um sentido jurídico para o antigo regime (ancien régime) - jus navigandi

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  • 7/25/2019 Um Sentido Jurdico Para o Antigo Regime (Ancien Rgime) - Jus Navigandi

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    Um sentido jurdico para o antigo regime (ancien rgime)

    Um sentido jurdico para o antigo regime (ancien rgime)

    Sand ro Lus Toms B alland e Romanelli| Ivan Furmann

    Publicado em 01/2016. Elaborado em 12/2015.

    Em que medida a expresso antigo regime, originria da Frana, adequada para se referir realidade colonial brasileira?

    RESUMO: A expresso Antigo Regime muito utilizada no vocabulrio dos historiadores do Direito, em especial, aquelesque trabalham com a histria nos sculos XVII, XVII e XIX. Apesar disso, poucos historiadores apresentam um conceitodidtico ou se preocupam em esclarecer a expresso para aqueles que no esto familiarizados com o mesmo. Algunselementos so apresentados para facilitar a compreenso dos leitores iniciantes, no se trata, portanto, de um texto quepretende trazer novos enfoques sobre o tema, mas esclarecer a expresso e facilitar a compreenso daqueles que iniciamestudos na rea histrica. Por fim, apresenta-se uma polmica sobre o uso da expresso para a compreenso da realidade

    brasileira.

    1. INTRODUO: POR QUE ANTIGO REGIME?

    Qual o sentido do termo Antigo Regime nas abordagens feitas pelos historiadores do Direito? Tal esclarecimento necessrio para evitar os equvocos comuns,presentes na historiografia tradicional em relao interpretao do Direito no

    Antigo Regime. Isso porque, (... ) transportando para a histria uma certa unidimensionalidade do poder poltico no seutempo, os historiadores tendiam a reduzir a vida poltica do Antigo Regime aos actos formais do poder i.e., aos quedecorriam sob o imprio e regulamento do direito estadual. Todo o resto i.e, tudo o que decorria em contraveno com esteou sua margem no era relevante para a investigao.. (HESPANHA,1994, p.26). Seguindo essa linha de raciocnio, aprimeira explicao a ser dada a motivao do uso do conceito de Antigo Regime. No se trata de uma expressodepreciativa do passado ou celebratria do presente. Os historiadores contemporneos do Direito pretendem evitar que seobservem apenas os regulamentos de Direito estatal (em especial legislao em sentido estrito), conseguindo avanar na

    compreenso das estruturas jurdicas e administrativas anteriores ao predomnio do d ireito positivo.

    2. A INVENO DA EXPRESSO

    No comum encontrar entre os historiadores contemporneos da Histria do Direito a delimitao de grandes conceitos,isso ocorre em grande parte para apresentar certa maleabilidade fundamental para estudos que se pretendem abertos snovas interpretaes (inclusive motivado pelas variaes de sentido das palavras em mbitos locais e temporais). Mesmoassim, possvel visualizar alguns limites que so centrais a interpretao da expresso.

    Um primeiro limite o temporal. Antonio Manuel Hespanha apresenta uma periodizao da histria das instituiesportuguesas que prope um olhar amplo do chamado sistema feudal entre os sculos III D.C. at o primeiro tero do sculoXIX (1982, p.42). Esse longo perodo feudal estaria dividido em trs fases: a) sistema feudal inicial at metade do sc. XVI

    b) Sistema corporativo at a segunda metade do sculo XVIII c) Estado absoluto at o p rimeiro tero do sc. XIX. No possvel delimitar com datas fechadas a existncia do Antigo Regime, porm no absurdo, como referncia um p ouco maisampla, indicar que esse modelo que vai da metade do sculo XVII as primeiras dcadas do sculo XIX.[i]

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    O segundo limite est relacionado sua caracterizao. Mas afinal, o que caracteriza o Antigo Regime? Novamente Hespanhaesclarece que seu conceito est relacionado a uma tentativa de organizar um conceito poltico para a Histria, enfocandoaspectos alm das interpretaes economicistas.

    (...) chegou-se deste modo a uma definio em termos estruturais doAntigo Regime poltico tal como j se dispunha duma definio,em termos estruturais, do Antigo Regime econmico (sistema de

    relaes feudais de produo) nos termos da qual o AntigoRegime poltico ser caracterizado pela no separao entre"Estado" e "sociedade civil" e pelo "carcter globalizante dosmecanismos do poder". (HESPANHA, 1984, p.42).

    Um terceiro limite poltico. Se no sentido amplo Antigo Regime est relacionado a todo um perodo de transio entre omodelo medieval e o moderno, em sentido estrito Antigo Regime designa a parte administrativa desse perodo. Ressalte-seque o conceito, atualmente explorado na Cincia Histrica, aparece inicialmente como contraposio do perodo ps-revoluo ao modelo administrativo e poltico anterior. Antigo Regime era uma expresso utilizada pelos contemporneos daRevoluo Francesa para designar o sistema poltico anterior revoluo, (...) Mirabeau foi o primeiro a falar num AncienRegime. (LOPES, 2003, p.129). Nesse sentido Tocqueville explica:

    Menos de um ano aps o incio da Revoluo, Mirabeau escreveusecretamente ao rei, "Compare o presente estado de coisas com o

    Antigo Regime, console-se e mantenha a esperana. Em parte - amaioria dos atos da assemblia nacional so favorveis a umgoverno monrquico. De nada adianta livrar-se do Parlamento, dosestados separados, do corpo clerical, das classes privilegiadas, e danobreza? Richelieu teria gostado da idia de formar uma s classe,de cidados, um s nvel de superfcie auxiliaria o exerccio dopoder. Uma srie de reinados absolutos teria feito menos para aautoridade real do que este ano de Revoluo". Ele entendeu aRevoluo como um homem que era competente para lider-la.(TOCQUEVILLE, 1856, p.21, trad. livre).[ii] [iii]

    Tocqueville percebe que a Revoluo no poderia ser compreendida dentro de uma lgica de total ruptura,[iv] o Antigoregime, em certo sentido, foi reorganizado dentro da Revoluo como uma unidade. Em verdade, Ancien Regime designa

    bem mais a 'organizao' da mais perfeita desordem que exprime o verdadeiro cipoal de particularismos que caracterizou aFrana nos sculos XVI, XVII e XVIII.. (LOPES, 2003, p.129). Existem diversos estudos que demonstram que essadesorganizao no to desorganizada assim, e que coube ao discurso revolucionrio justificar as abruptas mudanas

    desvalorizando o regime anterior.

    Aqui possvel se deter um pouco mais, pois apesar da expresso, ao que tudo indic a, ser cu nhada pelos revolucionrios, eadotada no debate poltico por Tocqueville, seu contedo j circulava antes da revoluo, o que pode ser resgatado emMontesquieu. Em seu tempo, a estrutura da justia era objeto de grande desconfiana e muitas crticas. De acordo com umestudo histrico realizado por um grupo de cooperao internacional (publicado pelo Ministrio da Justia do Canad),dentre as instituies do Ancien Rgime, a Justia constava como aquela que suscitava as crticas mais vvidas.

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    A justia francesa sob o Ancien Rgime era caracterizada pelonmero elevado de jurisdies, o acavalamento de seusmecanismos, a lentido e o custo dos processos, a severidade doprocesso criminal, a crueldade das punies e das penas para osmenos abastados, severidade que contrastava com a extremaclemncia que era concedida aos privilegiados.

    Juzes e procuradores eram, em geral, pouco amados, eis quedefendiam um sistema favorvel aos seus interesses, mas que amaioria da populao rejeitava. Somente os advogados oriundos damdia ou pequena burguesia admitiam a necessidade de umareforma da justia. (CANADA, 2011, p. 12).[v]

    Neste sentido, alguns aspectos do Poder Judicirio francs da poca de Montesquieu podem ser debatidos. Com relao aoalto custo da justia na Frana do scu lo XVIII, grande parte deste custo estava relacionada remunerao dos juzes. Comoafirmam Guy Cabourdin e Georges Viard em seu Lxico histrico da Frana no Ancien Rgime, os juzes eram funcionrios

    que haviam comprado o cargo, tornando hereditrio.

    Essa forma de delegao do servio pblico, por meio da compra da charge (cargo ou encargo) se assemelha ao sistema decartrios e registros pblicos brasileiro anterior Constituio de 1988 (e provenientes da tradio colonial portuguesa), naqual o particular que desejasse prestar o servio obteria do poder pblico a outorga, em exclusividade, das atribuies e oencargo de faz-lo s suas expensas, empregando funcionrios e recursos dos quais buscaria reembolso pela cobrana detaxas pelo servio.

    Ainda de acordo com Cabourdin e Viard (1978), os juzes do tempo de Montesquieu eram mal retribudos pelas taxasordinrias e buscavam se reembolsar sobre as partes, exigindo propinas[vi] e fazendo durar indefinidamente o processo,com o objetivo de multiplicar os atos sujeitos a pagamento de taxas e emolumentos e maximizar seus rendimentos.[vii]

    Alm destes obstculos ao acesso justia, havia grande desiguald ade de tratamento no sistema de acordo com a c lasse doslitigantes. A nobreza no era obrigada a percorrer todas as etapas da justia real, podendo recorrer diretamente ao rei, fonte

    de toda a justia, que podia conceder a justia em pessoa no conselho de partes.

    Guinchard afirma que em meados do sculo XVIII, houve uma crescente percepo popular de que os juzes estavamgovernando no lugar do Rei,[viii] que passam a contestar no somente as leis, mas tambm as ordens de priso civilemanadas pelo Monarca (lettres de cachet). Guinchard destaca que em termos de separao de poderes, eles [osmagistrados] exercem portanto a funo legislativa, discutindo a convenincia e adeq uao da poltica real.[ ix]

    Assim, o medo do juiz de que venha a impedir as transformaes sociais operadas pelos revoluc ionrios que levou necessidade de amordaar o c orpo de magistrados ao texto da Lei, operando c omo meros aplicadores da vontade legislativa,nas palavras de Guinchard:

    [O juiz boca da lei] a expresso de um programa poltico ligado a

    um elemento subjetivo, o medo do juiz, e no um smbolo de umareflexo abstrata sobre a funo jurisdicional. sintomtico que oargumento do juiz boca da lei seja proferido toda vez que se tratade limitar o poder judicirio com relao a um passado, isto , cada

    vez que se trata de proibir ao juiz qualquer ambio poltica.Embora faam de forma unnime o elogio de um poder judiciriocom considervel influncia, os constituintes deduzem sempre aimportncia de controlar, constranger este poder terrvel afim deque ele no prejudique nem a liberdade poltica, nem a liberdade

    civil. Segue-se ento a enumerao de todas as questes a abordarafim de bem organizar o poder judicirio, isto , com o objetivode constranger o juiz(GUINCHARD, 2011, p. 7, grifo nosso).[x]

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    Desta forma, menos que uma reflexo abstrata sobre a funo jurisdicional, a separao de funes proposta porMontesquieu resultado deste contexto de desconfiana com relao aos magistrados. E quando os revolucionrios cunhama expresso Antigo Regime, do destaque a idia de ultrapassado, de tempos de opresso e medo que foram finalmentesuperados. Em ltima anlise os revolucionrios no elaboraram a expresso pensando no passado e seu contedo, mas nacontraposio ao presente de liberdade que pretendiam estabelecer. Atualmente, porm, os historiadores do Direito seapropriaram da expresso para lhe dar contedo, e relacionar uma srie de contedos a expresso.

    3. O CONTEDO DA EXPRESSOComo herdeiro da sociedade corporativa que se desenvolve a partir da baixa idade mdia, o Antigo Regime tambm sofreinfluxos das transformaes sociais que eclodiro no perodo das revolues.[xi] Por isso, importante avaliar aspermanncias e descontinuidades do perodo.

    Segundo a historiografia contempornea, a concepo corporativa de sociedade fundamentada na percepo teolgica demundo, origina-se e se legitima dentro de um contexto teolgico.

    O pensamento social e poltico medieval dominado pela idia daexistncia de uma ordem universal (cosmos), abrangendo oshomens e as coisas, que orientava todas as criaturas para um

    objectivo ltimo que o pensamento cristo identificava com oprprio Criador. Assim, tanto o mundo fsico como o mundohumano, no eram explicveis sem a referncia a esse fim que ostranscendia, a esse telos, a essa causa final (para utilizar umaimpressiva formulao da filosofia aristotlica o que transformavao mundo na mera face visvel de uma realidade mais global, naturale sobrenatural, cujo (re)conhecimento era indispensvel comofundamento de qualquer proposta poltica. (HESPANHA,

    2005A,p.101)Portanto, a referncia central a perspectiva de sociedade fundamentada em Deus. Sua inveno se d dentro da lgicamedieval. A longa permanncia da viso medieval de sociedade pode ser percebida em nuances no final do Antigo Regimeportugus. Por isso vale aprofundar algumas nuances da Ordem jurdica medieval. Salutar nesse sentido a obra de PaoloGrossi, que explicita o motivo pelo qual considera descrever a cultura jurdica medieval como Ordem Jurdica[xii]:

    (...) a insero da palavra ordem, obstinadamente intencional. Defato, parece-nos que jamais como na Idade Mdia o direitorepresentou ou constituiu a dimenso profunda e essencial dasociedade, uma base estvel que se destaca do carter catico e

    mutvel do cotidiano, isto , dos eventos polticos e sociais do dia-a-dia. A sociedade medieval jurdica, porque se realiza e sesalvaguarda no direito jurdica sua constituio mais profunda enela est seu carter essencial, seu elemento ltimo. s desordensda superfcie extremamente catica se contrape a ordem dasecreta, mas presente, constituio jurdica. (GROSSI, 2002, p.14).[xiii]

    A experincia jurdica med ieval descrita como estritamente relacionada natureza das coisas, ordem presente no mundo.

    um modelo qu e no se fundamenta na individu alidade ou liberdade dos sujeitos, mas na ordenao social.

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    Ordinatio a palavra que desloca o eixo da definio do sujeito aoobjeto, porque insiste no sobre a sua liberdade, mas sobre limites sua liberdade ordenar , efetivamente, uma atividade vinculada, jque significa tomar conscincia de uma ordem objetiva preexistentee no eludvel dentro do qual deve ser inserido o contedo da lex.(GROSSI, 2004, p.35)

    A expresso jurdic a mais reconhecida dessa Ordem das coisas aparecia no Direito Europeu como Direito comum (iuscommune)[xiv]. O direito romano medieval, ou direito "civil", junto com o direito cannico (que por sua vez era fortementeinfluenciado pelo direito romano), criou o direito erudito comum para todo o Ocidente: da um dos motivos de seu nome iuscommune.. (CAENEGEM, 1999, p.65).[xv] Em coexistncia com o Direito comum apresentava-se o Direito prprio (local)e limitado, (...) ius proprium, o direito "particular" que estava em vigor, em suas inmeras variaes, em diversos pases,regies e cidades da Europa, sob a forma de costumes, ordenaes e cartas. (CAENEGEM, 1999, p.65).

    Na lgica medieval o direito comum (ius commune) no demandava a excluso de outras formas de Direito, ao contrrio,pretendia harmonizar as diversas manifestaes locais ao direito geral, no reduzindo a pluralidade unidade.[xvi] Nesseaspecto, o direito dos rsticos (local e fundamentado no senso de justia) deveria ser harmonizado com as regras mais amplasdo Direito Comum, coexistindo pluralidade de lgicas jurdicas.

    A grande oposio entre o Antigo Regime e a Modernidade estaria no esforo artificial do jurista moderno em controlar omundo a partir da vontade e criando uma unidade jurdica a partir de suas fontes, excluindo a pluralidade.[xvii] Um fatorque explica o papel secundrio da legislao como fonte do direito sob o ancien regime a competio com o ius commune,que tornou possvel transformar o antigo direito europeu sem interveno legislativa.. (CAENEGEM, 1999, p.122). Namodernidade O direito se v reduzido ao grau de instrumento de controle social, se tornando um artifcio, uma criao dotitular da soberania. (GROSSI, 2 010, p.100).

    4. DISTINGUINDO DIREITO MEDIEVAL DO DIREITO DO ANTIGO REGIME

    Tendo em vista a centralidade do discurso teolgico e a plu ralidade de produes jurdicas, a fim de facilitar a compreensodas mudanas do modelo medieval para o modelo do Antigo Regime, vale destacar as caractersticas do Direito medieval.Segundo Hespanha o Direito medieval:

    (a) valoriza os fenmenos grupais ou colectivos

    (b) que considera o poder como algo originariamente repartido (eno apenas delegado ou dividido pelos poderes do Estado) pormltiplos corpos sociais, cada qual dotado da autonomia poltica e

    jurdica exigida pelo desempenho da sua funo social

    (c) que reserva ao poder poltico global apenas a funo de garantir

    esta autonomia e especificidade do estatuto social de cada corpo(fazendo justia, i.e, suum cuique tribuens) e assegurando, destaforma, a paz (harmonia, coharentia)

    (d) que apenas v o indivduo como parte de grupos e os seusdireitos e deveres com reflexos do estatuto ("foro) dos grupos emque se integra

    (e) e que recusa a distino, prpria do pensamento moderno, entre

    "sociedade civil" e Estado (ou "sociedade poltica"). (HESPANHA,1982, p. 211)[xviii]

    Tendo em vista tais caractersticas, vale a pena debater sua incidnc ia no Antigo Regime.

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    a) A valorizao dos fenmenos grupais ou coletivos, em detrimento da idia de direito individual, ainda percebida noAntigo Regime. A noo de individualismo moderno ser ju ridicamente concretizada c om o l iberalismo e as revoluesburguesas na Europa. Por isso, o modelo jurdico ainda pautado na perspectiva de Direito coletivo. Voltando-se a tradioda idade mdia:

    O direito um fenmeno primordial e radical da sociedade (...) terreno necessrio e suficiente as flexveis organizaes

    comunitrias em que o social se ordena e que ainda no sefundamentam na polis, mas sim no sangue, na f religiosa, naprofisso, na solidariedade cooperativa, na colaborao econmica.(GROSSI, 2004, p.30-1).

    b) O poder ainda repartido no Antigo Regime. Em Portugal o poder local dos Concelhos (Cmaras) das vilas tem especialimportncia. Essa caracterstica ressaltava o Direito como importante elo c omunitrio.

    (...) a centralidade do direito se traduzia, de facto, na centralidadedos poderes normativos locais, formais ou informais, dos usos das

    terras, das situaes "enraizadas" (lura radicata"), na ateno sparticularidades de caso e, em resumo, na deciso das questessegundo as sensibilidades jurdicas locais, por muito longe queandassem daquilo que estava estabelecido nas leis formais do reino.(HESPANHA, 2007, p.57).

    As autonomias poltica e jurdica dos concelhos marcam esse perodo,[xix] guardando permanncia significativa at operodo ps-Independncia no Brasil (sofrendo retrocesso apenas com regulamentaes do juzo de paz em 1828, quandoretirado das cmaras poder jurisdicional). Tambm h de se notar que at mesmo na Frana, (...) os magistrados do AntigoRegime se beneficiam de uma grande independncia face aos poderes. Salvo em casos excepcionais, confiados a jurisdiesextraordinrias, essa independncia real e o poder no se imiscui em seus assuntos. (GARNOT, 2003, p.25).

    c) A centralizao do poder real provavelmente a maior diferena entre o perodo medieval e a fase final do Antigo Regime.Mesmo no podendo se falar num absolutismo monrquico portugus em toda sua plenitude, inegvel que em Portugal opapel c entral da monarquia despontar no cenrio poltico dos sculos XVIII e incio do XIX.

    Seja como for, os finais do Antigo Regime constituem uma poca emque, claramente, a imagem do prncipe como caput reipublicae,como pessoa pblica, se sobrepe s restantes. E em que o governoassume as caractersticas de uma actividade dirigida por razesespecficas (as razes do Estado), tendente a organizar a sociedade,

    impondo-lhe uma ordem e defendendo-a do caos originrio.Inaugura-se, por outras palavras, uma era de "administraoactiva", com quadros legitimadores, mtodos e agentes muitodistintos dos da passiva administrao jurisdicionalista.(HESPANHA, 2006, p.357)

    Por isso, possvel afirmar que durante o Antigo Regime inicia-se o movimento para que (...) a pessoa do monarca [torne-se] a nic a fonte instituidora do Direito (WOLKMER, 2006, p.160).

    d) A noo de sujeito de direitos, dotado de direitos universais e naturais, ainda no se concretiza no perodo final do AntigoRegime. Apesar do que, possvel perceber que diversos autores jusnaturalistas j defendiam tais idias no perodo. Assim, aordem medieval atribua a cada parte do corpo a possibilidade de c riar Direito, bem como a cada pessoa aplicava-se o Direitoproveniente de seu status. Cada direito ainda depende do estado ao qual o indivduo pertencia[xx], preferindo a

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    particularidade da condio do sujeito regra geral.[xxi] Assim, uma das mais importantes funes do juiz medieval, a qual

    pode ser percebida na noo de Iurisdictio[xxii], era identificar o status do indivduo a se aplicado no caso concreto. Funoainda essencial no Antigo Regime.

    (...) o arbtrio do juiz na apreciao dos casos concretos ("arbitriumiudex relinquitur quod in iure definitum non est", fica ao arbtrio do

    juiz aquilo que no est definido pelo direito). ele que, caso a caso,

    ponderando as consequncias respectivas, decidir do equilbrioentre as vrias normas disponveis. (HESPANHA, 2005c, p.11)

    Por isso, ainda no Antigo Regime os sujeitos tero direitos diferentes, inclusive em termos processuais. o caso do estadorstico. Como eram considerados ignorantes, para os rsticos as formalidades exigidas pelo direito erudito eramrelativizadas. O que demonstra a multiplicidade d e estatutos conforme a multiplicidades de condies (estados).

    e) Apesar de no bem demarcadas, as fronteiras do Estado e da Sociedade civil j aparecem de forma incipiente no perododo Antigo Regime. O problema era superar as amarras e limites das ordens.

    A capacidade de interveno do poder central ficava drasticamente

    reduzida pela teia emaranhada de limites postos pelas ordensjurdico-jurisdicionais inferiores e pelos direitos adquiridos (iuraquaesita) de indivduos e corpos. Desta teia, nem a lei do soberanose libertava facilmente. (HESPANHA XAVIER, 1993, p.195)

    Apesar de ainda ser fraco para desemaranhar as teias sociais, durante o sculo XVIII e incio do XIX diversas demandas demodernizao j estavam presentes na sociedade. Talvez a continuao da famosa imagem de um Estado Crislida (Statocrislide) de Grossi (2002, p.43) possa ser uma interessante metfora para compreender o momento. No Antigo Regime oEstado tenta aos poucos sair do csulo, que acontecer apenas, e ainda vacilante, aps as revolues.

    Assim, apesar da relativizao dos valores medievais, na verdade as estruturas pr-existentes continuavam reforadas.[xxiii]As diferenas no eram to relevantes a ponto de anular o cerne do sistema jurdic o. Na monarquia portuguesa, portanto,

    mantendo-se uma perspectiva de monarquia corporativa, reforavam-se certos valores medievais. Hespanha aponta que amonarquia corporativa portuguesa at meados do sculo XVIII era demarcada por:

    (A) o poder real partilhava o espao poltico com poderes de maiorou menor hierarquia

    (B) o direito legislativo da Coroa era limitado e enquadrado peladoutrina jurdica (ius commune) e pelos usos e prticas jurdicoslocais

    (C) deveres polticos cediam perante os deveres morais (graa,piedade, misericrdia, gratido) ou afetivos, decorrentes de laos deamizade, institucionalizados em redes de amigos e de clientes

    (D) os oficiais rgios gozavam de uma proteo muito alargada dosseus direitos e atribuies, podendo faz-los valer mesmo emconfronto com o rei e tendendo, por isso, a minar e expropriar opoder real (HESPANHA, 2001, p.166-7).

    Alm disso, no Antigo Regime ressaltavam-se os valores jurdicos tradicionais e antigos,[xxiv] em especial voltados aomodelo do Ius Commune. Nesse sentido, (...) a situao do direito realmente praticado nos sistemas jurdicos europeusdurante o regime de direito comum tardo-medieval (Ancien Rgime) foi refletido principalmente em seu desenvolvimento

    jurisprudencial, forense e consultivo. (CAVANNA, 1982, p.227).[xxv] Nas prticas jurisprudencial, forense e consultiva atradio detinha grande respeitabilidade, era considerada fonte segura para garantia de direitos. O Ius Commune prevalec e

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    como fonte do Direito durante o Antigo Regime. Por outro lado, a transformao a se suceder apontaria em sentido contrrio,nesse caso o direito ptrio ganhava reforo progressivo sobre o direito antigo, em Portugal tal fato se deve em especial a Leida Boa razo de 1769, na qual o Ius Commune tornava-se subsidirio (HESPANHA, 2004, p. 32 )

    Outra importante caracterstica do direito no Antigo Regime era a atribuio da organizao do poder jurisdicional ao rei.Nesse sentido ao rei pertencia a capacidade de organizar e executar a justia. Trata-se de uma especificao do chamado dopoder de imprio[xxvi] (merum imperium) majesttico, relido a partir de uma nova viso de sociedade. Nesse sentido, osautores do perodo do Antigo Regime ressaltavam que ao rei pertencia a funo de organizar a justia porque estava no maisalto grau de exerccio do merum imperium.[xxvii]

    O rey he cabea dos magistrados, e elles se reputo por membros domesmo corpo porque como ao tal Prncipe incumbe ter aos ditosMagistrados para os officios de julgar, assim nas suas cortes, comofora delas: com razo se devem, e podem chamar seus substitutos, eque esto representando sua pessoa, como trs Bald. In Cap.I (...)(FERREIRA, 1767, p.3)

    Ao mesmo tempo que, ao rei cabia a funo principal de organizar a justia, cabia aos juzes reais o papel de substiturem aorei.[xxviii] Disso resultava que no era possvel visualizar uma separao de poderes no Antigo Regime portugus. Os juzes

    de ento desempenhavam tanto funes judiciais quanto administrativas, contexto emblemtico das sociedades de AntigoRegime. (GOUVEA, 1998). Ou de forma mais precisa, os poderes se exerciam de forma cumulativa nas autoridades

    vinculadas ao rei. [xxix]

    Essa ausncia de separao de poderes vai se refletir no perodo colonial brasileiro. Mesmo sem refletir a enorme variedadede excees de foro portuguesa devido prpria dificuldade de organizao de tribunais de jurisdio especial, ainda assim,teria o efeito muito evidenciado nas delongas evidenciadas por debates de competncia. [xxx] A prpria lgica do perododemarcava a falta de uma delimitao precisa e assim se estruturava.

    Outro elemento interessante de ser destacado que, sendo a justia pertencente ao soberano, este poderia utiliz-la inclu sivecomo forma de estabelec imento de relaes sociais (economia moral do dom). N esse caso, as mercs e graa faziam parte decerta naturalidade do exerccio da justia pelo rei. Tal atribuio foi freqentemente utilizada como forma de manter laosentre a colnia e a metrpole.

    Atravs da distribuio de mercs e privilgios o monarca no sretribua o servio dos vassalos ultramarinos na defesa dosinteresses da coroa e, portanto, do bem comum. (...) reforava oslaos de sujeio e o sentimento de pertena dos mesmos vassalos estrutura poltica do Imprio, garantindo a sua governabilidade.Materializava-se, assim, forjando a prpria dinmica da relaoimperial, uma dada noo de pacto e de soberania, caracterizada por

    valores e prticas tipicamente do Antigo Regime, ou, dito de outra

    forma, por uma economia poltica de privilgios. (BICALHOFRAGOSO GOUVA, 2000, p.75).[xxxi]

    Essa forma de reforar os laos a partir de distribuio de cargos (poltica dos privilgios)[xxxii] criava uma estrutura depoder interligada a prpria participao na esfera pblica.

    5. BREVE ANLISE DA POLMICA ENTRE LAURA DE MELLO E SOUZA E ANTONIO MANUELHESPANHA

    Cabe ressaltar que o termo no utilizado de forma pacfica na recente histria administrativa do Brasil nos sculos XVIII eXIX. Uma polmica recente entre Laura de Mello e Souza e Antnio Manuel Hespanha pode ser destacada como um modelode debate acadmico de nvel elevadssimo, que no s enobreceu a rea da Histria do Direito como serve de exemplo decomo dois pares acadmicos podem contribuir para aprimorar conceitos desenvolver um conhecimento cientfico.

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    A dvida sobre a correo da expresso para compreender a realidade colonial brasileira foi levantada por Laura de Mello eSouza em seu texto O sol e a sombra (2006, p.58 e Ss.). Para a autora a expresso Antigo Regime no seria a melhorexpresso para compreender a realidade colonial brasileira. Aponta para tanto 3 motivos: a) a realidade colonial luso-americana no conheceu o feudalismo, no podendo ser equiparada a tal condio b) o uso da expresso tambmprivilegiaria a viso europia, retirando o peso do colonialismo e da explorao econmica voltada a tal condio c) por fim,a falta da incluso essencial da escravido no contexto colonial macularia tal olhar. O cerne do debate est relacionado apossibilidade da existncia de um Estado no perodo colonial ou no.

    Se, como ensinou, a anatomia do poder era, ento, distinta da dehoje, nem por isso havia "ausncia do Estado", mas um Estado emque as racionalidades eram outras. O Estado esteveindiscutivelmente presente na colonizao e na administrao daspossesses ultramarinas: o que se deve perscrutar a expresso e algica dessa presena, pois podem, constantemente, nos iludir. Seaquela era, como afirma o autor, uma sociedade de Antigo Regime,sua prpria essncia, assentada na hierarquia e no privilgio,impediriam que fosse diferente. (SOUZA, L. , 2006, p.51).

    Apesar de no existir uma resposta evidente sobre qual posio a mais interessante para compreenso do perodo colonialbrasileiro (assim como, por exemplo, existem vrios c onceitos e limitaes para a palavra Estado que no podem sersimplesmente descritos em tom de sntese), ressalto apenas (e trata-se aqui de um posicionamento pessoal, provavelmenteinfluenciado pelas pesquisas em documentos de poca ou/e por formao acadmica) que no existia poder centralizado naColnia e que tal acaba sendo apenas moldado como uma imagem posterior dada pela historiografia brasileira ao Estadocolonial a fim de justificar a Independncia como uma reao a certa postura colonialista portuguesa.[xxxiii] Portanto, aexistncia ou no de um Estado parece um problema sem resposta absoluta e trata-se aqui em certa medida de escolhasentre historiadores e suas nfases conceituais.[xxxiv]

    Voltando as restries, levantadas por Laura de Mello e Sousa, tais ilu minam partes por c erto no evidentes do debate.Devem ser levadas em considerao ao se trabalhar com o conceito de Antigo Regime na colnia, porm podem sersuperadas em alguns pontos se consideradas com cuidado.

    Em rela o idia de que no existiu feudalismo na colnia, pode-se responder que o Antigo Regime no se caracteriza deforma estrita pela Economia, mas como Sistema poltico. O feudalismo um modo de produo econmico. Lembrando odebate de Michel Foucault em seu curso A verdade e as formas jurdicas, as formas jurdicas no esto vinculadas aosmodelos econmicos de sociedade. Trata-se de algo diverso, e talvez um pouco mais profundo, relacionado a prpria formade imaginar a realidade.[xxxv]

    Em relao segunda objeo voltada ao olhar eurocntrico da anlise, parece tender exatamente ao contrrio,demonstrando a maior complexidade da dominao da metrpole. Parece correto, afirmar como Hespanha que sempreesteve ausente da empreitada colonial portuguesa um projeto totalizador (HESPANHA, 2 001, p.169).[xxxvi] Isso porque eracaracterstica do Antigo Regime manter-se a partir da lgica de pluralidade de fontes de poder. Assim, para ressaltar o papelda Colnia, ao invs de destacar a dominao pode-se tentar compreender como no Brasil se utilizaram das brechas eespaos vazios do sistema do Antigo Regime:

    Para se falar de um direito colonial brasileiro - com a importnciapoltica e institucional que e isto tem -, preciso entender que, nosistema jurdico de Antigo Regime, a autonomia de um direito nodecorria principalmente da existncia de leis prprias, mas, muitomais, da capacidade local de preencher os espaos jurdicos deabertura ou indeterminao existentes na prpria estrutura dodireito comum. (HESPANHA, 2005c, p.1)

    Por fim, em relao crtica da falta de considerao da especificidade do estatuto da escravido, parece que este deve sim

    ser elemento chave de compreenso da realidade colonial brasileira. Ao defender-se das crticas de Laura de Mello e Sousa,Hespanha utiliza-se de uma interessante posio. Assinala:

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    No fundo, os escravos estavam, para as sociedades coloniais, comocriados, aprendizes, moos e moas de lavoura, rsticos oucamponeses, para as sociedades europias. Milhes de pessoas,praticamente desprovidas de direitos, merc dos pais de famlia.(HESPANHA, 2007, p.66)

    O argumento de que as justificativas da escravido tinham referncias europias[xxxvii] no de todo um equvoco, mas asespecificidades da escravido brasileira tornam o discurso descontextualizado. farta a literatura que demonstra que aescravido leve (para lembrar estudos com inspirao em Gilberto Freyre) no retrata a escravido em todas as suasnuances.[xxxviii] Por outro lado, a abertura de olhar para a multiplicidade de poderes e controles sociais pode iluminarformas complexas (e s vezes complementares) de violncia.

    De qualquer forma a crtica de Laura de Mello e Sousa no atinge o cerne da utilizao do termo Antigo Regime, pois a suacrtica baseada na existncia da escravido no fundo repete o argumento econmico da existncia do capitalismo comopadro nascente. E dessa forma reitera o problema da no dependncia do sistema poltico em relao ao econmico.[xxxix]Recentemente Laura de Mello e Sousa, ao que tudo indica, teria aceitado o uso da expresso, mesmo que c om limites.

    (...) no se deve falar num Antigo Regime tropicalizado. Se a

    sociedade colonial for vista como de Antigo Regime no senso estrito,suas particularidades explodem e corroem os princpios bsicos, jque era organizada e costurada pelo escravismo, algo que inexistiano ambiente europeu, lembra Laura. (...) A especificidade da

    Amrica portuguesa no residia na assimilao pura e simples domundo do Antigo Regime, mas na sua recriao perversa,alimentada pelo trfico, pelo trabalho de negros escravos, pelaintroduo, na velha sociedade, de um novo elemento, estruturalmais do que institucional: o escravismo. (HAAG, 2012)[xl]

    O debate por certo ainda no se encerrou. Talvez novos estudos possam ressaltar as especificidades da utilizao da expressoAntigo Regime em contexto brasileiro e auxiliar sua compreenso densa.

    6. CONSIDERAES FINAIS

    Para finalizar, vale ressaltar que o iderio do Antigo Regime no desaparece de sbito da cultura portuguesa e brasileira noincio do scu lo XIX. Mesmo os revolucionrios franceses, que tanto criticavam o Antigo Regime, muitas vezes se utilizavamde seus elementos para se justificar, (...) como quando Portalis apela para a eqidade, ou seja, a um dos valores quecaracterizavam o Antigo Regime (GROSSI, 2 004, p.119). Isso demonstra que, apesar das transformaes, ainda existe muitode Antigo Regime circulando na sociedade.

    Entretanto, aos saudosistas, tambm vale o alerta de que a c ultura no esttica. E que tentar encontrar semelhanas entrenosso tempo e o passado no torna o presente um continuum do que aconteceu. As coisas mudam. s vezes abruptamente.Com a ac elerao do processo de modernizao, certos conceitos e valores sofreram abalo em todo o Ocidente. No Brasil nopoderia ser diferente. Ao utilizar o conceito de Antigo Regime, sempre deve-se lembrar de situ-lo em sua historicidade.

    REFERNCIAS

    BICALHO, M. F. B. FRAGOSO, J. GOUVA, M. F. S. . Uma leitura do Brasil colonial: bases da materialidade e dagovernabilidade no Imprio. Penelope: fazer e desfazer a historia, Lisboa, v. 23 , p. 67-88, 2 000.

    BICALHO, M. F. B. As Cmaras ultramarinas e o governo do Imprio. In: FRAGOSO, Joo BICALHO, Maria FernandaGOUVA, Maria de Ftima. (orgs). O Antigo Regime nos trpicos: a dinmica imperial portuguesa (sculos XVI-XVIII) Rio

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    CABOURDIN, Guy VIARD, Georges. Lexique historique de la France d'Ancien Rgime. Armand Colin : Paris, 1978.Disponvel em:

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    MONTESQUIEU. Charles de Secondat, Baron de. De lsprit des lois. Paris, dition l'Intgrale, Seuil, 1964. Disponvelem: . Acesso em: 19 set. 2015.

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    SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da. Histria do Direito Portugus: Fontes do direito. 4. ed. Lisboa: Fundao CalousteGulbenkian, 2006.

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    TOCQUEVILLE, Alexis de. The Old Regime and the French Revolution. New York: Harper and Brothers Publishers, 1856.

    WOLKMER, Antonio Carlos. Sntese de uma histria das idias jurdicas: da Antiguidade clssica Modernidade.Florianpolis: Fundao Boiteux, 2006.

    NOTAS

    [i] Vide: HESPANHA, Antnio Manuel. (Coord). Histria de Portugal: O Antigo Regime (1620-1807). Portugal: EditorialEstampa, 1998. Outra periodizao interessante pode ser vista em SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da. Histria do DireitoPortugus: Fontes do direito. 4. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2006, p. 34-8. Nesta o autor chama tal perodode poca da recepo do Direito comum, em certa continuidade d e 1248-1750.

    [ii] E m ingls: Less than a year after the Revolution had begun, Mirabeau wrote secretly to the king, " Compare the presentstate of things with the old regime, and console yourself and take hope. A partthe greater part of the acts of the nationalassembly are dec idedly favorable to a monarchical government. Is it nothing to have got rid of Parliament, separate states, theclerical body, the privileged classes, and the nobility ? Richelieu would have liked the idea of forming but one class of citizens so level a surface assists the exercise of power. A series of absolute reigns would have done less for royal authority than thisone year of Eevolution." He understood the Revolution like a man who was competent to lead it.

    [iii] Laura de Mello e Sousa tambm destaca o referencial a Toqueville, porm em sua leitura parece igualar a sociedade de

    privilgios ao feudalismo. Mais que a centralidade do poder, portanto, Mirabeau identificava o Antigo Regime sociedadedesigual dos privilgios: em suma, ao feudalismo, sem se dar conta de que o povo no se compunha mais de sditos, e sim decidados a soberania no mais emanava do rei, e sim do povo.. (SOUZA, L. , 2006, p.64).

    [iv] Tocqueville abordou este perodo da histria francesa com a empatia de quem possua um sentido muito desenvolvidodas diferenas sensveis impostas pelo tempo histrico. Para ele, o Antigo Regime executou a obra da modernidade francesaque, de forma muitas vezes equivocada, identificada como obra nica e exclusiva da Revoluo.. (LOPES, 2003, p.130).

    [v] Traduo livre do original: "La justice franaise sous l'Ancien Rgime tait caractrise par le nombre lev desjuridictions, l'enchevtrement de leurs ressorts, la lenteur et le cot des procdures, la duret de la procdure c riminelle, lacruaut des chtiments et la svrit des peines pour les petites gens, svrit qui contrastait avec l'extrme clmenc e donton faisait preuve envers les privilgis. Juges et procureurs taient, en gnral, peu aims, du fait qu'ils dfendaient unsystme favorable leurs intrts, mais que la majorit de la population rejetait. Seuls les avocats recruts dans la moyenneou la petite bourgeoisie admettaient la ncessit d'une rforme de la justice."

    [vi] Chamadas de pices (especiarias), como o dinheiro destinado ao suprfluo, na mesma lgica do cultural dinheiro parao cafezinho no Brasil.

    [vii] No original: "Les juges sont des fonctionnaires qui ont achet leur charge qui est devenue hrditaire. Mal rtribuspour le travail fait, ils se remboursent sur les justiciables en exigeant des dessous de table (les pices) et en faisant durerles procs afin de multiplier les actes qui sont payants." (CABOURDIN e VIARD, 1978).

    [viii] No Brasil do perodo colonial no h dvida alguma que os juzes da Coroa (juzes de fora e ouvidores) governavam nolugar do rei.

    [ix] Traduo livre do original : "(...) toutes les lois, au sens moderne du terme, subissent le mme examen partial desParlements ds lors que sont en cause leurs privilges. En termes de sparation des pouvoirs, ils exercent donc la fonctionlgislative en discutant du bien-fond de la politique royale" (GUINCHARD, 2011, p. 9).

    [x] Traduo livre do original: "Tout simplement comme lexpression dun programme politique li un lment subjectif,la peur du juge, et non comme un symbole dune rflexion abstraite sur la fonction juridictionnelle. Il est symptomatiqueque largument du juge bouche de la loi est avanc chaque fois quil sagit de limiter le pouvoir judiciaire par rfrence un pass, c est--dire c haque fois quil sagit dinterdire au juge toute ambition politique. Sils font unanimement lloge dun

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    pouvoir judiciaire linfluenc e considrable, les constituants en dduisent toujours limportance de contraindre ce terriblepouvoir afin quil ne nu ise ni la libert politique, ni la l ibert civile . Suit alors lnumration de toutes les questions aborder afin de bien organiser le pouvoir judiciaire, cest--dire dans le but de contraindre le juge". (GUINCHARD, 2011, p.7).

    [xi] Os temas da centralizao administrativa e o anseio dos povos por democracia so os conceitos-chave, os problemas defundo de todo o texto. A Revoluo Francesa se afigura apenas como o coroamento, o desfecho de um processo muito longoque tem suas razes fincadas na prpria gnese da sociedade francesa do Antigo Regime. Como se refere Franois Furet,Tocqueville apresenta bem mais um Antigo Regime' do que uma 'Revoluo', bem mais um antes de 1789' do que um 'aps

    1789'. (LOPES, 2003, p.132).[xii] Ordem. Tal termo e noo levam- nos ao cerne da antropologia medieval. Os fatos naturais e sociais, agora protagonistas,no so uma enxurrada de fenmenos amontoados desordenadamente uns sobre os outros, mas, encontrando a prpria fontena sabedoria divina, so inseridos numa harmonia que a todos concilia. A ordem precisamente aquele tecido de relaesgraas ao qual um agregado de criaturas heterogneas reconduzido espontaneamente unidade. O primado ontolgico datotalitas e da multitudo, que leva forosamente supervalorizao do sangue, da terra e da durao como fatos normativosfundamentais a perfeio do coletivo como totalitas e como multitudo e a consequente imperfeio do indivduo requeremque totalitas e multitudo resolvam-se em ordem s assim a parte, o individuum, poder ver a sua funo racionalmentereduzida. Tudo deve ser organizado: o ordo universal de que se fala aqui no pode deixar de se articular, em nvel social, em

    vrios ordines particulares, momentos necessrios de diviso da sociedade medieval, nichos necessrios nos quais inserir edar concretude e funcionalidade histrica a essa abstrao desprovida de sentido que o indivduo.. (GROSSI, 2002, 81-2,trad. livre)

    [xiii] Completando a idia Uma ordem que no se deixa afetar pelos grandes ou pequenos episdios da histria, pois secoloca alm do poder poltico e de seus detentores, desvinculada das misrias do cotidiano, inserida no terreno profundo eseguro das fontes supremas, dos valores. Um valor imanente a natureza das coisas, um valor transcendente o Deusnomteta da tradio cannica, um em absoluta harmonia com o outro, segundo os ditames da teologia crist, constituem umordo, um ordo iuris. Um ordo iuris que, portanto, no pode deixar de articular o d ireito positivo, os vrios direitos positivos,em graus ascendentes de manifestaes jurdicas que resultam, sem cesuras, das regras transitrias e contingentes da vidacotidiana, numa continuidade simples e espontnea, no nvel supremo do direito natural e do direito divino, com toda suariqueza de princpios normativos eternos e imutveis, por serem a voz da prpria Divindade. (GROSSI, 2002, p.14). Nooriginal: (...) Pinserimento delia parola 'ordine' ostinatamente voluto. Ci sembrato infatti Che mai, come nel medioevo, ildiritto abbia rappresentato e costituito la dimensione radicale e fondante dlia societ, un basamento stabile che fa spiccorispetto alla caoticit e alia mutevolezza del quotidiano, cio degli eventi politici e sociali d'ogni giorno. La societ mdivale giuridica, perch si compie e si salva nel diritto, giuridica la sua costituzione pi profonda, e sta li il suo volto essenziale,sta l la sua cifra ultima. A paragone dlie risse della disordinatissima superficie contrasta l'ordine della secreta ma presentecostituzione giuridica. Un ordine che non si lascia scalfire dagli episodi grandi e piccoli della vicenda storica, perch sicolloca al di l del potere politico e dei suoi detentori, svincolato dalle miserie della quotidianit, collocato nel terreno fondo esicuro dlie radicazioni suprme, dei valori. Un valore immanente - la natura delle cose, un valore - trascendente - il Dionomoteta della tradizione cannica, l'uno in assoluta armona con l'altro secondo i dettami della teologa cristiana,costituiscono un ordo, un ordo iuris. Un ordo iuris che perianto non pu non scandire il diritto positivo, i varii diritti positivi,secondo gradi ascendenti di manifestazioni giuridiche che dalle regle transeunti e contingenti della vita quotidiana salgonosenza cesure, in spontanea e semplice continuit, al livello supremo del diritto naturale e del diritto divino con tutta la lororicchezza di principii normativi etemi e immutabili perch voce della Divinit stessa. (Ibid, p.14). (Traduo ainda nopublicada de Ricardo Marcelo Fonseca).

    [xiv] (...) o ius commune, fenmeno de origem e cunho tipicamente italiano, adquirindo forma e contedos noflorescimento universitrio italiano do sculo XIII. ( ... ) a construo medieval de uma ordem jurdica prpria est de acordocom uma intensa originalidade decorrente de sua intensa historicidade um c onjunto harmnico de construes tpicas, porserem adequadas e inerentes s exigncias histricas, fundadas nos novos valores emergentes e, como tais, reflexos da

    sociedade nas suas razes mais remotas. (GROSSI, 2002, p.9-10, traduo livre)

    [xv] Direito romano desenvolvido na jurisprudncia medieval constituda de diferentes maneiras e com uma variedade deeventos, uma experincia vital e dominante nos sistemas jurdico-polticos da Europa, unidos pelo acolhimento da mesmatradio jurisprudencial romanstica. Em cada uma dessas jurisdies, a presena do direito romano deu vida, comonormativa comum e subsidiria ao sistema de caracterstica de fontes jurdicas que de fato limitamos a qualificar de regimede direito comum. E em todos os lugares, a lei comum se ops como um bloco nico a uma grande variedade de direitoslocais e particulares e foi utilizado como ratio juris para um conjunto de interpretaes comuns e de suas formas ou de seuscritrios para a consolidao de uma unidade dogmtica e de processamento racional: em qualquer caso, de alguma forma,como um primeiro elemento de apoio para que a uniformidade do sistema jurdico nacional que a formao do Estado ps-medieval recentemente tenderam, mas que ainda no era capaz de proporcionar. (CAVANNA, 1982, p.193). No original Ildiritto romano elaborato dalla giurisprudenza medievale costitui, a diverso titolo e con variet di vicende, un elemento vitalee dominante nella esperienza giuridica degli ordinamenti politici europei, accomunati nell'accoglimento di una medesimatradizione giurisprudenziale romanistica. In ciascuno di questi ordinamenti la presenza dei diritto romano diede vita, c omenormativa comune e sussidiaria, a quel caratteristico sistema di fonti giuridiche che sogliamo appunto qualificare regime didiritto comune. E ovunque, questo diritto comune si contrappose come blocco unitrio ad una eterogenea molteplicit didiritti locali e particolari o fu utilizzato come ratio iuris per una loro interpretazione uniforme o forni gli unitari criteri

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    dommatici per una loro consolidazione ed elaborazione razionale: in ogni c aso, esso in qualche modo rappresent un primoelemento di sostegno per quella uniforrnit giuridica nazionale cui lo Stato post-medievale di recente formazione tendeva,ma che non era anc ora in grado di assicurare.

    [xvi] A primeira preocupao torn-los harmnicos, sem que isso implique que alguns deles devam ser absolutamentesacrificados aos outros ("interpretatio in dubio facienda est ad evitandam correctionem, contrarietatem, repugnantiam", ainterpretao deve ser feita, em caso de dvida, no sentido de evitar a correco [de umas normas pelas outras], acontradio, a repugnnc ia). Pelo contrrio, todas as normas devem valer integralmente, umas nuns casos, outras nos outros.

    Assim, cada norma acaba por funcionar, afinal, como uma perspectiva de resoluo do caso, mais forte ou mais fraca

    segundo essa norma tenha uma hierarquia mais ou menos elevada, mas, sobretudo, segundo ela se adapte melhor ao caso ou situao em exame. Ou seja, as normas funcionam como "sedes de argumentos" (topoi, loci), como apoios provisrios desoluo que, no decurso da discusso em torno da soluo, iro ser admitidos ou no, segundo a aceitabilidade da via desoluo que abrem. (HESPANHA, 2 005c, p.11)

    [xvii] Hoje em dia a legislao a fonte principal do direito. O legislador abole as regras existentes e cria novas de acordocom as necessidades polticas e sociais. Legislar manipular o direito e a sociedade numa direo desejada. Antigamente,no havia clareza de que o direito podia resultar de uma interveno deliberada e dirigida. Ao contrrio, o direito era vistocomo uma realidade fixa e eterna, que podia no mximo ser adaptada ou esclarecida, mas a preocupao principal eramanter o bom direito antigo. A insignificncia da legislao durante os primeiros sculos da Idade Mdia explicvel emparte por essa viso, em parte pela impotncia das autoridades centrais. (CAENE GEM, 1999, p.121).

    [xviii] Vale ressaltar que nos textos mais recentes de Antonio Manuel Hespanha os conceitos so mais elsticos e abertos,talvez por isso, citaes da dcada de 80 sirvam mais como indicativo de leitura do que coincidam com o pensamento atual

    do autor.

    [xix] Esta tenso entre "disposio natural" e "deciso de autoridade" no era particularmente sentida na teoria jurdica epoltica do Antigo Regime, pois era consensual que os "imperantes" no inventavam o direito, mas o iam colher a u ma fontenatural. "Governar" (iurisdictionem habere) era "fazer justia" (iustitam dare), sendo, por isso, a lei mais do que um acto de

    vontade, um acto de razo. (HESPANHA, 2004, p.68)

    [xx] Nesta multiplicidade de estados, sob os quais os indivduos se apresentam e dos quais decorrem os seus direitos eobrigaes, introduziram os juristas alguma ordem, tipificando alguns que, pelo seu carcter mais genrico, podiam sergeralmente assumidos pelos indivduos. Alguns estavam ligados prpria natureza, enquanto esta capacitava ouincapacitava os indivduos para assumirem certos papis nas relaes sociais e, assim, condicionava as situaes sociais,polticas e jurdicas em que estes se podiam colocar. E o que se passa com o sexo (homens, mulheres), a idade (infantes,impberes, menores, maiores), a perfeio psquica (insanidade mental, prodigalidade) ou fsica (mudez, surdez).(HESPANHA, 2006, p.50)

    [xxi] Abaixo do plano do reino, proliferavam as ordens jurdicas particulares, todas elas protegidas pela regra da prefernciado particular sobre o geral. Por exemplo, as normas que protegiam os estatutos (ou direitos das comunas, cidades,municpios), considerando-os, nos termos da lei "omnes populi", como ius civile ("dicitur ius civile quod unaqueque civitassibi constituit", [diz-se direito civil o que cada cidade institui para si], Odofredo, sculo XII), ou seja, com dignidade igual do direito de Roma. Ou as que protegiam o costume (nomeadamente, o costume local), cujo valor equiparado ao da lei("tambm aquilo que provado por longo costume e que se observa por muitos anos, como se constitusse um acordo tcitodos cidados, se deve observar tanto como aquilo que est escrito", D.,1,3,34 v. tambm os frags. 33 a 36 do mesmo ttulo).Ou, finalmente, o regime de proteco dos privilgios, que impedia a sua revogao por lei geral sem expressa referncia oumesmo a sua irrevogabilidade pura e simples, sempre que se tratasse de privilgios concedidos contratualmente ou emremunerao de servios ("privilegia remuneratoria"). Ou seja, em todos estes casos, ainda que as normas particulares nopudessem valer contra o direito comum do reino enquanto manifestao de um poder poltico, podiam derrog-lo enquantomanifestao de um direito especial, vlido no mbito da jurisdio dos corpos de que provinham. E, nessa medida, eramintocveis. Pois decorrendo estes corpos da natureza, a sua capacidade de autogoverno e de edio de direito era natural eimpunha-se, assim, ao prprio poder poltico mais eminente.. (HESPANHA, 2005c, p.5)

    [xxii] Iurisdictio, no pensamento medieval, um conceito que no se limita a colher a j complexa problemtica da potestasiuris dicendi, mas se expande para alm e mais alto, tornando-se um dos pilares da publicistica medieval "iurisdictionemhabere" passou a significar o conjunto de poderes que o ordenamento jurdico exerce na plenitude de sua vida, e j surge noalvorecer da escola de Bolonha, nos fragmentos bem conhecidos de Martin e Blgaro, e, mais tarde, na disputa entre Azzonee Lotrio de Cremona, iurisdictio resume o trabalho do pensamento que moveu os glosadores para erradicar o conceito deEstado do terreno feudal dominium. (...) Agora, aqui estamos diante de um exemplo tpico de uma caracterstica tcnica dametodologia dos glosadores e c omentadores, que de aproximar-se de alguns conceitos bsicos, tais como os denominadorescomuns, complexos inteiros de problemas tericos aparentemente dspares e distantes. (CALASSO, 1953, p.425). Nooriginal: Iurisdictio, nel pensiero medievale, un concetto che non si limita a cogliere la gi complessa problemtica dellapotestas iuris dicendi, ma si dilata ben oltre e pi alto, diventando uno dei cardini della pubblicistica medievale:iurisdictionem habere giunse a significare il complesso dei poteri che l 'ordinamento giuridico esercita nella pienezza della

    sua vita e gi sugli albori della scuola di Bologna, nei frammenti ben noti di Martino e di Blgaro, e, piu tardi, nellacontroversia fra Azzone e Lotario da Cremona, iurisdictio riassume il travaglio di pensiero che moveva i glossatori a sradicareil concetto di Stato dal terreno feudale del dominium. (...) Ora, qui ci troviamo di fronte al tipico esempio di una

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    caratteristica tecnica della metodologia dei glossatori e dei commentatori, che consiste nel convogliare attorno ad alcuniconcetti elementari, come a dei comuni denominatori, interi complessi di problemi teorici apparentemente disparati elontani.

    [xxiii] Tal perspectiva foi destacada, por exemplo, em: O. Brunner que, em sucessivas intervenes, salienta ascontinuidades entre os sistemas polticos medieval e moderno e a persistncia, nos nveis "inferiores" do sistema poltico nomeadamente no mundo "campons" , de resistentes estruturas de vinculao poltica tradicionais marcadas pelo"patriarcalismo" e pelo "senhorialismo" e relativamente pouco tocadas pelas novidades da teoria poltica e pelos desgnios depoder dos monarcas modernos. (HESPANHA, 1994, p.28)

    [xxiv] No Antigo Regime, prevalecia uma matriz cultural tradicionalista, segundo a qual "o que era antigo era bom". Nestecontexto, o direito justo era identificado com o direito estabelecido e longamente praticado - como o eram os costumesestabelecidos ("prescritos"), a opinio comumente aceite pelos especialistas (opinio communis doctorum, opinio comumdos doutores), as prticas judiciais rotinadas (styli curiae, "estilos do tribunal"), o direito recebido (usu receptum, asufirmatum), os direitos adquiridos ("iura radicata", enraizados), o contedo habitual dos contratos (natura contractus).(HESPANHA, 2005a, p.2 3)

    [xxv] No original: (...) la situazione del diritto realmente praticato negli ordinamenti giuridici europei durante il tardoregime del diritto comune (Ancien Rgime) era soprattutto riflessa nel suo svolgimento giurisprudenziale, forense econsulente. (CAVANNA, 1982, p.2 27)

    [xxvi] O que o imprio? Uma definio comum diz: um poder legtimo introduzido pelo direito pblico, consistitudopor aquele que absorve a mais infima jurisdio mas de notar - detecta Cino - que os conceitos de iurisd. maxima, mdia,e mais baixos conceitos so controversos e elsticos, e no se pode, portanto, servir utilmente para definir o imprio. Cinotambm julga igualmente inexata outra definio corrente: "O imperium o poder legtimo introduzido pelo direito pblico,constitudo por aqueles, aos quais compete o direito de julgar: tal definio derivada de uma frase do fragmento citado deUlpiano (...) Cino de Pistoia por sua vez define: Imperium o poder legtimo, introduzido pelo direito do pblico, pelanecessidade de se estabelecer a administrao da justia e da equidade, constitudo por aqueles, que dependem do poder eautoridade do juiz. (CALASSO, 1953, p.433-4). No original: Che cosa limperium? Una definizione diffusa diceva: estlegitima potestas de iure pub lico introducta, consistens in iis, quae sunt infimae iurisdictionis: ma c' da osservare rilevaCino che i concetti di iurisd. maxima, media, nfima sono concetti controversi ed elastici, e non possono quindi servirutilmente a definir limperium. Egualmente inesatta giudica Cino una altra definizione corrente: imperium est legitimapotestas de iure publico introducta, consistens in iis, quae iure magistratus competunt: la quale definizione ricavata dauna frase del citato frammento di Ulpiano (...) Cino da Pistoia invece definisce: imperium est legitima potestas, de iurepublico introducta, cum necessitate iuris dicendi et aequitatis statuendae, consistens in iis, quae ex potestate iudicis etauthoritate dependent.

    [xxvii] O merum imperium ainda aparece subdividido em seis graus. O imperium maximum (mero imprio mximo)inclui os poderes supremos do prncipe (regalia maiora), como fazer leis, reunir cortes, confiscar bens, criar notrios, etc. Oimperium maius (mero imprio maior) abarca, nomeadamente, o poder punitivo (habere gladii potestatem adanimadvertendum facinorosos homines, "ter o poder de gldio para castigar os facnoras", D.,2,1,3) relativo s penas capitais(morte ou decepamento de membro, perda da liberdade, perda da cidadania). O imperium magnum (mero impriogrande) inclui a deportao. O imperium parvum (mero imprio pequeno), o desterro e a perda da qualidade de vizinho. Osdois ltimos graus (imperium minus e minimum), a faculdade de aplicar actos de coero menores (mdica coertio), comomultas e repreenses. (HESPANHA, 2005a, p.219)

    [xxviii] Iurisdictio a posio de poder de um sujeito ou de um ente, enquanto dotada de iurisdictio, uma cidade podeorganizar-se juridicamente, dotar-se de um ius proprium, fazer justia. Certamente o poder supremo, a iurisdictioplenissima, do imperador. A iurisdictio, entretanto, no uma totalidade exclusiva, mas uma cadeia composta de muitosanis. Se apenas o imperador possui a plenitude de poder, isto no impede que entes hierarquicamente inferioresdisponham de uma sua iurisdictio, de uma esfera de autonomia que coincide com as efetivas capacidades auto-ordenantesdo ente singular. (COSTA, 2010, p.129).

    [xxix] Essa caracterstica foi percebida pelos clssicos da historiografia brasileira, apesar de fundametarem em pontosdiferentes. A legislao portuguesa, no perodo colonial do Brasil, conforme j acentuado, demarcava imperfeitamente asatribuies dos diversos funcionrios, se a p reocupao desusada na poca de separar as funes por sua natureza. Da aacumulao de poderes administrativos, judiciais e de polcia nas mos das mesmas autoridades, dispostas em ordemhierrquica, nem sempre rigorosa. A confuso entre funes judicirias e policiais perdurar ainda por muito tempo.(LEAL, 1974, p. 181).

    [xxx] O problema da complexidade da repartio das competncias no era, evidentemente, novo. Nem era de agora aconstatao de que daqui resultavam muitas das demoras da justia. No entanto, a estratgia de reduo de todas as

    jurisdies especiais a uma jurisdio ordinria nunc a se imps. Desde logo porque, como vimos, esta distino jurisdiocomum e jurisdio especial nem era particularmente visvel no plano das taxinomias da jurisdio. Depois, porque as

    demoras das lides eram sobretudo relacionadas com a falta de diligncia dos juzes ou com os expedientes dilatrios dosadvogados. Se algo se pedia, era que os critrios de repartio das competncias forenses nomeadamente, dascompetncias relativas do foro secular e eclesistico fossem clarificados, por lei ou concordata. Eventualmente, encarava-se a extino de um ou outro privilgio. Mas, globalmente, a estrutura jurisdicional orientada para os privilgios no era postaem causa. E, assim, nos finais do Antigo Regime, eram inmeros os privilgios de foro: eclesisticos (com distines

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    internas), militares, estudantes e professores, cavaleiros das ordens militares (e, ainda aqui, com distines), moedeiros,desembargadores, rendeiros fiscais, moradores das terras dos donatrios, pescadores, estrangeiros, rfos, vivas e mulhereshonestas, juzes e deputados da Bula da Cruzada, do Santo Ofcio, da alfndega, das secretarias de Estado, da Junta doComrcio e de mais uma srie de reparties ou tribunais aos privilgios do foro acresciam os privilgios em razo da causa:eclesisticos, de almotaaria, fiscais, comerciais, de falncia, de contrabando, de capelas e resduos, da corte, da cidade deLisboa, de inmeras instituies, etc.. (HESPANHA, 1993, p.403-4).

    [xxxi] Dessa forma, o indivduo ou o grupo que, em troca de servios prestados (mormente na conquista e colonizao doultramar), requeria uma merc, um privilgio ou um cargo ao rei, reafirmava a obedincia devida, alertando para a

    legitimidade da troca de favores e, p ortanto, para a obrigatoriedade de sua retribuio. Ao retribuir os feitos de seus sditosultramarinos, o monarca reconhecia o simples colono como vassalo, reforando o sentimento de pertena e estreitando oslaos de sujeio em relao ao reino e monarquia, reafirmando o pacto poltico sobre o qual se forjava a soberaniaportuguesa nos quatro cantos do mundo. Dito de outra forma, a economia poltica de privilgios relacionava, em termospolticos, o discurso da conquista e a lgica graciosa inscrita na economia de favores instaurada a partir da c omunicao pelodom. (BICALHO, 2001, p.219).

    [xxxii] A economia poltica de privilgios relaciona, em termos polticos, o discurso da conquista e a lgica clientelar inscritana economia de favores instaurada a partir da comunicao pelo dom. Tanto o iderio da conquista, quanto norma deprestao de servios apareciam, no quadro do Imprio, como mecanismos de afirmao do vnculo poltico entre vassalosultramarinos e soberano portugus. A economia poltica de privilgios deve ser pensada enquanto cadeias de negociao eredes pessoais e institucionais de poder que, interligadas, viabilizavam o acesso a cargos e a um estatuto poltico como o sercidado -, hierarquizando tanto os homens quanto os servios em espirais de poder que garantiam coeso e governabilidadeao Imprio. (BICALHO FRAGOSO GOUV A, 2000, p.79)

    [xxxiii] Assim aponta Hespanha:(...) eu no digo que o "Estado" (valha a simplificao) colonial no exista. Sim, existe, nascolnias e no reino, como eu tenho defendido que ele era. E manifestava-se tambm nisso de que, muito disciplinadamente,todos tripudiavam e faziam tropelias "em nome d'el-rei", guiados pelo amor que tinham coroa e ao seu rei. E a prpriacoroa, em estado de necessidade e em transe de perder at a face, frequentemente cobria os desmandos, ou com o silncio depresumida ignorncia, ou com o manto do perdo ou mesmo com o alarde de uma merc por tais servios. Pode, realmente,dizer-se que o modo de governar do "Estado moderno" era este, o de se deixar invocar e que exigir-lhe um poder maisefectivo no passa de uma retroprojeco da imagem que mais tarde se formou do Estado, nomeadamente desse Estadodistante, exigente e dominador, que o "Estado com colnias" (ou o "Estado nas colnias").. (HESPANHA, 2 007, p.64).

    [xxxiv] (...) decorrendo antes daquilo que a teoria poltica mais moderna (oitocentista) do Estado e da colonizao colocoucomo contedo corrente das palavras "Estado" e "colonizao". Em suma, para mim uns trpicos sem Leviathan no meaborrece mais do que um Leviathan sem trpicos no sei, porm, se no perturbar um tanto a imagem tradicional de um"Imprio colonial"... como Deus mandava.. (HESPANHA, 2007, p.65)

    [xxxv] Vale lembrar aqui o captulo 2 do livro A verdade e as formas jurdicas de Michel Foucaul, no qual o autor relembraos limites de conceitos econmicos para compreender as relaes de poder, como no caso das cidades-estado de Atenas eEsparta, que mesmo compartilhando de certa similitude econmica detinham regimes polticos diversos devido ao que eledenomina de episteme diferentes.

    [xxxvi] Planos no ultramar apareceram apenas no perodo pombalino: (.. .) isto chega tarde a Portugal e aos seus domniosse no me engano (...) , mesmo s com Pombal e com os ministros ilustrados de D. Maria que planos particulares e gerais deuma organizao poltica do Ultramar ganham forma, primeiro em relatrios, consultas e directrios, depois em projectosconcretos de reformas territoriais, econmicas, urbansticas e de governo, que visam vrios pontos e situaes do imprio,desde Macau ao Brasil, passando por Angola. (HESPANHA, 2007, p.63).

    [xxxvii] Nesse sentido, (...) todo o tesouro de imagens e de conceitos que permitiu justificar e sustentar ideologicamente aescravido tem uma indubitvel origem europia. A escravido uma figura do direito romano, por este detidamente

    regulada, regulao que foi a nica matriz jurdica disponvel, naturalmente reelaborada por juristas europeus, quase todosibricos, dos quais destaco o luso-espanhol Lus de Molina, cuja d outrina relativa aos escravos j foi objecto de um artigo meu. Antes disso, a escravatura fora objecto de reflexes antropolgicas e filosficas de Aristteles, que a filosofia, a tica e apoltica europeias incorporaram e as leis copiaram. Por cima disto, o sistema corporativo construra toda uma moldura deautonomia jurdica e governativa da "casa", da qual os escravos faziam parte, juntamente com outros membros da famlia.Para a sociedade corporativa, os escravos eram um elemento da casa, da famlia, e no, a bem dizer, um elemento da polis,da respublica, do Estado, o qual Jean Bodin define como "uma respublica de famlias". Ou seja, do ponto de vista damundividncia corporativa, o escravo, ou mesmo uma multido de escravos, no constitua um elemento dissonante dacomunidade,que obrigasse a reconfigurar o seu desenho, a sua teoria, o seu direito. E, de facto, no conheo nem tratados detica, nem cdigos, nem leis substanciais, que lidem com o problema da escravido massiva no Brasil. Aparentemente, oque viera da Europa, chegava.. (HESPANHA, 2 007, p.65).

    [xxxviii] Ver nesse sentido: QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Escravido negra em Debate. In: FREITAS, Marcos Cezar.

    Historiografia brasileira em perspec tiva. So Paulo: Contexto, 2003. (pg. 103- 17)[xxxix] Observe-se que o Antigo Regime uma readaptao dos moldes feudais as novas realidades, inclusive de cunhoeconmico, existente na transio entre idade mdia e modernidade (ps-revoluo). Ressalto ainda que longe de negar ofundamento Marxista de preeminnc ia ontolgica do econmico sobre as formas ideolgicas, parece ser possvel uma leitura

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    um pouco mais complexa do fenmeno. Se as adaptaes do Antigo Regime seriam suficientes para destac-lo do modelofeudal e carcateriz-lo como mscara feudal de um sistema capitalista parece um bom e exaustivo projeto de pesquisa.

    [xl] Alm disso a autora, chega a afirmar na entrevista dada no final de 2012 diversas idias apresentadas: (...) Nessareleitura, o Imprio Portugus aparece como pouco homogneo e com centros polticos relativamente autnomos. precisoquestionar a ideia de uma ideologia imperial unitria (...) Os administradores portugueses que vieram, por exemplo, acertas partes do que seria o Brasil fogem ao esteretipo do tiranete que buscava arrancar os esplios dos brasileiros. Claroque houve inescrupulosos. Mas, no geral, sabia-se que no se podia pesar a mo na relao com a colnia. A exploraomuitas vezes vinha revestida da forma da intolerncia, seguida da flexibilidade na aplicao das leis (...) Assim, dizer,

    como reclamava Tiradentes, que os administradores portugueses vinham p ara espoliar e arrancar nosso sangue, no explicamuita coisa e nos enreda no discurso equivocado da dominao. Em verdade, a administrao s pode funcionar porque aselites locais participavam dele A Coroa sabia que no podia impor controle levando a lei ao p da letra. At 1822, osbrasileiros se viam como portugueses, e no como dominados, (...) Ainda vale a definio de Tocqueville do AntigoRegime: Uma regra rgida e uma prtica flcida (...) Pelos princpios do Antigo Regime se proibia aos portadores desangue infecto exercer cargos administrativos. Seria, ento, impossvel governar as regies coloniais se a maior parte da elitenativa era formada por mestios: regies como So Paulo e Minas, por exemplo, eram praticamente habitadas pormamelucos e mulatos. Promovia-se, ento, um mulato a capito-mor e ele deixava de ser mulato e podia ascender (...) (HAAG, 2012)

    Autores

    Sandro Lus Toms Ballande Romanelli

    Professor do Instituto Federal do Paran (IFPR), Bac harel em Direito (UFPR), Especialistaem Direito Processual Civil (PUC-PR), Mestre em Direito Pblic o (UFPR) e Doutorando emDireitos Humanos e Democracia (em andamento - UFPR).

    Ivan Furmann

    Informaes sobre o texto

    Como citar este texto (NBR 6023:2002 ABNT)

    ROMANELLI, Sandro Lus Toms Ballande FURMANN, Ivan. Um sentido jurdico para o antigo regime (ancien rgime).Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 21, n. 4587, 22 jan. 2016. Disponvel em: .

    Acesso em: 5 fev. 2016.

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