uma revisÃo da ontologia musical · 2019. 7. 2. · filósofos como roger scruton (1997) defendem...
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Instituto de Filosofia, Artes e Cultura
Programa de Pós-Graduação em Estética e Filosofia da Arte
UMA REVISÃO DA ONTOLOGIA MUSICAL
Dissertação
Vanessa Martins Couto
2019
VANESSA MARTINS COUTO
UMA REVISÃO DA ONTOLOGIA MUSICAL
Dissertação apresentada ao Mestrado em Estética e
Filosofia da Arte do Instituto de Filosofia, Artes e
Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto como
requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em
Filosofia sob a orientação do Prof. Dr. Rainer Câmara
Patriota.
Área de concentração: Estética e Filosofia da Arte.
Ouro Preto
2019
Catalogação: www.sisbin.ufop.br
C871r Couto, Vanessa Martins . Uma revisão da ontologia musical [manuscrito] / Vanessa Martins Couto. -2019. 117f.:
Orientador: Prof. Dr. Rainer Camara Patriota.
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto. Instituto deFilosofia, Arte e Cultura. Departamento de Filosofia. Programa de Pós-Graduaçãoem Estética e Filosofia da Arte. Área de Concentração: Filosofia.
1. Música e filosofia. 2. Música - Filosofia e estética . I. Patriota, RainerCamara. II. Universidade Federal de Ouro Preto. III. Titulo.
CDU: 1:78
AGRADECIMENTOS
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Agradeço à
CAPES por conceder esse fomento de extrema importância à pesquisa.
Aos participantes da Library Genesis e Sci-Hub por tornar possível o
aprofundamento bibliográfico deste e tantos outros trabalhos.
À Universidade Federal de Ouro Preto e ao Programa de Pós-graduação em Estética
e Filosofia da Arte por acreditarem em minha pesquisa. Aos queridos mestres e funcionários
do departamento, em especial ao Desidério Murcho por todo incentivo e professor Romero
Freitas por todas as aulas e diálogos enriquecedores.
Ao meu querido orientador Rainer Patriota por toda compreensão, confiança,
conversas e ensinamentos durante essa dura jornada, meus sinceros agradecimentos.
Aos membros da banca Clóvis Salgado e Edilson Lima por aceitarem o convite e
enriquecerem este trabalho.
À Universidade Federal de Minas Gerais pela minha formação e ensinamentos
durante a graduação em Filosofia. Às queridas mestras Lívia Guimarães, Virginia
Figueiredo, Giorgia Cechinatto por todas as inspirações e ensinamentos. E aos queridos
mestres, Antônio Lopes Alves, Eduardo Soares e Marcelo Marques (in memorian). À
Fundação Universitária Mendes Pimentel por toda assistência estudantil incluindo a
psicológica, financeira e social, sem a qual dificilmente eu teria concluído a graduação.
À Marcia Tiburi e Vítor Guerreiro por toda inspiração, diálogos e ensinamentos.
Aos colegas de mestrado do IFAC Matheus Drummond, Pâmela Góis, Adriano
Menezes, Pablo Sathler e Tereza Lobato por todo afeto e incontáveis trocas de experiências
e conversas enriquecedoras.
Aos queridos amigos Juliana Alves e Bruno Augusto por todo carinho e incentivos
ao longo desses anos de amizade. À Elba Oliveira (minha constante) por sempre estar ao
meu lado me apoiando, se doando e me fazendo acreditar na força de um abraço.
À minha amada esposa Raquel Souza pelo infinito companheirismo, compreensão,
paciência e crença na conclusão desse trabalho. Aos nossos filhos de quatro patas Dara e
Luth por todo afeto e companhia diária durante essa difícil empreitada.
À minha mãe Dora por sempre me amar e incentivar.
Filha de Lula e Dilma, afilhada de Haddad.
AOS QUE HESITAM
Você diz:
Nossa causa vai mal.
A escuridão aumenta. As forças diminuem.
Agora, depois que trabalhamos por tanto
tempo
Estamos em situação pior que no início.
Mas o inimigo está aí, mais forte do que
nunca.
Sua força parece ter crescido. Ficou com
aparência de invencível.
Mas nós cometemos erros, não há como
negar.
Nosso número se reduz. Nossas palavras de
ordem
Estão em desordem. O inimigo
Distorceu muitas de nossas palavras
Até ficarem irreconhecíveis.
Daquilo que dissemos, o que é agora falso:
Tudo ou alguma coisa?
Com quem contamos ainda? Somos o que
restou, lançados fora
Da corrente viva? Ficaremos para trás
Por ninguém compreendidos e a ninguém
compreendendo?
Precisamos ter sorte?
Isto você pergunta. Não espere
Nenhuma resposta senão a sua.
(BRECHT, Bertolt. Poemas, 2000, p. 186).
RESUMO
A presente dissertação visa apresentar e analisar os principais problemas acerca da
ontologia das obras musicais. Apesar de apresentarmos neste trabalho questões pertencentes
à filosofia da arte em geral, buscou-se priorizar a música, mas não apenas como temática, e
sim por seus problemas suis generis. Temos, portanto, problemas da natureza da música
(ontologia e definição) e também problemas da nossa relação com a música, estes são de
(expressão), pois busca-se compreender se a música é capaz de exprimir, evocar ou
representar emoções.
Esta pesquisa almeja discutir a questão da definição musical: “O que é uma
música?”; e dois dos principais problemas da ontologia da música: (A) “A qual categoria
ontológica pertence uma obra musical?”; e (B) “O que é uma obra musical?”. Adotaram-
se algumas perspectivas históricas, contudo, majoritariamente usaram-se concepções
contemporâneas e de viés da tradição analítica da filosofia.
Em suma, buscamos revisar e analisar as principais correntes que abordam o caráter
ontológico da música. Desse modo, pretendeu-se responder em termos ontológicos se a obra
musical é algo concreto, abstrato e se segue as relações metafísicas do tipo-token.
Ao fim de nossa análise concluimos ser o platonismo musical a corrente que melhor
responde aos problemas aqui levantados.
Palavras-chave: Ontologia da música; Filosofia da Música; Platonismo Musical,
Estética Musical, Música e Neurociência.
ABSTRACT
The present dissertation aims to present and analyze the main issues about the
ontology of musical works. Although we present in this work questions belonging to the
philosophy of art, in general, we sought to prioritize music, not only as thematic, but for its
suis generis problems. We, therefore, have problems of the nature of music (ontology and
definition) and also problems of our relationship with music, these are of (expression),
because it seeks to understand if music is able to express, evoke or represent emotions.
This research aims to discuss the question of musical definition: “What is a
song?”; and two of the main problems of music ontology: (A) “Which ontological category
does a musical work belong to?”; and (B) “What is a musical work?”. To do so, some
historical perspectives were adopted, however, most contemporary and biased conceptions
of the analytical tradition of philosophy were used.
In short, we seek to review and analyze the main currents that approach the
ontological character of music. In this way, it was intended to answer in ontological terms if
the musical work is something concrete, abstract and/or if it follows the metaphysical
relations of the token-type.
At the end of our analysis we conclude that musical Platonism is the current that
best responds to the problems raised here.
Keywords: Ontology of Music, Philosophy of Music, Musical Platonism, Aestetics
of Music, Music and Neuroscience.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 11
1 A QUESTÃO DA DEFINIÇÃO MUSICAL .................................................................. 16
1.1 O que é música? ................................................................................................................ 16
1.2 Música e emoções.............................................................................................................16
1.2.1 Emoção musical e neurociência..................................................................................21
1.3 O conceito de música de Jerrold Levinson...................................................................... 24
1.4 O conceito de música de Andrew Kania..........................................................................28
1.5 John Cage e sua 4’33’’..................................................................................................32
1.5.1 A perspectiva de Levinson sobre a 4’33”.....................................................................34
1.5.2 A perspectiva de Kania sobre a 4’33”.........................................................................36
1.5.3 A perspectiva de Stephen Davies sobre a 4’33”..........................................................38
1.5.4 A perspectiva de Julian Dodd sobre a 4’33”................................................................42
2 MÚSICA E SUAS CARACTERÍSTICAS ONTOLÓGICAS ......................................43
2.1 Música e seu caráter sui generis...................................................................................43
2.2 Realismo dos Universais...............................................................................................44
2.3 A teoria tipo/token...........................................................................................................49
2.3.1 Propriedades transmitidas/compartilhadas entre tipos e tokens................................50
2.3.2 São os tipos universais?.................................................................................................58
3 O QUE É UMA OBRA MUSICAL?................................................................................62
3.1 A Restrição Pragmática ...................................................................................................63
3.2 A abordagem Nominalista................................................................................................71
3.3 Eliminativismo..................................................................................................................80
3.4 A hipótese da ação-tipo e a teoria performativa...............................................................82
3.5 A abordagem Idealista......................................................................................................86
3.6 Platonismo Musical..........................................................................................................88
3.6.1 Platonismo Radical........................................................................................................88
3.6.2 Platonismo Simples.......................................................................................................92
CONCLUSÃO.......................................................................................................................96
BIBLIOGRAFIA................................................................................................................113
11
INTRODUÇÃO
O presente trabalho está estruturado em três capítulos, utilizo-me nos dois primeiros
de concepções históricas e contemporâneas para apresentar e discutir problemas
fundamentais do debate acerca da Filosofia da Música, tendo como intuito preparar terreno
para no terceiro capítulo me aprofundar nos problemas de caráter ontológico da música. Para
isso seleciono os seguintes tópicos: 1) definição do conceito de música; 2) metafísica e
ontologia da música; 3) ontologia das obras musicais.
O primeiro capítulo busca encontrar uma resposta satisfatória para a pergunta “O
que é uma música?”, ou seja, pretende-se estruturar uma resposta de caráter semântico para
a definição do conceito música. Desse modo, se faz necessário determinar quais
características um dado evento sonoro precisa possuir para que este seja classificado como
música. Em um primeiro momento apresento a questão do caráter emocional na música, que
para alguns é uma característica essencial da música, busco, portanto apresentar a relação
existente entre música e a expressão de emoções. A temática música e emoção é sem dúvida
a questão filosófica mais antiga examinada na Filosofia da Música. Tomarei como ponto de
partida as perspectivas de Platão e Aristóteles. Em um segundo momento apresentarei a
primeira explicação genuína da música absoluta, a de Eduard Hanslick (1825-1904). O senso
comum nos diz que a música tem a capacidade de exprimir emoções. O que isso quer dizer?
Será que há na música sentimentos como raiva, melancolia, euforia, etc.? Pelo que se sabe
só é possível haver emoções quando há algum tipo de estado mental. Nesse caso, haverá
estados mentais na música? 1
Platão exprimiu a possibilidade de que a música possua a capacidade de produzir
estados emocionais no ouvinte. Já Aristóteles sugeriu que a música “imita” ou representa as
emoções. Hanslick foi defensor da teoria de que a música absoluta deve ser considerada uma
estrutura sonora puramente formal, sem qualquer significado emocional. Sabemos que
diferentes ouvintes podem ter emoções diferentes acerca da mesma peça musical. E muitos
deles mesmo que em estados emocionais diferentes, são capazes de concordar que certa peça
musical é triste ou alegre. Podemos estar tristes e reconhecer que uma música é alegre, e
vice-versa. Sendo assim, parece haver algo na música capaz de nos fazer dizer se ela é triste
1 Os termos “emoções” e “sentimentos” serão utilizados neste trabalho como equivalentes.
12
ou alegre. Mas o quê? E como? Utilizo-me da neurociência para apresentar os atuais
posicionamentos científicos como tentativa de resposta para a questão.
O problema da definição do conceito música se inicia ao tentar se definir o que é de
fato a «música». A explicação do conceito de música geralmente começa com a ideia de que
música é um som organizado. Porém, existem outras coisas que são sons organizados e que
não são músicas, como por exemplo, a fala humana, os sons de animais não-humanos e os
sons que as máquinas fazem. Filósofos como Roger Scruton (1997) defendem a existência
de pelo menos uma condição necessária para que a música seja de fato um som organizado.
A condição seria o apelo à “tonalidade” ou características musicais como afinação e ritmo.
Porém, é difícil definir o que é um som afinado, um maestro conservador poderia ter uma
opinião diferente da de um maestro não conservador. E isso faria com que o debate caísse
num subjetivismo. Eis um exemplo da dificuldade de se definir o que é uma obra musical: A
obra 4’33’’ de John Cage (1952) constituída apenas por silêncios (som ambiente) pode ser
considerada realmente uma música? Se seguirmos o presuposto de que qualquer som em
qualquer circunstância é música, então teremos um esvaziamento do conceito de música, o
que aparenta ser algo implausível. Para tal questão apresentarei as perspectivas dos filósofos
Jerrold Levinson, Julian Dodd, Stephen Davies e Andrew Kania.
O segundo capítulo visa responder a pergunta “A qual categoria ontológica
pertence uma obra musical?”, busca-se entender qual seria a natureza relacional entre as
obras musicais e suas instâncias. Quando se questiona o tipo de coisa que é uma OMs2, a
pergunta é sobre a qual categoria ontológica ou metafísica a peça musical pertence, ou seja,
busca-se saber se a OMs é algo universal, particular, físico ou mental. Para as classificações
ontológicas serão extremamente úteis não apenas os escritos clássicos de Platão e Aristóteles
sobre o realismo dos universais, mas também os escritos contemporâneos de Wolheim e
Wolterstorff.
Desse modo, caberá também expor argumentos que demonstram o fato de a música
colocar problemas sui generis, ou seja, que não se colocam a propósito das outras artes.
Veremos numa pré-análise que a obra musical não aparenta ser um objeto concreto e sim
abstrato.
Os objetos abstratos colocam problemas sui generis: se existem serão eternos.
Desse modo, existem em todos os momentos do tempo, ou são intemporais? Sendo
intemporais não existirão em momento nenhum do tempo? A música (instrumental), pode
2 A partir de agora os termos: ‘obra musical’ e ‘obras musicais’ são passíveis da seguinte abreviação: ‘OMs’.
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ser considerada um objeto abstrato, mas caso ela seja de fato um objeto abstrato, não possui
existência temporal. Sendo assim, como consegue ter relações temporais com particulares
concretos?
Tomemos a 5ª Sinfonia de Beethoven como exemplo, se essa obra for uma entidade
concreta, onde ela está nesse exato momento? Estaria na gravação de um Cd, vinil ou
pendrive que tenho em minha casa, ou nas outras milhares de gravações diferentes que se
encontram nas casas das outras pessoas ao redor do mundo? E se está em tantas casas
diferentes ao mesmo tempo, como é possível afirmar de maneira coerente que existe uma
única 5ª Sinfonia de Beethoven?
Alguns filósofos da música defendem que talvez essa obra se encontre apenas na
partitura original e que todas as outras interpretações a tomam como referência. Porém, a
partitura nada mais é do que um papel pintado com notações musicais, e um papel pintado
não é música, nem mesmo as notações musicais em si são músicas. As partituras não são
audíveis, são apenas um conjunto de símbolos impressos ou desenhados. E estes símbolos
servem para representar aquilo que ouvimos, mas não são de fato aquilo que ouvimos. Se
alguém roubar a partitura original de uma obra musical estará roubando apenas a partitura,
não estará roubando a obra:
Será que a obra é a partitura? Mas a obra é aquilo que ouvimos numa execução e
as partituras não são audíveis [...] Se alguém roubar a partitura original de uma
obra não roubou a obra, apenas a partitura da obra, mas uma pintura é roubada
quando o objeto físico pintado pelo autor é roubado. Parece impossível roubar
obras musicais, o que seria estranho se a obra fosse um objeto físico localizável.
(O único sentido em que é possível roubar uma obra musical é alguém fazer-se
passar pelo seu compositor). (GUERREIRO, 2014, p.24-25).
Veremos que os filósofos idealistas da música afirmam que a obra musical nada
mais é do que aquilo que estava na mente do compositor no momento da atividade
composicional. Se os últimos estiverem certos, a obra 5ª Sinfonia de Beethoven não existe
mais, tendo em vista que seu compositor faleceu em 1827. Mas o que significa dizer
exatamente que as obras musicais não passam de entidades mentais? Parece-me haver dois
significados para tal afirmação: ou se defende que a obra é um estado mental, tal como
intenções, crenças, emoções, ou se afirma que a obra é o conteúdo de alguns desses estados.
Não creio que a primeira hipótese faça algum sentido, tendo em vista que as entidades
mentais não são algo que possamos ouvir ou executar em um instrumento. A segunda
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hipótese nos diz que a obra, caso realmente exista, é algo extramental, que pode ser
representada mentalmente.
O terceiro capítulo busca esclarecer a pergunta “O que é uma obra musical?”, ou
seja, pretende-se evidenciar o caráter ontológico e metafísico da música, portanto, se procura
entender de que tipo ou (tipos) de coisas é uma obra musical. Como forma de apresentar e
analisar o problema do caráter ontológico da música, se faz necessário expor, entre outras
correntes, as concepções platônicas que emergiram na década de 1960 como resposta para o
que é uma obra musical.
O platonismo musical é atualmente o ponto de vista mais influente na filosofia da
música, já que é a teoria que mais “respeita” parte das nossas intuições pré-teóricas acerca
das obras musicais. De acordo com tal teoria, a obra musical nada mais é do que uma
estrutura sonora, um padrão rítmico, tonal, comum a todos os eventos sonoros que são
execuções ou reproduções da mesma obra. Para tornar mais compreensivo, pode se pensar
que as execuções exemplificam ou instanciam a estrutura sonora. O platonismo musical leva
esse nome por uma semelhança com a teoria de Platão dos paradigmas imateriais e
intemporais das coisas existentes no mundo físico. Exemplos de possíveis entes abstratos e
não musicais são os números e a triangularidade. O platonismo musical possui duas
correntes teóricas, a saber, o platonismo simples ou leve e o platonismo radical ou
complexo.
O platonismo simples tem a visão de que as obras musicais são “tipos indicados” de
estruturas abstratas criadas por seus compositores. Isto é ontologivamente intrigante, tendo
em vista a difícil compreensão dos objetos abstratos. Esta visão é motivada por uma série de
características da prática musical, incluindo a intuição de que as obras musicais são criáveis,
e também da atribuição de várias propriedades estéticas e artísticas das obras. Já de acordo
com o platonismo radical, obras musicais são existentes eternos e são descobertos por seus
compositores.
Se tomarmos como base a tese do platonismo radical a 5ª Sinfonia de Beethoven
será algo que sempre existiu, uma espécie de estrutura sonora, da qual o compositor alemão
apenas se limitou a descobrir. Se esse for o caso, tal obra não seria fruto de uma criação
humana e Beethoven não seria de fato um compositor, mas sim um descobridor.
Para além dos dois tipos de platonismo musicais temos outras correntes que buscam
responder a pergunta “O que é uma obra musical?”. Neste caso, destaco as seguintes
abordagens: nominalismo; eliminativismo; a hipótese da ação-tipo e a teoria performativa; e
a abordagem idealista. A definicação de música que se busca nesse capítulo é mais do que
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meramente definir o termo «música», ou seja, é mais do que fazer uma definição nominal.
Busca-se é uma definição essencialista, que dê conta das condições necessárias e suficientes
para que algo pertença à extensão de um dado conceito.
Desse modo, me parece bastante pertinente o estudo do platonismo musical e de
como suas concepções contemporâneas acerca da Filosofia da Música podem contribuir para
responder ou clarificar as questões do caráter ontológico da música.
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1. A QUESTÃO DA DEFINIÇÃO MUSICAL
1.1 O que é música?
A natureza da música é um tema bastante discutido desde os primórdios da
filosofia, podemos afirmar que essa temática é abordada de forma diacrônica tanto na
história da filosofia Oriental quanto Ocidental. Apesar da constante análise do tema, não
vemos dentro da história, de uma forma geral, uma procura realmente sistemática pela
definição musical. Possivelmente o tópico da música sempre esteve inserido em teorias mais
abrangentes, e os filósofos, por sua vez, não apresentavam tanto interesse por uma definição
conceitual do objeto musical3. Cabe destacar que a limitada preocupação em se definir
música não é algo exclusivo de grande parte da história da filosofia, este desinteresse talvez
seja igualmente comum entre músicos, apreciadores da música e também dentro da
musicologia. Analisar a música sem fazer uso da concepção de juízo de valor estético é
ainda hoje algo incomum, entretanto, alguns filosófos e estetas tentaram caracterizar o
objeto musical através de formas não conceituais. Seguindo essa perspectiva, temos um
tópico importante, música e emoções que, sem dúvidas, é o tema mais discutido dentro da
história da filosofia da música. Alguns levantam a hipótese de que a capacidade da música
em suscitar emoções seja algo determinante para caracterizá-la e defini-la. Sendo assim,
começaremos examinando tal tópico.
1.2 Música e emoções
Música e emoções talvez seja a questão filosófica mais antiga examinada na
filosofia da música. Desde Platão e Aristóteles são levantadas hipóteses de que a música4
tenha a capacidade de produzir estados emocionais nos ouvintes e de “imitar” as emoções.
Ainda nos tempos atuais, o senso comum nos diz que a música é capaz de exprimir emoções.
O que isso quer dizer? Será que há na música sentimentos como raiva, melancolia, euforia
3 Entendo como busca conceitual sistemática algo que busque definir x de forma mais direta, sem que
primeiramente seja necessário compreender um sistema teórico de determinado autor, para que posteriormente
se torne possível extrair alguma definição dentro de sua teoria. 4 No presente capítulo o termo “música” restringe-se à instrumental ou absoluta, o uso se justifica pois, a
chamada música “programática” ou “não absoluta” faz uso de uma semântica capaz de efetivamente evocar,
referir ou representar emoções.
17
etc.? Pelo que se sabe só é possível haver emoções quando há algum tipo de estado mental,
nesse caso, haveria estados mentais na música?
Desde a Antiguidade, música e emoção desempenham uma estreita relação, sendo
que, por vezes, suas existências até foram pensadas como dependentes. Temos na Grécia
Antiga a doutrina pitagórica do ethos, que possui a visão da música como força capaz de
afetar o universo e o caráter, podendo também reestabelecer a harmonia perturbada da alma
humana5. Platão, em seu livro X da República, parece atribuir à música apenas o efeito de
produzir estados emocionais no ouvinte, condenando-a juntamente com as demais artes, por
estas produzirem somente afetos ao invés de educação-ética6. Já Aristóteles em seu livro
VIII da Política sugere que a música “imita” ou representa as emoções, seu poder educativo
estaria no uso prudente do conhecimento dos seus efeitos sobre a alma humana.7 No séc.
XIX, temos como o maior esteta musical Eduard Hanslick, este defende a teoria de que a
música absoluta é uma estrutura sonora puramente formal, sem qualquer significado
emocional. Dada sua importância teórica como base argumentativa na história da estética
musical e, posteriormente na filosofia da música, analisaremos com maior atenção sua
teoria.
São inúmeras as situações em que a música possui um determinante papel no
desencadeamento de estados emotivos, sejam eles conscientes ou não, por vezes, até
incontroláveis. Sabemos que diferentes ouvintes podem ter emoções distintas acerca da
mesma peça musical, podendo até concordar que seja triste ou alegre. É perfeitamente
concebível imaginarmos que uma pessoa P esteja triste e consiga reconhecer que uma
música é alegre ou estar alegre e reconhecer que uma música é triste. Mas mesmo que assim
o seja, essa característica seria realmente determinante para caracterizar a música?
Comumente, a questão da música expressar emoções é dada como simples
obviedade. Um dos argumentos para tal defesa é a existência de uma linguagem capaz de
descrevê-la em termos emocionais. Frases como: “Esta música expressa angústia”; “o violão
de cordas de aço nas canções de country geralmente são melancólicas”; e “x é uma música
capaz de incitar orgulho”; exemplificam o uso dessa linguagem. No entanto, não se segue
das afirmações acima que exista de fato alguma relação causal entre música e emoções. O
simples fato de através da linguagem descrevermos uma dada relação, não garante a sua
existência. Ademais, sentimentos de angústia, melancolia e orgulho não são caracterizados
5 GROUT, Donald, PALISCA, Claude V. História da Música Ocidental. Lisboa: Gradiva, 2005, p.20.
6 FUBINI, Enrico. Estética da Música p. 74-75.
7 FUBINI, Enrico. Estética da Música p. 80-81.
18
como estados de espírito ou meras sensações, são na realidade sofisticadas emoções
intensionais8.9
Seria possível a música provocar emoções definidas nos ouvintes? É intuitivo
pensarmos parte dos aspectos centrais da emoção do seguinte modo:
emoção como conteúdo intensional (são acerca de algo)
e ou
emoção como aspecto qualitativo ou fenomenológico (são sentidas).
Não afirmo que todas as emoções em todos os casos sejam ao mesmo tempo
intensionais e qualitativas, contudo, na filosofia da música grande parte das emoções em
causa possuem conjuntamente um teor intensional e fenomenológico. Na visão de Zangwill
(2004, p.2): “Estipulo que as emoções têm conteúdo intensional – estão direccionadas ou
para um estado de coisas ou para um objecto. Isto exclui estados de espírito sem conteúdo”.
Já Hanslick (1973) reconhece que a música pode evocar emoções, mas, de modo
semelhante, as emoções podem ter outras causas fora da arte. Seu argumento tenta mostrar
que certas emoções não são de todo essencial à música (ou qualquer outra arte). Segundo o
autor, a sensação [Empfindung], seria o primeiro passo percorrido em busca de condições
favoráveis que tornam possíveis o verdadeiro deleite estético. Já a fantasia [Phantasie], seria
responsável por acolher o belo, sendo assim, o sentimento não exerce tal função. De modo
geral, como poderíamos entender essa fantasia? Ela deveria ser entendida, como uma
instância estética capaz de contemplar enquanto representa e julga, portanto, um contemplar
com entendimento.
Nas palavras do autor:
A peça sonora provém da fantasia do artista para a fantasia do ouvinte.
Evidentemente a fantasia, diante do belo, não é apenas um contemplar, mas um
contemplar com entendimento, isto é, um representar e um julgar. [...] Além disso,
a palavra “contemplação”, transferida há muito das representações visuais para
todos os fenômenos sensíveis, corresponde de modo excelente ao ato do ouvir
atento, que consiste numa consideração sucessiva das formas sonoras.
(HANSLICK, 1973, p. 5)
8 A palavra “intensional” aqui usada é mesmo escrita com s, pois se refere ao conceito filósofico da intesão que
diz respeito ao conteúdo de um conceito ou de um estado mental como uma emoção. Por exemplo: se tenho
medo de cobras porque tive notícia de muitos ataques, pode-se dizer que a intensão (conteúdo) do meu medo é
a crença de que cobras sejam animais perigosos que, por vezes, atacam de forma fatal. Além da intensão, o
medo tem outra componente: a reação fisiológica que a pessoa que o sente tem. 9 ZANGWILL, Contra a Emoção: Hanslick Tinha Razão Acerca da Música, p. 2.
19
Considero importante ao pensarmos em “música e emoções”, direcionar nossa
atenção à própria música e a experiência que temos dela em si. Desse modo, é possível
distanciarmos da concepção defendida por alguns estetas de que, ao ouvirmos música, temos
sentimentos sem objeto. Destaco a perspectiva de que as emoções são tanto conteúdo quanto
objeto da música, o objetivo da música seria provocar e exprimir emoções definidas nos
ouvintes, ou seja, se ouvirmos uma música e sentirmos alegria significa que o compositor
cumpriu o seu propósito de nos causar alegria, esse foi o objetivo dos músicos desde sempre,
com exceção de alguns compositores do romantismo e, sobretudo da modernidade. Cabe
aqui tentar esclarecer os termos “provocar” e “exprirmir”, estes devem ser entendidos
respectivamente (ZANGWILL, 2004):
i. Ao afirmarmos que música α provoca uma emoção definida β, nos faz concluir que
todo ouvinte ao ouvir α em condições similares também sentirá β.
ii. Ao afirmarmos que a música α exprimi uma emoção definida β, significa que
somos capazes de compreender a emoção que está sendo indicada, sem a
implicação de a estarmos sentindo.
Contudo, o efeito da música e de qualquer outro objeto nas emoções da nossa
espécie é bastante variável, pensando na nossa experiência como ouvintes: podemos nos
alegrar ao ouvir uma música projetada para que seja triste ou nos entristecer ouvindo uma
obra musical concebida como alegre. Temos também casos em que a técnica impera sobre as
oscilações afetivas, exemplo disso é quando o próprio compositor que mesmo estando triste
é capaz de compor uma música alegre e ao estar alegre é capaz de compor música triste.
Parece claro que a música não é capaz de nos causar emoções padronizadas e mesmo que o
fosse isso não seria essencial, ou seja, não seria aquilo em que consiste ser a música, pois
não consegue comportar uma excelência da sua própria existência.
O fato de Hanslick defender que a música não é capaz de exprirmir ou provocar
emoções definidas demonstra que sua ideia parte da convicção de que as emoções possuem
um elemento intensional, algo que envolva estados mentais, como crenças e desejos, etc.
Como bem observa D’Aversa:
É demasiado difícil imaginar como uma crença ou desejo poderiam ser
representados por meio de sons sem significado. [...] Se a música não pode
representar estados mentais, então não pode representar emoções definidas, uma
vez que estas envolvem estados mentais; a música não pode representar estados
20
mentais; logo, a música não pode representar emoções definidas. (D’AVERSA,
2010, p.2-3).
Sendo assim, a música por não oferecer uma linguagem adequada, seria incapaz de
representar estados mentais. Tal posição corrobora com o argumento de Hanslick visando a
música como algo assemântico, rechaçando então, qualquer analogia entre música e
linguagem. Um grande equívoco é cometido pelos leitores da obra “Do Belo Musical”:
muitos acreditam que os argumentos de Hanslick negam a possibilidade de nos
emocionarmos com a música. No entanto, o que Hanslick nega é a capacidade da música
exprimir ou evocar emoções definidas. Em nenhum momento o autor afirma que a obra é
incapaz de suscitar sentimentos nos ouvintes. Em sua perspectiva, os sentimentos apenas
não podem ser considerados como o conteúdo da música, pois de acordo com Hanslick, a
música possui em si mesma um significado, o que seria demonstrado através dos próprios
sons e de suas relações internas.
O autor se opõe ao uso dos sentimentos como princípio estético, uma vez que, em
sua visão, o belo musical reside nas próprias características sonoras, que, portanto, não
requerem nenhuma referência a algum conteúdo exterior. A beleza em uma obra musical
existiria em decorrência das suas determinações sonoras: harmonia, ritmos etc.
Evidenciando a sua visão:
É um belo especificamente musical. Com isto, entendemos um belo que, sem
depender e sem necessitar de um conteúdo exterior, consiste unicamente nos sons
e em sua ligação artística. As engenhosas combinações de sons encantadores, seu
concordar e opor-se, seu afastar-se e reunir-se, seu elevar-se e morrer - é isto que,
em formas livres, se apresenta à contemplação de nosso espírito e dá prazer
enquanto belo (HANSLICK, 1992, p. 61).
Em seu terceiro capítulo, Hanslick estabelece uma autonomia da música em relação
à matemática e à linguagem. Primeiramente ele concebe a matemática como algo mêcanico,
nega que a composição passe por qualquer espécie de “cálculo”. O papel exercido pela
matemática em relação à música estaria restrito à parte que é também física, ou seja, seriam
das vibrações, ondas sonoras, dissonância, consonância etc. Sobre a linguagem, o autor
defende o quão são fracas as anologias que tentam ser estabelecidas entre música e
linguagem. Em sua perspectiva, a música não tem nenhuma obrigação de expressar conteúdo
externo, qualquer tipo de significação da música encontra-se nela mesma10
, ou seja, ao
contrário da linguagem em que o som é apenas meio, tendo como finalidade expressar algo
10
VIDEIRA, 2005, p.246.
21
fora dele, na música o som é um fim em si mesmo. Nesse sentido, dois pontos se tornam
nítidos: a defesa feita por Hanslick da autonomia da música; e a cobrança direcionada aos
estetas, de tomarem como importante tarefa a diferenciação entre a essência da música e
essência da linguagem. – um dos principais problemas da Estética musical, segundo o autor
(a relação entre música e linguagem).
1.2.1 Emoção musical e neurociência
Já no século XX através de alguns filósofos contemporâneos que seguem uma
tradição analítica, a busca por uma definição conceitual do objeto musical passou a ser um
pouco mais usual11
. Contudo, qual seria a causa do escasso interesse por uma definição do
que é a música? Prontamente não podemos negar a hipótese da obviedade, existe a
possibilidade de não sentirmos necessidade de defini-la em razão de acharmos evidente o
que é ou não música. Ademais, raramente não obtemos êxito ao identificar algo sonoro
como sendo música, ruído ou uma simples fala. Mesmo quando temos contato com algum
objeto musical desconhecido, por exemplo, uma música oriental, praticamente não temos
dúvida de que se trata de uma música o que estamos a ouvir, mesmo que não saibamos sua
origem, qual é o seu final, se ela apresenta erros em sua execução ou quem a compôs.
A música carrega em si quase um status de universalidade, sabemos que ela é
pancultural, muitíssimo antiga, surge em formato de canção nas crianças quase que de forma
natural, e ela de algum modo parece nos acompanhar não somente na vida adulta, mas
também em nossa idade mais avançada. Ao que tudo indica a música é capaz de desenvolver
raízes profundas no cérebro humano. Prova disso é que na terceira idade, fase em que
estamos mais suscetíveis a desenvolver alguma doença neurodegenarativa, ela ainda
permanece em nós, mesmo que de forma escondida, numa espécie de resguardo aos danos
causados à nossa memória12
.
O campo da neurociência vêm apresentando inúmeras pesquisas que visam
elucidar o funcionamento cerebral diante das emoções suscitadas através da música/canção,
também nomeada, como emoção musical. Nas últimas décadas, tem sido comum, por meio
de técnicas avançadas de imagem por ressonância magnética/ funcional (IRM-IRMF) e
eletroencefalografia (EEG), a realização de mapeamentos das atividades neurológicas de
11
A filosofia analítica em sua origem buscava definir nossos termos de forma precisa, fazendo uso deles de
forma prudente com o intuito de assim progredir filosoficamente. 12
SACKS, Oliver. “Musicofilia”, Ed. Relógio D’Água, 2008.
22
voluntários, enquanto estes, participam de simples audições musicais. Estes mapeamentos
demonstraram não apenas a ativação de diversas áreas do cérebro, como também a
capacidade de a música atingir de forma ampla e simultânea: memória, linguagem,
motricidade e emoções. Através destes estudos, estabeleceu-se na neurociência um certo
consenso de que tanto a emoção musical, quanto a emoção em geral, são causadas por uma
excitação nervosa. Isto porque o fenômeno físico/acústico do som, afeta nosso sistema
nervoso autônomo que é a base da nossa reação emocional, este suscita reações fisiológicas
ligadas às vibrações sonoras, que por sua vez, estão ligadas às reações psicológicas13
.
Tradicionalmente os neurocientistas afirmam que o cerebelo14
estaria ligado apenas
à noção de tempo e ao movimento. Não obstante, o neurocientista e também músico Daniel
Levitin (2010) afirma ter constatado em suas pesquisas que enquanto seus voluntários
ouviam música, o cerebelo recebia várias ativações, porém, quando ouviam apenas ruídos o
cerebelo não era ativado. Segundo o pesquisador, no momento em que a música causa
emoção, a estrutura do cerebelo é ativada, modulando a produção e liberação pelo tronco
cerebral de neurotransmissores dopamina e noradrenalina, além da amídala, área mais
importante do processamento emocional no córtex15
. Levitin também destaca que a terapia
com uso da música, chamada de musicoterapia16
, contribui positivamente para as emoções,
além de auxiliar na compreensão das informações cognitivas e ainda, induziria a produção
de substâncias químicas cerebrais que são fundamentais para a sensação de bem-estar e
prazer, a saber: dopamina e serotonina. Estes e outros estudos recentes demonstram como o
uso da música visando evocar emoções, auxilia no tratamento de distúrbios e doenças como:
depressão, Parkinson e Alzheimer. O cerebelo por exercer um papel de suma importância
em processos cognitivos complexos “tais como funções executivas, aprendizagem, memória,
13
SEKEFF, 2007, p.61.
14 “O cerebelo humano é uma das estruturas cerebrais com maior parte do nosso sistema nervoso.
Tradicionalmente, tem sido atribuído um papel proeminente na implementação e coordenação de atos motores
e manutenção do tom muscular para controlar o equilíbrio, devido a sua posição próxima as principais vias
sensoriais e motoras. No entanto, nas últimas décadas, a neurociência clínica expandiu significativamente a
visão tradicional do cerebelo como um mero coordenador das funções motoras, focando o interesse de pesquisa
atual sobre o papel do cerebelo em processos cognitivos complexos, tais como funções executivas,
aprendizagem, memória, funções visuo-espaciais ou mesmo contribuindo para a esfera emocional e área
linguística”. MORAES, Alberto Parahyba Quartim de - O Livro do cérebro. Vol I. São Paulo. S P, Editora
Duetto - 2009, p. 63. 15
LEVITIN, 2010, p.206. 16
“Musicoterapia é a aplicação controlada de atividades Musicais especialmente organizadas, com a intenção
de favorecer o desenvolvimento e a cura durante o tratamento, a educação, e a reabilitação de crianças e
adultos com defasagens motoras, sensoriais ou emocionais. O objetivo do musicoterapeuta é centrado no
cliente e não na música”. BRUSCIA, K. Definindo a Musicoterapia. Rio de Janeiro:Enelivros, 2000, p. 274.
23
funções visuo-espaciais ou mesmo contribuindo para a esfera emocional e área linguística17
”
parece nos auxiliar nessa identificação da música em meio a outros objetos sonoros, uma vez
que não é ativado ao ouvirmos ruído, mas é ativado ao ouvirmos música. Destarte, parece
mesmo haver evidências científicas que corroboram com a ideia de que temos uma
facilidade em reconhecer algum objeto sonoro como sendo música, podendo distingui-lo de
ruídos e outros objetos sonoros que não são de fato música.
Ainda que a neurociência tenha muito a elucidar sobre a função da música em
nosso cérebro e comportamento, ela pouco ou nada tem a nos oferecer em relação a
definição real da música, ou seja, o que procuramos aqui é uma definição essencialista, algo
que contemple definições em termos de condições necessárias e suficientes. Desse modo,
para que algo pertença à extensão de um dado conceito é preciso satisfazer condições
(individualmente) necessárias e (conjuntamente) suficientes. A palavra música em si não é a
questão problemática, o que se busca é estabelecer critérios com o intuito de que algo os
satisfaça para ser de fato um exemplo de música. Portanto, não se busca os critérios pelos
quais normalmente já reconhecemos algo como música18
. Apesar de termos uma noção
quase intuitiva do que é a música, defini-la não é uma tarefa tão óbvia assim. Existem casos
marginais e possibilidades de erro nessa identificação, pelo fato de algumas coisas que soam
musicais não serem música. Como bem coloca Stephen Davies:
A fala infantil, línguas de tom e acentos linguísticos de “canto-canção”, como em
galês. Além disso, alguns sons padronizados podem ser confundidos com música:
incluindo arte sonora, sons que não são feitos humanamente, como o coro noturno
de rãs em um campo de arroz, e sons que não são primariamente destinados a ter o
caráter sonoro que eles têm, tais como efeitos auditivos incidentais na fábrica de
taças de cristal. (DAVIES, 2012, p.535).
Definir o termo música parece mesmo ser uma tarefa assumida por filósofos
contemporâneos, sobretudo os que pesquisam a temática da filosofia da música.
Apresentarei na próxima seção as propostas de definições mais avançadas, estabelecidas por
Jerrold Levinson e Andrew Kania.
17
MORAES, Alberto Parahyba Quartim, op. cit., p.63 18
“( o critério pelo qual normalmente reconhecemos um líquido como água, por exemplo, não é o critério que
esse líquido tem de satisfazer para ser água, ou seja, ter uma certa estrutura química). Além disso, o interesse
propriamente filosófico na definição não está meramente em analisar o conceito de música que temos mas o
conceito que é exigido por uma teoria que nos esclareça acerca da natureza das atividades e objetos relevantes
que referimos usando o termo «música»”. (GUERREIRO, 2014, p.18).
24
1.3 O conceito de música de Jerrold Levinson
O filósofo Jerrold Levinson em sua obra Music, Art and Metaphysics19
se propõe a
dar uma resposta funcional a questão o que é música? Seu objetivo é captar um uso bastante
amplo do que a «música» é nos tempos atuais, mas sem que este deixe de ser aplicado da
mesma maneira à fenômenos musicais de culturas diferentes, ou seja, tal definição
necessariamente deve ser capaz de abarcar não apenas as sinfonias de Beethoven, mas
também as canções de Bob Dylan. Antes de iniciar sua proposta de definição, Levinson
deixa claro a distinção entre a pergunta «o que é a música?» e a «de que tipo de coisa é uma
peça musical?». É importante fazer essa diferenciação, pois de fato costumam ser
confundidas. Quando se questiona o tipo de coisa que é uma OMs, a pergunta é sobre a qual
categoria ontológica ou metafísica a peça musical pertence, ou seja, se busca saber se a OMs
é algo universal, particular, físico ou mental.
Na filosofia da música de uma forma geral, a sugestão inicial para definição da
música é de som organizado, Levinson observa que essa caracterização é muito ampla, pois
existem diversos exemplos de sons organizados que não são música: fala humana, sons de
animais não-humanos e sons de máquinas. Pode parecer estranho para alguns que os sons
produzidos por animais não-humanos não sejam enquadrados como música, o canto de um
pássaro como o Uirapuru-verdadeiro20
, por exemplo, não poderia ser considerado como
música. Ocorre que, neste caso, Levinson defende uma definição inicialna qual o som
organizado é humanamente produzido, ou ao menos produzido por criaturas inteligentes às
quais podemos atribuir o status de pessoa. Isso indica que ele tem em mente que a música
deve ser produto de uma ação intencional do ser que produz o som organizado. Outro ponto
que pode parecer estranho é preliminarmente não se levar em conta para definição
características comumente usadas em manuais básicos de música, como por exemplo:
harmonia, ritmo, melodia etc21
. Ocorre que tais características não são capazes de
19
Music, Art and Metaphysics – Essays in Philosophical Aesthetics, Oxford University Press, 1990. 20
Nomente científico: Cyphorhinus arada. 21
“Harmonia- A harmonia é o que resulta da combinação de sons simultâneos, de altura tonal fixa. Apesar de
usarmos o termo «harmonioso» para as combinações consonantes, tanto a consonância como a dissonância são
fenônemos abrangidos pela harmonia. A harmonia de uma peça pode conter muitos acordes dissonantes(...)
Ritmo- Percepcionar ritmo é ter um sentimento de movimento regular numa sequência sonora. Depende da
duração e acentuação dos sons que formam a sequência mas não se confunde com estas. Ter experiência do
ritmo envolve formar expectativas de audição com base na divisão espontânea da sequência em unidades de
tempos fortes e fracos, formando um padrão que se repete. Depende tanto da variação como da uniformidade
(...)
Melodia – Apesar de identificarmos intuitivamente uma melodia como tal quando a ouvimos, aquilo que faz
ao certo uma sequência de sons de ALTURA definida ser uma melodia é objeto de discussão. Normalmente
25
contemplar parte da música antiga, contemporânea e também a música de culturas não
ocidentais. Vejamos alguns exemplos:
- Música sem harmonia: O canto gregoriano é um exemplo de monofonia, nela não
há acompanhamento nem harmonia. Outro exemplo são os solos de shakuhachi, uma flauta
vertical de madeira muito comum na música tradicional japonesa.
- Música sem melodia: A obra pontilhista22
Cinco Peças, op. 5 de Anton Von
Webern (1885-1935) separa cada uma das notas do sistema dodecafônico23
, desse modo,
qualquer uma das notas não estabelecem entre si uma relação melódica. Destaco também
como exemplo a obra A Música Áquatica criada em 1960 por Tôru Takemitsu (1930-1996) a
qual não apresenta melodia. Nessa obra o compositor utiliza-se quase que exclusivamente de
sons gravados de gotas de água. Nela podemos identificar uma estrutura na qual quase não
há uma ideia de densidade sonora, Takemitsu consegue transmitir através de ocorrências e
durações irregulares do silêncio uma impressão de forma não métrica, algo quase pontilhista.
- Música sem ritmo/pulso: Segundo Levinson, alguns gêneros de jazz atmosférico
moderno e composições para sintetizador praticamente são exemplos de músicas que não
possuem pulsação.
Diante de tais exemplos é possível ver que características como harmonia, melodia
e ritmo/pulso apesar de importantes para diversas músicas, não são de fato características
necessárias da música em geral. Além disso, vemos aqui um indício de não haver
propriedades intrínsecas de uma organização sonora para que algo possa ser música
(LEVINSON, 1990). Mas então se não há propriedades sonoras intrínsecas para que algo
seja música, o que faz com que o canto gregoriano, A Música Aquática de Takemitsu e a
Cinco Peças, op. 5 de Webern sejam consideradas/ouvidas como música? Vimos nas seções
chamamos «melodia» a uma sequência de notas que sugere «direção», movimento de «agradável ao ouvido»”
(talvez porque nos seja mais fácil identificar sequências agradáveis como melodias), mas uma melodia não tem
de ser «melodiosa» neste sentido. A melodia é inseparável do RITMO no sentido em que não pode haver
melodia sem ritmo, embora possa haver ritmo sem melodia”. (GUERREIRO, 2014, pp. 262-267). 22
O pontilhismo de Webern é algo marcante na história da música do século XX, ele é um sistema notacional
no qual os sons são pontilhados no silêncio, não havendo assim melodia. 23
O dodecafonismo busca variações em relação ao sistema tonal, foi iniciado na década de 1920 pelo austríaco
Arnold Schönberg (1874-1951), sua inspiração inicial foi o atonalismo, mas posteriormente o considerou
bastante caótico. Construiu, então, um método para organizar os doze sons da escala cromática igualmente.
Essa técnica foi apresentada como “sistema dos 12 sons”, que logo ficou conhecida como dodecafonismo
serial.
26
anteriores que alguns teóricos levantam a hipótese de que a capacidade da música de suscitar
emoções é algo determinante para caracterizá-la, vamos agora examinar tal hipótese através
da concepção analítica de Levinson.
Segundo Levinson, não podemos definir a música por alguma relação especial com
a vida emocional, por mais que todas as músicas pareçam consistir em organizações de som
que agitam a alma, ou afetam as emoções, estes aspectos não são característas capazes de
defini-la. Em suas palavras:
Pode-se pensar que aquilo que faz a percussão africana, o jazz moderno e os
concertos para piano de Mozart serem música é o facto de tudo isto consistir em
organizações do som que agitam a alma ou, mais sobriamente, afetam as emoções.
Ou que talvez exprimem as emoções dos seus criadores. Mas embora a evocação e
expressão emocionais sejam aspectos centrais da maior parte da música, não são
definitivos [...]. O discurso do orador e a lírica do poeta (talvez também o rugido
do leão) podem exprimir as emoções dos seus criadores tanto quanto a Sonata
Pathétique. (LEVINSON, 2014, p.53).
Levinson destaca ainda que muitas músicas nem aparentam ser uma corporização
do estado de espírito do compositor no momento de sua atividade composicional e tampouco
parecem ser um estímulo que busca originar uma resposta emocional do ouvinte. Por estas
razões, a música em sua visão, estaria mais para uma configuração abstrata de sons em
movimento, reflexos de aspectos não individuais e até mesmo não-humanos das coisas24
.
Desse modo, ele descarta que a música possa ser compreendida como «som humanamente
organizado que transmite ou comunica ideias (ou algo semelhante)», por mais que tal
definição consiga incluir diversas OMs, ela é tão ampla que também acaba incluindo sirenes,
campainha, toques de telefone, gritos e mensagens em código Morse.
Outra forma de tentar definir o conceito «música» seria através do elemento da
intencionalidade, afinal nos parece que o som humanamente organizado é produzido com
algum tipo de objetivo ou propósito. Mas que tipo de intenção seria essa? O autor trabalha
aqui com a possibilidade da intenção ser a apreciação estética, tendo em vista que a música é
uma atividade artística e, como arte portanto, teria esse viés apreciativo. A definição
preliminar passa a ser «som humamente organizado para fins de apreciação estética».
Mesmo que tal definição pareça ser um progresso em vista do mero «som organizado» como
definição inicial. Há entretanto, imperfeições relevantes na última proposta, uma vez que,
existem músicas que parecem não ter como objetivo o que consideramos ser «apreciação
estética». Justamente pela emoção, que é mais antiga e essencial na música do que a beleza
24
Levinson (2014) usa como possíveis exemplos a música de gamelão javanesa, a Arte da Fuga de bach,
Makrokosmos de George Crumb, Estudos para Pianola de Conolon Nancarrow e a música ritual tibetana.
27
estética. Temos como exemplo: música para acompanhar rituais, música para a
intensificação do espírito guerreiro e música para dançar25
. Em todos estes exemplos parece
não haver uma atenção específica à beleza ou outras qualidades estéticas da música, ou seja,
não haveria a necessidade de distanciamento para uma apreensão contemplativa puramente
dos padrões sonoros. Essa definição também apresenta outra imperfeição que é a
incapacidade de excluir artes verbais como teatro e poesia. O próprio Levinson destaca que a
poesia também consiste em sons humanamente organizados para apreciação estética,
ocorre que poesia não é música, e os seus sons são dispostos de modo a terem algum
significado. O autor ainda destaca:
Podemos lidar com o problema da poesia exigindo que os sons organizados na
música sejam produzidos com a intenção de serem ouvidos primariamente como
sons e não primariamente como símbolos de pensamento discursivo. Isto não
equivale a afirmar que a música não pode conter palavras – evidentemente as
canções, a ópera, a musique concrète e as colagens musicais contêm palavras-;
sucede apenas que para constituir música a componente verbal tem ou de ser
combinada com material mais puramente sonoro ou, se não tiver esse
acompanhamento, ser tal que há que lhe atender primariamente pelas suas
qualidades sonoras e tudo o que delas sobrevenha. (LEVINSON, 2014, p.55).
Tendo visto que a «apreciação estética» não consegue contemplar todos os
exemplos de objetos musicais, além de incluir outros objetos, Levinson propõe substituí-la
por uma noção de intensificação, pois segundo ele, ao ouvirmos música seja numa sala de
concerto ou durante um ritual, temos nossa vida e ou consciência intensificadas. Desse
modo, todos os fenômenos sonoros categorizados como música aparentam ser direcionados
para uma forma de enriquecimento ou intensificação da experiência, mesmo que aqui não
conste qualquer característica sonora (além da audibilidade) para a definição, este seria o
propósito principal de se fazer música em qualquer época ou lugar. A partir de agora o autor
torna explicito um componente até então implícito: a questão temporal. A noção de tempo é
algo importante para a organização, ou seja, àquilo que torna possível que o som seja
produzido humanamente de forma organizada é a temporalidade. Essa noção acaba por
excluir objetos sonoros que tenham como objetivo produzir acordes de duração bastante
fugazes, e que contenham uma independência em sua apreciação em vista do acorde
25
Talvez um exemplo de música para acompanhar rituais seja os pontos de Umbanda e Candomblé,
religiões afro-brasileiras, estes pontos são cânticos entoados durante a prática do ritual, parte de seu objetivo é
homenagear ou invocar uma determinada entidade espiritual como Iansã, Oxum, Ogum entre outros. Temos
como exemplo de música para a intensificação do espírito guerreiro as canções de combates entre tribos,
28
seguinte. Para Levinson, este tipo de arte não se deve contar como música, pelo fato de não
ter em si o desenvolvimento temporal como algo relevante, portanto, mesmo que para sua
execução bem-sucedida fosse necessário conhecimento e técnica musicais, este tipo de arte
não seria música. Torna-se agora possível apresentar a definição completa de música
elaborada por Levinson:
Música = sons temporalmente organizados por uma pessoa, com o propósito
de enriquecer ou intensificar a experiência, por meio da entrega ativa (p. Ex.,
ouvindo, dançando, executando) aos sons, considerados primariamente ou em grande
medida26
como sons. (LEVINSON, 2014, p.56).
A formulação final apresentada por Levinson descarta o Muzak27
e têm como
objetivo contemplar todos os fenômenos sonoros caracterizados como música: música
clássica, música tradicional, música festiva, música avant-garde, ópera e demais fenômenos
estudados pelos etnomusicólogos. Cabe analisar outra proposta conceitual sob a perspectiva
de mais um filósofo. Veremos na próxima seção a proposta apresentada por Andrew Kania.
1.4 O conceito de música de Andrew Kania
Como vimos nas seções anteriores, o conceito de música não é algo universal,
alguns filósofos tentaram descobrir uma definição capaz de abranger o que grande parte do
senso comum considera como música. Sabemos que a dificuldade começa pela vagueza do
termo «música», pois é um conceito no qual não está exatamente evidente tudo aquilo que
admite ou não admite. O filósofo Andrew Kania (2011) busca para o conceito uma
definição capaz de lidar com essas dificuldades, mas por outro lado, também se permite
classificar os possíveis casos controversos como «casos de fronteira».
guerra e outras manobras militares. Já os exemplos de música para dançar são inúmeros, destaco aqui o
Carimbó, Funk carioca e Soul music. 26
“O propóstio desta última qualificação é permitir casos como o apresentado pela música rap, em que o
conteúdo conceptual verbalmente comunicado pode ser pelo menos tão importante quanto o que se oferece
como organização sonora per se. Talvez não se pretenda que a música rap seja primariamente para ouvir pelas
suas características sonoras distintivas (p. ex., rítmicas, dinâmicas, tímbricas), mas estas constituem ainda um
foco de atenção significativo, se não o mais significativo”. (LEVINSON, 2014, p.62). 27
Muzak também conhecido como música de elevador, levou este nome pois a empresa Muzak fundada no
anos 20 do século passado, foi a primeira a se dedicar à produção de música de fundo ou música ambiente. Este
estilo de música suave e instrumental se tornou algo muito comum em diversos ambientes como por exemplo:
aeroportos, shoppings, elevadores, salas de espera, sistema telefônicos (quando a ligação está em espera) entre
outros.
29
Mesmo que os sons aparentem ser uma característica básica para a música, Kania
esclarece que são apenas condições necessárias, mas estão longe de ser condições
suficientes. Isto porque os sons podem ocorrer sem que estes sejam música (por exemplo: o
som do liquidificador, o som emitido pela máquina de levar roupas etc). Outros tipos de sons
podem soar mais musicais, como o canto de uma ave, por exemplo - e mesmo assim não
serem música. Destarte, como é possível caracterizar os sons musicais de modo que possam
ser distinguidos de sons não musicais? Kania sugere que adotar uma definição intencional é
a abordagem mais promissora, tendo em vista que ela evita as consequências contraintuitivas
de uma definição subjetiva. A concepção subjetivista afirma que é necessário ter sempre
alguém por perto para que o objeto percepcionado seja de fato música, entretanto, tal visão
acaba tendo a seguinte consequência contraintuitiva: se uma pessoa está ouvindo rádio
sozinha em casa e ao sair o esquece ligado, os sons emitidos pelo rádio deixam de ser
música, visto não haver mais ninguém por perto para percepcionar os sons da maneira mais
adequada.
Segundo Kania, ao seguirmos uma concepção intencional nos livramos da
abordagem subjetiva e de suas consequências contraintuitivas. A resposta intencionalista ao
exemplo do rádio seria de que quando a pessoa que está ouvindo rádio e, ao deixar a casa o
esquece ligado, o sons emitidos permanecem sendo música, uma vez que: “os sons que
emite têm origem nas intenções de fazer música por parte das pessoas efetivamente
responsáveis pela produção desses sons”. (KANIA, 2014, p.70). O que dizer sobre os
improvisos que intuitivamente queremos classificar como música, mas que parecem não ser
intencionalmente produzidos28
? O autor indica ser plausível que o improvisador tenha a
intenção de produzir música, mesmo que este execute notas fugazes, neste caso, a intenção
pode ser formada pouco antes da produção das próprias notas. A capacidade intencional
necessária à produção de música é totalmente excluída por Kania no caso de animais não-
humanos e máquinas. Para o autor, os animais não possuem a capacidade de improvisar e
inventar novas melodias. Neste caso, por mais que intitulemos «canto» os sons emitidos por
aves e baleias, eles não devem ser entendidos como música, seria apenas algo que tem a
capacidade de soar para nós como música, ou seja, os sons de fato podem parecer música
mesmo que não sejam. No caso de sons e partituras produzidas através de um computador
programado, Kania afirma serem de fato música, pois segundo ele, atrás do programa está
28
Para o autor Paisley Livingston a ação intencional é “a execução e realização de um plano, em que o agente
efetivamente segue o plano e é orientado por este na realização das ações que, manifestando um nível
30
seu criador intencionado para que a máquina se utilize de determinados sons com altura
tonal, ritmos e tempo para que este crie músicas, mesmo que seus resultados possam ser
imprevisíveis.
A distinção entre sons musicais de outros sons não musicais até então sugerida por
Kania é a seguinte: para que um som seja música é preciso que haja intenção de que sejam
musicais. Uma possível refutação à proposta é de que se trata de um argumento circular,
pois esse parece se apoiar no termo que tenta definir29
. Uma maneira de se evitar a
circularidade é definir «musical» sem se referir à música. O filosófo Roger Scruton (1997)
faz algo parecido ao afirmar que o som se transforma em música ao ser percepcionado
“dentro de um campo de forças musical, tal como a disposição de sons de altura definida
numa escala ou de batidas num compasso”. (SCRUTON, 1997, p.17). Kania crê que a
sugestão de Scruton (mesmo sendo esta subjetivista30
) pode ajudar a evitar o problema da
circularidade, para tanto, bastaria caracterizar os tais campos sem fazer qualquer menção ao
termo música. Para evitar o subjetivismo, Kania busca colocar alguma condição intencional
e manter a explicação com base nos «campos de força» musicais. Um possível problema em
definir música através de características particulares como altura tonal e ritmo é que elas
podem ser exclusivas de certas músicas ou tradições. Mas Kania (2014) parece não
concordar que este seja o caso, pois de acordo com sua perspectiva, os sons em escalas31
ou
em compassos32
parecem ser características culturamente universais da música, e isso se
deve muito provavelmente ao fato de todos os seres humanos, por terem uma história
suficiente de aptidão e controle, produzem o resultado intencionado, ou seja, planejado”. Art and Intention: A
Philosophical Study, Oxford University Press, 2005, p. 14. 29
Um argumento circular ou petição de princípio é irrelevante e pouco informativo, suas premissas não são
mais plausíveis que a conclusão e por essa razão não constinuem uma razão coerente para aceitá-la. Um
exemplo de argumento circular é definir «cachorro» como animal canino. Apesar de ser algo verdadeiro, é algo
pouco informativo. 30
Podemos caracterizar a concepção de Scruton como subjetivista pelo fato de ser necessário a percepção do
ouvinte, descartando assim, a intencionalidade do músico. 31 “Escala – Sequências de NOTAS, em ordem ascendente ou descendente, que tipicamente repete a mesma
estrutura (distribuição de tons e semitons) em cada OITAVA. Uma escala diatônica de Dó maior, por exemplo,
é uma escala que começa e termina na nota Dó (a tônica dessa escala) e exemplifica a seguinte estrutura: entre
quaisquer duas notas da escala há um INTERVALO de um TOM, exceto entre a terceira e a quarta e entre a
sétima e a repetição da tônica à oitava, onde o intervalo é de um semitom. A esta estrutura chama-se «modo
maior». As escalas mais comuns em todo o mundo são as escalas pentatônicas (cinco notas) e a heptatônicas
(sete notas), embora haja uma enorme diversidade de escalas”. (GUERREIRO, 2014, p.260). 32 “Compasso - o termo pode designar ou cada uma das divisões métricas de uma peça musical, assinaladas
por linhas verticais e que estruturam a peça numa sucessão regular de tempos fortes e fracos, ou o tipo de
compassos de que maioritariamente a peça se compõe. Assim, de uma obra maioritariamente formada por
compassos de três tempos ou batidas diz-se que está «em compasso ternário». Os compassos podem ser
«simples» ou «compostos», consoante cada tempo ou batida se divida em duas ou três partes iguais”.
(GUERREIRO, 2014, p.258).
31
evolutiva comum, poderem compartilham uma similar capacidade em produzir e também em
compreender música. Já sobre a altura tonal e frequência ele faz a seguinte distinção:
Há uma diferença entre o conceito de altura tonal a que aqui se apela e o conceito
de frequência, brevemente considerado atrás. A frequência é uma característica
objetiva, intrínseca de todos os sons. A altura tonal, por outro lado, é já em si um
conceito parcialmente intencional. Embora possamos grosso modo afirmar que o
som tonal de Lá acima do Dó central tem uma frequência de 440Hz, ninguém
negaria que a nota produzida pela tecla apropriada num órgão barroco é também
um Lá, embora possa produzir uma frequência de 470Hz, nem negaria que se
produz continuamente um Lá no violino, ainda que usando sempre vibrato
(produzindo assim um som com uma frequência inconstante). (KANIA, 2014,
p.73).
Desse modo, Kania consegue ainda manter sua estratégia eliminando o
subjetivismo e mantendo a intencionalidade na altura tonal. Considerando todos estes
elementos numa definição provisória (que intitularei como sendo 1ª Definição Provisória),
sintetiza a seguinte formulação:
1ª Definição Provisória = A música consiste em (1) sons, (2)
intencionalmente produzidos ou organizados, (3) para terem pelo menos uma
característica musical básica, tal como a altura tonal ou o ritmo. (KANIA, 2014,
p.74).
Essa primeira definição provisória parece ser um tanto ampla, ainda mais se
considerarmos como base a proposta anterior dada por Levinson de que música deve possuir
o elemento temporalmente organizado, vemos que a definição de Kania parece não
reconhecer a organização temporal como sendo uma condição necessária para que algo
sonoro seja música. Ao ser confrontado com o argumento de Levinson sobre a arte sonora
instantânea de duração muitíssimo fugaz, Kania (2014, p.74) diz que desse argumento não se
segue que devíamos excluir do domínio da música peças instantâneas individuais ou
execuções dessas peças. Ainda acrescenta que tal argumento só serviria se Levinson
estivesse buscando uma definição de tradição musical, o que não é o caso. Por fim, Kania
ainda nos apresenta um possível exemplo capaz de violar a condição levinsoniana da
organização temporal, a OMs A Composition 19690#7 de La Monte Young. Segundo Kania
a obra consiste numa única quinta justa (Si e Fá sustenido), tal obra leva ainda a indicação
de suster durante muito tempo. Mesmo que tal peça não seja instantânea, Kania (2014)
afirma também ser “difícil ver que gênero de estrutura temporal ela possui que não seria
32
partilhada por uma variante com a indicação «a suster durante pouquíssimo tempo» ou «a
suster instantaneamente»”. (2014, p.75).
Entramos agora numa objeção mais difícil à definição provisória de Kania e de
certo modo também à definição de Levinson, tal objeção seria de que as definições
apresentadas são bastante restritas, não sendo capazes de abranger o suficiente, como obras
que parecem ter sido intencionalmente concebidas, mas que não apresentam altura tonal ou
ritmo, um célebre exemplo é a peça 4’33’’ de John Cage, que abordaremos mais
minunciosamente na próxima seção com o objeto de confrontá-la com as definições de
Levinson e Kania.
1.5 John Cage e sua 4’33’’
A peça 4’33” (1952) composta por John Cage é sem dúvida um dos maiores
exemplos de uma possível obra musical sem características musicais básicas. A primeira
performance pública da peça foi em 29 de Agosto de 1952, na cidade de Woodstock, NY. O
pianista David Tudor ficou encarregado de sua execução em um acanhado salão de música
de câmara. Grosso modo, a peça está disposta da seguinte forma:
1º Movimento - É composto pela entrada do pianista ao palco, ao sentar-se diante
do piano ele apoia uma partitura composta por seis páginas em branco, em seguida ele fecha
a tampa do piano, clica em um cronômetro e repousa as mãos em suas pernas. Após trinta
segundos o pianista pausa o cronômetro e levanta a tampa do teclado.
2º Movimento – O pianista fecha a tampa do teclado e aciona novamente o
cronômetro e permanece sem nada fazer. Depois de dois minutos e vinte e três segundos ele
paralisa o cronômetro e abre a tampa do teclado.
3º Movimento – No último movimento a tampa do teclado é fechada e aberta
novamente até que se passem um minuto e quarenta segundos. Ao final, o pianista fecha a
tampa pela última vez, se levanta e faz uma reverência ao público.
A performance total dura cerca de quatro minutos e trinta e três segundos, pois a
pausa entre os movimentos, juntamente com a entrada e saída do pianista do palco também
contam como performance da proposta de Cage. Durante a primeira execução da peça ouvi-
33
se o barulho do vento nas árvores que estavam do lado de fora, assim como pingos de chuva.
É sabido que grande parte da platéia foi saindo aos poucos do salão, mas os que ficaram
aplaudiram a apresentação.
Desde então a peça 4’33” de Cage é bastante comentada dentro da crítica musical,
e a razão obviamente ocorre por se tratar de uma peça silenciosa. Sabemos que o silêncio é
caracterizado como ausência de som, mas no caso da peça em questão será mesmo que o
som não estaria presente? O intuito de Cage é demonstrar que os sons ambientes estão
incorporados na peça, desse modo, os ruídos dos passos dados pela platéia que se ausentou,
as gotas de chuva, o barulho do vento nas árvores, assim como qualquer tosse, espirro, tique
taques do relógio e demais sons emitidos dentro daquela sala fizeram parte da peça:
Não existe silêncio. O que eles pensaram ser o silêncio, porque eles não sabiam
ouvir, estava cheio de sons acidentais. Você podia ouvir o vento se agitando fora
durante o primeiro movimento. Durante o segundo, pingos de chuva começaram a
bater no telhado, e durante o terceiro as pessoas fizeram todos os tipos de sons
interessantes enquanto conversavam ou saíam. (KOSTELANETZ, 1988, p.65).
Temos então, um contraste entre a ausência de som (o silêncio) e o ruído
caracterizado como conjunto de sons, som indistinto sem harmonia, frequentemente
desagradáveis aos ouvidos. Cage defende uma relação intrínseca entre os conceitos de som e
silêncio: “Nenhum som teme o silêncio que o extingue. E não existe silêncio que não seja
prenhe de som”(CAGE, 1959, p.135)33
. Nesse sentido, devemos perceber que o silêncio
também possui um papel importante dentro de uma composição harmoniosa, pois ele se
apresenta dentro dos intervalos de cada som executado, ou seja, sua presença é intermitente,
sendo capaz de contribuir na composição de uma linha melódica. Há ainda na peça de Cage
uma marca temporal que é justamente os quatro minutos e trinta e três segundos que dura a
execução da mesma. Cabe destacar, que este tempo é apenas uma orientação aos artistas que
irão interpretá-la, eles podem determinar sua total duração. Destarte, mesmo estabelecendo a
importância do silêncio dentro de uma OMs, permanecemos com os seguintes problemas: O
silêncio pode ser música? Podemos executá-lo durante uma performance musical? Afinal, a
peça de Cage pode ser considerada uma OMs? Veremos se a peça poderia ser contemplada
pela definição musical de alguns filósofos da música.
33
CAGE: Lecture on something (1959). In Silence, p.135.
34
1.5.1 A perspectiva de Levinson sobre a 4’33”
De acordo com John Cage tudo é música, para Levinson (2014) essa afirmação não
pode ser considerada verdadeira, tendo em si apenas uma inspiração zen34
. Levinson alega
que quando se busca uma definição do conceito música é preciso distinguir o que música é e
o que pode ser considerado/tratado como música, o que ele alega não ser feito por Cage.
Segundo Levinson, não se segue que todos os eventos sonoros sejam música, pensemos no
ruído do liquidificador ou de um secador de cabelo, estes não são considerados música. O
que Cage acaba por mostrar é a possibilidade de qualquer som ser ouvido tal como música,
ou seja, através de uma recepção consciente: atenção, acolhimento da forma e sensibilidade
emocional. (LEVINSON, 2014, p.57). Como vimos na seção 1.4 uma das condições
necessárias para que algo seja música é a intencionalidade/propósito de ser ouvido como tal,
este seria o único modo para classificarmos como música o zumbido de um liquidificador e
um som de um secador de cabelo (lembrando que existem outras condições necessárias para
que um evento sonoro seja música). Para Levinson, a perspectiva cageana de música está
bastante ligada a uma noção de que o termo «música» é uma espécie de experiência:
A regra de uso é aproximadamente a seguinte: se há uma experiência musical –
com alguma caracterização fenomenológica – então há música; caso contrário, a
situação nada tem de musical. O ouvinte, tendo o tipo apropriado de experiência,
determina a ocorrência ou presença da música; a fonte dos sons de que se tem
apropriadamente experiência, a sua raison d’être – ou até a questão de existirem
ou não – é considerada irrelevante. (LEVINSON, 2014, p.58).
A crítica de Levinson gira em torno da pouquíssima ou nenhuma explicação do
conceito música através da «experiência fenomenológica musical» de Cage, e que esta acaba
por rejeitar característas centrais para o conceito como: origem senciente, intenção artística e
o caráter público. Além disso, tal perspectiva tende a tornar o estatuto musical relativista,
algo relativo a cada ouvinte e situação individual.
A definição de Levinson é o conceito de uma atividade artística (expressiva) e
dos produtos que resultam dessa atividade, o autor considera que este é o uso central do
34
Parte da inspiração de Cage ao compor a 4’33” veio das aulas de música e filosofia indiana que teve com
Gita Sarabhai, o que o fez se intitular como seguidor das práticas zen-budistas. Cage também revela ter se
inspirado no dadaísmo e ready-made de Duchamp, assim como nas telas brancas de Robert Rauschenberg, uma
vez que em sua visão zen, as telas sofriam interferência da luz e poeira, podendo parecer diferentes de acordo
com a posição do observador, desse modo, o pintor perderia o controle de sua tela e o ambiente se tornava
determinante.
35
termo «música», algo composto por uma intenção ou propósitos característicos e que não
está restrito aos aspectos audíveis dos sons envolvidos. Mas segundo Levinson, haveria
ainda um sentido secundário do termo «música», onde este é apenas considerado fenômeno
sonoro, neste caso, as caracterísiitcas audíveis são entendidas como foco principal, já a
intenção e ou o propósito são irrelevantes. Nesse sentido, “pode-se chamar «música» a
qualquer coisa que se assemelhe auditivamente a paradigmas de música ou exiba suficientes
características típicas da música”. (LEVINSON, 2014, p.59). Desse modo, o autor aqui
busca conceder ao canto dos pássaros, ao borbulhar rítimico de uma cachoeira, os cantos aos
orixás, etc., um status de fenônomenos musicais, ou seja, apesar de não serem considerados
como música no sentido central, são capazes de satisfazer a classificação do sentido mais
amplo. Voltando a definição completa de música dada por Levinson, podemos pensar que a
peça 4’33’’ de Cage de certo modo pode cumprir os requisitos estabelecidos:
Música = sons temporalmente organizados por uma pessoa, com o propósito
de enriquecer ou intensificar a experiência, por meio da entrega ativa (p. Ex.,
ouvindo, dançando, executando) aos sons, considerados primariamente ou em grande
medida como sons. (LEVINSON, 2014, p.56).
Uma vez que Cage tenha composto uma partitura visando acrescentar em sua
performance os sons imprevisíveis que iriam ocorrer. Podemos pensar que a 4’33’’:
I- Estaria temporalmente organizada por Cage dentro da duração de quatro minutos
e trinta e três segundos da performance.
II- Possui o propósito de enriquecer ou intensificar a experiência, por meio de uma
entrega ativa: o ato de ouvir e se atentar aos sons ao redor (performance), sons
estes considerados sons pelo compositor.
Perante o exposto, temos a percepção de que Cage trata a audição da peça como
sendo um modo de possibilitar a contemplação de uma paisagem sonora. Além disso, a
4’33’’ de Cage cumpre os requistos estabelecidos por Levinson (1990), sendo portanto, um
caso limítrofe de música. Contudo, Levinson nega que isso mostre que qualquer som,
quando não assim enquadrado, seja música. No máximo, mostra que qualquer som pode ser
tratado como se fosse música. Portanto, podemos concluir que de acordo com a definição
de música estabelecida por Levinson, a peça 4’33” de John Cage pode ser considerada como
36
um exemplo de música. A proposta acomoda a peça de Cage como sendo um caso limite da
organização de som e silêncio.35
1.5.2 A perspectiva de Kania sobre a 4’33”
Como apresentado ao final da seção 1.5 Kania postula sua primeira proposta de
definição para o conceito «música»:
1ª Definição Provisória = A música consiste em (1) sons, (2) intencionalmente
produzidos ou organizados, (3) para terem pelo menos uma característica
musical básica, tal como a altura tonal ou o ritmo. (KANIA, 2014, p.74).
Vemos que esta 1ª definição provisória é bastante fraca, não sendo capaz de
contemplar a noção de temporalidade e tampouco músicas que não possuem características
musicais básicas, ou seja, a definição não consegue abarcar músicas que apesar de terem
seus sons intencionalmente produzidos ou organizados, sua intencionalidade consiste em
produzir sons sem altura tonal ou ritmo, portanto, sem características musicais básicas.
Temos como exemplo: Toilete Piece/Unknown (1971) de Yoko Ono – uma gravação não
alterada da descarga de um vaso sanitário, Williams Mix (1952) – uma composição de John
Cage feita através de fita magnética montada minuciosamente a partir de aproximadamente
600 gravações (sons da cidade, sons eletrônicos, sons produzidos manualmente, sons
produzidos pelo vento etc). Kania verifica a fraqueza da 1ª Definição Provisória e busca uma
nova definição que não contenha a mesma falha:
Uma vantagem de uma definição estética é poder explicar por que razão podemos
considerar Williams Mix ou Toilet Piece música, apesar de não terem propriedades
musicais básicas, nomeadamente, chamando a atenção para o facto de estas peças
terem sido aparentemente feitas com a intenção de que as ouçamos do modo como
ouvimos outras obras musicais. Podemos, contudo aplicar esta mesma ideia sagaz
à abordagem da definição de música baseada nas características musicais básicas,
evitando assim as consequências problemáticas de uma definição estética.
(KANIA, 2014, p.78).
35
Levinson afirma ser mais fácil compreender a acomodação da 4’33” como música, quando reconhecemos
que Cage organizou efetivamente a obra para audiação, num patamar muito abstrato, antecipando os sons que
ocorrerão em qualquer execução da peça. Levinson, destaca ainda que a noção de «organizar» deve ser
entedida de forma ampla “abrangendo aquilo que pode ser formulado mais idiomaticamente em alguns casos
como «conceber» ou «arranjar»”. (LEVINSON, 2014, p.62).
37
Kania utiliza-se de uma estratégia disjuntiva para a sua 2ª Definição Provisória para
o conceito «música»:
2ª Definição Provisória = Música consiste em (1) sons, (2) intencionalmente
produzidos ou organizados, (3) ou (a) para terem alguma característica musical
básica, como a altura tonal ou o ritmo, ou (b) para serem escutados pressupondo
essas características. (KANIA, 2014, p.79).
Com tais alterações na definição temos agora que a condição 3a será capaz de
captar grande parte da música ao longo da história do que conhecemos como música, já a
condição 3b tende a captar experiências musicais mais recentes, como as modernas e pós-
modernas, o que inclui Williams Mix de Cage e Toilet Piece de Ono. Kania alega que apesar
de ter iniciado as definições com a ideia de que música consiste, pelo menos, em som,
existem muitas peças onde a presença do silêncio é significativa, ou seja, onde ocorre a
ausência do som. O autor destaca a importância do silêncio para a estruturação do som, onde
as pausas são usadas para uma organização rítmica da música. Por essa razão, ele alega ser
necessário incluir o silêncio ao se falar de sons intencionalmente produzidos ou
organizados. O som das definições anteriores é substituído na terceira e última definição por
ele apresentada:
Definição Definitiva = A música é (1) qualquer evento
intencionalmente produzido ou organizado (2) para ser ouvido de tal modo que
(3) ou (a) tem alguma característica musical básica, tal como altura tonal ou
ritmo, ou (b) é para ser escutado pressupondo tais características. (KANIA,
2014, p.80).
O «som» das definições anteriores é substituído pela noção de «qualquer
coisa feita com a intenção de ser ouvida». Desse modo, pausas numa peça comum,
facilmente contariam como parte da música. Mas e no caso de uma música que consista em
nada além de silêncio como alguns afirmam ser a 4’33” de John Cage? Kania (2010) a
classifica na categoria de arte sonora não musical, mesmo ela não sendo totalmente
silenciosa não é música. Mas uma peça genuinamente silenciosa pode ser qualificada como
evento sonoro, se cumprir a cláusula (b). Kania oferece sua própria composição,
Composição 2009#3, como um exemplo: “A partitura é a seguinte: 'Indique um período de
38
silêncio, usando os sinais usuais com os quais você assinaria o começo e o fim de um único
movimento, música, etc. (O conteúdo desta obra é o silêncio que você enquadra, não
qualquer ruído ambiente.) “(2010, p. 351). A peça de Cage não apresenta (a), e (b) também
não ocorre já que o compositor não tinha a intenção de que a peça fosse ouvida com o
objetivo de encontrar características musicais básicas. Diante da definição conceitual de
música apresentada por Andrew Kania, a peça 4’33” de John Cage se enquadraria apenas
como arte sonora não musical.
1.5.3 A perspectiva de Stephen Davies sobre a 4’33”
Embora Stephen Davies não tenha feito uma definição conceitual para o termo
«música» o filósofo em algumas de suas obras analisa as definições propostas por Kania e
Levinson, indo além de uma mera análise, o filósofo da música fornece também suas
considerações para o debate, debruçando-se sobre o tema do silêncio na música ele acaba
por também examinar a peça 4’33” de John Cage. Davies (1997) parte do pressuposto de
que se ouvirmos atentamente os sons que ocorrem durante uma versão da 4’33” teremos três
evidentes perspectivas. Seriam elas:
i- Podemos ouvir os sons como se fossem musicais ou os relacionando a algo
tradicionalmente concebido como musical. Nesta aborgadem os sons que
ocorrem são como se fossem produtos de intenções de compositores, tal qual eles
costumam ter. Isto é, podemos ouvi-los como sons tonais (ou atonais), uma
espécie de desenvolvimento ou resposta aos sons anteriores, como sendo
melodias, acordes e afins. Além disso, esse modo de ouvir deve ser
historicamente fundamentado, assim como toda audição musical é.
ii- Poderíamos considerar os sons ouvidos em uma apresentação de 4 '33” por sua
(estética) como um possível evento audível, sem considerar a música e a
performance. Podemos captar as propriedades estéticas de forma “nua” por serem
apresentadas simplesmente como sons.
iii- Poderíamos ouvir nos sons que ocorrem durante uma apresentação da 4’33” um
novo tipo de música, algo capaz de transcender e desconstruir a distinção
categórica traçada tradicionalmente entre o musical e o não-musical. Nesse caso,
39
há espaço conceitual, por assim dizer, para considerar o ruído do cotidiano como
música apenas porque a noção padrão de música é solapada e rejeitada. Há um
convite para revisão conceitual.
Segundo Davies, a primeira perspectiva que poderíamos ter ao ouvirmos
atentamente aos sons apresentados numa versão da peça 4’33” seria que a peça busca por
evocações, extensões, desenvolvimentos, repúdio, ou seja, a peça apresentaria uma espécie
de rebelião contra as práticas e convenções da composição musical e performance das
tradições musicais até ali vigentes. Mas segundo Davies, claramente Cage rejeitaria essa
abordagem, por esta não pretender que nós ouçamos os sons que ocorrem como aspirantes à
condição de música (tradicionalmente concebida), mas, ao contrário, que os apreciemos por
suas qualidades como sons tout court36
.
A segunda possível perspectiva que teríamos na visão de Davies é que a peça
poderia ser contemplada esteticamente apenas como um evento audível isolado, os sons
seriam o foco, não havendo necessidade de considerar como música ou qualquer
performance. Davies afirma que Cage provavelmente aceitaria tal perspectiva, mas iria
rejeitar qualquer foco em classificar os ruídos em termos conceituais antiquados como
“belo” e “feio”, tendo em vista que o o interesse estético deve ser focar nos sons pelo que
eles são. Por exemplo, podemos apreciar, por suas qualidades únicas, o som das ondas
batendo nas pedras. Desse modo, se formos capazes de impedir uma redução do que
ouvimos a conceitos confortavelmente limitados, Cage endossaria essa perspectiva.
Já a terceira perspectiva é claramente defendida por Cage. O compositor parece
questionar se nossa tradição sonora está de acordo com a projeção que temos do mundo. Sua
sugestão de uma revisão radical de nossos conceitos pode se adequar ao pensamento de que
a música está incorporada em todos os sons. O compositor e musicólogo Michael Nyman
(1974) enquadra bem o projeto de Cage:
É um fato bem conhecido que os silêncios de 4’33” não eram, afinal de contas,
silêncios, já que o silêncio é um estado que é fisicamente impossível de alcançar
(...) A 4’ 33” é uma demonstração da inexistência do silêncio, e da presença
permanente de sons ao nosso redor, do fato de que eles são dignos de atenção, e
que, os sons e ruídos ambientes de Cage, são mais úteis esteticamente do que os
sons produzidos pelas culturas musicais do mundo. A 4’33” não é uma negação da
música, mas uma afirmação da sua onipresença. (NYMAN, 1974, p.22).
36
Por si só.
40
A afirmação de Nyman indica que este também compactua com a perspectiva (iii),
talvez Cage não tenha ido tão longe e defendido que a música é onipresente, mas sem dúvida
ele parte do pressuposto de que o som está em toda parte. Já o filósofo Daniel Herwit
(1988) com uma forte influência de Wittgenstein considera a abordagem (iii) incoerente,
uma vez que a recomendação de Cage seria de que devemos perceber a obra de forma
impessoal, aceitando rejeitar conceitualmente as aparências de organização, forma e
estrutura, o que nos faz perder a noção de percepção. Para Herwit essa forma de escuta só
possui sentido quando podemos imaginar uma forma de vida na qual ela é vivida. Sendo
assim, o modo de percepção defendido por Cage de uma desconstrução não se aplicaria
somente à música tradicional, mas também a todo o resto. Herwit alega que a posição
defendida em (iii) pode ser um tanto incompreensível, pois recomenda algo que deve
permanecer inacessível e ininteligível aos seres humanos. De acordo com Herwit, a defesa
da percepção não estruturada poderia ser compreendida como um convite para uma certa
disciplina intelectual, algo semelhante ao ascetismo de Wittgenstein, esse teor ascético
poderia ser implícito no compromisso de Cage com o Zen Budismo. Se esta alegação estiver
correta, a perspectiva de Cage seria melhor representada por (ii) e não pela noção mais
radicial que é (iii), ou seja, pelo fato de (ii) apresentar a ideia de que devemos cultivar um
interesse pelas propriedades estéticas nuas do som. Davies passa então a questionar se a
alegação de que a maioria dos sons, incluindo os da música (tradicionalmente concebidos),
são esteticamente interessantes quando abordados apenas por causa de suas qualidades nuas.
E, mesmo se admitirmos que alguns podem ser interessantes quando considerados dessa
maneira, não obstante, podemos questionar se eles são mais esteticamente válidos do que
obras musicais ouvidas como tais. Ele alega que embora possamos optar por ouvir de
maneira conceitual em algumas ocasiões e em alguns contextos, não é possível que
escutemos a 4’33” dessa maneira enquanto a vemos como uma obra de arte de Cage.
Neste caminho o filósofo Noel Carroll (1944) defende a perspectiva de que os sons
enquadrados pela peça de Cage ganham um estatuto de arte, dando aos sons a possibilidade
de se tornarem referenciais, tanto por suas exemplificações quanto pelo contexto que
implicam. Carroll também destaca o significado que ganham ao serem usados como forma
de repúdio à tradição de concerto. Ele ainda conclui que apesar de a peça de Cage ser
entendida como sons não comuns dentro do contexto da história da arte, ela é capaz de ir
além de quaisquer propriedades estéticas que possua e adquira propriedades com
significação artística. Esse detalhe serviria como forma de distinguir dos sons comuns, já
que uma possível semelhança facilmente poderia acarretar o erro de alguém que desconhece
41
o contexto artístico. Davies neste caminho afirma que se a intenção principal de Cage era
convocar nossa atenção para o potencial estético nu dos sons ela falha na missão com a
4’33”:
Ele (Cage) falhou porque pretendia criar uma obra de arte e conseguiu fazê-lo,
transformando assim as qualidades dos sons para os quais essa obra direciona
nossa atenção [...] ao criar uma obra de arte que relembra a performance de obras
musicais, Cage inevitavelmente convoca a abordagem de (1) ao invés de (2). Os
sons a que chama a nossa atenção derivam seu significado artístico por serem
postos em relação à música (tradicionalmente concebida) através de sua invocação
da prática da performance musical da maneira com a qual 4’33” é apresentada.
(DAVIES, 1997, p.453).
Davies conclui argumentando que as sugestões dadas por Levinson e Kania para a
definição da 4’33” não podem ter sucesso de forma separada, mas que a combinação de seus
argumentos e propostas sim. Vimos nas seções anteriores que Levinson classifica a peça de
Cage como música, Kania como arte sonora, mas não música, já Davies a classifica como
uma obra não musical de teatro. A peça é considerada então uma obra de arte de teatro, no
entanto, não é uma obra de teatro musical, como ópera, mas uma peça de performance sobre
música. Davies alega que Cage sempre esteve ciente do lado teatral de sua performance
musical. Segundo Davies, a peça deve ser classificada como obra de arte e ele indica
algumas razões: 1- a peça tem um título; 2- é um som organizado (neste caso incluindo o
silêncio como forma de auxiliar na estrutura do som); 3- ela é temporalmente organizada,
múltipla e para performance (podendo incluir ou não instrumentos musicais). Diante destes
aspectos a peça de Cage segue realmente alguns paradigmas de obras musicais do ocidente.
Então por qual razão Davies não a classifica como música? Ele responde que podemos
incluir a 4’33” apenas se quisermos como um caso limítrofe da organização do som e do
silêncio. Para Davies:
Eu enfatizei anteriormente que 4'33” deve ser abordada com um pano de fundo
contrário ao conhecimento da tradição de obras musicais e práticas performáticas.
Esta afirmação é compatível com a crença de que a peça de Cage não é uma obra
de música. A peça não precisa ser música para ter como ponto de referência uma
referência à música. Da mesma forma, a moldura vazia deve ser entendida e
apreciada dentro de um contexto estabelecido pela apresentação de pinturas, mas
ela invoca essa tradição sem se qualificar como uma pintura. (DAVIES, 1997,
p.460).
Davies conclui que 4’33” é como um acontecimento que desafia a fronteira entre o
ruído e a música. Desse modo, devemos reconhecer a originalidade e importância da
contribuição de Cage a nossa compreensão da música e da filosofia das artes. Mas nem
sempre precisamos aceitar que suas obras respondem às perguntas que levantam. Por fim,
42
afirma que a peça de Cage “não mostra que a música está a nossa volta”, ou que não há linha
a ser traçada entre música e performance artística.
1.5.4 A perspectiva de Julian Dodd sobre a 4’33”
A última perspectiva a ser apresentada será a de Julian Dodd (2018), o filósofo
recentemente fez uma nova caracterização da peça 4’33” de John Cage. Dodd defende que a
peça é algo silencioso e que não se trata de uma obra composta por quaisquer sons
ambientes que ocorram durante a performance da mesma. Um dos argumentos usados para
defender esta perspectiva é a de termos inúmeras razões para considerar os tokens37
de uma
obra como sendo as suas performances. Mas no caso da peça de Cage suas performances não
poderiam ser consideradas como tokens, uma vez que os artistas não conseguem reproduzir
os sons ambientes que pertecem a peça 4’33”. Desse modo, uma performance musical exige
uma estruturação de sons, mas no caso da peça de Cage os sons ambientes não são
produzidos ou estruturados pelos artistas. Dodd, apresenta outra crítica de destaque contra a
peça, tendo Cage, como propósito de sua obra que, ouvíssemos de forma estética os sons
ambientes, este objetivo não poderia ser realizado, tendo em vista que os sons fazem parte
de uma peça de performance, ou seja, os sons perderiam o status de som ambiente.
Mesmo que estejamos inclinados a conceber a peça de Cage como música, Dodd
afirma que não devemos seguir essa conclusão, mesmo que a peça seja notacional para
performances de músicos, a razão para não seguirmos essa conclusão é que a 4’33” não
consegue organizar sons, dado que é uma obra silenciosa.
Segundo Dodd, os gêneros de uma obra são definidos de acordo com seus
propósitos, ele afirma então que a 4’33” pertence ao gênero da arte conceitual. Pois em sua
visão a peça é uma obra repetitiva de performance artística, se assim o for, a peça
pertenceria ao gênero da arte conceitual. Neste caso, Dodd(2018) afirma que o objetivo da
arte conceitual é o de “contrapor a expectativa de que devemos apreciá-los esteticamente e
de nos levar a considerar assuntos de natureza mais intelectual” (2018, p.639). Tal função de
acordo com Dodd seria cumprida pela obra de Cage, pois ela “nos faz perceber que os sons
são onipresentes e podem ser apreciados esteticamente como sons” [ibid .: 640]. Por fim,
Dodd finaliza afirmando que a peça 4’33”de Cage consegue fazer duas coisas: 1º
37
C.S. Peirce (1906) introduziu os termos tipo e token que separa tipos representando um resumo descritivo de
conceitos, a partir de token que representam objetos que instanciam conceitos. Ex: “cadeira” é um tipo que
43
frustra nossas expectativas de estar envolvido esteticamente e em segundo lugar, nos faz ver que os
sons valem a pena esteticamente como sons.
2. MÚSICA E SUAS CATEGORIAS ONTOLÓGICAS
2.1 Música e seu caráter sui generis
Há quem considere a ontologia da música algo irrelevante, esse pensamento é
enraizado na crença de que não existem problemas ontológicos relativos à música, tais
problemas seriam apenas da ontologia em geral aplicados em algumas discussões à música.
Meu objetivo no presente capítulo é demonstrar que a música coloca sim, problemas sui
generis, caso essa afirmação esteja correta, tais problemas serão exclusivos da música, não
podendo ser colocados a propósito da natureza de nenhuma outra arte, demonstrando então a
relevância de uma área que investiga a fundo questões ontológicas essencialmente musicais.
Sendo assim, pretendo mostrar que a ontologia musical não apenas existe, como também é
uma área relevante dentro da filosofia.
O que significa dizer que a música traz consigo problemas ontológicos sui generis?
Significa que a natureza do ser de uma dada entidade musical não é totalmente esclarecida
para nós, ou seja, o objeto musical carrega características únicas em seu gênero. O problema
começa ao tentarmos definir a qual categoria metafísica ou ontológica o ente musical
pertence. Seria o objeto musical um tipo universal, particular, físico ou mental?
O termo “objeto artístico” sugere claramente o tipo de obra de arte que pode ao
menos, à primeira vista, identificar-se com um objeto físico, localizável no espaço e no
tempo. Mas e se o “objeto” em questão é uma obra musical? Parece se tratar de algo que não
está localizado em lugar algum. Imaginemos a seguinte situação hipotética: Um indivíduo
entra nesta sala e diz: “Roubaram 5 kg de laranjas no mercado do João”. Essa afirmação
pode até não ser verídica, porém a frase é perfeitamente inteligível. Algo similar ocorre se o
mesmo indivíduo adentra esta sala e diz: “Roubaram o quadro “A Coluna Partida” de Frida
Kahlo (1907-1954) do museu”. Tal afirmação também é considerada como sendo inteligível,
pois se entende que um quadro foi roubado de um ponto x e levado para um ponto y. Porém,
o mesmo não ocorre se alguém fizer a seguinte asserção: “Ladrões roubaram a 5ª Sinfonia de
Beethoven (1770-1827)”. O que significa tal afirmação? Por qual razão ela nos parece
representa o conceito de uma cadeira, sendo assim, a minha cadeira é o token que representa um objeto que é a
instância da “cadeira”.
44
bizarra? O que os ladrões realmente teriam de levar para podermos afirmar inteligivelmente
que a 5ª Sinfonia de Beethoven foi roubada? Contudo, o problema de se roubar frutas de um
mercado ou uma pintura de um museu até pode vir a ser questionado dentro de algum
âmbito moral, mas em detrimento da fácil localização no espaço e tempo desses objetos, não
vislumbro qualquer tipo de grande problema ontológico envolvido. Entretanto, o mesmo não
pode ser dito em relação ao roubo de uma obra musical, pois além de não termos claramente
o tipo de objeto em que consiste esse tipo de obra, tampouco temos sua exata localização.
Mesmo diante de uma pré-análise é difícil responder se uma obra musical aparenta
ser um objeto concreto ou abstrato. O próprio conceito do que vem a ser uma obra musical é
passível de discussão. Contudo, suponhamos que a obra musical seja um grupo de partituras
na qual sua localização é dada diante de sua performance. Sendo essa hipótese verdadeira,
haveria uma inclinação justificada em afirmar que a peça sonora é um objeto concreto. Mas
será que tal inclinação se sustentaria diante do fato de um compositor poder criar uma
determinada obra, sem que esta tenha sido transcrita para uma partitura e nunca tenha sido
executada? Sendo assim, esta criação dada somente na mente do compositor poderia ser
considerada uma obra musical? Sendo a resposta afirmativa, não poderíamos concebê-la
como um objeto concreto, e sim abstrato. Apresentar um argumento bem estruturado sobre o
tipo de objeto que consiste uma obra musical não é uma tarefa fácil. São diversos os
questionamentos sobre o caráter ontológico das obras musicais, a própria tarefa inicial de se
tentar responder o tipo de objeto que é uma obra musical, a meu ver, já indica a existência de
um terreno fértil para problemas ontológicos musicais.
Para discutirmos melhor a natureza da música, se faz necessário discutir não só
aquilo que tem propriedades: particulares, objetos/substâncias, como também o problema
dos universais.
2.2 Realismo dos Universais
Realistas de propriedades é como são conhecidos os filósofos que sustentam a ideia
de apelo aos universais para explicar a natureza das propriedades e suas relações. Existem
variedades de cada posição: o realismo de propriedades têm versões platônicas, aristotélicas
e russellianas.
45
Desde Platão diversos filósofos defendem que as propriedades e relações são
universais “presentes” em sua instâncias38.
Se minha mesa é branca, isso ocorre porque a
brancura (o universal) é inerente à mesa (o particular). De forma análoga, se outra mesa é
branca, isso também ocorre pelo fato de o mesmo universal ser inerente a ela.
As concepções platônicas e aristotélicas acerca dos universais são distintas. De
acordo com a concepção platônica, os universais são transcendentes, isto é, existem fora do
espaço e do tempo39
. Os universais para Platão são objetos abstratos e imutáveis. O termo
‘universais transcendentes’ significa que essas entidades existem independentemente de suas
instâncias espaço temporais. Já o termo ‘universais imanentes’ significa que essas entidades
existem, mas dependem da existência de suas instâncias. Como bem coloca Branquinho:
Há universais não exemplificáveis.40
Ser exemplificável não é uma condição
necessária para uma propriedade dada ser uma propriedade universal. Para o
realista platônico, há assim universais que nunca tiveram de fato, em qualquer
ocasião, quaisquer exemplos; e há também universais que não podem ter quaisquer
exemplos (no sentido mais forte de “não podem”, o da chamada impossibilidade
metafísica), universais que necessariamente não têm quaisquer exemplos.
(BRANQUINHO, 2004, p.40).
As formas geométricas ideais foram para Platão o modelo de seus universais (ou
“formas”, como ele as chamava). Um exemplo é o teorema de Pitágoras que é verdadeiro
independentemente de que algum objeto físico seja exatamente triangular. Então, os
universais existem independentemente de possuírem instâncias concretas. Para os realistas
platônicos a existência de entidades abstratas fora do espaço e do tempo não depende da
existência de entidades concretas no espaço e no tempo, uma consequência da concepção
transcendente é que os universais podem existir sem serem instanciados (isto é, sem ter
instância em nenhum momento). Desse modo, o universal “pégaso” existe, segundo a
concepção platônica, mesmo que não existam pégasos. Em contraste, para a concepção
aristotélica, os universais não podem existir sem que estes sejam instanciados.
38
Os realistas de propriedades tradicionais em relação aos universais trabalham a ontologia através da distinção
substância-atributo (particular-universal), desse modo, se comprometem com ambas categorias do ser. No
entanto, os realistas modernos como Bertrand Russell e alguns nominalistas como D.C. Willians, colocam em
questão a noção de uma substância individual. (GARRETT, 2008, p. 49-50). 39
Outro defensor do realismo transcendente de Platão é o filósofo Bertrand Russel. 40
O termo ‘exemplificável’ é usado em português PT tendo o mesmo sentido de ‘instanciação’ no nosso
português BR, tradução para o termo inglês ‘token’, ou seja, ‘tokening of type’. Ao longo do presente trabalho
usarei tanto o termo ‘instância’ quanto ‘token’.
46
Segundo a concepção aristotélica, os universais são imanentes, eles não existem
fora do espaço e do tempo, estão localizados onde suas instâncias estão localizadas41
. Como
observa Branquinho:
Não há universais não exemplificáveis. Só propriedades exemplificáveis podem
ser propriedades universais. O que é que se deve entender aqui por ‘não
exemplificável’? Um universal não exemplificável seria um universal que não tem
de facto exemplos em nenhuma ocasião, como por exemplo a propriedade de ser
um porco voador, ou então, não pode de todo ter exemplos (em qualquer ocasião),
como por exemplo a propriedade de ser um quadrado redondo. (BRANQUINHO,
2004, p.40).
A essência do tradicional realismo de propriedades é razoavelmente clara: objetos
(particulares ou “substâncias individuais”, instanciam propriedades, dois (ou mais) objetos
podem ter uma e a mesma propriedade, propriedades são universais que podem estar
presentes em dois ou mais lugares ao mesmo tempo). Cabe agora analisarmos com maior
atenção o realismo platônico e posteriormente o realismo aristotélico.
De acordo com o realismo platônico existem universais que não instanciam
nenhuma propriedade no mundo atual, um universal não instanciado é uma propriedade
universal, que no entanto não exemplifica nada em nenhuma ocasião do mundo atual e
também em nenhum mundo possível. Sendo assim, o realismo platônico não exclui a
existência como universais dos seguintes gêneros de propriedades:
(i)- Propriedades que, além de jamais terem sido instanciadas, não estão no exato
momento instanciadas e nem serão futuramente instanciadas por coisa alguma.
Talvez um dos possíveis exemplos do gênero (i) seria a Absoluta Perfeição.
(ii)- Propriedades que não são instanciadas por nada em nenhuma circunstância ou
mundo possível. O círculo quadrado pode ser pensado como exemplo do gênero (ii).
Existem ao menos três tipos de realismo platônico. São eles:
a) O realismo platônico factual;
b) O realismo platônico moderado;
c) O realismo platônico extremo.
41
O filósofo David Armstrong também era defensor do realismo imanente aristotélico.
47
Segundo a) nem todo universal existe instanciado, o fato de um universal existir em
um dado mundo é algo totalmente contigente; Tanto a posição a) quanto b) defendem os
universais como sendo entidades contingentes. Neste caso, um universal não precisaria
existir em todos os mundos possíveis, apesar disso, alguns universais poderiam existir
independente de suas instâncias. A posição b) também admite a possibilidade de existirem
universais construídos através daqueles admitidos por ambas teorias, como por meio de
conjunções. Finalmente de acordo com c) os universais seriam existentes necessários, que
existiriam em todos os mundos possíveis, independentemente de suas instâncias 42
.
Já é possível afirmar que os universais para o realismo aristotélico só são aceitos
como propriedades que satisfazem pelo menos uma das seguintes condições:
Condição (r)- propriedades que, tal como é nossa realidade, tenham sido
instanciadas no passado por no mínimo um objeto, que possuam instâncias no momento
presente, ou que serão futuramente instanciadas por no mínimo um objeto.
Condição (s)- serem propriedades instanciadas por no mínimo um objeto em ao
menos uma circunstância, ou mundo possível, portanto, de algum modo como as coisas
poderiam ter sido.
A condição (r) nos diz apenas como as coisas de fato são no mundo atual, portanto
é uma condição essencialmente temporal. Já a condição (s) nos fala sobre os modos como as
situações poderiam ter sido, ou seja, diz respeito aos mundos possíveis, portanto, é uma
condição essencialmente modal.
Se tomarmos como exemplo (r), a propriedade de ser um Triceratops não seria
excluída pelo realismo aristotélico do campo dos universais; pois mesmo que neste
momento a espécie de dinossauro em questão não seja mais composta por nenhum membro,
já o foi. No entanto, é possível presumir que, a propriedade de ser uma mulher com mais de
3 toneladas seria excluída, assim como, a propriedade de ser uma mula sem cabeça que
cospe fogo.
Tomando agora a condição (s) como exemplo, não seria excluída pelo realismo
aristotélico a propriedade de ser um animal não-humano capaz de aprender perfeitamente a
linguagem humana; apesar de não existir nenhum exemplo atual de um animal não-humano
com esta propriedade, é possível conceber uma circunstância na qual ela poderia ter
existido43
. Já a propriedade de ser um círculo quadrado provavelmente não seria
42
FIGUEIREDO, 2013, p.60.
43 Talvez o exemplo da gorila Koko possa ajudar a conceber tal circunstância, Koko desde o primeiro ano de
idade foi ensinada pela psicóloga animal Penny Patterson da Universidade de Stanford a utilizar a linguagem
48
aceita.Vemos então duas versões do realismo aristotélico, uma forte e a outra fraca, podemos
chamá-las respectivamente: versão atualista44
e versão modal.
A versão atualista exige que a instanciação seja dada em no mínimo um período do
mundo atual, para que esta seja de fato considerada uma propriedade universal. Como
adequadamente salienta Branquinho:
Por outras palavras, para a versão temporal/actualista, um universal existe num
mundo ou situação, relativamente a uma dada ocasião, somente se tiver exemplos
em pelos menos uma ocasião (aquela ou outra qualquer) nesse mesmo mundo ou
situação. Assim, uma condição necessária para um universal existir num dado
mundo possível, em especial no mundo actual, é existir pelo menos uma ocasião
na qual esse universal seja exemplificado nesse mundo. Por conseguinte, na versão
temporal/actualista de realismo aristotélico, o mundo possível é fixo, não varia;
aquilo que é autorizado a mudar é apenas o tempo relativamente a um mundo
dado. (BRANQUINHO, 2004, p.42).
Portanto, só serão universais na versão atualista, aquelas propriedades que
possuírem instâncias atuais passadas, presentes ou futuras. Por conseguinte, a propriedade de
ser um dinossauro seria aceita na versão atualista, ao contrário da propriedade de ser uma
pessoa humana imortal.
Partiremos agora para a versão modal, por qual razão ela é considerada a versão
mais fraca do realismo aristotélico? Isso ocorre pois a versão modal é uma consequêcia
lógica da versão atualista, fazendo com que a versão atualista seja uma premissa e portanto,
mais forte. Para que fique um pouco mais claro, considere a versão atualista: para que um
universal exista no mundo atual, é preciso que haja uma circunstância na qual, ele tenha no
mínimo uma instância no mundo atual. Dessa exigência se segue que a condição requerida
na versão modal seja: um universal existirá no mundo atual, ou em qualquer outro, se houver
no mínimo um mundo em que ele esteja instanciado45.
Desse modo, quem aceitar a versão
do realismo aristotélico atualist, tem por obrigação aceitar o realismo modal aristotélico. Por
conseguinte, quem rejeitar o realismo aristotélico modal, tem também que rejeitar o realismo
aristotélico atualista. Obviamente o inverso não ocorre, ou seja, não podemos dizer que a
versão atualista se segue do realismo modal.
Desse modo, tudo que for admitido pela versão atualista como sendo universal,
também o será pela versão modal (o contrário não ocorre). Logo, tudo que for excluído pela
de sinais americana, de acordo com a pesquisadora, Koko era capaz de entender e utilizar mais de 1.100
palavras. *Infelizmente Koko faleceu em 2018 aos 46 anos. 44
Teoria que compreende a realidade como decorrente da atividade ou da ação incessante.
49
versão modal como sendo universal, também o será pela versão atualista (o contrário não
ocorre). Seriam excluídas pelas versões modal e logo, também atualista propriedades como
ser um círculo quadrado e a de ser um pégasos.
2.3 A teoria tipo/token
A qual categoria ontológica pertence uma obra musical? Qual seria a natureza
relacional entre as obras musicais e suas instâncias? Uma boa forma de iniciarmos a
discussão é através da comparação entre a arte pictória e a música. As OMs ao contrário das
pinturas são objetos artísticos repetíveis (obviamente partimos do pressuposto de que uma
pintura está suscetível a falsificações), tomemos como exemplo o quadro O turbante verde
de Tamara de Lempicka (1929), caso um bom falsificador tenha como objetivo copiá-lo, ele
poderá obter êxito em sua falsificação, para isso basta que consiga reproduzir a matriz visual
da obra original. No caso das OMs a repetição ocorre sem que haja necessariamente o
envolvimento de algum tipo de falsificação, além de ser um objeto repetível, a OMs possui o
caráter relevante de ser audível. De acordo com Wolterstorff (1980, p.41) “Ao ouvirmos
uma sinfonia, ouvimos duas coisas ao mesmo tempo, a sinfonia e sua performance”. O que
isso significa? De acordo com a teoria tipo/token bastante difundida na ontologia musical,
nossa forma de audição musical é realmente indireta, pois ao ouvirmos uma performance,
estamos ouvindo o token, e é ele quem torna possível ouvirmos os padrões sonoros de forma
concreta, ou seja, o token exerce uma representação do tipo, possibilitando assim, que diante
por exemplo, de uma sinfonia, tenhamos uma experiência perceptiva tal, capaz de nos fazer
“esquecer/abstrair” da presença do token e, assim, nos relacionarmos apenas com o tipo que
está por trás da sinfonia, a obra.
Portanto, a teoria tipo/token é usada no âmbito categorial para tentar explicar como
é possível ouvirmos de fato uma obra musical, quando na realidade estamos diante das
performances e execuções da mesma. O uso argumentativo do tipo/token traz, a meu ver,
contribuições para o debate da natureza relacional entre as OMs e suas instâncias.
45
“Este raciocínio usa o princípio modal elementar conhecido como Ab Esse ad Posse Valet Consequentia:
tudo o que é actual é a fortiori possível, o mundo actual é a fortiori um mundo possível.” (BRANQUINHO,
2004, p.43).
50
2.3.1 Propriedades transmitidas/compartilhadas entre tipos e tokens
Segundo Richard Wollheim, há algo que distingue a relação entre, por um lado,
universais e tipos e, por outro lado, suas propriedades. De acordo com sua teoria, devemos
nos focar nas propriedades que são transferidas, pois nelas residem dois pontos importantes
que distinguem universais de tipos:
Em primeiro lugar, é provável que haja um intervalo muito maior de propriedades
transmitidas no caso de tipos que existem com universais. A segunda diferença é a
seguinte: no caso dos universais, nenhuma propriedade que necessariamente tenha
uma instância de um certo universal, isto é, que tenha em virtude de ser uma
instância desse universal, pode ser transmitida ao universal. No caso de tipos, por
outro lado, todas e apenas as propriedades que um token de um determinado tipo
tem necessariamente, isto é, que tem em virtude de ser um token desse tipo, serão
transmitidas para o tipo. (WOLLHEIM, 2015, p.52).
Nesta passagem de sua obra “Art and its Objects”, Wollheim busca traçar possíveis
diferenças nas relações entre tipos, tokens e os clássicos exemplos de propriedades e
universais, para posteriormente sugerir que os tipos não são universais, nem tampouco
objetos físicos. Apesar de o autor conceber o fato dos tipos não serem objetos, ele destaca
que isso não se caracteriza como um impedimento para que estes apresentem propriedades
físicas. Inicialmente, o autor exemplifica com o universal “vermelhidão”, afirmando que
suas instâncias devem possuir a mesma propriedade do universal, desse modo, assume um
caráter de transmissão das propriedades para suas instâncias. Segundo Wollheim, a
“vermelhidão” não pode ser vermelha ou de qualquer outra cor, contudo, suas instâncias
necessariamente precisam ser. O autor então, toma como exemplo a bandeira do Reino
Unido (Union Jack), este tipo é retangular e colorido, propridades que todos os seus tokens
necessariamente devem possuir, entretanto, mesmo que todos os seus tokens fossem feitos
de linho, isso não implica que a Union Jack de linho fosse feita.46
O que Wollheim tenta mostrar é que as propriedades transmitidas entre tokens e
tipos são apenas aquelas que os tokens necessariamente possuem, excluindo, portanto,
propriedades outorgadas aos tokens (por exemplo, sua localização no espaço-tempo) ou
exclusivas aos tipos (por exemplo, ‘a obra x foi inventada por’). Após as devidas exclusões,
poderíamos identificar eventos (apesar de contigentes) em que exista a possibilidade de as
classes compartilharem suas propriedades com seus membros, o autor exemplifica, com a
46
WOLLHEIM, 2015, p.52
51
“classe das grandes coisas é grande”, que é algo puramente fortuito, não havendo, portanto,
propriedades transmitidas.
Ademais, mesmo que tipos e exemplos clássicos de propriedades satisfaçam os
mesmos predicados, existem outros predicados transmitidos entre um tipo e seus tokens do
que entre um exemplo clássico de uma propriedade e suas instâncias. Exemplifico usando a
Sinfonia Nº 104 de Haydn (1795), suas partituras estão na mesma clave, possuem a mesma
quantidade de notas, o mesmo número de compassos, etc, desse modo, são como um grande
número de tokens.
Afinal, quais são as características e circunstâncias necessárias para postularmos
um tipo? O autor deixa bastante claro que se trata de uma questão sobre a estrutura da nossa
linguagem, ou seja, algo inteiramente conceitual. Em seguida busca formular uma resposta:
Há um conjunto muito importante de circunstâncias em que postulamos tipos-
talvez exista um conjunto central, no sentido de que possibilite explicar as
circunstâncias restantes por referência a eles - é onde podemos correlacionar uma
classe de particulares com uma obra fruto da invenção humana: esses particulares
podem então ser considerados como tokens de um certo tipo. Esta caracterização é
deliberadamente vaga, pois se pretende compreender um considerável espectro de
casos. De um lado temos o caso em que um particular é produzido, e é então
copiado: no outro extremo, temos o caso em que é elaborado um conjunto de
instruções que, se seguidas, dão origem a um número indefinido de objetos
particulares. Um exemplo do primeiro seria a Brigitte Bardot, um exemplo deste
último seria o Minueto.47
(WOLLHEIM, 2015, p.52).
O autor acredita que se obtivermos êxito em alcançar uma caracterização
precedente de um tipo e seus tokens48
, estaremos, grosso modo, diante de uma estrutura
capaz de nos permitir explicar sobre os princípios de identidade e individuação de uma obra
de arte. Teríamos, portanto, um entendimento do status lógico de objetos artísticos tais
como: óperas, balés, poemas, gravuras, etc. Wollheim defende a existência do que intitula
como fragmento de uma invenção humana, estes fragmentos se enquadram ao longo de todo
espectro de casos que ele caracteriza. De um lado extremo da escala é colocado o poema,
onde o autor toma emprestado de Collingwood sua definição, sendo essa uma seleção de
palavras estabelecidas no papel, ou quem sabe, antes disso, quando são pensadas na cabeça
do poeta. A ópera é colocada no outro extremo da escala, algo que surge, segundo ele,
quando um apanhado de instruções musicais é anotada e que diante destas, performances
sonoras podem ser produzidas, ou seja, trata-se da notação.
47
Os casos intervenientes seriam constituídos pela produção de um particular feito justamente para ser copiado,
podemos pensar na construção de um molde que gera mais pormenores, tal como o primeiro Boeing 707. 48
Para o autor as questões de como o tipo é identificado ou como os tokens de um determinado tipo são
gerados é a mesma coisa.
52
Sendo exposto desse modo, a questão da identificação do tipo aparenta ser mesmo
problemática, principalmente quando se têm em mente objetos artísticos. A possibilidade de
tokens serem gerados a partir de um fragmento inicial de uma invenção é um tanto
tentadora. Parece-me claro que diversos tipos podem ser identificados de maneiras distintas,
a Union Jack pode ser identificada facilmente em diferentes tokens, seja numa toalha ou em
um chapéu. Seguindo os exemplos utilizados por Wollheim anteriormente, podemos
argumentar que os tokens de um poema tipo serão as inscrições que reproduzem a ordem das
palavras do manuscrito do poeta. Voltando para o exemplo musical, e na ópera sendo um
tipo, podemos pensar em seus tokens como partituras que reproduzem as marcas da
holografia do compositor. No entanto, há uma inclinação em considerar as performances da
ópera sendo igualmente um token. Neste caso, o autor considera que abriríamos precedente
para considerarmos um poema recitado também como token do poema tipo.
Algumas obras de arte são segundo Wollheim, melhor classificadas como tipos, e
esses tipos teriam uma relação muito mais “íntima” com seus tokens do que com os
universais. Seu posicionamento é de que os tipos e universais são entidades distintas, desse
modo, a forma como ocorrem as transmissões de propriedades também são distintas para os
universais e tipos. No caso dos universais, uma instância detentora de propriedades
necessárias de um dado universal não poderá transmitir a ele nenhuma propriedade
necessária dessa instância, mesmo possuindo tal propriedade exatamente por ser uma
instância desse universal. Já quando se trata dos tipos, serão transmitidos a eles, todas as
propriedades que um token de um certo tipo necessarimente deva possuir, ou seja, aquelas
que o token possui justamente por ser token desse tipo.
Wollheim, apresenta três observações, que segundo ele são feitas com base
nas nossas intuições mais gerais49
:
I. Não há propriedades ou conjuntos de propriedades que não possam passar do
token para o tipo.
II. Qualquer propriedade única pode ser transmitida de token para o tipo, mas
não significa que todas serão.
III. No caso de algumas artes, não se segue que todas as propriedades são
transmitidas do token para o tipo. (Embora permaneça como verdade que
qualquer propriedade única poderá ser transferida).
53
No caso I, Wollheim, apresenta um ponto importante para sua argumentação, com
as reservas usuais, tenta mostrar que não há nada que possa ser predicado sobre a
performance de uma determinada OMs que não possa ser baseada nessa própria OMs.
Segundo o autor, tal ponto assegura a inofensividade em se assumir a hipótese de que certas
obras de arte possam não ser objetos físicos, e sim tipos, o que não as impediria de ter
propriedades físicas. Tomemos como exemplos o livro Odisseia de Homero e a ópera Der
Rosenkavalier (1910) de Richard Strauss, ambos são tipos, porém meu exemplar da Odisseia
e a apresentação de Der Rosenkavalier que ocorrerá hoje à noite são tokens desses tipos.
A intuição II deve ser entendida da seguinte maneira: o token terá necessarimente
algumas de suas propriedades, mas não ocorre que todas as suas propriedades sejam
necessárias. Destarte, exemplificando com a performance da obra Der Rosenkavalier, essa
poderia ser desafinada, no entanto, a Der Rosenkavalier não poderia. Mesmo que todas as
performances dessa obra estivessem desafinadas, essas ainda seriam uma performance da
obra, isso indica que o fato de estar ou não afinada não é uma propriedade necessária de
qualquer token Rosenkavalier, e não será uma propriedade transmitida ao tipo.
Já a intuição III, faz referência às artes do espetáculo, tais como: ópera, sinfonia,
peças de teatro, balés. O autor ainda acrescenta que qualquer coisa que seja predicada de
uma performance da OMs, também pode ser baseada na própria música. No entanto, nem
toda propriedade que pode ser predicada da performance pertence à própria música. Para
estes casos, geralmente se defende essencialmente um elemento de interpretação. Este
elemento é considerado uma produção de um token que têm demasiadas propriedades
daquelas do tipo, ou seja, propriedades em excesso. Wollheim faz questão de salientar que
toda performance artística envolve ou é uma interpretação.
Para que a noção de propriedades transmitidas e compartilhadas fique menos
confusa, o autor utiliza o termo entidade genérica como expressão geral para tipos, classes e
universais, e para as coisas que recaem sob eles, o termo elemento. A distinção das diversas
entidades genéricas é feita com base no modo com que estas se relacionam com seus
elementos. Uma escala de intimidade e intrinsicalidade é um modo de organizar essas
relações. De um lado da escala estão as classes em que se estabelece uma relação mais
externa ou extrínseca. Tomando novamente o vermelho como exemplo, a classe das coisas
vermelhas é formada por todas as coisas que são (atemporalmente) vermelhas. Quando se
49
WOLLHEIM, 2015, p.52.
54
trata do universal vermelhidão, sabemos que este está presente em todas as suas instâncias,
isso demonstra uma relação um tanto mais íntima. Quando se trata dos tipos, a relação entre
entidade genérica e seus elementos é ainda mais íntima, a presença dos tipos não se dá tão
somente em seus tokens, tal qual a presença dos universais em suas instâncias, o tipo mesmo
sendo particularmente importante, quase sempre é pensado e dito como se fosse ele mesmo
o token. Por fim, Wollheim distingue propriedades compartilhadas de propriedades sendo
transmitidas do seguinte modo:
Quando A e B são ambos f, f é compartilhado por A e B
Quando A é f porque B é f, ou B é f, porque A é f, f é transmitido entre A e B.50
Após excluirmos propriedades pertencentes apenas aos tokens (localização no
espaço-tempo) e exclusivas do tipo (“foi inventado por”), veremos segundo o autor, que
universais e tipos compartilham propriedades.
De acordo com o autor, entidades genéricas poderiam compartilhar com seus
elementos propriedades, algo que, como visto, poderia ser totalmente contigente. Em certos
casos a entidade genérica possui certa propriedade pelo fato de seus elementos possuírem tal
propriedade, ou vice-versa, são nestes casos, que ocorre a transmissão de propriedades entre
a entidade genérica e seus elementos. Sendo os tipos também entidades genéricas, somente
propriedades de um tipo específico são transmitidas entre um tipo e seus tokens, voltamos ao
exemplo da Union Jack: as propriedades dela serão transmitidas entre seus tokens, a saber, a
propriedade de se ter um design específico nas cores vermelha, azul e branco, além de
apresentarem um formato retangular.
Existindo uma relação padrão de transmissão entre tipos e seus tokens, podemos
inferir que diversas obras de artes, entre elas a OMs, herdam as propriedades expressivas de
suas performances através dessa relação de transmissão.
Já Wolterstorff critica a tese apresentada por Wollheim das propriedades
compartilhadas e transmitidas entre tokens e tipos51
, de acordo com o primeiro, a distinção
feita não traz nenhuma contribuição para nosso entendimento sobre o padrão dessa
transferência. O autor salienta o posicionamento de alguns filósofos quando se trata dos
tipos naturais, onde há uma visão de compartilhamento generalizado de predicados e ou
compartilhamento de propriedades entre tipos e seus tokens. Wolterstorff destaca o padrão
50
Mesmo nos casos mencionados, a direção da transmissão é ignorada pelo autor. 51
WOLTERSTORFF, 1975, p. 115-142.
55
de transferência proposto por Wollheim, onde é sugerido que o que se segue é
necessariamente verdadeiro: o K compartilha uma certa propriedade com todos os Ks se e
somente se é impossível que algo seja um exemplo do K e não possua tal propriedade52
.
Wolterstorff, por sua vez, critica a fórmula de Wollheim, por considerar que esta não cobre
de forma ampla a relação dos tipos e seus tokens. Isso se dá, inicialmente, em razão da
fórmula mencionar apenas propriedades e não predicados53
. O autor argumenta que são
comuns os casos de predicados compartilhados, ao passo que, é incomum os casos em que
estes predicados representam propriedades que podem ser compartilhadas. Segue um
possível contraexemplo apresentado por Wolterstorff (1975): Pode acontecer que um certo
tipo compartilhe com todos os seus exemplos a propriedade de ter sido referido por alguém
ou por outro. No entanto, a maioria dos tipos é tal que algo poderia ser um exemplo deles e
ainda não ter essa propriedade.
Sua crítica segue contra a forma de transferência apresentada por Wollheim,
Wolterstorff afirma que se a transferência de propriedades entre tipos e seus tokens fosse
dada da maneira proposta, teríamos facilidade em explicar tal transmissão através de
exemplos com a palavra-tipo e também com alguma OMs. Se assim o fosse, explicaríamos
como a palavra-tipo “sheep” e seus tokens particulares podem possuir a propriedade de
conter 5 letras. De modo similar, também seríamos capazes de explicar como a Segunda
Sinfonia de Sibelius consegue possuir propriedades estruturais, tímbricas e demais
características que são expressas em suas performances corretas. Wolterstorff tenta nos
mostrar que ao contrário do que parece, esse tipo de relação não é exatamente fácil, pois ao
invés de uma identidade sistemática, o que existe na arte é uma relação sistemática. Nas
palavras de Wolterstorff:
Suponha que P seja um predicado que possa ser compartilhado entre uma obra de
arte W e seus tokens e suponha ainda, que uma propriedade para a qual P se refere
quando verdadeiramente predicado de tokens de W está sendo P. Então, para
aqueles casos em que o compartilhamento de P se encaixa no padrão geral que
formulamos, P quando verdadeiramente predicado de W significa, a propriedade
52
WOLLHEIM, 1964, p. 64-65. 53
Cabe apresentar as definições e exemplificações de «propriedade» e « predicado» , propriedade é uma
característica de um particular, já o predicado é um dispositivo linguístico para exprimir uma propriedade:
“Um particular é algo que tem propriedade e que não pode ser uma propriedade de algo: é, por exemplo, uma
cidade, uma pessoa, uma cadeira, uma árvore – termos singulares, como nomes Lisboa, João e etc.
Um predicado (como ser lisboeta) designa uma propriedade (a propriedade de ser lisboeta) e as propriedades
são características que os particulares exemplificam. (E que também as propriedades exemplificam, pois há
propriedades de segunda ordem - propriedades de propriedade. Por exemplo, a propriedade de ser pai tem a
propriedade de ser não-simétrica). Os predicados e os termos não singulares são os dispositivos linguísticos
usados para falar, respectivamente de propriedades e de particualares”. (MURCHO, 2003, pp. 90-91).
56
de ser tal que algo não pode ser um token correto dele sem ter a propriedade de
ser P. (WOLTERSTORFF, 1975, p.126).
Desse modo, o posicionamento do autor é de que o compartilhamento entre obras
de arte e seus tokens exibe genericamente outro tipo de relação de predicados, o que ele
chama de predicação analógica54.
Em relação à existência dos objetos artísticos, ele defende
que as OMs e demais obras de arte não entram, tampouco saem da existência, desse modo,
um tipo, T, existiria se e somente se, a propriedade, t, correlacionada existisse.55
Cabe
salientar o destaque dado pelo autor à distinção entre compartilhamento de propriedades e o
compartilhamento de predicados56:
A e B compartilham um «predicado» p, apenas quando p é realmente
predicado de A e B;
Por outro lado,
A e B compartilham uma «propriedade» p somente nos casos de ambos
possuírem p.
Wolterstorff analisa alguns predicados lógicos, que podem ser predicados de duas
coisas diferentes e que seriam capazes de afirmar algo verdadeiro nos dois casos. Para tanto,
ambas as coisas compartilham tal predicado. As OMs (e demais obras de arte) possuem uma
relação marcante de compartilhamento de predicados com seus tokens, pensemos em “Está
na tonalidade de Lá menor”, tal informação pode ser uma predicação verdadeira da obra
Sonata Nº 8 em Lá menor de Mozart, e também de todas, ou quase todas as performances da
Sonata Nº 8 em Lá menor de Mozart. O autor sugere que quando há uma partilha de
54
Segundo Davies, a doutrina da predicação analógica nos permite explicar como as obras performativas
podem ser, ou envolvem essencialmente tipos, e ainda assim serem devidamente apreciadas em virtude das
propriedades experimentadas de suas performances. As próprias obras possuem propriedades analogicamente
relacionadas a propriedades apreciáveis de suas performances corretas - isto é, propriedades de exigir certas
propriedades apreciáveis nessas performances. As qualidades apreciáveis predicadas de performances corretas
podem então ser referenciadas analogicamente à obra perforrnática em nossa apreciação mais recente.
(DAVIES, 2011, p.56). 55
Já seu posicionamento em relação a existência de propriedades é: para qualquer propriedade, sendo ~p, tal
propriedade existe apenas quando é o caso de algo ser ~p ou não ser ~p. Devemos ter em mente que ~p
representa um predicado lógico, esse por sua vez, não pode ser ao mesmo tempo verdadeiro e falso. A
proposição sendo verdade é chamada de Princípio Geral de Predicado (General PEP). 56
A passagem a seguir também contribuirá para a distinção: “Na lógica clássica, «Fa» simboliza uma
afirmação como «Sócrates é ateniense», sendo «a» o sujeito («Sócrates») e «F» o predicado («é ateniense»).
Na afirmação «Alguns homens são atenienses» há dois predicados: «é homem» e «é ateniense». O que se
afirma é que alguns particulares têm as duas propriedades: Ǝx(Fx e Gx). Ao inverter a afirmação, dizendo
«Alguns atenienses são homens» não se muda o sujeito para o predicado e vice-versa; Os predicados
continuam a ser «é homem» e «é ateniense». Sócrates pode exemplificar a propriedade de ser ateniense, mas a
propriedade ser ateniense não pode exemplificar Sócrates”. (MURCHO, 2003, p. 90-91).
57
predicados, isso se dá pela ocorrência de uma partilha de propriedades. Em alguns casos, é
possível dizer que o predicado é usado univocamente. Nesta situação, suponha que Rita e
Breno partilham o predicado “moram em Roma”, neste caso ambos compartilham a
propriedade que corresponde a viver em Roma. Em outros casos, predicados podem ser
compartilhados pelo fato de possuírem propriedades diferentes e não relacionadas, isso
ocorre no exemplo: Rita e Roberto “moram perto de um banco”. Aqui, Rita poderia morar
ao lado de uma instituição financeira, enquanto Roberto mora ao lado de um assento. Desse
modo, há o que o autor chama de uso equivocado de predicado. Quando se trata da
predicação analógica, o predicado é compartilhado pelo fato de possuir propriedades
diferentes, o curioso é que nessa relação, uma entidade possui determinada propriedade em
razão de uma outra entidade possuir outra. A predicação analógica, portanto, parece ser mais
do que um compartilhamento de propriedades, ou do que Wollheim chama de propriedades
transmitidas.
Por sua vez, Wolterstorff tenta formular exemplos adequados de tipos normativos,
que possam comportar instâncias mal formadas, como performances significativamente
diferentes de uma mesma obra. Inicialmente sua busca direciona-se em determinar qualquer
tipo de padrão que esteja relacionado aos compartilhamentos de predicados difundidos por
Wollheim. No entanto, acaba detectando a chamada predicação analógica, a situação que se
segue é bastante usada por Wolterstorff para ilustrá-la. Vejamos, numa predicação como
“contém um Sol Sustenido no sétimo compasso57
” tanto na OMs Primeiro Quarteto de
Cordas de Bartók e também em sua performance, há uma predicação analógica, isso ocorre
pelo fato de ambas, OMs e performance estarem predicando nos dois casos, propriedades
diferentes, contudo relacionadas. Aqui devemos pensar se é possível a performance predicar
certas propriedades, e quais seriam elas? Uma hipótese inicial seria a ocorrência de uma nota
específica (um Sol sustenido) em uma determinada região (sétimo compasso) ao longo de
sua progressão temporal. E o que podemos dizer das performances que porventura
contenham erros? Um token de uma dada OMs, necessariamente precisa ser um token
correto dessa mesma OMs58
? Podemos dizer sem certa dificuldade que uma performance
correta de uma dada obra, precisa no mínimo ser executada conforme as especificações da
57
A letra G se refere à nota musical Sol Maior, em Teoria Musical, um compasso é uma forma de dividir
quantitativamente em grupos os sons de uma composição musical. Os compassos facilitam a execução
musical, ao definir a unidade de tempo, o pulso e o ritmo da composição ou de partes dela. 58
O autor Gregory Currie, defende a perspectiva de que é necessário no debate ontológico uma distinção clara
entre instâncias e instâncias corretas de uma obra (sendo as últimas uma subclasse das primeiras). Porém, o
mesmo admite não conseguir fornecer um modo de tornar mais precisa a propriedade ser uma instância de.
(CURRIE, 2004, pp. 61-62).
58
partitura, ou seja, não se afastando da intensidade, altura tonal e meios de execução
permitidos pela mesma. Contudo, parece ser o caso que interpretações com níveis de
incorreções também possam ser performances genuínas de OMs. Assumindo que obras
performáticas possam ser falhas, e que portanto, instâncias de OMs possam estar incorretas,
nos parece plausível imaginar uma apresentação do Quarteto de Cordas nº 1 de Bartók sem
que uma nota específica esteja correta em determinada região. Para Wolterstorff, um “Sol
sustenido no sétimo compasso” é uma propriedade de qualquer instância formada
corretamente da obra, ou seja, teria tal propriedade; ser tal que algo não pode ser sua
instância correta sem ter um Sol sustenido no sétimo compasso. A teoria da obra-enquanto-
tipo-normativo acaba fazendo uso do operador: “ser tal que algo não pode ser uma instância
correta da obra sem ter a propriedade P” para contemplar instâncias corretas da obra.
Entretanto, assumindo que performances com falhas também possam ser instâncias genuínas
da obra, devemos conceber a existência da instância do Primeiro Quarteto de Cordas de
Bartók sem que este possua um G sustenido no sétimo compasso. Por essa razão,
Wolterstorff pensa em obras como tipos-normativos, algo capaz de abarcar instâncias
formadas e não bem formadas de seus tipos, já a propriedade que podemos atribuir à obra é a
de ter sua ocorrência em suas performances corretas ou bem formadas.
2.3.2 São os tipos universais?
As concepções platônicas e aristotélicas acerca dos universais foram apresentadas
detalhadamente na seção 2.2, grosso modo podemos dizer que são perspectivas distintas. De
acordo com a concepção platônica, os universais são objetos abstratos e imutáveis que
existem fora do espaço e do tempo, isto é, são transcendentes.
O termo ‘universais transcendentes’ significa que essas entidades existem
independentemente de suas instâncias espaço temporais. Já para concepção aristotélica, os
universais não existem fora do espaço-tempo, eles estão localizados no mesmo local onde as
instâncias estão localizadas, portanto são imanentes.
Existem características convergentes dos universais dentro das teorias platônicas e
aristotélicas de Realismo, os universais em contraste com os particulares são, a saber, não-
causais, repetíveis, abstratos, sem uma localização espaço-temporal, possuem instâncias e
são predicáveis de algo.
59
Tendo analisado as características dos universais, podemos agora analisar um
pouco mais de perto as propriedades do tipo e destacar suas possíveis características em
comum com os universais. Os tipos aparentemente:
d) Possuem instâncias ou são capazes de tê-las;
e) São repetíveis;
f) Encontram-se onde os universais estão.
Os tipos não detêm todas as características dos universais, mas para muitos
ontologistas de posição platonista d), e), e f) já seriam suficientes para considerarem os tipos
como sendo também universais, uma vez que, de acordo com a concepção platonista, tipos
são repetíveis, e ao contrário, de suas instâncias, são entes abstratos e não possuem
localização espaço-temporal. Logo, d), e), e f) são características compatíveis com o
realismo platônico.
Para os ontologistas de posição aristotélica d) e e) também são compatíveis com
parte da concepção do realismo aristotélico de propriedades. O realismo aristotélico também
defende que os tipos possuem mais de uma localização no espaço-tempo, que são repetíveis
e possuem instâncias ou são capazes de tê-las. No entanto, para essa posição, os tipos estão
localizados onde as instâncias estão, ou seja, como f) afirma que a localização do tipo se dá
no mesmo lugar do universal e não da instância, ela não vai de encontro com a teoria, sendo
assim, f) se torna uma característica incompatível com o realismo aristotélico.
A característica f) não apresenta nenhuma localização espaço-temporal específica,
dando margem a pensarmos que tal como o universal, possa ser algo abstrato. Em razão de
d), e), e f) serem compatíveis com o realismo platônico, a corrente concede ao tipo o status
de universal, isto é, os tipos não são semelhantes às propriedades, mas são seu próprio tipo
de universal.
Após termos visto as possíveis características em comum com os universais,
podemos afirmar que os tipos aparentemente:
d)Possuem instâncias ou são capazes de tê-las;
e)São repetíveis;
f)Encontram-se onde os universais estão.
Como vimos na seção anterior, Wollheim defende que tipos não são universais e
sim objetos abstratos. Objetos esses que não possuem existência independente, estando
60
localizados onde seus tokens estão, o que permite que sejam vistos e ouvidos da forma como
são demonstrados os tokens. Por mais que tipos e universais possam parecer semelhantes, o
autor parte do pressuposto de que tipos são criações humanas, e através delas as
propriedades são transmitidas para os tokens. A partir dessa transmissão algo estaria em um,
por estar no outro, ou seja, não seria um mero compartilhamento de atributos. Para
fundamentar sua defesa, Wollheim compara a relação entre tipos/tokens e
propriedades/instâncias e propõe que a relação entre tipos e tokens parece ser um tanto mais
“íntima” e segundo ele é por isso que, habitualmente nos referimos ao tipo como se
estivéssemos falando do próprio token. Comumente tipos e universais satisfazem os mesmos
predicados, no entanto, o autor destaca que há mais predicações compartilhadas entre tipos e
tokens do que entre os exemplos de propriedades clássicas e suas instâncias. Sobre os
predicados, ele argumenta que aqueles que são verdadeiros para os tokens, por estes serem
tokens de um tipo, também serão verdadeiros para o tipo, um exemplo é a Union Jack é
colorida, neste caso, tanto o tipo Union Jack quanto seus tokens serão coloridos. O mesmo
não ocorre com as propriedades clássicas, tendo em vista que a vermelhidão não é vermelha,
entretanto, suas instâncias o são. Já a relação entre as OMs e suas performances se daria
através de três classes de propriedades, nas quais algumas seriam exclusivas da obra IV) ou
da performance V), e outras seriam propriedades recíprocas VI). Vejamos alguns exemplos:
IV) terem sido compostas por Bach, V) possuir localização no espaço e no tempo, VI)
propriedades que podem ser obtidas mutuamente entre obra e performance, tal como a
propriedade de terminar com um acorde de Lá menor, algo que pode ser o caso tanto da obra
Concerto para violino em A menor BWV 1041 de Bach, quanto para sua performance.
Tendo sido exposta a argumentação de Wollheim, creio agora ser possível
caracterizar seu posicionamento como uma versão aristotélica dos tipos. Uma vez que, sua
teoria parece ser compatível com d), e) e contrária a f), ou seja, ele admite que os tipos são
capazes de possuir ou possuem instâncias, são repetíveis e estão localizados onde suas
instâncias estão.
Wolterstorff por sua vez, parece se enquadrar num posicionamento platonista,
sua defesa é iniciada considerando os tipos como sendo universais. Ao contrário do modelo
tipo-token adotado por Wollheim, faz uso da analogia entre tipos-normativos-naturais e
tipos-normativos-não-naturais. Alguns tipos são normativos por poderem possuir instâncias
corretas ou incorretas, um animal, por exemplo, seria um tipo-normativo-natural, pensemos
num cachorro: para que x seja um cão é preciso possuir todas as propriedades essenciais da
canidade, mas é possível que um cão não possua a totalidade dessas propriedades essenciais,
61
podendo ser algo mal formado, um cão que tenha nascido sem uma das patas ou o rabo, não
deixará de ser um cachorro. Já uma OMs seria um tipo-normativo-não-natural, algo que não
possui propriedades atribuídas por nossa linguagem de costume. Neste caso, quando
afirmamos que dada OMs possui uma nota específica em determinado compasso, não
estamos mencionando uma propriedade de fato da obra, ainda que, esta possa ser uma
propriedade de uma instância bem formada da mesma. Para Wolterstorff, nossa indução
ordinária é a de que os tokens nos dão conhecimento sobre os tipos, pelo menos no caso de
tipos instanciados. Em sua visão, as performances são objetos físicos e as OMs possuem
uma existência independente das suas manifestações perceptíveis, o que o leva a crer que
são entidades abstratas.
Após analisarmos parte considerável da sua teoria na seção atual e anterior,
podemos afirmar que seu posicionamento é bastante compatível com o realismo platônico.
Uma vez que, sua abordagem contempla d) e) e f), parece então que estamos diante de uma
versão platonista dos tipos.
62
3. O QUE É UMA OBRA MUSICAL?
O que pensam algumas correntes?
Em meados da década de 60 do século XX emergiu no cenário filosófico,
sobretudo, na área da estética analítica59
a discussão sobre ontologia musical, seu surgimento
se deve principalmente pela tentativa de elucidar duas respostas opostas para a mesma
pergunta: O que é uma obra musical?60
Claramente o termo “objeto artístico” indica um tipo
de obra de arte, que pode ao menos diante de um primeiro contato nos sugerir que é um
objeto físico, portanto concreto e localizável no espaço e no tempo. Contudo, imagine que a
obra de arte pensada é uma peça musical, tal qual a 5ª Sinfonia de Beethoven. Como seria
esse objeto? Possuiria alguma forma? Supostamente parece não estar localizado de fato em
lugar algum. Afinal, o que pensam os ontologistas musicais sobre as questões que tangem à
obra musical?
Grosso modo podemos dividir os ontologistas entre realistas e antirealistas, os
primeiros defendem a existência das obras musicais, enquanto os segundos defendem o
contrário. Basicamente, grande parte da discussão sobre a natureza da obra musical, faz, por
assim dizer, um resgate da discussão do “problema dos universais”. Apesar de o realismo ser
a corrente mais popular entre os ontologistas, é possível afirmar que dentro dela há questões
realmente conflitantes. Mas, de forma geral, existe uma gama de teorias ontológicas que
investigam a natureza da obra musical, sobretudo, das obras de música clássica ocidental.
No presente capítulo vamos apresentar o princípio da restrição pragmática usado como
método por diversos filósofos da arte, também serão apresentadas e analisadas as principais
correntes teóricas que buscam dissolver as questões conflitantes do tema. Tais correntes são:
- Nominalismo: A obra musical é constituída por um grupo de partituras e ou
interpretações;
- Eliminativismo: Não existem obras musicais;
59
Como bem observado por Kania em seu artigo New Waves in Musical Ontology: “Desde o início da estética
analítica, há cerca de cinquenta anos, a música é talvez a arte que os filósofos mais têm discutido. As razões
para a atração dos filósofos pela música como objeto de estudo são obscuras, mas um elemento é seguramente
o de a música, enquanto arte performativa, não linguística, não pictórica, de instanciação múltipla, levantar
pelo menos tantas questões acerca de expressão, ontologia, interpretação e valor quanto qualquer outra arte —
questões que não raro parecem mais intrigantes do que as levantadas por outras artes”. (KANIA, 2008, p.01). 60
Não confundir a pergunta “O que é uma obra musical?” com “O que é música?”, a primeira pergunta está
em busca do caráter ontológico/metafísco da música, busca-se entender de que tipo de coisa é uma obra
musical. A segunda pergunta está em busca caráter do semântico, ou seja, procura alguma definição do
conceito música.
63
- Teoria performativa: A obra musical consiste em uma forma de ação, ou uma ação
particular executada pelo artista;
- Idealismo: A obra musical é constituída por uma espécie de entidade mental, ou
entidade mental particular;
- Platonismo: A obra musical é um objeto eterno e abstrato.
3.1 A Restrição Pragmática
Há cerca de 40 anos a restrição pragmática têm sido usada como princípio
metodológico de muitos ontologistas da arte61
. Este princípio, no entanto, só fôra
amplamente explorado, e por sua vez, ficou ainda mais conhecido através da obra Arts as
Performance (2004) do filósofo David Davies.
Grosso modo, podemos entender que a restrição pragmática é um princípio
metodológico que considera as práticas artísticas como padrão de medida para as
investigações ontológicas da arte, tendo como objetivo chegar à melhor teoria. A discussão
inicial sobre ontologia da música costuma ser comparada com a ontologia de propriedades e
até mesmo é entendida como um mero debate aplicado sobre o problema dos universais
(KANIA, 2008). Esta comparação se deve à ideia de que as características básicas das OMs
são idênticas às características das propriedades, por essa razão, deveríamos enquadrá-las na
mesma posição ontológica. Mas antes de focarmos na obra musical como objeto principal,
veremos com maior detalhe como funciona a proposta da restrição pragmática de Davies
para as artes em geral.
A restrição pragmática é um argumento elaborado por Davies (2004) dentro de sua
filosofia da arte como resposta a uma crítica feita por Tom Wolfe ao modernismo tardio62.
Para Davies, a crítica de Wolfe promove uma visão de “descontinuidade”, que está
profundamente enraizada em nossas bases comuns de pensar a arte, tal visão, concebe as
apreciações artísticas como sendo prisioneiras de considerações específicas, baseando-se
61
O princípio da restrição pragmática orientou explicitamente ou implicitamente livros e artigos relevantes
sobre ontologia da arte, sobretudo dentro da tradição analítica, são exemplos: Richard Wollheim em Art and
its Objects 1980 , Arthur Danto em The Transfiguration of the Commonplace 1981, Robert Stecker em
Artworks 1996 , Gregory Currie em An Ontology of Art 198 v 9, Stephen Davies em Definitions of Art de
1991, no artigo Artworks as Historical Individuals, 2003, pp.177-205 de Guy Rohrbaugh e por sua vez, na
obra mais importante da área Músic, Art, and Methaphysics publicada em 1990 por Jerrold Levinson.
62 Segundo Davies, Wolfe acusa o modernismo tardio de falhar como arte, isso por esta não produzir os tipos
de valores que buscamos em nossas vidas e também, por sugerir que só poderíamos “captar” obras como as
de Duchamp, Robert Barry e John Cage através da posse de teorias apropriadas.
64
principalmente nas apreciações e críticas das obras, digamos “tradicionais”. Davies chama
esse tipo de abordagem da arte e da apreciação artística de teoria do senso comum, e essa,
contudo, traz consigo 4 teses abrangentes sobre a arte. São elas (DAVIES, 2004):
-Ontologia da arte: As obras são tidas como instâncias que podem ser encontradas
em ambientes artísticos, como galerias, museus, salas de concerto, teatros, cinemas e
bibliotecas.
-Epistemologia da arte: Uma condição necessária e suficiente para que seja possível
apreciar adequadamente uma dada obra é dispor de um encontro experiencial direto com
alguma instância da obra. Algumas obras carregam em si propriedades singulares, que
somente são apreendidas através desta experiência, desse modo, a avaliação crítica e ou
descrição feita por outra pessoa não é satisfatória, por essa razão, o encontro direto se faz
necessário. E tal encontro é visto como suficiente, pois, caso a obra tenha alguma
propriedade que não possa ser acessada através do encontro experiencial com sua instância,
essa propriedade se torna irrelevante no que tange seu valor e apreciação artística.
-Axiologia da arte: Segundo Wolfe, diante do encontro experiencial direto com a
instância da obra, temos uma “recompensa” intrinsecamente valiosa suscitada pela obra,
geralmente não há outras maneiras de se obter tais recompensas, portanto, seria em virtude
dessas experiências exclusivas que a arte é valorizada.
-Definição de obra de arte: A obra de arte através de suas instâncias possui, ou está
destinada a possuir propriedades que se tornam acessíveis durante os encontros experienciais
diretos, capazes de proporcionar ao receptor artístico experiências “estéticas”. Sendo assim,
podemos afirmar que os objetos que valorizamos como obras de arte são distinguidos pelas
propriedades “estéticas” conferidas a eles por seus criadores.
Segundo Davies, esse tipo de teoria do senso comum incorpora em seu projeto
visões empiristas demasiadamente amplas, algo como uma teoria abrangente da arte,
sobretudo, em relação ao valor artístico e apreciação63
. Nosso contato com as obras só seria
63
De acordo com Davies, a teoria do senso comum possui diversos filósofos como defensores, um deles seria
Clive Bell, por ainda fazer uso de termos demasiados esotéricos, como uma tentativa de que a teoria soe menos
“senso comum” e ao defender uma espécie de “emoção estética” algo dado de forma sui generis, que seria
desencadeado em certos receptores, estes seriam capazes de desfrutar de um acesso perceptual não mediado
aos objetos que estão expostos nas galerias de arte. (DAVIES, 2004, pp. 8-9).
65
possível, caso houvesse um encontro entre nós e a entidade fosse de algum modo perceptível
(como os sons produzidos por uma orquestra, ou uma tela exposta na parede da galeria). Já a
atribuição de valor artístico estaria dependente do tipo de experiência produzida em nós
diante do tal encontro, comprometendo então, demais valores que poderiam ser atribuídos às
obras de arte em sua apreciação, mas que por alguma razão não são características captadas
por todos os receptores durante o encontro.
O que Davies tenta mostrar é que a visão do senso comum dificulta a análise do
público sobre as obras do modernismo tardio, para além de uma crítica radical, o autor tenta
estabelecer bases conceituais seguras que sejam capazes de enquadrar: apreciação artística,
criação artística e modernismo tardio/arte contemporânea. Davies, então, se propõe a
responder a maneira como os diferentes elementos devem ser estabelecidos em relação um
ao outro dentro de uma teoria da arte. Ou seja, de forma mais ampla, tenta explicar como
certos apelos à prática artística servem para avaliação de uma teoria da arte:
Suponho que a "prática artística", adequadamente interpretada, deve servir como
pedra de toque para nossa teorização filosófica sobre arte, e que, como resultado, a
suposição padrão deve ser que as coisas tratadas como obras de arte em nossa
prática artística são de fato obras de arte. Na medida em que falar sobre nossa
“prática artística” é falar sobre as maneiras pelas quais tratamos e caracterizamos
as coisas que denominamos “obras de arte” em nossos compromissos críticos e
apreciativos com as artes, afirmações sobre o status ontológico das obras de arte
são restritas aquelas características de nossa prática criativa, crítica, apreciativa e
individuativa nas artes que resistiriam ao escrutínio racional. A ontologia da arte é,
desse modo, responsável pela epistemologia da arte. (DAVIES, 2004, p.18).
A restrição pragmática é um princípio metodológico criado para orientar a
investigação filosófica, é possível observar algo nesse viés nas obras de diversos filósofos
analíticos, mas destaco aqui as passagens de Levinson (1990) e Currie (1989). O primeiro a
abordar sobre o caráter ontológico das OMs, demonstra que a obra de arte, por ser o objeto
investigado pela filosofia da arte, é tanto o foco de crítica quanto de apreciação, ou seja, é a
entidade da qual predicamos as propriedades que atribuíamos à crítica e também à
contemplação, portanto, a individuação das obras deve ser capaz de refletir esse fato. Nas
palavras de Levinson (1990, p.241), as OMs “devem ser específicas o suficiente para
suportar os atributos estéticos e artísticos que atribuímos a elas. Nós temos que concebê-las
para que elas sejam o que tais atribuições são”. Na obra de Currie (1989, pp.11-12) é
possível ver algo similar “O termo “obra de arte” só pode ser elucidado num contexto de
um teoria estética geral, que é capaz de descrever e analisar os tipos de relações que se
66
mantêm entre nós, como críticos, observadores e as próprias obras”. Currie, neste mesmo
livro, o inicia dando ênfase a um princípio no qual as ontologias da arte são capazes de se
ajustarem “às maneiras pelas quais as obras devem ser julgadas e apreciadas”.
Apesar do princípio metodológico em questão ter sido bastante usado nas últimas
décadas, seu vasto uso não o torna por si só correto. Cabe aqui tentar analisá-lo de modo um
pouco mais minucioso e apresentar possíveis objeções.
O fato da restrição pragmática parecer fazer uso da prática artística como uma
espécie de juiz na ontologia da arte pode indicar uma possível objeção, afinal, ela pode ou
deveria exercer tal função? O próprio Davies concorda com tal crítica, parece óbvio que a
nossa prática artística incorpora juízos críticos e contemplativos, estes nem sempre são
internamente compatíveis, podendo acarretar inúmeras suposições inconsistentes. Até
mesmo a prática artística dos críticos não pode ser entendida como fonte de um conjunto
consistente de pressupostos, visto serem vários os paradigmas que os regem. Ao que parece,
a prática artística não demonstra ser o melhor meio de julgamento na ontologia da arte.
No entanto, parece que a formulação acima da restrição pragmática consegue
escapar de tal objeção, uma vez que esta não identifica a ontologia da arte como encarregada
pelas normas implícitas ou explícitas em nossa prática artística verdadeira, o que Davies faz
é responsabilizar as normas que regem essa prática e que são capazes de sobreviver ao que
ele denomina “reflexão racional”:
A alegação, então, é que uma explicação teórica do nosso trato com obras de arte
está em uma relação essencialmente normativa, e não meramente descritiva, com
as normas que operam na prática crítica atual e os julgamentos de acordo com
aquelas normas que realmente fazemos. (DAVIES, 2004, p.21).
Parece-me claro que Davies tem em conta não apenas o caráter intuitivo sobre os
aspectos da prática artística (que inclui a prática crítica e apreciativa), pois também
considera de suma importância a reflexão racional sobre tal prática. Desse modo, mesmo
que tenhamos intuições pré-teóricas sobre ontologia da arte, parece-nos plausível que estas
são totalmente revisíveis à luz de alguma teorização filosófica bem fundamentada.64
Sendo
assim, os elementos de uma explicação filosófica da arte devem ser avaliados, e se for o
64
Kania (2008) parece estar de acordo com Davies: “Como praticamente qualquer ontologista da arte
concordará, essas intuições são revisíveis à luz de alguma teorização filosófica, em parte porque estes admitem
que não podemos manter consistentemente todas as nossas intuições. Davies coloca este ponto muito
claramente ao sustentar que nossas intuições pré-teóricas (ou pelo menos um subconjunto delas) se somam a
uma teoria empirista da arte, consistindo, pelo menos, em teses ontológicas, epistemológicas, axiológicas e
definicionais, mas argumenta, convincentemente, que tal teoria não pode explicar muitas das nossas práticas
artísticas centrais e, portanto, deve ser revisada”. (p.432).
67
caso, concebidos dentro de uma espécie de “teoria estética geral” semelhante à de Currie. O
que Davies alega é que para a construção de uma teoria geral se faz necessário partir de
algum ponto, a prática artística amplamente concebida seria este ponto. Para avançar na
ontologia da arte, nossas intuições reflexivas é que se tornam fundamentais, pois são elas
que nos permitem indicar o que é ou não aceitável em dada prática, viabilizando então, que
fosse possível ultrapassar o ponto inicial. Em suas palavras:
Em primeiro lugar, o nosso interesse filosófico pela “arte” e pelas “obras de arte”
baseia-se precisamente por tal prática, isso, pois, certas características dessa
prática nos intriga, ou porque as entidades dessa prática nos fascinam, por essa
razão somos levados a reflexão filosófica sobre a arte. Oferecer uma “ontologia da
arte” não sujeita à restrição pragmática seria mudar o assunto, em vez de responder
às questões que motivam a estética filosófica. Em poucas palavras, não há
alternativa senão partir da reflexão crítica sobre a nossa prática artística real,
porque as próprias noções de “arte” e “obra de arte” são parasitas dessa prática -
obras de arte são apenas as coisas que desempenham um tipo particular de papel
em um determinado tipo de prática. (DAVIES, 2004, p.21).65
Dentro da ontologia da arte, a restrição pragmática se propõe como via segura de
investigação/argumentação, não somente por meio dos relatos da nossa prática crítica e
apreciativa, mas através do que Davies chama de “argumento epistemológico”, este tipo de
argumento deve começar com o que ele chama de premissa epistemológica. Vejamos o que
deve conter em sua estrutura:
I) Iniciar com uma premissa epistemológica – onde a reflexão racional sobre
nossa prática crítica e apreciativa confirma que certos tipos de propriedades,
reais ou modais, são corretamente atribuídas ao que é chamado de “obras”
nessa prática, ou que nossa prática individua corretamente ao que é chamado
de “obras”.
II) Seguir com uma premissa metodológica – a restrição pragmática. As obras de
arte devem ser concebidas ontologicamente, de modo a estar de acordo com
as características de nossa prática crítica e apreciativa, apoiadas em reflexões
racionais.
65
Nessa passagem, Davies faz uso de uma analogia com a máxima kuhniana (1970) de que a Filosofia da
Ciência sem a História da Ciência é vazia – que não podemos prosseguir em nossas tentativas de entender o
que é ciência sem nos responsabilizarmos em algum sentido pelo que os cientistas fazem.
68
III) Finalizar com uma conclusão ontológica – as obras de arte devem ser (ou não
podem ser) tais e tais coisas 66
.
Destarte, I afirma que, na reflexão racional, nossa prática artística é capaz de nos
conceder certo tipo de propriedades ao que intitulamos “obras de arte”. Em II é destacada a
importância de se permanecer com a premissa metodológica, ou seja, a restrição pragmática.
Neste caso, para que esta funcione é preciso admitir tais atribuições. Já III indica sobre a
necessidade de concluirmos um argumento dentro da ontologia da arte fazendo uso de um
viés também ontológico, capaz de indicar o que é ou não uma obra de arte. Desse modo, a
restrição pragmática dentro da ontologia da arte parece se ajustar ao seu status
metodológico e ser neutra entre visões concorrentes da área, alegando apenas que tais visões
são responsáveis por aquilo que consideramos ser uma prática adequada. Neste caso, para
obtermos conclusões ontológicas outorgadas pela restrição pragmática, será necessário
conceber premissas epistemológicas que com elas se encontrem articuladas, ou seja, é
necessário considerar aquilo que julgamos estar envolvido na correta apreciação de uma
obra. A esse respeito, Davies declara:
Se, por exemplo, sustentamos que as únicas propriedades que têm valor artístico e
apreciativo são aquelas que um receptor pode determinar em um envolvimento
direto com uma obra manifestada, então a conclusão ontológica natural a ser
extraída, dada a restrição pragmática, é que a obra é uma espécie de estrutura
perceptível dada em um encontro com uma incorporação concreta da obra, ou
talvez um objeto físico no caso de artes como pintura e escultura.
Alternativamente, se alguém acredita que as únicas restrições à apreciação correta
de uma obra vêm do consumidor, e não do produtor, de modo que uma apreciação
interpretativa de uma obra seja aceitável ou correta, caso ele represente a obra de
uma maneira interessante ou relevante para o receptor, então os fatos sobre o
histórico real de uma obra não terão novamente um papel privilegiado a
desempenhar na apreciação dessa obra e, portanto, não têm consequência na
individuação e identidade das obras. (DAVIES, 2004, p.24).
Tendo exposto a teoria do senso comum e da restrição pragmática, podemos agora
extrair com base na primeira a seguinte concepção das OMs:
i) Obras musicais são ‘múltiplas’, ‘repetíveis’ e possuem ‘instâncias’ (perfomances);
ii) Entramos em contato ou temos acesso à obra através de suas instanciações.
66
No original, Davies diz “3- an ontological conclusion. Either (negative) artworks cannot be identified with
69
Se levarmos em conta tal caracterização simplista das OMs, partilharemos da
concepção de que a ontologia musical pouco (ou nada) se diferencia da ontologia geral.
Entretanto as obras musicais parecem possuir características ainda mais básicas, que
agregam à sua ontologia um caráter próprio e mais difícil de ser assimilado às propriedades,
a saber:
iii) OMs parecem ter sido criadas intencionalmente por seus compositores;
iv) OMs possuem especificação normativa, pois determinam como devem ser suas
performances, ademais, a norma também admite desempenhos bons e ruins.
v) Suas propriedades estéticas ou artísticas parecem depender do contexto cultural de sua
composição.
Se assumirmos que tais características são pertinentes para a ontologia da música,
estaremos acolhendo o princípio da restrição pragmática, pois neste caso, as práticas
artísticas apresentadas em iii), iv) e v) estão sendo usadas como padrão de medida para
ontologia musical. Conforme a lógica da restrição pragmática musical, ao tentarmos
esclarecer questões ontológicas sobre música, devemos ter como base de nossas respostas as
melhores teorias musicais vigentes, desse modo, elas nos servirão de evidências. Cabe
esclarecer que neste contexto, teorias musicais não são entendidas em sua forma
estritamente teórica, ou tradicional, como é o caso da musicologia. Mas afinal, que tipo de
compreensão musical teórica deve ser levada em consideração para fundamentar nossas
respostas ontológicas sobre música? Filósofos como Davies(2004) responderiam que a
esfera cultural como um todo serve de base importante para tais respostas, desse modo até o
que disser respeito à produção e recepção da música deve ser considerado.
O filósofo Guy Rohrbaugh em seu artigo intitulado Artworks as Historical
Individuals (2003) parece defender uma restrição ainda mais pragmática dentro da ontologia
da arte, apesar do artigo em questão ter sido publicado um ano antes do livro Art as
Performance de Davies, ele apresenta uma metodologia similar ao que Davies (2004)
denomina como restrição pragmática. Rohrbaugh inicia seu artigo apontando ser de suma
X’s, or (positive) artworks can or should be identified with Y’s”. (DAVIES, 2004, p.21).
70
importância dentro do âmbito metafísico da arte, definir quais são as propriedades relevantes
de uma obra para sua crítica e também apreciação. No entanto, ele afirma que não
deveríamos definir essas respostas através de uma perspectiva da ontologia da arte. Em sua
visão, uma ontologia da arte que seja de fato correta deve ser capaz de fornecer um
panorama metafísico ajustável o suficiente para descrever inúmeros fenômenos e visões
críticas heterogêneas, e estes devem ser explorados através de seus próprios termos.
Rohrbaugh assim como Davies atribui às práticas artísticas um padrão de medida para as
investigações ontológicas da arte, tendo como objetivo alcançar à melhor teoria67
:
As ontologias da arte estão ligadas às nossas práticas artísticas - as formas como
falamos, pensamos e agimos em relação à arte ou, pelo menos, à reconstrução
racional delas - e os debates críticos fazem parte das práticas a serem capturadas. É
o trabalho do metafísico da arte fornecer o espaço para mais argumentos, não
cortá-lo por decreto. (ROHRBAUGH, 2003, p.179).
Segundo Rohrbaugh, somos detentores de intuições pré-teóricas e estas se somam a
uma forte concepção da ontologia das obras de arte. A saber:
-Flexibilidade Modal: Poderiam ter outras qualidades que não as atuais;
-Flexibilidade Temporal: Eles são suscetíveis a mudanças em suas qualidades ao
longo do tempo;
-Temporalidade: Eles entram e saem da existência.
Enquanto Rohrbaugh defende a importância das nossas intuições pré-teóricas no
avanço da ontologia da arte, Davies, numa via oposta da intuição ontológica, opta por
intuições reflexivas, destacando serem elas que nos possibilitam indicar o que é ou não
aceitável em dada prática artística. Apesar de discordarem sobre quais intuições deveriam
entrar para a análise ontológica da arte, ambos concordam sobre o uso das práticas artísticas
67
A teoria principal de Rohrbaugh (2003) é a dos indivíduos históricos, sua teoria indica que todas as obras de
arte, principalmente aquelas que são “instantâneas” como OMs e fotografias são consideradas indivíduos
históricos, ou seja, “itens ontologicamente dependentes, cuja criação, continuidade e destruição são, em última
instância, uma questão de como ele vai com alguns outros itens históricos”. (p.191). Em outras palavras, assim
como uma pintura é constituída por sua tela e pintura a óleo, uma fotografia é incorporada no que o negativo
imprime. Rohrbaugh argumenta que tanto as fotografias quanto as pinturas são reais. A sensação de realidade
que ele tem em mente é que são como objetos concretos: pedras, mesas e árvores, portanto, as propriedades
que são consideradas abstratas têm uma espécie de história de vida. “Todos estes estariam sujeitos a alterações
ao longo do tempo, e [...] poderiam ter sido um pouco diferentes do que são de fato. Mais distante [...] a
existência de todos esses itens está enraizada no mundo físico”(p. 199).
71
como padrão de medida para estas investigações, ou seja, defendem uma restrição
pragmática.
Através da restrição pragmática, temos, portanto que qualquer ontologia musical é
capaz de descrever as OMs como sendo entidades detentoras das propriedades que lhes são
atribuídas através do discurso pré-filosófico, musical e crítico, mesmo que certas restrições
lógicas e metafísicas pareçam um tanto coercitivas. Desse modo, uma ontologia musical
deve buscar descrever ao máximo e não apenas revisionar as práticas musicais e críticas
existentes. Diante dessa perspectiva, Guerreiro (2010) expõe que dentro de uma dada
tradição musical, tanto músicos, críticos e público em geral são responsáveis por
caracterizarem diversas entidades musicais, indicando então uma precedência sobre
quaisquer argumentos filósoficos cuja conclusão seja revisionista das crenças musicais
básicas no seio dessa tradição.
3.2 A abordagem nominalista
A origem do termo “nominalismo” remete ao período da Idade Média tardia, e
implica a grosso modo, uma rejeição aos universais, já numa versão mais moderna da
filosofia refere-se às entidades abstratas. Num aspecto geral do termo, o nominalismo pode
ser entendido como uma indicação teórica geral de um grupo de temas filosóficos e
teológicos que se opunha às diversas versões do realismo (platônico e aristotélico). Temos
como precursores desse pensamento os pensadores Pedro Abelardo e Guilherme de Ockham,
ambos defendiam o caráter particular de todas as coisas, apenas uma espécie de etiqueta,
nome comum seria partilhado entre indivíduos distintos, portanto um rótulo seria aplicado a
cada um desses indivíduos e não a outros (BIGELOW, 2006). Empiristas clássicos como
Hobbes e Locke também seguiram Abelardo e Ockham ao negarem que termos gerais
representam universais e ao afirmarem que as únicas coisas que existem são particulares.
A abordagem nominalista no século XX ganhou força dentro da tradição da
filosofia analítica, ela além de negar a existência de entidades abstratas, faz uso da análise
do discurso sobre elas, a partir de entidades concretas. Goodman (1968) identifica a obra
como classes, propõe como resposta ao problema da relação entre a obra e suas
instanciações (execuções), que a obra é na verdade constituída pela classe de todas as suas
execuções. Um caminho argumentativo similar também fora seguido pelos filósofos Stefano
Predelli (2001), Ben Caplan (2008) e Carl Mathenson (2006), os três defendem atualmente
um nominalismo goodmaniano, afirmando que falar sobre tipos é um modo oportuno de se
72
falar sobre tokens. Há quem defenda que o termo “nominalismo” usado dentro da tradição
contemporânea é ambíguo: haveria o sentido tradicional, baseado nos filósofos da Idade
Média, no qual ocorre uma rejeição dos universais e haveria num sentido mais modern, a
saber, a rejeição aos objetos abstratos68
. O nominalismo pode ser considerado uma espécie
de antirealismo, pois em um tipo de nominalismo é negada a existência, portanto, a realidade
dos universais e, no outro, é negada a existência, realidade dos objetos abstratos. Mas afinal
o que a corrente costuma dizer em relação às entidades consideradas por alguns como sendo
universais ou objetos abstratos, tal como números, OMs, mundo possíveis e proposições?
Podemos dizer que há em geral duas opções, em que se: (P) nega a existência das entidades
em questão, em que se (Q) aceita a existência de tais entidades, mas se alega que são
concretas ou particulares. Por vezes identificam o nominalismo como sendo a teoria que
rejeita números, propriedades, proposições etc. Entretanto, a teoria não pode ser assim
definida como aquela que rejeita números, propriedades, proposições etc, pois ela não é
contrária às entidades em si, o nominalismo apenas considera que tais entidades são
incompatíveis com a concepção de universal ou objetos abstratos, ou seja, tais entidades se
existirem serão concretas. Sendo assim, a simples negação de tais entidades não faz de um
filósofo um nominalista, para ser um nominalista é preciso negar tais entidades por conceber
algum tipo de caráter universal ou abstrato (P), ou (Q) aceitá-las por conceber que estas são
particulares ou objetos concretos.
Mas afinal o que o nominalismo tem a dizer em relação às obras musicais? Quais os
tipos de implicações dessa corrente em nossas relações com a música? Os nominalistas
defendem que a OMs é uma entidade concreta de algum tipo, entretanto, diante somente de
tal informação não podemos afirmar se a corrente é realista ou antirealista dentro do
chamado realismo metafísico. O realismo considera que certas entidades musicais, como
sonatas, sinfonias e quartetos são objetos abstratos. Os nominalistas diante de tais entidades,
como dito anteriormente possuem duas opções gerais: P ou Q. Grande parte dos
nominalistas perante a tais entidades aceitam Q, pois não concebem que sonatas, sinfonias e
quartetos sejam objetos abstratos e não existentes. Os antirealistas dentro da ontologia
musical defendem que as OMs não são independentes da nossa mente, estes não questionam
a existência lato sensu das OMs, mas consideram que OMs não passam de construções
sociais e ou linguísticas de algum tipo, desafiando portanto, a independência das OMs de
68
Cabe destacar que diversos filósofos diferenciam universal de objeto abstrato. Um universal seria algo capaz
de ser instanciado por entidades diferentes, ao passo que o objeto abstrato é algo não-espacial e não-temporal.
73
nossas mentes69
(GIOMBINI, 2015). A corrente nominalista não nega a existência concreta
e real das OMs, também não rejeita a independência das OMs em relação às nossas mentes,
sua posição por vezes é compreendida como realista por essa rechaçar apenas o caráter
abstrato das OMs e pensar nelas como existentes. Cabe apresentar agora uma distinção
adicional sobre os dois tipos de realismo metafísico, a saber, o realismo em relação aos
objetos abstratos e o realismo em relação aos objetos externos:
i- O realismo metafísico em relação aos objetos abstratos defende que
existem objetos abstratos, como propriedades, tipos e números. E afirmam
que propriedades como vermelhidão, tipos como ouro, e objetos
causalmente inertes como sinfonias e números devem ser creditados como
uma forma de existência.
ii- O realismo metafísico em relação aos objetos externos é também chamado
de realismo epistêmico. Este defende que objetos, animais, seres humanos
e demais constituintes do mundo existem de modo independente da mente.
Mas tal “independência mental” é apenas epistêmica, não implicando
portanto, no status ontológico dessas entidades 70
.
Como bem destaca Giombini:
De fato, há boas razões para pensar que as obras musicais não podem ser tão
facilmente comparadas a números, propriedades ou tipos, pois são criadas, são
submetidas a performances melhores ou piores e dependem do contexto cultural de
sua criação, embora as obras musicais pareçam compartilhar com outros objetos
abstratos uma relação muito peculiar com o espaço e o tempo, se diferem daquela
dos objetos comuns da experiência como mesas, rosas e mulheres. (GIOMBINI,
2015, p. 29).
69
Nessa concepção de antirealismo é afirmado, portanto, que as obras de arte não podem ser separadas das
experiências mentais que elas geram. 70
“Os realistas epistêmicos podem adotar uma atitude agnóstica em relação às entidades teóricas postuladas
pelos realistas metafísicos como objetos abstratos, enquanto continuam a acreditar que quaisquer entidades que
o mundo realmente contenha existiriam independentemente de nossas concepções e percepções delas (...) A
queixa mais comum, entretanto, é que a noção de existência independente da mente usada como um manifesto
pelo Realismo metafísico é de fato obscura ou cognitivamente sem sentido, como os Empiristas Lógicos
haviam anteriormente observado”. (GIOMBINI, 2015, p. 29).
74
O nominalismo em relação à ontologia musical mantêm portanto, uma forma de
realismo epistêmico, por negar que OMs são objetos abstratos. A estratégia é utilizada para
se esquivar dos problemas que são gerados ao se assumir a possibilidade de uma interação
causal com um objeto abstrato. Tendo em vista que por definição objetos abstratos existem
fora do espaço, eles não poderiam entrar em relação causal com nossos aparatos perceptivos,
desse modo não poderíamos nos referir às OMs e tampouco afirmarmos algum
conhecimento sobre elas71.
Os chamados realistas epistêmicos geralmente apresentam uma
postura agnóstica em relação às entidades teóricas, como os objetos abstratos, mas isso não
os impede de conceber que entidades por eles consideradas existentes, existam de forma
independente de nossas percepções e ou concepções (GIOMBINI, 2015). A negação da OMs
como sendo objetos abstratos se baseia na tentativa de estabelecer uma teoria simples,
composta por uma sutileza ontológica. Sendo assim, dentro do nominalismo é preferível
uma teoria sem a presença de um objeto abstrato devido ao alto custo implicado nessa
defesa. Essa busca sem dúvida é pautada na “Navalha de Ockham” - princípio lógico e
epistemológico que defende uma parcimônia ontológica, buscando uma elucidação mais
simples e com a menor quantidade possível de premissas para se explicar um dado
fenômeno.
Através do livro Linguagens da Arte publicado em 1968 por Nelson Goodman o
nominalismo passa a se destacar dentro do debate contemporâneo na filosofia da arte,
sobretudo em seu viés analítico. Na concepção nominalista de Goodman, cada OMs deve ser
entendida como a totalidade de suas execuções, ou seja, a OMs é entendida como uma
classe de performances que seguem uma partitura. No que tange as propriedades das OMs,
elas devem ser exatamente as mesmas de todas as suas execuções. A partitura teria o papel
fundamental de definir uma obra, desempenharia uma espécie de caractere dentro de um
sistema de símbolos, capaz de indicar qual performance corresponde ou não a uma OMs
específica. Não há para Goodman um entendimento da OMs como detentora de um caráter
independente ou de essência, a OMs apenas corresponderia à partitura realizando execuções
compatíveis com as performances passadas, presentes e futuras que também cumprem com o
estabelecido pela partitura. Nesse caso, Goodman defende uma linguagem “notacional” das
partituras, mas para que isso ocorra é preciso preencher cinco requisitos sintáticos e
semânticos, algo que também “proíbe a ambiguidade, a sobreposição e a indeterminação
71
Este problema é enfrentado pelos platonistas musicais.
75
dentre os caracteres e seus complacentes”. (GOODMAN, 1968). Os requisitos são (GOEHR,
1994):
i) Disjunção sintática - Os caracteres devem ser separados de modo que
nenhum token pertença a mais de um caractere. Todos os tokens devem ser
sintaticamente equivalentes, intersubstituíveis sem efeito sintático. Isso é
garantido entre os tokens de um caracter, se cada token for uma “réplica” de
todos os outros. Estes tokens devem, portanto, ser também “caráter
indiferente”. A indiferença de caráter é uma relação reflexiva, simétrica e
transitiva que, mediante a obtenção, produz uma classe de tokens caráter-
indiferentes sob a partição gerada por esta relação.
ii) Diferenciação sintática - Os caracteres devem ser finitamente diferenciados:
Para cada dois caracteres K e K e cada registro [token] de R que não
pertence a ambos, a determinação de que R não pertence a K ou que R não
pertence a K é teoricamente possível.
iii) Determinação única - Cada caractere deve determinar exclusivamente uma
extensão, cuja associação é invariante sobre o contexto. Assim, a
ambiguidade das inscrições é proibida.
iv) Disjunção semântica - As classes de conformidade devem ser separadas;
nenhuma interseção de classes de conformidade é admissível.
v) Diferenciação semântica - Dada uma conformidade, ela deve ser
suficientemente diferenciada de qualquer outra, de modo que a
determinação de que ela esteja em conformidade com o caractere em
questão é possível.
Segundo Goodman, a função teórica primária da partitura é atendida quando esses
requisitos são atendidos. Sendo a partitura de fato notacional, pode-se identificar a mesma
obra em cada tipo de partitura e em suas infinitas performances. Ao especificar esses
requisitos, estamos fornecendo um teste decisivo para determinar se a identidade de uma
obra é preservada em um conjunto de tipos e performances (GOEHR, 1994). A filósofa
Lydia Goher (1994) se refere aos cinco requisitos de Goodman como sendo o “teste de
76
recuperabilidade”. O teste permitiria que a partir de um tipo de partitura, fosse possível
identificar as propriedades relevantes que são constitutivas dessa dada obra e, portanto, de
suas performances. Nesse caso, também seria possível recuperar a partitura ao ouvir uma
apresentação. O procedimento de identificação funcionaria nestes dois sentidos. Nas
palavras de Goodman:
Primeiro, uma partitura deve definir uma obra, distinguindo as performances que
pertencem à obra daquelas que não pertencem. Isso não quer dizer que a partitura
deva fornecer um teste fácil para decidir se uma dada performance pertence ou não
à obra. (...) O que se faz necessário é que apenas as performances que cumpram
com a partitura sejam performances da obra. (GOODMAN, 1968, p.128).
Vemos que Goodman define cinco restrições notacionais com o propósito de
determinar a identidade de uma dada obra. Neste caso, quando uma partitura consegue
passar pelo crivo das cinco restrições, isso demonstraria que suas propriedades estruturais
são suficientes para indicar a identidade da OMs. A proposta de Goodman apresenta certas
dificuldades ao determinar quais elementos são considerados notacionais dentro de uma
partitura normal. Segundo Giombini, não apresentam dificuldades em cumprir às cinco
restrições, as marcações usadas para indicar altura, duração de notas, símbolo de clave
padrão e pentagrama, já a indicação de tempo, marcações de dinâmicas e timbres são
explicitamente vagas. Uma vez que “apresentações que obedecem a uma partitura especifica
“allegro” podem ser mais rápidas do que aquelas especificadas como “molto vivace” ou
mais lentas que aquelas especificadas como simplesmente “vivace”, permanecendo fiéis à
partitura”. (GIOMBINI, 2015, p.32). A autora ainda ressalta que quando se trata
propriamente da indicação de andamento não temos uma via clara para ser fiel à partitura,
tendo em vista que as indicações verbais como andante, andante ma non troppo, andante
con moto72
entre outros não são capazes de passar pelos requisitos de notação, sendo assim,
por não serem notacionais, não possuem dentro dos critérios do sistema notacional as
propriedades constitutivas da obra, portanto, não são membros do que de fato define a
identidade da obra. Tais indicações serviriam apenas para agregar qualidade às obras, mas
não como um contributo identitário. Uma das consequências deste sistema segundo
Goodman é o paradoxo da nota errada: mesmo as performances que seguem uma errônea
interpretação da partitura em relação à marcação de tempo ainda está correta. Já as
72
As palavras em itálico são de origem italiana, estas tradicionalmente indicam o Andamento, a velocidade com
que a música é executada. Foram os italianos no começo do século XVIII que designaram estes termos para o
Andamento. Os andamentos variam desde os bem vagarosos até os muito rápidos. Allegro (ligeiro e alegre) =
77
performances que partem minimamente da partitura, porém erram mesmo que uma única
nota não podem ser consideradas performances da mesma obra, se assim o fosse,
deveríamos considerar o risco de afirmarmos que todas as performances são performances
da mesma obra.
As conclusões da abordagem de Goodman parecem um tanto contraintuitivas, pois
práticas musicais amplamente aceitas não são contempladas por sua teoria. Mesmo que uma
execução da obra Sonata Nº 8 em Lá menor de Mozart contenha alguns erros de notas, nós
provavelmente conseguiríamos identificá-la sem maiores problemas. Goodman responderia
que tal execução não é uma instância real da obra de Mozart e sim uma outra coisa. De
acordo com Predelli (1999) a proposta de Goodman é falha num ponto importante, pois
deveria reconhecer a importância da intenção do intérprete ao tocar uma determinada OMs.
Imaginemos tal situação: Um músico possui a intenção de executar o Concerto para Piano
Nº 21 em Dó Maior de Mozart, mas mesmo se baseando na partitura, por ter pouca prática
no piano, acaba errando algumas notas. Filósofos como Davies e Predelli admitiriam que tal
execução, apesar de não exata, é uma instância válida da OMs de Mozart, estes alegam ainda
que por mais importante que seja a partitura, ela não é a OMs em si e tampouco representa
uma característica definidora da obra.
Conforme o filósofo Peter Strawson (1959) a abordagem de Goodman deve ser
considerada uma metafísica revisionista, algo que busca descrever com maior exatidão como
é o mundo em si, mas de forma independente do que pensamos sobre ele, visando
estabelecer uma base estável sobre o mundo. Temos do lado oposto a metafísica descritiva
que busca descrever nosso atual pensamento sobre o mundo. Os ontologistas que se
enquadram na perspectiva revisionista tendem a julgar como incorretas as nossas asserções
intuitvas acerca da identidade das coisas, fazendo uso da teoria do erro, que tenta explicar
nossos erros pelo fato de na vida cotidiana fazermos uso dos nossos sentidos e não de nosso
intelecto para compreender a realidade das coisas. A ala da ontologia descritiva
contemporânea alega que em relação à música devemos levar em consideração nossos
pensamentos pré-teóricos e também nossas práticas musicais, ou seja, o princípio
metodológico da restrição pragmática intitulada pelo filósofo David Davies. Como vimos
anteriormente, este princípio visa formular um pano de fundo metafísico do senso comum.
Há ainda versões contemporâneas mais amplas do nominalismo musical, o
materialismo musical de Chris Tillman (2011) se refere aos que identificam as OMs em suas
120 -150 bpm, molto vivace (mais rápido e vivo que o vivace) = 160-169 bpm, vivace (rápido e vivo) =140-
159bpm , andante (Em ritmo de caminhar humano, agradável e compassado) =75 - 107 bpm.
78
manifestações concretas e particulares, sua posição é totalmente cética em relação aos
objetos abstratos, substituindo a abstracta pela classe de instâncias compatíveis, tendo
como a noção de classes a possibilidade de diminuir a quantidade de ambiguidades da teoria.
Buscando assim como as propostas nominalistas, desde os medievais aos contemporâneos
como Quine (1947) e Goodman, explicar as semelhanças entre diferentes instanciações que
pertencem à mesma classe de instanciação da obra. Outra versão contemporânea do
nominalismo é o Nominalismo Mereológico de David Armstrong (1978) que além de
escolher alguns objetos concretos como representantes de uma possível manifestação
concreta da OMs, também indicam uma entidade concreta que resulta da relação das partes
como um todo73:
As obras são totalidades mereológicas de instanciações concretas. Assim, uma
obra musical x é a composição de todas e apenas instanciações x
concretas. Falando de modo geral, para que uma instanciação seja uma
instanciação de uma determinada obra, ela deve fazer parte de algum “todo” da
obra. Os candidatos para o papel de instanciações incluem cópias da partitura,
performances musicais, gravações de apresentações musicais, reprodução de
gravações de apresentações musicais, eventos mentais etc. (GIOMBINI, 2015, p.
41).
Um primeiro nominalismo (Goodman) acerca das OMs define que sua
manifestação concreta não passa de uma coleção de performances compatíveis com a
partitura. Um segundo tipo de nominalismo afirma que a classe de performances e as cópias
da partitura são sua manifestação concreta. Já uma terceira linha nominalista define as OMs
como sendo apenas as cópias de sua partitura. O que há em comum entre todos os
nominalistas que consideram as OMs como uma manifestação concreta e não abstrata?
Segundo Chris Tillman (2011) a resposta é a noção de átomos musicais. Para o autor,
qualquer manifestação concreta das OMs (performances, partituras, gravações etc) são os
átomos da obra, a conexão que as obras têm com seus átomos musicais é a da manifestação,
algo capaz de manter a coerência do materialismo que busca estabelecer a concretude de
uma OMs. Os filósofos Ben Caplan (2008) e Carl Matheson (2006) seguem esse caminho
73
Uma totalidade mereológica é a entidade concreta resultante da relação das partes com o todo. Um exemplo
ilustrativo seria a relação das peças de um carro e um carro como um todo: parece ser crucial essa relação para
a existência do carro enquanto totalidade, isto é, não existiria o carro como um todo sem que houvesse uma
dada relação entre as suas partes.
79
materialista propondo uma visão perdurantista74
para as OMs, onde elas seriam a fusão de
seus átomos, e estes átomos suas partes temporais.
De acordo com o Perdurantismo, os objetos ocupam alguma região estendida do
espaço, no sentido de que eles têm “partes menores que correspondem exatamente
às regiões menores” que elas preenchem. No sentido temporal, por outro lado, diz-
se que os objetos perduram: a saber, eles são estendidos ao longo do tempo por
terem partes diferentes em momentos diferentes. Se os objetos tiverem partes
temporais diferentes, isso explicaria como eles podem existir em momentos
diferentes, e também explicaria como eles podem ter propriedades diferentes em
momentos diferentes, já que cada parte temporal é um quase - objeto existente no
tempo. De acordo com o quadridimensionalismo, assim, persistir no tempo é muito
semelhante a se estender pelo espaço: é tudo uma questão de partes. De fato, uma
entidade perdura se tiver partes espalhadas no tempo da mesma maneira que um
objeto têm partes espalhadas no espaço. (GIOMBINI, 2015, p. 41).
Dentro dessa concepção materialista musical as OMs mais do que existem, elas
persistem ao longo do tempo, sua persistência é entendida como uma extensão pelo espaço,
uma vez que os objetos têm partes temporais em várias sub-regiões da região total de tempo
que ocupam. Nesse aspecto, cada execução de uma dada obra seria apenas parte temporal da
obra como um todo, esta por sua vez, seria constituída pela fusão de todas as performances
da obra. O perdurantismo tal qual o nominalismo geral defendem que as OMs são objetos
concretos, ou seja, localizados no espaço-tempo, desse modo comprometem-se com nossa
relação perceptual das obras. A teoria perdurantista, no entanto, implica no mínimo dois
problemas:
I- Não poderíamos ouvir uma OMs em sua totalidade, para isso seria
necessário ouvir todas as performances da obra, algo impossível.
II- Uma obra não estaria completa antes da morte de seu compositor.
Por fim, uma última versão nominalista é a do durantismo75
musical, a teoria
também afirma que as OMs são redutíveis aos seus átomos, mas nesta versão não haveria
uma fusão entre todas elas, isso ocorria através de um átomo de cada vez.
74
“Perdurantismo é a noção de que os objetos têm quatro dimensões. De acordo com o perdurantismo, os
objetos têm partes temporais (partes que existem no tempo) e, a cada momento da existência, os objetos
existem somente parcialmente.”. (KLEINMAN, 2014, p. 83).
80
De acordo com os durantistas, as obras musicais não têm partes temporais, a
menos que partes apropriadas correspondam às partes apropriadas de uma
performance. Consequentemente, o durantismo não enfrenta o mesmo problema de
perceptibilidade do perdurantismo, ou seja, que não está claro como alguém
poderia ouvir uma obra em sua totalidade ou como uma obra poderia ser concluída
muito depois da morte de seu compositor. No entanto, os durantistas ainda
precisam explicar como um “átomo” de algo pode ser coextensivo com a coisa
toda em si. (GIOMBINI, 2015, p. 41).
Para os durantistas, as obras então estariam “totalmente localizadas” em qualquer
região ocupada por suas performances, elas seriam multiplicadas e estariam localizadas onde
cada manifestação concreta se localiza. Desse modo, as obras estariam presentes de uma
forma total, não sendo apenas partes de obras. Sendo assim, teríamos contato com a
totalidade de uma obra x sempre que x fosse executada. Além disso, ao contrário dos
perdurantistas, os durantistas se comprometem com uma ontologia tridimensionalista
padrão. Cabe destacar que apesar de os perdurantistas e durantistas concordarem que OMs
não são objetos abstratos e, sim, entidades concretas, eles discordam sobre quais tipos de
entidades elas são.
3.3 Eliminativismo
Será que de fato existem obras musicais? Engana-se quem acredita que a existência
da obra musical é um pensamento unânime entre os ontologistas da arte. A corrente
eliminativista responde essa pergunta dizendo que não, não existem OMs. Essa corrente
teórica tem como um dos seus primeiros representantes o filósofo Richard Rudner (1950), e
nos tempos recentes Ross Cameron (2008) retoma a linha argumentativa do eliminativismo,
no entanto, seus argumentos não se aplicam somente à música, mas às artes como um todo.
Por mais estranho que possa parecer, para estes filósofos as OMs não existem, nossas
inúmeras experiências diretas com obras musicais não são para eles suficientes para
afirmarem se tais objetos sonoros existem no mundo. Destarte, apenas a alegação da
experiência sonora não formaria um fato ontológico. Afirmar que ouvi obra Y é para o
Cameron somente uma sentença verdadeira, mas a partir desses tipos de sentenças não
podemos fazer um salto em direção a um comprometimento com a existência ontológica dos
75
“Durantismo é a visão de que os objetos são os mesmos e completos ao longo de cada momento da própria
história. Então, por exemplo, enquanto uma árvore perde suas folhas, ela ainda é considerada a mesma árvore.”
(KLEINMAN, 2014, p. 83).
81
objetos que estão sendo mencionados. Sua teoria parte de uma diferenciação da nossa língua
com o “ontologuês” - que seria a linguagem que usamos para descrever o mundo em seu
nível mais fundamental. O autor tenta mostrar que entidades como as estátuas, cadeiras,
quadros não existem dentro de um nível ontológico fundamental, entretanto, para ele “as
estátuas, mesas e quadros realmente existem” para os propósitos de uma língua que não seja
“ontologuês”, como o português por exemplo. De acordo com sua perspectiva, as obras
musicais de fato não existem, ele se baseia numa visão a meu ver contra-intuitiva, de que a
obra musical só é criada ou descoberta (no sentido linguístico), sua posição defende que, ao
“criar” uma obra musical, o compositor não está criando uma nova entidade ontológica, mas,
sim, atribuindo novas propriedades a uma entidade previamente existente, ou seja, neste
caso seria uma estrutura de som abstrata76
.
Nosso senso comum tende a assumir que se declaramos que existe um objeto
e essa declaração é verdadeira, logo o objeto existe. Ou seja, se dizemos “há um cadeira
nessa sala”, parece que estamos nos comprometendo com a existência de um objeto cadeira.
Mas de acordo com Cameron não deveríamos pensar assim, ele se utiliza de uma analogia
copernicana para tentar esclarecer, vejamos: Suponha que João declara gostar do primeiro
quarteto de cordas de Schumann, ele estaria dizendo a verdade, mesmo não existindo nada
no mundo que corresponda ao “primeiro quarteto de cordas de Schumann”. O autor acredita
que tudo o que é exigido pelo bom senso é que a seguinte frase seja verdadeira: “Eu gosto do
primeiro quarteto de cordas de Schumann”. Para que isso seja verdadeiro, devemos analisar
à luz de uma interpretação diferente da verdade que geralmente pensamos. Por exemplo, a
fonte da verdade para o “primeiro quarteto de cordas de Schumann” não é, digamos, “aquela
obra musical composta por Robert Schumann em 1841 para 2 violinos, viola e violoncelo e
geralmente identificada como op. 41, Nº. 1”, mas “algum arranjo de estruturas simples e
abstratas”. (GIOMBINI, 2015, p. 115). Cameron segue dizendo que para explicar a razão
disto ser verdade é necessário incluir diversas entidades: uma estrutura sonora abstrata, um
token dela e uma instanciação da estrutura sonora em uma performance, mas nenhuma delas
seria de fato a obra. Este ponto gera uma série de problemas para o autor, afinal como
76
“Embora a linguagem comum seja um bom guia acerca de que frases são verdadeiras, para Cameron, ela não
o é quanto à existência, pelo que conjugar os dois planos significa complicar desnecessariamente a ontologia.
A sua estratégia permite, assim, dissolver a maioria dos problemas ontológicos acerca da arte, aceitando as
verdades do discurso de senso-comum sobre a arte e fazendo correr, paralelamente a elas, uma ontologia
filosoficamente parcimoniosa e respeitável, sem necessidade de apelo, neste plano, a categorias problemáticas,
nem à introdução de novas.” (LOPES, 2013, p.02.)
82
podemos apreciar uma obra, se ela de fato não manifesta suas propriedades? Nossa
apreciação estética de uma obra estaria pautada em qual característica?
A corrente do eliminativismo defende o uso de uma simplicidade argumentativa,
buscando uma parcimônia ontológica. Eles alegam que se aceitarmos em nossa ontologia
OMs e demais objetos como artefatos comuns estaremos apenas mantendo uma exigência do
nosso senso comum e da nossa linguagem comum, mas permanecemos sem nada conseguir
explicar, ao contrário, estaríamos apenas criando mais problemas ontológicos. Mas esse tipo
de simplicidade ontológica pode não ser suficiente para explicar o mundo, por não conseguir
formular hipóteses e explicar fenômenos, desse modo não haveria nenhuma virtude na
simplicidade ontológica em si. Isso a meu ver torna o êxito de Cameron ainda mais distante,
afinal sua teoria é antirealista, descritiva e não revisionista. Sobre isso, Stecker (2009) diz:
“Como Cameron está procurando uma ontologia que se adeque ao senso comum, ele
também deveria preferir uma ontologia mais rica do que a que ele realmente endossa”.
(p.380). A teoria eliminativista, portanto, não parece contribuir para uma compreensão da
realidade, tampouco nos ajuda a estabelecer nossa experiência com base na realidade através
de uma via mais racional.
3.4 A hipótese da ação-tipo e a teoria performativa
Como representantes da hipótese da ação-tipo e da teoria performativa podemos
destacar respectivamente Gregory Currie (1989) e David Davies (2004), ambos se
aproximam de uma concepção contextualistas e antiempiristas na ontologia da arte. De
acordo com a hipótese de Currie, como o próprio nome sugere, as obras de arte são tipos de
ação. A instanciação de uma obra seria alguma ação executada por seu compositor ao invés
de sua perfomance. Uma interpretação de uma obra musical é chamada de token, tipo é a
obra de que é uma interpretação. Para Currie as OMs são sim tipos, mas suas performances,
execuções e afins não são tokens de uma OMs, isso ocorre pelo fato de em sua visão uma
obra musical ser um tipo de ação, desse modo, seu token seria o próprio ato da composição
da obra.
Currie sustenta que as obras de arte são entidades abstratas e eternas, com a
possibilidade de serem instanciadas em tempos diferentes e por pessoas distintas. Essas
premissas têm como implicação uma conclusão um tanto quanto contra-intuitiva: os artistas
deixam de ser os criadores das obras de arte. Currie concebe esse processo da ação de
83
execução do compositor como sendo tipos de ações. O caminho para essa concepção é
muito bem exposto por Lopes:
Segundo esta teoria, uma obra de arte corresponde à ação-tipo instanciada pela
descoberta, por parte do artista, de uma estrutura abstrata através de um processo a
que Currie, inspirando-se na perspetiva de Lakatos sobre o modo como o cientista
chega a uma teoria científica, chama percurso heurístico. A obra é, então, o tipo
abstrato cuja instância é a ação concreta do artista pela qual este chega a uma dada
estrutura de um determinado modo. (LOPES, 2013, p.6).
Currie trata as ações como sendo subclasses de eventos, e esquematiza o evento
particular ou instância correspondendo à ação, por exemplo, de Beethoven ao compor a 5ª
Sinfonia. Podemos agora aplicar a teoria de Currie no esquema que se seguirá, primeiro
tomaremos token como correspondente à ação de Beethoven ao compor a 5ª Sinfonia:
B:Beethoven
E: Estrutura abstrata sonora da 5ª Sinfonia;
P: Percurso heurístico seguido por Beethoven até E;
R: A relação B descobre E através do caminho heurístico P;
T: O tempo da composição da 5ª Sinfonia.
Sabemos que o processo em questão se torna irrepetível num sentido mais restrito,
no entanto, dentro de uma concepção tipo, o evento é passível de repetição. Mas como esse
processo se daria? Currie levanta a hipótese de que a obra de arte não tem como constituição
a identidade do artista, muito menos o tempo gasto em sua elaboração. Temos como
repetível a ação-tipo: relação de se chegar até a E através de P. Cabe destacar a existência de
uma implicação causal, a obra sendo um tipo, impede que o artista seja de fato o seu criador.
O artista passaria então a perder o mérito diante da obra de arte? Não para Currie, o mérito
para ele permanece no fato de o artista, diante de tantas possibilidades de direção, ter
encontrado e percorrido o caminho heurístico em direção a obra, sendo o primeiro a ter tido
êxito em seu percurso. Desse modo, se quisermos identificar qualidades estéticas de uma
OMs, precisamos ter um conhecimento do contexto-histórico-musical em que a obra foi
composta. Segundo Currie, quando um compositor compõe uma peça sonora ele busca testar
três coisas: certas convenções, técnicas artísticas e também suas próprias habilidades. Se for
este o caso, ao julgarmos uma OMs, temos que levar em consideração todas as evidências
fornecidas para o desempenho do artista, desempenho aqui é pensando de uma forma ampla,
84
que não inclui apenas suas ações, mas também seu caminho para execução e da obra, ou
seja, devemos buscar uma compreensão que envolve uma análise das convenções e até
mesmo limitações técnicas que poderiam restringir sua ação. (CURRIE, 1989, p. 42). Esse
tipo de análise segundo Currie nos ajudaria a desenvolver uma visão crítica mais ampla
sobre as obras, desse modo a pesquisa histórica e bibliográfica também nos auxiliaria a
compreender o caminho percorrido pelo artista até chegar ao produto final. Currie sugere
que a maneira mais natural de fazer justiça à natureza da apreciação estética - como ele vê -
é simplesmente identificar as OMs como tipos de ações realizadas por seus compositores
(1989, pp.70-71).
A teoria de Currie não foi amplamente aceita dentro da comunidade dos
ontologistas musicais, um dos seus objetores foi Wolterstorff (1991). Este afirma que nossas
intuições indicam que OMs são coisas que podem ser executadas por músicos, e tais
fenômenos são muito bem explicados pela teoria tipo/token, sem haver necessidade de uma
hipótese de ação-tipo. E essa por trazer a via do caminho heurístico e a relação R: a descobre
b através do caminho heurístico c como sendo uma espécie de token não faria sentido algum,
tendo em vista que entidades como caminhos heurísticos e relações R não podem ser
tocadas em instrumentos musicais.
Outro objetor foi Levinson (1996), sua crítica vai em direção à hipótese da ação-
tipo que alega que nós apreciamos o desempenho do artista na concepção da obra. Para
Levinson, a teoria erra ao reduzir nossa apreciação a esse foco, pois apesar de apreciarmos o
desempenho de quem criou a obra, nós apreciamos acima de tudo a obra em si.
Por fim, há a crítica da causalidade, essa também foi reconhecida por Currie. Os
objetores alegam que se obras são tipos tal como Currie alega, então elas não podem ter sido
criadas por artistas, pois se essas entidades existem, existem por toda eternidade (ou
intemporalmente). Uma resposta de Currie poderia ser uma analogia com a ciência,
destacando a importância da criatividade nas artes, e que a descoberta seria então algo tão
criativo quanto a criação literal.
David Davies (2004) retoma em sua argumentação alguns pontos filosóficos
levantados por Currie, como o da “teoria da ação” e seu embasamento contextualista e
antiempirista, no entanto ao contrário de Currie, Davies acredita que as obras de arte são
ações particulares, como a ação compositiva de seus compositores, portanto, são ações-
token. A teoria performativa de Davies visa dar uma explicação coerente às continuidades e
descontinuidades entre a arte moderna tradicional e o modernismo tardio. Sua proposta é
abarcar em sua teoria todos os tipos de artes – obras literárias, artes visuais, dança, música
85
etc. Em sua visão, um quadro exposto numa galeria não seria uma obra de arte, este seria
apenas um meio pelo qual o artista articulou e executou sua performance, e é a performance
que deve ser entendida como a verdadeira obra de arte. Para Davies, quando estamos diante
de uma performance musical, suponha da 5ª Sinfonia de Beethoven, temos no mínimo duas
supostas obras disponíveis para apreciação: a primeira seria a performance dos músicos que
assistimos, a segunda seria a performance de Beethoven na composição da 5ª Sinfonia. O
princípio da restrição pragmática apresentada na seção 3.1 é de extrema importância dentro
da argumentação da teoria performativa de Davies, afinal seu argumento é de que as práticas
apreciativas são explicadas mais adequadamente dentro da teoria performativa.
O que afinal seria a obra musical para Davies? A obra seria um foco de apreciação,
uma performance geradora, criada pelo artista através da manipulação de algum veículo. A
verdadeira obra nada mais seria do que o desempenho do artista. Como coloca Lopes sobre
Davies:
Aquilo a que estamos habituados a chamar “obra” é, afinal, apenas esse foco, a
entidade que nos permite contactar e apreciar a verdadeira obra, que consiste no
desempenho do artista na produção do foco. Estes focos de apreciação podem ser
objetos físicos, moldes ou instruções a serem cumpridas e suplementadas até se
alcançar um nível em que se torne possível a apreciação. Desta forma, as
diferenças ontológicas aparentes entre artes singulares e múltiplas, performativas e
não performativas, correspondem apenas a diferenças nos focos de apreciação.
(LOPES, 2013, p.10).
Para Davies, primeiro sua teoria consegue cumprir com seu princípio da restrição
pragmática, na qual as obras de arte devem ser pensadas ontologicamente de uma maneira
que seja compatível com os aspectos das nossas práticas artísticas, críticas e apreciativas, de
forma que possa ser sustentada por nossa reflexão racional. (DAVIES, 2004). O segundo
ponto proposto por ele é reconhecer a “unicidade das obras enquanto criação dos artistas,
assegurando que, enquanto particular, cada obra é irrepetível”. Ele afirma que as ações
devem ser entendidas como eventos datáveis e ocorrências localizáveis, a ação deve ser
descrita de uma maneira que possa ser interpreta como intencional (DAVIES, 2004). A
teoria performativa defendida por Davies não define a OMs como um tipo de evento de
sequência sonora caracterizada pela partitura, mas por outro lado identifica as obras como
sendo particulares concretos, o que já evita algumas objeções colocadas às teorias
ontológicas que identificam a obra como tipo. Um ponto abordado por Dilworth (2005) é
que a teoria não consegue desviar da objeção da flexibilidade modal das obras, uma vez que,
se as ações em que consistem as obras são eventos, surge o problema de que estes parecem
86
ser modalmente inflexíveis: um evento-criação por um artista que tivesse sido um pouco
diferente do que foi teria sido outro evento, ao passo que a obra poderia ter sido a mesma.
3.5 A abordagem Idealista
A abordagem idealista é antimaterialista, entretanto, por sua vez, não é antirealista,
seus representantes como R. G. Collingwood (1938) pensam a obra de arte (incluindo a
musical), como sendo objetos de experiências mentais. A arte não teria nenhum tipo de
dimensão física, esta seria um objeto meramente mental ou apenas fruto de experiências
imaginativas. Um dos precursores desta teoria foi Benedetto Croce (1902), este afirmava que
as OMs e demais obras de arte não poderiam ser entidades físicas, seu pensamento, no
entanto, não se segue da sua posição idealista mais geral, para ele o objeto físico teria apenas
um sentido prático e não estético. O curioso é que sua teoria defende uma distinção
amplamente usada dentro da ontologia: coisas físicas (mesas, cadeiras, bicicletas etc) versus
coisas mentais (crenças, sonhos, pensamentos etc). Não obstante sua distinção não
contempla os objetos artísticos como sendo coisas físicas.
A teoria de Collingwood é bastante influenciada pelos escritos de Croce, ela está
constituída em bases intencionais da consciência, as mentes do artista e do espectador
formariam uma espécie de “atividade imaginativa” da consciência. Ambos os filósofos
parecem partir da mesma concepção do termo arte, na qual a arte não deveria ser reduzida a
um conhecimento técnico ou meramente artesanal, desse modo, não haveria qualquer
necessidade de técnica ou ação concreta para que uma obra de arte passe a existir, a não ser
que seja uma combinação de arte e manufatura. Através dessa concepção, a verdadeira obra
de arte é entendida como uma atividade da imaginação, onde não se faz necessário vê-la ou
ouvi-la, mas apenas visualizá-la em nossa mente. Sendo assim, quando um compositor
escreve uma peça musical, ele está escrevendo uma peça imaginária, algo que está se
passando em sua mente e só depois é cantarolado, executado num instrumento ou escrito
num papel, ou seja, na visão idealista não existe uma criação, apenas uma fabricação mental
que pode se utilizar desses acessórios físicos. Uma razão para esse pensamento é a
possibilidade de se compor melodias e poemas mentalmente. A obra de arte verdadeira,
portanto, não seria composta por nenhuma entidade física, o que comumente conhecemos
como obra são na verdade dispositivos capazes de transmitirem a obra e nos possibilitar uma
conexão com a mente do artista/criador, para isso seria necessário apenas uma imaginação
87
apropriada do indíviduo diante de algum destes mecanismos como por exemplo: soneto,
escultura, pintura entre outros objetos que acreditamos serem arte. Como podemos constatar
nas palavras de Collingwood:
Quando falamos de uma obra de arte (soneto, pintura etc), entendemos por arte um
ofício específico, concebido como um estímulo para produzir efeitos emocionais
específicos em um público, certamente queremos designar pelo termo “obra de
arte”, algo que devemos chamar de real. O artista como um mágico ou fornecedor
de diversões é necessariamente um artesão que faz coisas reais, e as faz sair de
algum material de acordo com algum plano. Suas obras são tão reais quanto as
obras de um engenheiro e pela mesma razão. (COLLINGWOOD, 1938, p.139).
Uma das consequências da teoria idealista é a condição de intermitência das obras,
uma vez que, dentro dessa concepção, a obra não possui dimensão física e não passa de uma
experiência imaginativa que ocorre dentro da mente de uma pessoa. Levantar tal asserção
implica algo intrigante, a obra poderia deixar de existir na medida em que estivesse fora de
algum foco imaginativo apropriado e retornar à existência apenas quando o mesmo tipo de
foco se direcionasse ao sistema físico que faz parte da base de registro da obra. Se assim o
for, sempre que se pensasse na obra O Cravo Bem Temperado de Bach com a atenção
necessária, ela entraria na existência e de modo inverso, deixaria de existir se nela não mais
pensássemos com a devida atenção. Outro problema em se reduzir uma OMs a produto
exclusivo da imaginação é dar a ela um status privado de arte, e tal elemento do pensamento
individual pode se diferenciar na medida em que é pensado por outra pessoa. Os ouvintes do
Cravo Bem Temperado de Bach podem ter intuições distintas, dessa maneira, o que existiria
de fato seria apenas um conjunto X de Cravo Bem Temperado de Bach e não estritamente a
obra Cravo Bem Temperado de Bach.
Agora que apresentamos, em linhas gerais, os posicionamentos de Croce e
Collingwood em relação ao caráter ontológico das OMs e demais obras de arte, podemos
questionar se a identidade das mesmas são de fato respeitadas. Afinal, se a obra de arte for
de fato objetos puramente mentais que podem ser transmitidos de uma mente para outra
através de gravações tangíveis, como é possível garantir a identidade da obra? Esta questão
não é respondida por Croce e Collingwood.
88
3.6 Platonismo Musical
A corrente do platonismo musical, geralmente é compreendida como uma doutrina
do realismo metafísico, pois sua concepção filosófica afirma a existência de entidades
abstratas, ou seja, entidades que não são materiais, como objetos físicos, nem espaço-
temporais, como eventos ou processos, nem mentais, como representações ou sentimentos.
O platonismo musical é dividido em duas versões: simples e radical. Os filósofos
Levinson (1980, 1990), Davies (2001), Stecker (2003) e Thomasson (2004) são
representantes do platonismo musical simples, grosso modo defendem que a obra musical é
um tipo musical abstrato, o compositor seria responsável por sua identificação/descoberta. O
platonismo musical radical têm como seus maiores representantes Kivy (1988) e Dodd
(2007) está versão do platonismo rejeita a intemporalidade das obras. Destaco também
Robert Howell (2002) como representante da corrente do platonismo simples, de acordo
com sua concepção as obras musicais são abstratas e criáveis, no entanto, também são tidas
como tipos indicad os temporariamente, a teoria desenvolvida por Howell levanta a
existência de tipos culturais e naturais. Um tipo cultural é um padrão sonoro, usemos como
exemplo a 5ª Sinfonia de Beethoven, tal padrão sonoro possui a propriedade de ser usado da
maneira como especificou Beethoven. Já os tipos naturais, como os cantos emitidos por
pássaros, são padrões em cadeias causais na natureza. A abordagem criacionista de Howell
também destaca que embora os tipos estejam determinados pelas propriedades que os
subjazem, nem todas as propriedades são capazes de determinar os tipos. Mas veremos
agora mais de perto os detalhes das duas versões platonistas.
3.6.1 Platonismo radical
Os principais representantes do platonismo radical são Peter Kivy (1983, 1987) e
Julian Dodd (2000, 2007, 2010). Para ambos as OMs são consideradas objetos abstratos sem
localização no espaço tempo, elas são entendidas como partituras ou performances (eventos
sonoros), seriam como as formas platônicas ou universais. Este paralelo é feito em relação às
características dos universais. Os universais costumam ser caracterizados como algo que
possui instâncias, sendo repetíveis, sendo abstratos, sendo acausais, sem localização
espaço-temporal e sendo predizíveis das coisas. As OMs de maneira semelhante também
podem possuir instâncias, podem ser exemplificadas em suas performances sonoras que
89
podem ainda ser repetíveis. (GIOMBINI, 2015). Seguindo uma visão aristotélica dos
universais as OMs possuem ainda mais características similares, pois elas além de estarem
em suas instâncias, também possuem diversas localizações espaço-temporais ao mesmo
tempo. Para o platonismo radical essas razões já são suficiente para enquadrar as OMs como
uma espécie de universais. Apesar de tais semelhanças, filósofos como Julian Dodd
assumem que nem todas as características dos universais são facilmente atribuídas também
às OMs, haveria diferenças entre clássicos exemplos de propriedades e os tipos. Ele destaca
que não podemos considerar a relação de uma OMs e suas performances como sendo a
mesma relação entre uma propriedade e suas instâncias. Para o autor as OMs estão mais para
entidades do que de fato propriedades. Kivy e Dodd seguem um caminho argumentativo
parecido com o que apresenta Wolterstorff defendendo que as obras musicais são como
tipos-normativos, tal estratégia é utilizada para tentar dar conta dos tokens ou exemplares
que não são muito bem formados. Dodd seguindo a visão de Wolterstorff:
Os tipos são realmente tão misteriosos? Não, e para mostrar isso, podemos lembrar
do modo como eles diferem dos conjuntos (...) são construções fora de suas
instâncias. A partir disso, duas coisas se seguem: Primeiro, os conjuntos têm seus
membros (ou falta deles) essencialmente. Conjuntos não podem ganhar ou perder
membros: um conjunto com membros diferentes é um conjunto diferente. Em
segundo lugar, conjuntos são entidades extensional. Não pode haver dois
conjuntos distintos que tenham o mesmos membros: o conjunto ω = conjunto ξ
apenas no caso de ω e ξ terem a mesma associação. (DODD, 2007, p.40).
Segundo Dodd, os tipos são individuados por referência à condição de que algo
deve se encontrar para ser um de seus tokens, essa condição pode ser entendida como as
propriedades que x precisa ter para ser um token de um determinado tipo normativo. Apesar
de um token simples precisar apenas de atender todas as condições relevantes definidas pelo
tipo, um token formado adequadamente de um tipo normativo deve ser uma instância apenas
das propriedades relevantes. Desse modo, Dodd defende que as características mais
importantes das OMs podem ser explicadas através das definições ontológicas tipo-token.
Seu pensamento segue afirmando que não existem propriedades que não possuam instâncias,
ou seja, propriedades que não tiverem nenhuma instância ao longo do tempo, não existem.
Em suas palavras: “é que a propriedade de ser um t existe se e somente se, for instanciado
agora, foi instanciado no passado, ou será instanciado no futuro”. (DODD, 2000, p.436). Ele
ainda destaca que as propriedades são eternas, não podendo então sair ou entrar em um
determinado ser. Portanto, uma OMs só passa a existir quando for executada pela primeira
vez, essa afirmação faz com que os primeiros interprétes de uma dada OMs sejam seus
90
verdadeiros criadores e não o compositor. Mas, em sua visão, a composição não deve ser
compreendida como uma atividade capaz de trazer uma nova entidade ao mundo, a
composição apenas teria o papel de destacar uma entidade já existente, algo como uma
“descoberta criativa”. O autor ainda cita o teorema de Pitágoras, no qual segundo ele,
Pitágoras foi o gênio criativo capaz de descobri-lo, embora não tenha de fato o criado.
O platonismo radical de Kivy (2004), Dodd (2007) e Wolterstorff (1975) pode ser
entendido como a defesa de que OMs são objetos abstratos que não podem estar presentes
em nosso mundo físico, tal qual seus tokens estão. Sendo objetos abstratos, não
conseguiriam ter algum tipo de contato causal conosco, estes objetos não poderiam ser
inventados, seriam apenas descobertos ou selecionados por seus compositores. São inúmeras
as críticas aos platonistas radicais, suas críticas geralmente se baseiam nas implicações
contra-intuitivas da teoria. As principais críticas são muito bem apresentadas por
GIOMBINI (2015):
(1) a objeção de perceptibilidade: as OMs possuem propriedades perceptivas enquanto
universais, mas não possuem quando concebidas de maneira padronizada.
(2) a objeção de criatividade: as OMs são criadas pelos seus compositores. Assim, eles
não devem existir antes da atividade composicional do compositor, mas são trazidos
à existência por essa atividade. Objetos abstratos, inversamente, são geralmente
referidos como eternos e imutáveis, isto é, entidades que não podem ser criadas;
(3) a objeção de destrutibilidade: as OMs podem ser destruídas pelo desaparecimento
(i) de seus exemplos formados, (ii) sua geração de “notação” e (iii) toda a memória
humana dessa notação, enquanto entidades platônicas não podem ser destruídas;
(4) a objeção das condições de identidade: de acordo com o platonismo, duas obras
musicais com a mesma estrutura sonora são a mesma obra
musical. Alternativamente, se duas pessoas diferentes compõem a mesma estrutura
tonal, elas compõem a mesma OMs. No entanto, pode haver obras musicais que
compartilham as mesmas sequências de som, mas são obras diferentes, já que
diferentes propriedades devem ser consideradas para sua apreciação.
Destas afirmações, (1), (2) e (3) parecem ser verdadeiras, mas não são logicamente
incompatíveis com o platonismo radical. A construção platônica de obras musicais (4)
pressupõe que uma OMs é fundamentalmente uma estrutura sonora abstrata; nessa medida, a
instrumentação de uma obra musical não seria necessariamente uma característica de sua
identidade. É o que Kivy (1993) chama de critério da “individuação fina”.
A objeção (1) tenta demonstrar que se de fato concebermos as OMs como sendo
objetos abstratos, teríamos um grande problema para tentarmos esclarecer como elas podem
91
ser ouvidas, isso pois os abstratos tal como (universais e tipos) podem apenas ser
concebidos, mas não podem ser percebidos, desse modo, apenas seus tokens (performances,
execuções) teriam um caráter perceptível. De fato a questão parece muito problemática,
afinal já que não podemos ver ou ouvir o tipo OMs, tendo em vista a sua não localização
espaço-temporal, como nós seres espaço-temporais podemos ter consciência de quais são as
suas propriedades? E como podemos de fato confiar que seus tokens são um guia apropriado
para elas? Wolterstorff (1980) tenta responder a essas perguntas, propondo que OMs como
tipos são acessados e percebidos em e através de suas instâncias completas e bem formadas.
Dessa maneira, ao ouvirmos as instâncias através das performances bem formadas, nós
teríamos uma percepção clara também do tipo.
A objeção (2) apresenta uma consequência contra-intuitiva em se considerar uma
OMs abstrata e depois atribuir um status de criador ao seu compositor. Desse modo, a 5ª
Sinfonia de Beethoven não poderia ser atribuída a Beethoven, o que é bastante contra-
intuitivo. Platonistas radicais como Wolterstorff, Kivy e Dodd, preferiram negar que as
obras são de fato criadas, portanto, não seriam criadas por um ato de composição. Devendo
então levar o status apenas de obras descobertas e não criadas.
A objeção (3) apresenta que se as OMs são objetos abstratos elas não poderiam
deixar de existir, tendo em vista que objetos abstratos são eternos. O platonismo radical
defende que se obras musicais estiverem perdidas, elas não deixam de existir, pois
permanecerão existindo num reino platônico. Uma distinção deve ser feita entre obras que
são destruídas para sempre e obras que estão apenas temporariamente perdidas. Vejamos,
podemos não ter conhecimento de uma OMs, mas se sua partitura está guardada ou
escondida em algum lugar ela existe, mesmo que não saibamos de sua existência. Já as OMs
que deixam de existir, seriam aquelas em que seus manuscritos originais e todas as suas
cópias tenham sido destruídas sem que o compositor não as tenha mostrado a ninguém e
ainda tivesse falecido, sendo assim não haveria sequer a possibilidade de alguém a guardar
na memória. Neste caso:
Parece plausível afirmar que há duas condições necessárias e suficientes para que
as obras musicais deixem de existir: (1) não há mais sinais delas (performances e
gravações, manuscritos, cópias corretas da partitura e memórias), e (2) não existem
mais seres inteligentes capazes de experienciá-las como obras . Ambos (1) e (2),
considerados separadamente ou em conjunto, fazem com que as obras musicais
deixem de existir. (GIOMBINI, 2015, p.91).
92
3.6.2 Platonismo simples
O platonismo simples têm como seus representantes filósofos como Davies (2001),
Stecker (2003) e Thomasson (2004), estes tentam corrigir definições consideradas menos
persuasivas da versão radical do platonismo musical. Mas tomarei como base para
discussão os escritos de Levinson (1980, 1990), considerado o maior defensor do platonismo
simples. Ao contrário da primeira, essa versão simples do platonismo parece pautar-se em
certas evidências da prática musical. No platonismo simples as obras musicais também são
consideradas objetos abstratos, ou seja, existem de forma separada de suas partituras e
performances o que justificaria seu caráter repetível, mas nesta versão elas não são
consideradas entidades eternas ou sem localização espaço-temporal. Há algumas pequenas
divergências dentro da teoria de cada autor platonista simples, mas grosso modo, essa versão
defende que as OMs além de serem abstratas, existem no tempo como consequência da ação
humana na atividade composicional. Levinson (1980) neste âmbito estabelece uma tríade de
suposições intituladas desideratos nos quais a OMs: 1- é criada pela atividade
composicional, 2- é individualizada dentro do contexto a qual pertence, 3- é caracterizada
por uma instrumentação específica como uma característica necessária de sua identidade.
Desse modo as OMs:
(1) Não existem antes da atividade composicional de seu compositor, e são trazidos
à existência por essa atividade;
(2) São tais que os compositores em diferentes contextos histórico-musicais,
embora criando a mesma estrutura sonora, compõem invariavelmente obras musicais com
um estilo distinto;
(3) São tais que meios específicos de execução (instrumentação) são parte
integrante delas.
O autor, ao contrário de Kivy e Dodd, não identifica as OMs como sendo objetos
eternos e imutáveis, a obra para ele, a partir do momento em que é criada, deve ser entendida
como uma entidade distinta, não podendo mais ser reduzida ao conjunto de performances ou
cópias de suas partituras. Desse modo, poderíamos atribuir a elas propriedades específicas.
Para Levinson (1) deve ser entendido como algo fundamental para nossas concepções pré-
teóricas da arte em geral e, mais do que isso, também seria de suma importância para nossa
93
apreciação das OMs. Contudo, ele argumenta que conhecermos quem é de fato o compositor
de uma determinada obra pode modificar a forma como nós a avaliamos. Assim, entramos
em (2) saber se obra X foi criada por Beethoven ou Bach agrega informações históricas e
estilísticas para obra, portanto podemos inferir que as OMs também são caracterizadas por
elementos não intrínsecos que podem depender dos períodos históricos ou tradições
particulares em que são compostas. Em (3) é defendido que parte integrante de uma
determinada obra musical são os meios de performance e nuances obtidas através de
especificações sobre como executá-la. Tendo em mente essa definição da OMs, Levinson
rechaça a ideia de OMs como tipos puros e eternos, pois nessa concepção não é levado em
consideração a criatividade, localização histórica e especificações instrumentais para
identidade da obra. Negando então o status de obras eternas, o filósofo sugere que OMs são
tipos- iniciados - isso é, são tipos derivados através de um ato de indicação de tipos puros,
ou seja, as OMs seriam tipos indicados através de uma indicação de uma certa estrutura ou
tipo implícito por um agente, mas a indicação não seria uma simples descrição dos
elementos da execução da obra, mas o ato de tornar normativas as propriedades desta
estrutura.(LOPES, 2013). Tipos indicados são tipos iniciados através do processo de
indicação de uma dada estrutura pura (implícita) por um agente, que torna normativas as
propriedades dessa estrutura. Levinson afirma que:
Uma obra musical é, então, uma estrutura de sons e meios de execução enquanto-
indicada-por-X-em-t, em que X é um compositor e t, o tempo da composição. Uma
estrutura de som/meios é um tipo que contém a descrição de uma sequência de
sons e as instruções para a realização da mesma por execuções (a noção de
sequência de sons inclui todas as propriedades puramente audíveis do som,
incluindo timbres, dinâmicas, acentuações e andamento). (LOPES, 2013, p.20).
Desse modo, para Levinson quando o tipo indicado por X em t não é apenas um
tipo implícito acidental, ele demonstra como algo novo surge no mundo dos entes abstratos,
tendo sido causado pela ação de X, e sua identidade ficará sempre indexada a X e ao seu
contexto histórico-musical que reconheceu esse ato como criador da OMs.
As principais críticas ao platonismo simples são:
(1) a objeção da obscuridade do conceito de tipos indicados: as OMs são
entidades complexas compostas por uma estrutura sonora e uma estrutura de meios de
desempenho, indicada por alguém em um determinado momento;
94
(2) uma objeção do Sonicismo vs Instrumentalismo: Kivy e Dodd defendem que as
especificações instrumentais e a estrutura de performance tipo que integram a identidade da
obra musical, como na visão instrumentalista de Levinson, é insustentável.
(3) a objeção das Obras com estruturas idênticas: Dentro do contextualismo
proposto por Levinson, se dois compositores produzem de maneira independente duas
partituras originais, que são notavelmente idênticas, de modo que suas performances tenham
as mesmas qualidades sonoras, elas ainda criam duas obras diferentes, mas para o
platonismo estrutural apenas uma obra é criada.
Em (1) temos que Levinson defende que para existir uma entidade abstrata
indicada, ela deve ser trazida à existência por alguém, a saber, seu compositor, uma vez que
não pode preceder esse ato de indicação. Os platonistas radicais argumentam, inversamente,
que os tipos existem apenas nos casos em que as condições para ser um token desse tipo
existem; e se as condições para ser um tipo indicado existirem, então estas condições
existem eternamente. Portanto, para os platonistas radicais o erro de Levinson consiste em
como os tokens de um tipo indicado só podem existir após o ato de indicação, então o tipo
indicado em si não existe eternamente. Concluem dizendo que se tipos são objetos abstratos,
então eles existem eternamente e a ideia de obras musicais sendo criadas deve ser rejeitada.
Temos em (2) os platonistas radicais Kivy e Dodd defendem uma visão do
sonicismo onde as obras musicais são identificadas puramente pela forma como elas soam.
Rechaçando as definições instrumentalistas de Levinson, para os sonicistas qualquer evento
de sequência sonora que soe como uma obra K será um token do tipo K e, portanto, uma
instância da obra K77.
Isso significa, por exemplo, que o uso do cravo não é necessário para
executar as suítes inglesas de Bach, e usar outro instrumento de teclado ou um piano
moderno também funcionaria; o único requisito para uma instanciação correta é a produção
das notas certas na ordem correta. Como Kivy é sonicista puro ele argumenta que isso é
suficiente para uma instanciação correta; Dodd, porém, tenta corrigir esse ponto de vista
afirmando que, para ter um desempenho real de uma obra, eles devem pelo menos preservar
os timbres da instrumentação do compositor.
Já em (3) a abordagem contextualista sustentada é que a identidade de uma obra de
arte é determinada pelo cenário cultural, pela história da produção e outras propriedades
77
Isto é compatível com o que é às vezes chamado de uma versão platonista do Estruturalismo.
95
contextuais nas quais ela é criada, enquanto os platonistas estruturais rejeitam essa ideia,
afirmando que apenas as propriedades estruturais de uma obra são essenciais para ela.
Temos como contextualistas Levinson (1990, 1996), Davies (2004) e Walton (2008) estes
defendem que um texto que é palavra-por-palavra idêntico ao de Don Quixote de Cervantes,
ainda que escrito no século XX, seria diferente do original:
O texto teria diferentes propriedades estéticas contextuais e, portanto, seria
diferente do original. Portanto, os dois teriam que ser considerados diferentes,
embora ambos tivessem propriedades não-contextuais idênticas. Isso implica que
as propriedades contextuais das obras de arte devem ser incluídas em sua
identidade. Estruturalistas como Dodd, por outro lado, negam isso e sustentam
que, se duas pessoas diferentes compõem a mesma estrutura tonal, elas compõem
o mesmo trabalho musical. Podem existir obras musicais que compartilham as
mesmas sequências sonoras, mas são obras distintas, já que diferentes
propriedades devem ser consideradas para sua apreciação. (GIOMBINI, 2015,
p.9).
Este exemplo estabelece que um objeto x, que é estrutural e materialmente idêntico
a outro objeto y, é todavia diferente de y possuindo um conjunto de diferentes propriedades
contextuais, em virtude de ter sido produzido em outro contexto cultural e histórico por um
artista diferente. Mudando da literatura para a música, um exemplo semelhante é usado por
Levinson, que se refere a uma sonata criada em um certo momento por Brahms, mas que
havia sido composta anteriormente por Beethoven, certamente não deveríamos dizer que
eles compuseram a mesma obra. De acordo com nossos pressupostos pré-teóricos sobre a
identidade das obras musicais, no entanto, tanto as respostas contextualistas quanto as
estruturais platônicas se mostram plausíveis.
96
CONCLUSÃO
O presente trabalho teve como objetivo apresentar e analisar problemas centrais da
filosofia da música tendo como foco principal seu subgênero ontológico.
De um modo geral, a filosofia da música abarca um conjunto de problemas não
somente acerca da realidade da música, mas também da relação que com ela estabelecemos
e que ainda assim não conseguimos resolver por completo. Temos desse modo problemas de
teor metafísico e também epistemológico. Alguns destes problemas não são exclusivos da
música em particular, são problemas gerais da filosofia da arte, já outros são
especificamente acerca da música. Apesar de apresentarmos neste trabalho problemas
pertencentes à filosofia da arte em geral, buscou-se priorizar a música, mas não apenas como
temática, e sim por seus problemas suis generis. Temos portanto, problemas da natureza da
música (ontologia e definição) e também problemas da nossa relação com a música, estes
são problemas de (expressão), pois se busca compreender se ela é capaz de exprimir, evocar
ou representar emoções.
No capítulo 1, A questão da definição musical, investigamos problemas da natureza
da música (definição) e também da nossa relação com ela (expressão). A temática da música
e emoções apresentou não apenas a concepção histórica da filosofia da música, mas também
apontou estudos atuais dentro do campo da neurociência. Como o caráter emocional na
música é considerado por alguns a característica essencial da música, se fez necessário
apresentar a relação existente entre música e a expressão de emoções.
Vimos, que desde a Grécia Antiga, tanto Platão em seu livro X da República quanto
Aristóteles em seu livro VIII da Política abordam a questão de reagirmos emocionalmente à
música. Enquanto o primeiro parece atribuir à música apenas o efeito de produzir estados
emocionais no ouvinte, condenando-a juntamente com as demais artes por estas produzirem
somente afetos ao invés de educação-ética. Aristóteles sugere que a música “imita” ou
representa as emoções, e que seu poder educativo estaria no uso prudente do conhecimento
dos seus efeitos sobre a alma humana. A questão de reagirmos emocionalmente à música
pode ser um problema análogo ao de saber o por que respondemos emocionalmente à
literatura. Este debate, portanto, tem uma aplicação também na filosofia da arte em geral.
Contudo, o debate se torna exclusivo da música ao tentarmos compreender se, de forma
independente a nossa reação à música, ela é capaz de ter propriedades expressivas e
representacionais. (GUERREIRO, 2014, p.11). Desse modo, buscamos embasamento
teórico para a possibilidade e forma de se exprimir ou representar algo musicalmente.
97
Todavia, cabe novamente destacar que os termos “provocar” e “exprimir” devem ser
entendidos respectivamente do seguinte modo:
I- Ao afirmarmos que música α provoca uma emoção definida β, concluímos que
todo ouvinte ao ouvir α em condições similares também sentirá β.
II- Ao afirmarmos que a música α exprime uma emoção definida β, significa que
somos capazes de compreender a emoção que está sendo indicada, sem a
implicação de a estarmos sentindo.
Eduard Hanslick, esteta do séc. XIX, defende a teoria de que a música absoluta é
uma estrutura sonora puramente formal, sem qualquer significado emocional. O esteta
reconhece que a música pode evocar emoções, mas de modo semelhante, receber uma
premiação também pode causar em nós o mesmo efeito. Seu argumento tenta mostrar que tal
excitação não é de todo essencial à música (ou qualquer outra arte). Segundo o autor, a
sensação [Empfindung], seria o primeiro passo percorrido em busca de condições favoráveis
que tornam possíveis o verdadeiro deleite estético.
Hanslick reconhece, portanto, que a música não é um agente cognitivo capaz de
expressar emoções. A música, por não possuir uma linguagem adequada, seria incapaz de
representar estados mentais, ela seria algo assemântico. Desse modo, nos parece que a
música é incapaz de causar em nós emoções padronizadas e mesmo que o fosse, isso não
seria essencial, ou seja, não seria aquilo em que consiste ser a música, pois não consegue
comportar uma excelência da sua própria existência. Com base no exposto, podemos
concluir que as emoções possuem um elemento intensional, algo que envolve estados
mentais, como crenças e desejos, etc. Quando dizemos que a música é incapaz de provocar
emoções, temos em mente as emoções definidas, como por exemplo: raiva, melancolia,
tristeza. Desse modo, como já vimos, não se afirma aqui que a obra é incapaz de suscitar
sentimentos nos ouvintes, o que se afirma é apenas incapacidade de provocar uma emoção
definida.
Tendo exposto que a música não é um agente cognitivo capaz de exprimir emoções,
podemos agora avaliar a razão de reagirmos de forma emocional à música. Nosso
direcionamento se deu na área da neurociência por essa apresentar inúmeras pesquisas que
visam elucidar o funcionamento cerebral diante da emoção musical, ou seja, emoções
suscitadas através da música/canção.
98
Vimos que de acordo com mapeamentos das atividades neurológicas de ouvintes
durante a audição musical, realizadas através de técnicas avançadas de imagem por
ressonância magnética/ funcional (IRM-IRMF) e eletroencefalografia (EEG) foi possível
identificar não somente a ativação de diversas áreas do cérebro, mas também a capacidade
de a música atingir de forma ampla e simultânea: memória, linguagem, motricidade e
emoções. A partir destes estudos estabeleceu-se no campo da neurociência que tanto emoção
musical, quanto a emoção em geral, são causadas por uma excitação nervosa. Isto porque o
fenômeno físico/acústico do som, afeta nosso sistema nervoso autônomo que é a base da
nossa reação emocional, este suscita reações fisiológicas ligadas às vibrações sonoras, que
por sua vez, estão ligadas às relações psicológicas. Outro destaque importante é a possível
descoberta de Daniel Levitin (2010), este afirma que ao contrário do que era até então
entendido, o cerebelo não estaria ligado somente à noção de tempo e ao movimento. Após
suas pesquisas, o neurocientista e também músico destacou que o cerebelo de seus
voluntários recebia várias ativações enquanto estes ouviam música, porém, quando ouviam
apenas ruídos o cerebelo não era ativado. Segundo Levitin, no momento em que a música
causa emoção, a estrutura do cerebelo é ativada, o que acarreta uma modulação da produção
e da liberação pelo tronco cerebral de neurotransmissores dopamina e noradrenalina, além
da amídala, área mais importante do processamento emocional no córtex. Este possível
grande avanço dentro da neurociência serve de importante contributo também para a área da
filosofia da música, sobretudo no campo de música e emoções. Temos deste modo, um certo
amparo científico para a distinção filosófica entre os objetos sonoros que são ruídos e os
objetos sonoros que se enquadram como música.
Alguns críticos afirmam que a temática da música e emoções deveria ser estudada
somente pela neurociência e psicologia, por se tratar de um problema que seria
exclusivamente empírico. No entanto, é preciso destacar que mesmo sendo um fato
psicológico reagirmos emocionalmente à música, nenhuma descrição do mecanismo causal
nos permite saber se a música possui propriedades expressivas e em que consiste tal coisa ou
se a música é ou não capaz de representar a realidade extramusical. Nas palavras de
Guerreiro:
Uma vez que toda e qualquer reação emocional à música tem uma explicação
causal, a mera descrição do mecanismo causal não nos permitirá saber se algumas
reações emocionais à música são mais adequadas do que outras ao caráter da
música, se todas são irrelevantes para a apreciação da música e porquê. Por outras
palavras: ou as nossas respostas emocionais à música são racionais ou não (por
exemplo, é racional ter medo de algo que acreditamos constituir uma ameça, mas é
99
irracional ter medo sem ter a crença de que algo nos pode fazer mal). Sejam nossas
respostas emocionais à música racionais ou não, haverá sempre um mecanismo
causal envolvido. (GUERREIRO, 2014, p.36).
Desse modo, mesmo que a psicologia a neurociência nos dêem explicações
exaustivas acerca do mecanismo causal, elas a princípio não são capazes de dizer se há
nessas respostas algum elemento normativo (e não meramente causal), portanto, não sabem
nos informar em que consiste e qual papel desempenha na compreensão musical. Além
disso, mesmo que a neurociência tenha muito a elucidar sobre a função da música em nossos
cérebros e comportamento, ela pouco ou nada tem a nos oferecer em relação à definição real
da música, ou seja, o que procuramos aqui é uma definição essencialista, algo que
contemple definições em termos de condições necessárias e suficientes. Desse modo, para
que algo pertença à extensão de um dado conceito é preciso satisfazer condições
(individualmente) necessárias e (conjuntamente) suficientes.
Como destacado anteriormente, a palavra música em si não é a questão problemática,
o que se busca é estabelecer critérios com o intuito de que algo os satisfaça para ser de fato
um exemplo de música, portanto, não se busca os critérios pelos quais normalmente já
reconhecemos algo como música.
Como visto, apesar de termos uma noção quase intuitiva do que é a música, tentar
defini-la não foi uma tarefa fácil. Isto porque, existem casos marginais e possibilidades de
erro nessa identificação, principalmente em razão de algumas coisas que soam musicais não
serem música. Apresentamos dois conceitos diferentes de música, desenvolvidos por Jerrold
Levinson e Andrew Kania.
Segundo Levinson, não podemos definir a música por alguma relação especial com
a vida emocional, por mais que todas as músicas pareçam consistir em organizações de som
que agitam a alma, ou afetam as emoções, estes aspectos não são características capazes de
defini-la. O filósofo vai além da sugestão inicial de que música nada mais é do que som
organizado, ele defende uma espécie de definição intencionalista, onde:
x é música se, e somente se, a) consiste em sons b) temporalmente
organizados c) com o propósito de enriquecer ou intensificar a
experiência por meio da entrega ativa (p.ex. escutando, dançando,
executando) aos sons d) considerados primariamente, ou em grande
medida como sons.
100
Devemos levar em consideração que a condição b) exclui os eventos sonoros que
apesar de serem humanamente produzidos não possuem estrutura ou articulação temporal c)
exclui tanto os eventos sonoros que não são humanamente produzidos, quanto os eventos
sonoros que são produzidos intencionalmente sem o propósito de intensificar a esperiência
estética. Temos como exemplo de b) combinações de sons que são instantâneas, intensas,
mas muitíssimo fugaz. Como exemplo de c) temos o Muzak, por este não ser um objeto
criado para ser apreciado, mas somente para ter algum efeito psicológico. (GUERREIRO,
2014).
A definição proposta por Andrew Kania, ao contrário da definição de Levinson,
coloca em xeque a exclusão do Muzak e dos acordes muitíssimo fugazes. O filósofo
apresenta uma definição intrínseca, subjetiva e intencionalista, na qual discute sobre as
definições que são intrínsecas, desse modo, algo seria música em virtude de propriedades
intrínsecas, não relacionais. Ao discutir uma perspectiva subjetiva, a atitude do ouvinte
entraria em causa e a intencionalista seria por depender dos objetos de quem produz os sons.
Por fim, Kania acaba por optar por uma proposta disjuntiva do conceito de música, mas que
se apoia na ideia de produção intencional.
Neste caso, algo é música se e somente se, é:
a) Um evento intencionalmente produzido e organizado b) para
ser escutado de tal modo que ou (a) tem alguma característica
musical básica, tal como a altura tonal ou o ritmo, ou (b) é para
ser ouvido com a expectativa de fundo de encontrar tais
características.
Observamos através das duas concepções de música que ambas num primeiro
momento podem parecer bastante restritas, não sendo capazes de abranger eventos sonoros
suficientes, tal como obras que aparentemente tenham sido intencionalmente concebidas,
mas que não apresentam altura tonal ou ritmo, temos como celebre exemplo a peça 4’33’’ de
John Cage. A peça de Cage é sem dúvida um dos maiores exemplos de uma possível obra
musical sem características musicais básicas. A razão obviamente se dá por se tratar de uma
peça tida por alguns como sendo silenciosa. Cage não concorda totalmente com essa
afirmação, seu intuito com a peça era demonstrar que os sons ambientes estão nela
incorporados, desse modo, os ruídos dos passos dados pela plateia que se ausentou, as gotas
101
de chuva, o barulho do vento nas árvores, assim como qualquer tosse, espirro, tique taques
do relógio e outros sons emitidos dentro daquela sala fariam parte da peça.
Como já vimos de forma mais detalhada as perspectivas de Levinson, Kania,
Stephen Davies e Julian Dodd sobre a 4’33’’ de Cage, cabe retomar as considerações
principais que fizeram sobra a peça:
A peça cumpre os requistos estabelecidos por Levinson (1990), sendo em sua
perspectiva um caso limítrofe de música. Contudo, ele nega que isso mostre que qualquer
som, quando não assim enquadrado, seja música. No máximo, mostra que qualquer som
pode ser tratado como se fosse música. Podemos concluir que de acordo com a definição de
música estabelecida por Levinson, a peça 4’33” de John Cage pode ser considerada como
um exemplo de música, uma vez que Cage tenha composto uma partitura visando
acrescentar em sua performance os sons imprevisíveis que iriam ocorrer. Podemos pensar
que a 4’33’’ se enquadra nas condições de Levinson, pois:
I) Estaria temporalmente organizada por Cage dentro da duração de
quatro minutos e trinta e três segundos da performance.
II) Possui o propósito de enriquecer ou intensificar a experiência, por
meio de uma entrega ativa: o ato de ouvir e se atentar aos sons ao
redor (performance), sons estes considerados sons pelo
compositor.
Diante da definição conceitual de música apresentada por Andrew Kania:
A música é (1) qualquer evento intencionalmente produzido ou
organizado (2) para ser ouvido de tal modo que (3) ou (a) tem
alguma característica musical básica, tal como altura tonal ou ritmo,
ou (b) é para ser escutado pressupondo tais características.
Kania (2010) a classifica na categoria de arte sonora não musical, mesmo ela não
sendo totalmente silenciosa não seria música. Temos que a peça 4’33” de John Cage apesar
de ser um evento intecionalmente produzido e organizado, não apresenta nenhuma
característica musical básica e também não foi criada para ser escutada pressupondo tais
características, pois Cage não tinha a intenção de que a obra 4’33’’ fosse ouvida com o
102
objetivo de encontrá-las. Por essa razão, ma visão de Kania a obra 4’33’’ se enquadraria
apenas como arte sonora não musical.
De acordo com Stephen Davies, a 4’33” deve ser vista como um acontecimento que
desafia a fronteira entre o ruído e a música. A peça em sua concepção deve ser classificada
como obra de arte e ele indica algumas razões: 1- a peça tem um título; 2- é um som
organizado (neste caso incluindo o silêncio como forma de auxiliar na estrutura do som); 3-
ela é temporalmente organizada, múltipla e para performance (podendo incluir ou não
instrumentos musicais). Diante destes aspectos a peça de Cage segue realmente alguns
paradigmas de obras musicais do ocidente. Mas ainda assim o filósofo não a classifica como
música. Ele defende que a obra deva ser classificada apenas como uma obra não musical do
teatro. A peça é então considerada como uma obra de arte de teatro, mas não é uma obra de
teatro musical, como ópera. Desse modo, ele afirma que podemos incluir a 4’33” numa
classificação de música apenas se a quisermos como um caso limítrofe da organização do
som e do silêncio.
O filósofo Julian Dodd (2018) recentemente fez uma nova caracterização da peça
4’33” de John Cage. Dodd afirma que não devemos seguir a conclusão de que a peça de
Cage é música, mesmo que ela seja notacional para performances de músicos, a razão para
não considerarmos a peça como música é o fato de ela não conseguir organizar sons, dado
que é uma obra silenciosa. Para o autor, os gêneros de uma obra são definidos de acordo
com seus propósitos, ele afirma então que a 4’33” pertence ao gênero da arte conceitual.
Pois em sua visão a peça é uma obra repetitiva de performance artística, sendo assim, a peça
pertenceria apenas ao gênero da arte conceitual. Dodd(2018) afirma que o objetivo da arte
conceitual é o de “contrapor a expectativa de que devemos apreciá-los esteticamente e de
nos levar a considerar assuntos de natureza mais intelectual” (2018, p.639). Tal função de
acordo com Dodd seria cumprida pela obra de Cage, pois ela “nos faz perceber que os sons
são onipresentes e podem ser apreciados esteticamente como sons” [ibid .: 640].
No capítulo 2, “Música e suas categorias ontológicas”, analisamos a possibilidade
de a música colocar, sim, problemas sui generis. Creio ter sido possível demonstrar que
alguns problemas são exclusivos da música, não podendo ser colocados a propósito da
natureza de nenhuma outra arte. Para discutir melhor a natureza da música, se fez necessário
discutir não só aquilo que tem propriedades: particulares, objetos/substâncias, como também
o problema dos universais.
Apresentamos as concepções platônica e aristotélica acerca dos universais. De
acordo com a concepção platônica, os universais são transcendentes, isto é, existem fora do
103
espaço e do tempo. Os universais para Platão são objetos abstratos e imutáveis. O termo
‘universais transcendentes’ significa que essas entidades existem independentemente de suas
instâncias espaço temporais. O termo ‘universais imanentes’ significa que essas entidades
existem, mas dependem da existência de suas instâncias. Na concepção aristotélica, os
universais são imanentes, eles não existem fora do espaço e do tempo, estão localizados
onde suas instâncias estão localizadas.
Vimos que através das explicações do tipo e token é possível tentar responder a
pergunta Qual seria a natureza relacional entre as obras musicais e suas instâncias? A
teoria tipo/token é usada no âmbito categorial para tentar explicar como é possível ouvirmos
de fato uma obra musical, sendo que na realidade estamos diante das performances e
execuções da mesma.
Analisamos a perspectiva de Richard Wollheim, onde haveria algo que distinguisse
a relação entre, por um lado, universais e tipos e, por outro lado, suas propriedades. Creio
ser plausível caracterizar seu posicionamento como uma versão aristotélica dos tipos.
Wollheim tenta mostrar que as propriedades transmitidas entre tokens e tipos são apenas
aquelas que os tokens necessariamente possuem. Excluindo, portanto, propriedades
outorgadas aos tokens (por exemplo, sua localização no espaço-tempo) ou exclusivas aos
tipos (por exemplo, ‘a obra x foi inventada por’). O autor acredita que se obtivermos êxito
em alcançar uma caracterização precedente de um tipo e seus tokens, estaríamos grosso
modo, diante de uma estrutura capaz de nos permitir explicar sobre os princípios de
identidade e individuação de uma obra de arte. Wollheim defende que tipos não são
universais e sim objetos abstratos, objetos esses que não possuem existência independente,
estando localizados onde seus tokens estão, o que permite que sejam vistos e ouvidos da
forma como são demonstrados os tokens. Por mais que tipos e universais possam parecer
semelhantes, o autor parte do pressuposto de que tipos são criações humanas, e através delas
as propriedades são transmitidas para os tokens.
Tendo analisado as características dos universais, conseguimos analisar um pouco
mais de perto as propriedades do tipo e destacar suas possíveis características em comum
com os universais. Vimos que os tipos aparentemente: a) Possuem instâncias ou são capazes
de tê-las; b) São repetíveis; c) Encontram-se onde os universais estão.
Também analisamos a teoria de Wolterstorff, na qual ele defende que ao
contrário do modelo tipo-token adotado por Wollheim, deve ser feita uma analogia entre
tipos-normativos-naturais e tipos-normativos-não-naturais. Podemos afirmar que seu
posicionamento é bastante compatível com o realismo platônico. Em sua visão uma OMs
104
seria um tipo-normativo-não-natural, algo que não possui propriedades atribuídas por nossa
linguagem de costume.
No capítulo 3, O que é uma obra musical? , temos a análise de uma gama de teorias
ontológicas que investigam a natureza da obra musical e que buscam responder a pergunta
título. Apresentamos como ponto inicial de discussão o princípio da restrição pragmática
que é usado como princípio metodológico de muitos ontologistas da arte, também foram
apresentadas e analisadas as principais correntes teóricas que buscam dissolver as questões
conflitantes do tema.
Vimos que através da obra Arts as Performance (2004) do filósofo David Davies o
princípio da restrição pragmática passou a ser amplamente utilizado dentro dos debates da
filosofia da música. Este princípio considera as práticas artísticas como o melhor padrão de
medida para as investigações ontológicas da arte, sendo essa utilizada para se chegar à
melhor teoria. Davies defende que uma ontologia musical deve buscar descrever ao máximo
e não apenas revisionar as práticas musicais e críticas existentes. Para isso estabelece bases
conceituais que buscam enquadrar: apreciação artística, criação artística e modernismo
tardio/arte contemporânea. O princípio serveria portanto, para que qualquer ontologia
musical fosse capaz de descrever as OMs como sendo entidades detentoras das propriedades
que lhes são atribuídas pelo discurso pré-filosófico, musical e crítico, e isso seria possível
mesmo que certas restrições lógicas e metafísicas fossem um tanto coercitivas. Davies alega
que para a construção de uma teoria geral se faz necessário partir de algum ponto, a prática
artística amplamente concebida seria este ponto. Contudo, ele afirma que, para avançar na
ontologia da arte, nossas intuições reflexivas é que se tornam fundamentais, pois são elas
que nos permitem indicar o que é ou não aceitável em dada prática, viabilizando então que
fosse possível ultrapassar o ponto inicial.
Conseguimos constatar que de fato parte da discussão sobre a natureza da obra
musical é uma espécie de resgate da discussão do “problema dos universais”. Dividimos os
ontologistas entre realistas e antirealistas, tendo os primeiros como defensores da existência
das obras musicais, enquanto os segundos defendem o contrário. Apresentamos as principais
correntes teóricas que buscam dissolver as questões conflitantes do tema. Essas correntes
são: nominalismo; eliminativismo; a hipótese da ação-tipo e a teoria performativa; a
abordagem idealista e os platonismos musical simples e radical.
Como exposto, a abordagem nominalista nega a existência de entidades abstratas e
faz uso da análise do discurso sobre elas, a partir de entidades concretas. Por vezes,
identificam o nominalismo como sendo a teoria que rejeita números, propriedades,
105
proposições etc. Entretanto, a teoria não pode ser definida como aquela que rejeita OMs,
números, propriedades, proposições etc, pois ela não é contrária às entidades em si, o
nominalismo apenas considera que tais entidades são incompatíveis com a concepção de
universal ou objetos abstratos, ou seja, tais entidades se existirem serão concretas. Sendo
assim, a simples negação de tais entidades não faz de um filósofo um nominalista, para ser
um nominalista é preciso negar tais entidades por conceber algum tipo de caráter universal
ou abstrato (P), ou (Q) aceitá-las por conceber que estas são particulares ou objetos
concretos.
O nominalismo em relação à ontologia musical mantem uma forma de realismo
epistêmico, por negar que OMs são objetos abstratos. A estratégia é utilizada para se
esquivar dos problemas que são gerados ao se assumir a possibilidade de uma interação
causal com um objeto abstrato. Tendo em vista que, por definição, objetos abstratos existem
fora do espaço, eles não poderiam entrar em relação causal com nossos aparatos perceptivos,
desse modo não poderíamos nos referir às OMs e tampouco afirmarmos algum
conhecimento sobre elas. Os chamados realistas epistêmicos, geralmente, apresentam uma
postura agnóstica em relação às entidades teóricas, como os objetos abstratos, mas isso não
os impede de conceber que entidades por eles consideradas existentes, existam de forma
independente de nossas percepções e ou concepções (GIOMBINI, 2015). A negação da OMs
como sendo objetos abstratos se baseia na tentativa de estabelecer uma teoria simples,
composta por uma sutileza ontológica. Sendo assim, dentro do nominalismo é preferível
uma teoria sem a presença de um objeto abstrato devido ao alto custo implicado nessa
defesa.
Temos a concepção nominalista de Goodman, na qual em sua visão cada OMs deve
ser entendida como a totalidade de suas execuções, ou seja, a OMs é entendida como uma
classe de performances que seguem uma partitura. Já a partitura teria o papel fundamental de
definir uma obra, desempenharia uma espécie de caractere dentro de um sistema de
símbolos, capaz de indicar qual performance corresponde ou não a uma OMs específica.
Não há para Goodman um entendimento da OMs como detentora de um caráter
independente ou de essência, a OMs apenas corresponderia à partitura realizando execuções
compatíveis com as performances passadas, presentes e futuras que também cumprem com o
estabelecido pela partitura. Nesse caso, Goodman defende uma linguagem “notacional” das
partituras, mas para que isso ocorra é preciso preencher cinco requisitos sintáticos e
semânticos, algo que também proíbe a ambiguidade, a sobreposição e a indeterminação
dentre os caracteres e seus complacentes.
106
Há ainda versões contemporâneas mais amplas do nominalismo musical, o
materialismo musical de Chris Tillman (2011) se refere aos que identificam as OMs em suas
manifestações concretas e particulares, sua posição é totalmente cética em relação aos
objetos abstratos, substituindo a abstracta pela classe de instâncias complacentes, tendo
como a noção de classes a possibilidade de diminuir a quantidade de ambiguidades da teoria.
Outra versão contemporânea do nominalismo é o Nominalismo Mereológico de David
Armstrong (1978) que além de escolher alguns objetos concretos como representantes de
uma possível manifestação concreta da OMs, também indicam uma entidade concreta que
resulta da relação das partes como um todo.
A corrente eliminativista defende que as OMs não existem. Essa perspectiva teórica
tem como um dos seus primeiros representantes o filósofo Richard Rudner (1950) e Ross
Cameron (2008). Segundo os representantes dessa corrente filosófica, apesar das inúmeras
experiências diretas que temos com obras musicais, elas não são suficientes para que
possamos afirmar que tais objetos sonoros existam no mundo. Defendendo o uso de uma
simplicidade argumentativa e buscando uma parcimônia ontológica, a doutrina alega que se
aceitarmos em nossa ontologia OMs e demais objetos como artefatos comuns estaremos
apenas mantendo uma exigência do nosso senso comum e da nossa linguagem comum, mas
permanecemos sem nada conseguir explicar, ao contrário, estaríamos apenas criando mais
problemas ontológicos. Creio que esse tipo de simplicidade ontológica pouco colabora para
explicar o mundo, pois dificulta a formulação de hipóteses e explicações de fenômenos,
desse modo não haveria nenhuma virtude na simplicidade ontológica em si. Tal teoria
portanto, não parece contribuir para uma compreensão da realidade e não nos ajuda a
estabelecer nossa experiência com base na realidade através de uma via mais racional.
Apresentamos os filosófos Gregory Currie (1989) e David Davies (2004) como
representantes da hipótese da ação-tipo e da teoria performativa. Como vimos, ambos se
aproximam de uma concepção contextualistas e antiempiristas na ontologia da arte.
Currie sustenta que as OMs e demais obras de arte são entidades abstratas e eternas,
com a possibilidade de serem instanciadas em tempos diferentes e por pessoas distintas.
Essas premissas têm como implicação uma conclusão um tanto quanto contra-intuitiva: os
artistas deixam de ser os criadores das obras de arte. O filósofo concebe esse processo da
ação de execução do compositor como sendo tipos de ações. E sugere que a maneira mais
natural de fazer justiça à natureza da apreciação estética - como ele vê - é
simplesmente identificar as OMs como tipos de ações realizadas por seus compositores.
107
Vimos que a teoria de Currie não foi amplamente aceita dentro da comunidade dos
ontologistas musicais, em destaque um dos seus objetores: Levinson (1996), que questiona o
fato de Currie identificar as OMs como tipos apenas, ele alega que, se assim o fosse, as
OMs não poderiam ter sido criadas por artistas, pois se essas entidades existem, existem por
toda eternidade (ou intemporalmente).
Já David Davies (2004) ao contrário de Currie, acredita que as obras de arte são
ações particulares, como a ação compositiva de seus compositores, portanto, são ações-
token. A teoria performativa de Davies visa dar uma explicação coerente às continuidades e
descontinuidades entre a arte moderna tradicional e o modernismo tardio, ele alega que as
obras de arte são ações particulares, como a ação compositiva de seus compositores,
portanto, são ações-token. Esse afirma ainda que a obra musical seria um foco de
apreciação, uma performance geradora, na qual o artista, através da manipulação de algum
veículo consegue gerar um foco de apreciação. Desse modo, a obra verdadeira nada mais
seria do que o desempenho do artista.
Outra abordagem apresentada foi a Idealista, como vimos ela é antimaterialista,
entretanto não é antirealista, seus representantes como R. G. Collingwood (1938) pensam a
obra de arte (incluindo a musical), como sendo objetos de experiências mentais. Dentro
dessa abordagem, a música e demais artes não teriam nenhum tipo de dimensão física, a
OMs seria um objeto meramente mental ou apenas fruto de experiências imaginativas.
A última corrente analisada foi a do Platonismo Musical, esta foi dividida em duas
versões: simples e radical. Como representantes do platonismo musical radical, destacamos
Peter Kivy (1988) e Julian Dodd (2007). Nesta versão do platonismo, a intemporalidade das
obras é rejeitada e o tipo indicado é introduzido como nova categoria metafísica. Para ambos
as OMs são consideradas objetos abstratos sem localização no espaço tempo, elas são
entendidas como partituras ou perfomances (eventos sonoros), seriam como as formas
platônicas ou universais. Este paralelo é feito em relação às características dos universais.
Os universais costumam ser caracterizados como algo que possui instâncias, sendo
repetíveis, sendo abstratos, sendo acausais, sem localização espaço-temporal e sendo
predizíveis das coisas. As OMs de maneira semelhante também podem possuir instâncias,
podem ser exemplificadas em suas performances sonoras que podem ainda ser repetíveis.
Vimos que a versão radical pode ser entendida como a defesa de que OMs são objetos
abstratos que não podem estar presentes em nosso mundo físico, tal qual seus tokens estão.
Sendo objetos abstratos, não conseguiriam ter algum tipo de contato causal conosco, estes
objetos não poderiam ser inventados, seriam apenas descobertos ou selecionados por seus
108
compositores. São inúmeras as críticas aos platonistas radicais, suas críticas geralmente se
baseiam nas implicações contra-intuitivas da teoria. Vimos 4 objeções à teoria: 1)
perceptibilidade: onde as OMs possuem propriedades perceptivas enquanto universais, mas
não possuem quando concebidas de maneira padronizada. 2) criabilidade: onde as OMs são
criadas pelos seus compositores. Assim, elas não devem existir antes da atividade
composicional do compositor, mas são trazidos à existência por essa atividade. Objetos
abstratos, inversamente, são geralmente referidos como eternos e imutáveis, isto é, entidades
que não podem ser criadas; 3) destrutibilidade: onde as OMs podem ser destruídas pelo
desaparecimento (i) de seus exemplos formados, (ii) sua geração de “notação” e (iii) toda a
memória humana dessa notação, enquanto entidades platônicas não podem ser destruídas; E
por fim, a objeção 4) condições de identidade: de acordo com o platonismo, duas obras
musicais com a mesma estrutura sonora são a mesma obra musical. Alternativamente, se
duas pessoas diferentes compõem a mesma estrutura tonal, elas compõem a mesma
OMs. No entanto, pode haver obras musicais que compartilham as mesmas sequências de
som, mas são obras diferentes, já que diferentes propriedades devem ser consideradas para
sua apreciação.
Na versão do platonismo musical simples, escritos dos filósofos Davies (2001),
Stecker (2003), Thomasson (2004) e Levinson (1980, 1990) foram destacados.
Apresentamos as tentativas de correção por eles defendidas para as definições consideradas
menos persuasivas da versão radical do platonismo musical. Ao contrário da primeira, essa
versão simples do platonismo pareceu pautar-se em certas evidências da prática musical. No
platonismo simples as obras musicais também são consideradas objetos abstratos, ou seja,
existem de forma separada de suas partituras e performances o que justificaria seu caráter
repetitível, mas nesta versão elas não são consideradas entidades eternas ou sem localização
espaço-temporal. Há algumas pequenas divergências dentro da teoria de cada autor
platonista simples, mas grosso modo, essa versão defende que as OMs além de serem
abstratas, existem no tempo como consequência da ação humana na atividade
composicional. Apresentamos as 3 principais críticas ao platonismo musical simples: 1)
a objeção da obscuridade do conceito de tipos indicados: as OMs são entidades complexas
compostas por uma estrutura sonora e uma estrutura de meios de desempenho, indicada por
alguém em um determinado momento; 2) uma objeção do Sonicismo vs Instrumentalismo:
Kivy e Dodd defendem que as especificações instrumentais e a estrutura de performance
tipo que integram a identidade da obra musical, como na visão instrumentalista de Levinson,
é insustentável. E por fim a objeção 3) das Obras com estruturas idênticas: Onde dentro do
109
contextualismo proposto por Levinson, se dois compositores produzem de maneira
independente duas partituras originais que são notavelmente idênticas, de modo que suas
performances tenham as mesmas qualidades sonoras, elas ainda criam duas obras diferentes,
mas para o platonismo estrutural apenas uma obra é criada.
Não considero que os problemas levantados no presente trabalho estejam
completamente resolvidos por nenhuma das teorias existentes, fato é que os próprios autores
comumente mudam seu posicionamento diante de objeções e constantes debates entre eles.
Contudo, tenho minhas inclinações. Para as questões: O que é música? e A 4’33” consiste
num exemplo de música? Creio que a definição estabelecida por Levinson se aproxima mais
de uma definição convincente78
. Uma vez que, seu objetivo consegue captar um uso bastante
amplo do que a «música» é nos tempos atuais, mas sem que este deixe de ser aplicado da
mesma maneira à fenômenos musicais de culturas diferentes, ou seja, sua definição
consegue abarcar não apenas as sinfonias de Beethoven, mas também as canções de Bob
Dylan. E a 4’33’’ de Cage acaba sendo um caso limítrofe de exemplo de música por cumprir os
requisitos estabelecidos. Levinson também nega que qualquer som, quando não assim
enquadrado, seja música. No máximo, mostra que qualquer som pode ser tratado como se
fosse música.
Após ter analisado as característas dos universais creio que a melhor resposta
para a pergunta: “A qual categoria ontológica pertence uma obra musical?” é dada pelo
platonismo musical. A resposta é que as OMs são tipos. Mas não afirmo ser totalmente
plausível dizer que os tipos são universais, porém pressuponho serem bastante semelhantes.
Os universais, em contraste com os particulares, têm sido caracterizados como tendo
instâncias, sendo repetíveis, sendo abstratos, sendo acausais, sem localização espaço-
temporal e sendo predizíveis das coisas. Como já observamos, as obras musicais podem ter
instâncias, podem ser exemplificadas em suas performances: elas são repetíveis. Também no
que diz respeito a ser abstrato e não-espacialmente localizado, as obras musicais se
assemelham a universais (ou a partir de uma visão aristotélica dos universais, elas estão em
suas instâncias e têm muitas localizações espaço-temporais ao mesmo tempo). Para os
platonistas radicais, isso é suficiente para que elas sejam consideradas como uma espécie de
universais, e devem ser classificadas corretamente como tal.
78
Música = sons temporalmente organizados por uma pessoa, com o propósito de enriquecer ou intensificar a
experiência, por meio da entrega ativa (p. Ex., ouvindo, dançando, executando) aos sons, considerados
primariamente ou em grande medida78
como sons. (LEVINSON, 2014, p.56).
110
Enquanto o platonismo radical busca explicar obras musicais como quase
universais, eternamente existentes, colocados fora do espaço e do tempo, os filósofos do
platonismo simples construíram teorias para mostrar como nosso pensamento e fala sobre
obras de música nos comprometem a visualizá-las como histórica e contextualmente
entidades individualizadas.
Gosto da concepção de tipos apresentada por Levinson, onde os tipos são tipos-
iniciados que derivam, através de um ato de indicação, de tipos puros. Embora a existência
de tipos puros seja anterior a qualquer atividade criativa, os tipos indicados passam a existir
por meio da atividade composicional, pois, diz ele, os tipos indicados são construídos como
decorrentes de uma operação, como indicação realizada sobre uma estrutura pura.
Comumente vemos os iniciantes em ontologia da música pensarem que a pergunta:
“O que é uma obra musical?” é de fácil resposta, muitas vezes a crença até intuitiva é
atribuída à partitura original como se música e partitura fossem a mesma coisa, porém, este
pensamento não passa de um engano, afinal a partitura nada mais é do que um papel pintado
com notações musicais, e um papel pintado não é música, nem mesmo as notações musicais
em si são músicas. Se alguém roubar a partitura original de uma obra musical estará
roubando apenas a partitura, não estará roubando a obra. Além disto, uma peça musical,
pode muito bem ser feita sem que haja uma partitura da mesma. Temos que ter em mente
que mesmo sendo aniquiladas todas as versões impressas de uma partitura P, a obra por sua
vez, poderá ainda permanecer na memória das pessoas.
Alguns filósofos da música afirmam que a obra musical nada mais é do que aquilo
que estava na mente do compositor no momento da atividade composicional 79
. Se estes
estiverem certos, a obra 5ª Sinfonia de Beethoven não existe mais, tendo em vista que seu
compositor faleceu em 1827. Mas o que significa dizer exatamente que as obras musicais
não passam de entidades mentais? Parece-me haver dois significados para tal afirmação: ou
se defende que a obra é um estado mental, tal como intenções, crenças, emoções, ou se
afirma que a obra é o conteúdo de alguns desses estados. Não creio que a primeira hipótese
faça algum sentido, tendo em vista que as entidades mentais não são algo que possamos
ouvir ou executar em um instrumento. A segunda hipótese nos diz que a obra, caso
realmente exista, é algo extramental, que pode ser representado mentalmente.
O platonismo musical segue atualmente como o ponto de vista mais influente na
filosofia da música. Mas creio que o platonismo simples seja de fato a teoria que mais
79
Corrente idealista.
111
“respeita” parte das nossas intuições pré-teóricas acerca das obras musicais, além de dar
contibuições relevantes para área. Claramente, sua grande fonte de objeção é a insatisfação
causada pela consequência particular assumida por parte da corrente (platonismo radical): a
saber, que as obras musicais não são criadas por seus compositores. Na minha concepção,
mesmo que o compositor seja de fato “mero” descobridor e não o criador da obra, isso não
implica que este seja menos talentoso e criativo. A criatividade não consiste apenas em
trazer obras à existência, um pensador criativo também é alguém que tem imaginação para
entreter pensamentos que estão além do alcance da maioria das pessoas. Vimos que no
platonismo radical a OMs é um padrão sonoro abstrato que é descoberto, e não criado, pelo
seu compositor. Como diz Robert Sharpe (2010): “É justo afirmar que o centro da
controvérsia aqui é como devemos compreender a criatividade do compositor: será que
cria ex nihilo, ou encontra-se mais na posição do grande e inovador cientista cujo gênio lhe
permite ver o que outros não conseguiram?” Há algumas pequenas divergências dentro da
teoria de cada autor platonista simples, mas grosso modo, essa versão defende que as OMs
além de serem abstratas, existem no tempo como consequência da ação humana na atividade
composicional.
Considero que o platonismo simples seja mais moderado, ao contrário da versão
radical, a versão simples parece pautar-se em certas evidências da prática musical. No
platonismo simples as obras musicais também são consideradas objetos abstratos, ou seja,
existem de forma separada de suas partituras e performances o que justificaria seu caráter
repetitível, mas nesta versão elas não são consideradas entidades eternas ou sem localização
espaço-temporal.
Creio que a perspectiva desenvolvida por Jerrold Levinson seja a mais evoluída. E
esta aceita a OMs como um padrão abstrato ou um tipo do qual as suas execuções ou
interpretações são espécimes, sendo este tipo criado por um compositor. Levinson (1980)
neste âmbito estabelece uma tríade de suposições intituladas desideratos onde a OMs: 1- é
criada pela atividade composicional, 2- é individualizada dentro do contexto a qual pertence,
3- é caracterizada por uma instrumentação específica como uma característica necessária de
sua identidade. Desse modo as OMs:
(1) Não existem antes da atividade composicional de seu compositor, e são trazidas
à existência por essa atividade;
112
(2) São tais que os compositores em diferentes contextos histórico-musicais embora
criando a mesma estrutura sonora, compõem invariavelmente obras musicais com um estilo
distinto;
(3) São tais que meios específicos de execução (instrumentação) são parte
integrante delas.
A obra musical para ele não é um objeto imutável, a partir do momento em que ela
é criada, deve ser entendida como uma entidade distinta, não podendo mais ser reduzida ao
conjunto de performances ou cópias de suas partituras. Desse modo, poderíarmos atribuir a
elas propriedades específicas. Levinson rechaça a ideia de OMs como tipos puros e eternos,
pois nessa concepção não é levada em consideração a criatividade, localização histórica e
especificações instrumentais para a identidade da obra. Negando então o status de obras
eternas, o filósofo sugere que OMs são tipos- iniciados - isso é, são tipos derivados através
de um ato de indicação de tipos puros, ou seja, as OMs seriam tipos indicados através de
uma indicação de uma certa estrutura ou tipo implícito por um agente, mas a indicação não
seria uma simples descrição dos elementos da execução da obra (ou seja, exclusivamente sua
instrumentação), mas o ato de tornar normativas as propriedades desta estrutura.(LOPES,
2013) .
Desse modo, para Levinson quando o tipo indicado por X em t não é apenas um
tipo implícito acidental, ele demonstra como algo novo surge no mundo dos entes abstratos,
tendo sido causado pela ação de X, e sua identidade ficará sempre indexada a X e ao seu
contexto histórico-musical que reconheceu esse ato como criador da OMs.
Por fim, defendo que a música coloca sim problemas sui generis, e tais problemas
são exclusivos da música, não podendo ser colocados a propósito da natureza de nenhuma
outra arte. Espero ter obtido êxito em demonstrar a relevância de uma área que investiga a
fundo questões ontológicas essencialmente musicais. Sendo assim, a ontologia da música
não apenas existe, como também é uma área relevante dentro da filosofia.
113
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