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Uma análise das tensões ideológicas através da palavra e do discurso trovadoresco (Portugal - século XIII) José D' Assunção Barros Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense, professor da Universidade Severino Sombra, Vassouras - RJ. Resumo: Discussão acerca das forças ideológicas que atravessam a sociedade e a cultura medieval Ibérica, com o exame particular do jogo de suas tensões políticas e sociais, através da prática literária dos trovadores e da própria significação da palavra Trovador". expressão que, capaz de apresentar-se como uma acirrada arena de conflitos sedais, realça, por fim, tal jogo de tensões em algumas cantigas desse período. Pa/avras-criave:trovadores medievais; poesia satírica; literatura medieval; tensões sodais; discurso político Abstract: This article aims to discuss the ideoiogícal tensions preserrt in medieval Iberian sodety and culture, examining in particular ttie interplay in its political and soda! tensions, manifested In the iroubadours' literary practice. It opens with a discussion of theterm "troubadour", an expression which presents, in itself, a rich arena of social conflict, and stresses some playfui tensions in some songs of the time. Keyworcfe.-medieva! troubadours; satiricpoetry: medieval literatura; soda) tensions; political discourse

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Uma análise das tensões ideológicas atravésda palavra e do discurso trovadoresco(Portugal - século XIII)

José D' Assunção BarrosDoutor em História pela Universidade FederalFluminense, professor da Universidade SeverinoSombra, Vassouras - RJ.

Resumo: Discussão acerca das forças ideológicas

que atravessam a sociedade e a cultura medievalIbérica, com o exame particular do jogo de suastensões políticas e sociais, através da práticaliterária dos trovadores e da própria significação dapalavra Trovador". expressão que, capaz deapresentar-se como uma acirrada arena de conflitossedais, realça, por fim, tal jogo de tensões emalgumas cantigas desse período.

Pa/avras-criave:trovadores medievais; poesia

satírica; literatura medieval; tensões sodais;discurso político

Abstract: This article aims to discuss the ideoiogícaltensions preserrt in medieval Iberian sodety andculture, examining in particular ttie interplay in itspolitical and soda! tensions, manifested In theiroubadours' literary practice. It opens with adiscussion of theterm "troubadour", an expressionwhich presents, in itself, a rich arena of social conflict,and stresses some playfui tensions in some songs ofthe time.

Keyworcfe.-medieva! troubadours; satiricpoetry:medieval literatura; soda) tensions; political discourse

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Se a ideologia atravessa necessariamente odiscurso e as práticas discursivas, em todos os gênerosliterários, tal não poderia ser diferente com a poesiatrovadoresca medieval. O objeto do presente artigo, nestamesma direção, refere-se às relações entre Ideologia eDiscurso através das práticas trovadorescas. Pretende-se dar a perceber como a Ideologia constitui, atravessa,recorta este discurso ~ e como se instala no discurso

trovadoresco, não apenas através da poesia mas tambémda própria possibilidade de nomear e classificar os seuspraticantes, dentro de determinada hierarquização sociale de uma 'luta de representações* que se desenvolve emtorno dessa maneira de hierarquizar. A palavra torna-searena para lutas ideológicas, e a própria palavra trovadortorna-se um espaço que se expande ou se comprimeconforme as diversificadas intervenções sociais, conformeficará demonstrado mais adiante.

Consideraremos inicialmente que, em um mundocultural ainda regido essencialmente pela oralidade,penetramos com o discurso trovadoresco medieval emuma modalidade literária para a qual confluem a poesia,a música, o espetáculo, a gestualidade. De igual maneira,também se mostram como espaços de imbricamento devárias linguagens os cancioneiros do período registrosdessa vasta produção que circulava oralmente nos saraussenhoriais e palacianos, na universidade, na praça públicae em tantos outros ambientes socioculturais. Para alémdo registro em que se coloca por escrito uma poesiaveiculada oralmente e através da música — e que muitasvezes inclui tanto a escritura do verso como uma partituramusical —, os cancioneiros abrem-se para a visualidadeatravés de iluminuras que buscam expressar emmanuscrito a dimensão de espetáculo em que se pautavatoda atividade trovadoresca. Temos aqui, portanto, umdiscurso complexo e múltiplo: oral, escrito, musicado,visual, gestualizado — c todas as dimensões dessecomplexo discurso vêem-se constituídas e atravessadaspelo ideológico.

Uma analise das tensões ideológicas através da palavra e oo discurso trovadoresco (Portugal - século Xlll)

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Existe também outra dimensão fundamental que podeser percebida na poesia trovadoresca da Idade Média. Trata-se de um discurso que é ponto de encontro, ou ponto detensão, entre o individual e o coletivo. Puro espaço de poder,através dessa poesia também a Sociedade, no seu sentidomais amplo, encontrava um excelente caminho para as suasrepresentações sociais. O mundo dos trovadores, conformeveremos, é um mundo de tipos sociais diversos, de tensõessociais e políticas, de extratos culturais que se entrechocam,de projetos políticos que se enfrentam, de micropoderes quefazem da poesia dos trovadores uma verdadeira "arenatrovadoresca". Tal se verifica com especial ênfase na poesiasatírica, onde as tensões diversas encontram livre espaço paramanifestar-se através da sátira e do riso. O nosso objetivo aseguir, portanto, será o de verificar como a própria linguagem,através do gênero poético, configura-se no mundotrovadoresco em espaço de disputas e de enfrentamentosonde se estabelecem verdadeiras guerras de representações.A ênfase do estudo recairá no trovadorismo ibérico,

comumente chamado de trovadorismo galego-português emfunção deste que era o idioma poético utilizado tanto pelostrovadores de Portugal como pelos de Leão e Castela.Iniciaremos com uma investigação da arena de tensões sociaisque se estabelece no próprio interior da palavra "trovador".

Recuemos, para uma melhor compreensão doproblema, às origens vagas e imprecisas desse fenômenotrovadoresco medieval tomado tão expressivo a partir doséculo XI. Desde os primórdios da Idade Média se tem notícia,aqui e ali, de poetas-cantores que percorriam o lado ocidentaleuropeu atuando como músicos, cantores, recitadores e que,por vezes, se ligavam a outras formas de espetáculo.Menestréis, jograis, trovadores — são tão diversas quantoimprecisas as designações que surgiram para dar conta desseenorme conjunto de poetas-cantores que esconde, naverdade, uma grande gama de possibilidades e tipos. Skopsanglo-saxônicos desde o século IV, escaldos islandeses enoruegueses a partir do século X, trovadores cortesãos do

século XII em diante, goliardos desde o século IX, jograis umpouco por toda a Idade Média — nem sempre é fácil identificar

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as nuanças entre esses vários tipos. A designação "jogral",por exemplo, é uma das mais vagas — já que, por vezes, serefere não apenas ao músico-poeta, mas também ao artistasaltimbanco, ao histrião, ao malabarista e a tantos outros

profissionais do espetáculo.Existem certas características comuns que tocam

• todo o grande conjunto de poetas-cantores medievais, comoa "itinerância" de boa parte de seus participantes ou a oralidadede sua produção. A entender por esses critérios, a culturamedieval contou com uma longa duração de movimentostrovadorescos nas várias partes da Europa. E, contudo, nessaespécie de "longa duração trovadoresca" se inscrevemdurações mais curtas — compreensíveis a partir de umahistória estrutural e lenta que permite isolar os diversostrovadorismos de acordo com as sociedades que os envolvem.Para dentro deles, uma vez ainda, o tempo curto e dramáticodos acontecimentos parece agitar aquelas poéticas singulares,fornecendo temas e paixões para os seus poetas-cantores:uma batalha, uma mulher, uma traição, o destronamento deum rei — mas também uma hierarquização social que sedefende ou contra a qual se resiste, uma visão de mundo queaflora, um discurso social que mais uma vez se enuncia. Tudoé matéria-prima para um verso.

De qualquer forma, deve-se levar em conta que omovimento trovadoresco — enquanto designação — podeser entendido tanto naquela acepção mais ampla como namais restrita. Em sua acepção mais ampla, ele indica aquelegrande circuito de produção e circulação poética e musicalque atingia diversas esferas, desde a palaciana e cortesã atéa popular, desde o ambiente rural até o urbano, desde asfestas até as cruzadas, e que, por fim, se enquadra em umaduração que se confunde com o próprio período medieval.Na acepção mais restrita, o movimento trovadoresco remeteao âmbito das cortes régias e senhoriais a partir do século XI,quando a cultura aristocrática assimila a produção poetico-musical como uma de suas atividades distintivas.

Assim, essa acepção mais restrita representa umaespécie de recorte, no espaço social e no tempo, dentroda produção trovadoresca mais ampla. Refere-se, pois, à

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poesia, popular ou aristocrática, que circulava no meiocortesão — notando-se que dessa circulação participavamos mais diversos tipos sociais. Além disso, remete a umperíodo que vai do século XI ao XIV, estendendo-se aoséculo XV em algumas cortes alemãs. Característicacomum a boa parte dos trovadores medievais de quetrataremos aqui era, tal como se disse, a sua itinerância,ainda que esta não deva ser exagerada, já que muitostrovadores se estabeleciam a seu tempo em alguma corteou região. Ser um meio movente traz uma efervescênciaespecial ao meio trovadoresco. O trovador liga-se por essaafinidade àquelas figuras do cavaleiro andante, do clérigoerrante, do mercador e navegante, cada qual como umelemento importante no processo de transformação dasociedade medieval a partir do século XI. Ao mesmotempo, a itinerância punha em contato todos os trovadores,facilitava as trocas culturais e criava uma grande malhaque recobria todo o Ocidente europeu com seu tecido deversos e sonoridades.

O grande concerto dos poetas-cantores tinha,contudo, seus timbres internos. Para efeito de simplificação,consideremos as cinco principais regiões culturais que cobrema produção trovadoresca:

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Figura 1 - Mapa trovadoresco do Ocidente medieval entre osséculos XI e XIV

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A França se via então dividida culturalmente emnorte e sul, gerando daí dois subconjuntos distintos eseparados pela linguagem. No sul occitânico, o subconjunto"provençal" dos troubadours, da langue d'ocQ da civüizaçãocátara, berço do amor cortês. No norte, os trouveres,cantando na langue d'oi}Q& primeiras canções de gesta. Emtorno do vale do Pó, foi mais tardio o movimento dos"trovadores italianos", dando origem ao chamado dolcestdlnuovo. Na Alemanha, a Minnesang contribuía com suaversão germânica para o amor cortês (minne= amor sutil) epara outros gêneros trovadorescos. Finalmente, osubconjunto dos trovadores galego-portugueses, queunificava através de uma língua poética comum boa parteda Península Ibérica cristã (com exceção de Aragão e daCatalunha, mais ligados ao circuito provençal).

Dos cinco subconjuntos destacados, o Provençalpode ser tomado como o grande pólo de irradiação q^uedetonou o trovadorismo de corte. A grande novidade trazidapor estes troubadours áo sul occitânico (cortes da Provença,Toulouse, região da Catalunha) foi sem sombra de dúvida oAmor Cortês. Explica a sua irresistível difusão por toda aEuropa Feudal o fato de que esse novo modelo do sentirestava em imediata sintonia com os valores feudo-vass' "cosdo seu tempo, com formas apaixonadas de religiosida e queentão surgiam, com necessidades sociais interfamiliares queproporcionaram o surgimento não apenas dos trovadores,mas também dos cavaleiros andantes em busca de aventurase de oportunidades.

Em que pese ao papel pioneiro e difusor representa opelo circuito provençal para os demais pólos do trovadonsníoeuropeu, outro circuito poético que deixou uma contri uiçaointensamente original foi o dos trovadores ga egoportugueses. Estes, sobretudo na sua produção sa nca e naforma como foram incentivados pelos reis centralizadores dePortugal e de Castela, abriram espaço nas suas cortestrovadorescas para a expressão de poetas-cantores a vm osdas mais diversas procedências e categorias sociais. O ue olírico, mais neste ambiente trovadoresco ibérico do que emoutros, era incentivado pelo rei e por seus convivas, tomando-

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se favoráveJ a que hoje se tenha um verdadeiro retrato dastensões sociais da época com base no exame das páginas do

cancioneiro gaíego-português, onde os trovadores de váriosmVeis sociais se enfrentavam e se satirizavam uns aos outros.

Consideremos, a partir daqui, a diversidade socialque nos apresenta esse ambiente trovadoresco mais restritodas cortes régias e senhoriais. O poeta-cantor podia ser tantoum trovador nobre (trovador-fidalgo) como um jogral demenor categoria social. Havia por vezes uma tendência dotrovador nobre em reivindicar para si mesmo a designaçãotrovador, como uma espécie de distinção social, enquantoreservava a designação jogral àqueles poetas-cantores quenão eram de origem nobre. Acompanhava essa disposiçãouma pretensão, apenas teórica, de que os cavaleiros nobresé que deviam atuar como compositores, enquanto os jograisdeveriam ser relegados ao papel de meros cantores eacompanhadores. Naturalmente que tal pretensão, cantadae decantada por alguns nobres, permanecia estéril na prática,ja que alguns dos melhores poetas-compositores pertenciama extratos sociais diversificados, do burguês enriquecido ouremediado ao jogral que dependia da atividade artística parao seu sustento.

Este ponto também permeia a reivindicação do títulode trovador pelos nobres, que se colocavam como diletantesque em tese não dependiam do "trovar" para o seu própriosustento material. Trovar era para alguns dos nobres umdistintivo social e um instrumento de prestígio, e não um meiode subsistência. Nesta esteira depreciavam socialmente osjograis, para quem o trovar estava associado a uma forma deganhar a vida. Muitos destes tinham os seus serviçoscontratados pelos trovadores nobres, fosse para acompanhá-los como instmmentistas e cantores, fosse para difundir suascomposições. Emerge daí uma terceira designação, comumem alguns subconjuntos como o galego-português. Enquantoo jogral propriamente dito estava atrelado aos serviços deoutro, fosse ele um nobre ou um trovador não-nobre que ocontratava, o segrel seria um jogral, ou um trovador não-nobre que adquirira certa independência e, em alguns casos,até podia se dar ao luxo de contratar os serviços de outrem.

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É claro que tal circuito de designações era difundido por algunsnobres interessados em firmar sua posição de classe, nãocorrespondendo a uma aceitação por parte dos segréis ejograis que se viam excluídos e que reivindicavam para simesmos, como compositores, a designação de trovadores.

Essa pluralidade de designações {polinomásiá)atribuídas ao mesmo agente - o poeta-cantor atuante nascortes trovadorescas —, bem como a disputa entre osvários tipos sociais pelo monopólio de uma designaçãoou, no caso dos jograis, pelo simples direito de partilhá-la,é o principal vestígio de uma intensa luta pelo poder denomear que se travava no seio do universo cortês'. Apolêmica sobre quem deve ou não ser classificado comotrovador aparece estampada em algumas cantigas satíricasdo Cancioneiro Galego-Português, às quais recorreremosno momento apropriado. É mais temática aí do que emoutros subconjuntos trovadorescos, simplesmente porqueentre os galego-portugueses as cantigas satíricas adquiremum maior teor de crítica de tipos sociais e de sátira pessoal.

Por esse viés, percebe-se que a palavra "trovadoré outra daquelas que comportam múltipla acepção. "Comoindicávamos no começo, as palavras mudam de sentidosegundo as posições assumidas por aqueles que as empregam,pode-se precisar agora: as palavras 'mudam de sentido aopassar de uma formação discursiva para outra" (HAROCHE,HENRY e PÊCHEUX, 1971, p.115). Ora. a "formaçãoideológica trovadoresca" abre-se (não sem luta) paramúltiplas "formações discursivas", e a primeira que aquiexaminamos é precisamente esta que se orienta da nobrezamais tradicional e demarcadora contra os grupos sociais nao-aristocratas que se imiscuem na arena trovadoresca e lutampelo direito de ver-se representados.

Nesse "sentido mais restrito" invocado por essesnobres preocupados em demarcar uma posição de classe, apalavra "trovador" atém-se, portanto, aos músicos-poetasa um só tempo aristocratas e independentes. Tal acepçaose constrói por oposição ou contraste com as denominações"segrel" e "jogral". A mentalidade feudal é que está portrás dessa intenção de classificar e hierarquizar a pluralidade

'Leo Spitzer introduziuessa perspectiva em seu

estudo sobre Dom

Quixote

("Perspectivism in Don

Quixote" em Linguisticsand literaryhistory,

New York: Russel and

Russel, 1948), ondemostra que "apolinomásiá, quer dizer,a pluralidade de nomes,sobrenomes, alcunhas

que são atribuídos aomesmo agente ou àmesma instituição é,

com a polissemiã daspalavras ou dasexpressões que

designam os valoresfundamentais dos

grupos, o vestígiovisível das lutas pelopoder que se travam noseio de todos os

universos sociais".

Resumo de Pierre

Bourdieu, em O podersimbólico{\9Ò9, p.l46).

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crovadoresca a partir da perspectiva da nobreza maistradicional e de critérios de qualidade de dependênciapessoal. Acompanha um desprezo, entranhado no imagináriocavaleiresco, por aqueles que são dependentes unilateraisde um patrão — o jogral — ou por aqueles que "trovam"para ganhar a vida, no que se enquadram alguns segréis mastambém muitos nobres empobrecidos. Estes também setomam vítimas, neste último caso, da exclusão. Mas, semperder a nobJessee o orgulho, empurram por sua vez a linhademarcatória para além de si. Invocam para a palavra"trovador um vinculo com a origem social aristocrata, enão com a situação de diletância.

Como se sabe, ao contrário do que ocorre em algumasoutras áreas da Europa, o feudalismo ibérico é perturbadopela emergência de um tipo especial de cavaleiro de origemvilã, isto é, não-aristocrata. Associado por vezes a atividadesprodutivas e mercantis em franca ascensão, e sem os entravesimaginários que encerram a nobreza dentro de um repertóriofeudo-vassálico de alternativas para o seu sustento, ocavaleiro vilão é muitas vezes mais resolvido economicamente

que diversos nobres. Isso solapa as bases daquela intenção,proveniente da parte mais tradicional da aristocracia, dedemarcar os limites da palavra "trovador" a partir da diletância,tornando-se este um argumento a favor dos próprioscavaleiros vilãos economicamente bem resolvidos.

Particularmente nos meios trovadorescos ibéricos, estes

reivindicam, logo para si, a denominação de "trovador".Empurram a linha demarcatória para mais adiante e depreciamsomente aqueles jograis economicamente dependentes daprofissão de músicos-poetas — sejam segréis autônomos masmiseráveis, ou jograis "assoldadados" por outros trovadores.Gera-se, dessa forma, uma nova "formação discursiva", comnovos critérios de demarcação os quais são tenazmentedefendidos pelos seus enunciadores.

Mas, por fim, os jograis que se tornaram"compositores" — e não apenas meros cantores einstrumentistas—empurram mais uma vez a linha fronteiriça

dessa palavra tão múltipla e flexível. Para eles, o que categorizao "trovador" é o seu status de criador, de buscador de

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palavras, o que, aliás, está na origem etimológica do termo{trouver = encontrar). Nesse caso, o próprio jograi-compositor cria uma distinção entre seu tipo e o do jogral"mero acompanhante" ou "cantador das cantigas de outros .Essa "formação discursiva" deve vir carregada,evidentemente, de argumentos de natureza inteiramentediversa daqueles de índole "hierárquica" ou "econômica".Defende-se aqui uma definição "estética" ou "artística" paraa palavra.

A palavra "trovador" é algo como uma armaduraque todos querem vestir, e que alguns pretendem interditar.Por um lado, é o único espaço onde o peão mais miserávelpode pretender, através da arte, se igualar ao fidalgo dealta estirpe. "O talento é que é a verdadeira nobreza, não onascimento", parece nos dizer o jogral em suas harmoniasocultas. Mas, por outro lado, quando é manejada de outraforma, a palavra "trovador" se toma mais um instrumentode demarcação social, no momento mesmo em que otrovador-fidalgo pretende interditá-la ao jogral. Armaduraelástica, a palavra se expande e se contrai conformeinteresses vários e as intenções sociais que a animam. Atéesse ponto, parece possível inferir aquela sugestão deMikhail Bakhtin: o signo é, por natureza, vivo e móvel,plunvalente; a classe dominante tem interesse em tomá-lomonovalente (BAKHTIN, 1981, p.l5).

De fato, o que vemos é que um setor da nobrezatenta exercer um controle sobre essa palavra-chave do circuitotrovadoresco. Busca-se transformar essa "armadura elástica ,no interior da qual os representantes de todos os segmentossociais se comprimem, em uma "armadura de ferro", ondecabe apenas a nobreza. O gesso, antes material tãomanuseável e flexível, se endurece para se tomar um únicomolde para o perfil aristocrático, formatando na imagemesculpida do trovador o correspondente cortesão do beIJatorearistocrata. É assim que a fidalguia tradicional tenta pressionara linguagem para imobilizar na palavra "trovador" o sentidoque lhe convém. Naquele tempo, era mais rara a oportunidadede aprisionar a palavra em um dicionário, já que foi somentecom a Renascença que, graças à invenção da imprensa, os

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^ CV será utilizada aqui

como abreviatura de

Cancioneiro da Vaticana

(um dos três grandes

cancioneiros onde se

acha registrada a poesia

dos trovadores galego-

portugueses dos séculos

XIII e XIV).

grandes dicionários começaram a se multiplicar. Mesmo assim,a escrita nâo deixa de vir em socorro dos segmentoshegemônicos que a controlam. Vemos isto nos cancioneirosibéricos compilados nos séculos XIII e XIV, por iniciativarégia ou aristocrática. Ali, sempre que se quer referir a umpoeta-fidalgo, em qualquer comentário acrescentado a umacantiga, ajunta-se-lhç a denominação "trovador". Ou entãose remete a sua condição de "cavaleiro", outra palavra quetambém é uma armadura elástica mas que aqui assume a suadimensão mais comprimida. Até quando depreciados, osnobres carregam a sua distinção. "Esta cantiga foi feita a umcavaleiro que lhe apoinham que era puto", diz a rubrica deuma cantiga de autoria de Estevão da Guarda no tempo deD. Dinis (CV 909)^

Mesmo aos trovadores-fidalgos notórios portrovarem mal — como certo Sueiro Eanes, que foi tãoalvejado por seus colegas do trovadorismo galego-português(CV s 1117, 1170, 1179, 1184) —, é-lhes conferido oqualificativo de "trovador", contrariando aquela tese dosjograis-compositores segundo a qual o talento é que éverdadeira medida que se adapta à armadura trovadoresca.Posto isto, nada impede que estes últimos, diante de umtrovador-fidalgo de talento inferior, emprestem à designaçãouma entonação pejorativa:

Sueir'Eanes, estetrobador,

foi por jantar a cas dun infançon,e jantou mal; mais el vingou-s' enton,que ar ajan os outros d'el pavor;

e non quis el a vendita tardar;

e, tanto que se partiu do jantar,

trobou-lhimal, nvmca vistes peior.

(Pero da Ponte, CV1179)

Nesse escárnio, o jogral galego não perde aoportunidade de alvejar simultaneamente o mau trovador eo infanção miserável, ambos nobres, sendo o jantar de um damesma qualidade que a cantoria do outro. "Trovador" é, aqui.

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uma palavra manejada com explícita ironia, beirando osarcasmo mais direto, e deixa no ar que a qualidade do trovarnão está diretamente ligada à "nobreza do sangue", como oteriam desejado os fidalgos da corte.

Há um discurso oculto nas cantigas que depreciamos trovadores-fidalgos sem talento, venha da parte de umnobre ou de um jogral. Trata-se do discurso interno queconduz da "depreciação do trovador sem talento" à"depreciação do cavaleiro sem valor". E que, quandoapropriado pelos setores não-aristocratas, questiona o status(Çüoinsinuando a consideração de uma "nobreza do espírito".Note-se, desde já, que a crítica ao fidalgo sem talentocomporta nuanças muito sutis, conforme quem a enuncia. Ediferente insinuar que "só a nobreza não basta" ou que "nãohá nobreza de berço, mas somente de espírito".

A primeira perspectiva reafirma a valorização daorigem aristocrática, mas a discrimina também por dentro,sendo o ponto de vista de uma elite que se pretendeentrincheirar no coração da nobreza mais ampla (são os bem-nascidos, mas hábeis, talentosos e bons cavaleiros, admitindotambém os que fecham o círculo com um último requisito queé a fartura material). A segunda perspectiva é que é, conscienteou não, a dos cavaleiros vilãos e jograis que pretendemprojetar-se, por exemplo, na corte. Criticam muito sutilmenteo critério da nobreza pelo sangue, como se o quisessemsubstituir por um novo, o do valor e talento pessoal. A idéia,somente enunciada nas entrelinhas, conta com o reforço dapoesia antinobiliárquica dos goliardos daquele tempo, tal comoexpressa a seguinte frase extraída de uma canção goliarda doséculo XII: "O nobre é aquele que a virtude enobreceu / Odegenerado é aquele que virtude alguma enriqueceu" (LEGOFF, 1988, p.38).

Mas isto se dá em um grupo reduzido, já que a grandemassa se mostra aqui vítima de uma difusão da ideologiadominante e se conforma dentro do ordenamento que lhe foiimposto, como "natural", desde o nascimento. Deve-seconsiderar, ainda, que a idéia de uma "nobreza do talento"insere-se também em um circuito mais amplo, quetranscende as próprias infiltrações de interesses de classe.

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Por esse período inicia-se, precisamente, um longoprocesso de luta pela dignificação do artista. "J^an deMeung afirma que a nobreza do nascimento não é nadafrente à nobreza do homem de letras". Tal como faz notarUmberto Eco (1989, p.l53),

os poetas adquirem muito mais cedo a plenaconsciência de sua dignidade; se quanto às artes

mecânicas são transmitidos apenas os nomes dos

principais arquitetos, no que se refere à poesia todaobra tem seu autor definido, consciente, de qualquer

modo, da originalidade de seus argumentos ou deseu estilo.

Quiçá, naquela crítica dos jograis talentosos contraos fidalgos inábeis, pode ser entrevisto ainda outro longoprocesso: a depreciação do trovador desajeitado com aspalavras terá outra ponta naquela depreciação do cavaleirodesajeitado na sua totalidade de movimentos, que em umfuturo não muito distante seria retratada na "triste figura' doDom Quixote de La Mancha. Mas algo ainda nos separa desseoutro tempo. Nas versões escritas dos cancioneiros ibéricos,os jograis de menor categoria, alguns de talento reconhecido,já não merecem uma similar qualificação à dispensada aostrovadores de berço nobre. Até na simples aposição de seusnomes no ffontispício de uma cantiga costumam vir procedidosda designação de "jogral". Lourenço, jograr; Diego Pezelho,jograr... Ou então se discrimina por meio da incorporação deum apelido, pelo que já se reconhece que o poeta-cantor éum jogral... Pero da Ponte, Pedro Amigo, João Baveca...Somente aos nobres, o sobrenome. Além disso, distingue-seo trovador fidalgo fazendo o nome ser precedido da palavra"Dom". Somente como sarcasmo é que esta é aposta ao nomede um jogral. Dom Lourenço (CV's 1034, 1105); DomBemaldo (CV 663).

O signo "trovador", é claro, não permanece tãoaprisionado, neste mundo de poucos dicionários, quantodesejaria a nobreza mais demarcadora. Temos um sinal dissona inexistência do aposto "jogral" ou "segrel" junto ao nome

LEITtITURA ■ MACEtô, N.40, p. 4-5-70, jul./dez. 2007

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do cavaleiro vilão ducentista João Garcia de Guilhade, quando

se cita a autoria de suas cantigas nos cancioneiros escritos.Indicativo, talvez, de que a palavra elástica se esticou até otalentoso cavaleiro vilão no vocabulário dos compiladores.Mas volta-se à refrega quando vamos aos textos das cantigasaristocráticas contra Guilhade, onde a interdição reaparece,

negando-lhe o status de trovador tão galhardamentereivindicado pelo hábil poeta-cantor. Idas e vindas ... própno silêncio

^ . • j 1 imposto a uma parte daAs discriminações de status no mtenor da palavra trovadoresca

"trovador" não aparecem somente no ambiente trovadoresco deve ser considerado,

galego-português. Na Minnesang, o manuscrito de canções por seu turno, comoHeidelbergoxáondi da seguinte maneira a sua lista de cantgres: uma estratégiaprimeiro o imperador; depois os príncipes, condes, barões, demarcatória. Aqui se

■ • u 1 enauadra, para citarminlsteríaJese cavaleiros; depois a anstocracia urbana, o clero, novamente um exemploos letrados, os comerciantes e burgueses (SCHULTE, 1895, jo trovadorismop.185/251). Aqui, a contração do signo é enfatizada por um ibérico. a ausência dasordenamento que é imposto à lista de trovadores. Como se "cantigas de vilão nospercebe, cada círculo aristocrata e cada trovadorismo de corte cancioneiros escritos,elaboram as suas próprias estratégias de demarcação e decompartimentação do signo verbal. trecentista "A Arte do

Os constrangimentos impostos ao signo pela Trovar" como umpassagem da oralidade à escrita inscrevem-se, dessa forma, gênero bem definido. E,na subterrânea batalha pelo poder de nomear onde algtms no entanto, não foramtentam restringir pela palavra o que se quer restringido incluídas em nenhumsocialmente. Para o caso das versões escritas do cancioneiro, dos cancion

• produzidos nos meios"é necessário recordar vigorosamente que nao existe nennum aristocráticos etexto fora do suporte que o dá a ler, que não há compreensão palacianos. Parecede um escrito, qualquer que ele seja, que não dependa das haver uma referência aformas através das quais ele chega ao seu leitor" (CHARTIER, elas na CV 965 de1989, p. 127). Assim, os cancioneiros escritos, novo suporte Martim Soares, onde separa aquela poesia que circulava no território da oralidade, deprecia um cava e

, . X 1 nobre de cantaresacrescentam certas estratégias demarcatonas àquelas outrasque antes havia^.

O destino de uma palavra é o destino da sociedadeque a pronuncia. À medida que a sociedade feudal foi sedesestamentizando, a palavra "trovador foi perdendotambém seus compartimentos secretos, seus íntimosaposentos reservados para cada inquilino social. Foi perdendoas divisórias internas em favor de um espaço único, tal como

Uma análise das tensões ideológicas através da pauvra e do discurso trovadoresco (Portugal - século XIII)

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teriam desejado aqueles jograis que sutilmente questionavamo status ̂L/oaristocrático. Atravessa o Renascimento já comum novo significado que predomina sobre os demais. Para osenciclopedistas renascentistas, como o Ângelo Golloci, a quemse deve a preservação do Cancioneiro da Biblioteca Nacionaly"trovador" é já qualquer músico-poeta que freqüentava oambiente das cortes. Mas, como são colecionadores imbuídos

da nova mentalidade enciclopedista, colecionam tambémsentidos e buscam aprisionar significados. Por isso conservamos espaços internos da palavra medieval com a reproduçãoinalterada de seus documentos, ou, ao menos, permitem queaquelas informações nos cheguem nas suas notas marginais erubricas explicativas.

Hoje em dia, vivemos em uma sociedade de classesem que, pelo menos em tese, a passagem de um segmentosocial a outro é menos interdita (no caso, regida principalmentepelo poder econômico). Sobretudo, trata-se de uma sociedademultifuncionalizada, onde a profissão ou a ocupação é umelemento fixador da identidade do indivíduo. Não é a-toa

que, na sociedade contemporânea, sempre que se pronunciaa palavra "trovador" o primeiro sentido a que se remete é odo "poeta-cantor que freqüentava os castelos medievais(independente de sua origem social)". Ou seja, a palavraacompanhou a desestamentização da sociedade. Tanto que,enquanto escrevo este artigo, preciso acrescentar o adjetivo"fidalgo" à palavra "trovador", se quero deixar claro para oleitor que se trata de um trovador da alta nobreza. Casocontrário, o sentido que escapa é aquele mais geral dos poetas-cantores (função, ocupação) que se apresentavam nas cortesmedievais (meio social).

Também esse sentido já existia, destarte, nasociedade feudal. Era invocado, a bem dizer, quando sepretendia fixar uma distinção entre os poetas-cantores queatuavam no circuito das cortes e aqueles que atuavam foradeste circuito por exemplo, os que atuavam nas tabemas,universidades e praças públicas. O signo verbal é, portanto,um instrumento para fixar a identidade por oposição aooutro . Ou para construir a imagem da corte como "centrode cultura , por oposição ao "outro" periférico. Dessa forma.

Leitura ■ Maceió, n.40, p. 45-70, jul./dez. 2oo7

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a penúltima fronteira da designação "trovador" — antes deela se diluir naquele sentido mais amplo que se fecha em tomode todos os poetas-cantores medievais — é o próprio círculocortesão. Trovadores seriam todos aqueles que participamdesse ambiente comum, independentemente de suas origenssociais. A sociedade inteira, com todas as suas nuanças,

prefigura-se nesses seus representantes e porta-vozes queadentram os limites das cortes régias e senhoriais.

Entre os trovadores que freqüentavam o circuitocortesão, iremos encontrar então todos os tipos e

representações sociais — do poderoso monarca (Afonso X,D. Dinis, Ricardo Coração-de-Leão, Afonso II de Aragão)ao mais humilde jogral, às vezes anônimo e outras vezesnotório (Cercamon, Guiraut Riquier). No interior do espectroassim formado, toda a sociedade tem sua voz —• condescomo Guilherme de Poitiers e a Condessa de Dia; nobres na

fronteira estamental como o Walther von

Vogelweide; clérigos marginais como Airas Nunes de Santiago;e toda uma diversidade de situações possíveis.

É por ser este caleidoscópio social que o ambientetrovadoresco se toma ao mesmo tempo um laboratório deexperiências humanas e um palco onde toda a sociedade seespelha: um dos ambientes trovadorescos privilegiados parapercebermos como essas disputas que já se davam no própnointerior da palavra "trovador" era o ambiente lírico dostrovadores galego-portugueses, nas cortes ibéricas do séculoXIII. No próximo e último bloco, veremos como essa disputase dá nesse ambiente lírico, mostrando que o mesmo jogo detensões que se estabelece no interior da palavra se projetatambém no ambiente social dos trovadores, e vice-versa.

Um mergulho na própria poesia trovadoresca nospermitirá examinar a partir daqui o jogo de tensões sociaisque se expressava através do ambiente dos trovadoresmedievais e que ficou registrado nos grandes cancioneiros daépoca. Particularmente nas cortes régias de Portugal e deCastela — esses dois pólos do trovadorismo galego-

Uma análise das tensões ideológicas através da palavra ê do discurso trovadoresco (Portugal - século Xlll)

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* A poesia desse circuitotrovadoresco está

registrada em algunscancioneiros. O

Cancioneiro da Ajudateria sido compilado nacorte de Afonso X de

Castela, na segundametade do século XIII. Na

primeira metade doséculo XIV teria sido

compilado um Livro deCantigas do CondeDomPedro que, emboradesaparecendoposteriormente, teriadado origem aoCancioneiro da Vaticana

e ao Cancioneiro da

Bibiioteca Nacional, dois

cancioneiros compiladosna Itália já no século XVI.Esses dois cancioneiros,

somados ao Cancioneiro

da Ajuda, constituemgrandes coletâneas dapoesia trovadorescaibérica que, à sua época,circulava nas cortes

régias de Portugal eCastela. Os manuscritos

encontram-se atualmente

nas bibliotecas que lhesemprestam seus nomes:

Biblioteca da Ajuda (CA),Biblioteca da Vaticana(CV), Biblioteca Nacional(CBN). Os trêscancioneiros conhecidos

encontram-se atualmente

impressos, contando coraedições importantes dasquais elegemos a deCarolina Michaèlis para oCancioneiro de Ajuda(1904), a de TeófíloBraga para o Cancioneiroda Kaacana (1878), e ade Elza Pacheco

Machado para oCancioneiro da Biblioteca

Nacional (1949-1964)

português dos séculos XIII e XIV—, o ambiente trovadorescoapresentava-se explicitamente como uma grande arena abertaà expressão das tensões sociais e individuais"^. Mesmo o jogralpopular da mais humilde condição social era li"vre para rivalizare afrontar poeticamente os trovadores-fidalgos. A poesia,como nunca, era empunhada por pequenos e grandes comose fosse uma espada; os combates se davam no ambientetrovadoresco do Paço e ali mesmo se resol"viam, sob o olharsábio de um rei que se colocava como protetor e promotorda cultura, como mediador da diversidade social, como

monarca multirrepresentativo capaz de penetrar em todas asordens e circuitos culturais — do sagrado ao profano, dopopular ao aristocrático, do rural ao urbano.

Eram comuns, nessas "arenas trovadorescas

ibéricas, cantigas de escárnio e de maldizer, que podiamaté ter como alvo o rei, o que demonstra a relativaliberalidade dos paços trovadorescos. Este é o caso dacantiga abaixo, mo'vida pelo fidalgo Gil Feres Conde contrao rei Afonso X de Castela, que também era, aliás, um dosmais hábeis trovadores:

Os vossos meus maravedis, senhor,

que eu non ouvi, que servi melhor

ou tan ben come outr'a que os dan,

ei-os d'aver enquant'eu vivo for,

ou a mia mort*, ou quando mi os daran?

A vossa mia soldada, senhor Rei,

que eu servi e serv'e servirei,

com'outro quen quer a que dan ben,

ei-a d'aver enquant' a viver ei,

ou a mia mort', ou que mi faran en?

Os vossos meus dinheiros, senhor, non

pud'eu aver, pero servidos son,Come outros, que os an de servir,

ei-os d aver mentr'eu viver, ou pon-mi-os a mia mort' o a que os vou pedir?

Leitura ■ MAcetó, n.40, p. 45-70, jul./dez. 2007

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Ca passou temp' e trastempados son,ouve an'e dia e quero-m' en partir.

(Gil Pérez Conde, CBN1523)

A cantiga acima é uma das mais engenhosas docancioneiro escarninho. O fidalgo português Gil FeresConde, que servira o rei de Castela na guerra da Andaluzia,queixa-se das dificuldades em obter as soldadascorrespondentes aos serviços prestados. Em outraspalavras, acusa o rei de "mau pagador o que, nessecaso, significa acusá-lo de mau cumpridor das obrigaçõesgeradas pelos vínculos de vassalidade. São engenhosos ebem-humorados os artifícios poéticos encontrados pelonobre, que joga com o duplo uso de pronomes possessivos,"vossos" e "meus", referindo-se aos maravedis queestavam de posse do rei mas que, por direito, deveriamser seus. "Os vossos meus maravedis , A vossa miasoldada", "Os vossos meus dinheiros" — o troyadorpergunta se os receberá durante a vida ou somente à orada morte.

O "duplo possessivo" aqui empregado, comoriginalidade absoluta, é um exemplo notável daque acapacidade de trazer o confronto para dentro e umaúnica expressão. Tornada ambígua, e provavelmenteacompanhada de uma entonação irônica no p anooralidade, a palavra poética expressa aquientrechoque de dois interesses. O do monarca, quenaqueles tempos perturbados e de dificu ̂ ^econômicas acabava por vezes atrasando as 50 ae o do vassalo, exigindo o pagamento imediato, porconsiderá-lo uma obrigação suserana.

Brigam os dois possessivos, "meus" e vossos ,disputando o espaço com que se colam ao substantivo,que para o fidalgo representa um "direito , mas que, pamo monarca, se insinua como uma obrigação .entrechoque poético e inusitado entre os dois possessivosé, dessa forma, o entrechoque entre um direito e umaobrigação, entre o vassalo e o suserano, entre uma

Uma análise das tensões ideológicas através da palavra e do discurso trovadoresco (Portugal - século Xlll)

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necessidade e outra. Quantas disputas secretas não se

insinuam nesse torneio imaginário que se celebra no interiorde uma única palavra poética! Além de uma queixa contraa dívida não paga, deve-se buscar nessa cantiga o textosob o texto: ela invoca indiretamente o próprio conjuntode instituições feudo-vassálicas, e coloca o monarca naposição de um senhor que se beneficiou dos serviços dovassalo mas que se recusa a cumprir suas obrigações desuserano. Competem, dessa maneira, o modelo do "bomvassalo" e o contramodelo do "mau suserano".

Vejamos agora que, por trás desses combates, sedá outro. É o próprio "embate centralizador" que produzsua centelha desde o entrechoque dessas muitas espadas.O' 'rei centralizador" é muitas vezes um "mau suserano".

Nos tempos mais difíceis, a sua necessidade o leva aunilateralizar uma obrigação que, do ponto de vistaestritamente "feudal", deveria carregar a inseparávelsombra da reciprocidade. Vista pelo circuito dos ideaisvassálico-cavaleirescos, a expressão "senhor" repetida emcada uma das três estrofes (por exemplo, "senhor rei")assume, dessa forma, um sentido a mais, além do vocativo

respeitoso, remetendo às obrigações de senhor (suserano)que o rei teria descumprido.

Por tudo se vê que — dentro de um contexto emque se vem dando, no plano político, um embate entre oprojeto régio centralizador e uma "contratendênciafeudalizante" de parte da nobreza do reino — a cantigaaqui discutida compõe com outras cantigas análogas domesmo trovador uma defesa dos direitos senhoriais. Trata-

se de um exemplo particularmente interessante de comoas tensões de ordem política podiam se projetar nosambientes trovadorescos.

Da mesma forma que ocorria no caso das cantigasde escárnio, os conflitos de toda ordem também seprojetavam em outro conhecido gênero poético docancioneiro satírico da medievalidade ibérica. Veremos a seguirque as renfõespunham freqüentemente em confronto poetas-cantores pertencentes a distintas categorias sociais. Essegênero era já conhecido nas cortes provençais e na

Leitura a Maceió, n.40. p. 45-70, jul./dez. 2007

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mlnnesang. A forma era constituída de uma alternância deestrofes, em que um trovador respondia ao outro à maneirade um desafio. O dado fundamental e que, nas cortesfeudais européias, mesmo que esses disputatios líricosenvolvessem trovadores aristocratas e menestréis decategoria social inferior, o tema central da tensó jamaisenvolvia uma questão de fundo social. Discutia-se em tomoda "amatória" (questões relativas ao amor cortês), ou entãosobre "estilística".

Ao contrário, na ''tençãó' galego-portuguesa", eramuito comum haver dois tipos sociais antagônicos, o jogralassoldadado e o trovador fidalgo, a duelar liricamente comconotações sociais:

— Juião, quero tigo fazer,se tu quiseres, ua entençon;

e querrei-te, na primeira razon,

ua punhada mui grande poereno rostro, e chamar-te rapaz

mui mao; e creo que assi fazboa entençon quena quer fazer.

— Meen Rodriguez, mui sen meu prazera farei vosc*, assi Deus me perdon:ca vos averei de chamar cochon,

pois que eu a punhada receber;des i trobar-vos-ei mui mal assaz,

e atai entençon, se a vós praz,a farei vosco mui sen meu prazer.

— Juião, pois tigo começarfiii, direi-t' ora o que farei:ua punhada grande te darei,des i querrei-te muitos couces darna garganta, por te ferir peor,que nunca vilão aja sabordoutra tençon comego começar.

Uma análise das tensões ideológicas através da palavra e do discurso trovadoresco (Portugal século Xlll)

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— Meen Rodriguez, querrei-m' en parar,

se Deus me valha, como vos direi:

coteife nojoso vos chamarei,

pois que eu a punhada recadar;

des i direi, pois so os couces for:

'Le[i]xade-m' ora, por Nostro Senhor',

ca assi se sol meu padr' a en parar.

— Juião, pois que t* eu [for] filhar

pelos cabelos e que t' arrastrar,

que dos couces te pès eu creerei.

— Meen Rodriguez, se m' eu estropiar,ou se me fano, ou se m' entortar,

ai, trobador, já vos non travarei.

(Meen Rodriguez Tenoiro e Juião Bolseiro; CBN 403)

A estrutura de tenção é típica: através dela, osdois trovadores se ocupam de depreciar um ao outro emestrofes alternadas. Nesse sentido, ao invés de a tenção

girar em torno de uma questão genérica, o que se vê éuma sucessão de ataques pessoais que oculta umverdadeiro conflito de categorias sociais. Mem RodriguesTenório pertencia a uma das mais ilustres famílias galegase à melhor nobreza da Península. Quanto a Juião Bolseiro,este era um jogral que também atuava com sua margemde atrevimento, embora muito menos que Lourenço, masque aqui aparece curiosamente comedido diante dasameaças de Tenório.

Estamos aqui diante de uma tenção proposta emtermos de rara agressividade. Quase que toma a formalírica de uma "briga de rua", não fosse Juião Bolseiro,perante a total agressividade de Tenório, replicar comcerto comedimento. Enquanto o fidalgo principia por dizerque sua primeira razão é um murro no rosto (v. 4/ 5),Juião, no máximo, lhe responde com alguns insultos( cochon , por exemplo, é uma expressão pejorativanormalmente dirigida por aristocratas a vilãos). Talvez

Leitura ■ Maceio, n.40, p. 45-70, jul./dez. 2007

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porque, sem querer partir para o que poderia descambarpara um confronto físico, ou então extrapolar a tensãotrovadoresca apresentada liricamente, o jogral tentasseresponder a isso com mais dignidade e astúcia poética.Apropria-se então das próprias palavras injuriosas que osnobres costumavam dirigir aos vilãos e procura voltá-lascontra o fidalgo agressor, talvez a insinuar algo sobre quemse comporte como um verdadeiro "cochão" (v. 10), ouainda um "cofeiJ^nojoso" (v. 24).

Tenório, por sua vez, continua ao longo de todasas estrofes a desfechar suas ameaças físicas, como, porexemplo, na terceira estrofe, onde afirma que "irá lhe darmuitos coices na garganta, para feri-lo tanto que desdeentão nenhum vilão mais se atreverá a entençoarcom. ele(v. 18/21). É a demarcação social levada a seu extremo,com rara agressividade em uma renfâotrovadoresca nessemeio em que tudo parece se resolver liricamente.Significativo nos parece o contraste entre a agressividadedo nobre e o comedimento do jogral, pois nos mostra queos limites de um não são iguais aos limites do outro. Emtodo o caso, o exemplo acima fica apenas como um registroextremo dessa oposição entre dois representantes desegmentos sociais que se antagonizam através da satiratrovadoresca. Oposição que, na maior parte das vezes,se concentra na disputa estritamente lírica, nadesmoralização pelo riso, no rebaixamento pela palavra.O "combate corpo a corpo" assume em quase todos essescasos a forma de um "combate verso a verso", e se voltafundamentalmente para o campo da "violência simbólica .

Embora a tenção acimz. discutida tenha trazido atona o limite entre dois grupos sociais bem definidos, poroutro lado eram igualmente comuns as tençôes nas quaisrivalizavam sem maiores entraves um poeta-cantor fidalgo eum jogral de categoria menor, mostrando que por vezes na"arena trovadoresca" se mostravam como que suspensas as

regras que, fora, regiam as relações sociais. Assim principiauma tenção (CV 1010) entre o célebre jogral Lourenço,de nível social equivalente ao "peão", e o fidalgo João Peresde Aboin:

Uma análise das tensões ideológicas através da palavra e do discurso trovadoresco (Portugal século XIII)

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- Lourenço, soias tu guarecer

como podias, per teu citolon,

ou ben ou mal, non ti digu' eu de non,

e vejo-te de trobar trameter;

e quero-t' eu desto desenganar:

ben tanto sabes tu que é trobar

ben quanto sab' o asno de leer

À insinuação de que "sabe tanto de trovar quantoum asno de ler", Lourenço replica assumindo a posição deum bellãtorMÚQo". Lembra a seu contendor que já venceu,em tenção como aquela, vários outros trovadores-fldalgos,que partiram da mesma insinuação. Agora, pretendederrubar o famoso mordomo de Dom Afonso III:

- Joan d' Avoin, já me cometer

veeron muitos por esta razon

que mi dizian, se Deus mi perdon,que non sabia n trobar entender;

e veeron poren comigu' entençar,

e figi-os eu vençudos ficar,

e cuido-vos deste preito vencer

A assume aqui toda a sua forma de duelo,de combate lírico onde um trovador se assume como

oponente do outro. O verso seguinte é tipicamentedemarcatório. Aboin reafirma seu propósito dedesenganar" ao jogral Lourenço quanto a seu propósitode seguir sendo trovador:

- Lourenço, serias mui sabedor,

se me vencesses de trobar nen d' al,

ca ben sei eu quen troba ben ou mal,que non sabe mais nen um trobador;

e por aquesto te desenganei;

e vês, Lourenço, onde cho direi:

quita-*te sempre do que teu non for.

LeíTURA m Maceió, n.40. p. 4S-70, jul./dez. 2007

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Demarcação por uma dupla via. Por um lado,enaltece a si mesmo e à sua condição de trovador. Só ele,como trovador (isto é, trovador-fidalgo), seria ali capazde prejulgar quem trova bem ou quem trova mal. E, mais,de outro lado a interdição explícita: o espaçocomposicional-trovadoresco é naturalmente estranho a umjogral de condição inferior ("quita-te sempre do que teunon for"). Depois do quê, Lourenço encerra suaparticipação afirmando que, de forma nenhuma,abandonará o trovar. Primeiro, porque tem plenaconsciência de seus méritos. Também porque encontra nasua atividade uma grande fonte de prazer e satisfação:

- Joan d' Avoin, por Nostro Senhor,por que leixarei eu trobar atai

que mui ben faç' e que muito mi vai?Des i ar gradece-mi o mia senhor,

por que o faç'; e, pois eu tod' est' ei,o trobar nunca [o] leixarei,

poi-Io ben faç' e ei [i] gran sabor

"Tirar do trovar um grande sabor" — é umderradeiro imiscuir-se na esfera de atitudes da nobrezapara com a trova. O jogral declara que, da mesma formaque muitos fidalgos trovam por um prazer do espírito, otrovar é, para ele, muito mais do que uma profissão.Rejeição, portanto, daquela habitual demarcação dostrovadores-fidalgos segundo a qual a poesia deve ser parao jogral apenas uma profissão, um meio de subsistência,se possível na função de mero acompanhante dostrovadores nobres. O ambiente trovadoresco, enfim,

mostrava-se aqui capaz de constituir a mesma arena que,tal como vimos no início deste artigo, se dava no interiorda própria palavra "trovador".

Uma analise das tensões ideológicas através da palavra e do discurso trovadoresco (Portugal - século XIII)

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•I Leitura ■ Maceió, n.40, p. 45-70, JUL./DEZ. 20Q7