 do RIR/80, Instruções Normativas da SRF nºs

7/81 e 77/86 e Parecer Normativo nº 10/81, item 5.3); 2) os atos de incorporação adotaram

forma jurídica legítima; 3) o ordenamento jurídico não proíbe que uma sociedade deficitária

Page 112: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

111

incorpore uma sociedade lucrativa; 4) o ordenamento jurídico garante o direito de a pessoa

jurídica alterar sua razão social, quando bem lhe aprouver.

3.5.2.3. Ementa

IRPJ – “INCORPORAÇÃO ÀS AVESSAS” – MATÉRIA DE PROVA – COMPENSAÇÃO DE PREJUÍZOS FISCAIS – A definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se da validade jurídica dos atos efetivamente praticados. Se a documentação acostada aos autos comprova de forma inequívoca que a declaração de vontade expressa, nos atos de incorporação era enganosa para produzir efeito diverso do ostensivamente indicado, a autoridade fiscal não está jungida aos efeitos jurídicos que os atos produziram, mas à verdadeira repercussão econômica dos fatos subjacentes.

3.5.2.4. Análise do julgado

Ab initio, cumpre salientar que, até 1996, “todos os julgados da Câmara Superior de

Recursos Fiscais adotavam a postura ultraformalista de que se a incorporação se fez

conforme os trâmites formais previstos no direito privado, a autoridade fiscal não poderia

desconsiderá-la para efeitos tributários.” (GODOI, 2007, p. 279). A título de exemplo,

podemos citar o Acórdão nº CSRF/01-01.87483, Relatora Conselheira Mariam Seif. Da leitura

do voto, depreende-se que a Relatora considerou perfeitamente lícita a incorporação de

uma sociedade superavitária por outra deficitária. Com base nas lições de Tulio Ascarelli, a

Conselheira entendeu que houve, na realidade, um negócio jurídico indireto, cujo “fim prático

visado pelas partes é alcançado justamente por meio do negócio adotado e declarado.”

Adotando um conceito restrito de simulação (“fingimento na manifestação da vontade, para

realizar algum ato jurídico, mas de natureza diversa daquele que, de fato, se pretende

concretizar”), a Relatora salientou que não houve simulação, mas sim legítima economia de

tributos, restando caracterizado um ato ou negócio jurídico elisivo.

A partir de 1996, a jurisprudência das Câmaras do Primeiro Conselho de

Contribuintes passou a desenvolver um peculiar conceito de simulação (GODOI, 2007, p. 83

Ementa: “I.R.P.J. – SIMULAÇÃO NA INCORPORAÇÃO – Para que se possa materializar é indispensável que o ato praticado não pudesse ser realizado, fosse por vedação legal ou por qualquer outra razão. Se não existia impedimento para a realização da incorporação tal como realizada e o ato praticado não é de natureza diversa daquele que de fato aparenta, isto é, se de fato e de direito não ocorreu ato diverso da incorporação: não há como qualificar-se a operação de simulada. Os objetivos visados com a prática do ato não interferem na qualificação do ato praticado, portanto, se o ato praticado era lícito, as eventuais conseqüências contrárias ao fisco devem ser qualificadas como casos de elisão fiscal e não de evasão ilícita.”

Page 113: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

112

280-281), que atenta para o grau de artificialidade do planejamento tributário, levando em

conta os verdadeiros efeitos econômicos dos negócios jurídicos. Esta nova postura afasta-

se daquela tradicional de considerar que todo e qualquer planejamento tributário configura

elisão lícita e eficaz quando não estão presentes os requisitos configuradores da evasão-

sonegação.

É nessa nova postura que se enquadra o Acórdão que ora examinamos.

O Conselheiro Relator, em seu voto, afirma que à luz das provas trazidas aos autos

do processo que deu origem à lavratura do Auto de Infração, o que houve realmente foi a

incorporação pela empresa lucrativa (REXNORD CORRENTES LTDA.) de todas as

empresas deficitárias, porquanto a REXNORD nunca foi extinta.

O relator considerou que o artigo 109 do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966),

autorizava uma avaliação global dos atos ou negócios jurídicos praticados pelo contribuinte,

para alcançar o “substrato econômico”, não estando o intérprete “aprisionado aos princípios

do direito privado no que diz respeito à definição dos efeitos tributários dos atos e fatos

jurídicos”, podendo, decerto, “abstrair-se da validade jurídica dos atos efetivamente

praticados, para considerar os verdadeiros efeitos econômicos subjacentes nesses atos e

que se procuram mascarar.”

Ao final conclui que as incorporações tinham como único propósito o não

recolhimento do imposto devido e que o fisco não pode homologar a simulação , a prática

ilícita, “sob pena de afronta aos princípios mais elementares de direito.”

À época deste julgamento, não havia sido ainda introduzida a norma geral antielisiva

prevista no parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966) e a

jurisprudência da Câmara Superior de Recursos Fiscais era firme no sentido de que tais

operações seriam perfeitamente legítimas.84 Portanto, este julgamento representou, em

relação à matéria das “incorporações às avessas”, um importante paradigma, na medida em

que se utilizou de um conceito alargado de simulação, para coibir um planejamento tributário

notoriamente artificioso, que “manipula o revestimento formal de contratos e outros institutos

jurídicos, esvaziando-os de qualquer substância jurídica real para atrair a aplicação de uma

norma tributária benéfica (compensação de prejuízos) que de outra forma não seria

aplicável [...].” (GODOI, 2007, p. 279).

O Professor Marciano Seabra de Godoi considera que o caso das incorporações às

avessas seria um caso típico de fraude à lei tributária relativa à disciplina da compensação

de prejuízos fiscais, e não de simulação, como entendeu o Conselheiro relator. Nas palavras

do mencionado Professor:

84

Neste sentido, os Acórdãos CSRF/01-01.857 (Relatora Conselheira Mariam Seif, j. 15/05/1995), CSRF/01-01.756, CSRF/01-01.892 e CSRF/01-01.874 (Relatora Conselheira Mariam Seif, j. 15/05/1995).

Page 114: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

113

O caso das incorporações às avessas nos parece uma clara fraude à norma tributária relativa à disciplina da compensação de prejuízos fiscais: para alcançar um resultado totalmente distanciado do propósito regulador da legislação tributária, lança-se mão de incorporações notoriamente artificiosas, que constituem meras formas vazias e sem qualquer correspondência com a finalidade prática que legitima e informa essa instituição do direito societário. Pode-se chamar essa estrutura de “dissimulação da natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária” (artigo 116, parágrafo único do CTN) ou de “negócio jurídico indireto com atos jurídicos simulados” (como ocorre no Ac. nº 103-21.046), desde que nesse último caso se reconheça que se está utilizando um conceito potencializado e causalista de simulação, e que deve ser diferenciado da simulação-sonegação tendo em vista as conseqüências punitivas dessa última figura. O que não nos parece possível é coibir esses atos de elusão no direito brasileiro por uma via distinta daquela prevista no artigo 116, parágrafo único do CTN. (GODOI, 2007, p. 283).

Vimos que a simulação não se reduz a uma divergência entre a vontade e a

declaração, porquanto consiste no ato de alguém que, de forma consciente, acorda com

outra pessoa, a quem a sua declaração é dirigida, um negócio que nenhuma das duas quer

(simulação absoluta) ou um negócio diferente daquilo que ambas querem (simulação

relativa), visando a alcançar o êxito da aparência enganosa contra terceiros de boa-fé.

No caso sob análise, não se verifica a presença do acordo simulatório entre a

REXNORD CORRENTES LTDA. e as empresas deficitárias, essencial que é para a

configuração da simulação. Com efeito, não há na hipótese a conjugação das vontades das

empresas envolvidas (REXNORD CORRENTES LTDA. e demais empresas deficitárias que

tiveram seus prejuízos transferidos àquela), para conferir determinada aparência a um

determinado negócio. Não há aqui nenhum acordo mediante o qual os contratantes

declaram querer algo diverso daquilo que colocam em aparência por meio de outro contrato.

Portanto, concordamos com o Professor Marciano Seabra de Godoi quando afirma

que a hipótese sub examine é de fraude à lei tributária, e não de simulação85, mas, com a

devida vênia, discordamos que tal caso não poderia ter sido desconsiderado pelo fisco ante

a ausência de norma que coibisse esses atos de elusão.

85

José Beleza dos Santos ressalta que “A fraude à lei deve distinguir-se da simulação, porque tem configurações jurídicas diversas. Uma e outra não representam situações que necessariamente se excluam, que não possam coexistir. Mas, se é certo que elas podem encontrar-se simultaneamente no mesmo ato jurídico, também o é que, num grande número de casos, pode haver simulação sem fraude à lei, e fraude à lei sem que simulação exista. É que a simulação nem sempre é fraudulenta, podendo simular-se sem que se procure iludir a lei, sem que de fato a lei seja infringida, da mesma maneira que pode usar-se da fraude à lei sem que se empregue a simulação para tal fim.” (SANTOS, 1999, p. 79). Ainda sobre a coexistência das figuras da fraude à lei e da simulação em um mesmo negócio jurídico, extrai-se do voto proferido pelo Relator Ministro Moreira Alves (RE 88.442, j. 13/12/1977), o seguinte ensinamento de Serpa Lopes: “[...] toda a vez que a simulação atue como um meio fraudatório à lei, visando a vulneração de uma norma cogente, deve desaparecer para dar lugar à preponderância da fraude à lei, pela violação da norma de ordem pública.”

Page 115: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

114

Estamos certos de que o caso em questão não se restringe apenas à definição da

anomalia do negócio jurídico praticado (fraude à lei, simulação ou abuso de direito), mas

também na determinação do valor que nosso sistema jurídico concede à autonomia da

vontade e na determinação de seus limites. Também estamos certos de que a interpretação

conferida pelo relator do Acórdão nº CSRF/01-02.107 ao negócio realizado teve o mérito de

se afastar da concepção formalista que até então dominava no âmbito do Conselho de

Contribuintes, de modo a possibilitar a inclusão do negócio praticado pela REXNORD no

âmbito de incidência da norma contornada. Isto porque, quanto mais formalista for o

sistema, mais dificilmente serão obstaculizados negócios praticados em fraude à lei, com

simulação ou com abuso do direito. Para nós, o artigo 149, VII, do Código Tributário

Nacional se presta a este desiderato, não se restringindo apenas aos casos de fraude

tipificados na lei penal tributária, abrangendo, por certo, os negócios que buscam evitar as

normas imperativas. Assim, consideramos que decidiu corretamente a Câmara Superior de

Recursos Fiscais quanto à manutenção da glosa dos prejuízos fiscais, uma vez que o

resultado inicialmente pretendido pela REXNORD encontrava-se submetido às normas

relativas ao imposto de renda, as quais deviam ser aplicadas, bem como as sanções que

elas impunham.

A doutrina considera que a fraude à lei consiste em “utilizar um tipo de negócio ou

um procedimento negocial através do qual se busca evitar as normas estabelecidas para

regular outro negócio; aquele, precisamente, cuja regulação é a que corresponde ao

resultado que se pretende conseguir com a atividade posta em prática.”86 (CASTRO Y

BRAVO, 1985, p. 370). Ou, ainda, nas palavras de José Abreu Filho, “[...] a fraude à lei

constitui a utilização de um procedimento que aparenta ser lícito, com a finalidade de burlar

disposições de ordem legal.” (ABREU FILHO, 2003, p. 330).

A fraude à lei distingue-se da fraude contra a lei. Nesta, há violação direta ao

preceito legal, enquanto naquela evita-se a afronta direta da lei, através da utilização de

rodeios, ou seja, de procedimentos e negócios distorcidos, com o objetivo de alcançar o

mesmo resultado que se encontra previsto na norma defraudada. Segundo José Beleza dos

Santos, “para levar a efeito essa fraude, para conseguir indiretamente um resultado que a lei

proíbe, as partes combinam as circunstâncias de fato de que depende a aplicação da norma

por uma forma tal que aparentemente se respeita o preceito imperativo da lei.” (SANTOS,

1999, p. 80).

A vertente formalista defende que não podem ser aplicadas no Brasil as figuras da

fraude à lei, ou mesmo do abuso do direito. Segundo Coêlho (2007, p. 357), tais figuras

86

“Consiste en utilizar un tipo de negocio o un procedimiento negocial con el que se busca evitar las normas dictadas para regular otro negocio; aquel, precisamente, cuya regulación es la que corresponde al resultado que se pretende conseguir con la actividad puesta en práctica.”

Page 116: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

115

constituem autorização expressa para exigência de tributo por analogia. Adverte ainda o

mencionado Professor que a estruturação dos negócios jurídicos de modo a arcar-se com

menor ônus tributário é prática comum das empresas, sendo mesmo o planejamento

tributário dever dos administradores das sociedades anônimas, consoante se depreende

dos artigos 153 e 154 da lei nº 6.404/76 (BRASIL, 1976). Duas considerações devem ser

feitas em relação às assertivas do Professor Sacha Calmon.

A primeira é que o tema objeto de análise depende da concepção ideológica a que

se vincula o intérprete. A isto chamou atenção Marco Aurélio Greco, quando afirma que:

[...] o tema do planejamento envolve, em última análise, uma concepção de Estado. Por esta razão, apresenta uma faceta ideológica que repercute no sentido que se extrai dos dispositivos normativos no momento da sua interpretação e aplicação. Assim, antes de iniciar um debate sobre planejamento, é preciso identificar a ideologia de quem está se manifestando, porque se ele professar uma ideologia liberal clássica, quase certamente defenderá a concepção de uma ampla liberdade – para não dizer ilimitada – do contribuinte ao mesmo tempo em que afirmará que o Fisco não pode desconsiderar os atos realizados, pois não existem as figuras da fraude à lei e do abuso de direito em matéria tributária no Brasil e assim por diante. Por outro lado, se a ideologia for eminentemente social, certamente defender-se-á que o planejamento tributário é uma conduta inaceitável porque frustra o atingimento da capacidade contributiva, quebra a isonomia e agride a solidariedade social, razão pela qual a interpretação da norma tributária deve dar proeminência à substância econômica do negócio jurídico e não à sua dimensão jurídica. Ou seja, todos estes são discursos que encontramos nos diversos textos publicados sobre o tema do planejamento tributário. Cumpre identificar um ponto de equilíbrio. A complexidade neste ponto não está na ideologia em sim, mas sim na circunstância de a postura ideológica nem sempre vir explícita no debate. Muito freqüente é encontrarmos conclusões categóricas em determinado sentido (seja ele qual for) apresentadas pelo seu prolator como se fossem verdades absolutas e incontestáveis, quando, na realidade, são o mero produto de determinada linha ideológica previamente assumida, mas nem sempre previamente explicitada para o interlocutor. (GRECO, 2008, p. 19-20).

Assim, para os que se alinham à ideologia liberal, como os formalistas, a figura da

fraude à lei consistiria na adoção da teoria do business purpose test, segundo o qual o

negócio jurídico, ainda que perfeitamente lícito, pode ser desconsiderado pelo fisco, se tiver

como único propósito eliminar ou reduzir a carga tributária. Para os formalistas, o negócio é

lícito (elisão) ou ilícito (evasão). Se lícito, o negócio não pode ser, em hipótese alguma,

desconsiderado pelo fisco, ao argumento de que se trata de fraude à lei tributária.

Ocorre que esta interpretação não considera os princípios da igualdade da tributação

(art. 5º, “caput”, da CF) e da capacidade contributiva (art. 145, § 1º, da CF) e muito menos o

fato de que o negócio em fraude à lei, em última análise, não possui esta pretensa

autonomia.

Page 117: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

116

Com base na doutrina de Coviello, Beleza dos Santos (1999, p. 82-84) afirma que a

doutrina da fraude à lei não é autônoma, como declaram os subjetivistas e os objetivistas,

não havendo, portanto, como se contrapor os atos em fraude à lei aos atos contra a lei.

Melhor explicando: os atos contra a lei ofendem a letra do texto legal, enquanto os atos em

fraude à lei ofendem o seu espírito. Todavia, a norma não resulta só da sua letra, mas

também do seu espírito, pelo que uns e outros violam a lei, na medida em que letra e

espírito são elementos essenciais e inseparáveis da norma legal. A diferença é que na

fraude contra a lei a violação é mais clara, grosseira e franca, enquanto na fraude à lei, a

violação é oculta, artificiosa e disfarçada. Assim, embora aparentemente não o sejam, os

atos em fraude à lei são, na realidade, contra a lei e como tais proibidos pelo ordenamento

jurídico.

A segunda consideração a ser feita é a de que os artigos 153 e 154 da Lei nº

6.404/76 (BRASIL, 1976) não podem ser interpretados como um “cheque em branco”

assinado pelo legislador em favor dos administradores das sociedades anônimas para que,

na busca da maior lucratividade possível, possam praticar atos em fraude à lei, simulados

ou com abuso de direito. Os próprios dispositivos aludem ao dever do administrador de

exercer suas atribuições no interesse das companhias, desde que satisfeitas as exigências

do bem público e da função social da empresa.

De todo o exposto, concluímos que o caso da “incorporação às avessas” é típico

caso de fraude à lei tributária87. À época, o Decreto-Lei nº 1.730/79 (BRASIL, 1979) proibia a

incorporadora de compensar seus lucros com os prejuízos da incorporada. Diante desta

proibição, a REXNORD, para eludir a aplicação da referida lei, adotou o procedimento da

“incorporação às avessas”, ou seja, uma empresa com prejuízos fiscais elevados

incorporava a REXNORD (altamente lucrativa), de modo a obviar a aplicação da proibição.

Na verdade, houve a violação da lei efetuada por uma forma indireta, respeitando-a

na aparência, mas infringindo-a na realidade. “[...] a fraus legis não é senão uma modalidade

da violação da lei, menos aparente, mais disfarçada, mas sempre uma infração da norma

imperativa [...].” (BELEZA DOS SANTOS, 1999, p. 86).

Cumpre ressaltar que o caso REXNORD também foi objeto de apreciação pelo

Poder Judiciário. Com efeito, a 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no

julgamento da Apelação Cível nº 2002.04.01.014021-6/RS (relatora Desembargadora

Federal Maria Lúcia Luz Leiria, DJU 22/06/2005), por unanimidade, considerou legítima a

87

Saliente-se a posição do Professor Marco Aurélio Greco, para quem o caso das “incorporações às avessas” configura abuso de direito, e não de simulação. Segundo o referido autor, não é simulação, pois as partes “[...] quiseram e fizeram as incorporações exatamente como manda a lei das sociedades anônimas com todas as vírgulas e assumiram as respectivas conseqüências.”, configurando, destarte, abuso de direito, pelo fato de que as incorporações sucessivas apontam “[...] na direção da ocorrência de um excesso no seu exercício.” (GRECO, 2008, p. 221).

Page 118: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

117

desconsideração pelo fisco das operações de incorporação às avessas, ao fundamento de

que o caso “não se trata de planejamento tributário, mas sim de evidente diminuição da

base tributável, após ocorrido o fato gerador. Trata-se, portanto, de elisão ineficaz ou

evasão fiscal.”

Na linha do que expusemos até o presente momento, consideramos que o caso

REXNORD não se enquadra propriamente no conceito de evasão fiscal, o qual pressupõe a

prática de atos ilícitos tipificados na legislação penal-tributária, muito menos no conceito de

elisão ou planejamento tributário. O caso da incorporação às avessas se enquadra no

conceito de elusão fiscal , ou seja, naquelas condutas “em que o contribuinte modifica e

distorce artificiosamente as formas jurídicas de sua atuação, com o objetivo de se colocar

fora do alcance de uma norma tributária ou com o objetivo de se colocar dentro de alcance

de um regime tributário mais benéfico criado pela legislação para atingir outras situações.”

(GODOI, 2007, p. 239).

3.5.3. Contrato entre pessoas jurídicas cujo objeto se refere à atuação pessoal de um dos sócios

3.5.3.1. Apresentação do caso

A 4ª Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, no

julgamento do Recurso nº 146.398 (relator Conselheiro Nelson Mallmann, j. 24/05/2006,

Acórdão nº 104-21.583) manteve a autuação levada a efeito pela fiscalização da Secretaria

da Receita Federal do Brasil contra o contribuinte Carlos Roberto Massa, o Ratinho, famoso

apresentador de televisão, para exigir-lhe o imposto de renda devido sobre os rendimentos

recebidos da TVSBT e de outros contratos firmados pela sociedade Massa & Massa Ltda da

qual o referido apresentador era sócio majoritário.

3.5.3.2. Resumo do processo

Da análise do contrato entre a empresa Massa & Massa Ltda. (contratada) e a

emissora de televisão SBT (contratante), concluiu a fiscalização que: o objeto do contrato é

a atuação do sócio majoritário da empresa contratada em programas televisivos da

Page 119: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

118

contratante, na qualidade de apresentador/entrevistador; o contrato prevê que tais serviços

somente podem ser prestados pelo sócio majoritário da contratada, estabelecendo, ainda,

pormenorizadamente, a forma como os programas serão realizados quando o sócio estiver

no gozo de férias, bem como os deveres da contratante quanto à disponibilização de

pessoal, infra-estrutura técnica e operacional para realização daqueles; o contrato proíbe

que o sócio majoritário da empresa contratada exerça qualquer atividade, ainda que

diferente dos serviços ali contratados, em qualquer outra emissora de televisão localizada

no território nacional ou no exterior; os sócios da empresa contratada, cujo capital social é

de apenas R$ 20.000,00, assinam o contrato na qualidade de fiadores e principais

garantidores de multa compensatória no montante de R$ 136.922.969,90, em caso de

descumprimento das regras contratuais e da impossibilidade da contratante obrigar o sócio

majoritário à prestação de serviços ali estabelecida, ou, até mesmo, em caso de

transferência das cotas da sociedade contratada a terceiros.

Além disso, constatou a fiscalização que o contribuinte também atua em campanhas

publicitárias divulgadas pela mídia (rádio, televisão, imprensa), formalizando com as

empresas contratantes termo de licença de uso de imagem do artista “Ratinho”. Também

são prestados serviços publicitários sem formalização de contrato, conforme se verificou da

análise das notas fiscais emitidas pela sociedade Massa & Massa Ltda, no período

fiscalizado.

Ao final, concluiu a fiscalização que o contrato firmado entre a emissora SBT e a

sociedade Massa & Massa Ltda. era, na realidade, um contrato de trabalho, na medida em

que restou comprovada a existência, entre os contratantes, de um verdadeiro vínculo

empregatício, diante do caráter pessoal do trabalho que era prestado pelo apresentador

Carlos Roberto Massa, o “Ratinho”, pelo que os rendimentos recebidos por este deveriam

ser declarados como rendimentos decorrentes do trabalho assalariado, tributados pelas

regras previstas para a pessoa física.

Em relação aos contratos publicitários firmados com outras empresas, constatou-se

o caráter eminentemente pessoal na prestação dos serviços, o que seria suficiente para

motivar o lançamento dos rendimentos decorrentes dos aludidos serviços na declaração de

sua pessoa física.

Em sua defesa, o autuado aduziu que: o fisco se utilizou da teoria da

desconsideração da personalidade jurídica, para tributar a pessoa física do apresentador, ao

fundamento de que seria ilícita a utilização de uma empresa para enquadrar os rendimentos

recebidos por pessoa física em uma tributação menos onerosa; a relação jurídica contratual

existente entre Carlos Roberto Massa e Massa & Massa Ltda. gira em torno de uma parceria

comercial para a exploração e desenvolvimento do personagem e da marca “Ratinho”, os

Page 120: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

119

quais não são de titularidade do contribuinte autuado, mas sim da empresa Massa & Massa

Ltda; não se pode confundir a pessoa física de Carlos Roberto Massa e as marcas relativas

ao personagem “Ratinho”; não há vínculo empregatício entre o contribuinte e a emissora

TVSBT; a empresa Massa & Massa é responsável pela gestão de negócios, valorização e

proteção das marcas, cessão das marcas, consultoria nos contratos firmados, busca e

negociação de novos clientes; a sociedade Massa & Massa possui estrutura organizacional

para consecução de seus fins, tendo gastos médios de R$ 1.000.000,00 por ano para seu

funcionamento e gastos médios de R$ 500.000,00 com funcionários nos últimos anos; os

rendimentos obtidos pela Massa & Massa não decorrem da prestação de serviços por parte

do autuado, mas do desenvolvimento do contrato de parceria comercial envolvendo os mais

diversos elementos jurídicos e econômicos; não houve disponibilidade econômica ou jurídica

de renda ou proventos por parte de Carlos Roberto Massa, inexistindo, portanto, o fato

gerador do imposto de renda da pessoa física; inexiste autorização legal para a

desconsideração da personalidade jurídica no caso em comento, seja pela esfera

administrativa, seja pelo Poder Judiciário; segundo os primados da estrita legalidade e da

tipicidade cerrada, não é possível, na esfera do direito tributário, mormente em sede

administrativa, responsabilizar a pessoa física de um sócio por atos praticados pela pessoa

jurídica.

Segundo se depreende da fundamentação da decisão proferida pela 4ª Câmara do

Primeiro Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, os conselheiros entenderam

que não houve a desconstituição da personalidade jurídica da sociedade Massa & Massa

Ltda., mas sim a desconsideração dos atos jurídicos aparentes, ou seja, a transferência dos

rendimentos lançados como se fossem da pessoa jurídica para a pessoa física do

beneficiário de fato. Ainda segundo os julgadores da esfera administrativa, a autuação

levada a efeito independia desta providência, qual seja, a desconsideração da

personalidade jurídica da sociedade Massa & Massa Ltda.

De acordo com a referida decisão (p. 36), “[...] não se pode negar que os valores

percebidos relativamente à prestação pessoal de tais serviços e relativos aos contratos em

análise correspondem a rendimentos obtidos por profissional no exercício de sua função.

Restou patente, pelas próprias cláusulas contratuais, a obrigatoriedade de que os serviços

sejam executados de forma pessoal pelo profissional Carlos Roberto Massa. Não há espaço

para que a contratada Massa & Massa cumpra a obrigação firmada no instrumento sem a

presença pessoal do contribuinte. Não há como substituí-lo, pois a essência do contrato é

que a execução dos serviços seja realizada somente pelo interveniente-anuente.”

Page 121: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

120

3.5.3.3. Ementa

NULIDADE DO LANÇAMENTO POR CERCEAMENTO DO DIREITO DE DEFESA – Se o autuado revela conhecer plenamente as acusações que lhe foram imputadas, rebatendo-as, uma a uma, de forma meticulosa, mediante extensa e substanciosa impugnação, abrangendo não só questão preliminar como também razões de mérito, descabe a proposição de cerceamento do direito de defesa. RENDIMENTOS DE PRESTAÇÃO INDIVIDUAL DE SERVIÇOS – APRESENTADOR/ANIMADOR DE PROGRAMAS DE RÁDIO E TELEVISÃO – SUJEITO PASSIVO DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA – São tributáveis os rendimentos do trabalho ou de prestação individual de serviços, com ou sem vínculo empregatício, independendo a tributação da denominação dos rendimentos, da condição jurídica da fonte e da forma de percepção das rendas, bastando, para a incidência do imposto, o benefício do contribuinte por qualquer forma e a qualquer título. Salvo disposições de lei em contrário, as convenções particulares, relativas à responsabilidade pelo pagamento de tributos, não podem ser opostas à Fazenda Pública, para modificar a definição legal do sujeito passivo das obrigações tributárias correspondentes. Desta forma, os apresentadores e animadores de programas de rádio e televisão, cujos serviços são prestados de forma pessoal, terão seus rendimentos tributados na pessoa física, sendo irrelevante a existência de registro de pessoa jurídica para tratar dos seus interesses. APLICAÇÃO DE LEI SUPERVENIENTE AO FATO GERADOR – AUSÊNCIA DE CARÁTER INTERPRETATIVO – Inaplicável o art. 129 da Lei nº 11.196, de 2005, a fatos geradores pretéritos, uma vez que dito dispositivo legal não possui natureza interpretativa, mas sim instituiu um novo regime de tributação. RECLASSIFICAÇÃO DE RECEITA TRIBUTADA NA PESSOA JURÍDICA PARA RENDIMENTOS DE PESSOA FÍSICA – COMPENSAÇÃO DE TRIBUTOS PAGOS NA PESSOA JURÍDICA – Devem ser compensados na apuração de crédito tributário os valores arrecadados sob o código de tributos exigidos da pessoa jurídica, cuja receita foi desclassificada e convertida em rendimentos de pessoa física, base de cálculo do lançamento de ofício. MULTA DE LANÇAMENTO DE OFÍCIO – CARÁTER CONFISCATÓRIO – INOCORRÊNCIA – A falta de insuficiência de recolhimento do imposto dá causa a lançamento de ofício, para exigi-lo com acréscimos e penalidade legais. Desta forma, é perfeitamente válida a aplicação da penalidade prevista no art. 44, I, da Lei nº 9.430, de 1996, sendo inaplicável às penalidades pecuniárias de caráter punitivo o princípio de vedação ao confisco. Preliminar rejeitada. Recurso parcialmente provido.

3.5.3.4. Análise do julgado

Tendo em vista a complexidade do presente julgado e para facilitar sua

compreensão, resolvemos analisá-lo a partir dos principais contratos firmados pela

sociedade Massa & Massa Ltda., que são: 1) o “Contrato de Parceria Comercial,

Page 122: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

121

Licenciamento de Uso de Imagem e Outras Avenças”, firmado entre o contribuinte Carlos

Roberto Massa e a empresa da qual é sócio majoritário, Massa & Massa Ltda.; 2) o

“Instrumento Particular de Contrato de Prestação de Serviços para Realização de

Programas de Televisão e outras Avenças”, firmado entre a TVSBT e a sociedade Massa &

Massa Ltda.; 3) “Contratos de Parceria para Divulgação Publicitária e Termo de Licença

Onerosa de Uso de Imagem”, firmados entre a sociedade Massa & Massa e diversas

empresas; 4) “Contrato de Licença de Direitos Autorais e Direitos Conexos” firmado entre a

sociedade Massa & Massa Ltda. e a indústria de brinquedos Estrela S/A.

Mas, antes de analisarmos cada um desses contratos, para saber se seus

rendimentos devem ser imputados à pessoa jurídica ou à pessoa física do apresentador de

televisão, Ratinho, cumpre-nos esclarecer que a maioria dos doutrinadores, analisando

casos semelhantes ao ora examinado, considera que “[...] é perfeitamente lícita e eficaz a

opção por contratar a prestação dos serviços entre duas pessoas jurídicas e promover o

pagamento do imposto de renda segundo as regras do IRPJ. Trata-se de genuína elisão.”

(GODOI, 2007, p. 284)88.

Todavia, em que pesem os argumentos adotados por aqueles que defendem este

posicionamento, ousamos discordar de nosso mestre e orientador, bem como dos

renomados tributaristas abaixo citados. Para nós, nem toda contratação de serviços entre

pessoas jurídicas pode ser considerada genuína elisão.

Com efeito, o ordenamento jurídico garante às pessoas jurídicas a capacidade de

obterem direitos e contraírem obrigações. Todavia, esta existência autônoma submete-se a

requisitos necessários a que possam exercer direitos, dando-lhes regime compatível com a

sua natureza (GOMES, 1988, p. 191). Isso porque o ordenamento jurídico parte do

pressuposto de que a existência da pessoa jurídica se faz para a realização de fins comuns

de vários indivíduos, que unem seus esforços e talentos, para tal desiderato. Em outras

palavras: o direito tutela o agrupamento de seres humanos para a realização de um fim

comum, reunindo esforços e capitais na constituição de uma pessoa jurídica, que há, no

entanto, de representar efetivamente uma realidade, e não uma mera abstração .

Conforme ensina o já mencionado mestre Orlando Gomes, “[...] as pessoas jurídicas têm

sua base na realidade social. Mas a personalidade, isto é, a atribuição de capacidade 88

Nesse sentido, Douglas Yamashita (2007, p. 90), para quem os Acórdãos do Conselho de Contribuintes nºs 106-14244 e 104-18.641, que tratam do tema em questão, não são fundamentados o suficiente no tocante à ocorrência dos pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica. Por seu turno, João Dácio Rolim assevera que “[...] o fato do contribuinte para prestar serviços constituir uma pessoa jurídica por si só não caracteriza abuso, nem quando optando por essa forma jurídica admitida em lei obtém um tratamento fiscal menos oneroso.” (ROLIM, 2007, p. 171). Nas palavras de Misabel Derzi, “inexiste a possibilidade de se considerar válida e lícita determinada pessoa jurídica, atuante dentro dos parâmetros da lei civil ou comercial, e de, simultaneamente, desconsiderá-la no seio do Direito Tributário, com o objetivo de se aumentar a arrecadação.” (DERZI, 2007, p. 316).

Page 123: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

122

jurídica, à semelhança do que ocorre com as pessoas naturais, é uma ficção de Direito,

porque não passa de simples processo técnico.” (GOMES, 1988, p. 195 – destaque

constante do original). Vale dizer: a atribuição da personalidade jurídica (mera ficção de

Direito) às sociedades de prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza

artística, científica ou cultural, por exemplo, parte da premissa de que o agrupamento de

pessoas a que se confere a personalidade jurídica possui existência real, ou seja, configura

uma unidade orgânica. Nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira, “não basta, entretanto,

que alguns indivíduos se reúnam, para que tenha nascimento a personalidade jurídica do

grupo. É preciso que, além do fato externo da sua aglomeração, se estabeleça uma

vinculação jurídica específica, que lhe imprima unidade orgânica.” (PEREIRA, 1995, p. 186 –

destaques constantes do original). Entender de modo diverso é permitir o desvio de

finalidade deste instituto jurídico, a utilização abusiva deste direito. Pelo quê, discordamos

da Professora Misabel Derzi, quando afirma, conforme referido na nota de rodapé 87, que

não se pode ter por regular, na esfera jurídica civil, a existência e o funcionamento de uma

pessoa jurídica, tendo, ao mesmo tempo, como ineficazes determinados atos por ela

praticados com o fim de obter indevida vantagem fiscal. Na verdade, diversamente do que

sustenta a mencionada Professora, do mesmo modo que não se admite a invalidação de ato

jurídico válido com o fim de aumentar indevidamente a arrecadação, não se tolera o uso

abusivo da personalidade jurídica para a redução indevida da carga tributária. Com efeito,

não são poucos, no ordenamento jurídico, os casos de ineficácia relativa de atos jurídicos,

não havendo razão bastante para dar suporte à assertiva de que isso não seria possível em

matéria tributária.

Ainda que, em princípio, não se considere irregular a sociedade comercial formada

por cônjuges, não se pode permitir que um dos sócios possa dela se valer com a finalidade

de praticar atos fraudulentos ou cometer abusos de direito. Em outras palavras: o

ordenamento jurídico não pode proteger com o manto da personalidade jurídica

agrupamentos de pessoas que, na realidade, não constituem uma verdadeira sociedade

empresarial.

Não é por outro motivo que o próprio artigo 129 da Lei nº 11.196/05 (BRASIL, 2005)89

estabelece que continua aplicável, se for o caso, o artigo 50 do Código Civil Brasileiro

(BRASIL, 2002)90. Ou seja, a prestação de serviços artísticos, culturais ou científicos através

89

“Artigo 129. Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no artigo 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil.” 90

“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público

Page 124: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

123

de pessoas jurídicas não pode configurar abuso de personalidade jurídica, caracterizado

pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial. Neste ponto, é importante responder à

seguinte pergunta: a sociedade Massa & Massa Ltda., constituída pelo apresentador de

televisão Ratinho e sua mulher, é realmente uma sociedade empresarial?

A defesa do contribuinte sustenta que sim e, para tanto, alega que a sociedade

Massa & Massa possui gastos médios em torno de R$1.000.000,00 por ano, além de gastos

médios com pessoal e funcionários da ordem de R$500.000,00 nos últimos anos. Lado

outro, a autoridade administrativa sustenta que são “[...] irrelevantes o registro no cadastro

de pessoa jurídica, a existência de estabelecimento no qual desenvolva suas atividades e

que empregue auxiliares, sem qualificação profissional equivalente, para colaborar na

execução dos trabalhos.” (fls. 17 do Acórdão nº 104-21.583), uma vez que os rendimentos

foram obtidos pela pessoa física, e não pela pessoa jurídica, e que a tributação destes

rendimentos independe da sua denominação, da condição jurídica da fonte e da forma de

percepção das rendas.

Analisando detidamente o referido Acórdão, consideramos que a sociedade Massa &

Massa Ltda., constituída apenas por marido e mulher, não passa de uma aparência, cuja

criação teve como único objetivo eludir as normas tributárias, previdenciárias, trabalhistas e

obter a limitação da responsabilidade na exploração da atividade econômica. A despeito de

a defesa do artista ter salientado que a sociedade Massa & Massa incorreu em despesas da

ordem de R$1.000.000,00, tal fato não é suficiente para demonstrar a existência real de uma

organização de pessoas e de bens, com propósitos ou fins comuns. No caso sub examine,

sem adentrar no regime de bens dos cônjuges, o que poderia atrair a regra prevista no

artigo 977 do Código Civil (BRASIL, 2002)91, não restou demonstrado pela defesa do

autuado que a sociedade empresarial Massa & Massa Ltda. contava com a participação

efetiva da sócia minoritária na consecução dos objetivos empresariais, seja com o aporte de

capital ou de trabalho. Nesse contexto, convém ressaltar, ainda uma vez, que a sociedade

em questão pode operar regular e validamente, do ponto de vista estritamente civil, mas

isso, como dito, não constitui óbice para que se reconheça a ineficácia relativa de

determinados atos seus, conforme, na presente análise de caso, vem de ser demonstrado,

no que concerne às implicações fiscais dos contratos firmados pela sociedade que foram

aqui analisados.

E mais, não se pode olvidar que o Direito brasileiro consagra hoje em dia o princípio

da boa-fé objetiva como verdadeiro standard, “[...] o qual impõe um padrão ético de

quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica,” 91

“Artigo 977. Faculta-se aos cônjuges contratar sociedade, entre si ou com terceiros, desde que não tenham casado no regime da comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória.”

Page 125: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

124

honestidade, confiança, lealdade e fidelidade àqueles vinculados em um dado negócio

jurídico.” (CARVALHO, 2008, p. 111). Isso quer dizer que não mais se pode invocar a noção

restrita de legalidade como argumento para negar incidência à boa-fé no âmbito do Direito

Público. Nas palavras de Cláudio Ari Mello (apud CARVALHO, 2008, p. 113), “[...] o

conteúdo das relações negociais não está limitado aos estritos direitos e deveres

expressamente previstos na lei ou no instrumento contratual. Um contrato não é algo

moralmente neutro nem é indiferente em relação aos valores éticos subjacentes à espécie

negocial. Ao contrário, ele se deixa permear por exigências morais que determinam o

surgimento de deveres de conduta destinados a fazer respeitar a confiança, a transparência,

a lealdade, a fidelidade e a honestidade da parte em face da outra parte e do próprio objeto

contratual.”

Este princípio, que permeia não só as relações entre particulares, como também

entre o Poder Público e os cidadãos, cuja correção procedimental e dignidade são

essenciais ao Estado Democrático de Direito, se estende inclusive à atividade legislativa.

Nesse contexto, afirmar que a regra prevista no aludido artigo 129 da Lei nº 11.196/05 pode

ser entendida como a permissão concedida pelo legislador ao particular para que este se

associe a outra pessoa, apenas formalmente, para usufruir de uma tributação mais

favorável, não condiz, definitivamente, com a aspiração de uma atuação leal, refletida e sem

abuso.

Assim, ainda que a norma prevista no artigo 129 da Lei nº 11.196/05 (BRASIL, 1995)

seja considerada uma reação do legislador tributário à desconsideração administrativa dos

contratos celebrados entre pessoas jurídicas envolvendo serviços artísticos ou culturais,

como argumenta o Professor Marciano Seabra de Godoi (2007, p. 286), não podemos

desconsiderar o fato de que sua interpretação não pode desconsiderar a própria natureza da

pessoa jurídica92, muito menos o fato de que “[...] a boa-fé caracteriza-se como limite para o

92

Sobre este aspecto, salientou o Conselheiro Relator às fls. 35-36 do voto: “[...] o Instrumento Particular de Contrato de Prestação de Serviços para Realização de Programas de Televisão e Outras Avenças de fls. 62/71 e os Contratos de Parceria para Divulgação Publicitária e Termo de Licença Onerosa de Uso de Imagem de fls. 72/194, firmados entre o suplicante e as empresas recebem a anuência/interveniência deste. Em última análise, é este ato que dá eficácia a cada contrato, porque somente o apresentador Carlos Roberto Massa, por ato de sua vontade, que pode dispor da sua imagem ou dos seus serviços. [...] é de uma pretensão sem fronteiras querer fazer crer que retirando o apresentador Carlos Roberto Massa que o faturamento continuaria no mesmo patamar. Não tenho dúvidas que as cláusulas contratuais esclarecem sem margem de erro que os serviços a serem prestados serão prestados pessoalmente pela pessoa física do apresentador Carlos Roberto Massa, de forma que não se pode negar que os valores pagos pelas empresas envolvidas, relativos ao trabalho pessoal do apresentador Carlos Roberto Massa, são rendimentos tributáveis na pessoa física. [...] É de se reforçar que no caso em questão o próprio apresentador Carlos Roberto Massa é o responsável pelo cumprimento do contrato, pois, sem ele nada feito, não há como outro sócio substituí-lo, até porque as cláusulas contratuais são nítidas neste sentido. Assim, não se pode negar que os valores percebidos relativamente à prestação pessoal de tais serviços e relativos aos contratos em análise correspondem a rendimentos obtidos por profissional no exercício de sua

Page 126: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

125

exercício de um direito subjetivo, pois aquele que for exercido em desconformidade com a

boa-fé será caracterizado como ilícito.” (SAMPAIO, 2006, p. 171)93.

Dessa forma, inexistindo de fato razão para que os contratos aqui examinados

fossem celebrados por uma sociedade empresarial constituída por Carlos Roberto Massa e

sua Mulher, tem-se que todos os rendimentos decorrentes dos contratos firmados pela

referida sociedade com a TVSBT, Estrela S/A e demais empresas devem ser enquadrados

nas regras previstas para o imposto de renda da pessoa física, consoante a seguir será

demonstrado.

Com efeito, consideramos que o “Contrato de Parceria Comercial, Licenciamento de

Uso de Imagem e Outras Avenças”, firmado entre o contribuinte Carlos Roberto Massa e a

empresa da qual é sócio majoritário, Massa & Massa Ltda, configura simulação absoluta. Já

o “Instrumento Particular de Contrato de Prestação de Serviços para Realização de

Programas de Televisão e outras Avenças”, firmado entre a TVSBT e a sociedade Massa &

Massa Ltda., corresponde a um negócio jurídico simulado (simulação relativa) e os

“Contratos de Parceria para Divulgação Publicitária e Termo de Licença Onerosa de Uso de

Imagem”, firmados entre a sociedade Massa & Massa e diversas empresas e o “Contrato de

Licença de Direitos Autorais e Direitos Conexos”, firmado entre a sociedade Massa & Massa

Ltda. e a indústria de brinquedos Estrela S/A não passam de fraude à lei tributária.

Na simulação, segundo esclarece Itamar Gaino (2008, p. 36), é essencial a presença

do pacto simulatório, que consiste na conjugação das vontades das partes no sentido de dar

aparência a um determinado negócio, quando, na verdade, nenhum negócio elas desejam

praticar (simulação absoluta), ou no sentido de dar aparência a um determinado negócio,

quando, na realidade, elas desejam praticar outro, de natureza diversa (simulação relativa).

Em relação ao “Contrato de Parceria Comercial, Licenciamento de Uso de Imagem e

Outras Avenças”, demonstrou a fiscalização que contratante e contratado são, em última

análise, a mesma pessoa , o que não pode ser aceito, uma vez que nenhum sentido faz

uma pessoa ceder a si mesma os direitos decorrentes da própria imagem. Além disso,

demonstrou a fiscalização que foram estabelecidos, no referido contrato, percentuais

irrisórios pelo licenciamento e utilização dos direitos de imagem do mencionado artista.

Trata-se, portanto, de simulação absoluta, na medida em que inexiste negócio jurídico real

entre as partes, subjacente ao contrato simulado.

função. Restou patente, pelas próprias cláusulas contratuais, a obrigatoriedade de que os serviços sejam executados de forma pessoal pelo profissional Carlos Roberto Massa. Não há espaço para que a contratada Massa & Massa cumpra a obrigação firmada no instrumento sem a presença pessoal do contribuinte. Não há como substituí-lo, pois a essência do contrato é que a execução dos serviços seja realizada somente pelo interveniente-anuente.” 93

Nas palavras de Menezes Cordeiro (apud SAMPAIO, 2006, p. 171): “A boa fé não contemporiza, pois, com cumprimentos formais; exige, numa atitude metodológica particular perante a realidade jurídica, a concretização dos escopos visados”.

Page 127: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

126

Inexistindo, portanto, a dita “cessão de imagens”, não há como considerar válido o

negócio firmado entre a sociedade Massa & Massa Ltda. e a indústria de brinquedos Estrela

S/A, cujo objeto era justamente a utilização da imagem do artista “Ratinho” pela referida

indústria na confecção de brinquedos e jogos, na medida em que o esquema formal adotado

carece de fundamento razoável e denuncia o objetivo de eludir a aplicação da norma

imperativa, de modo a afastar os rendimentos decorrentes das licenças de uso de imagem

da tributação na pessoa física. Nesse caso, resta evidente a caracterização de fraude à lei

tributária, uma vez que o contribuinte distorceu artificiosamente as formas jurídicas de sua

atuação “com o objetivo de se colocar fora do alcance de uma norma tributária ou com o

objetivo de se colocar dentro de alcance de um regime tributário mais benéfico criado pela

legislação para atingir outras situações.” (GODOI, 2007, p. 239).

No tocante aos “Contratos de Parceria para Divulgação Publicitária e Termo de

Licença Onerosa de Uso de Imagem”, firmados pela sociedade Massa & Massa Ltda. com

outras empresas, cujos objetos são a realização de campanhas publicitárias em rádio,

televisão e imprensa escrita pelo contribuinte, pelos mesmos fundamentos, chega-se à

conclusão de que também foram praticados em fraude à lei tributária.

No que tange ao negócio firmado entre a empresa Massa & Massa Ltda. e TVSBT,

verifica-se a presença do acordo simulatório entre o autuado Carlos Roberto Massa e a

referida emissora, na medida em que ambas as partes assentiram na formalização de um

negócio jurídico com aparência de mero contrato civil de prestação de serviços, quando, na

realidade, o contrato firmado entre as partes enquadrava-se perfeitamente na categoria

socioeconômica e jurídica de uma relação empregatícia.

De fato, presentes estavam no caso todos os pressupostos para a caracterização do

vínculo empregatício, como a subordinação, a onerosidade, a não-eventualidade e a

pessoalidade94.

O requisito da pessoalidade se revela no fato de que o contrato firmado com a

TVSBT é “intuitu personae” em relação à pessoa do autuado, mormente porque se trata de

avença cujo objetivo primacial é a cessão da imagem da pessoa física.

O requisito da subordinação jurídica se faz presente no fato de que cabe à TVSBT,

na condução de seu empreendimento econômico, a reunião e a disposição dos diversos

fatores de produção, entre eles a força de trabalho, que se encontra indissoluvelmente

ligada à pessoa do trabalhador. Não é por outra razão que o contrato firmado entre a

sociedade Massa & Massa Ltda. e a TVSBT prevê que a direção e o comando do programa

94

De acordo com Délio Maranhão, “contrato de trabalho ‘stricto sensu’ é o negócio jurídico pelo qual uma pessoa física (empregado) se obriga, mediante o pagamento de uma contraprestação (salário), a prestar trabalho não eventual em proveito de outra pessoa, física ou jurídica (empregador), a quem fica juridicamente subordinada.” (MARANHÃO, 1993, p. 231).

Page 128: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

127

cabem à referida emissora de televisão, bem como a aplicação de penalidades pecuniárias,

em caso de inadimplemento de obrigação contratual. De fato, há previsão contratual que

proíbe o exercício de qualquer atividade pelo autuado, ainda que diversa daquela contratada

com a TVSBT, com quaisquer outras emissoras de televisão localizadas no território

nacional ou no exterior, bem como a imposição de multa compensatória (R$136.922.969,90)

pelo inadimplemento das obrigações assumidas pela sociedade contratada, intervindo o

autuado como principal garantidor do cumprimento desta obrigação.

Os demais requisitos, onerosidade e habitualidade, são extraídos das cláusulas que

prevêem a forma de remuneração do apresentador pelos serviços prestados à TVSBT, bem

como da cláusula que prevê a prestação dos serviços 6 (seis) dias na semana.

Desse modo, discordamos do Professor Marciano Seabra de Godoi quando afirma

que “nada há no direito privado brasileiro que determine ou pressuponha que a prestação de

serviços de artistas e desportistas profissionais não possa ser contratada entre duas

pessoas jurídicas.” (GODOI, 2007, p. 284-285). Há, sim, no direito brasileiro, normas

imperativas, de ordem pública, que, opondo obstáculos à autonomia da vontade, são tidas

como inderrogáveis e irrenunciáveis pela vontade das partes, uma vez evidenciada

objetivamente a relação juslaboral, ou seja, uma vez definida, pela análise dos fatos e

circunstâncias, a verdadeira relação jurídica estipulada entre os contratantes, ainda que de

forma simulada, não correspondente à realidade. Com efeito, é princípio assente que “as

regras justrabalhistas são, desse modo, essencialmente imperativas, não podendo, de

maneira geral, ter sua regência contratual afastada pela simples manifestação de vontade

das partes. [...] Para este princípio prevalece a restrição à autonomia da vontade no contrato

trabalhista, em contraponto à diretriz civil de soberania das partes no ajuste das condições

contratuais.” (DELGADO, 2002, p. 196 – destaque consta do original).

Sobre a tutela das relações jurídicas pelo Estado e sua regulação cada vez maior por

normas de direito público, Arnaldo Süssekind ensina que:

As restrições, cada vez maiores, à autonomia da vontade; o interesse do Estado e a sua presença em inúmeras relações jurídicas de índole social ou de caráter interindividual, acarretando a publicização de grande parte das regras jurídicas; e, finalmente, a conseqüente socialização de todo o Direito – a par das dificuldades sempre crescentes de serem estabelecidos critérios distintos para a classificação dos diversos ramos autônomos da ciência jurídica como integrantes do direito público ou do direito privado – levaram vários autores a refutar a tradicional divisão do Direito a fim de afirmar sua unidade conceitual. Daí proclamar Kelsen que o Direito é um só, constituído, em camadas hierarquizadas, desde a norma constitucional até o contrato interindividual.[...] Por isto mesmo, determinada relação jurídica, que era, outrora, apenas regulada por normas de direito privado – a relação de emprego, por exemplo – é hoje tutelada, em muitos dos seus aspectos, por disposições de direito público, com as quais o Estado impõe a sua vontade, em nome do

Page 129: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

128

interesse coletivo, tornando-se presente para fiscalizar sua fiel aplicação [...]. (SÜSSEKIND, 1993, p. 117-118).

Consideramos, portanto, que, no caso em comento, a fundamentação para a

desconsideração do negócio jurídico praticado entre a sociedade Massa & Massa Ltda. e a

TVSBT é a existência de simulação relativa, atraindo a aplicação da regra prevista no artigo

149, VII, do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966), não sendo caso de

responsabilização da pessoa física do sócio por dívidas decorrentes da pessoa jurídica,

como ocorre nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, nem mesmo de

imputação de responsabilidade por atos ilícitos, consoante prescreve o artigo 135 do Código

Tributário Nacional (BRASIL, 1966). Não se pode desprezar a primazia dos preceitos de

ordem pública na formação do contrato de trabalho que se encontra, aliás, expressamente

enunciada pela legislação brasileira, consoante se depreende do artigo 444 da

Consolidação das Leis do Trabalho (BRASIL, 1943)95.

Saliente-se, por oportuno, que do ponto de vista formal e metodológico, o voto do

relator, Conselheiro Nelson Mallmann, não expõe com clareza nem o método nem a base

legal que fundamentaram sua decisão de submeter os rendimentos ao IRPF e não ao IRPJ,

como bem salientou o Professor Marciano Seabra de Godoi (2007, p. 287). Com efeito, o

relator considerou que não restou caracterizada a simulação e também se posicionou no

sentido de que não se tratava de desconsideração de personalidade jurídica, muito menos

de aplicação do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (BRASIL,

1966)96. Vale dizer: o relator não indicou o dispositivo legal com base no qual considerou

legítima a desconsideração pelo fisco dos atos e negócios jurídicos praticados pelo

contribuinte. Sem embargo disso, embora, no que concerne à sua fundamentação, o

Acórdão seja formalmente criticável, ele contém elementos de convicção que revelam a sua

acuidade na percepção da realidade para além das meras aparências jurídicas, fazendo

valer, assim, os princípios da igualdade, da capacidade contributiva e da boa-fé objetiva, em

suma, foi de uma feliz e profunda juridicidade.

Assim é que consideramos, a par do quanto vem de ser dito, que decidiu

corretamente o Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda ao reduzir a multa de

95

“Art. 444. As relações de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes.” 96

Depreende-se da fundamentação do Acórdão nº 104-21.583: “Com relação às alegações da existência formal da pessoa jurídica, cabe reforçar que a fiscalização não negou tal existência, bem como não houve a sua desconstituição, o que houve foi desconsideração dos atos jurídicos aparentes, ou seja, transferência dos rendimentos/receitas lançadas como que fossem da pessoa jurídica para a pessoa física envolvida, que é o beneficiário de fato.” (p. 35 – grifo nosso). Vê-se que o relator, ainda que não tenha exposto claramente, parece ter adotado a cláusula geral do artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966), para desconsiderar os negócios praticados pelo autuado.

Page 130: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

129

ofício de 150% para 75%, uma vez que o caso objeto de análise não trata de evasão, mas,

sim, de elusão fiscal . Na espécie, a desconsideração deveria ter sido, na nossa opinião,

fundamentada no artigo 149, VII, do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966), pela

configuração de simulação relativa e de fraude à lei tributária. Este também é o dispositivo

que embasaria a desconsideração pelo fisco, caso este tivesse incluído na autuação os

rendimentos decorrentes dos contratos de licenciamento de uso de imagens do “Ratinho”

pela indústria de brinquedos Estrela S/A, ante a ocorrência de fraude à lei tributária.

3.5.4. As controvérsias doutrinárias quanto ao enqu adramento de situações concretas no conceito de simulação

Vimos que Misabel Derzi e Sacha Calmon rechaçam a possibilidade de adoção de

uma norma geral antielusiva pelo ordenamento jurídico brasileiro. Assim também Ives

Gandra da Silva Martins, para quem “[...] a Lei Complementar nº 104, a respeito da inserção

do parágrafo único do artigo 116 no CTN, é de manifesta inconstitucionalidade ao pretender,

teleologicamente, introduzir norma antielisiva [...].” (MARTINS; MARONE, 2007, p. 158-159).

Como bem esclarece o Professor Marciano Seabra de Godoi, “os três autores sustentam

portanto a mesma teoria geral sobre a elisão tributária (tipicidade cerrada, segurança

jurídica, impossibilidade de interpretação econômica ou analogia, inconstitucionaldiade de

normas gerais antiabuso).” (GODOI, 2007, p. 294).

Todavia, confrontados com casos concretos de planejamento tributário julgados pelo

Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda (caso da incorporação às avessas) e

pelo Supremo Tribunal Federal (caso do seguro dotal), os três autores chegaram a

conclusões opostas.

No caso do seguro de vida cancelado pelas partes depois de poucos dias de

contratação, a Professora Misabel Derzi considerou-o como simulação que tinha como

objetivo lesar o Fisco (DERZI, 2007, p. 314-315), e o Professor Sacha Calmon disse tratar-

se de verdadeira evasão fiscal. “Afinal, – ressalta o mencionado Professor – o contribuinte

do IRPF – visando a reduzir a base tributável do imposto – adquiriu um seguro de vida (cujo

prêmio era dedutível do IR) e desfez o contrato poucos dias depois. Neste caso, há clara

divergência entre a intentio juris – juridicamente manifestada pela contratação de um seguro

– e a intentio facti – consistindo esta na redução do IR devido, mediante a utilização de

expediente inicialmente lícito (posto que previsto em lei), porém mediante ato fraudulento

(celebração de contrato e seu desfazimento poucos dias após a apuração do imposto a

pagar).” (COÊLHO, 2007, p. 355).

Page 131: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

130

Entretanto, Ives Gandra da Silva Martins chegou à conclusão de que no caso do

seguro dotal inocorreu simulação e que a desconsideração deste negócio afronta à

legalidade e todos os princípios constitucionais correlatos (MARTINS; MARONE, 2007, p.

160-161).

No caso da incorporação às avessas, analisando o Acórdão nº CSRF/01-01.85797

(idêntico ao caso decidido no já citado Acórdão nº CSRF/01-01.874), a Professora Misabel

Derzi, assim como Ives Grandra da Silva Martins e Sacha Calmon, considerou correto o

entendimento do Conselho de Contribuintes de que não restou comprovada a simulação.

Segundo a Professora, nessa decisão, “[...] procurou o Conselho de Contribuintes buscar a

melhor doutrina e direito, observando a coincidência entre o fato jurídico, a intenção do

contribuinte e a realidade dos fatos (verdadeira e própria incorporação). Irrelevante será a

idéia de que, com isso, o contribuinte obterá vantagens tributárias.” (DERZI, 2007, p. 317).

Ives Gandra ressalta sua posição, no sentido de que “[...] é legítimo o uso das estruturas

jurídicas disponíveis para se evitar fato gerador de imposto, sendo a simulação, ato que

esconde fato gerador, no caso, inexistente pelo uso de incorporações.” (MARTINS;

MARONE, 2007, p. 166), enquanto Sacha Calmon corrobora o entendimento de que é

possível a incorporação às avessas, uma vez que se está “[...] diante de lapidar caso de

elisão decorrente de lacuna na lei [...].” (COÊLHO, 2007, p. 377-378).

Todavia, o Professor Sacha Calmon salienta que, na hipótese de incorporação às

avessas em que não se constata a incorporação pura e simples, mas sim criação artificial de

empresas decorrente de diversas cisões para que, posteriormente, incorporassem ou

fossem incorporadas, “[...] está-se diante de simulação, é dizer, consecução de um negócio

jurídico não desejado (cisão, com criação de novas empresas que nunca existiram na

regular prática empresarial) para praticar-se outro (incorporação às avessas) que

possibilitasse a obtenção de economia fiscal.” (COÊLHO, 2007, p. 376).

O que acabamos de ver demonstra que, mesmo aqueles que sustentam a mesma

teoria a respeito da elisão tributária, não adotam uma posição apriorística a respeito da

simulação no âmbito do direito tributário. É de se ver que Misabel Derzi e Sacha Calmon

adotam, em determinados casos, tudo a depender da matéria de prova, um conceito de

simulação mais aberto a considerações causalistas, ao passo que Ives Gandra se aferra ao

conceito restritivo de simulação (GODOI, 2007, p. 295).

97

Ementa: “IRPJ. SIMULAÇÃO NA INCORPORAÇÃO. Para que se possa materializar é indispensável que o ato praticado não pudesse ser realizado, fosse por vedação legal ou por qualquer razão. Se não existia impedimento para a realização da incorporação tal como realizada e o ato praticado não é de natureza diversa daquele que de fato aparenta, isto é, se do fato e de direito não ocorreu ato diverso da incorporação: não há como qualificar-se a operação de simulação. Os objetivos visados com a prática do ato não interferem na qualificação do ato praticado, portanto, se o ato praticado era lícito, as eventuais conseqüências contrárias ao fisco devem ser qualificadas como casos de elisão fiscais e não de evasão ilícita.” (Relatora Conselheira Mariam Seif, j. 15/05/1995).

Page 132: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

131

4. O ARTIGO 116, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO TRIBUTÁ RIO NACIONAL E O QUADRO LEGAL EM VIGOR PARA O CONTROLE DOS PLANEJAMENTOS TRIBUTÁRIOS

4.1. Introdução

Na fixação da competência tributária dos entes tributantes, o legislador constituinte,

na determinação dos fatos geradores dos impostos, levou em consideração fatos

especificamente econômicos, tais como a aquisição de renda, por exemplo, para fins de

instituição do imposto sobre a renda, de competência da União (art. 153, II, C.F.), e fatos

jurídicos, como, por exemplo, a transmissão causa mortis e a doação, de quaisquer bens ou

direitos, para fins de instituição do ITCD, de competência dos Estados (art. 155, I, C.F.).

Quando o legislador escolhe estas realidades econômicas ou jurídicas como fatos

geradores dos impostos e como elementos reveladores da capacidade contributiva, o

ordenamento jurídico passa a pressupor que tais fatos serão desencadeados e moldados

em sua configuração concreta através de negócios jurídicos privados que correspondam ao

negócio jurídico tipificado pela lei tributária. Ocorre que, nos dias atuais, em decorrência do

progresso econômico e da complexidade das relações econômicas, negócios jurídicos vêm

sendo criados pelos agentes econômicos, através de meios artificiosos ou fraudulentos

(simulação, fraude à lei, abuso de forma e abuso de direito), para que suas estruturas

formais não se enquadrem nas dos tipos tributários, mas que, após apurado exame, revelam

não só fins econômicos idênticos àqueles que se encontram tipificados na lei tributária,

como também elementos determinativos de capacidade contributiva que serviram como

base para a criação da norma instituidora do imposto que se pretende eludir.

Nesse ponto em que direito privado e direito tributário se entrecruzam, surge uma

questão de indiscutível importância prática e dogmática, que é a de saber qual será a

solução consagrada pelo ordenamento jurídico-tributário no âmbito de uma ação política de

combate à elusão fiscal. Em outras palavras: qual será a solução legislativa mais apropriada

às perspectivas e objetivos específicos da ordem jurídico-tributária, para o combate à elusão

fiscal? Cada ordenamento jurídico adota uma solução segundo sua tradição jurídica. Assim,

na Espanha, adota-se a figura da fraude à lei. Na Alemanha, o abuso de formas. Nos países

anglo-saxônicos o primado da substância sobre a forma. Na França, o abuso de direito.

E no Brasil? Qual é o quadro legal em vigor para o controle dos planejamentos

tributários? Qual foi a solução adotada pelo legislador tributário no combate à elusão?

Page 133: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

132

Saliente-se que apesar de a pergunta pressupor que o legislador tributário não pode deixar

de adotar alguma solução para os casos de elusão fiscal, tendo em vista os princípios

constitucionais, implícitos ou explícitos, que norteiam o sistema tributário nacional e a ordem

econômica e financeira, o fato é que o legislador tributário brasileiro costuma adotar, como

de fato vem adotando, uma posição ambígua no tocante ao combate aos planejamentos

tributários abusivos, como se fez notar, por exemplo, na rejeição pelo Congresso da MP 66

na parte em que regulamentava o parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário

Nacional (BRASIL, 1966), introduzido pela Lei Complementar nº 104/01 (BRASIL, 2001). Ou,

ainda, quando reage ao combate efetuado pelo Conselho Administrativo de Recursos

Fiscais do Ministério da Fazenda, nos casos de contratos firmados entre pessoas jurídicas

cujo objeto se refira à atuação pessoal de um dos sócios, para permitir que a prestação de

serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica artística ou cultural, em caráter

personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou

empregados da sociedade prestadora de serviços, se submeta apenas à legislação aplicável

às pessoas jurídicas, nos termos do artigo 129 da Lei nº 11.196/05 (BRASIL, 2005).

Assim, ao mesmo tempo em que introduz uma norma geral antielisiva no

ordenamento jurídico pátrio, que autoriza o fisco a desconsiderar atos ou negócios jurídicos

praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a

natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, o legislador complementar,

incoerentemente a nosso ver, dispõe na parte final do dispositivo que tal desconsideração

deverá observar os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária, adiando

indefinidamente a regulamentação dos procedimentos a serem adotados para tal fim, na

medida em que deixa ao legislador ordinário a escolha do momento adequado para tal

providência e, ante a tentativa de regulamentação da matéria na esfera federal, via medida

provisória, o Congresso só fez demonstrar o (des)interesse político relativamente à questão,

deixando, mais uma vez, a questão do combate ao planejamento tributário abusivo em

aberto, sem uma definição clara.

Mas será mesmo que o controle dos planejamentos tributários abusivos só pode ser

efetivado, na esfera federal, após a regulamentação do procedimento previsto na parte final

do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966) ou o

ordenamento jurídico pátrio, em atenção às novas bases e aos novos princípios

constitucionais em que se assenta a ordem jurídica tributária e econômica, já possui

mecanismos de combate aos chamados atos elusivos?

Podemos afirmar que a legislação tributária já prevê normas de combate a este tipo

de condutas, mesmo sem a regulamentação do parágrafo único do artigo 116 do Código

Tributário Nacional (BRASIL, 1966) e independentemente desta? Se a resposta for

Page 134: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

133

afirmativa, em que casos seria aplicável o artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário

Nacional (BRASIL, 1966)? Em que consistiria esta norma? Qual seria seu conteúdo e

alcance? Qual a sua utilidade?

Estas são algumas perguntas que serão objeto de reflexão neste capítulo terceiro,

cujo objetivo correspondente é delinear o quadro legal em vigor para o combate aos

planejamentos tributários e expor os princípios estruturantes ou diretores da Constituição

brasileira que denotam o fundamento para o exercício deste controle.

4.2. Os princípios constitucionais da nova fiscalid ade

Vimos que tanto os formalistas, quanto os autores que defendem o controle dos

planejamentos tributários, são unânimes na defesa do combate à sonegação fiscal. Em

relação a este ponto não há discordância. A divergência encontra-se justamente na questão

atinente ao combate à elusão fiscal, ou aos planejamentos tributários abusivos. Alberto

Xavier, por exemplo, proclama que nem mesmo por emenda constitucional pode ser

adotada uma norma geral antielisiva pelo ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que a

Constituição protege os direitos do homem consistentes no direito de propriedade e no

direito de liberdade econômica e não impõe nenhum limite ou restrição às garantias e

liberdades individuais (XAVIER, 2002, p. 111).

Este modo de pensar encontra-se umbilicalmente ligado ao conceito liberal do

Estado de Direito que, tendo como referência o indivíduo autodeterminado, igual, livre e

isolado, caracterizava-se, basicamente, pela existência de uma res publica no interesse dos

indivíduos; pela limitação dos fins do Estado à garantia da liberdade, da segurança e da

propriedade individual; pelo reconhecimento dos direitos individuais, da garantia dos direitos

adquiridos, da independência do Poder Judiciário, da responsabilidade do governo, da

prevalência da representação política e participação desta no Poder Legislativo; pela

garantia da liberdade civil burguesa através da adoção de um conceito de lei como norma

jurídica geral e abstrata e pelo princípio da legalidade da administração, segundo o qual a

administração necessariamente encontra-se vinculada à lei (CANOTILHO, 1995, p. 353).

A teoria de Alberto Xavier, ao defender uma compreensão estritamente liberal do

Estado de Direito como um sistema fechado e com valor próprio, influenciada, por certo,

pelas concepções do positivismo jurídico, alinha-se a uma idéia de Estado de Direito

puramente formal, ou seja, como um mero conjunto de artifícios técnico-jurídicos - utilizando

a expressão de Forsthoff (apud Canotilho, 1995, p. 349) -, eliminando do discurso qualquer

pensamento democrático e reforçando, segundo o já mencionado Professor Gomes

Page 135: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

134

Canotilho (1995, p. 354), tão-somente os aspectos formais deste conceito jurídico de

Estado, quais sejam, a desvinculação do Estado da idéia de realização de quaisquer fins

materiais; a demarcação da esfera livre dos cidadãos, na qual só a lei podia intervir ou

autorizar a intervenção (princípio da reserva de lei) e a vinculação da administração à lei

(princípio da legalidade da administração).

Além destes aspectos jurídico-formais do Estado de Direito, J. J. Gomes Canotilho

salienta as funções políticas e sociais desta concepção de Estado:

As funções políticas e sociais deste Estado de Direito formal têm sido salientadas: a) afirmação da burguesia, não como um conglomerado de indivíduos, mas como corpo político que, através do Estado de direito, visa não propriamente a emancipação burguesa perante o Estado mas o próprio fundamento burguês do Estado; b) através do Estado de direito formal, a burguesia assegura a distribuição conservadora dos bens existentes (institutos jurídicos dessa distribuição: propriedade privada, contrato, liberdade de profissão e de empresa), não permitindo a sua inversão no sentido de fins sociais; c) através do método jurídico exclui-se qualquer crítica intrínseca à ordem social e política existente; d) através da garantia de distanciação perante o Estado ocultava-se, conscientemente, a possibilidade de concentração de poderes não estaduais (monopólios) e a desproteção de camadas cada vez mais numerosas da população. (CANOTILHO, 1995, p. 354-355).

Esta dimensão unicamente liberal do Estado de Direito, que nos parece ser a

defendida abertamente por Alberto Xavier, se revela como uma “capa protetora” de um

modo de pensar conservador e vai de encontro ao princípio democrático consagrado pela

Constituição brasileira logo no art. 1º, caput (BRASIL, 1988), na medida em que não admite

uma articulação entre estes dois princípios em termos de complementaridade98.

Alberto Xavier desconsidera que o Estado Democrático não renuncia ao primado do

Direito, permanecendo, portanto, válidos os princípios da supremacia e da reserva de lei,

como instrumento mais apropriado na definição de determinadas matérias (principalmente

as que se referem aos direitos e garantias fundamentais) e como expressão privilegiada do

princípio democrático (CANOTILHO, 1995, p. 371); da segurança jurídica e da proteção da

confiança; da proibição do excesso (princípio da proporcionalidade em sentido amplo); da

divisão dos poderes; da vinculação da administração à lei; da independência dos Poderes e

da garantia da proteção jurídica. Há muito se encontra ultrapassada a idéia de que uma

reestruturação democrático-social não pode ser feita através do Estado de Direito.

98 Sobre as relações de complementaridade, de condicionamento e de imbricação entre os princípios estruturantes do Estado de direito e democrático, esclarece José Joaquim Gomes Canotilho, que “[...] a especificidade (conteúdo, extensão e alcance) própria de cada princípio não exige o sacrifício unilateral de um princípio em relação aos outros, antes aponta para uma tarefa de harmonização, de forma a obter-se a máxima efetividade de todos eles.” (CANOTILHO, 1995, p. 348).

Page 136: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

135

Nesta ordem de idéias e segundo os ensinamentos de José Afonso da Silva (1999,

p. 123), a união dos conceitos de Estado Democrático e de Estado de Direito incorpora um

componente revolucionário de transformação do status quo, donde se conclui que a

configuração do Estado Democrático de Direito a que faz referência o art. 1º da Constituição

(BRASIL, 1988) não significa apenas unir formalmente os referidos conceitos. Entretanto,

disso não resulta em promessa de transição para o socialismo, porquanto a Constituição

brasileira “apenas abre as perspectivas de realização social profunda pela prática dos

direitos sociais que ela inscreve e pelo exercício dos instrumentos que oferece à cidadania e

que possibilita concretizar as exigências de um Estado de justiça social, fundado na

dignidade da pessoa humana.” (SILVA, 1999, p. 124).

A par das importantes transformações advindas da adoção do princípio do Estado

Democrático de Direito, não se pode olvidar que as grandes corporações econômicas

também encontraram nesta configuração estatal uma estrutura adequada aos seus

interesses, na medida em que o Estado Democrático de Direito não exclui regimes políticos

ou econômicos neoliberais, antes, ao contrário, garante-lhes a segurança necessária ao

desenvolvimento de suas atividades. Neste ponto, consideramos que a legislação tributária

brasileira reforça este domínio político e econômico e muito pouco fornece em termos de

realização de uma democracia econômica e social.

A respeito do tema, o Professor Marciano Seabra de Godoi (2005, p. 159-165)

ressalta o descaso do legislador ordinário brasileiro em relação ao tema da capacidade

econômica considerada em seu caráter informador do conjunto do sistema tributário.

Assevera o mencionado Professor que a legislação do imposto de renda da pessoa física no

Brasil, que deveria ser informada pelos princípios da generalidade, universalidade e

progressividade (art. 153, § 3º, CF), na realidade, beneficia com isenção os lucros e

dividendos distribuídos pelas pessoas jurídicas a seus sócios e acionistas; fixa limites de

dedução com despesas familiares “totalmente irreais e aquém dos valores gastos pelas

famílias e a cada ano aumenta o valor arrecadado por força dos efeitos inflacionários que

paulatinamente vão diminuindo em termos reais o mínimo vital preservado pelo imposto

(faixa de isenção)”, além do que viola o princípio da progressividade quando prevê apenas

duas ou três alíquotas para o referido imposto.

Alerta o Professor que no sistema tributário brasileiro prevalece de forma clara a

tributação por meio de impostos e contribuições incidentes sobre o consumo de bens e

serviços, o que provoca a regressividade do sistema fiscal. Assim conclui que “[...] se no

âmbito do IRPF o ônus mais pesado recai sobre os altos assalariados que têm reduzidas

possibilidades de deduções familiares, no âmbito da majoritária tributação indireta (impostos

e contribuições sobre o consumo), o ônus mais pesado recai sobre os contribuintes menos

Page 137: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

136

favorecidos que consomem toda sua renda. Esses efeitos poderiam sem minorados pela

seletividade que a Constituição de 1988 predica dos mais importantes impostos sobre o

consumo (ICMS e IPI), mas a redução das alíquotas em função da essencialidade dos

produtos nunca foi efetivamente implantada pelo legislador ordinário (que em verdade

somente homologa as regras definidas pela Administração Tributária).” (GODOI, 2005, p.

162).

Salienta o mencionado Professor (2005, p. 162) que no âmbito da tributação sobre o

patrimônio, a realidade não é muito diferente e que o Supremo Tribunal Federal, ao

fundamento de que os impostos que têm natureza real não se deixam informar pelo princípio

da capacidade econômica do contribuinte, julgou inconstitucionais as leis estaduais e

municipais que instituíam alíquotas progressivas para o IPTU (imposto sobre a propriedade

de imóveis e prédios urbanos)99, IPVA (imposto sobre a propriedade de veículos

automotores) e ITBI (imposto sobre a transmissão de propriedade por ato oneroso inter

vivos.

Com relação ao ITR (imposto sobre a propriedade territorial rural), argumenta o

Professor que se trata de um imposto extrafiscal por excelência, que deveria servir de

instrumento efetivo de uma política de reforma agrária, mas é tão desprestigiado pelo

legislador e pelo governo federal que, através da Emenda Constitucional nº 42, de 2003, foi

autorizada a transferência aos municípios das funções de fiscalização e arrecadação do

mencionado imposto.

Há ainda outros exemplos que poderiam ser citados, para demonstração da

sobrecarga tributária que recai sobre os assalariados e os consumidores de baixa renda.

Também podem ser citadas inúmeras alterações na legislação tributária que beneficiam

apenas determinados setores da economia. Mas este não é objetivo do presente trabalho.

Esta breve exposição só teve o escopo de trazer à baila algumas das inúmeras

ambigüidades e injustiças da legislação tributária e de realçar que a insistência de grande

parte da doutrina tributária brasileira pela dita neutralidade e formalismo do Estado visa à

estabilização destas relações de domínio existentes. Além disso, esta breve exposição

ajuda-nos a compreender melhor as ambigüidades que se revelam nas soluções adotadas

pela legislação tributária no tocante ao controle dos planejamentos tributários.

Conquanto este quadro legislativo demonstre que muito ainda é preciso para a

consecução do princípio da democracia econômica e social e que a sociedade brasileira

precisa evoluir para exigir dos órgãos de direção política (Legislativo e Executivo) uma

atuação que cumpra efetivamente seu mandato constitucional juridicamente vinculativo no

99

A progressividade de alíquotas do IPTU em função do valor do imóvel foi posteriormente permitida de forma expressa na Constituição por meio da Emenda Constitucional nº 29, de 2000.

Page 138: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

137

sentido de desenvolverem “[...] uma atividade econômica e social conformadora,

transformadora e planificadora das estruturas sócio-econômicas, de forma a evoluir-se para

uma sociedade democrática [...].” (CANOTILHO, 1995, p. 468), não podemos olvidar que “a

CF/88, ao instituir um efetivo Estado Democrático de Direito – vale dizer, ao consagrar

concomitantemente valores protetivos e modificadores do perfil da sociedade e prestigiar

valores e finalidades sociais a alcançar -, faz com que a tributação passe a ser um poder

juridicizado pela Constituição, que deve ser exercido em função e sintonia com os objetivos

que a própria sociedade elevou à dignidade constitucional.” (GRECO, 2005, p. 177). Em

outras palavras: mesmo sem prometer a transição para o socialismo e sem renunciar ao

primado do Estado de Direito, o Estado Democrático de Direito abandona a neutralidade, o

absenteísmo e o individualismo típicos do Estado liberal, para afirmar os direitos sociais,

superar as desigualdades sociais e regionais e buscar a realização da justiça social. Nesse

contexto, procura compatibilizar a forma de produção capitalista e a consecução do bem-

estar social geral, assumindo o dever de garantir a cada um dos membros de sua

comunidade um adequado nível de realização dos direitos sociais básicos, como a saúde, a

educação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à

maternidade e à infância, a assistência aos desamparados (artigo 6º, CF) e de promover a

justiça social (artigo 170, caput, e art. 193, CF) e a igualdade, entendida esta em seu sentido

formal e material (art. 5º, caput, e I).

Diante disso, concordamos inteiramente com o Professor Marco Aurélio Greco, ao

proclamar que “[...] a tributação deixa de ser mero instrumento de geração de recursos para

o Estado, para se transformar em instrumento que – embora tenha este objetivo mediato –

deve estar em sintonia com os demais objetivos constitucionais que, por serem

fundamentais, definem o padrão a ser atendido.” (GRECO, 2005, p. 177).

A respeito das bases constitucionais da nova fiscalidade, na perspectiva do Estado

Democrático de Direito, a doutrina portuguesa ressalta que o dever de contribuir é

pressuposto da ordem constitucional subjacente à constituição formal e decorre “[...] da

natureza social das pessoas humanas que se constituem em sociedade política para a

realização integral da coletividade e das pessoas por que ela se forma.” (MARTINS, 2006, p.

47) e que é dispensável sua previsão expressa pelo legislador constitucional, “[...] por ser

um elemento inato da própria qualidade das pessoas como seres sociais que como tais e

para a sua realização, se constituem em Estado.” (FAVEIRO, 2002, p. 87). Todavia,

consoante ressalva, J. J. Gomes Canotilho, as normas da Constituição que consagram o

dever fundamental de pagar tributos não podem ser entendidas como restrição legal de

direitos ou “limites imanentes” dos mesmos direitos, porquanto as mesmas são desprovidas

de “determinabilidade jurídico-constitucional, e, por isso, carecem de mediação legislativa.”

Page 139: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

138

(CANOTILHO, 1995, p. 549-550). Vale dizer: mesmo sendo um pressuposto da

Constituição, falta a este dever de contribuir a definição de sua medida.

Sobre esta questão, Vítor Faveiro (2002, p. 88) ensina que a ordem jurídico-

constitucional tributária do Estado Democrático de Direito se evidencia ser na pessoa

humana, na sua dignidade, na sua formação e realização, a base desta nova fiscalidade, e,

na capacidade contributiva, a legitimação da repartição do dever de contribuir e a

delimitação do poder de tributar. Nas palavras do referido autor, “[...] assim, nessa base, e

não na mera perspectiva tradicional da consideração da relação jurídica tributária decorrente

do poder soberano de ordem financeira, que tem de se estabelecer uma nova e adequada

construção teórica e científica da ordem tributária.” (FAVEIRO, 2002, p. 88).

Neste sentido, ensinam Klaus Tipke e Douglas Yamashita que “O dever de pagar

impostos é um dever fundamental. O imposto não é meramente um sacrifício, mas, sim,

uma contribuição necessária para que o Estado possa cumprir suas tarefas no interesse do

proveitoso convívio de todos os cidadãos. O Direito Tributário de um Estado de Direito não é

Direito técnico de conteúdo qualquer, mas ramo jurídico orientado por valores.” (TIPKE;

YAMASHITA, 2002, p. 15).

A propósito, salientou o Ministro Gilmar Ferreira Mendes (2002) em palestra proferida

em seminário promovido pelo jornal Valor Econômico, que “um texto constitucional como o

nosso, pródigo na concessão de direitos sociais e na promessa de prestações estatais aos

cidadãos, na mesma medida em que comprometido com imperativos de responsabilidade

fiscal, certamente exige o reconhecimento de um tal dever fundamental de pagar impostos.”

Podemos afirmar a partir da construção doutrinária acima exposta que a justiça do

Estado Democrático de Direito obriga a criação de um Direito Tributário justo, sendo certo

que esta justiça apóia-se fundamentalmente no princípio da igualdade100; no princípio da

liberdade e também no da solidariedade. Assim a Constituição brasileira declara

expressamente no art. 3º, I, como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, a

construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

100

Para Ricardo Lodi Ribeiro, o princípio da capacidade contributiva seria um desdobramento do princípio da igualdade. Segundo o mencionado Professor: “Modernamente, de acordo com Moris Lehner, superada a fase em que o princípio da isonomia se limitava a vedar o arbítrio, o princípio da capacidade contributiva se traduz em parâmetro constitucional da igualdade.” (RIBEIRO, 2003, p. 65). Já Marco Aurélio Greco preconiza que a capacidade contributiva, na Constituição de 1988, assumiu o caráter de diretriz positiva, sendo certo que sua aplicação deve se dar até mesmo antes do princípio da igualdade tributária. Desse modo, “a igualdade em matéria tributária foi colocada pelo constituinte como critério para implementação concreta do sistema, cuja conformação é dada pela capacidade contributiva. Isto altera a relação entre os conceitos: antes, eles se conjugavam de modo que, para haver igualdade tributária, se atenderia à capacidade contributiva; hoje, primeiro deve ser perquirida a existência de capacidade contributiva para que a tributação (ao menos em se tratando de impostos) se justifique e, depois, sendo cabível o imposto, este deverá ser instituído sem violação à igualdade.” (GRECO, 2008, p. 215-216).

Page 140: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

139

Modernamente, o princípio da igualdade101, consagrado na Constituição, não se

contenta com a igualdade formal. Para tanto, “afasta-se o que a doutrina convencionou

denominar igualdade perante a lei, de caráter eminentemente formal e artificial, para se

buscar a igualdade material, de natureza positiva e negativa, sem negar o seu caráter não-

absoluto102. Em outras palavras, não satisfaz um mero reconhecimento formalista de

direitos. À proibição teórica de favoritismos ou perseguições, deve-se aliar a diminuição

efetiva das desigualdades reais ofensivas ao sistema vigente.” (CARVALHO, 2008, p. 149).

Podemos afirmar que a igualdade perante a lei, ou seja, a igualdade na aplicação

igual da lei pelos órgãos da administração e pelos tribunais continua a ser uma dimensão

básica do princípio da igualdade. Todavia, ser igual perante a lei não significa aplicação

igual da lei. Se de um lado, o princípio da igualdade não proíbe que as normas tributárias

estabeleçam distinções, nem mesmo impõe um nivelamento de todos os atingidos pela

norma, por outro lado, “qualquer tipo de afastamento da igualdade exige razões justificativas

à altura da sua estatura constitucional. Mesmo quando há fundadas justificativas para seu

afastamento, a igualdade continua lá como contraponto para a verificação da validade desse

distanciamento. A igualdade mantém seu peso constante, mesmo diante de razões

contrárias. Não é, pois, um princípio prima facie, mas pro tanto.” (ÁVILA, 2008, p. 150). Vale

dizer: a violação injustificada do princípio da igualdade acarreta um privilégio ou uma

discriminação, os quais não são permitidos pela Constituição.

Note-se que esta foi uma evolução relevante no entendimento do princípio da

igualdade, qual seja, o de identificar o referido princípio como proibição de arbitrariedade, de

modo a expurgar privilégios ou perseguições indevidos. Assim, o princípio da igualdade

restaria violado somente naqueles casos em que não se pudesse encontrar uma justificativa

razoável para uma diferenciação legal ou um tratamento igual de casos desiguais. Ocorre

que este exame se circunscreve apenas à existência de qualquer fundamentação objetiva

não-artificial, não abrangendo a importância ética, a justiça fiscal, no que resultou em grave

injustiça103, porquanto qualquer justificativa “[...] não totalmente inadequada presta-se a

corroer e desvalorizar a justiça fiscal.” (TIPKE; YAMASHITA, 2002, p. 23-24).

101

Segundo Klaus Tipke e Douglas Yamashita, “[...] é amplamente aceito que o princípio da igualdade seja um produto da justiça.” (TIPKE; YAMASHITA, 2002, p. 21). 102

Humberto Ávila (2008, p. 148-149) salienta a inexistência de uma hierarquia absoluta do princípio da igualdade, no sentido de que ele não supera, a priori, outro princípio com o qual venha a entrar em conflito. Todavia, o referido autor ressalta a prevalência relativa do mencionado princípio ou seu privilégio axiológico, na medida em que a Constituição o tratou como “finalidade fundamental”, “garantia fundamental”, “princípio geral” e “garantia específica”, ou seja, a Constituição atribuiu a ele uma superioridade abstrata frente aos demais princípios que não receberam o mesmo tratamento. 103

Segundo Klaus Tipke e Douglas Yamashita, “Um tribunal que entende o princípio da igualdade apenas como proibição de arbitrariedade e que admite toda razão objetiva como justificativa (para o legislador não é difícil encontrar ou inventar tais razões) escapa à censura de ofender a separação dos Poderes, mas faz muito pouco pela justiça fiscal. Entretanto, a justiça fiscal necessita

Page 141: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

140

A discussão evoluiu até chegar ao ponto de que o fundamental para esclarecer o

preciso conteúdo do princípio da igualdade em cada situação era estabelecer um critério de

comparação adequado à matéria. Sendo o princípio da igualdade indeterminado e que não

fornece por si próprio este critério, este deve ser extraído por indução dos dispositivos

constitucionais e legais. Desse modo, se da adoção deste critério comparativo resultar um

tratamento desigual, cumpre então verificar se este tratamento desigual é justificado, não

por meio de qualquer motivo objetivo, que, como já visto, pode fazer muito pouco pela

justiça fiscal, mas deve ser feita uma ponderação de valores entre o princípio que serve de

critério comparativo e o princípio que fundamenta a norma, a qual não observa o critério de

comparação e, consequentemente, determina o tratamento desigual (TIPKE; YAMASHITA,

2002, p. 24).

Pergunta-se: qual seria este critério justo de repartição da carga tributária? Autores

como Ricardo Lobo Torres, Klaus Tipke, Douglas Yamashita e Ricardo Lodi Ribeiro

ressaltam a vinculação do princípio da capacidade contributiva com a idéia de justiça. Tipke,

por exemplo, extraiu a capacidade contributiva do princípio do Estado Social de Direito e da

justiça material, para concluir que este é o princípio da tributação materialmente justa

(TIPKE; YAMASHITA, 2002, p. 24).

Ricardo Lobo Torres, por sua vez, assevera que o princípio da capacidade

contributiva deve ser examinado a partir dos princípios da igualdade, ponderação e

razoabilidade, “com a reflexão sobre o seu fundamento ético e jurídico e com a

consideração das limitações constitucionais ao poder de tributar e das possibilidades fáticas

da mensuração da riqueza de cada qual, tudo o que leva à procura de uma saída

procedimentalista e discursiva.” (TORRES, 2005, p. 292).

Nesse sentido, Ricardo Lodi Ribeiro preconiza que, modernamente, o princípio da

capacidade contributiva é aplicado como derivação do princípio da igualdade, previsto em

todas as constituições, ou é previsto expressamente em muitas constituições, como é o

caso da brasileira (art. 145, § 1º), consistindo “na manifestação econômica, identificada pelo

legislador, como signo presuntivo de riqueza a fundamentar a tributação.” (RIBEIRO, 2003,

p. 66).

Observa Marciano Seabra de Godoi (2005, p. 156-157) que os juristas e as Cortes

Constitucionais de países como Alemanha, Espanha e Itália compreendem a capacidade

contributiva como o “[...] parâmetro preferencial (mas não o exclusivo) para fazer atuar no

Direito Tributário o princípio da igualdade [...].”.

urgentemente do Tribunal Constitucional como advogado, uma vez que precisamente em matéria de impostos o legislador, muito freqüentemente, cede aos interesses de partidos e associações por motivos eleitorais. Não se pode dizer que os Parlamentos agem atrás do “véu da ignorância”, a que se refere Rawls. Já ministros do Tribunal Constitucional poderiam melhor conseguir abstrair interesses inadequados.” (TIPKE; YAMASHITA, 2002, p. 24).

Page 142: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

141

Por seu turno, Marco Aurélio Greco leciona que, no sistema tributário brasileiro, a

capacidade contributiva é desdobramento do princípio da solidariedade, repercutindo na

identificação da eficácia jurídica que deve ser-lhe reconhecida. E mais: sustenta que antes

os princípios da capacidade contributiva e da igualdade se conjugavam, mas hoje a

conformação seria diversa, no sentido de que primeiro deve ser perquirida a capacidade

contributiva para justificar a tributação e, somente depois, o imposto deve ser instituído em

conformidade com o princípio da igualdade (GRECO, 2008, p. 318-319).

Aduz o mencionado Professor que o princípio da capacidade contributiva “[...]

funciona como vetor do alcance da legislação. Em outras palavras, a lei tributária alcança o

que obviamente prevê, mas não apenas isto; alcança, também, aquilo que resulta da sua

conjugação positiva com o princípio da capacidade contributiva.” (GRECO, 2008, p. 328).

Não nos parece que a teoria de Marco Aurélio Greco defenda peremptoriamente a

desvinculação do princípio da capacidade contributiva do princípio da igualdade, nem

mesmo a redução da importância deste princípio no Direito Tributário contemporâneo. A

esta conclusão chegamos quando o mencionado Professor alude à capacidade contributiva

como desdobramento, no campo tributário, do princípio da solidariedade social, e quando

assevera que manifestações de capacidade contributivas idênticas, sujeitas a tributações

diferentes, não observa o princípio da tributação isonômica (GRECO, 2008, p. 316 e 334).

Parece-nos que o que pretende o referido autor é acentuar a eficácia e o alcance deste

princípio, que não se satisfaz com o simples atendimento da lei ao princípio da igualdade em

seu sentido formal. Como diz o autor, “é preciso verificar qual manifestação de capacidade

contributiva ele quer alcançar.” (GRECO, 2008, p. 329). Assim, exemplifica que, da

perspectiva da capacidade contributiva, quando a lei se referir à compra e venda “[...] pode

ser que ela não esteja se referindo ao nome “compra e venda”, mas ao tipo de manifestação

de capacidade contributiva que se dá através da compra e venda.” (GRECO, 2008, p. 329).

Exposta a principiologia da fiscalidade contemporânea, podemos afirmar que os

princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito vinculam os órgãos encarregados

da concretização política dos princípios constitucionais (Legislativo e Executivo), os quais

devem adotar todas as medidas necessárias para a evolução da ordem constitucional sob a

ótica da justiça fiscal e social, o que inclui por certo o controle do planejamento tributário

levado a efeitos pelos contribuintes.

Isso porque o Estado Democrático de Direito não se compadece com o quadro de

desigualdade gerado com a adoção pelos contribuintes dos aludidos planejamentos

tributários abusivos, que, acaso aceitos pelo Estado, configurarão a permissão

inconstitucional de privilégios injustificados. Assim, não é suficiente que as leis tributárias

Page 143: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

142

prevejam uma repartição isonômica da carga tributária. Mister a aplicação isonômica das

referidas leis.

Neste sentido, preconizam Klaus Tipke e Douglas Yamashita que é necessário, para

a verificação isonômica dos fatos, dispositivos procedimentais que possibilitem aos fiscais

da Administração Tributária o exercício desta função. Nas palavras dos mencionados

autores, “portanto, deve-se ver o direito material e o direito procedimental como uma

unidade. O cumprimento do princípio da igualdade depende não apenas da lei material,

mas, no final das contas, dos créditos tributários, que as autoridades da Administração

Fazendária realmente constituem por meio do lançamento. O Tribunal Constitucional

Federal Alemão decidiu, em 1991, que não basta que o cidadão declare os fatos relevantes

para o lançamento. Também deve ser apurado pelas autoridades da Administração

Fazendária se as informações são corretas.” (TIPKE; YAMASHITA, 2002, p. 25).

No próximo item, examinaremos os dispositivos postos à disposição da

Administração Tributária para a verificação dos fatos e do cumprimento pelo contribuinte das

obrigações tributárias e veremos que o legislador tributário, até o presente momento, não

cuidou de regulamentar a norma prevista no parágrafo único do artigo 116 do Código

Tributário Nacional, de modo a instituir dispositivos procedimentais claros e objetivos que

possibilitem a imposição do direito material pela Administração Tributária no caso de

planejamentos tributários perfeitamente lícitos, mas que fogem dos princípios estruturantes

da fiscalidade. Também tentaremos responder à seguinte questão: em que casos o

parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966) será aplicável e

em que consiste esta norma?

4.3. O quadro legal em vigor para o controle dos pl anejamentos tributários

4.3.1. A distinção entre os casos de fraude penal e os de fraude à lei tributária, para fins de aplicação do artigo 72 da Lei nº 4.502 /64 (BRASIL, 1964)

Podemos afirmar que o contribuinte é livre na condução e realização dos fatos da

sua vida privada, desde que não sejam proibidos ou condicionados por interesses gerais,

não sendo obrigado a subordinar seu comportamento a critérios de maximização dos

interesses do Estado no que toca à obtenção de receitas tributárias. Neste contexto, os

contribuintes podem escolher a melhor forma, o melhor tipo negocial e definirem a causa do

Page 144: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

143

negócio jurídico, sem se restringirem às diversas formas e tipos previstos no ordenamento,

podendo realizar negócios jurídicos típicos, atípicos ou mistos.

Lado outro, não há como a lei tributária comandar os procedimentos do contribuinte,

com vista à realização efetiva dos fatos nela previstos. Antes, ao contrário, se mantém na

expectativa da ocorrência dos fatos, só os tomando em consideração se eles ocorrerem,

quando e como ocorrerem.

Mas como vimos anteriormente, o exercício desta liberdade sofre restrições pelo

ordenamento jurídico, notadamente no que se refere ao reconhecimento de uma função

social imanente a certos institutos tradicionais do direito privado104.

No que diz respeito às consequências, no âmbito da relação jurídico-tributária, do

exercício desta liberdade pelos contribuintes na consecução de seus negócios, temos, em

alguns casos, situações inequívocas e de contornos bem definidos de simulação (entendida

em seu sentido restrito no âmbito do Direito Tributário – sonegação - e não no sentido

clássico do Direito Civil consistente na divergência entre a vontade e a declaração) e de

fraude. Nesses casos, as condutas se enquadram nos artigos 71105 e 72106 da Lei nº

4.502/64 (BRASIL, 1964) e/ou nas condutas previstas nos artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137/90

(BRASIL, 1990)107, configurando crimes contra a ordem tributária e ensejando a aplicação

104

Laura Beck Varela e Marcos de Campos Ludwig oferecem-nos a idéia de como o novo Código Civil promove essa modificação de paradigma: “Se realmente fosse acertada a atribuição de caráter público à propriedade privada, não faria sentido sua permanência como instituto central do direito privado no novo Código Civil brasileiro. Ao consagrar um sistema de tipo aberto, o referido diploma representa a superação técnica do paradigma oitocentista do código como sistema fechado e auto-suficiente. Com efeito, a concepção de um sistema aberto abre espaço para que o Código Civil ocupe, nas palavras de Clóvis do Couto e Silva, a posição revigorada de ‘eixo central do direito privado’; essa modificação possibilita e requer a combinação técnica da tradicional regulamentação casuística com as fórmulas genéricas e sensíveis – como a das cláusulas gerais -, para que o aplicador possa descer com segurança e legitimidade do plano das abstrações para o terreno concreto.” (VARELA; LUDWIG, 2002, p. 785-786). 105 Art. 71. Sonegação é toda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, o conhecimento por parte da autoridade fazendária: I - da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, sua natureza ou circunstâncias materiais; II - das condições pessoais de contribuinte, suscetíveis de afetar a obrigação tributária principal ou o crédito tributário correspondente. 106 Art. 72. Fraude é toda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, ou a excluir ou modificar as suas características essenciais, de modo a reduzir o montante do imposto devido a evitar ou diferir o seu pagamento. 107

Art. 1º. Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias; II – fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal; III – falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável; IV – elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;

Page 145: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

144

das penalidades previstas na referida lei, sujeitando-se, na esfera administrativa, à multa

agravada decorrente de lançamento de ofício realizado com base no artigo 149, VII, do

Código Tributário Nacional. Como exemplos, podemos citar os casos de “caixa 2”, de

compra de recibos médicos e de escritura com valor do imóvel abaixo do preço pago.

Ressalte-se que este último exemplo configura também uma simulação no sentido civilista.

Nestes casos de ilícito penal, a doutrina é unânime em afirmar que não se trata de

planejamento tributário. Neste sentido, o entendimento de Marco Aurélio Greco, para quem

“[...] se a conduta examinada em determinado caso concreto configura um ilícito penal, não

há como admitir que estejamos perante um planejamento tributário. Lembre-se – como dito

acima – que o planejamento ou a elisão estão protegidos pelo ordenamento; sendo assim, a

mais grave agressão ao ordenamento, a ponto de ensejar reação que pode levar à privação

da liberdade, não pode, por vias diretas ou transversas resultar legitimada e protegida pelo

ordenamento.” (GRECO, 2008, p. 86-87).

Para o mencionado autor, toda ilicitude (penal, civil, regulatória, tributária etc.) está

fora do campo do planejamento, merecendo, contudo a distinção entre o ilícito penal e os

ilícitos propriamente tributários e extratributários. Em suas palavras:

Com efeito, havendo hipótese de caráter penal, estaremos perante casos de efetivo crime contra a ordem tributária (comumente designado sonegação), enquanto que as demais prefiro designar como hipóteses de evasão. Designo a ilicitude extratributária ou tributária de “evasão” e a ilicitude penal de “sonegação” em função do bem jurídico a proteger que é atingido, posto que, na penal, o próprio convívio social resulta comprometido, enquanto nas demais a agressão é a interesses patrimoniais, interesses ligados ao conhecimento dos fatos ou ao aparelhamento da aptidão de bem fiscalizar e cobrar etc. (GRECO, 2008, p. 88).

V – negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa à venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação. Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V. Art. 2º. Constitui crime da mesma natureza: I – fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo; II – deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos; III – exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal; IV – deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas pelo órgão ou entidade de desenvolvimento; V – utilizar ou divulgar programas de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública. Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Page 146: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

145

Pelo exposto, temos como incontroversa a afirmativa de que o ilícito penal contamina

o planejamento tributário. Todavia, assim não podemos dizer em relação às hipóteses de

fraude à lei.

Há discussões doutrinárias sobre a possível consideração do não-recolhimento dos

tributos, decorrente das manobras elusivas realizadas com simulação ou fraude à lei

tributária, como crime contra a ordem tributária. Assim, autores como Abraham Castro

Moreno (2008, p. 89-94), com apoio nas lições de Ferreiro Lapatza, afirmam que os casos

de simulação relativa, normalmente, darão lugar ao delito tributário, por concorrer o engano

característico da fraude tributária penalmente relevante, desde que esteja presente a

relação jurídico-tributária, porquanto esta constitui um pressuposto para apreciação do

crime.

No que tange aos casos de fraude à lei, tais discussões se baseiam no fato de que o

sujeito passivo da obrigação tributária elude a aplicação de uma norma tributária (a norma

defraudada), realizando uma série de operações e negócios jurídicos lícitos tendentes a

alcançar os mesmos resultados econômicos que se alcançaria com a realização do tipo

descrito na norma defraudada. Para tanto, o sujeito passivo se baseia nas normas de

cobertura das operações e negócios jurídicos realizados, que resultam inusuais e impróprios

para se conseguir o resultado econômico pretendido pelo sujeito, donde se conclui que o

único objetivo a ser alcançado com a realização destes negócios elusivos é a redução ou

eliminação da tributação que incidiria caso fossem realizados os negócios usuais.

Para Marco Aurélio Greco, o reconhecimento de que a conduta configura hipótese de

fraude à lei (em que há intenção de agir em determinado sentido) não implica, ipso facto,

configuração de um crime tributário. Segundo o mencionado Professor, “no Brasil, a fraude à

lei – embora comprometa a validade do negócio jurídico – não lhe atribui ilicitude. Portanto,

o elemento intenção ou o “querer o resultado”, que pode se apresentar em casos de fraude

à lei, não tem a mesma natureza nem o mesmo efeito que possui o “dolo” para fins da

legislação penal.” (GRECO, 2008, p. 91).

Para Abraham Castro Moreno, um dos elementos característicos que configuram a

atuação em fraude à lei tributária é a utilização de negócios jurídicos anômalos por parte do

sujeito passivo da obrigação tributária, que incorre em uma distorção ou abuso das formas

jurídicas que o ordenamento jurídico prevê, mas que são utilizadas com fins diversos dos

típicos (MORENO, 2008, p. 82). Ressalta o autor que, conquanto se possa admitir, de

alguma forma, que em toda conduta realizada em fraude à lei exista certo artifício por parte

do sujeito, isto não deve significar a existência de uma conduta penalmente relevante, na

medida em que o sujeito realiza ditas operações sem esconder nada do fisco, ou seja, os

negócios são realizados às claras, à luz do dia.

Page 147: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

146

Entretanto, a matéria não é pacífica. Há decisões de tribunais espanhois, por

exemplo, que entendem que estes tipos de condutas que se valem de complexos

mecanismos elusivos elaborados por assessores altamente qualificados são os que

merecem a maior reprovação do ordenamento penal108. Caso contrário, a punição seria

limitada às condutas de ocultação próprias de sujeitos passivos sem recursos econômicos e

financeiros para se utilizarem destes planejamentos tributários altamente complexos. Em

sentido diametralmente oposto, outras decisões salientam a atipicidade penal das condutas

praticadas em fraude à lei tributária, uma vez que os sujeitos passivos comunicam toda sua

atuação ao fisco e não têm intenção de encobrir o negócio realizado (MORENO, 2008, p.

94-96)109.

É certo que, em muitos casos, estaremos diante de um comportamento do

contribuinte que não se enquadra propriamente no conceito de fraude fiscal como sinônimo

de sonegação fiscal, mas em que se verifica um abuso. Nestas situações, utilizando a

expressão de J. L. Saldanha Sanches (2006, p. 24), em que estaríamos diante de uma

“zona de risco”, dadas as dificuldades objetivas de qualificação e quantificação exatas dos

fatos fiscalmente relevantes, principalmente naqueles casos em o contribuinte opta por

formas jurídicas complexas e que obscurecem a verificação e o controle pela Administração

Tributária, é muito difícil delimitar com toda certeza as fronteiras entre a fraude fiscal e as

figuras do abuso de direito, fraude à lei, simulação ou abuso de forma.

Nestes casos, em que há redução ou eliminação do imposto devido, as decisões do

contribuinte têm necessariamente de ser apreciadas pelo fisco, cujo exercício do poder-

dever de controle dos atos dos contribuintes deve se basear nas leis e normas antielusivas.

108

Abraham Castro Moreno indica decisões proferidas pelos seguintes tribunais espanhois como exemplos de decisões que enquadraram condutas praticadas em fraude à lei como crimes tributários: 1) Tribunal Supremo espanhol, de 9 de fevereiro de 1991 (RJ 1991/5210); 2) Audiência Provincial de Barcelona, de 31 de julho de 2000 (JUR 2000/15776); 3) Audiência Provincial de Barcelona, de 19 de julho de 2002 (JUR 2002/98018); 4) Tribunal Supremo, de 28 de novembro de 2003 (RJ 2004/91); 5) Tribunal Supremo, de 19 de maio de 2005 (RJ 2005/7645). Segundo se depreende do fundamento da decisão proferida pelo Tribunal supremo, em 28 de novembro de 2003: “no puede compartirse el criterio del recurrente en el sentido de que el fraude de Ley exime de delito fiscal. Desde la perspectiva penal lo que debe constatarse es la concurrencia de los elementos integrantes del tipo, por lo que si consta que se ha defraudado a la Hacienda pública mediante la voluntaria y consciente elusión del pago de tributos por importe superior a la cuota legal, ha de sancionarse, en principio, la conducta como delito fiscal. (…) Y no cabe apreciar un menor disvalor en la conducta de quien de modo deliberado y consciente encubre la elusión típica mediante un fraude de Ley respecto de quien simplemente omite realizar el pago con un mayor riesgo de ser descubierto.” (MORENO, 2008, p. 95). 109

Abraham Castro Moreno indica decisões proferidas pelos seguintes tribunais espanhois que se mostram partidárias da atipicidade penal da fraude à lei tributária: 1) Audiência Provincial de Madri, de 17 de fevereiro de 2005 (ARP 2005/682); 2) Audiência Provincial de Barcelona, de 28 de setembro de 2002 (JUR 2002/82). De acordo com a fundamentação da primeira decisão, “[…] las actuaciones efectuadas en fraude de ley carecen de relevancia penal, al faltar el elemento defraudatorio que exige la literalidad del art. 305, precisamente porque no existe ninguna maniobra fraudulenta, en actuación a la Hacienda Pública en todos sus extremos, sin intención de encubrir un negocio real oculto, como sí ocurre, en cambio, en los casos de simulación contractual.” (MORENO, 2008, p. 96).

Page 148: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

147

Tais normas, segundo o já citado Saldanha Sanches, “[...] atingem uma zona delicada – a

limitação à liberdade de escolha do sujeito passivo das operações que pode efetuar – e que,

devendo respeitar a autonomia privada do contribuinte na escolha e modulação dos

instrumentos que utiliza, devem também impedir a ilegítima relevância da sua vontade na

formação ou quantificação da obrigação tributária.” (SANCHES, 2006, p. 27).

Vê-se que o debate aqui desenvolvido, consoante salienta o Professor Marco Aurélio

Greco, “[...] não se apóia em linhas divisórias nítidas, mas em faixas que podem ter maior ou

menor amplitude; por isso nunca serão linhas absolutamente precisas como o fio de uma

navalha.” (GRECO, 2008, p. 86).

Mesmo diante da dificuldade que se nos apresenta quando a conduta esteja na

mencionada “zona de risco”, há possibilidade de distinguirmos os casos em que a conduta,

inequivocamente, se enquadra na acepção de fraude penal, segundo previsão contida no

artigo 72 da Lei nº 4.502/64 (BRASIL, 1964), e quando se enquadra, inequivocamente, no

significado de fraude civil ou fraude à lei, “que corresponde à hipótese em que alguém

busca, no próprio ordenamento, uma norma na qual enquadre seu comportamento, para o

fim de, assim fazendo, contornar a aplicabilidade de uma norma imperativa. Ou seja, busca-

se uma norma de cobertura para, com isto, contornar norma que prevê certa consequência

indesejada pelo agente.” (GRECO, 2008, p. 240).

Da leitura do mencionado artigo 72 da Lei nº 4.502/64 (BRASIL, 1964), depreende-se

que: “fraude é toda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou

parcialmente, a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, ou a excluir ou

modificar as suas características essenciais, de modo a reduzir o montante do imposto

devido a evitar ou diferir o seu pagamento”.

Poder-se-ia argumentar que, no planejamento tributário, o contribuinte tem por

objetivo a redução ou a eliminação da tributação, e que esta vontade seria equivalente ao

dolo para fins penais. Todavia, essa mera relação de causalidade não é, por si só, suficiente

para a subsunção da ação ou omissão humanas aos tipos penais dos crimes contra a ordem

tributária. Isso porque no estabelecimento do tipo de injusto há que se perquirir do dolo,

enquanto conteúdo da vontade, entendido como “[...] consciência e vontade de realizar o

tipo objetivo de um delito.” (CONDE, 1988, p. 57 – destaques constantes do original).

Desse modo, para agir dolosamente, “[...] o sujeito ativo deve saber o que faz e

conhecer os elementos que caracterizam sua ação como ação típica.”, bem como “[...]

querer realizá-los. Este querer não se confunde com o desejo ou com os motivos do sujeito.

Quando o assaltante mata o caixeiro para apoderar-se do dinheiro, provavelmente não

deseja sua morte e inclusive preferiria não causá-la, mas apesar disso quer produzir a morte

na medida em que não tem outro meio para apoderar-se do dinheiro. Igualmente, são

Page 149: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

148

indiferentes para caracterizar o fato como doloso os motivos do autor. No exemplo anterior,

os motivos do autor podem ser lucrativos, de vingança, políticos etc.; o roubo não deixa por

isso de ser doloso. Os motivos só em casos excepcionais têm significação típica [...] e

geralmente só incidem na determinação da pena como circunstâncias atenuantes ou

agravantes.” (CONDE, 1988, p. 58).

Assim, podemos afirmar que na realização de operações de planejamento tributário,

a despeito da clara intenção do contribuinte de obter uma economia de imposto, não se

pode daí deduzir, a priori, o elemento volitivo do dolo que é justamente o querer realizar o

tipo que configura os crimes contra a ordem tributária, muito menos o elemento intelectivo,

que corresponde ao saber e conhecer os elementos que caracterizam sua ação como ação

típica.

Nas palavras do Professor Marco Aurélio Greco, “perquirir, para fins de aplicação da

legislação tributária, quais são as finalidades buscadas com determinado ato ou negócio,

pode ter relevância para outros fins, mas não é relevante para configurar uma conduta

dolosa que permita considerar ocorrida infração à legislação tributária e aplicar as

penalidades pertinentes.” (GRECO, 2008, p. 262).

O certo é que devem estar presentes o elemento intelectivo (consciência) e o

elemento volitivo (querer), ligados às condutas de impedir ou retardar a ocorrência do fato

gerador da obrigação principal, ou excluir ou modificar suas características essenciais, de

modo a reduzir o montante do imposto devido ou a evitar ou diferir o seu pagamento, para a

caracterização do tipo penal previsto no artigo 72 da Lei nº 4.502/64 (BRASIL, 1964). Sem a

presença destes elementos, estaremos diante de um planejamento tributário, em que, a

despeito de o contribuinte pretender efetivamente a economia de impostos, não deseja

praticar nenhuma conduta que se enquadre no mencionado tipo penal. Ou seja, o

contribuinte não quer praticar os elementos que caracterizariam sua ação ou omissão como

típicas, não sendo o motivo de reduzir ou eliminar a tributação suficiente à configuração da

conduta delituosa do crime tributário.

Mas atente-se para o fato de que, na prática, o fisco vem desconsiderando as

operações artificiosas realizadas pelo contribuinte utilizando do conceito ampliado de

simulação, para obter os efeitos desejados pela cláusula geral prevista no artigo 116,

parágrafo único, do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966), procedendo ao

encaminhamento de representação para fins penais ao Ministério Público, para apuração de

crime contra a ordem tributária, além de aplicar a multa de 150% prevista no artigo 44, § 1º,

da Lei nº 9.430/96 (BRASIL, 1996), com a redação dada pela Lei nº 11.488/07 (BRASIL,

2007)110. Conquanto muitas das operações de planejamento tributário abusivo recaiam na

110

Art. 44. Nos casos de lançamento de ofício, serão aplicadas as seguintes multas:

Page 150: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

149

aludida “zona de risco”, onde é particularmente difícil traçar uma linha divisória entre a

fraude penal e a fraude à lei tributária, o que demandará análise criteriosa das provas

produzidas, não se pode deixar de ressaltar a importância desta distinção, em termos

práticos, principalmente no que toca à aplicação da multa agravada prevista no art. 44, § 1º,

da Lei nº 9.430/96 (BRASIL, 1996).

É que a reação do ordenamento às fraudes penais e às fraudes à lei tributária é

diferente. No primeiro caso, além das implicações penais, há previsão de aplicação de multa

de ofício de 150%, enquanto no segundo caso, a multa de ofício aplicada será de 75%, nos

termos da já mencionada Lei nº 9.430/96 (BRASIL, 1996). Desse modo, a multa de ofício de

150% somente poderá ser aplicada àqueles casos em que presente o elemento subjetivo do

tipo de injusto dos delitos dolosos, qual seja, o dolo, essencial que é para o enquadramento

da conduta do sujeito passivo nas hipóteses previstas nos artigos 71, 72 e 73 da Lei nº

4.502/64 (BRASIL, 1964).

Atente-se ainda para o fato de que a Medida Provisória nº 66, de 2002 (BRASIL,

2002), na parte em que pretendia disciplinar os procedimentos para a desconsideração dos

atos ou negócios jurídicos, na esfera federal, nos termos do parágrafo único do artigo 116

do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966), previa, no § 2º do artigo 17, o recolhimento

dos tributos apenas acrescidos de juros e multa moratória no prazo de trinta dias, contado

da data que o contribuinte fosse cientificado do despacho que concluísse pela

desconsideração. Somente no caso de ausência de pagamento dos tributos e encargos

moratórios no prazo a que se referia o § 2º do artigo 17 é que seria realizado o lançamento

do respectivo crédito tributário, mediante lavratura de auto de infração, com aplicação de

multa de ofício (artigo 18)111.

I – de 75% (setenta e cinco por cento) sobre a totalidade ou diferença de imposto ou contribuição nos casos de falta de pagamento ou recolhimento, de falta de declaração e nos de declaração inexata; II – de 50% (cinqüenta por cento), exigida isoladamente, sobre o valor do pagamento mensal: a) na forma do art. 8º da Lei nº 7.713, de 22 de dezembro de 1988, que deixar de ser efetuado, ainda que não tenha sido apurado imposto a pagar na declaração de ajuste, no caso de pessoa física; b) na forma do art. 2º desta Lei, que deixar de ser efetuado, ainda que tenha sido apurado prejuízo fiscal ou base de cálculo negativa para a contribuição social sobre o lucro líquido, no ano-calendário correspondente, no caso de pessoa jurídica. §1º - O percentual de multa de que trata o inciso I do caput deste artigo será duplicado nos casos previstos nos arts. 71, 72 e 73 a Lei nº 4.502, de 30 de novembro de 1964, independentemente de outras penalidades administrativas ou criminais cabíveis. §2º - Os percentuais de multa a que se referem o inciso I do caput e o § 1º deste artigo serão aumentados de metade, nos casos de não atendimento pelo sujeito passivo, no prazo marcado, de intimação para: I – prestar esclarecimentos; II – apresentar os arquivos ou sistemas de que tratam os arts. 11 a 13 da Lei nº 8.218, de 29 de agosto de 1991; III – apresentar a documentação técnica de que trata o art. 38 desta Lei. 111

Saliente-se a posição do Professor Marco Aurélio Greco quanto à inaplicabilidade de sanção nas hipóteses de fraude à lei, por não se tratar de um ato ilícito (2008, p. 249). Discordamos desta posição, na medida em que esta solução representaria ofensa ao princípio da igualdade, porquanto

Page 151: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

150

4.3.2. As principais posições doutrinárias a respei to do combate ao planejamento tributário abusivo

Na doutrina tributária brasileira, temos, em princípio, cinco posições a respeito das

normas em vigor para o combate ao planejamento tributário abusivo: uma primeira

posição , capitaneada por Alberto Xavier, que defende a existência de apenas uma norma

de combate à sonegação fiscal, incluindo a simulação, que é a do art. 149, VII, do Código

Tributário Nacional (BRASIL, 1966), sendo a norma do parágrafo único do artigo 116 do

aludido diploma legal uma norma inócua, na medida em que veio apenas repetir a regra

prevista no mencionado artigo 149, VII; uma segunda posição defendida por Marciano

Seabra de Godoi, para quem a norma do artigo 149, VII, seria apenas para os casos de

sonegação fiscal e simulação em sentido restrito e a norma do parágrafo único do artigo 116

uma verdadeira norma antielusiva de combate à fraude à lei, ao abuso de direito e à

simulação (em sentido mais ampliado e baseada no conceito de causa), dependente ainda

de regulamentação; a terceira posição seria a defendida por Ricardo Lobo Torres e

Ricardo Lodi Ribeiro, no sentido de que o artigo 149, VII, seria uma norma de combate à

simulação, enquanto a norma prevista no parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário

Nacional (BRASIL, 1966) seria uma norma antielisiva de combate ao abuso de direito e suas

manifestações (abuso de forma, fraude à lei, abuso na intenção negocial e abuso no uso da

personalidade jurídica da empresa), de aplicação imediata, não dependente de lei ordinária

para estabelecer os procedimentos a serem observados pela fiscalização; a quarta posição

é a defendida por Heleno Tôrres, para quem o parágrafo único do artigo 116 do Código

Tributário Nacional (BRASIL, 1966) é um importante instrumento que o legislador nacional

atribuiu aos legislativos para que estes possam, após sua regulamentação, “[...] controlar, de

forma segura e objetiva, os atos elusivos que sejam constituídos sem causa ou para

encobrir um outro negócio real (por simulação ou fraude à lei), visando a uma economia de

tributos ou superar vedações previstas pelo ordenamento e para obter vantagens fiscais, de

outro modo indevidos.” (TÔRRES, 2003, p. 260); e, por fim, a quinta posição defendida por

Marco Aurélio Greco, para quem os casos de abuso de direito, fraude à lei, simulação e

negócio indireto celebrado em fraude à lei ou com abuso de direito sofrem reações do

ordenamento tributário independente do artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário

Nacional (BRASIL, 1966), cuja aplicação se restringiria nos casos de “[...] dúvida na

qualificação jurídica dos negócios jurídicos, especialmente em função da eficácia positiva do

beneficiaria aquele contribuinte, que se utilizou de atos e negócios jurídicos em fraude à lei, em detrimento daquele contribuinte que, não se utilizando de nenhum artifício, apenas deixou de recolher seus tributos no prazo legal.

Page 152: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

151

princípio da capacidade contributiva diante de negócios indiretos não abusivos nem em

fraus legis.” (GRECO, 2008, p. 468). Para o Professor Marco Aurélio Greco, o artigo 149,

VII, do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966) incorpora a noção de fraude penal e não

de fraude civil, porque esta não esteve em cogitação no Direito Tributário brasileiro nas

décadas de 70, 80, 90, época em que não era concebível existir abuso de direito e fraude è

lei em matéria tributária (GRECO, 2008, p. 240).

4.4. A existência de um princípio geral antielusivo implícito no ordenamento jurídico brasileiro

Após a exposição das principais posições doutrinárias a respeito da norma geral

antielusiva, prevista no parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional

(BRASIL, 1966), passamos a expor nossa posição em relação à aludida norma, ressaltando

os casos em que a mesma deve ser aplicada, bem como seu alcance e sua utilidade.

A primeira conclusão a que chegamos é a de que podemos reconhecer, de modo

implícito no ordenamento brasileiro, um princípio geral antielusivo, derivado diretamente dos

princípios constitucionais tributários da capacidade contributiva, da isonomia e da

progressividade. Disso decorre que o combate aos atos elusivos independe do parágrafo

único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966) e que referido controle já

vem sendo feito através da norma prevista no artigo 149, VII, do Código Tributário Nacional

(BRASIL, 1966), a qual deve ser considerada, desde sua criação, uma norma específica

decorrente deste princípio geral antielusivo, motivo por que não consideramos correto o

posicionamento daqueles que defendem sua aplicação somente aos casos de fraude

penal112.

112

Em decisão proferida na sessão do dia 02 de dezembro de 2008, no julgamento do recurso nº 6527/2000, a Corte Suprema de Cassação da Itália reconheceu que os princípios da capacidade contributiva e da progressividade da tributação constituem o fundamento tanto das normas tributárias em sentido estrito, quanto daquelas que atribuem ao contribuinte vantagens ou benefícios de qualquer gênero, sendo também estas últimas normas evidentemente destinadas a mais plena atuação daqueles princípios. Além disso, reconheceu como ínsito ao ordenamento, como derivação direta das normas constitucionais, o princípio segundo o qual o contribuinte não pode extrair vantagens fiscais indevidas do uso distorcido, ainda que não contrastante com algum dispositivo legal, de instrumentos jurídicos idôneos a obter uma economia fiscal, na falta de razões economicamente consideráveis que justifiquem a operação, razões essas diversas da mera expectativa daquela economia fiscal. No mérito, reconheceram a existência de um princípio geral antielusivo, com o esclarecimento de que a fonte desse princípio, em matéria de tributos não harmonizados, tais como os impostos diretos, vem calcada não tanto na jurisprudência comunitária, mas principalmente nos próprios princípios constitucionais que informam o ordenamento tributário italiano. Além disso, os julgadores decidiram que não se contrapõe à identificação, no ordenamento,

Page 153: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

152

Com efeito, a norma prevista no artigo 149, VII, do Código Tributário Nacional

(BRASIL, 1966), além de servir de instrumento para o combate à evasão, também se presta

a limitar a margem de atuação dos contribuintes cujas condutas sejam direcionadas à

elusão das normas tributárias. Ora, se a norma prevista no artigo 149, VII pode ser utilizada

para o combate à evasão, com mais razão pode ser utilizada para o controle da elusão

(quem pode o mais, pode o menos). Ademais, a finalidade perseguida pelo legislador, no

tocante à correção e controle destes atos elusivos, ajusta-se perfeitamente aos princípios

constitucionais estruturantes da nova fiscalidade, uma vez que pretende evitar a utilização

pelo contribuinte de negócios jurídicos que, conquanto legalmente válidos, são desprovidos

de qualquer razão econômica que justifique sua utilização, e que, no final das contas,

impõem àqueles que possuem menos possibilidades de manejo das formas jurídicas, uma

participação proporcionalmente maior nos gastos públicos em relação àqueles que, tendo

condições, não o fazem.

Neste sentido, Nuno Sá Gomes (apud MARTINS, 2006, p. 70-71) ensina que:

[...] as exigências da segurança jurídica corporizada no princípio da legalidade, qualificando como lícitas as fugas deliberadas à tributação em casos em que existe manifesta capacidade contributiva, opõem-se frontalmente às exigências da justiça fiscal, decorrentes do princípio da igualdade, pois conduzem irrecusavelmente a desigualdades gritantes na medida em que, face à mesma capacidade contributiva, são tributados os contribuintes <<zelosos>>, ou pouco conhecedores das potencialidades fiscais dos negócios indiretos (e que são a grande maioria dos pequenos e médios contribuintes), não sendo coletados os contribuintes <<habilidosos>>, as mais das vezes, grandes contribuintes, assessorados, por especialistas fiscais que os esclarecem sobre as formas mais expeditas de, licitamente, evitarem a tributação. De uma forma não absoluta mas sugestiva, poderíamos talvez dizer que quanto maiores forem as exigências de segurança jurídica fiscal emergentes do princípio da legalidade, menores são as exigências de justiça fiscal decorrentes do princípio da igualdade. (destaques no original).

Para nós, a solução de enquadrar os casos de simulação (em sentido amplo), fraude

à lei, abuso de forma e abuso de direito, na regra do artigo 149, VII, não é incompatível com

a utilização deste mesmo dispositivo para os casos de combate aos atos evasivos. Se nos

casos de evasão é necessário demonstrar ter havido o dolo, aqui entendido como

consciência e vontade de realizar o tipo objetivo de um crime contra a ordem tributária, nos

casos de elusão fiscal, caberá ao fisco demonstrar a obliquidade do comportamento do

contribuinte consistente na adoção de negócios ou operações cujo resultado prático é

idêntico ou análogo ao resultado que decorreria da adoção do tipo ou negócio mais simples

e que se pretende evitar, como forma de eliminar ou reduzir o montante do tributo a ser

de um princípio geral antielusivo, a constatação da superveniência de normas antielusivas específicas, que aparecem assim como mero sintoma da existência de uma regra geral.

Page 154: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

153

pago. A escolha de um tipo ou negócio inusual pode denunciar a tendência para eludir a

aplicação da norma tributária. E esta constatação não será feita a partir da análise da

intenção do agente, mas sim das circunstâncias objetivas do caso, ou seja, a partir da

valoração do meio empregado e da função social que se lhe exige.

Para nós, esta também seria a melhor solução para os casos de negócios fiduciários

e negócios indiretos, uma vez que neles inexiste causa idônea a justificar a tutela do direito.

Com efeito, nem sempre os contribuintes recorrem à simulação, à fraude à lei, ao abuso de

direito ou ao abuso de forma para eludir determinada norma tributária. Em certos casos, os

contribuintes praticam ato ou conjunto de atos através dos quais obtêm um resultado

econômico equivalente a outro ato ou conjunto de atos que a lei tributária submete a regime

tributário menos favorável113. Tais negócios, portanto, são praticados com um fim

estritamente fiscal, no sentido de que se não fossem suas conseqüências tributárias, as

partes teriam utilizado de outros negócios mais adequados e usuais e que permitiriam

alcançar, da mesma forma, os fins práticos a que se destinam.

Nesses casos, pensamos que se o negócio não corresponde a um dos tipos

contratuais previstos e dotados de uma especial disciplina jurídica; ou, se o mesmo

corresponde a um tipo abstrato previsto pelo ordenamento, mas na sua concretização, não

atende a sua destinação econômico-social, não há como o mesmo ser oposto ao fisco. Vale

dizer: se o negócio não tem uma razão econômica ou social plausível, mesmo sendo

perfeitamente lícito, denotando apenas a intenção de reduzir ou eliminar a carga tributária,

não há como o direito por à disposição dos indivíduos a proteção da ordem jurídica, para

considerá-lo eficaz do ponto de vista tributário.

Neste contexto, os casos de negócios fiduciários e negócios jurídicos indiretos

também cairiam sob a força da regra prevista no artigo 149, VII, do aludido diploma legal,

que como vimos não se exaure apenas no combate à evasão (sonegação). Além disso, a

dogmática ainda não logrou definir precisamente os negócios jurídicos anômalos, sendo

certo que a prática demonstra a relação estreita existente entre negócio indireto, simulação

e fraude à lei, não sendo raras as situações em que as três figuras podem coexistir114.

Assim, é de se perquirir, no exame do caso concreto, se o negócio celebrado satisfaz a

113

Ascarelli (apud MARTINS, 2006, p. 64) observava que o negócio indireto “[...] podia assumir relevância no Direito Fiscal quando a realização indireta dos fins das partes é determinada pela intenção de evitar a aplicação do regime tributário mais oneroso, correspondente à direta realização daqueles mesmos fins. O resultado econômico ou empírico alcançado pelas partes é análogo ou praticamente equivalente ao que resultaria da adoção da forma negocial normalmente escolhida para o obter. Só que a eleição pelas partes da estrutura do negócio indireto permite obter esse resultado análogo ou equivalente, sem se submeter ao regime tributário aplicável ao negócio direto que economicamente lhe corresponde.” 114

Esta é a lição de Castro y Bravo, para quem “as amplas, prolixas e complexas explicações com as quais se veste a defesa do negócio indireto, acabam por esconder discretamente o instrumento que se utiliza para descartar as normas imperativas.” (CASTRO Y BRAVO, 1985, p. 455).

Page 155: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

154

certas funções de interesse econômico e social ou, se ao contrário, o mesmo foi construído

apenas para eludir a aplicação da lei tributária.

Mas aí surgem as seguintes perguntas: essa finalidade de limitar a atuação dos

contribuintes não seria idêntica à da norma prevista no parágrafo único do artigo 116 do

Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966)? O que então distingue uma da outra? Quando

a Administração Tributária deve utilizar o artigo 149, VII, e quando deve utilizar o parágrafo

único do artigo 116, todos do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966)?

4.5. O alcance e a utilidade da norma prevista no p arágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966)

Em primeiro lugar, é importante deixar consignado mais uma vez que, mesmo antes

da introdução do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional, já havia a

possibilidade de o fisco desconsiderar os atos ou negócios jurídicos praticados com a

finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos

constitutivos da obrigação tributária. Desse modo, figuras como a fraude à lei, o abuso de

direito, o abuso de forma e a simulação (em sentido ampliado) já dispunham de norma

antielusiva específica para o seu combate (artigo 149, VII, do Código Tributário Nacional).

Ainda que se argumente que este poder-dever não é explícito (positivado), tem-se

como incontroverso o fato de que este poder-dever do fisco já era reconhecido pela via

judicial115. Nas décadas de 50 e 60, o Supremo Tribunal Federal enfrentou, por diversas

vezes, o caso dos contratos de seguro de vida celebrados em fraude à lei tributária para

obter a dedutibilidade dos prêmios na apuração da base de cálculo do imposto de renda da

pessoa física. O Professor Marciano Seabra de Godoi, em 2002, em estudo publicado na

Revista Dialética de Direito Tributário nº 79, demonstrou que a figura da fraude à lei

tributária não é desconhecida na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e que diversos

Ministros se utilizaram desta figura para fundamentarem a tese de que o contribuinte não

poderia se aproveitar da dedutibilidade dos prêmios de seguro. Também o antigo Tribunal

Federal de Recursos, no julgamento da Apelação Cível nº 115.478 (j. 18.02.87, Relator

Ministro Américo Luz), decidiu que se tratava de simulação a operação pela qual a

Grendene criou oito empresas atacadistas e passou a vender para essas atacadistas sua

produção industrial, com o objetivo de reduzir o seu volume de faturamento e se encaixar no

115

Segundo Judith Martins-Costa, “[...] a positivação é um processo decorrente de qualquer uma das fontes reconhecidas como fontes de produção jurídica, uma das quais é a jurisdição [...].” (MARTINS-COSTA, 2002, p. 639).

Page 156: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

155

regime do lucro presumido. Há também diversos julgados recentes do Tribunal Regional

Federal da 4ª Região sobre casos de incorporação às avessas que confirmam a tendência

de o Judiciário manter autuações fiscais que adotam um conceito amplo de simulação

(GODOI, 2007, p. 290-293).

Com a introdução do parágrafo único do artigo 116 pela Lei Complementar nº 104,

de 2001 (BRASIL, 2001), variados posicionamentos doutrinários foram se formando, como

já salientamos linhas atrás. Assim, há os que defendem que a regra do artigo 149, VII serve

apenas aos casos de sonegação fiscal (simulação), enquanto a norma do parágrafo único

do art. 116 serve aos casos de elusão (fraude à lei, abuso de direito), sendo certo que esta

ainda dependeria de regulamentação para ser aplicada. Para esta tese, somente após a

regulamentação da norma prevista no parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário

Nacional (BRASIL, 1966) é que o fisco poderá desconsiderar os atos elusivos. Até lá,

prevalece a ampla liberdade do contribuinte para escolher os negócios jurídicos mais

adequados aos seus interesses.

Há ainda os que defendem que os atos elusivos nunca podem ser desconsiderados,

uma vez que o parágrafo único do artigo 116 nada mais é do que uma repetição da regra

prevista no artigo 149, VII, e que nosso ordenamento jurídico constitucional apenas

permitiria o combate aos casos de simulação (conceito restritivo) e de fraude enquadrados

nos casos previstos nos artigos 71 e 72 da Lei nº 4.502/64, ou seja, naqueles casos em que

houvesse a intenção de cometimento de ilícito fiscal. Para os que defendem esta tese, nem

mesmo emenda à Constituição poderia introduzir no ordenamento jurídico uma cláusula

geral antielusiva.

Há aqueles que preconizam que a norma do artigo 149, VII, deveria ser utilizada

apenas para os casos praticados com simulação, cabendo à norma do parágrafo único do

artigo 116 o combate à fraude à lei, abuso de forma ou abuso de direito, e que o

procedimento previsto no Decreto nº 70.235/72 deverá ser o utilizado até que o legislador

ordinário regulamente a norma do mencionado parágrafo único do artigo 116 do Código

Tributário Nacional.

Há quem defenda que a norma do parágrafo único do artigo 116 é para os casos de

simulação e fraude à lei fiscal, não se enquadrando nestas figuras, o negócio indireto, o

negócio fiduciário e o misto, os quais estariam protegidos de qualquer procedimento do fisco

tendente a desconsiderá-los.

E há aqueles que defendem que os negócios jurídicos em que esteja presente

alguma patologia (simulação, fraude à lei, abuso de forma, abuso de direito) devem ser

combatidos pelo ordenamento de outras formas, reservando-se a norma do parágrafo único

do artigo 116 apenas aos casos de negócios indiretos, que podem a vir ser desconsiderados

Page 157: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

156

pelo fisco, tendo em vista o princípio da capacidade contributiva, cuja eficácia positiva

constituiria um óbice intransponível à realização destes negócios116.

Para nós, em princípio, a norma prevista no parágrafo único do artigo 116 do Código

Tributário Nacional (BRASIL, 1966) é a explicitação (positivação) do princípio geral

antielusivo implícito no ordenamento jurídico, ou seja, uma verdadeira cláusula geral,

caracterizada pela ampla vagueza semântica, cuja especificidade técnica, como explica

Judith Martins-Costa, é o envio ao juiz de “[...] critérios aplicativos determináveis ou em

outros espaços do sistema ou através de variáveis tipologias sociais, dos usos e costumes.”

(1999, p. 299). Assim, além de corresponder a uma técnica essencialmente destinada à

atividade judicial, a cláusula geral sempre reenvia a outras normas do ordenamento jurídico

o fundamento lógico ou axiológico dos fatos jurídicos.

Nas palavras de Misabel Derzi, “na cláusula geral dá-se a ocorrência de vagueza e

fluidez programadas pelo legislador, que deixa de ditar os critérios tanto para a qualificação

dos fatos jurídicos como de suas conseqüências, reenviando a standarts ou parâmetros

morais e sociais, variáveis no tempo e no espaço.” (DERZI, 2007, p. 372).

Como bem esclarece Humberto Theodoro Júnior (2003, p. XII), a moderna técnica

das cláusulas gerais “[...] possui aptidão para recolher os casos que a experiência social

contínua e inovadoramente propõe a uma adequada regulação, com vistas a ensejar a

formação de modelos jurídicos inovadores, abertos e flexíveis.” Mas alerta o mencionado

Professor que “nenhuma cláusula ou norma da espécie pode resumir-se a si própria, nem

pode ser interpretada apenas em face do valor que ela mesma traduz. Tudo haverá de ser

enfocado a partir do sistema maior e dos valores superiores que formam a ordem

constitucional como um todo. Não há lugar para sectarismo e paixões, quando se trata de

realizar uma ordem constitucional por inteiro.” (THEODORO JÚNIOR, 2003, p. XVIII).

O ideal perseguido com a introdução do parágrafo único do artigo 116 é, sem dúvida,

o da justiça concreta. Para tanto, o legislador, através da LC nº 104/2001 (BRASIL, 1996)

tentou se afastar da antiga perspectiva hostil à igualdade material, para introduzir, no

ordenamento jurídico tributário, uma cláusula geral que submeta fisco e contribuinte a

princípios éticos. É o reconhecimento da imprescindível eticidade do ordenamento a que faz

116

Nas lições de António Carvalho Martins, “Há, no entanto, isso sim, o dever de todos contribuírem, na medida da sua capacidade contributiva, para as despesas a realizar com as tarefas do estado. Como membros da comunidade, que constitui o estado, ainda que apenas em termos econômicos (e não políticos), incumbe-lhes, pois, o dever fundamental de suportar os custos financeiros da mesma, o que pressupõe a opção por um estado fiscal, que assim serve de justificação ao conjunto dos impostos, constituindo estes o preço (e, seguramente, um dos preços mais baratos) a pagar pela manutenção da liberdade ou de uma sociedade civilizada. O que, não constituindo uma opção absolutamente necessária, nem tendo o condão, de, ao contrário do que afirmava J. Bodin, tornar essa necessidade uma solução justa, se apresenta, quer do ponto de vista histórico, quer do ponto de vista comparatístico, como a solução mais consentânea com a realização duma justiça relativa (como é toda a justiça realizável) no nosso tempo.” (MARTINS, 2006, p. 50).

Page 158: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

157

referência Humberto Theodoro Júnior na obra Comentários ao Novo Código Civil (2003, p.

XIII).

Todavia, esta norma que, em princípio, seria uma forma de concitar os seus

destinatários a elevar-lhe o grau de eficácia, aplicando-a mais freqüente e decididamente,

esmaeceu pela inclusão da cláusula final aparentemente instituidora de uma eficácia contida

desta norma, que a tornou, portanto, propositalmente tíbia, ambígua, vacilante, hesitante,

além de redundante, na medida em que a previsão final nela contida acaba por torná-la

também uma norma antielusiva específica, como é a norma do artigo 149, VII, do Código

Tributário Nacional. Tal assertiva pode ser comprovada pela regulamentação promovida

pela MP 66, de 2002 (BRASIL, 2002), que resultava dos seus artigos 13 a 19 que, no

entanto, não foram convertidos em lei, perdendo, portanto, eficácia.

Com efeito, de acordo com o artigo 14 da referida Medida Provisória, poderiam ser

desconsiderados “os atos ou negócios jurídicos que visem a reduzir o valor do tributo, a

evitar ou a postergar o seu pagamento ou a ocultar os verdadeiros aspectos do fato gerador

ou a real natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária”. Para a

desconsideração do ato ou negócio jurídico, seria levado em conta, entre outras , a

ocorrência de falta de propósito negocial ou abuso de forma, os quais poderiam ser

comprovados pela escolha de uma forma mais complexa ou mais onerosa, ou pela prática

de ato ou negócio jurídico indireto que produza o mesmo resultado econômico do ato ou

negócio jurídico dissimulado (artigo 14).

O certo é que em cada período histórico, o legislador costuma incorporar ao

ordenamento jurídico aquilo que no período correspondente se consagrou como expressão

do ideário da época. Fazem-no, muitas vezes, pelo simples propósito retórico ou porque não

podem se esquivar de fazê-lo. Se o fazem para afastar a pecha de retrógrados ou se o

fazem para angariar apoio político, o certo é que, muitas das vezes, adotam soluções

ambíguas e incoerentes, principalmente na seara do Direito Tributário. Para nós, a parte

final do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional é um exemplo disso e

demonstra como o legislador brasileiro ainda resiste arduamente tratar o tema do

planejamento tributário com transparência e objetividade.

Mas, ainda assim, consideramos que esta previsão legal é de suma importância,

principalmente “[...] numa cultura de legolatria e legomania como a nossa, ainda centrada no

fetiche da lei.” (MARTINS-COSTA, 2002, p. 640). Apesar de sua natureza ser,

inequivocamente, a de uma cláusula geral antielusiva, o certo é que sua futura (e incerta)

regulamentação terá o efeito de torná-la uma norma antielusiva específica, ou, utilizando a

expressão da mencionada sentença proferida pela Corte Suprema de Cassação Italiana

(nota de rodapé nº 112), demonstrará ser um mero sintoma da existência de uma regra geral

Page 159: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

158

antielusiva ínsita no ordenamento jurídico, derivada diretamente dos princípios

constitucionais da capacidade contributiva, igualdade, progressividade. Desse modo, a

regulamentação que, porventura, venha a ser adotada, complementará ou até mesmo

poderá vir a substituir a norma específica antielusiva já existente no nosso ordenamento,

qual seja, a contida no artigo 149, VII, do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966), sem

que isto implique a impossibilidade de adoção futura de outras normas antielusivas

específicas pelo ordenamento jurídico.

Page 160: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

159

5. CONCLUSÃO

Do ponto de vista econômico, a elusão fiscal gera problemas muito semelhantes aos

da evasão (sonegação). Isto porque a obtenção de uma economia de impostos pela

utilização distorcida de instrumentos jurídicos formais, ainda que não contrastantes com

algum dispositivo legal, sem um motivo economicamente razoável e plausível que justifique

a operação realizada, provoca distorções no sistema econômico, cujo efeito se constata nos

desvios concorrenciais, já que é impossível a convivência de agentes econômicos que

pagam impostos com agentes econômicos que não pagam impostos, e na sobrecarga

tributária daqueles que não têm como fugir aos impostos, como é o caso dos assalariados

de renda mais elevada, dos consumidores de baixa renda e das pequenas e médias

empresas.

Até meados da década de 90, as empresas não se preocupavam tanto com

investimentos em complexos mecanismos de planejamento tributário, na medida em que as

condições micro e macroeconômicas possibilitavam a transferência do ônus tributário mais

facilmente através do preço das mercadorias e serviços. Entretanto, este quadro sofreu

considerável alteração com a consolidação do processo de globalização econômica. É que o

incremento do comércio internacional e o acirramento da concorrência, acrescidos da

estabilização da economia e do controle do processo inflacionário, dificultaram

sobremaneira o repasse do ônus tributário para o preço dos produtos e serviços, uma vez

que os preços relativos, em uma economia estável, são muito mais transparentes, o que

possibilita aos consumidores a percepção mais clara das diferenças entre os preços dos

produtos e serviços.

Diante da dificuldade de repasse do ônus tributário e da política econômica traçada

nas duas últimas décadas, sustentada pela elevação das alíquotas dos impostos e a criação

de diversas contribuições, as empresas passaram a buscar novos mecanismos para reduzir

ou até mesmo eliminar a carga tributária, o que vem sendo feito com o investimento maciço

em planejamentos tributários altamente sofisticados, com a ajuda de profissionais altamente

especializados, os quais se valem da complexidade do sistema tributário, para criar

negócios jurídicos lícitos sem propósito negocial, praticados com a finalidade de dissimular a

ocorrência do fato gerador ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.

A par disso, os grandes agentes econômicos e financeiros passaram a exigir dos

Estados uma atuação neutra, bem como a redução das formas de controle das transações

econômicas e financeiras e, até mesmo, a redução da tributação sobre a renda das grandes

corporações e das pessoas (físicas e jurídicas) mais ricas, a fim de evitar que, neste

ambiente em que o comércio e o fluxo de capitais são intensos e livres, o dinheiro seja

Page 161: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

160

destinado a países em que o tratamento seja mais vantajoso, como por exemplo, os

paraísos fiscais.

Ocorre que este processo provoca graves injustiças. Com efeito, a utilização dos

chamados métodos de planejamento tributário desencadeia a proliferação desta prática

entre os demais agentes econômicos. Com a perda de arrecadação decorrente deste

processo, o Estado, através de sua Administração Tributária, mantém em níveis elevados a

carga tributária justamente sobre aqueles que não possuem meios de fuga dos impostos.

Assim, aqueles que têm seu imposto retido pela fonte pagadora, bem como empresas de

pequeno e médio porte, que não podem pagar pela assessoria especializada em

planejamento tributário, acabam por sofrer os efeitos deletérios desta injustiça gritante, ou

sucumbem à tentação da prática evasiva, arriscando-se a sofrerem as reações do sistema

previstas nas leis penais.

Preocupado com a queda da arrecadação provocada pela adoção sistemática por

grandes empresas das práticas de planejamento tributário e, diante da impossibilidade de

elevar ainda mais a carga tributária dos assalariados, das pequenas e médias empresas e

dos consumidores de baixa renda, o Governo Federal, em 1999, encaminhou ao Congresso

Nacional Projeto de Lei Complementar nº 77, que objetivava promover alterações no Código

Tributário Nacional, para atribuir à Administração Tributária, segundo a Mensagem nº 1.459,

de 06 de outubro de 1999, assinada pelo Ministro da Fazenda, condições mais adequadas

ao cumprimento de suas funções institucionais.

Uma das alterações era a inclusão do parágrafo único ao artigo 116, “necessária

para estabelecer, no âmbito da legislação brasileira, norma que permita à autoridade

tributária desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com finalidade de elisão,

constituindo-se, dessa forma, em instrumento eficaz para o combate aos procedimentos de

planejamento tributário praticados com abuso de forma ou de direito.”

Da leitura desta justificativa pode-se extrair, apressada e erradamente, a conclusão

de que até aquele momento, inexistia, no âmbito da legislação brasileira, norma que

permitisse ao fisco a desconsideração de atos ou negócios jurídicos elusivos.

Desta conclusão, entretanto, divergimos abertamente. E o fazemos com base na

afirmativa de que nunca devemos assumir uma posição de mera reprodução acrítica do

conhecimento (CRUZ, 2007, p. 323). Neste sentido, afirmar que o fisco não pode, em

nenhuma hipótese, desconsiderar os planejamentos tributários abusivos e de que inexistem,

no ordenamento jurídico, limites ao exercício desse direito pelo contribuinte é sinal

inequívoco de que ainda prevalece, no âmbito do Direito Tributário, o paradigma do

positivismo clássico, que prega o absolutismo dos princípios da legalidade estrita, da

tipicidade cerrada, da segurança jurídica e da liberdade ampla e irrestrita do indivíduo.

Page 162: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

161

Entretanto, como restou demonstrado no presente trabalho, o Direito,

hodiernamente, vem sendo construído em bases pós-positivistas. Este novo paradigma

retoma o relacionamento entre Direito e moral e a noção de justiça, sob o influxo da releitura

da obra de Kant. Nesse contexto, dissemina-se a jurisprudência dos valores, que rompe

com o positivismo-formalista e sua sobrevalorização do indivíduo em detrimento dos valores

de justiça social, propugnando a superação do positivismo jurídico por meio de um modelo

hermenêutico baseado nos valores e nos princípios.

Desse modo, ainda que seja muito forte a influência exercida pela corrente

positivista-formalista no Direito Tributário no Brasil, que utiliza de argumentos incompatíveis

com a noção de Estado Democrático de Direito, para defender a tese da

inconstitucionalidade de qualquer espécie de norma geral antielisiva e da supremacia do

princípio da tipicidade fechada, não se pode olvidar o fato de que a sociedade evoluiu e com

ela a noção de Direito, o que força o estabelecimento de novas bases para o estudo da

fiscalidade.

Assim, se é correto afirmar que a Constituição Federal (BRASIL, 1988) assume os

valores da livre iniciativa e o princípio da propriedade privada como fundamentos da ordem

econômica (art. 170), não menos correto é a afirmação de que tais valores e princípios não

são pela Carta Magna absolutizados, mas inseridos em uma ordem econômico-social que

tem por fim assegurar a justiça social (art. 170, “caput”), bem como a construção de uma

sociedade livre, justa e solidária; a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução

das desigualdades sociais e regionais (art. 3º).

É neste contexto que devem ser estabelecidos os novos parâmetros para o estudo

do tema do combate ao planejamento tributário abusivo, e não mais de uma perspectiva

puramente formalista. E esta importante mudança já pode ser percebida quando se verifica,

após a análise de alguns casos julgados pelo Conselho de Contribuintes do Ministério da

Fazenda e de algumas decisões dos tribunais superiores, a utilização de um conceito

ampliado de simulação, mais adaptado ao constante processo de desenvolvimento das

operações econômicas, as quais se utilizam cada vez mais de negócios jurídicos atípicos e

anômalos, que não se ajustam aos conceitos tradicionais referentes aos negócios típicos,

exigindo dos teóricos do direito uma nova concepção, uma nova metodologia para

abordagem de tão intricado e complexo tema.

Dessa forma, o conceito de simulação como “um caso de divergência entre a

vontade (vontade real) e a declaração (vontade declarada), procedente de acordo entre o

declarante e o declaratário e determinada pelo intuito de enganar terceiros.” (XAVIER, 2002,

p. 52), não mais se ajusta à evolução econômica e social, muito menos às exigências do

Page 163: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

162

Estado Democrático de Direito, cedendo lugar a uma concepção mais causalista, voltada

para as exigências da função social e econômica dos negócios jurídicos.

Concluímos, portanto, que o conceito de simulação, longe de ser um conceito

fechado, de cunho classificatório, possui traços característicos do tipo (em sentido próprio),

como a abertura, a generalidade, a gradação, a valoração. Tal fato foi claramente percebido

pelo Professor Godoi (2007, p. 284-293) que alude ao fato de que o fisco, nos últimos anos,

com o apoio do Conselho de Contribuintes e do Poder Judiciário, vem desconsiderando os

atos abusivos de planejamento tributário (os chamados atos elusivos), com base em um

conceito alargado de simulação .

A nosso ver, esta mudança é sintoma do reconhecimento pelo ordenamento

brasileiro de um princípio geral antielusivo implícito, derivado diretamente dos princípios

constitucionais tributários da capacidade contributiva, da isonomia e da progressividade, os

quais servem de fundamento, não só para a instituição de normas tributárias mais justas,

distribuindo de forma equânime os ônus tributários, mas também para amparar a atuação

estatal no tocante ao desempenho de seu poder-dever de fiscalização, que se impõe na

concretização da justiça fiscal. Disso decorre que o combate aos atos elusivos independe do

parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966), e o mesmo

pode ser feito e já vem sendo feito, como demonstramos no decorrer do trabalho, sem a

necessidade de recorrer ao referido dispositivo.

Na realidade, a alteração promovida no artigo 116 do Código Tributário Nacional,

com a introdução do parágrafo único, assim como a grande maioria das normas de nosso

ordenamento, sujeitou-se a negociações políticas, tendo em vista os vários interesses

envolvidos. Não é por outro motivo que esta norma que, em princípio, seria uma forma de

concitar os seus destinatários a elevar-lhe o grau de eficácia, aplicando-a mais freqüente e

decididamente, esmaeceu pela inclusão da cláusula final aparentemente instituidora de uma

eficácia contida desta norma, que a tornou, portanto, propositalmente tíbia, ambígua,

vacilante, hesitante, além de redundante, na medida em que a previsão final nela contida

acaba por torná-la também uma norma antielusiva específica, como é a norma do artigo

149, VII, do Código Tributário Nacional. Tal assertiva pode ser comprovada pela

regulamentação promovida pela MP 66, de 2002 (BRASIL, 2002), que resultava dos seus

artigos 13 a 19 que, no entanto, não foram convertidos em lei, perdendo, portanto, eficácia.

O certo é que em cada período histórico, o legislador costuma incorporar ao

ordenamento jurídico aquilo que no período correspondente se consagrou como expressão

do ideário da época. Fazem-no, muitas vezes, pelo simples propósito retórico ou porque não

podem se esquivar de fazê-lo. Se o fazem para afastar a pecha de retrógrados ou se o

fazem para angariar apoio político, o certo é que, muitas das vezes, adotam soluções

Page 164: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

163

ambíguas e incoerentes, principalmente na seara do Direito Tributário. Para nós, a parte

final do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional é um exemplo disso e

demonstra como o legislador brasileiro e a Administração Tributária (lembrem-se de que o

Projeto de Lei Complementar nº 77/99 teve origem no Ministério da Fazenda) ainda resistem

arduamente tratar o tema do planejamento tributário com transparência e objetividade.

Mas, ainda assim, consideramos que esta previsão legal é de suma importância para

o combate aos planejamentos tributários abusivos, seja porque mantém aceso o debate,

seja porque explicita a existência de uma norma geral antielusiva, implícita no ordenamento

jurídico pátrio, cuja derivação se dá diretamente dos princípios constitucionais da

capacidade contributiva, da igualdade e da progressividade, além do que atende as

especiais exigências de concretização da justiça fiscal. Sua constitucionalidade, que foi

questionada pela ADI nº 2.446/2001, precisa ser urgentemente declarada pelo Supremo

Tribunal Federal. Há mais de oito anos a comunidade jurídica aguarda uma posição da

Corte Suprema que, em última instância, dirá se o Estado Democrático de Direito pode

conviver com as técnicas de obtenção de vantagens fiscais por meio da utilização distorcida

de instrumentos jurídicos que, conquanto idôneos, não se revestem de razões econômicas e

sociais que justifiquem sua utilização, a não ser por motivos unicamente de redução ou

eliminação da carga tributária, ou se, ao contrário, não cabe por parte do ordenamento

jurídico brasileiro nenhuma reação às condutas elusivas.

Page 165: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

164

REFERÊNCIAS

ABREU FILHO, José. O negócio jurídico e sua teoria geral . São Paulo: Saraiva, 2003.

ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário. São Paulo: Saraiva, 2006.

ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. São Paulo: Malheiros, 2008.

AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico : existência, validade e eficácia. São

Paulo: Saraiva, 2007.

AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Mesa de debates do IBDT de 04/05/2006. Disponível

em: <http://www.ibdt.com.br/2006/integra_04052006.htm>. Acesso em: 09 jul. 2008.

BECKER, Alfredo Augusto. Carnaval tributário. São Paulo: Lejus, 2004.

BETTI, Emílio. Teoria geral do negócio jurídico . Tomo II. Campinas: LZN, 2003.

BOGO, Luciano Alaor. Elisão tributária. Licitude e abuso do direito. Curitiba: Juruá, 2006.

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1995.

CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de direito administrativo : parte geral,

intervenção do estado e estrutura da administração. Salvador: Podivm, 2008.

CASTRO Y BRAVO. Federico de. El negocio jurídico . Madri: Civitas, 1985.

COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro . Rio de Janeiro:

Forense, 1999.

COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Fraude à lei, abuso do direito e abuso da

personalidade jurídica em direito tributário: denominações distintas para o instituto da

evasão fiscal. In: YAMASHITA, Douglas (Coord.). Planejamento tributário à luz da

jurisprudência . São Paulo: Lex, 2007.

COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Evasão e Elisão Fiscal : O parágrafo único do art. 116,

CTN, e o direito comparado. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Os limites atuais do planejamento tributário. In:

ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). O planejamento tributário e a lei complementar 104.

São Paulo: Dialética, 2002.

CONDE, Francisco Muñoz. Teoria geral do delito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris

Editor, 1988.

COSTA, Regina Helena. Praticabilidade e justiça tributária : exequibilidade de lei tributária

e direitos do contribuinte. São Paulo: Malheiros, 2007.

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Hermenêutica jurídica e(m) debate . O constitucionalismo

brasileiro entre a teoria do discurso e a ontologia existencial. Belo Horizonte: Fórum, 2007.

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Habermas e o direito brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen

Júris, 2006.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2002.

Page 166: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

165

DERZI, Misabel de Abreu Machado. A desconsideração dos atos e negócios jurídicos

dissimulados, segundo a lei complementar n° 104, de 10 de janeiro de 2001. In:

ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). O planejamento tributário e a lei complementar 104.

São Paulo: Dialética, 2002.

DERZI, Misabel de Abreu Machado. Mutações, complexidade, tipo e conceito, sob o

signo da segurança e da proteção da confiança. In: TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.).

Tratado de direito constitucional tributário . Estudos em homenagem a Paulo de Barros

Carvalho. São Paulo: Saraiva. 2005.

DERZI, Misabel de Abreu Machado. O direito à economia de imposto: seus limites

(estudo de casos). In: YAMASHITA, Douglas (Coord.). Planejamento tributário à luz da

jurisprudência . São Paulo: Lex, 2007.

DERZI, Misabel de Abreu Machado. Direito tributário, direito penal e tipo. São Paulo: RT,

2007.

DÓRIA, Antônio Roberto Sampaio. Elisão e evasão fiscal . São Paulo: Bushatsky. 1977.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato gerador da obrigação tributária. Rio de Janeiro:

Forense. 1995.

FAVEIRO, Vítor. O estatuto do contribuinte : a pessoa do contribuinte no estado social de

direito. Coimbra: Coimbra Editora, 2002.

FERRARA, Francisco. A simulação dos negócios jurídicos. Campinas: Red Livros, 1999.

FRANÇA, Pedro Arruda. Contratos atípicos : legislação, doutrina e jurisprudência. Rio de

Janeiro: Forense, 2006.

FRIEDMAN, Thomas L. O mundo é plano : uma breve história do século XXI. Rio de

Janeiro: Objetiva, 2005.

GAINO, Itamar. Simulação dos negócios jurídicos. São Paulo: Saraiva, 2008.

GODOI, Marciano Seabra de. Fraude a la ley y conflicto en la aplicación de las leys

tributarias . Madri: Instituto de Estudios Fiscales, 2005.

GODOI, Marciano Seabra de. Uma proposta de compreensão e controle dos limites da

elisão fiscal no direito brasileiro. Estudo de casos. In: YAMASHITA, Douglas (Coord.).

Planejamento tributário à luz da jurisprudência . São Paulo: Lex, 2007.

GODOI, Marciano Seabra de. O quê e o porquê da tipicidade tributária. . In: RIBEIRO,

R.L.; ROCHA, S.A. (Coords.). Legalidade e tipicidade no direito tributário . São Paulo:

Quartier Latin, 2008.

GODOI, Marciano Seabra de. A figura da fraude à lei prevista no parágrafo únic o do art.

116 do CTN. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 68, 2001.

Page 167: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

166

GODOI, Marciano Seabra de. A figura da fraude á lei tributária na jurisprudênc ia do

Supremo Tribunal Federal. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 79, p. 75-

85, 2002.

GODOI, Marciano Seabra de. Dois conceitos de simulação e suas conseqüências pa ra

os limites da elisão fiscal. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes questões

atuais do direito tributário, São Paulo: Dialética, v. 11, p. 272-298, 2007.

GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 1988.

GRECO, Marco Aurélio. Planejamento tributário . São Paulo: Dialética. 2008.

HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste

Gulbenkien, 1994.

JÚNIOR, Humberto Theodoro. Dos fatos jurídicos: do negócio jurídico. In: TEIXEIRA,

Sálvio de Figueiredo. Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

JUNIOR, Tercio Sampaio Ferraz. Notas sobre contribuições sociais e solidariedade n o

contexto do estado democrático de direito. In: GRECO, M.A.; GODOI, M.S.

Solidariedade social e tributação. São Paulo: Dialética, 2005.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito . São Paulo: Martins Fontes. 2006.

LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito . 3. ed. Trad. José Lamego. Lisboa:

Fundação Calouste Gulbenkien, 1997.

MACIEL, Taísa Oliveira. Tributação dos lucros das controladas e coligadas

estrangeiras. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

MARTINS, António Carvalho. Simulação na lei geral tributária e pressuposto do tributo:

em contexto de fraude, evasão e planeamento fiscal. Coimbra: Coimbra Editora, 2006.

MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A reconstrução do direito privado. São Paulo: RT, 2002.

MARTINS, I.G.S; MARONE, J.R. Elisão e evasão de tributos : estudo de casos. In:

YAMASHITA, Douglas (Coord.). Planejamento tributário à luz da jurisprudência . São

Paulo: Lex, 2007.

MATTIETO, Leonardo de Andrade. Invalidade dos atos e negócios jurídicos. In:

TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A parte geral do novo Código Civil . Rio de Janeiro:

Renovar, 2007.

MENDES, Gilmar Ferreira. Os reflexos da tributação e da sonegação na

competitividade das empresas. Revista Virtual da AGU, n. 19, 2002. Disponível em:

<http://www.escola.agu.gov.br/revista/Ano_III_fevereiro_2002/fevereiro_2002.htm>. Acesso

em: 27 jan. 2009.

MIRANDA, Custódio da Piedade Ubaldino. A simulação no direito civil brasileiro . São

Paulo: Saraiva, 1980.

Page 168: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

167

MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado : parte geral. Rio de Janeiro: Borsoi,

1954.

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 1989.

MORENO, Abraham Castro. Elusiones fiscales atípicas. Barcelona: Atelier, 2008.

NABAIS, José Casalta. Solidariedade social, cidadania e direito fiscal. In: GRECO, M.A.;

GODOI, M.S. Solidariedade social e tributação. São Paulo: Dialética, 2005.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 1995.

RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, interpretação e elisão tributária . Rio de Janeiro: Lumen

Juris. 2003.

ROLIM, João Dácio. Reflexões sobre normas gerais antielusivas na juris prudência. In:

YAMASHITA, Douglas (Coord.). Planejamento tributário à luz da jurisprudência . São

Paulo: Lex, 2007.

SACCHETTO, Cláudio. O dever de solidariedade no direito tributário : o ordenamento

italiano. In: GRECO, M.A.; GODOI, M.S. Solidariedade social e tributação. São Paulo:

Dialética, 2005.

SAMPAIO, Marília de Ávila e Silva. Aplicação dos direitos fundamentais nas relações

entre particulares e a boa-fé objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

SANCHES, J.L. Saldanha. Os limites do planeamento fiscal : substância e forma no direito

fiscal português, comunitário e internacional. Coimbra: Coimbra Editora, 2006.

SANTOS, José Beleza dos. A simulação em direito civil . São Paulo: Lejus, 1999.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros,

1999.

SÜSSEKIND, A.; MARANHÃO, D.; VIANNA, S. Instituições de direito do trabalho. São

Paulo: LTr, v.1, 1993.

TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A parte geral do novo Código Civil . Rio de Janeiro:

Renovar, 2007.

TIPKE, K., YAMASHITA, D. Justiça fiscal e princípio da capacidade contributi va. São

Paulo: Malheiros. 2002.

TÔRRES, Heleno. Direito tributário e direito privado : autonomia privada, simulação e

elusão tributária. São Paulo: RT, 2003.

TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e trib utário. Valores

e princípios constitucionais tributários. Rio de Janeiro: Renovar, v. 2, 2005a.

TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e trib utário. Os

direitos humanos e a tributação: imunidades e isonomia. Rio de Janeiro: Renovar, v. 3,

2005b.

Page 169: O COMBATE AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO NO … · Somente em meados da década de 90 começaram a ser debatidas as obras de Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco, cujas

168

TORRES, Ricardo Lobo. Normas gerais antielisivas . In: TORRES, Ricardo Lobo (Org.)

Temas de interpretação do direito tributário . Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

TORRES, Ricardo Lobo. Elisão abusiva e simulação na jurisprudência do Sup remo

Tribunal Federal e do Conselho de Contribuintes. In: YAMASHITA, Douglas (Coord.).

Planejamento tributário à luz da jurisprudência . São Paulo: Lex, 2007.

TORRES, Ricardo Lobo. O princípio da tipicidade no direito tributário. In: RIBEIRO, R.L.;

ROCHA, S.A. (Coords.). Legalidade e tipicidade no direito tributário . São Paulo: Quartier

Latin, 2008.

TORRES, Ricardo Lobo. Normas de interpretação e integração do direito tri butário. Rio

de Janeiro: Renovar, 2006.

VARELA, L.B.; LUDWIG, M.C. Da propriedade às propriedades: função social e

reconstrução de um direito. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A reconstrução do direito

privado. São Paulo: RT, 2002.

VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins

Fontes, 2005.

XAVIER, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antieli siva . São Paulo:

Dialética. 2002.

YAMASHITA, Douglas (Coord.). Planejamento tributário à luz da jurisprudência . São

Paulo: Lex, 2007.

ZILVETI, Fernando Aurélio. Tipo e linguagem: a gênese da igualdade na tributação. In:

RIBEIRO, R.L.; ROCHA, S.A. (Coords.). Legalidade e tipicidade no direito tributário . São

Paulo: Quartier Latin, 2008.