um olhar etnogrÁfico: primeiros encontros com a yalorixÁ do terreiro ilÊ asÉ ogum omimkaye* 1
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Utilizando como ponto de reflexão a teoria Standpoint, buscaremos falar nesta pesquisade doutoramento, sendo desenvolvida no PPGNEIM-UFBA, sobre as relações de poderno Candomblé, desde diferentes prismas (sujeitos) e levando em conta algumas das suasvariações entrecortadas pelas análises determinantes de raça, classe e gênero no terreiroIlê Asé Ogum Omimkaye.TRANSCRIPT
UM OLHAR ETNOGRÁFICO: PRIMEIROS ENCONTROS COM A
YALORIXÁ DO TERREIRO ILÊ ASÉ OGUM OMIMKAYE*1
Silvia Barbosa*2
Mª Gabriela Hita*3
Resumo
Utilizando como ponto de reflexão a teoria Standpoint, buscaremos falar nesta pesquisa
de doutoramento, sendo desenvolvida no PPGNEIM-UFBA, sobre as relações de poder
no Candomblé, desde diferentes prismas (sujeitos) e levando em conta algumas das suas
variações entrecortadas pelas análises determinantes de raça, classe e gênero no terreiro
Ilê Asé Ogum Omimkaye. A condição de cientista da religião da orientanda de
doutorado, engajada nas pesquisas sobre Candomblé motivou-a a iniciar este estudo de
teor etnográfico que visa vislumbrar que tipo de poder é esse que têm mães-de-santo de
Candomblé, e que emana do saber salvaguardado pelo “povo de santo”, o qual é re-
criado na memória coletiva do povo baiano e na memória individual deste terreiro de
Candomblé. Fomos a campo para tentar localizar e compreender o poder dos terreiros
em sua constituição religiosa e as diversas dinâmicas formadoras do empoderamento
das mães-de-santo como líderes desta religiosidade e emanadoras deste poder que
buscamos compreender. Neste paper, entretanto, apenas se recuperam reflexões sobre
nossas primeiras observações etnográficas realizadas a partir das primeiras falas de Mãe
Dulce, a Yalorixá (mãe-de-santo) do Ilê Asé Ogum Omimkaye.
Palavras-Chave: Poder. Gênero. Feminismo. Candomblé.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A teoria do Standpoint, proposta pela autora Sandra Harding (2004), tem se
apresentado no campo das ciências sociais como um tema controverso, ela se apropria e,
ao mesmo tempo, desafia a teoria política, evidenciando que algum grau de
reconhecimento de nossos interesses políticos ou axiológicos são necessários na
produção do conhecimento; mas que, por outro lado, uma total entrega a esses valores
prejudica a produção do conhecimento científico. Esta teoria atrai tanto críticos quanto
entusiastas há mais de três décadas, pois, segundo Harding, as controversias que ela
vem suscitando são valiosas não somente para o público interessado no feminismo,
como também tem servido para o alargamento das discussões sobre a construção e
* Uma 1ª versão deste texto foi elaborada para a disciplina Dinâmica das Relações de Gênero, Raça e
Classe ministrada pela Drª Cecilia Sardenberg, no primeiro semestre de 2012 no PPG-NEIM/UFBA. * Mestra em Ciências da Religião (UMESP). Doutoranda do PPG-NEIM/UFBA; bolsista da FAPESB,
pesquisa relações de poder no candomblé, atuando na área de religiosidade negra com tema em gênero e
poder. * Prof.ª do Departamento de Sociologia da UFBA. Coordenadora do Laboratório de Investigações em
Desigualdades Sociais do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (LIDES-PPGCS).
Orientadora de Sílvia Barbosa no PPG-NEIM/UFBA.
solidificação da ciência contemporânea. Em sua análise, proposta em Introduction:
Standpoint Theory as a Site of Political, Philosophic and Scientific Debate, Harding
explica que o Standpoint não é apenas uma teoria explicativa que crítica as ciências e as
estruturas que a constrõem, mas uma que se configura também como uma importante
metodologia de pesquisa de forte teor político.
A teoria do Standpoint é normativa14
fortalecendo e modificando tanto
pressupostos da teoria política, quanto da epistemologia, à medida que critica seus
principais marcos conceituais e discursivos, situando, de modo simultâneo, as
pesquisadoras no seu duplo papel de sujeitos e objetos de investigação, expandindo,
deste modo, os convencionais horizontes das teorias das ciências sociais. O Standpoint
auxiliou a pensar e promover uma renovação nos campos científicos, pois possibilitou
pensar e incluir no campo dos estudos científicos, por exemplo, reflexões e experiências
dos estudos de gênero e o modo específico como elas precisam ser estudadas para
produzir conhecimentos válidos para a ciência.
Entre algumas das críticas aos teóricos do Standpoint, estão as que consideram
estas posturas demasiado relativistas. Outras das críticas são as que rejeitam o
pressuposto do qual o Standpoint parte, o de que atores que ocupam uma dada posição
na estrutura social possuem interesses políticos dos quais seja impossível se
desvencilhar totalmente para fazer uma boa e adequada produção de conhecimento. É
explicitando os pressupostos e perspectivas das quais partimos, como recomenda a obra
de Bourdieu, Passeredon e Chamboredon (1968), que se pode melhor promover a
vigilância epistemológica tão necessária a todo fazer científico. Um intento oposto a
este seria o que se defendia numa visão clássica e mais tradicional de Ciência
positivista, hoje superada pela epistemologia moderna, na qual se defenderia a crença de
que a objetividade e neutralidade científica é possível. Como se o sujeito que
compreende não fosse sócio-historicamente condicionado. A crença de que podemos
realmente nos “despir” de todos nossos valores e ideologias é o que se coloca aqui em
questão desde estas perspectivas, onde a postura é a de que reconhecendo de onde
partimos e localizamos nosso conhecimento seria uma postura séria e necessária a toda
reflexão epistemológica da ciência.
1 Normativa, pois questiona categorias analíticas da produção científica, propostas pelo marxismo,
estruturalismo, psicanalise, funcionalismo, desconstrutivismo, etc., colocando em cheque o modo como se
produz pesquisas, apontando novos preceitos para a construção do campo da ciência.
A teoria Standpoint explicita as diferentes localizações e posicionamentos de
onde ocorrem diferentes relações sociais, que para compreendê-las é preciso reconhecê-
las primeiro. Estes são pressupostos imporantes da teoria que partiram de reformulações
de feministas de importantes pressupostos marxistas e pós-estruturalistas. Pelo seu
compromisso com o lugar de onde se fala e grupos marginados ela, como o marxismo
de modo geral, vem oferecendo recursos valiosos para diversos movimentos sociais e de
mulheres na reflexão de suas práticas, colaborando a ampliar níveis de consciência
política em diversificados grupos sociais. Além disso, esta perspectiva do Standpoint
permite dar maior visibilidade e significação às posições ocupadas por grupos
marginados, que desde esta nova perspectiva passam a ser vistos também como sujeitos,
e em muitos casos co-participantes de muitas de nossas pesquisas, na categoria de
informantes qualificados e não meros ou simples objetos inertes dessas pesquisas.
Defensores do Standpoint e seus críticos têm opiniões diferentes sobre sua
potencialidade e de qual seja a sua finalidade do “como” ou “para quê” ela serviria.
Situando o cenário de alguns destes debates, observamos, primeiramente, que esse
conhecimento foi desenvolvido para e por mulheres feministas, visando iluminar e
visibilizar a especificidade das questões de gênero e buscando explicar e compreender
melhor sua situação no mundo contemporâneo. Precisávamos nos autoafirmar no campo
do conhecimento científico, contestando-o, assim como à presença e contribuições dos
estudos de gênero para o avanço de conhecimentos novos e igualmente válidos. Por
isso, um primeiro passo foi o de contestar o campo da Ciência e alguns dos pressupostos
de seus modelos mais tradicionais, que passaram a ser acusados por muitas destas
epistemólogas de etnocêntricos e androcêntricos. A posição subordinada das mulheres
no campo científico passou também a ser tratada e resultou em outro conjunto de
riquíssimos debates. E demonstrou-se que a voz do discurso científico tido como então
válido era apenas a dos homens desde pressupostos claramente androcêntricos e sexistas
e que a crença numa pressuposta neutralidade científica era falsa, pois expressava
apenas a visão masculina da Ciência.
Se todo objetivo da Ciência, mesmo que à priori, seria o de alcançar sempre
algum grau de aproximação com o que se entende por “verdade(s)” livres de
preconceitos e ideologias ou influências políticas; este era por sua vez um pressuposto
falso e ultrapassado que estas críticas do feminismo e outros importantes pensadores da
epistemologia moderna foram capazes de irem desconstruindo e promovendo grandes
avanços numa epistemologia e concepções de Ciência mais modernas. O compromisso
de uma visão defensora da “Ciência Tradicional” com uma suposta “objetividade” que
ordenaria de modo neutro e imparcial a sua compreensão do social é uma farsa. Ela não
era socialmente neutra, nem em seus discursos, nem tampouco em seus efeitos
(HARAWAY, 1995). E a conclusão à que vai se chegando depois de todo esse percurso
é que todo conhecimento é datado e situado sócio-históricamente, ou seja, o
conhecimento é produzido com base nas práticas de cada grupo, considerando sua
perspectiva, sua localidade, o contexto em que se insere, a situação e posição social de
cada sujeito pesquisado etc. Isto é muito próximo àquela conhecida frase de Donna
Haraway sobre “saberes localizados”, e que nada mais é do que uma instigante
atualização de pressupostos marxistas sobre o que o próprio Marx falava sobre sermos
seres socialmente condicionados pelo momento histórico no qual estamos inseridos.
Todo sujeito cognoscente não pode se despir desses limites e parcialidade do que será
capaz de conhecer por mais que seja treinado para aprender a objetivar. Sempre a
subjetividade, as experiências vividas irão contribuir com o modo como iremos produzir
conhecimentos. E desde estes complexos debates é que se passou a construir uma outra
concepção de ciência diversa daquela que acreditava haver verdades únicas, fixas ou
absolutas.
Estas posturas críticas teóricas do Standpoint apresentaram resultados
importantes e demonstraram que as estruturas tradicionais da ciência também ofuscaram
as tramas de relações de poder do próprio campo científico e que continuaram
reproduzindo desigualdades de gênero. O remédio para essas inadequações, que
invisibilizaram, durante muito tempo, o lugar das mulheres em diferentes conjunturas e
em variados contextos históricos, de acordo com Harding, é começar a produzir
pesquisas mais engajadas, reconhecendo o ponto de vista do qual se parte, o que é uma
postura nova e diferente à da crença de uma Ciência Tradicional de uma “verdade”
única e neutra.
Importantes representantes desta perspectiva do Standpoint são Patricia Hill
Collins e Chela Sandoval. Nas suas obras há uma maior preocupação na produção de
conhecimentos construidos por grupos de mulheres que falavam de si mesmas, como
por exemplo, o caso de feministas negras americanas, ou africanas e sul- americanas,
dos chamados países em desenvolvimento. O Standpoint surge dentro de um campo de
teoria e epistemologia feminista, e se apresenta como um metódo de desconstrução dos
saberes androcêntricos da ciência que prescreve uma forma diferenciada de fazermos
pesquisa, permitindo que falemos a partir de nossos grupos de inserção social e, desse
modo, não apenas permitindo, como legitimando o que passemos a falar de nós mesmas
e nossos problemas de modo reflexivo e científico.
Os debates sobre os diferentes usos da perspectiva analítica do Standpoint
aparecem em diversos contextos de pesquisa, usado por teóricas (os) de diferentes
campos disciplinares e em contextos políticos diversos, (re) surgindo a partir de pré-
supostos orgânicos diferenciados em torno de grupos sociais distintos, configurando
novos debates. A partir destas perspectivas e utilizando a teoria do Standpoint como
colaboradora para as análises e críticas sobre a construção do conhecimento científico,
debruçamos-nos a seguir sobre algumas reflexões iniciais em torno do poder dentro do
Candomblé com a finalidade de melhor compreender e refletir sobre antigas questões já
debatidas no campo da ciência da religião e do gênero, tão caro a discussão
epistemológica da ciência.
Inspirada nesta proposta e perspectiva analítica do Standpoint, Sílvia Barbosa
tem como objetivos da sua tese tratar do seu campo de inserção social e de sua própria
participação religiosa como filha de santo do Ilê Asé Ogum Omimkaye, abordando as
relações de poder neste terreiro, buscando descrever e compreender sua organização
religiosa e política, realizando também outro tipo de análises sobre as
interseccionalidades que atravessam os sujeitos da sua pesquisa, as observando,
descrevendo e refletindo sobre as diferentes dinâmicas de raça, classe e gênero que
constituem os distintos membros desse terreiro, identificando como se manifestam e
exercem seus diferentes micro-poderes, resistências, tipo de alianças e conflitos
desenvolvidos nas diferentes relações internas, entre outros dos aspectos que irão ser
descritos e analisados na sua etnografia sobre as relações de poder (es) neste terreiro no
qual, desde 1995, se inseriu; tendo ajudado na organização da Associação “Fonte de
Vida” onde, durante três mandatos consecutivos, ocupou cargos de tesoureira, conselho
fiscal e presidenta e, atualmente, possui autorização oficial à pesquisa.
Para este tipo de análise também nos valemos da importante contribuição dos
estudos de gênero, da qual não podemos prescindir, já que as relações de gênero
permeiam absolutamente todas as relações sociais, sejam elas de classe ou étnicas e de
modo muito especial as deste terreiro, liderado por uma mãe-de-santo. Este ponto é de
fundamental relevância, pois se trata do nosso interesse e busca melhor aprofundar
nossa reflexão epistemo-teórica desde uma articulação entre categorias como as de
gênero, classe social, geração e raça que são tão importantes na configuração da
identidade da informante que analisaremos adiante e de modo especial na trama de
relações de poder na que ela está inserida. Segundo Saffioti (1992) “gênero é um campo
primordial dentro do qual ou por meio do qual o poder é articulado”. A construção do
gênero pode ser compreendida como um processo infinito de modelagem-conquista dos
seres humanos, que tem lugar na trama de relações sociais entre mulheres, entre homens
e entre mulheres e homens.
Em todas as sociedades conhecidas as mulheres detêm parcelas de poder “que
lhes permitem meter cunhas na supremacia masculina e que a subalternidade da mulher
não significa, necessariamente, ausência absoluta de poder” (SAFFIOTI, 1992). Na
prática do Ilê Asé Ogum Omimkaye, observamos que as mulheres ocupam posições de
destaque, de poder, que assinala um poder no singular que tem uma conotação política e
designa, basicamente, a figura central do poder que se estilhaça em fragmentos
múltiplos e é equivalente a influências onde as mulheres têm sua parcela (PERROT,
1992).
Com a finalidade de refinar nossa compreensão sobre as atribuições de poder e
seus usos no Candomblé Ilê Asé Ogum Omimkaye determinadas leituras foram
imprescindiveis. Autores que utilizaram a etnografia como elemento base de suas
pesquisas como Pierre Verger (1992), Roger Bastide (1971; 1978), Edson Carneiro
(1967), Ruth Landes (2002), Vivaldo Costa Lima (1977), Klaas Woortmann (1987),
Leni Silverstein (1979), Renato da Silveira (2006), entre outros, constataram a forte
presença e importância das mães-de-santo nos Candomblés, e alguns deles confirmam,
como Landes (2002) e Carneiro (1967), que boa parte dos terreiros, no início do século
XX, era dominantemente liderada por mulheres.
Nas próximas linhas apresentam-se as primeiras sistematizações de um estudo
etnográfico em curso, assim como uma análise preliminar da narrativa de mãe Dulce,
Yalorixá do Ilê Asé Ogum Omimkaye, quando entrevistada para iniciação da construção
da tese.
2 PRIMEIRAS IMPRESSÕES: A CHEGADA
No dia em que fui entrevistar, como pesquisadora, Mãe Dulce cheguei ao local
aproximadamente às treze horas e quinze minutos, do dia 11 de setembro de 2012. O
acesso à parte interna do imóvel se dá através de um portão lateral que chega até a
cozinha da casa, onde percebi que há uma mesa grande de madeira ao centro, rodeada
de bancos. A casa onde funciona o Candomblé é ampla, possui 15 cômodos, servindo de
moradia para a família biológica de mãe Dulce, sendo que, nas ocasiões festivas do
terreiro, esses espaços também são ocupados pelo povo-de-santo. O lugar de
funcionamento dos serviços religiosos compreende 01 sala de estar, 01cozinha, 04
banheiros, 12 casas de orixás e anexos em estagio de construção, além de um amplo
barração. Este terreiro possui sede própria onde, sobretudo em período de festas, circula
em média 130 pessoas. Destas, cerca de mais de ¼, são associadas, se constituem nos
freqüentadores (as) mais assíduos. Eles (as) se encontram envolvidos nas mais diversas
atividades do terreiro, tais como reuniões administrativas, celebrações religiosas.
O Ilê Asé Ogum Omimkaye é um terreiro de linhagem Ketu, localizado em
Cajazeiras, na Fazenda Grande III, no subúrbio de Salvador – BA, que existe há mais de
20 anos, de predominância e de liderança feminina. Este candomblé se traduz em
instituição solidamente estabelecida, apresentando características religiosas tradicionais
e modernas, sob a liderança da Yalorixá Dulce Silva Lino.
Mas, afinal, que mulher e poder é esse exercido pela mãe-de-santo deste
Terreiro?
Mãe Dulce tem 66 anos, de cor negra, heterossexual, aposentada, mas,
atualmente, exerce a função de Yalorixá; de nação Ketu, nasceu na cidade de Cachoeira,
interior da Bahia e, ainda bem jovem, migrou para Salvador. Possui o 2º grau completo,
é técnica em saúde, separada do primeiro cônjuge, e atualmente em união estável com
um segundo parceiro. Reside na Fazenda Grande III com seu marido e uma neta de
maior idade. É mãe biológica de 04 filhas e 02 filhos, frutos do primeiro casamento,
ambos residem em suas próprias casas, em outro endereço.
Nesse dia, ali, se encontravam seis pessoas sentadas à mesa, ainda degustando o
almoço feito em uma grande bacia de alumínio, contendo uma moqueca de peixe fresco
com ovos e temperos diversos. Todos conversavam tranquilamente, mãe Dulce, estava
sentada na cabeceira da mesa, trajando uma blusa leve de muitas cores e uma calça
vermelha, as duas outras mulheres que também estavam à mesa trajavam roupas típicas
do serviço religioso, compridas saias brancas, blusas brancas, turbantes na cabeça e seus
colares de contas – ambas cumprindo resguardo de obrigação de 07 anos. Trata-se das
egbomis de xangô Cátia e Mariana. Cátia é a filha caçula de mãe Dulce; filha de santo
do terreiro e aquela que sucederá a atual yalorixá, após sua morte. Mariana é filha de
consideração de mãe Dulce, filha de santo dela e do terreiro. É ministra de canto e
designada pelos orixás a abrir casa de caboclo. Além das filhas de santo em
desenvolvimento de obrigações religiosas, encontrava-se ali, servindo à mesa, Lucinha.
Representa a 2ª pessoa da casa, mãe responsável pelas cabeças d@s filh@s de santo do
terreiro; é a filha biológica mais velha de mãe Dulce e, atualmente, reside na Itália
(encontrava-se também em processo de obrigação ali). A quarta mulher, responde por
Elisa, é abiã em preparação à feitura. O rapaz se chama Cristiano, é filho de santo do
terreiro e responsável pelo manuseio das folhas do segredo. Portanto, todos com
ligações estreitas no serviço religioso da casa.
Em nossas primeiras observações, percebemos a apropriação da “casa” como
lugar de desenvolvimento do sagrado e do cotidiano. O sistema cultural dominante
define, de acordo com Woortmann, a “casa” como um espaço de domínio feminino,
definição essa da qual se apropriam as próprias mulheres pobres. O sistema dominante
define a “rua” como o domínio masculino e para que o homem seja senhor da “casa”,
deve primeiro ser “senhor” da “rua”. Assim, enquanto as mulheres possuem um
domínio próprio – a família – os homens não possuem nenhum. Num sentido mais
geral, a pobreza marginaliza a ambos, mas dentro do mundo da pobreza, as mulheres
têm seu lugar próprio, a casa (WOORTMANN, 1987. p. 292).25
Nestas perspectivas, observamos também que a “casa”, idéia concreta de espaço
físico ou de grupo doméstico e familiar simboliza para seus membros tanto uma
“referencia temporária”, um lugar de passagem, assim como uma “referencia
permanente”, reaproximando dimensões físicas-espaciais e sócio-culturais. A casa serve
de referência temporária para aqueles membros dependentes da matriarca, ou seja,
filhos biológicos e filhos de santo que ali circulam ou ali moram ou ainda que estão de
passagem e/ou circulam entre várias outras casas da sua rede. De acordo com Hita em
casas matriarcais, como a que estou aqui também descrevendo, estes indivíduos não
enxergam esta casa como sua, “para eles a casa não é própria, mas daquela que assume
a sua coordenação, o centro focal por onde transitam as relações e em que se concentra
o poder” (HITA, 2004. p. 211).
Logo após a chegada, fomos convidadas para sentar à mesa do almoço; na TV,
localizada em um canto da cozinha, passava o horário eleitoral gratuito, que chamando a
atenção de todos abriu oportunidade para uma breve conversa sobre as políticas na
Bahia e em Salvador. Mãe Dulce não tardou em falar dos candidatos que se
2 As teorias feministas descontroem a “casa” como “lugar” das mulheres, redimensionando os campos do
público e do privado e rompendo com suas fronteiras.
apresentavam para as futuras eleições3,6sabia o histórico politico de muitos e
apresentava uma opinião bem formada sobre as necessidades da cidade e das pessoas.
Comentou conosco do abandono que as religiões de matrizes africanas sofrem dos
poderes políticos, mencionando que ao precisarem dos votos os candidatos logo buscam
as comunidades dos Candomblés; no entanto, tem se mostrado incapazes de auxiliar as
mesmas quando estas precisam. A conversa sobre política não foi em tom de revolta, ou
frustração antes apresentou-se em tom de reflexão pelo momento político importante em
que a cidade de Salvador se encontra e pela força do voto que as comunidades possuem,
porém ainda não saberiam usar, de acordo com Dona Dulce.
3 PRIMEIROS DIÁLOGOS COM MÃE DULCE YALORIXÁ DO TERREIRO
Após o descanso do almoço em animada conversa sobre os candidatos políticos
da cidade, nos dirigimos para a parte dos fundos onde se encontra um grande e arejado
barração com muitas cadeiras, quadros nas paredes, representando as entidades do
Candomblé, tambores e símbolos cerimoniais, onde são celebradas as festas religiosas e
ocorrem alguns atendimentos. A conversa com mãe Dulce se deu neste local.
Neste primeiro contato foi privilegiada uma conversa mais leve sobre a história
de vida de mãe Dulce e suas experiências familiares, assim como sobre sua inserção no
Candomblé. Em principio, ela falava pouco e esperava minhas perguntas para ela
responder, mas, logo em seguida, a conversa fluiu mais naturalmente e as histórias
começaram a surgir sozinhas, sem eu ter que interromper ou perguntar.
Mãe Dulce contou que nasceu no interior da Bahia, na cidade de Cachoeira. Sua
experiência no Candomblé já conta 26 anos, nasce da sua tradição familiar; seu pai
biológico era pai de santo da nação Nagô, sua mãe da nação Angola, e ela nasceu na
nação Ketú, frisando com clareza que seriam estas 3 nações diferentes, “terras
diferentes”4.7 Após a morte de sua mãe biológica, quando tinha um ano de idade, mãe
3 Esse primeiro diálogo aconteceu dia 11 de setembro de 2012, faltando 26 dias para o primeiro turno das
eleições municipais na cidade de Salvador que ocorreram em 07 de outubro de 2012.
4 A população negra escravizada no Brasil pertencia a diversos grupos étnicos africanos, eram eles
Yorubás, Ewe, Fon, Gêges, Bantus etc. Em diversas regiões do país, a religião destes grupos tornou-se
semi-independente, evoluindo em diversas “divisões” ou nações de Candomblé, como Nagô, Angola,
Ketu. Essas “terras diferentes” se distinguem entre si pelo conjunto de divindades veneradas, pelo toque
do atabaque, pelas canções ritualísticas, e pelo idioma africano usado nos rituais. As 16 divindades mais
veneradas pela nação Ketu são: Exú, Ogum, Oxóssi, xangô, Oxalá, Ossanhe, Oxumaré, Lugunedé, Iewá,
Obá, Iansã, Oxum, Iemanjá, Nanã, Omolú e Oxumaré.
Dulce foi adotada por um de seus irmãos mais velhos e sua esposa, que também era sua
madrinha, casal que a registrou como filha aos quinze anos, às vésperas de seu
casamento, completou que seu pai biológico teve “ns” filhos e não registrou nenhum.
Mãe Dulce nos conta que estudava escondida do pai, com quem manteve
contato, e depois escondida do pai adotivo, com quem morava regularmente, ambos
eram contra que “mulher” estudasse e nos citou sorrindo que era para evitar “escrever
bilhetinhos para namorado”. Sua trajetória escolar apresenta-se concatenada com as
relações de poder destas gênero, pois nossa entrevistada lembra-se que após seu
casamento aos quinze anos seu pai adotivo disse a seu marido para não deixá-la estudar,
pois “onde já se viu mulher casada estudar”, ela complementa, “eu estudava na tora”5.8
Mesmo com todas as imposições e as dificuldades completou o ensino médio e
se formou como auxiliar de enfermagem, nos contou que sua mãe adotiva a ajudava a
estudar escondida, esperavam que o pai adotivo saísse para trabalhar para que ela
pudesse ir à escola. Depois do casamento nos contou que, por várias vezes, seu marido
levava as crianças pequenas para a escola e as deixava no meio da sala de aula para
tentar impedir que ela estudasse; o que não aconteceu, pois pelos registros da fala dela
possuía amplas redes de solidariedade feminina que estiveram presentes em sua
trajetória auxiliando-a e, quando acontecia de o marido levar seu filho pequeno “ai a
professora dizia: se preocupe não, segure aqui o menino dela aí, pra poder fazer o
trabalho dela”.
As redes de solidariedade podem ser observadas em diversos grupos de
mulheres, auxiliando a compor os diálogos entre os gêneros e dinamizando as relações
de poder existentes em sociedade. Esse processo foi observado pelas primeiras
feministas negras que auxiliaram a refletir sobre a opressão das mulheres em suas mais
variadas formas. Mãe Dulce, articulada com as teias de solidariedade e utilizando destes
arranjos, suplantou também muitas das suas dificuldades com elas, e com seu apoio deu
prosseguimento aos seus estudos e formação.
Os movimentos feministas negros de acordo com Luiza Bairros (1995)
apontaram intersecção de raça, gênero e classes, ampliando as discussões e dando novo
fôlego para os debates, evidenciando as dimensões do racismo e do sexismo e da
inseparabilidade de ambas categorias numa análise do feminismo negro. Então, o que
poderia existir em comum entre mulheres de diferentes grupos raciais e classes sociais
5 A palavra “tora” é uma gíria popular baiana, de especificidade soteropolitana, que no termo empregado
por mãe Dulce significa “dificuldade extrema”.
não seria apenas sua opressão, mas a luta para estabelecer soluções comuns. Pois, do
ponto de vista feminista, não existe uma identidade única, pois a experiência de ser
mulher se dá de forma social e historicamente determinada (BAIRROS, 1995).6 9
As relações de poder emergem de nítidas construções da história de vida de mãe
Dulce, revelando que dentro das emergências simbólicas da dominação masculina, um
diálogo constante é travado entre os gêneros, propiciando disjunções e estratégias mais
elaboradas para se contrapor ao poder estatuído. Estudar não seria possível, para mãe
Dulce, por imposições de seu pai adotivo que em contrapartida também era seu irmão
mais velho e chefe da casa, porém com o apoio de sua mãe adotiva conseguia burlar as
regras desse poder masculino, e estudar escondida, se apoiando no poder e solidariedade
da mulher que ocupava o lugar de esposa do chefe da casa e sua mãe adotiva. Após seu
casamento, aos quinze anos, seu marido também dificultava seu acesso à escola,
utilizando como uma das estratégias de impedimento levar para a sala de aula o filho
ainda muito pequeno. Mãe Dulce, contando com uma rede solidária, composta por
professora e colegas de classe, conseguiu flexibilizar as relações de dominação agora
desse marido, resistindo às imposições e desejos dos homens da sua vida, através das
relações de poder e estabelecendo normas de conduta e vivência que propiciaram, de
algumas maneiras, sua permanecia na escola.
Para Bourdieu (1998) o poder é representado de forma simbólica constituído
pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do
mundo e deste modo à ação sobre o mundo. Segundo o autor, o poder simbólico não
reside no “sistema simbólico” em forma de uma força oculta, mas se define numa
relação determinada e é por meio desta que se exerce o poder onde alguns dominam e
outros estão sujeitos. A concepção do ser “pai” nas relações familiares de mãe Dulce
deu a seu irmão mais velho, que lhe adotou como filha, a pretensa gerência sobre sua
vida prática, social e cotidiana, determinando diretrizes a serem seguidas assim como os
campos em que poderia atuar, se relacionar e conviver, campos esses fragmentados e
estendidos pela mesma a partir de sua conduta que burlava a imposição das regras. Na
fala de mãe Dulce isso aparece claramente quando a mesma retifica que estudava
6
Maria Gabriela Hita em seu artigo “Igualdade, identidade e diferença(s): feminismo na reinvenção de
sujeitos” aponta diferentes momentos das teorias feministas refletindo como diversos grupos sociais de
mulheres acrescentaram os debates sobre as desigualdades e refletiram sobre as construções dos sujeitos,
perpassando por desconstruções da “mulher” universal, dos conceitos de identidade e de igualdade. Cf. :
HITA, Maria Gabriela. Igualdade, Identidade e Diferença(s): Feminismo na re-invenção dos sujeitos. In:
Heloisa Buarque de Almeida et. al. (orgs.) Gênero em Matizes. Bragança Paulista. EDUSF, 2002. pg.
319-351
escondida, pois seu pai adotivo não permitia; no entanto, outra observação de Bourdieu
fica evidente na fala de mãe Dulce, que o poder é representado pela força do campo
social e das relações com o pai. Temos então o mundo simbólico articulado por mãe
Dulce se opondo ao mundo simbólico articulado pelo pai – onde as duas visões de
mundo passam a se confrontar a partir das instâncias de poderes e posições destes dois
sujeitos que são distintos, e que se transformam e promovem uma ação sobre o mundo,
nessa relação e interação.
Mãe Dulce não entrou de “imediato” no Candomblé, antes disso, conta ela que
foi cristã (evangélica da Assembleia de Deus) por dois anos “mas o negócio não
funcionou não”, a partir deste momento, de acordo com mãe Dulce “começou a
aparecer os problemas de Orixá”:
“[...] comecei a me sentir mal ter vários problemas... é de saúde e os
médicos não diziam... diziam que eu não tinha nada assim o medico
psiquiátrico né eu dizia que não tinha nada que passasse a dor de
cabeça que eu tinha... dor de cabeça terrível e ai é os médicos diziam
Dulce você não tem nada... mas eu não durmo é uma dor de cabeça
terrível andava com o rosto inchado essa situação toda que surge
quando a pessoa tem problema espiritual não cuidado, ai eu tive que ir
para frequentar o Candomblé, foi quando foi dito que por questão
de...da minha situação de família que todos eram do Axé eu tinha que
cuidar do Orixá...ai eu fui pra uma casa em Tancredo Neves que foi
uma senhora, uma vizinha minha que me levou...que o médico falou
assim: olhe eu vou lhe dar essas medicações...você agora vai usar seis
tipos de remédios...se você não ficar boa eu vou lhe internar...era dor
de cabeça terrível, era muita dor de cabeça minha filha eu arrumava a
cabeça na parede [...]”
Mãe Dulce deixa muito claro em sua fala as relações de sua história de vida com
a sua religiosidade, atribuindo a cura de seu problema de saúde, até aquele momento
“misterioso” para os médicos, com a sua entrada em definitivo no Candomblé. Para mãe
Dulce a cura só foi possível quando passou a aceitar os Orixás e a se dedicar aos
serviços religiosos, dando início a sua trajetória como “zeladora de Orixás” em uma
casa de Tancredo Neves, Beirú. Durante seus problemas de saúde dizia:
“[...] meu Deus eu não sou maluca, eu não estou maluca eu sinto que
eu não sou maluca eu vejo tudo, eu faço tudo, mas esse negócio não tá
certo... E ai essa Yalorixá, a minha mãe de santo que eu venero muito
ela já morreu né, há 14 anos, porém eu amo como se ela tivesse viva
porque foi quem me deu as mãos... Então ela disse ó minha filha você
tem que cuidar da sua cabeça se não você vai morrer maluca, porque
eu tive uma irmã que morreu maluca porque ela não quis se cuidar lá
em Cachoeira... Ai eu comecei a me cuidar no Axé, fazer os
procedimentos que tinha que ser feito e depois disso eu fiquei boa
[...]”
Mãe Dulce considera que o seu ingresso no Candomblé se deu aos 29 anos,
quando começou a frequentar a casa de Tancredo Neves para seus primeiros cuidados
de saúde e religiosos, nos relata que os remédios dos médicos nunca surtiram efeito e
que tinha certeza que morreria “maluca” se não houvesse se cuidado através do Axé.
Sua admiração pela Yalorixá Eunira Costa Oliveira que começou seus primeiros
cuidados e que lhe iniciou no Candomblé é evidente; considera que a mesma representa
sua mãe, pois é uma figura viva em sua memória a quem tem respeito e laços de afeto
muito grandes.710
A partir destas falas podemos perceber as dimensões que o Candomblé como
comunidade religiosa pode atingir, os laços que se estabelecem entre “filhos”, “filhas” e
participantes das casas; os laços se estabelecem através de afetos recíprocos e da grande
teia de solidariedade que se forma para resolução de diversos problemas, dentre eles os
de saúde. O apoio da Yalorixá, mãe de santo de mãe Dulce, ultrapassou os limites do
auxilio de saúde, pois, de acordo com os relatos desta, os laços que se estabeleceram
entre “mãe” e “filha” foram como se a mesma houvesse sido filha biológica. Dona
Dulce conta que sua mãe de santo tinha alguns problemas de saúde dentre eles certas
dores na coluna, para ajudar nos serviços religiosos ela, mãe Dulce, ficava várias horas
no terreiro para auxiliar no preparo dos alimentos, na limpeza do espaço e para costurar
as roupas cerimoniais com a finalidade de poupar sua “mãe” das dores na coluna.
É neste contexto que podemos observar princípios de famílias baseadas na
“matrifocalidade”, onde a mãe de santo assume outro significado. Olhado a partir de um
mais amplo sentido da organização social, alguns terreiros podem ser considerados
comunidades religiosas centradas no poder da “mãe” ou em uma “matrifocalidade”. Em
outras instâncias, podemos, também, considerar que esta característica marca grupos
empobrecidos na Bahia, como clarificou Woortmann, as mulheres neste contexto detêm
a maior parte do controle da casa, desempenham um papel fundamental sobre os
recursos econômicos da família e integram a família em redes de parentesco
(WOORTMANN, 1987. p. 289).
Outro ponto importante a ser destacado é que as relações de parentesco nas
famílias negras perpassam pela ordem estrita dos laços maternos, de acordo com
Marcelin (1999, p. 44), o sangue estabelece o acesso ao parentesco sendo o ciclo
completo a partir dos laços de consideração mútua, estas instâncias, porém, sendo
7
Mãe Dulce só considera sua entrada no Candomblé a partir de sua aceitação e frequência no terreiro, se
dedicando ao serviço religioso inteiramente e sem a intervenção de outras religiosidades.
articuladas em torno da “mãe”. Os vínculos de parentesco essenciais para a gerência da
família passam pelos dados biológicos do símbolo materno, e o “[...] que dá conta desse
laço é o cordão umbilical que liga os irmãos através da mãe. É pela mãe que o
parentesco entra no mundo e é pela mãe que ele sairá (se tiver de sair)”.
A história de vida de mãe Dulce demonstra que antes de receber o título de
“mãe” tinha tido antes uma “mãe”, sua Yalorixá que lhe cuidou e lhe iniciou no
Candomblé, pessoa através da qual e pela qual suas atribuições e responsabilidades
como filha e depois como mãe se constituíram.
Podemos considerar que a palavra “mãe” e a apropriação desta, simboliza dentro
do Candomblé a própria investidura do poder, pois é a “mãe de santo” que carrega as
determinações dadas pelos Orixás para reger sua comunidade e deliberar as ações
necessárias para que a mesma permaneça; em contrapartida a investidura do poder sobre
a “mãe” dá à comunidade a certeza do auxílio da sacerdotisa nos momentos de
necessidade, pois a palavra “mãe” por si só carrega dentro de si as atribuições do
cuidado, as ligações simbólicas existentes socialmente entre mães e filhos (as).
Para a antropóloga feminista Leni Silverstein (1979):
A “força” da mãe-de-santo é demonstrada por sua habilidade de
mediação entre as pessoas e os Orixás. Cabe a ela resolver todas as
questões relativas aos santos. Sua força aparece, quando jovem no
terreiro, como uma qualidade inata, uma herança dos deuses, e uma
vez percebida (por outra mãe-de-santo) esta força é cultivada e
consideravelmente ampliada por um treinamento longo, árduo e
cuidadoso, em ambos os níveis espiritual e administrativo... A mãe-
de-santo é então uma mulher “escolhida”, especialmente indicada
pelos Orixás e que herdou e desenvolveu certas características de
personalidade (tais como carisma, personalidade forte, inteligência
aguda, autoridade, sensibilidade, capacidade de mando) que lhe
facilitam a direção de seu terreiro e seu relacionamento com os
Orixás. Através do controle do conhecimento das tradições e segredos
do Candomblé e de sua profunda experiência com os mesmos, a mãe-
de-santo efetivamente desenvolve seu poder e autoridade para
interpretar, intervir e trabalhar com os Orixás. Conhecimento, de
acordo com a teoria do culto do Candomblé, é essencial para o serviço
adequado dos deuses e para a aquisição do status e prestígio que se
adquire com o tempo e a experiência. A mãe-de-santo é então o
repositório personificado de todos os elementos que compõem a
tradição oral, assim como da conduta simbólica mais importante junto
aos Orixás (SILVERSTEIN, 1979; p.48).
Com base nessa visão de poder religioso definido pela autora sobre a Yalorixá
“qualquer esforço de correlacionar o que ocorre dentro de um terreiro com o mundo
exterior, este é raramente feito, expresso pela posição de classe, de raça ou de política
dos participantes que afetam a evolução corrente da vida dos cultos”. Dessa forma, o
Candomblé tem sido estudado principalmente “de dentro”, e como um domínio isolado,
dando a ideia de que “a mãe-de-santo e a família-de-santo vivem num vácuo, onde tudo
que é essencial para uma existência material e espiritual satisfatórias é o favor dos
deuses” (SILVERSTEIN, 1979; p. 148-149).
Edison Carneiro (1948, p.144) propõe que “o Candomblé é um ofício de mulher
– essencialmente doméstico, familiar, intramuros, distante das lutas em que se debatem
os homens, à caça do pão de cada dia”. Neste sentido, o poder da mãe-de-santo está
situado, para ele, dentro da esfera doméstica, e é tão somente no domínio da família-de-
santo que a mãe-de-santo reina suprema. Neste caso, o poder religioso se transforma
apenas em poder doméstico. Para Leni Silverstein (1979), Edison Carneiro enfatiza o
papel central da mulher no Candomblé, mas sustenta uma atitude patriarcal generalizada
de que o lugar da mulher é no lar. Ele reforça uma noção romântica e etnocêntrica de
que a família-de-santo não têm vínculos com a esfera política do homem, a esfera onde
a principal batalha pela sobrevivência é sustentada. Ele não vê o fato de que “dentro da
própria organização social do Candomblé existem os mecanismos através dos quais a
família-de-santo sobrevive, se sustenta e cresce, isto é, se reproduz socialmente”
(Silverstein, 1979, p. 150).
Ruth Landes proporcionou os primeiros suportes teóricos para pensarmos o
poder das mulheres nos Candomblés da Bahia, seus interesses nas questões raciais
entrecortadas pelas relações de gênero e sexualidade nos propiciaram espraiar mais
amplamente os cultos religiosos de matrizes africanas através de novas perspectivas.
Landes foi uma das primeiras antropólogas a abordar, através de estudos etnográficos, o
Candomblé e a cultura-afro como possuidores de dimensões não homogêneas; abrindo
novas fronteiras na antropologia da religião afro-brasileira, e trouxe-nos a este novo
contexto com uma riqueza e densidade de descrições etnográficas que partem mais da
complexidade e fluidez, em um contínuo movimento da realidade social; situando a
cultura afro-brasileira de um modo inovador e historicamente fundamentado. A autora
apontou determinadas singularidades do Candomblé baiano, evidenciando o poder das
mulheres em seus diferenciados contextos e o aumento gradual na participação de
mulheres como mães de santo nos terreiros mais tradicionais (LANDES, 2002, p. 351).
Para Landes:
Foi nas regiões latino-americanas que as mulheres negras encontraram
maior reconhecimento do seu próprio povo e dos senhores. Uma
distinta sacerdotisa da Bahia chamou a sua cidade a “Roma Negra”,
devido à sua autoridade cultural; foi aí que as mulheres negras
atingiram o auge de eminência e poder, tanto sob a escravidão como
após a emancipação. Controlando os mercados públicos e as
sociedades religiosas, também controlaram as suas famílias e
manifestaram pouco interesse no casamento oficial, por causa da
conseqüente sujeição ao poder do marido. As mulheres conquistaram
e mantém a consideração dos seus adeptos masculinos e femininos
pela sua simpatia e equilíbrio, bem como pelas suas capacidades. Não
somente não há noticia de rejeição por parte dos homens das
atividades das mulheres, como indícios surpreendentes da sua estima
pelas matriarcas surgem nos esforços de certos homossexuais passivos
em penetrar nos sacerdócios (LANDES, 2002, p. 351).
Adentrando mais nas histórias de sua vida, mãe Dulce nos contou que precisou
fazer escolhas difíceis, ao nos falar sobre seu casamento revelou que casou-se “com
toda a pompa e circunstância”, com noivado, casamento na igreja e festa. Mas que
depois que entrou no Candomblé “meu marido me deixou por causa disso, alias eu o
deixei por causa do Axé”:
“[...] isso é um fato muito interessante porque ele não gostava né a
família dele é espirita e ele não aceitava eu no Axé ele dizia que era
coisa de gente ruim coisa de gente de baixo nível estas coisas todas
que as pessoas falam... falavam e ainda falam por ai então ele não
aceitava... quando chegou um certo tempo eu tive uma revelação
assim em sonho né... o Orixá dizia pra mim que eu ia morrer e meus
filhos iam ficar todos ai, e eu via a minha cabeça toda cheia de água...
aquela água purulenta... então eu falei é eu tenho que tomar a decisão
quando eu procurei saber com os mais velhos [disseram] seus Orixás a
partir de hoje não querem mais que você volte pra sua casa...onde eu
morava com meu marido e mais meus seis filhos...e eu não fui...e a
partir desse dia eu deixei ele em prol da minha saúde e meus filhos e
se eu morresse quem ia cuidar de meus filhos? Foi uma luta pelo Axé,
uma luta muito grande que eu tive, uma resistência [...].”
Podemos observar nas falas de Dona Dulce que desde seus primeiros passos no
Candomblé a discriminação já estava presente em seu cotidiano dentro de sua família e
em seu local de trabalho, ela elenca que a separação do marido foi decidida por
compreender que o culto religioso em sua vida era de extrema importância não se
sentindo constrangida em dizer que deixou seu marido por causa do “Axé”, ou seja, sua
compreensão do mundo religioso redimensionou suas práticas cotidianas, dando novos
significados de mundo e reelaborando seus conceitos de família, saúde, filhos e
existência.
É importante observar que para Geertz (1978), os indivíduos, por meio da
religião, adquirem certas disposições e experienciam certos atos e sentimentos,
construindo uma maneira muito própria de “estar no mundo”, de compreendê-lo e de se
posicionar frente a ele. Neste sentido, podemos inferir que a religiosidade do
Candomblé não se diferenciaria apenas em termos de cosmologia, mas também em
termos das disposições emotivo-efetivas, e do ethos que adeptos logram interiorizar.
Dentre as religiões, a do Candomblé, sem dúvida, possui um ethos e uma “visão de
mundo” bastante particular, tendo por fundamento a busca da conservação e do
crescimento constante da força vital; enquanto fonte inesgotável da vida e de todas as
felicidades.
Os conflitos foram resolvidos a partir de reconstruções simbólicas do mundo
agregadas as novas dimensões de poder. Mãe Dulce, antes, se sentindo sem nenhuma
investidura social de poder, manteve-se com o marido; mas, ao deixá-lo, acabou por
acessar as relações de poder que a religiosidade lhe proporcionava através do
Candomblé, exercendo as possibilidades que se apresentavam a partir do novo mundo
em que se inseria.
Vale ressaltar que os conflitos dos cônjuges dimensionados pelas compreensões
do sagrado, onde o marido era espirita e a mulher de religiosidade afro descendente
demonstra relações de poder que são entrecortadas por categorias de raça/etnia/gênero.
Essa análise se aporta na fala de Dona Dulce quando relatou que seu marido lhe dizia
que o Candomblé era “coisa de gente ruim... coisa de gente de baixo nível”; estas falas
remetem as crenças sociais embutidas em um discurso determinado pelo cristianismo,
desde tempos da escravidão que colocou a religiosidade dos negros como manifestações
de baixo nível, primitivas e ligadas a possessões demoníacas; estas crenças nos campos
das subjetividades colocam em conflitos sujeitos a partir de sua inserção religiosa e
proporcionam novos limites para o exercício e para a compreensão do poder das
mulheres no Candomblé.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A escolha por incursionar numa pesquisa de caráter etnográfico tem sido uma
decisão acertada para enfrentar o tema da nossa pesquisa e elaborar aqui nossos
primeiros experimentos de refletir, escrever e teorizar sobre o campo observado e
vivenciado, visto que é a partir das falas dos nossos informantes que conseguimos situá-
los como sujeitos historicamente e socialmente e, desse modo, compreendendo melhor
as relações nas que eles estão inseridos..
As falas da Yalorixá Dulce são muito ricas, e se apresentam dentro de contextos
situados historicamente que foram por ela trazidos a partir de suas memórias, e
importantes experiências de vida que revelam alguns insights sobre relações de poder
que a marcaram, dialogando e se posicionando frente a elas e entre si e sendo
modificadas a partir da compreensão de mundo e de práticas cotidianas que ela tem do
seu passado. A partir de nossos primeiros contatos percebemos que as relações de
gênero são uma categoria destinada a abranger um conjunto complexo de relações
sociais, bem como a se referir a um conjunto mutante de processos sociais
historicamente variáveis.
Gênero é o instrumental analítico mais apropriado para a percepção das relações
sociais de poder entre diferentes sexos e para explicar como ocorre nesta situação uma
inversão de papeis sociais, isto é, um de maior protagonismo feminino em uma
sociedade ainda marcada pelos princípios de dominância masculina. O gênero, tanto
como categoria analítica quanto processo social, é relacional. As relações de gênero são
processos complexos e instáveis (ou totalidades temporárias na linguagem dialética)
constituídos por e através de partes inter-relacionadas. Essas partes são
interdependentes, cada parte não tem significado ou existência sem as outras. Por isso, e
desta concepção mais dinâmica e relacional de gênero nos interessa não só estudar a
mulher e líder deste terreiro, mas, também, as relações de gênero que se desenvolvem
no terreiro, pela identificação dos distintos papéis que homens e mulheres exercem,
cargos que ocupam e sua posição nesta estrutura hierarquizada do candomblé.
Temos total entendimento de que qualquer posição feminista será
necessariamente parcial. Nenhuma de nós pode falar pela “mulher” porque tal pessoa só
existe dentro de um conjunto específico de relações (já em termos de gênero) - com o
“homem” e com muitas mulheres concretas e diferentes (HARAWAY, 1995). Essa
posição supõe que os oprimidos têm uma relação privilegiada (e não apenas diferente) e
habilidade para compreender uma realidade que está “lá fora,” esperando por nossa
representação. Ela também pressupõe relações sociais de gênero nas quais há uma
categoria de pessoas fundamentalmente semelhantes, ela supõe a diferença que os
homens atribuem às mulheres. Supõe que as mulheres, diferentemente dos homens,
podem estar livres de determinação em função de sua própria participação em relações
de dominação como aquelas oriundas de relações sociais de raça, classe, homofobia,
lesbofobia e religião.
Portanto, não há força ou realidade fora de nossas relações sociais e atividades
que nos livrará de parcialidade e diferenças. Nossas vidas e alianças dizem respeito
àqueles que buscam mais profundamente descentralizar o mundo – embora devamos
nos reservar o direito de suspeitar igualmente de seus motivos e visões. As teorias
feministas têm a função de nos estimular a tolerar e interpretar a ambivalência, a
ambiguidade e a multiplicidade, bem como de expor as origens de nossas necessidades
de impor ordem e estrutura, não importa quão arbitrárias e opressivas essas
necessidades possam ser (FLAX, 1991).
A LOOK ETHNOGRAPHIC: FIRST ENCOUNTERS WITH THE YALORIXÁ
ILÊ ASÉ OGUM OMIMKAYE
Abstract: Using as a point of reflection Standpoint Theory, we dare talk about power
relations in Candomblé, prisms and their variations intersected by the dynamics of race,
class, gender, specifically spatial area as having the yard Ilê Asé Ogum Omimkaye. The
condition scientist of religion, one of the authors, engaged in research on the
Candomblés motivated the first ethnographic observations aiming envision a power that
emanates from knowing safeguarded by the “holy people” and re-created in the
individual and collective memory of the yard Ilê Asé Ogum Omimkaye. We went to the
field to try to locate and understand the power of the religious establishment in their
yards and forming the various dynamics of empowerment “mothers-of-saint” as leaders
of this religion and this power. The text corresponds to our first ethnographic
observations from the first lines of Mother Dulce, Yalorixá Ilê Asé Ogum Omimkaye.
Keywords: Power. Gender. Feminism. Candomblé.
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