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SUMチRIO UTOPIA REVISTA ANARQUISTA DE CULTURA E INTERVEN O 9 Primavera-Ver 1999 800$ (isento de IVA) DIRECTOR J. M. Carvalho Ferreira COLECTIVO EDITORIAL Carlos Nuno, Guadalupe Subtil, João Nicolau, J.M. Carvalho Ferreira, José Luís Félix, José Tavares, Mário Rui Pinto, Rui Vaz de Carvalho. COLABORADORES Alberto Hernando, Alberto Pimenta, Alfredo Gaspar, Armando Veiga, Arno Gruen, Attila Toukkour, Carlos Díaz, Charles Reeve, Edgar Rodrigues, Edson Passetti, Francisco Madrid, Herculano Lapa, Idílio Santos, José Janela, Jorge Silva, Júlio Henriques, Mari Oly Pey, Maria Pereira, Miguel Serras Pereira, Mimmo Pucciarelli, Quin Sirera, Roberto Freire. ILUSTRADORES Teresa Câmara Pestana, Francisco Pisco. ARRANJO GRÁFICO João Nicolau, José Tavares PROPRIEDADE Associação Cultural A Vida Publicação semestral registada no Ministério da Justiça com o nº118 640 IMPRESSÃO Gráfica 2000 · Cruz Quebrada REDACÇÃO E ASSINATURAS Apartado 2537· 1113 LISBOA Codex · Portugal INTERNET http://www.azul.net/m31/utopia CAPA José Tavares, «Sem título» — GUACHE S / PAPEL Editorial 2 E DUARDO G ALEANO A CONFISSテO DAS BOMBAS 5 J LIO H ENRIQUES DESINTEGRAIS 8 A LEXANDRE S AMIS Wlliam Morris e o "novo" esp叝ito utico 12 C HRISTIAN F ERRER A Moderna Heres 27 J OS T AVARES AO TRABALHO! 33 J. M. C ARVALHO F ERREIRA E T ORCATO S EP LVEDA Entrevista a Ac當io Tom疽 de Aquino 34 J OS L U S F ELIX PELO TRABALHO NOS PERDEMOS 42 J.M. C ARVALHO F ERREIRA O TRABALHO E O SINDICALISMO NO LIMIAR DO SノCULO XXI 51 J LIO H ENRIQUES Abrilada: vinte e cinco anos de sombras 66 C HARLES R EEVE Episios da modernidade portug uesa 70 R AFAEL D ION SIO Um Terrorista Cultural do S馗ulo II 92 A DELAIDE G ON ALVES E J ORGE S ILVA Maria Lacerda de Moura - Uma anarquista individualista brasileira 95 M ARIA L ACERDA DE M OURA FEMINISMO? CARIDADE? 101 C ARLOS C SAR P ACHECO Apocalipse de Carlos 106 Livros e Leituras 115 Publica 鋏es Recebidas 121

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S U M チ R I OU T O P I AREVI STA ANARQU ISTA DE CULTURA E INTERVEN ヌ テO

9Primavera-Ver 縊 1999

800$(isento de IVA)

DIRECTORJ. M. Carvalho Ferreira

COLECTIVO EDITORIALCarlos Nuno, Guadalupe Subtil, João Nicolau,

J.M. Carvalho Ferreira, José Luís Félix,José Tavares, Mário Rui Pinto,

Rui Vaz de Carvalho.

COLABORADORESAlberto Hernando, Alberto Pimenta, AlfredoGaspar, Armando Veiga, Arno Gruen, Attila

Toukkour, Carlos Díaz, Charles Reeve, EdgarRodrigues, Edson Passetti, Francisco Madrid,

Herculano Lapa, Idílio Santos, José Janela, JorgeSilva, Júlio Henriques, Mari Oly Pey, Maria

Pereira, Miguel Serras Pereira, MimmoPucciarelli, Quin Sirera, Roberto Freire.

ILUSTRADORESTeresa Câmara Pestana, Francisco Pisco.

ARRANJO GRÁFICOJoão Nicolau, José Tavares

PROPRIEDADEAssociação Cultural A Vida

Publicação semestral registada no Ministério daJustiça com o nº118 640

IMPRESSÃOGráfica 2000 · Cruz Quebrada

REDACÇÃO E ASSINATURASApartado 2537· 1113 LISBOA Codex · Portugal

INTERNEThttp://www.azul.net/m31/utopia

CAPAJosé Tavares, «Sem título» — GUACHE S / PAPEL

E d i t o r i a l 2

EDUARDO GALEANO

A CONF ISSテO DAS BOMBAS 5

J レL I O HENR IQUE S

D E S I N T E G R A I S 8

ALEXANDRE SAM I S

Wll iam Morr is e o "novo" esp叝ito utico 1 2

CHR I S T I AN FERRER

A Moderna Heres僘 2 7

JOS ノ TAVARES

AO TRABALHO! 3 3

J. M. CARVALHO FERRE I RA E TORCATO SEP レLVEDA

Entrev i s ta a Ac當io Tom疽 de Aquino 3 4

JOS ノ LU ヘS FELIX

PELO TRABALHO NOS PERDEMOS 4 2

J .M. CARVALHO FERRE I RA

O TRABALHO E O S IND ICALISMO NO LIMIAR DOSノCULO XXI 5 1

J レL I O HENR IQUE S

Abri lada: vinte e cinco anos de sombras 6 6

CHARL E S REEVE

Ep i sios da modern idade portuguesa 7 0

RAFAE L D I ON ヘS I O

Um Terror i sta Cu ltura l do S馗ulo I I 9 2

ADELA I D E GON ヌALVES E JORGE S I LVA

Mar ia Lacerda de Moura - Uma anarquistaind iv idual i s ta bras i le i ra 9 5

MAR IA LACERDA DE MOURA

FEMIN ISMO? CAR IDADE? 101

CARLOS C ノSAR PACHECO

Apocal ipse de Car los 106

Livros e Leituras 115

Publica鋏es Recebidas 121

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Utopia 92

Os tempos da pós-modernidade indiciam a tragédia humana da nossa impotência. Amediatização da guerra dos balcãs nada mais personifica que o reino do capital e do Estado àescala mundial. Esta guerra, como todas as guerras, serve plenamente os desígnios daquelesque vivem a expensas da morte, do genocídio, da miséria e da desgraça dos outros. A outraguerra civil que atravessa a vida quotidiana da gente que se chama gente nada mais é do que aluta pela sobrevivência imediata. Transformados em elementos de competição e de concorrên-cia, produzindo e consumindo mercadorias, são objectos manipulados e controlados à distânciapela força do dinheiro, do mercado e do poder mediático.

Quando nos querem fazerentender que devemos traba-lhar, que devemos ser gentehonesta e patriota, que deve-mos lutar pelo poder, pelariqueza, que devemos guerre-ar os ditadores, a corrupção,a miséria e a pobreza, que pre-tendem de nós? Pretendemque nos transformemos em ci-dadãos exemplares, quevamos à missa todos os do-mingos, que tenhamos osimpostos em dia, que vejamosa televisão todos os dias, quevotemos nos próximos actoseleitorais?

Não!, senhores que do-minam o mundo. Nenhumexército, nenhum patrão, ne-nhuma religião, nenhumEstado, nenhum mercado valea vida de um ser humano, nemtampouco foram criados paranos salvar. A nossa desgraça,como aliás a vossa, é o resul-tado da nossa miséria e danossa impotência. Os condi-cionamentos de uma vidavegetativa e animal determi-nada pela lógica cega do

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Utopia 9 3

progresso e da razão, tornou-nos em seres humanos acéfalos, sem memória histórica, sem sen-tido de vida. Hoje, quase tudo o que os indivíduos fazem, pensam, sentem, orienta-se no sentidoda morte, da violência e do desespero.

Será que o nosso passado, o nosso presente e o futuro não nos permite outro sentido paraas nossa vidas e para as sociedades? Será que caminhamos a passos largos para uma novabarbárie? Enfim, será que nada podemos fazer para inverter esta tragédia que nos afecta comoseres naturais e seres sociais? Por mais utópicos que possam ser as suas premissas, os seusprincípios e a suas práticas, mais do que nunca, a anarquia permite-nos mobilizar as nossasforças para construir uma outra vida e uma outra sociedade.

Os nossos antepassados que foram derrotados pela força das armas e do dinheiro, de-monstraram, inequivocamente, que tinham razão no passado, quando se revoltaram contra adominação e a exploração do homem pelo homem. Hoje, os tempos são outros. O Estado, ocapital e o mercado complexificaram-se como entidades abstractas e despóticas, mas não deixa-ram de ser aquilo que sempre foram: elementos de negação da liberdade, da criatividade, dafraternidade e da solidariedade que fundamentam a verdadeira essência dos indivíduos e dasociedade.

Assim sendo, entre as várias hipóteses que se nos apresentam, para aqueles que anseiamainda pela emancipação individual e social, só existe um caminho: resistir contra este tipo deagonia que dilacera as nossas vidas. Como seres sociais, é imperioso construir um espaço devisibilidade social que integre novamente os desígnios da luta pela anarquia. Esse sentido dahistória da humanidade continua por realizar e só depende de nós.

sendo, todo o leitor que se queira tornarcúmplice deste projecto, como assinante darevista Utopia, deve preencher o cupão abaixo(ou escrever uma carta com os dados men-cionados) e enviá-lo para a nossa morada.

Necessitamos de aumentar o número deassinantes. Com um número significativo deassinaturas é possível manter uma actividadeeditorial regular e simultaneamente encurtar ohorizonte temporal da sua periodicidade. Assim

Nome

Morada

Assinatura anual (2 números) Portugal 1500$

Estrangeiro 2000$

Pagamentos através de dinheiro, cheque ou vale postal à ordem de «Associação Cultural A Vida»

Apartado 2537 · 1113 Lisboa codex · Portugal

ASSINATURAS

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Utopia 9 5

1. Os Estados Unidos e os seus alia-dos da NATO estão descarregando umdilúvio de mísseis sobre a Jugoslávia,ou sobre o pouco que resta do que foi aJugoslávia.

Segundo a versão oficial, os atacan-tes actuam comovidos pelos direitos dopovo albanês do Kosovo, vítima de uma“limpeza étnica” empreendida pelo go-verno sérvio de Milosevic. No dizer dopresidente Clinton, as democracias oci-dentais não podiam permanecer debraços cruzados ante esta” inadmissívelcatástrofe humanitária”.

A mais feroz “guerra de limpeza ét-nica” e a mais “inadmissível catástrofehumanitária” da história das Américasno século XX, ocorreu na Guatemala emdécadas recentes, sobretudo nos anos oi-tenta. Os indígenas guatemaltecos foramas principais vítimas desta matança,houve cem vezes mais mortos que noKosovo, e o dobro dos desalojados. Na suarecente viagem pela América Central, o pre-sidente Clinton pediu perdão pelo apoio queo seu país prestou aos militares exterminado-res de índios, que foram treinados, armados eassessorados pelos Estados Unidos. Porque éque Clinton não exige a Milosevic que apli-que esta doutrina de sucesso do lavar dasmãos? Os bombardeamentos poderiam cessarem troca de um compromisso formal: no ano

de 2012 ou 2013, por exemplo, o presidenteda Jugoslávia pediria perdão aos cadáveres doKosovo e tudo bem, assunto arrumado, o pe-cado expiado. E continuar a matar.

2. 0 presidente norte americano andava en-redado num escândalo sexual e Robert de Niroe Dustin Hoffman inventavam uma guerrapara distrair a atenção do respeitável público.Na película, chamada “Wag the dog”, essa

A CONFISSÃO DAS BOMBAS

EDUARDO GALEANO

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Utopia 96

guerra era fabricada, dizia-se, em nome dasalvaguarda do povo albanês. Agora, tambémem nome da salvaguarda do povo albanês, apelícula continua, por outros meios. É coisade cinema: descolam os aviões, que parecemdesenhados por Hollywood e noite atrás denoite estalam os fogos de artifício nos céusda Jugoslávia.

Como nos bombardeamentos contra oIraque, o espectáculo não inclui imagens dosinimigos mortos e mortos propriamente nãohá. Enquanto os ataques decorrem no ar, estaguerra real continuará a simular que é virtual.Se as tropas invadissem por terra, e os paísesatacantes começassem a receber os seus he-róis enfiados em ataúdes, outro galo cantaria.

3. Entretanto, a NATO continua a celebrar,de forma grandiosa, o seu meio século de vida.Como quem diz que está a atirar a casa pelajanela. É a festa de aniversário mais cara dahistória: sem contar o valor das vidas e dosbens aniquilados na Jugosldvia, porque ao fime ao cabo não há inimigo que não mereça asua desgraça, cada noite de bombas está acustar 330 milhões de dólares. Segundo o cál-culo do diário Frankfurter Allgemeine Zeitung(edição de 30 de Março de 1999), os EstadosUnidos gastaram, na primeira noite desta guer-ra, tanto dinheiro como o total da ajudaprometida, por Clinton, aos países da Améri-ca Central destruídos pelo furacão Mitch.

Não é para menos. Já havia quem se per-guntasse para que servia a NATO, se tinhadesaparecido a ameaça comunista do Leste daEuropa. O secretário geral da empresa, JavierSolana, encarregou-se de aclarar essas dúvi-das insidiosas. Há 20 anos, Solana gritava:Não à NATO! Há 10 anos, pronunciava umafrase histórica, em nome do governo espanhol,quando começou a guerra americana contra oIraque: “Fomos avisados, mas avisados àposteriori”. E agora explica-nos que a NATO

está “a defender a paz”, a um milhão de dóla-res por missil.

4. As grandes potências praticam o delitoe recomendam-no. Ninguém viola a lei comtanta frequência. Estes bombardeamentoszombam do direito internacional e também daprópria carta de fundação da NATO. Contraum ditador sanguinário como Milosevic di-zem-nos que tudo é permitido, incluindo oproibido. Contra Milosevic? Na televisão, pelomenos, vê-se são e salvo o chamado Hitlerdos Balcans. Quem sofre são as pessoas. Tam-bém as guerras contra o Iraque, violadoras detodas as leis feitas e por fazer, foramjustificadas com a urgência de derrubarSaddam Hussein. Passam os anos e, de bom-bardeio em bombardeio, o chamado Hitler doMédio Oriente continua bem robusto. Em tro-ca, quantos iraquianos cairam? Segundo osdados oficiais publicados nos Estados Unidos(U.S. Bureau of Census, Janeiro de 1992) uns145.000 iraquianos e 124 norte americanosmorreram em consequência da guerra de 1991.E quantos continuam a sofrer devido ao blo-queio teoricamente destinado a afastar oditador? A quantos castiga a fome impostapelas sanções económicas internacionais? Se-gundo a última informação da Cruz Vermelha,nesta década multiplicou-se por seis a quanti-dade de crianças iraquianas que nascempesando menos que o normal.

5. E se fosse verdade que à NATO se lheaperta o coração com as “limpezas étnicas”?Que vale tudo para salvar as minoriasameaçadas de extermínio?

Seria emocionante. Mas, nesse caso, por-que é que a NATO não bombardeia a Turquia?Não faz a Turquia uma purga sistemática dopovo curdo? Porque é que a Jugoslávia mere-ce castigo e a Turquia aplausos? Talvez porquea Turquia é da casa, um país membro da

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Utopia 9 7

NATO: mas mais ainda talvez porque a Tur-quia é um dos principais clientes da indústriaocidental de armamentos.

6. Esta guerra, como todas as guerras, ser-ve de vitrine gigantesca para a exibição evenda de armas. O avião estrela continua aser o F-117, que iniciou a sua devastadoracarreira matando panamianos nos finais de1989. Um tropeção qualquer, um dia dá nasvistas, e nem todas as operações publicitáriastêm êxito; para ocultarem um destes exem-plares, que se suponha invisível, fez-se visívele foi derrubado. O percalço custou 45 milhõesde dólares aos contribuintes dos EstadosUmdos, sem contar com o valor das armas quelevava dentro.

7. Esta guerra, como to-das as guerras, também servepara justificar os gastos mili-tares. As grandes potênciasocidentais, armadas até aosdentes, necessitam de clientese também necessitam de inimi-gos. Há bem pouco tempo, noprincípio deste ano, quandoterminou a segunda investidacontra o Iraque, os generais doPentágono advertiram: «Está areduzir-se o “stock” de mís-seis».

De imediato, o presidente Clinton anun-ciou que aumentaria em 12 mil milhões dedólares o enorme orçamento de guerra, queperfaz 15% do orçamento federal e que se cha-ma Orçamento de Defesa não se sabe porquê.Clinton preside a uma nação que tem um mi-lhão e meio de soldados dispostos a morrernão se sabe porquê.

8. A NATO nasceu como braço armado dosEstados Unidos na Europa. Ainda que a Rússia

já não assuste ninguém, a NATO cresce e comela cresce a hegemonia de Washington e omercado da indústria norte americana de ar-mamentos. O exame de boa conduta daPolónia, da Hungria e da República Checa,inclui o ingresso na NATO e a compra de no-vidades bélicas aos Estados Unidos. Os mausde ontem provam que são os bons de hoje,renovando os seus arsenais, para alcançaremos níveis de “inter-operacionalidade” que aNATO exige. Para que o Congresso norteamericano aprove as novas incorporações, aLockheed Corporation e outros industriais damorte untam os legisladores com subornos le-gais.

9. Recentemente estalou um escândalo naGrã-Bretanha. Foi revelado que asuniversidades mais prestigiadas, asinstituigões de caridade mais piedo-sas e os principais hospitais,investem os fundos de pensões dosseus empregados na indústriaarmamentista. Os responsáveis daeducação, da caridade e da saúdeexplicaram que colocam o seu di-nheiro nas empresas que rendemmaiores lucros e que estas são, pre-cisamente, as empresas da indústriamilitar. Um porta voz da Universi-dade de Glasgow disse-o com todas

as letras: “Não fazemos distinções morais. Pre-ocupa-nos que os investimentos sejamrentáveis, não que sejam éticos.”

Se as bombas que estão caindo sobre aJugoslávia pudessem falar, além de rebentare matar, confessariam a verdade? - Senhoras,bombas, vocês são os instrumentos mortais doBem? - Mais respeito cavalheiro. Nós somosum grande negócio.

Tradução de José Luís FelixExtraído de Salaya «[email protected]»

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Utopia 98

D E S I N T E G R A I S

JÚLIO HENRIQUES

CHIA O CHEFE

O chefe supremo do rebanhoaquele a quem se obedece sob pena de morte violentaentra-me no quarto em plena bebedeira dos músculos cerebrais.O chefe é omnipresente atravessa as paredesestá em toda a parte ao mesmo tempo.Não vejo por onde entra só ouço o baque surdodas patas no soalho, caindo de alto. Eu de bruços na camaum ligeiro vomitado seco em redor dos beiçosos olhos muito abertos.Coça-me os pés eu gaguejo ergo-me vejo-o ínfimo sob o álcoole logo o concebo brinquedo na visão.Puxo-lhe pelo cabelo eléctrico no escuroo chefe range,longe como os comandosinvisíveis que controlam as luzes do infernoacho imensa graça e dou-lhe logo com um volume rijoda enciclopédia larousse-selecções.O chefe ligeiramente cambaleia penso que precisode coisa mais contundente rapo das obras completas de agustinae às molhadas amando-lhas da cama, de pé,com quanta força tenho.O chefe cai de borco esmurra o nariz suja o tapete pouco limpoe na queda urra como um porco enorme ao entrar na faca.Que sons catitas, regougo. O sagrado brinquedo devémuma besta à patada, e bufa, esburaca o chão, cagando tudo.A merda excita-o mais. Pego numa cadeira e desfaço-lha em cimadepois no computador e escavaco-lho todona cabeça luminosa e magnífica.O meu chefe o chefe de todos o dirigente máximodas almas sem asas, rastejantes,

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Utopia 9 9

brinca comigo no desconchavo universalda partitura corpórea, cerebral, sensitiva,e eu sem cessar atiro-lhe com tudo o que me vem à mão,cinzeiros espelhos gavetas dos armários a livralhada todacandeeiros as estantes já vazias, num chinfrim de eleições.Estremunhada, sem ar, a porteira toca-me à campainhaa desoras, dá na porta grandes punhadas ressoantes,abana o prédio com braços colossais.Basta porém ela ver que o chefe está alia desfazer-se em ranho e embrulhado em sanguepara em pânico correr escadas abaixo,esgazeada e medonha.- Pudera!

O CHEFE CHIA MAIS

O anúncio diário de novos atentados dá mais eloquênciaà vibração patogénica do mundo: MAIS do que as artes todas reunidasou as promessas de calma prosperidade que os porta-vozes do Governovão escarrando.

No cinismo vibratório do salve-se quem puder o vómito interioré o caos omnipresente.

À brutidão eterna de quem dirige o mundo na devastaçãoresponde em desespero de causa o atentado, est’arte suicidaque as outras desintegra.

[ Bate a milhentas portas, magro e coevo.- E que quer ele? - Quer um emprego.- Bem me cheirava a mim:é mais um terrorista, é liquidá-lo jásem deixar pista.]

O CHEFE CHIA SEMPRE

Ao invés do que exprime o sentimental & tautológico discursoarrotado por sobre a espécie humana,nesta não crepita agora uma inteligência superior.Provam-no as instituições políticas mais modernas

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Utopia 910

com que se tem vistosamente enfarpelado- de recorte nunca desasnado & sempre conducentesà pública catástrofe,e bem assim a indigência progressiva que tudo submerge- capaz de reduzir a cacos continentes onde só medre a guerra.Ante esta acção humana, o mais sólido optimismo desfalece- e cercado de piolhos o crânio arrefece.

É IMPOSSÍVEL O CHEFE NÃO CHIAR

JÁ COM 2000 Á PORTA! A democrática lobotomiaimpõe-se Ser filho do homem & da mulher,,, hecatombe a desabarem hospitais apetrechados,,, a vigilância electrónica em ultra-som,,,ESTA eternidade a martelar com grandes mãos de cima para baixoó mãe à mãe: são grandes gestos: o chorodo recém-nascido registado em decibéis já investidosno banco de fomento,,, eles abanam-noa caixa craniana range por segundos,,,e rangem mui precoces as superfícies frontais a testa uma explosão-relâmpago,,, a corrente electroluminescente injectadao raio operatório no eléctrodo e sobretudo a determinação psicológicaa máquina interpretativa a registar as tendências criminosas nos recém--nascidos,,, no célere processo iluminado o estilete a penetrante luztudo muito microscópico uma operação em progresso na zona frontalsitiada na cabeça”, território-cabeça essencial,,,sulcos de luz no mapa cerebral na zona a operar”, carne e osso e águae gelatina e sangue aguardando o choque,,, tudo fincado no instinto alaminar para essa transecção metódica de um ou mais lobos frontaisque venha permitir que se sosseguea ansiedade o pavor a disforia os crimesinfantis estes assassinosde dez anos - e o,,, e a,,, e o,,, e a,,,

O CHEFE CHIA AINDA

À noite os ossos assobiamsobre as pedras. Ermo ar onde desabamvozes. Ar açoitado onde os mortos mijam.

As árvores agarram-se ao solo pedregosoe sussurram, sugam seus ramos no ar frio

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Utopia 9 11

sustento com as folhas. Os paisde todas elas mataram-nos os fogos:na incandescência, indefesos, silvandoe crepitando na extensão das horas.Antes de serem cinza e de acharem sepulturaem redor, os cotos escarlates arrastaram-seno calor em que a rocha se fundia.

À noite as telhas trememnos telhados. E nas paredes, cego,perpassa um movimento mudo.As águas invernais vão devorando a madeira.As silvas instalam-se nas casas, ondese acoitam os répteis no sono.Tapam veredas, soterram caminhose carreiros. O fragor das paredes a cairpontua o tempo, no ar lateja o pó,e a aldeia vibra em seu sumiço.

Esvaíram-se ali os moradores,empurrados por forças indomáveis:varreram-nos para as concentrações,aonde desaguou a fome todapresa ao osso.

De dia a serra já não vive segundo a sua lei.Mas na noite o hálito dos mortoscheira dentro de água, e a branca Lua vela.Um sossego que freme desliza sobre a terra,os animais respiram, e o chão actua.

Ilustração: Tom Tomorrow

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Utopia 912

Wlliam Morris e o "novo"espírito utópico

ALEXANDRE SAMIS

A relação entre o pensamento libertárioe a obra literária e filosófica deWilliam Morris, inscreve-se na encru-

zilhada que liga o ideário racional do séculoXIX às tradições utópicas que vinham se de-senvolvendo desde o crepúsculo do séculoXVI com Thomas Morus. O livro de Morris,“News from Nowhere”, não é a visão de umepígono, tentando, através da re-edição de umaidéia, preservar a essência do pensamento dosque o precederam. Mas sim, um pensamentoharmônico com o seu tempo e em diálogoconstante com as questões concretas produzi-das a partir de sensações e ansiedades únicasde uma época. O ideal morrisiano, emboraaparentemente avesso a “modernidade”, é sin-toma desta. Reação de um espírito inquieto evoltado para o projeto utópico legítimo aoshomens que, embora pertençam a um deter-minado tempo, colocam sua sensibilidade aoserviço abnegado de uma sociedade melhor,mais justa e igualitária.

Embora Morris nunca tenha claramenteidentificado-se como anarquista, este foi donode uma narrativa eminentemente libertária evista pelos anarquistas de seu tempo, e mes-mo depois dele, como uma das obras que maispoeticamente definia o pensamento acrata, nassuas linhas mais gerais. George Woodcock,

eminente historiador do anarquismo, assimdefine a obra de Morris: “Todavia, a únicavisão de utopia que encontrou - não em al-guns elementos isolados, mas na suatotalidade - acolhimento plenamentefavoravel por parte dos anarquistas foi Newsfrom Nowhere (“A Terra Prometida”), deWilliam Morris. Neste livro, Morris, cujasidéias estavam muito próximas das deKropotkine, descreveu o tipo do mundo quepoderia nascer, se os sonhos anarquistas deedificar sobre as minas da autoridade umanova sociedade harmoniosamente equilibra-da, tivessem possibilidade de se concretizar.”1

É interessante observar, no entanto, que aobra de Morris sendo uma reflexão das suasexperiências como militante e ao mesmo tem-po marca do seu talento literário, encarna emmuito estas duas experiências complementa-res, mas ao mesmo tempo conflitantes: Se, porum lado, sua atuação política o aproximoumuito dos anarquistas, tornando-se amigo ín-timo de Kropotkin ,2 Morris não era refémdesta proximidade, chegando inclusive aposicionar-se como marxista. O mesmo acon-tecendo com sua obra que, segundo MiguelAbensour,3 foi muitas vezes identificadacomo, uma “parábola marxista,” pelos ele-mentos engajados nesta causa, ou como um

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Utopia 9 13

gênero semelhante anarquista, pelos entusi-astas desta outra.

Esta disputa da alma morrisiana, traduz,na verdade, o entendimento da obra de Morrisenquanto alegoria no sentido da representa-ção, ou metáfora no sentido da substituiçãode uma imagem por outra.

É claro que, o aprisionamento da imagemdesta obra, quer em um campo ideológico ouem outro congênere, roubaria da mesma suaamplitude ou universalidade que é justamen-te a sua qualidade libertária.

A vida de Morris é bastante elucidativa emrelação aos significados de sua obra. As posi-ções que assumiu dentro da Liga Socialistana Inglaterra e sua visão de mundo, o coloca-vam em distinta oposição às teses dosocialismo mais vulgar. A sua perspectiva dotrabalho, que deveria ser atraente e não enfa-donho e desagradável como o era no sistemacapitalista, o aproximava de Kropotkin eFourier. Preocupava-se com a industrializa-ção e as conseqüências nefastas desta naconstituição do tecido social de sua época, ea este respeito nos esclarece G. Woodcock:“No universo tolstoiano dominado pela ra-zão e pela Natureza o tempo escoa-se,lentamente, tal como naquela longa tardeestival de liberdade, sonhada por WilliamMorris.”4 Também a relação com a obra deTolstoi é bastante grande, principalmente noseu teor hostil à sociedade industrial.

Toda uma gama de influências ediscordâncias nortearam o desenvolvimentoda produção intelectual de Morris.

Na sua vida política, Morris testemunhoueventos importantes; o Congresso Anarquis-ta Internacional de 1881 e pouco depois acriação da “Labour Emancipation League” naGrã-Bretanha pelos anarquistas. Em um mo-mento em que as disputas entre socialistas elibertários não eram tão claras, a recém cria-da Liga filia-se a Segunda Internacional

através da Federação Social-Democrata. En-tretanto, a direção marxista da Federação e apostura autoritária de seu dirigente H. M.Hyndman provocaram, logo, uma cisão e es-timularam a criação posterior da LigaSocialista. Para onde iram migrar, além dosanarquistas, o próprio, Morris, Belfort Bax eEleonor Marx Aveling.

Nesta nova organização William Morris,fica responsável pela publicação do“Commonweal”,5 o periódico da mais repre-sentativa Liga dissidente na Inglaterra.

Dentro da Liga Socialista, que rapidamen-te assumiu diretrizes anarquistas, Morris teveexperiências de convergência com as repre-sentações de Lane, Kitz e C. W. Mowbray,principalmente na questão da liberdade. “ParaMorris, tal como para os anarquistas, eraimperioso descobrir um meio pelo qual o povo‘pudesse destruir, por si próprio, a sua es-cravidão’”6 Por outro lado, as divergênciascom estes não eram poucas e giravam em tor-no, principalmente, das manifestaçõesextremistas de violência de alguns militantesanarquistas. Morris, como Tolstoi, Godwin e

Proudhon, considerava a importância de umlongo processo de educação para posteriortransformação da sociedade.

A posterior saída de Morris da Liga Soci-alista, se deu, em parte, por um profundodesgaste e constantes alterações e divergên-cias de opinião no seio da entidade. E suainsistência em afirmar “categoricamente” quenão era um anarquista, segundo GeorgeWoodcock, esbarrava em uma argumentação

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Utopia 914

claramente depreciativa de um tipo deanarquismo: o individualista. “Nenhum anar-quista, excepto um stirneriano fanático,poderia estar em desacordo com o ideal deMorris, de que os homens devem agir para obem de seus semelhantes; com efeito, um dosdogmas fundamentais do anarquismo é o deque a liberdade permite a expansão harmoni-osa da natural solidariedade humana.”7

Para Woodcock, as querelas entre Morris eos anarquistas eram muito mais de caráter pes-soal, do que propriamente por divergências nocampo teórico, já que, na sua utopia, “Newsfrom Nowhere”, este pinta um quadro radical-mente anárquico. Onde, o ambiente éapresentado sem o menor traço de autoridadeou mesmo de governo. Morris e os anarquis-tas estiveram de acordo ao imprimirem a LigaSocialista um caráter antiparlamentar, ocasio-nando a saída de marxistas e socialistasmoderados,8 em 1887. E só em 1889 é que asdivergências tornam-se insuportáveis paraMorris e este desligou-se da organização.

Mas estas divergências, o que reforça a te-oria de Woodcock de incompatibilidadespessoais, em 1896 estavam aparentemente su-peradas, pois, nesta ocasião os anarquistasforam expulsos do Congresso da Segunda In-ternacional em Londres e ganharam, aocontrário do que os marxistas da social-demo-cracia esperavam, a simpatia dos socialistasmenos ortodoxos. “William Morris, já quasemoribundo, enviou uma mensagem em que jun-tava a sua voz ao coro dos protestos, alegandoque só a doença o impedia de comparecer empessoa.” 9

É claro que este apoio dado aos anarquis-tas, neste episódio histórico para o movimentooperário, em nada caracterizava uma possívelconversão. Mas é um sinal da sintonia de pres-supostos teóricos entre o pensamento sociallibertário anarquista e a proposta morrisiana.

O N O V O E S P Í R I T O U T Ó P I C O

E O M A R X I S M O

A passagem do século XVIII para o XIX,encheu o pensamento social de contribuiçõesbastante profícuas, sob a forma de representa-ções literárias e mesmo teóricas. O socialismoutópico, nome este, forjado a partir de umacrítica posterior ao mesmo, derramou pelaEuropa uma densa camada que longe de cris-talizar-se concebeu variações que, com maiorou menor vigor, animaram as manifestaçõesrevolucionárias do primeiro quartel do XIX.Segundo Miguel Abensour, ao período da “au-rora socialista” segue-se o neo-utopismo, quetrata de confrontar o primeiro pensamento utó-pico de Owen, Fourier e Saint-Simon;submetendo-o a “conciliação” com o seu tem-po. Esta contraposição promove a adequaçãoda utopia a linguagem de seu tempo. É oredimensionamento da vontade utópica aonovo momento histórico, possibilitando a per-manência do vigor e potência utópica às novascondições, ou mesmo, formas de organizaçãodo socialismo.

O novo espírito utópico não é romântico,embora possamos encontrar suas raízes nestemovimento. Ele é a leitura do movimento so-cial de forma mais ampla à feita pelos seuspredecessores. O novo espírito utópico nasceda necessidade de entendimento dos proces-sos sociais, atrelados a uma perspectiva onde“a ruptura com a crença na autarquia e nasupremacia de uma só consciência (...)”10 evitea cristalização do movimento em ciência úni-ca. A inserção do conceito de emancipação doproletariado por ele mesmo e do fim dos mo-delos produzidos e impostos de cima parabaixo, são também características do novo es-pírito que surge a partir de 1848.11

Para Abensour a utopia naquele momento,não serve apenas de exemplo ou demonstra-ção; “(...) tem como tarefa pôr em marcha o

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desejo das massas, fazer ver; melhor: fazerdesejar. A utopia se torna uma maiêuticapassional.”12

A utopia, naquele momento, aponta para acrítica de uma sociedade que é incompetenteem vivê-la. A utopia não representa modelo,ela é sinergia, que provoca a reflexão e esti-mula a “vontade de poder” e os projetos doshomens. O novo espírito utópico não éepisteme, é trajetória crítica; ele percebe e tra-balha com os desvios e não com o retilíneo.Utilizar o retilíneo, seria negar a seu própriocaráter desviante e reivindicador de uma soci-edade radicalmente diferente. O novo espíritoutópico representa, também, a resistência à ummundo linear, e ser puramente “racional” se-ria tornar-se o que de fato se combate.

O “Manifesto do Partido Comunista” pu-blicado por Karl Marx e Freidrich Engels podeser apontado como sintoma de um movimen-to anti-utópico que, a partir de 1848, passa adefinir cada vez mais claramente seus pressu-postos teóricos. Condenando e classificandoas utopias em suas diversas manifestações a

uma etapa separada, e por conseqüência a ca-racterização desta como anacronismoreacionário. Assim Marx e Engels referem-seaos primeiros utopistas: “A literatura revolu-cionária, que acompanhou estes primeirosmovimentos proletários é, pelo conteúdo, ne-cessariamente reacionária.”13

Embora, Marx e Engels, atribuíssem, emum primeiro momento, às utopias um caráterrevolucionário, logo em seguida, justificamque, estas o foram em um momento pré-maturoao desenvolvimento das contradições entre asclasses, “(...) surgem no primeiro período, ain-da não desenvolvido, da luta entre oproletariado e a burguesia (...)” 14

O entendimento do conceito: utopia, paraos pais do “socialismo científico”, era por de-mais datado historicamente e cristalizado emum passado de tênue consciência social da clas-se operária. Era impossível diante dos cânonesdo materialismo, esboçados no “ManifestoComunista”, a percepção da utopia como des-dobramento independente da teia científicaapriorística, montada pelo pensamento marxis-ta.

Mas o novo espírito utópico, que teve emWilliam Morris um de seus mais destacadosrepresentantes, nutriu-se também destaracionalidade canônica oitocentista. Na buscade uma atualização, a utopia assimilou, obvia-mente, o espírito de seu tempo e destepensamento eclético, longe de empobrecer,encontrou suas virtudes.

Como nos assevera Abensour, uma das “fi-guras” ou representação deste novo espíritoutópico é parte integrante do marxismo, “(...)mais precisamente, nas correntes oposicionis-tas ou marginais do marxismo.”15 E continua:“Para os partidários do novo espírito utópi-co, a crítica de Marx, em si mesmaproblemática, não significa o fim da utopiamas outro tipo de relação que resta definir eelaborar.”16 E é nesta definição em elabora-

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Utopia 916

ção, que encontramos a obra de Morris. Nãopodendo identifica-la totalmente ou mesmotaxonomiza-la para não agirmos como reduto-res de uma contribuição, em si, complexa parao pensamento do novo espírito utópico.

As críticas que chegavam, através dos mar-xistas, até às fileiras dos utópicos do novoespírito, eram interpretadas como uma estra-tégia social-democrata, no claro intuito dedesqualificar a ação revolucionária do grupoao qual pertencia Morris. A Liga Socialista,que promovia constantesdiálogos entre Morris eos anarquistas, era con-cretamente um problemapara a direção marxistamais tradicional do mo-vimento operário inglês.E os debates encaminha-dos após 1883, com amorte de Marx, eram,não raro, protagonizadospor elementos ligados aEngels ou signatários,nem sempre rigorosa-mente féis, às propostasdo mesmo.

O pensamento utópi-co sofria sistemáticascríticas e depreciaçõespor parte dos socialistascientíficos, principal-mente quando estesinsistiam em ampliar alógica mecânica de seuspressupostos revolucionários. A idéia de ummovimento não ajustado a princípios rígidosde conduta histórica, remetia a conduta utópi-ca ao campo da inconseqüência ou mesmo dainocência típica dos espíritos pueris.

Engels ia mais longe, e chegava mesmo aassociar as práticas divergentes às de seuscorreligionários, como pertencendo à infância

das atitudes políticas. “(...) Engels forjou aassociação esquerdismo = infantilismo, des-tinada a fazer sucesso sob a pena de Lenin.”17

Em cartas datadas de 1886, Engels escreveu aPaul Lafargue e W. Liebknecht,18 utilizandotermos como: “doenças infantis”, ao referir-se a Morris e ao grupo de anarquistas da LigaSocialista.

Estas associações são claras e surgiram,com maior incidência, no período posterior amorte de Marx. Mas a idéia de utopia como

ingenuidade já existia,em essência, nos escri-tos da brochura de 1848e continua no livro deEngels sobre o socialis-mo científico e outópico de 1880, quepretendia, em parte, seruma homenagem a seucompanheiro KarlMarx. O livro deEngels reforça a pers-pectiva do socialismocientífico como “ex-pressão teórica domovimento operário”,desqualificando as de-mais propostas decaráter revolucionário.

Nos debates dosanos 80 do século XIX,apareceram muitas va-riações do pensamentosocialista e muitas des-

tas apresentam aspectos, onde a reflexão deDavid Hume ao afirmar que: “a razão é escra-va das paixões”, pode ser verificada.

Devemos questionar até que ponto as críti-cas dos marxistas a Morris, e a Liga Socialista,eram fruto de uma disputa emocional de vai-dades. E em que medida as associações sãofeitas a partir de exercícios teóricos ou mes-

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Utopia 9 17

mo contorcionismos da razão, em nome dasnecessidades de ocupar espaços no movimen-to operário europeu. Abensour nos diz: “Onovo espírito utópico de William Morris é com-preendido assim como uma luta travada emduas frentes ao mesmo tempo. O ponto nodalé a posição escolhida em face dessa situaçãohistórica particular que pode se chamar ‘oapós-Marx’.”19

Morris foi marxista pelo que esta teoria re-presentava de fundamental em propostateórica. Resgatou também, em seu pensamen-to, a matriz romântica do iluminismo, masbuscando no cientificismo oitocentista a con-sistência para sua perspectiva utópica demundo. Foi, em muitas passagens de sua obra,a negação do marxismo em vigor no seu tem-po. Viu no anarquismo, em alguns momentos,a prática democrática necessária e solidarizou-se com ele. Tentou resgatar nas linhas de Marx,algo que o próprio Marx, tentou purgar: “o seuespírito utópico”. Em outras palavras: amouMarx, por seus “defeitos” e não pelas suasqualidades materialistas (ciência). Foi critica-dos pelos marxistas por ser um ingênuo einfantil socialista, ou seja, foi diminuído pelalógica da cientificidade, justamente pelas suasqualidades.

Morris teve que somar forças com os anar-quistas, por perceber, provavelmente, nestes ovigor utópico tomado dos marxistas por umapráxis materialista aprisionadora das liberda-des do homem.

LITERATURA E ENGAJAMENTO

William Morris experimentou por vezes asensação de estar órfão, para poder manter-secoerente com suas convicções no novo espíri-to utópico. As idiossincrasias entre a obra e aprática política, podem ser explicadas pela pró-pria natureza dialógica do pensamentomorrisiano. Misturando às suas inquietações

e qualidades literárias, de rara sensibilidade, odesejo de contribuir efetivamente com as mu-danças sociais de sua época.

Fruto de seu tempo e não prisioneiro deste,Morris singrou com sua obra utópica os tem-pestuosos debates e as perplexidades de umtempo carente de identidade. Foi testemunhada difusa estética socialista, polimorfa e fu-gaz, algumas vezes, e extremamente dogmáticapor outras. Encarnou de forma emblemática anecessidade do indivíduo no projeto coletivo,reafirmando o papel da paixão do homem nadinâmica das massas.

O homem, em Morris, não era apenas o atorda superestrutura de Marx, mas, sim, o ele-mento poderoso sequioso de vontade demudança, premido pelas questões sociais infra-estruturais, mas, guiado pela “vontade depoder”e pelos sonhos gestados na observação,que este fazia, de sua realidade concreta.

A utopia de Morris, não era a descrição deum mecanismo que prefigurava um fatalismohistórico ditado pelas forças produtivas ou pordesígnios supra-humanos. Ela reabilitava o atode desejar, para além das formalidades teóri-cas do materialismo, embora não venha aromper totalmente com pressupostos marxis-tas básicos. Inaugurou a conjunção entre aspossibilidades de uma concepção estética dodesejo e as teorias sistematizadoras do movi-mento socialista.

Abensour refere-se a este fenômeno da se-guinte maneira: “Assim, observávamos, autopia já não tem a função de convencer oude fazer compreender o valor de um modeloou de uma solução para a questão social; elatem como tarefa por em marcha o desejo dasmassas, fazer ver; melhor: fazer desejar” 20

Acreditando na viabilidade dos projetos hu-manos, com claras influências do pensamentosocrático; Abensour, acredita em um Morrisguiado pela emoção, pela crença na dinâmicapositiva das massas e seus desdobramentos

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revolucionários. E nos afir-ma que: “A utopia torna-seuma maiêutica passional”21

A idéia de que oergástulo da pobreza ou dasinjustiças só pode ser supe-rado por uma ação coletiva,não prescinde dos desejosindividuais que devemconspirar para tanto.

E o entendimento, na obra de Morris, deuma libertação dos trabalhadores por eles mes-mos, adquire nesta perspectiva uma tonalidadesímbolo da passionalidade apontada porAbensour. Passionalidade esta que, não se es-gota em um frenesi despropositado ou mesmosem objetivo. Antes, representa a tentativa doequilíbrio ou eqüidistância entre o mundoapolíneo e o dionisíaco, não justificada ou re-afirmada pela finalização em si; mas pelatentativa de viver este paradoxo constitutivoda própria vida.

UTOPIA COMO SINTOMA DE UMA ÉPOCA

A busca de William Morris não pode serentendida como uma procura solitária e me-lancólica de uma quimera inatingível como aalguns pode parecer. Ele inscreve-se na maisprofunda angustia reflexiva de sua época. Umaépoca, que, como já vimos, permanecia a deri-va em seu perfil estético e que ao mesmo tempobeirava o messianismo típico de um fim deséculo. Este panorama suscitava, em alguns deseus contemporâneos, a preocupação em defi-nir minimamente os paradigmas deste,aparentemente, incognoscível perfiloitocentista.

O termo “Modernidade”, objeto de CharlesBaudelaire, é um exemplo claro deste pensa-mento, que representava a necessidade doentendimento daquele momento histórico dis-tinto. E que, ao mesmo tempo, revelava a

impossibilidade de dar conta do mesmo.Baudelaire nos guia, através de frases sutis,

ao seu pensamento ou mesmo às impressõesque possuía de seu tempo: “A Modernidade éo transitório, o efêmero, o contingente, é ametade da arte, sendo a outra metade o eter-no e o imutável.”22 Para o autor de “Flores doMal”, a estética verdadeira só poderia ser aatual ( do momento ao qual nos referimos),pois a cópia de realidades passadas são impos-síveis de reedição pelos homens do presente,sob pena de aparecerem desprovidas de ver-dadeiro significado. E, continua: “Sem dúvidaé excelente estudar os antigos mestres paraaprender a pintar, mas isso pode ser tão-so-mente um exercício supérfluo se o nossoobjetivo é compreender o caráter da belezaatual.”23 A idéia de copiar o passado é tão des-prezível para o artista, quanto for o seu espíritorebelde no tempo em que vive. A angústia demuitos estetas do século XIX é ter que convi-ver com a contingência de um tempocumulativo dos períodos anteriores, figurassobrepostas em uma superfície unitemporal ouseja sem espírito.

Desta mesma forma podemos encarar a obrade Morris, que, como já vimos, inscreveu-sena tradição utópica, sem no entanto, servir deuma espécie de epigonismo estético. Morris aelaborou de forma original e encaminhou-a nadireção do pensamento libertário. A produçãode William Morris foi sintonizada com o seutempo, unica e com claras distinções, se com-

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parada às de seus antecessores; Godwin, Saint-Simon e Owen.

Desta mesma forma encontramos, nesteperíodo, outros intelectuais preocupados coma caracterização estética do fim do século XIX,que demonstram, por assim dizer, zêlo emregistrar minimamente as reflexões de suaépoca, de forma original e autêntica.

Entre outros artistas contemporâneos im-plicados no objetivo de definir algunsprincípios estéticos, encontramos Oscar Wilde;para quem: “(...) a arte é o fim supremo, con-tém em si própria iluminação e regeneração,e todo o resto lhe deverá estar subordinado.”24

A obra de Wilde, inscreve-se historicamenteem uma tradição bastante próxima a de Morris,como libelo anti-burguês, e com o mesmoobjetivo de Baudelaire: denunciar as implica-ções sociais da civilização burguesa e suadecadência. Devemos, entretanto, lembrar queestes pensadores tinham em comum o ódio pelotipo de mundo criado pela burguesia, mas que,chegaram a mesma conclusão por estímulosdistintos.

Baudelaire, desprezava a burguesia e damesma forma a auto- comiseração dos pobres,e neste particular aproximava-se de Wilde,quando este afirma: “Frequentemente ouvimosdizer que os pobres são gratos pela caridade.Decerto alguns são gratos, mas nunca os me-lhores dentre eles.”25 As opiniões em relaçãoàs atitudes do pobre ou miserável destes“dândis”26 , aproximavam-se e posteriormentedistanciavam-se valendo-se de lógicas seme-lhantes.

Oscar Wilde, que admirava o pensamentopolítico de Kropotkin, possuía uma concepçãoestética bastante distinta da maioria dos anar-quistas e no que tange às propostas puramenteorganizativas da esquerda a distância era ain-da maior. Podemos tomar como exemplo aopinião de Kropotkin sobre a arte que, paraeste, apresentava valores morais e não era por

si mesma um fim. Guiado pelo evolucionismo,filho de seu tempo, o príncipe russo talhavacom as cinzeladas da razão oitocentista as es-truturas de uma vertente do ideário acrata. Aadmiração pelas idéias não determinava a ade-são incondicional às mesmas, e como já vimosno caso de William Morris e Kropotkin istotambém se verificava. As utopias, em que pesea consonância de propósitos, apresentaram sin-gularidades na forma mas em muitos aspectosdemonstraram complementariedade no senti-do.

O que se apreende de toda essa malha ide-ológica, em seus matizes distintos; é que haviano fim do século passado uma culturalibertária, partindo de várias concepções demundo e/ou mesmo de formas singulares deinterpretar a realidade. O chamadodecadentismo, anunciado pelos dândis, surgiacomo uma profecia apocalíptica e misturava-se de forma simbiótica ao pensamento social,tornando ainda mais complexa a análise do pe-ríodo, ou mesmo, imprimindo-lhe um aspectomultifacetado ampliando ainda mais a sua com-plexidade.

É neste sentido que o novo espírito utópicomorrisiano identificou-se, por um lado, peloseu forte caráter romântico e iluminista e, poroutro, pela procura de um caminho original.Esse espírito envolveu muito mais que umasimples estratégia ou mesmo ideal de socieda-de futura; ele foi o avesso da crítica, um apelovisceral da linguagem, ou seja, a necessidadede elaboração de um discurso inaugural de suaépoca. Discurso montado sob forma de mo-saico e como fragmento deve ser entendido.

Um destes fragmentos, que aliás, somava-se a outros, era o de uma crítica a civilização eretorno a uma época de ouro. Temática na qualpodemos circunscrever o próprio Morris vis-to, por alguns críticos do período, como umhomem amante da Idade Média juntamente

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Utopia 920

com Edward Carpenter, Tolstoi e outros. Queafinavam-se em concepções ou idéias sobre osmales sociais.

A trajetória de Edward Carpenter, é lapi-dar nesse sentido; nascido em Brighton em1844, formou-se em Cambridge e tornou-se“fellow” desta instituição. Ordenou-se cura em1869 e abandonou a carreira eclesiástica em1873. Figura de rara inteligência, foi morar nocampo e construiu sua casa com as própriasmãos, atitude bastante elucidativa de suas con-vicções. Posteriormente desaparece do mundoacadêmico da época.

A defesa de uma vida simples e a convic-ção da relação dos males sociais com o tipo deorganização da própria sociedade, eram atônica do pensamento deste anglo-saxão.Carpenter criticava a sociedade moderna e atri-buía muitos dos problemas desta àindustrialização: fonte de perturbações edesequilíbrios. Na sua obra “Prisões, Policiae Castigos”27 , ele cita, logo após seu prefácio,um poema de Oscar Wilde entitulado “Balladado Carcere”28 , e mesmo dentro de sua obra, onome de William Morris surge para reafirmarsua consonância cognitiva com o autor de“New from Nowhere”. Em uma passagemonde o tema central é o trabalho, Carpenterassim nos assevera: “Em terceiro lugar segue-se - como afirmou com tanta perseverançaWilliam Morris - que o trabalho com esta ori-entação seria um prazer, um dos maioresprazeres, sem dúvida da vida e este unico fac-to transformaria por completo o seucaracter.”29

Este fragmento versa sobre o trabalho li-vremente escolhido, e é mais umademonstração do grau de cumplicidade de quegozavam alguns grupos; em especial a fraçãolibertária aqui analisada. A sociabilidade dosgrupos provavelmente contribuiu para aoxigenação das perspectivas teóricas dos mes-mos, ou até para o confronto entre o

pensamento e a ação.Carpenter em seus trabalhos enfocava, não

raro, a necessidade do prazer estar associado àatividade produtiva. O trabalho era tratado, poreste ex-clérigo, como uma atividade importan-te, mas que deveria respeitar as inclinaçõespessoais dos homens, para que não se tornasseum martírio, fardo ou estorvo a vida. São deleestas indagações: “Quantos ha que sentem umverdadeiro prazer, uma real satisfação no seutrabalho diário? Podem, em cada communacontar-se pelos dedos. Mas onde está a felici-dade de se viver, se o seu elemento principal,aquelle que deveria estar sempre na frente detodos, é odioso?”30

As questões levantadas por Carpenter sãoelucidativas , menos pelo seu teor ingênuo emais pela distinção que apresenta em relaçãoaos discursos marxistas, que pouco tratavamdas sutilezas da essência humana na busca doprazer. Carpenter opera, em seu opúsculo, umadistinção radical que encontra eco em outrasobras de seu tempo: Ele exige do trabalho umavocação, até então impensável, voltada para atransformação do esforço em vontade deproduzir.O apelo por substituir o suor da ne-cessidade pela transpiração do êxtase é quepossibilitaria, segundo ele, ao homem, a feli-cidade radical sem as agruras do dia-a-dia oua medíocre condenação a um cotidiano enfa-donho. Assim Carpenter nos apresenta suasolução: “Não; o único systema econômicoverdadeiro, é preparar as coisas de modo queo trabalho constitua alegria. Então, e somen-te então, começará a estabelecer-sesolidamente na margem firme da vida. Comtal trabalho fica-se de ter bellos productos;esta desgraçada distinção do bello e do utilacabará e todo o produto será uma obra d’arte,a arte alia-se á vida.”31

Carpenter propunha a subversão do concei-to de trabalho, e oferecia como alternativa umavida integral de beleza ao definir uma nova

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Utopia 9 21

estética para a produção. Ele sacralizou, den-tro de seu discurso profano, a produção econferiu o status de artista à todos osprodutores.Neste momento promoveu-se a rup-tura com uma visão de mundo do trabalho,oferecendo-se outra muito mais alegre elibertadora. O autor coerente com seus princí-pios “naturalistas”, pensa com a mente de umartesão e nega assim o seu tempo de industria-lização. A perspectiva desenhada por EdwardCarpenter, guardadas as proporções, é emble-ma de um meta-hedonismo, assimilado ereelaborado a partir das realidades de um dadoperíodo. Tempo este que, não aprisionou e nemcondicionou de forma vertical as formas depensar que o constituíram.

Carpenter, embora sujeito histórico, forjouuma corrente que insistia em combater a no-ção de progresso em vigor naquele fim deséculo na Europa.

Para William Morris, o ideal de mundo nãoestava muito afastado do disposto acima, e paraMiguel Abensour; em seus escritos sobreMorris: “Aí está a diferença em relação aMarx: para este último, o verdadeiro reino daliberdade só pode florescer se fundado no rei-no da necessidade, que forma como que o fechoda previsão marxiana. Morris se orienta deoutra forma, explora o reino da liberdade quese desenvolveria sobre suas próprias bases,um ‘positivo concreto’.”32

Essa fissura é o grande salto do “marxista”Morris em direção ao pensamento libertário,que representa no século XIX, aquela encru-zilhada da radicalidade teórica ou mesmo dosonhar utópico. A profusão dos desejos delibertários como Carpenter e Morris, não per-mitia a camisa-de-força enrigecedora dopensamento materialista de Marx e Engels. Asujeição ao “rigor acadêmico” das teses dossocialistas marxistas era por demaisemasculadora das virilidades ou vitalidadesutópicas. Talvez encontremos aí as razões que

levaram Morris a ingressar na Liga Socialistae, até mesmo, sua posterior indisposição comos anarquistas mais violentos e dogmáticos.

UTOPIA COMO VALOR FILOSÓFICO

O chamado novo espírito utópico, aparen-temente não identificado por sua época,incompatibilizou-se com a dinâmica do capi-tal e também com muitas das soluçõesapresentadas pela esquerda hegeliana. O ma-terialismo histórico e dialético pareciamconspirar em favor da exclusão dos novosutopistas e, neste ponto, estavam em conso-nância com a proposta “inexorável” deindustrialização do mundo. A evolução ditavaos desígnios da história e subordinava os ca-minhos desta à uma dinâmica revelada. Ofatalismo, por vezes, escamoteado em exercí-cios teóricos bem montados, inspirava asestratégias da esquerda promovendo uma co-moção que era vaticinada pelo cientificismo.

Nestas circunstâncias a única chance dainserção de uma proposta utópica, era a pro-dução de um hiato histórico. Um lapso decontinuidade na dinâmica histórica, que desseensejo a uma forma de ver o mundo original eao mesmo tempo libertária. A preocupação dehomens como Edward Carpenter, Oscar Wildee o próprio Morris somavam-se a de algunsoutros que falavam de coisas semelhantes uti-lizando, entretanto, linguagens distintas.Friedrich Wilhelm Nietzsche, que viveu até olimiar do século XX, é um representante clarodeste espírito inconformista e até iconoclastade seu tempo.

Como Morris, Nietzsche rompe com o li-near e o rigidamente “histórico”. O filósofoalemão falava na necessidade da“transvaloração” dos valores de sua época, ena ruptura com uma cultura de filisteusadoradores e crentes em verdades supra-sen-síveis. A vida para este, é a marcha dos desejos

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do homem, da sua “vontade de potência”, eesta não incorpora as maquinações metafísicasde mundo. Nietzsche, contrário às formas pré-concebidas de dinâmica social, rejeitava adialética marxista e/ou qualquer outro sistemaque não fosse promovido a partir dos projetosdo próprio homem e de sua vontade.

A construção teórica de um mecanismoexplicativo do processo histórico e até mesmoa idéia de processo eram duramente criticadaspor Nietzche. A lógica do materialismo, parao pensamento nietzschiano, era umaexcrescência e uma falácia. PosteriormenteHannah Arendet irá sugerir que a visão mar-xista de mundo, poderia ser interpretada como“(...) se a sociedade sem classes de Marx re-presenta uma secularização da EraMessiânica.” 33 A crítica a cultura de sua épo-ca e a tradição cristã do ocidente,incompatibilizaram Nietzsche com quase todaa produção intelectual do seu tempo, e esteprocurou abrir seus espaços com golpes preci-sos nos cernes do pensamento daquele período.

Entre as vítimas da ácida crítica deNietzsche encontramos a própria história e oshistoriadores, a quem ele atribui a“qualidade”de eunucos: “ A cultura históricatambém é, efetivamente, uma espécie deencanecimento inato, e aqueles que trazem emsi seus sinais desde a infância têm de chegarà crença instintiva na velhice da humanida-de: à velhice, porém, convém agora umaocupação senil, ou seja, olhar para trás, fazeras contas, concluir, procurar consolo no quefoi por meio de recordações, em suma, cultu-ra histórica.”34

E para Abensour, encarnando a perspecti-va morrisiana: “Para conduzir essaexploração, William Morris interpõe a era dorepouso, uma grande suspensão do tempo his-tórico, as férias da humanidade, um entreparênteses de onde poderá emergir uma novamaneira de existir que, de modo poético, re-

encontra o que anunciava Nietzsche.” 35

As semelhanças da obra de Morris com aspropostas de Nietzsche, entretanto, apresentamlimitações. Pois a própria militância políticado primeiro, sutilmente impunha-lhe compro-missos nunca assumidos pelo segundo. Amáxima nietzschiana: “a paixão pela verdadeé o ódio pela vida”, não era o fio condutor deMorris e nem podia sê-lo... pela própria natu-reza de seu envolvimento com a questãooperária.

Mas mesmo assim as semelhanças entre osdois pensadores, surgem em vários momentosda obra “News from Nowhere” e, o que osmarxistas interpretam como fragilidade: faltade um projeto pedagógico concreto; aos olhosda filosofia nietzschiana pode aparecer comovirtude. “O abandono da utopia-modelo acar-reta um efeito bem antipedagógico uma vezque o modelo contém necessariamente a pe-dagogia e vice-versa.”36 O entendimento daspossíveis conjunções entre os pensamentos deum determinado período, como vimos, sofredas descontinuidades e do polimorfismo dasinfluências às quais seus respectivos proponen-tes estiveram expostos. Não estamos aquiapontando um todo coerente nas obras ouatores citados, mas percebemos que a exposi-ção destas idéias possibilitaram, mesmo quesubjetivamente, um esgarçamento dalineariedade iluminista e introduziram, na vi-rada deste século, uma tradição cisionista querompeu com a harmonia da visão bipolar deuma luta de classes carente de espírito huma-no.

A rejeição da racionalidade científica oumesmo o retorno à simplicidade social podemser entendidos como uma reação ao “espírito”dominante. E desta razão iluminista nos falaNietzsche através da história: “Um homem quequisesse sempre sentir apenas historicamenteseria semelhante àquele que se forçasse a abs-ter-se de dormir, ou ao animal que tivesse de

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Utopia 924

sobreviver apenas da ruminação e ruminaçãosempre repetida. Portanto: é possível viverquase sem lembrança, e mesmo viver feliz,como mostra o animal; mais é inteiramenteimpossível, sem esquecimento,simplesmente viver. Ou, para ex-plicar-me ainda maissimplesmente sobre meu tema: háum grau de insônia, de rumina-ção, de sentido histórico, no qualo vivente chega a sofrer dano epor fim se arruina, seja ele umhomem ou um povo ou uma civi-lização.”37 O esquecimento paraNietzsche tem valor terapêuticopara a sociedade, até pelarelativização dos valores e comoo próprio filósofo alemão pensa-va; a história deveria ser arte enão ciência.‘

É no sono e na anti-históriaque encontramos o “novo espíri-to utópico” identificado porAbensour. E é nele também ondeencontramos a força utópica re-novada e profundamenteiconoclasta. Quando E. P.Thompson, segundo Abensour,resgata a obra literária de Morris; “(...) paraentregá-la à história do socialismo.”38 Comtodo o seu rigor dialógico, esta obra permite,de forma distinta às suas congêneres utópicasanteriores: “(...) comunicar por sua vez sua (adas várias interpretações) própria visão de co-munismo.”39

A leitura dos utópicos do final do séculoXIX, longe de serem apenas ensaios de liris-mo e poesia, é a constatação de um saber únicoe sintoma da criatividade do homem a despei-to das verdades científicas ditadas pelocartesianismo.

CIÊNCIA COMO SIMULACRO

A ciência do século XIX, serviu à consti-tuição de escaramuças para várias intervenções

e elaborações retóricas noseio do socialismo. A razãofoi, em muitos momentos, oantídoto à “simplicidade”das teses utópicas e até mes-mo à “simploriedade” deseus formuladores. Como jávimos, a pecha de utópico,a partir de Engels, eradesqualificação total de umaproposta com aspirações re-volucionárias. Este deméritoconstruído por um saber es-pecífico que se queriauniversal, alijou do panora-ma político um númerosignificativo de entusiastase militantes. Quer por sujei-ção aos pressupostoscientíficos, ou por esvazia-mento de seus ideários. Osrevolucionários não-marxis-tas eram constantementecriticados, ou a eles se refe-

ria de forma jocosa e irônica. Para MiguelAbensour: “Sensíveis (Morris e os anarquis-tas) à tradição plebéia dos oprimidos,exprimindo-se na longa cadeia das utopiassociais, denunciaram, como Tcherkesoff, emOs Precursores da Internacional (1899), ahegemonia da “ciência” como vontade dehegemonia política dos partidos sociais-demo-cratas.” E continua : “Sob a máscara dosocialismo científico eles desvelaram a amea-ça da revolução externa ao proletariado.” 40

A revolução anunciada e vinda do alto, cer-tamente era incompatível com as idéiasutópicas de Morris, e o projeto social-demo-crata que disputava espaço na segunda

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Utopia 9 25

internacional valia-se, como se viu, do discur-so da eminência científica. “Mas, à diferençados sociais-democratas clássicos e de outrosmarxistas, tão respeitosos da ‘ciência’ quantoum burguês vitoriano, William Morris optoupor uma posição crítica original e extrema-mente fecunda.”41 A crítica, a qual se refereAbensour, é dirigida à antiga leitura utópicaexecutada de forma monológica e, de certaforma, segundo este autor, mais limitada que aanunciada por Morris em seus escritos.

A posição de Morris é delicada na medidaem que nutrindo-se de muitas idéias de Marx,é obrigado a divergir categoricamente da mai-oria dos seguidores deste. Para as concepçõesetapistas de uma grande parte dos marxistas ogradualismo era muito claro e sintomacomprovável de progresso social; a superaçãoda utopia como forma de manifestação revo-lucionária era, nada mais, nada menos, que aconfirmação de um sentido histórico ao qual ahumanidade estava atada.

Contra esta visão fatalista não se levantouapenas Morris mas, com muito mais veemên-cia, o fez Nietzsche ao referir-se, mais umavez, a história: “A história, na medida em queestá a serviço da vida, está a serviço de umapotência a-histórica e por isso nunca, nessasubordinação, poderá e deverá tornar-se ci-ência pura, como digamos, a matemática. Masa questão: até que grau a vida precisa em ge-ral do serviço da história, é uma das questõese cuidados mais altos no tocante à saúde deum homem, de um povo, de uma civilização.Pois, no caso de uma certa desmedida de his-tória, a vida desmorona e degenera, e por fim,com essa degeneração, degenera também aprópria história.”42

A vida para Nietzsche,como já vimos, é avontade de potência ou de poder, que não per-mite predestinações de qualquer sentido, e emparticular a uma infra-estrutura econômica.Não é tão diferente assim o mundo pensado

por Morris e a sua visão de um homem revolu-cionário e realmente livre. Da mesma formaencontramos nas obras de Carpenter e Wilde,aspirações semelhantes: na preocupação esté-tica e na vocação que o homem têm para oprazer.

Contra as sentenças monolíticas da ciên-cia do século XIX, surgiram as vozesdissonantes que soavam como heresiasanacrônicas a uma inexorável realidade. Aossocialistas científicos restava acusar os novosutopistas de símbolos da manifestação da per-fídia pequeno-burguesa, e anunciadores de umaheterodoxia cisionista. Diante da caustica crí-tica produzida pelo novo espírito utópico aomonolitismo e ao pensamento linear, este sópodia responder com a elaboração de catego-rias depreciativas aos grupos desviantes.

O novo espírito utópico de Morris, gravitouem torno da proposta de Marx e foi logodeserdado pelos filhos desta. A linha de pen-samento morrisiana, necessitou expor-se aoparricídio para encontrar sua plena liberdadee produzir o signo da sua própria estética; apro-ximou-se de vários movimentos de sua época,unindo forças com os anarquistas, que por suavez passavam por um processo semelhante.Morris encarnou a perplexidade e a “vontadede poder” dos homens impenitentes de umperíodo marcado pela fé na razão.

O projeto utópico não configurava-se empanacéia ou cura de uma enfermidade social,como nos mostra a tradição messiânica, em-bora tangenciasse essa tradição. Ele apontavapara a produção de uma ação social, pelo de-sejo de mudar. Estimulou o resgate de umhomem com vocação para a felicidade.

A heterodoxia desta vertente utópica esta-va, como já vimos, na natureza estética dosquestionamentos que a constituíam. E foi jus-tamente isso que a sustentou como elementoforça e revelou seu “ato puro”; a capacidadede desejar.

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Utopia 926

Notas:

1 Woodcock, George. O Anarquismo. Lisboa, Ed.Meridiano, 1971. p.232 idem. ibidem. p.2203 Abensour, Miguel. O Novo Espírito Utópico. SãoPaulo, UNICAMP, 1990.4 Woodcock, George. op. cit. p.2405 idem. ibidem. p.4606 idem. ibidem. p.4607 idem. ibidem. p.4618 idem. ibidem. p.4629 idem. ibidem. p.27310Abensour, Miguel. op. cit. p.11911 idem. ibidem. p.11912 idem. ibidem. p.12013 Marx, Karl. Engels, Friedrich. Manifesto doPartido Comunista. URSS, Edições Progresso, 1987.p.6414 idem. ibidem. p.6415 Abensour, Miguel. op. cit. p.2016 idem. ibidem. p.12117 idem. ibidem. p.12818 idem. ibidem. p.12919 idem. ibidem. p.12920 idem. ibidem. p.12021 idem. ibidem. p.12022 Baudelaire, Charles. Sobre a Modernidade. SãoPaulo, Ed. Paz e Terra, 1996. p.2523 idem. ibidem. p.2624 Woodcock, George. op. cit. p.46725 Wilde, Oscar. alma do homem sob o socialismo.Porto Alegre, Ed. LPM, 1983. p.1326 Segundo o próprio Baudelaire, o dândi é o homemde posses que leva uma vida ociosa e elege umobjetivo último a busca da felicidade.27 Carpenter, Eduardo. Prisões, Policia e Castigos.Lisboa, Ed. da Typographia de Francisco LuizGonçalves, 191028 idem. ibidem. p.1529 idem. ibidem. p.11230 idem. ibidem. p.11231 idem. ibidem. p.11232 Abensour, Miguel. op. cit. p.14133 Arendt, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São

Paulo, Ed. Perspectiva, 1988. p.10334 Nietzsche, Friedrich Wilhelm. ConsideraçõesExtemporâneas. In: Os Pensadores. São Paulo, Ed.Abril Cultural, 1978. p.6635 Abensour, Miguel. op. cit. p.5836 idem. ibidem. p.13637 Nietzsche, Friedrich Wilhelm. op. cit. p.5838 Abensour, Miguel. op. cit. p.13439 idem. ibidem. p.13540 idem. ibidem. p.1241 idem. ibidem. p.12642 Nietzsche, Friedrich Wilhelm. op. cit. p.60

Bibliografia:

ABENSOUR, Miguel. O Novo Espírito Utópico.São Paulo, Ed. UNICAMP, 1990.ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. SãoPaulo, Ed. Perspectiva, 1988.BAUDELAIRE, Charles. Sobre a Modernidade. SãoPaulo, Paz e Terra,1996.CARPENTER, Eduardo. Prisões, Policia e Castigos.Lisboa, Ed. Da Thypographia de Francisco LuizGonçalves, 1910.MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Manifesto doPartido Comunista. URSS, Edições Progresso, 1987.MORRIS, William. Noticias de ninguna parte.Barcelona, Ed. Hacer. s.d.NIETZSCHE, Freidrich Wilhelm. ConsideraçõesExtemporâneas. In: Os Pensadores. São Paulo, Ed.Abril Cultural, 1978.WILDE, Oscar. A alma do homem sob o socialismo.Porto Alegre, Ed. LPM, 1983.WOODCOCK, George. O Anarquismo. Lisboa. Ed.Meridiano, 1971.

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Utopia 9 27

A Moderna Heresía

CHRISTIAN FERRER

para Osvaldo Bayer

Há ideias políticas que são merecedorasdo seu nome, em especial se a sua his-tória foi acumulando impugnações go-

vernamentais e conotações pânicas. Oanarquismo é uma delas. Extremas e excêntri-cas, as ideias anarquistas promoveram umpensamento a partir “de fora”, uma ideologiarefractária aos símbolos políticos do seu tem-po. Desde essa matriz anómala, os anarquistasprepararam e difundiram uma série de ideiasinesperadas que deram formato ao imaginárioanti-hierárquico, inimigo do domínio do ho-mem pelo homem. Não é de surpreender queuma “lenda negra” tenha acompanhado a his-tória do pensamento libertário: utopismo,nihilismo associal, quimera política, fogueirosdas violentas caldeiras dos motins,maximalistas intratáveis. As suas rejeições nãoforam poucas mas, ainda que diversas e pro-

nunciadas de boa ou de má fé, não deixam deser irrelevantes, pois a qualidade “absoluta”ou “purista” das demandas anarquistas não astransformam necessariamente no fecho de umapretensão impossível, mas no alimento de umpensamento exigente que nunca favoreceu fá-ceis transacções políticas ou éticas. Nem oanarquismo alguma vez tiraria benefícios daindiferença pública.

É difícil oferecer ao habitante do fim doséc.XX — o século da aprendizagem da sub-missão ao imaginário hierárquico, seja sobformas brutais ou sofisticadas — um panora-ma do que significou a invenção anarquista.Ainda causa espanto que tenha sido possívelimaginar-se uma sociedade sem hierarquias eque se tenham criado modos de vida e institui-ções regidas por costumes e valores libertários,desde o anarco-sindicalismo ao anarco-indivi-

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Utopia 928

dualismo, o grupo de afinidade e o amor livre,o ensino do anti-autoritarismo nas escolasracionalistas e a difusão de uma mística da li-berdade até aos confins mais inóspitos domundo. Quem releve os actos históricos dosanarquistas, embebidos de uma moral exigen-te e tenaz, de uma invenção imaginativa deactos de resistência, de um humor paródicoanticlerical, de inovações pedagógicas, encon-trar-se-á perante uma reserva de saberrefractário, produto de um maceramento his-tórico que está hoje esquecido ou que édesconhecido pelas culturas da esquerda. Defacto, a sobrevivência do anarquismo é, porum lado, um quase milagre, dada a magnitudedas hostilidades que teve que ultrapassar e dasderrotas que teve que encarar, por outro lado asua perseverança é compreensível: não surgiu,até este momento, antídoto teórico e existen-cial de melhor qualidade contra a sociedadeda dominação.

Durante a Modernidade, o anarquismo di-fundiu-se ao modo das antigas heresías, comouma urgência espiritual que impulsionou osideais emancipatórios a irem para lá dos limi-tes simbólicos e materiais permitidos pelasinstituições a que se havia outorgado o mono-pólio da regulação da liberdade. Talvez porqueos anarquistas foram os depositários mais fi-éis do ideal jacobino, tanto comocontinuadores do antigo impulso milenarista,poderam transformar o lema liberdade, igual-dade, fraternidade no trípode de uma místicadesmesurada. Até nisto o anarquismo conti-nua uma linhagem dissidente: foi no séc. XIXa reencarnação do espaço da insolência políti-ca que em séculos anteriores ocuparam asrebeliões camponesas centroeuropeias, as sei-tas radicais inglesas ou os “sans-culottes”. Nosacontecimentos animados pelo movimentoanarquista encarnaram-se as energias utópicasque permitiram fazer circular o anúncio de umasociedade antípoda, mesmo quando os pais

fundadores da ideia não tenham deixado emoferta contornos excessivamente planificadosdesse futuro.

No séc. XIX três doutrinas, liberalismo,marxismo e anarquismo, constituiram-se osvértices do tenso triângulo das filosofias polí-ticas emancipatórias. O séc. XX alimentou-sedas suas máximas, esperanças e sistemas teó-ricos tanto quanto as pôs à prova e as esgotou.Ainda que a partir de diferentes cunhagens,tanto Stuart Mill como Marx e Bakunine esta-vam atravessados pela paixão por excelênciado séc. XIX: a paixão da liberdade. Há, entreas três ideias, canais subterrâneos que as li-gam ao mesmo leito ilustrado do rio moderno.Mas também abismos separam as ideiaslibertárias do marxismo, começando pela ên-fase colocada pelos anarquistas na correlaçãomoral entre meios e fins, continuando pelo seucepticismo quanto ao papel a ser desempenha-do pelo “partido de vanguarda” e pelo Estadonos processos revolucionários e culminandona firme confiança dos anarquistas na autono-mia individual e nos critérios pessoais — semexcluir afectos nem apetites — na hora de to-mar decisões. Do liberalismo, nunca osanarquistas poderam aceitar a assunção de quea liberdade política e a justiça económica pu-dessem ser pólos irreconciliáveis. Osanarquistas preferiram não optar entre um ououtro desiderato moral, e deixaram que o im-pulso informador e fundador das suas ideias,a liberdade absoluta, resolvesse essa tensãono interior de um horizonte mental eorganizacional mais amplo.

Para Bakunine (talvez a figura emblemáticada história do anarquismo) a liberdade era um“mito”, no sentido em que para Georges Sorelo era a greve geral: uma marca simbólica ca-paz de contrastar com as crenças estatistas ereligiosas, mas também um “ambiente” fecun-do, o oxigénio espiritual de espaços ilimitadose inéditos para a acção humana. Bakunine —

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Utopia 9 29

e uma longa lista de militantes anarquistasdepois dele — insistiu no carácter abjecto deaceitar que um ente superior nos dera forma, eem que só a rebelião poderia higienizar o cor-po social. Na recusa das palavras autorizadase das liturgias institucionais do ocidente osanarquistas inscreviam a possibilidade de im-plantar as sementes de uma nova sociedade,criando uma rede de contra-sociedades, aomesmo tempo dentro e fora da condição opri-

mida da humanidade. Daí que o anarquismonão consista apenas num modo de pensar a do-minação mas fundamentalmente num meio deviver contra a dominação. Na sua vontade de“dar a volta” ao imaginário hierárquico, oanarquismo postulou os fundamentos tanto deuma ciência como de uma experiência da li-berdade: a ciência da desobediência comocaminho de autoconsciencialização e a expe-riência de viver quotidianamente como

“espíritos livres”, pois a história é, para o anar-quista, o “campo de provas” da liberdade.

Por ter feito da liberdade um mito e por terprocurado liberdades irrestrictas, o anarquismopode realizar uma autópsia política daModernidade. Assim como Marx revelou osegredo da exploração económica, Bakunine“descobriu” o segredo da dominação: o poderhierárquico como constante histórica e garan-tia de toda a forma de iniquidade. A intuição

teórica dos pais fundadores do anarquismocolocou a questão do poder em primeiro pla-no: insistiram em como as desigualdades dopoder são prévias às diferenciações económi-cas. É, por isso, no domínio do político (e nãosó nas actividades realizadas nos processosindustriais) onde se pode encontrar a chavepara a compreensão da oposição entre opres-sores e subjugados. O seu moderno colofón, oEstado liberal ou autocrático, constituia-se

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Utopia 930

como garante da hierarquização. Hoje talvezfosse necessário identificar essa garantia,igualmente, noutras instituições. Mas para osanarquistas é indiferente se um território é go-vernado com punhos de ferro ou com suavespalavras, pois a zona opaca que combateram éa vontade de submissão ao poder estatal — umprincípio de soberania antes de ser um “apare-lho”. Todas as invenções culturais e políticasde índole libertária confluem numa estratégiahorizontal de contrapoder, negação da repre-sentação parlamentar que reduz as arteslinguísticas e vitais de uma comunidade a umjogo de berliques e berloques em que coinci-dem maiorias e minorias. Para Bakunine, asmodalidades da dominação iam-se adaptandoàs grandes mudanças históricas, mas as signi-ficações imaginárias associadas à hierarquiapersistiam, sem excluir as democracias, e es-tas mesmas significações constituiam-se eminterdito, em condição de impossibilidade parapensar o segredo do domínio. Ao longo do séc.XX, já entrou no espaço público a questão da“dignidade” económica e foi possível“tematizar-se” a opressão de “género”: tudoisto adquiriu já uma espécie de carta de cida-dania enquanto problema teórico, político, detertúlia, académico ou jornalístico. Mas a ques-tão da hierarquia, essa, continua a ser um tabú.

A ideia de uma camaradagem humana semEstado nem hierarquias é um tabú político daModernidade — e da história — (tabú comba-tido, no entanto, não apenas em certosmomentos históricos emblemáticos mas tam-bém em práticas quotidianas que podem passardespercebidas aos antropólogos da política,obsecados com as condições degovernamentalidade de um território ou pelalegitimidade da forma-estado ou pela fiscali-zação dos seus actos). A possibilidade de aboliro poder hierárquico é o impensável, oinimaginável da política, impossibilidade as-segurada pelas técnicas hierárquicas que

regulam os mínimos actos humanos, que pres-sionam sobre as necessidades quotidianas, quefomentam o desejo de submissão e que atéchegam a enraízar-se no insconsciente dos in-divíduos. Para Hobbes ou para Maquiavel nãoé possível existir unidade entre um povo e oseu governo se não houver submissão — vo-luntária ou involuntária, legítima ou ilegítima— e não há submissão sem terror. Fundar umapolítica sobre a camaradagem comunitária enão sobre o medo foi a resposta anarquista àdescarnada visão daqueles pensadores políti-cos, e para tal era preciso anular ou debilitaras instituições auto-reprodutoras da hierarquia,afim de garantir que a metamorfose social nãoviesse, afinal, a ser dirigida pelo próprio Esta-do. Esta pretensão não pode senão serconsiderada como uma anomalia arriscadapelos bem pensantes e como um perigo pelaspolícias.

O “génio” do anarquismo consistiu na pro-moção não só de um ideal de redenção humanano futuro mas também na promoção de novasinstituições e de novos modos de viver no in-terior da sociedade impugnada, ao mesmotempo que se tentava a sua superação (sindi-catos, grupos deafinidade, escolas li-vres, novosinstrumentos pe-dagógicos, modosde auto-organiza-ção comunitária em o d o sautogestionários deprodução). Daí a ob-sessão do anarquismopor garantir a coerência en-tre fins e meios; a disciplinapartidária, as elites ilumi-nadas e as máquinaseleitorais são a negaçãodo grupo de pertença

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Utopia 9 31

composto por espíritos afins, das capacidadesorganizativas da comunidade e dos atributospessoais. O marxismo ainda não aprendeucomo sair das suas velhas certezas autoritári-as, nem conseguiu retirar qualquerensinamento libertário dos setenta anos de de-sastre soviético. No caso do liberalismo, asexpectativas dos seus promotores estão fixa-das na possibilidade de fazer imperar a lei nasinstituições políticas, mas a possibilidade deeleger o seu amo em comícios não melhora osistema de dominação, assim como a fiscali-zação dos actos do governo não é mais queuma tarefa defensiva que, por outro lado, con-tribui para reforçar o imaginário hierárquicodas sociedades. O problema da “legitimidade”do governo, tão importante para os filósofospolíticos liberais, é para um pensamento con-tra-institucional como o anarquismo umproblema mal colocado. Bakunine afirmava noséc. XIX que os parlamentos democráticoseram “sociedades declamatórias”, e falava en-tão de homens que levavam a sério a “arte debem governar” e do “bem comum” e não dasmafias políticas da actualidade, acorrentadasa alianças de poder de que são inextripáveis.A preocupação pela institucionalização de for-mas democráticas e pela legitimidade dosgovernos eleitos esquece a substância secretada Razão de Estado.

A ampliação do conceito de cidadania e asua institucionalização nos moldes da repre-sentação política foi o caminho emancipatórioque se seguiu, contrário ao escolhido pelosanarquistas. Se as tumultuosas virtudes dasmultidões do séc. XIX encontraram nas ideiaslibertárias uma espécie de confirmação políti-ca é porque elas se adequavam ductilmente àspaixões desencadeadas do povo. Mas a ener-gia obscura do lumpen-proletariado ou dassedições populares nunca gozou de estima en-tre aqueles que entendem que o funcionamentoautomático das sociedades é pré-condição e

chave de segurança na hora de permitir a dis-cussão pública das liberdades. Como osanarquistas sempre foram forasteiros da polí-tica, sabem que a jurisprudência do perseguidonão é a mesma do perseguidor. A política e aética anarquistas confiaram nas artes comuni-tárias, alheias ao processo deinstitucionalização dos poderes modernos, ena “garra” pessoal que otorgou à força e à in-sistência da sua recusa um estilo e uma atitudesingulares. Foram também a causa de oanarquismo ter gerado uma desordem fértil euma imaginação política impugnadora, distan-tes das outras tradições políticas. Por isso éinevitável que nos momentos febris da histó-ria se vislumbre a presença de anarquistas:tanto nos pronunciamentos dissidentes comonos assomos espontâneos. Em boa medida, osanarquistas foram sempre aves de tempesta-de, e talvez o nome de Buenaventura Durrutiseja, no séc. XX, o correspondente a MikailBakunine.

Nas práticas históricas do movimentolibertário não se encontrará tanto uma teoriaacabada da revolução como uma vontade derevolucionar cultural e politicamente a socie-dade. De facto, dificilmente poderia acontecero que no séc. XIX se entendia por “revolução”,se previamente não tivessem germinado mo-dos de vida distintos. Na “educação davontade” que tanto preocupava os teóricosanarquistas, residia a possibilidade de acabarcom o antigo regime espiritual e psicológico,para o qual o Estado moderno tinhareconstituido uma nova correia de transmis-são. Nisto reside a grandeza do pensamentolibertário, incluindo a sua variante anarco-in-dividualista, que é menos uma vontadeantiorganizativa do que uma procura existen-cial, uma pulsão anticonformista. A “confiançaantropológica” na promessa humana (impulsotípico do séc. XVIII) foi o centro de gravida-de a partir do qual o anarquismo desenvolveu

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Utopia 932

uma filosofia política vital, que intuía que aliberdade não era uma abstracção nem umaremota possibilidade futura mas um sedimen-to activo das relações sociais, que sãodistorcidas ou contrariadas pela opressão. Semdúvida, os anarquistas são herdeiros da de-monstração e justamente por isto é que a suaconfiança numa educação racionalista ecientifista não os transformou em merospositivistas. Bakunine ou Kropotkine criamque as origens dos males sociais não se en-contravam na maldade humana — umaafirmação conservadora — mas na ignorân-cia, a qual podia ser ultrapassada, em parte,pelo desmascarador por excelência do séculoXIX: a ciência.

Contra o que muitos supõem, a começarpelo marxismo, o pensamento anarquista émuito complexo e não é simples articulá-lonum decálogo. Nunca existiu um dogma sela-do num livro sagrado, o que permitiu liberdadeteórica e táctica aos seus militantes. Tampoucoo anarquismo se preocupou em construir umsistema de ideias fechadas ou uma teoria sis-temática acerca da sociedade. Talvez, mesmo,a própria diversidade das ideias e das práticas

anarquistas tenha favorecidoa sua sobrevivência: quandoalguma das suas variantesdecaía ou se mostrava inefi-caz, outra a substituía. Doanarco-individualismo aosindicalismo revolucionário,das experiências comunitári-as às rebeliões juvenis, dadifusão das ideias em peque-nos grupos à experiênciaauto-gestionária da revoluçãoespanhola, os anarquistastêm-se centrado sobre uma ououtra faceta da sua história.Além do mais, os anarquistassabem que o seu ideal consti-

tue uma árdua aspiração, porque as suasexigências teóricas e programáticas o colocam“fora” dos discursos socialmente aceites, tan-to como as suas práticas são incompatíveis coma dominação, qualquer que seja a sua forma.Mas se as ideias anarquistas ainda pertencemao domínio da actualidade é porque sustentame transmitem saberes impensáveis por outrastradições teóricas que se pretendememancipatórias. No refúgio desse saberantípoda reside a sua dignidade e o seu futuro.

Tradução de Carlos Terra, a partir da versãopublicada no Boletin de la Fundació d’EstudisLlibertaris i Anarco-sindicalistes, nº3, Outono

1998

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Correspondência em selostelepáticosenquanto vacas pastamem campos de ondasinter-activaso sexo escorreem fios telefónicos: allô amiga.

Pessoas-computadorespenduradas nas argolinhasdos transportes públicossão seis e quarenta e cinco da manhãAO TRABALHO!

José Tavares

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Utopia 934

Como homem e como militante do idealacrata, Acácio Tomás de Aquino foi umexpoente que importa sobremaneira re-

ferir, quer no âmbito dos últimos momentosda resistência e da luta sindical movida pelaCGT (Confederaçâo Geral do Trabalho) con-tra a instauração do fascismo em Portugal,quer, ainda, na dinamização do jornal A Bata-lha, após a ocorrência do 25 de Abril de 1974.No ano de 1987, aproveitando o contexto do

Entrevista aAcácio Tomás de Aquino

J. M. CARVALHO FERREIRA E TORCATO SEPÚLVEDA

centenário do anarquismo organizado em Por-tugal, J. M. Carvalho Ferreira e TorcatoSepúlveda realizaram uma entrevista a AcácioTomás de Aquino, que aproveitamos para re-produzir na íntegra.

CF/TS: Entre um conjunto de factores - fa-miliares, vida associativa, sindical, jornaisde propaganda anarquista – qual deles tevemaior importância na tua vinda para omovimento sindical de tipo anarco-sindica-lista, ou para as ideias especificamenteanarquistas?ATA: O meu pai e a minha mãe eram sócios daVoz do Operário, onde havia uma secção queera a Carteira do Operário. Através dela apren-di algumas cantigas, versos e, de um modogeral, lia com muita atenção tudo o que vinhana Voz do Operário: é claro que se tratava, namaior parte dos casos, de artigos revolucioná-rios. Mais tarde, em Alcantâra, comprei ojornal A Greve, onde aprendi uma cantiga deque eu ainda sei de cor a quadra

“Num espaço incomensurávelgravitam muitos planetassomos estrelas e cometasno espaço incomensurável….”

CF/TS: Ainda que tenha sido no contextoda Voz do Operário e depois no jornal A

Dossier do Trabalho

Fotografia de Acácio Tomás de Aquino

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Utopia 9 35

Greve que, aos quinze anos, mais ou menos,te despertaram para os princípios e práricasdo anarquismo, que fizeste tu depois? Fos-te para a juventude sindicalista ou fostepara algum movimento associativo?ATA: Bom, eu trabalhava num grupodesportivo e costumava comprar todos os fo-lhetos que eram lançados pela Batalha.Consegui fazer uma biblioteca. Mas um diaum rapaz foi lá para tratar de um assunto dedesporto e viu a minha biblioteca. Ele ficouentusiasmado e foi ele que me levou para ajuventude sindicalista, que tinha a sua sede emBelém. Eu fui logo para secretário da secçãoda construção civil, isto porque sabia mais doque alguns lá. Eu já tinha a quarta classe. Pas-sado pouco tempo de lá estar, planeámos umagreve dos corticeiros.CF/TS: Lembras-te em que data é que issofoi?ATA: Em 1922. Mas havia dois amarelos eentão fomos lá pôr dois petardos.CF/TS: Lembras-te da cisão que houve naCGT com a formação da FederaçãoMaximalista, movimento que foiprotagonizado pelo Carlos Rates? Lembras-te se houve muitos anarco-sindicalistas quedeixaram de o ser e aderiram à FederaçãoMaximalista, que depois deu origem ao Par-tido Comunista em 1921?ATA: Depois da revolução de 1917 sei que,por causa da propaganda, houve muitos mili-tantes que aderiram a esse movimento. Não voucitar nomes.CF/TS: Não cita nomes mas essa gente jáestá toda morta.ATA: Exactamente. Muitos foram atrás daque-le ambiente.CF/TS: Mas lembras-te de que houve mui-ta gente que se separou das ideiasanarquistas e depois veio a formar o Sindi-cato dos Arsenalistas e um outro, porqueforam dois os sindicatos que aderiram à

Internacional Sindical Vermelha?ATA: Havia os arsenalistas da Marinha e osarsenalistas do Exército.CF/TS: E como foi a atitude ad CGT relati-vamente à ditadura do Sidónio Pais e doPimenta de Castro?ATA: Sei que houve muita gente que ficousatisfeita com o facto de ele ter parado o enviode tropas para a 1ª Guerra Mundial.CF/TS: Então havia militantes ad CGT quetinham uma relativa simpatia pelo SidónioPais?ATA: Sim, mas depois ele começou a prendermilitantes ao acaso e a mandá-los para Ango-la. Mas ele também tinha a fama de criar a sopados pobres.CF/TS: Pois, essas sopas que há para aí fo-ram abertas pelo Sidónio País, ainda aíestão!!ATA: Sim, mas também deportava muita gen-te e a simpatia que mereceu de início foiacabando. Houve até um rapaz amigo meu queteve que ir para Luanda, para uma prisão quehavia lá.ACT: A Fortaleza de Luanda?ATA: Sim.CF/TS: A 1ª República desmotivou e, emcerta medida, os operários estavam contraela. Mas não houve um certo conformismoface às hipóteses de golpe de estado concre-tizado em Maio de 1926. Não achas que aCGT ficou um bocado parada no “deixa-andar”? O Gomes da Costa veio por aí fora,foi como cortar manteiga.Não notas que houve uma certadesmobilização face aos golpes que se pas-saram em 1925 e 1926?ATA: A CGT ofereceu 20 camaradas para re-sistir ao Gomes da Costa.CF/TS: A CGT pegou em 20 camaradaspara resistir à vinda do Gomes da Costa?ATA: Exactamente. Era o Mendes Cabeçadasque devia liderar a resistência.

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Utopia 936

CF/TS: Tudo bem em relação ao 28 de Maio,mas há ainda uma coisa que gostaríamosde saber. Como é que essa luta se traduziuem número de mortos.?ACT: Houve então a morte de um jovem, achoque se chamava José Júlio da Costa.CF/TS: Ele estava ligado às Juventudes Sin-dicalistas?ATA: Acho que não. Ele era maçon.CF/TS: Então houve uma relação entre aCGT e os militares, para evitar a chegadados outros militares que participaram nogolpe militar em Lisboa. Mas quando a di-tadura salazarista já começa a ganharcorpo, qual foi o papel da CGT e o teu, no-meadamente, no movimento de 7 deFevereiro de 1927?ATA: Isso aconteceu também com os operári-os italianos quando o Mussolini chegou aopoder.CF/TS: Mas, voltando ao 7 de Fevereiro: aíjá estava a ditadura instalada. Qual é a po-sição quea CGT toma?ATA: O 7 de Fevereiro foi uma tentativa dedeitar o Salazar abaixo. Então nós tomámosconta da sede da CGT na Calçada do Combroe fomos direitos ao Rato. Fizemos uma arma-dilha a um tanque do Exército. Eles saíram delá de dentro e a malta deitou-os abaixo.A malta fazia as coisas bem feitas naquele tem-po. Houve um camarada que foi atingido e elemarcou a mão cheia de sangue numa parede.Isto, autêntico!!.CF/TS: Entre esse período de 1927, que foimais uma tentativa insurrecional frustra-da, e o 18 de Janeiro de 1934, lembras-tecomo é que a CGT tentou reorganizar-se,ou dentro da CGT emergiram posições nosentido da aliança com os comunistas, comos socialistas e com os democratas para der-rubar o fascismo que, entretanto, tinha sidoimplantado?ATA: Quando o Salazar ordenou, a polícia che-

gou e desmantelou todo o equipamento do jor-nal A Batalha. Mandaram deitar tudo abaixo.Então A Batalha ficou suspensa. Todavia, ossindicatos continuaram a sua acção clandesti-namente. Todas as assembleias que ossindicatos faziam tinham a assistência da po-lícia para ouvir aquilo que a gente dizia.Quando a polícia achava que a conversa nãoservia, mandava encerrar a sessão. Mesmodurante a ditadura de Salazar os sindicatos ti-nham vida, embora a CGT funcionasseclandestinamente. Nessa altura, fui nomeadopara membro da CGT como representante dafederação dos rurais. Para além de mim, parti-cipava o José de Sousa. Mas este, por causada sua actividade, teve de fugir para Espanha

N縊 tem vontade?venha para a sua casa!

NモS TEMOS AQU ILO QUE

VOCハ PREC I SA!

PREヌO IN TE RE SSAN TE, ENTR EGA

AO DOM ICヘLIO.

NテO AGUARDE MA I S, VENHA!

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O INDIVヘDUORua do Ind iv冝ual ismo Associat ivo

(ventrando no fundo de s i mesmo)

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Utopia 9 37

e fiquei sozinho como representante dos ru-rais. O Salazar fez então, nessa altura, umaportaria para que os sindicatos fizessem partedo sistema corporativo. Já nessa altura era tam-bém secretário-geral da Federação daConstrução Civil. Nós consultámos todos ossindicatos e resolvemos não aceitar essa por-taria.CF/TS: Falas dessa tentativa revolucioná-ria de fascização dos sindicatos em que aCGT tenta num golpe fatal derrubar o re-gime. Mas, para esse efeito, segundo nosparece, teve de se aliar com os comunistas esocialistas.ATA: Bem, não é bem assim. Como sabem, euestava integrado na Confederação Geral doTrabalho. Fazia parte do Comité de Acção. Foientão que tomámos conta da esquadra e assal-támos alguns quartéis e esperávamos quealguns políticos que tinham uma certa forçanos ajudassem…Fui convidado, mais o Mário Castelhano, parater uma conversa com um sargento da Arma-da, para também nos ajudar no Movimento do18 de Janeiro, no Jardim de Santo Amaro. Se-gundo ele, tinham muito material, mas a ideiaera ser ele a comandar o movimento. Como aCGT já tinha tudo organizado, é claro que nãoaceitámos, porque tínhamos tudo programadopara a nossa greve geral e não íamos deixer-nos subjugar por esse sargento. A única coisaque pedíamos era que ele nos pudesse ajudar,mas ir sob comando desse sargento, não. Aíeu fiz várias démarches junto de pessoas quetinham oferecido vário material para a CGT everifiquei que essas bombas tinham pertenci-do ao Sarmento de Beires. Ao tratar desseassunto, verifiquei que tinha caído numa rato-eira. As bombas tinham desaparecido e entãoofereceram-me uma dessas bombas que ospescadores usam para afugentar os peixes.Quando ele me deu essa bomba de papelão,no dia seguinte a casa dele foi assaltada…. Foi

aí que eu fui preso.CF/TS: Tu eras um membro influente naorganização desse movimento. Mas essa or-ganização, na fase da insurreição de 18 deJaneiro, na greve geral, não era só patroci-nada pela CGT. Polícias também estavamlá dentro, e havia os tais políticos. Das figu-ras proeminentes da CGT, lembras-te dasque tiveram maior influência, excluindo atua pessoa?ATA: O Mário Castelha e o Rijo.

CF/TS: Como era a vida associativa-operá-ria nessa altura? As pessoas iam muito paraa taberna, para a Igreja ou, pelo contrário,tinham uma vida cultural intensa atravésda criação e frequência de bibliotecas, uni-versidades ou associações recreativas e

Fotografia de Luísa Adão

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Utopia 938

Acácio Tomás de Aquino nasceu a 9 de Novembro de 1899, na freguesia de Alcântara, emLisboa. Filho de uma família operária, após ter feito a quarta classe, cedo ingressou no mundo dotrabalho, exercendo a profissão de pedreiro durante vários anos na Carris.

O seu sentido de justiça e de liberdade encaminhou-o para a luta contra a opressão e a explo-ração capitalista, razão pela qual, na década de 20, se tenha tornado um militante activo do idealacrata na Juventudes Sindicalistas e na CGT.

Com a fascização dos sindicatos, passou a assumir um papel relevante na organização da grevegeral do 18 de Janeiro de 1934.Tendo sido descoberto pela polícia, foi preso a 11 de Dezembro de1933. Durante 1 ano esteve preso no presídio da Trafaria. Desde 1934 a 1937 esteve preso emAngra do Heroísmo, e daí em diante permaneceu no campo de concentração do Tarrafal até Se-tembro de 1949.

Regressado a Lisboa, por conta própria, volta a exercer a profissão de pedreiro. Embora tives-se vivido as adversidades do regime fascista de Salazar, isso não o impediu de continuar a lutarcontra as expressões negativas da ditadura.

Após a ocorrência do 25 de Abril de 1974, conjuntamente com um grupo de companheiros queconhecia há longa data, colaborou activamente na estruturação do Centro de Estudos Libertáriose no reaparecimento do jornal A Batalha. Em ambos os casos, foi um lutador incansável do desen-volvimento das ideias e práticas libertárias na região portuguesa. A partir do momento em que severificou a impossibilidade histórica da emergência de um anarco-sindicalismo actuante no meiooperário português, passou o resto da sua vida a apoiar esse projecto.

Como grande testemunho histórico, da sua vida e obra, existe um documento que importasobremaneira ler: O Segredo das Prisões Atlânticas, Lisboa, Regra do Jogo, 1982.

No fim, velho e cansado, sem as faculdades físicas, mentais e psíquicas que tinham norteado avida de um homem bom, fraterno e solidário, deixou este mundo em 30 de Novembro de 1998,sem poder ver e viver aquilo que sempre desejou: uma terra sem deuses e sem amos.

Tal como Acácio Tomás de Aquino, Luísa do Carmo Franco Elias Adão que morreu, recente-mente, em 8 de Fevereiro de 1999, foi uma companheira que esteve sempre intimamente ligada àsideias e práticas da acracia. Filha de Francisco Rodrigues Franco e sobrinha de José RodriguesFranco, nasceu a 19 de Junho de 1914. Com o seu pai e o seu tio aprendeu e sofreu as vicissitudesda luta contra a opressão e a exploração do homem pelo homem. Antes do advento histórico dofascismo salazarista em Portugal, não foi por acaso que o movimento libertário teve uma grandeexpressão no distrito de Setúbal nas primeiras da século. Neste aspecto, sublinhe-se o papel domilitante anarco-sindicalista Francisco Rodrigues Franco na Associação dos Marítimos de Setúbale na Cooperativa de Pesca de Setúbal. José Rodrigues Franco era membro do grupo “Porvir” ecomo militante anarco-individualista foi um lutador incansável contra a Primeira Guerra Mundialde 1914-18.

Devido a este ambiente familiar, Luísa Carmo Franco Elias Adão tornou-se militante das Ju-ventudes Sindicalistas aos 16 anos. Durante a ditadura exerceu a profissão de enfermeira e, comoera normal nessa altura, tentou resistir e lutar no sentido do ideal que abraçou. Após o 25 de Abrilde 1974 ajudou na reconstrução do jornal A Batalha e tornou-se militante activa do Centro deEstudos Libertários.

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Utopia 9 39

riam ficar atrás, criaram a Legião Vermelha.Estavam ligados à Internacional Sindical Ver-melha. Era uma tentativa de ter uma juventudecomunista. Mas a juventude Sindicalista teveuma influência muito grande. Uma das coisasde que se acusa os anarquistas em Portugal e,aliás, no mundo inteiro, é que tiveram sempreuma actividade muito importante a nível de sin-dicatos, mas nunca tiveram uma organizaçãoespecífica capaz e tipicamente anarquista. Aparte da FARP (Federação Anarquista da Re-gião Portuguesa), não houve,indiscutivelmente, mais nada. Aquilo que nóspodíamos dizer resumia-se ao seguinte: parti-do comunista é o partido comunista, isto aquié o seu sindicato; tem uma organização dentroda fábrica, mas é uma organização com carác-ter específico. O facto de existir esta dicotomiaobrigou a que os anarquistas menosprezassemo factor específico e o factor organizativo. Querdizer, o aparecimento da FARP, em 1926, é umatentativa para se organizar algo de mais espe-cífico e não se ficar só no sindicalismo ou noanarco-sindicalismo…CF/TS: Tu estiveste envolvido na criação daFARP?ACT: Sim, houve até uma reunião emAlcoentre em que o Quintal foi o principal pro-tagonista.CF/TS: Mas tu sempre estiveste mais liga-do ao anarco-sindicalismo ou aosindicalismo do que à actividade especifi-camente anarquista!ATA: Claro! Eu sempre intervim mais no cam-po sindical…CF/TS: Através do livro que escreveste so-bre o Tarrafal ficamos a conhecer muitosobre o que se passava nesses campo de con-centração. Como é que era a solidariedadeentre os diversos presos anarquistas? Al-guns anarquistas, nesse momento, foramextremamente importantes e morreram lá,como por exemplo o Januário e o Mário

culturais? Segundo parece, foste jogador defutebol, jogando a médio-direito. Podes fa-lar desse teu percurso?ATA: Eu tinha espírito associativo e fiz partede uma equipa de futebol, que era a de SantoAmaro. Mesmo dentro dos clubes de que fizparte, eu fazia propaganda associativa. Fizparte do Belenenses, que foi fundado em 1919.CF/TS: A Juventude Sindicalista chegou adesempenhar um papel importante na his-tória da CGT.Todavia, também existia aLegião Vermelha … O que era a LegiãoVermelha?ATA: A Legião Vermelha estava em oposiçãoà Juventude Sindicalista. Esta como tinha umaacção muito importante e porque eles não que-

O Segredo das Prisões Atlânticas, Acácio To-más de Aquino, A REGRA DO JOGO Edições

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Utopia 940

Castelhano. Como eram as vossas relaçõescom os comunistas? Qual foi a sua posiçãoem relação ao pacto germano-soviético? Ea história da construção de uma estátua aoCarmona?ATA: Bem, isso está escrito num livro que eueditei e não vale a pena falar nisso…CF/TS: O movimento anarquista, quer es-pecífica, quer inclusivamenteanarco-sindicalista, sofre diversos reveses:é a Batalha, é a fascização do sindicato, é ofracasso do 18 de Janeiro, é o fracasso doatentado a Salazar e, inclusivamente, a mai-or parte dos militantes são presos, vão parao Tarrafal, para o Aljube, enfim, para Timore por aí fora… E alguns deles morrem.Quando tu vens do Tarrafal para Portugal,em 1950, estás desligado de tudo.O que pensas tu fazer, quando chegas a Por-tugal? Para além de reencontrares a tuafamília e de teres de trabalhar para sobre-viver, tiveste possibilidade de tereorganizares com os companheiros que es-tavam vivos e, ainda, queriam lutar pelasideias? Quais foram as tuas relações comas pessoas vivas e ainda com o ComitéConfederal?ATA: Quando fui libertado e cheguei ao Con-tinente não vim só: fomos muitos libertados –eu, o Custódio da Costa, o António Gama Pin-to …Quando cheguei e o barco atracou, a PIDE dis-se-me logo: “o senhor amanhã tem de seapresentar na sede da PIDE”. Na PIDE disse-ram-me que estava em liberdade condicionale que todos os meses tinha de lá ir apresentar-me. Disseram-me ainda para ter cautela e nãolidar com pessoas subversivas e ainda que to-masse cuidado durante os três anos deliberdade condicional, porque me podiam pôruma casca de laranja debaixo dos pés. Essacasca apareceu mais tarde. É claro que eu con-vivia muito com os companheiros e até se deu

esta coincidência: houve a preparação de umarevolução ali na Sé, por volta de 1951/52.Eu só apareci na Sé e aparece lá um camaradaque me diz que é melhor ir embora. Eram paraaí 2 da manhã. E então eu meti-me num taximais dois outros camaradas… Eu tinha aí 50anos.CF/TS: E depois desses três anos de liber-dade condicional, tu tiveste algumasrelações com o Comité Confederal? Com oMarques da Costa, o Carlos Cruz, VivaldoFagundes, Alberto Silva, Adriano Botelho,Correia Pires, etc…E as tuas relações como Emídio Santana que ainda estavapreso;em Coimbra?ATA: Eu estava em contacto com eles: tudo oque havia eles contavam-me. Parece que jáexistia o Comité Confederal e que o Fagundesfazia parte desse Comité. Mas houve uma de-sunião…CF/TS: Tu tiveste alguma actividade a ní-vel de a Batalha quando ela apareceuclandestinamente?ACT: Tinha, até porque eu vendia muitas Ba-talhas.CF/TS: Tiveste alguma participação no Mo-vimento Cooperativista liderado peloAntónio Sérgio, em que, como sabes, tam-bém participou o Emídio Santana e o Moisésda Silva Ramos?ATA: Sim, também participei.CF/TS: Entretanto, chega o 25 de Abril de1974. Qual foi o significado desse aconteci-mento para ti?ATA: Eu ia para o meu serviço e via muitagente na rua, mas não percebia o que é que sepassava. Já tinha 72 anos. Mas esse movimento deu-sepor causa do sofrimento que nos impuseramdurante a ditadura. Esse movimento deu-seporque alguns oficiais já tinham sido vítimas,e até as suas famílias.CF/TS: A partir daí, como é que tu tentaste

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Utopia 9 41

desenvolver a tua acção no movimento anar-quista mais específico e no campo doanarco-sindicalismo?ATA: Quando surgiu de novo a Batalha, eu fuium dos cooperadores. Às vezes levava os jor-nais ao correio que iam para Portrugal e oestrangeiro, fazia a distribuição pelas bancasda região de Lisboa, e, ainda, hoje, o o faço,mas já estou muito velho.CF/TS: Agora uma última pergunta: Depoisde tudo por que lutaste, de tudo o que vi-veste, valeu a pena lutar pelo que lutastedepois de saberes o que existe hoje?ATA: Eu tenho orgulho em ter lutado contra oregime salazarista, tenho orgulho em seranarco-sindicalista, tenho orgulho em ter pas-sado pelo Tarrafal. Entre todos os que passarampela PIDE eu fui um dos mais sacrificados.CF/TS: Que significa isso de “sacrificados”?ATA: Pois eu fui dos mais sacrificados lá naPIDE. Eu já não sabia quando era noite ouquando era dia. Um dia em que eu jazia há jámuitos dias numa poça de sangue mandaramvir um copo de leite e um bolo. Mas eu nãoconseguia engolir. Então eles riram-se dizen-do que eu estava a fazer greve de fome e umdeles pôs-se em cima da poça de sangue paraque o indíviduo que trazia o bolo não ver. Nessaaltura eu trazia comigo uma circular num por-ta-moedas altamente comprometedora. É claroque eu tinha mentido e se eles descobrissemessa circular. É claro que eles descobriam queeu tinha mentido.CF/TS: Quais os pides que te maltratarame investigaram ? Foi o Gouveia?ATA: Fui investigado pelo Lino, pelo Seixas,pelo Gouveia, esse malandro…CF/TS: Repara agora no seguinte: depoisde tudo o que lutaste, isto chegar ao que che-gou, as revoluções foram abortadas, a maiorparte de tudo o que foi planeado falhou, aexploração e a opressão continuam, que fu-turo vês para as ideias por que lutaste?

Achas que ainda existe alguma hipótese demovimentos sindicais revolucionários?ATA: O anarquismo só sendo implantado emtodo o mundo pelos trabalhadores é que temvantagem. Agora num país como o nosso, commeia dúzia de anarquistas… Eu penso que oanarquismo, só quando os trabalhadores detodo o mundo forem capazes de fazer uma re-volução social terá o seu período de ouro.Agora já não há trabalhadores… porque oscapitalistas agora já dão bons ordenados. Agorajá não há proletários… agora todos ganhambem para que é que hão-de fazer a revolução….vivem desafogados… ganham a vida….CF/TS: Ganham a vida mas são escravosna mesma.ATA: Pois são. Mas é o próprio capitalismoque está a ir de encontro áquilo que a gentepretende…Mas os capitalistas não estão a fazer a revolu-ção, nem nunca a farão. Eles não vão aoencontro dos trabalhadores: eles estão a lutarpela sua supremacia e pela sua continuidade.Eles dão mais uma esmolinha ao operário quetrabalha para eles.CF/TS: Mas é isso que está a acontecer…ATA: Os capitalistas nunca trabalham para osocialismo. Eles estão a trabalhardesorganizadamente e as contradições geradasentre eles, dentro do sistema capitalista, é quevai conduzir exactamente a isso. Até o pró-prio Papa anda a fazer propaganda pelo mundopara uma vida melhor.CF/TS: Mas esse é um vigarista do mais altograu, é o grande instigador da religião queé o ópio do povo?ATA: Pois é, mas anda por todo o lado a de-fender os interesses dos trabalhadores. Andano fundo, por todo o lado, a aconselhar os tra-balhadores a andarem eternamente de joelhos.

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Utopia 942

PELO TRABALHO NOSPERDEMOS

JOSÉ LUÍS FELIX

Dossier do Trabalho

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Utopia 9 43

“O que é preciso é trabalhar”. “O trabalhodignifica”. Estes e outros slogans semelhantes fazem parte, tradicionalmente, dacatequização de todo o “honrado trabalhador”,sobre cujo dorso se ergue a fortuna e o poderdos pequenos e grandes déspotas de toda a es-pécie. Enquanto os patrões extraiem os lucrose muitos outros benefícios, que não são nadade desdenhar, como sejam, o suborno, o po-der, o estatuto, as influências, o lazer…, tudodecorre “normalmente”. Os patrões, os direc-tores, toda a hierarquia, procuram estimular opessoal, as sanções e os apelos não faltam. Sãoos prémios de produtividade, de assiduidade,de “bom comportamento”, ou são as puniçõesna sua ausência e, ainda, os apelos à dedica-ção pela “nossa empresa”, as grandes tiradasgirando sobre o “envergar a camisola” da “fir-ma de todos nós”. Demagogia, tacanhez emercenanismo constituem o quotidiano dequalquer empreendimento capitalista que sepreze.

Se por acaso a situação se complica e oslucros já não são os esperados, se oscompadrios com o Estado e com os outros se-nhores do dinheiro não funcionam como antes,o cataclismo abate-se sobre os assalariados.Até ao nivel do vocabulário, se registam trans-formações: de “nossos colaboradores” passama “mão de obra excedentária”.

Um exemplo gritante deste estado de coi-sas é o da Fábrica Cabos Ávila. Quando em 2de Novembro de 1997 a situação da Fábrica setornou manchete dos jornais e notícia de aber-tura dos noticiários televisivos, não se falavade outra coisa que não fosse a ocupação daFábrica pelos trabalhadores e da luta que man-tinham com a proprietária Teresa de Ávila. Aospoucos a notoriedade foi-se esvaindo e as no-ticias sobre essa luta tornaram-se escassas,sendo substituidas por outros eventos, notici-ados e comentados de acordo com os métodosda caneta mercenária. É preciso que o espec-

táculo seja suficientemente renovado e atrac-tivo para que tudo se mantenha na mesma.Como é sabido, nesta realidade virtual em quea vida é encenada, o que não é noticia não exis-te, por isso a ignorância sobre evolução do quese passa nessa Fábrica é vulgarmente interpre-tada como assunto ultrapassado, quiçáresolvido. No entanto, quase dois anos e meiodepois, quando transitamos naquela estrada deAlfragide à saída de Lisboa, na chamada “ram-pa dos Cabos Ávila”, verificamos que oscartazes reivindicativos se mantêm pendura-dos nas cercas da Fábrica e as bandeiras negrase vermelhas continuam ali a flutuar.

Para averiguarmos qual é a presente situa-ção, dirigimo-nos à Fábrica e falamos coma1guns trabalhadores que ali se mantêm emocupação permanente, nomeadamente comJosé Ferreira e Armindo Baltasar. Tudo o quese segue resulta do longo diálogo que com elesmantivemos.

Enquanto embolsava rotundos lucros o ve-lho Ávila, patrão tradicional e criador daprimeira empresa de cabos deste tipo no país,mantinha-se enredado nos negócios, nos recôn-ditos do seu Gabinete, a que só os privilegiadostinham acesso. Os mais de 400 trabalhadoresde então eram mantidos à distância e o pluto-crata não lhes permitia aproximarem-se, só oschefes, por vezes, com ele dialogavam sobre oserviço, mas mesmo assim com “o respeito quea ordem manda”.

Pagava os baixos salários que eram a práti-ca corrente e fazia o que lhe dava na real ganados largos proveitos que embolsava. Mordo-mias, festanças, gastos sumptuários oudistribuição de benesses pelos familiares, al-guns dos quais também eram sócios da Fábrica.

QUANDO O FASCISMO CAÍU

Quando sobreveio a queda do facismo, emque tantos capitalistas viam escorada a sua

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Utopia 944

dominação, era assim que as coisas se proces-savam.

Fornecedores únicos das grandes compa-nhias estatais dos telefones e similares,praticavam uma politica absolutista do “que-ro, posso e mando”.

Os trabalhadores tinham, entretanto, desen-volvido um notável espirito reivindicativo,consubstanciado em diversas lutas pelamelhoria das condições salariais e de traba-lho.

No meio da mediocridade, e quando seaproximava o derrube do periodo fascista, osassalariados desenvolviam lutasreivindicativas que, sem porem em causa aessência do capital e do Estado, deixavammarcas, sobretudo devido à tomada de consci-ência da possibilidade de poderem afrontar opoderoso senhor Ávila. Entretanto, este ricopatrão à moda antiga, fazia investimentos paraa modernização da empresa, não dava melho-res condições aos que ali trabalhavam, nãofazia benefícios, tudo era pouco para si e paraos seus.

Quando pergunto como se deu a sucessãodo Ávila, Armindo Baltazar esclarece: “Estaera uma empresa familiar. A Teresa de Ávila,que sucedeu ao pai, já cá trabalhava. Tinhaestado num convento, em Braga, a preparar-se para freira, mas o seu comportamento eratão execrável que foi expulsa. Depois tirou umcurso e o pai mete-a cá a dirigir o pessoal,sempre de forma prepotente e autoritária”.José Ferreira acrescenta: “As provas disso sãoinúmeras. Olhe, por exemplo, a maioria dopessoal era constituido por mulheres, muitasdas quais com filhos de tenra idade. Por issohavia uma creche instalada na parte mais altada rampa em que se situa a Fábrica. Quando,era a hora de saída a Teresa obrigava as mu-lheres a sairem pelo portão que se situava nasproximidades da creche, tendo de caminharuns 100 metros, com as crianças ou colo ou

pela mão, por uma estreita vereda da estrada,no meio de um trânsito infernal. No outro ex-tremo da Fábrica onde se encontra a paragemdos autocarros, que tinham de apanhar. Quan-do lhe chamamos a atenção para o perigo queas colegas corriam e pedimos, insistentemen-te, para se deslocarem por um caminhoparalelo ao que faziam, situado, no interiorda Fábrica, passando a sair por um outroportão, junto à referida. paragem dos auto-carros, ela recusou e, apesar da nossainsistência, proíbiu que saíssem pelo referidoportão. Outro episódio revelador é aquele aque chamámos “a casa amarela”. Durantelargos meses não distribuiu tarefas a mais de40 trabalhadores, que eram obrigados a per-manecer numa sala, sem nada para fazer e sempoderem falar. Uma autêntica tortura tipoPIDE, daí o nome que demos àquele local.

Mas houve muito mais situações de coac-ção , de autêntica tortura”.

“Como daquela vez em que pedimos paranão trabalharmos na véspera de Natal e elarecusou e perguntou com sarcasmo, o que éisso do Natal?” acrescentou Armindo Baltazar.

José Ferreira comenta: “A entrada delapara administradora não foi bem vista pelosrestantes sócios e familiares. Isso coincidiucom as alterações no mercado de cabos, como aparecimento de novas empresas, a perdadas quotas de 100% que detinham nos forne-cimentos deste tipo de cabos e a introduçãode novos métodos de gestão. Por isso não seadaptou, não aguentou a empresa e nós sofre-mos as consequências”.

A desregulação dos mercados traduz a al-teração no modelo industrial do fordismo emdirecção a uma sociedade completamente al-terada. A planificação a prazo que caracterizao modelo fordista, implica a necessidade dereduzir os distúrbios, a estandardização do tra-balho dos operários. A negociação colectiva énecessária para a racionalização do trabalho.

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Utopia 9 45

Em grande parte da produção do actual acompetição chega a ser global e radical, prati-camente todos competem com todos, oplaneamento a longo prazo deixa de ser possí-vel devido à impossibilidade de sistematizar adesordem do mercado. Assim, num ambienteimprevisível, o capital tem de navegar à vista,daí a necessidade de uma elevada flexibilida-de do mercado de trabalho.

Quando se batem contra a patroa os traba-lhadores dos Cabos Ávila não lutam apenaspor eles, estão lutando por todos. Numa situa-ção de esmagamento da justiça, a sua luta podeassumir-se como exemplar.

Ainda no tempo do patrão do Ávila, por viadas novas condições de mercado, a situaçãocomeça a deteriorar-se. Segue-se a via sacradestas coisas. 1983 marca o princípio das dí-vidas à Segurança Social (fazem o descontoaos trabalhadores e ficam com eles) e ao Esta-do. Seguem-se os salários em atraso e asdívidas aos fornecedores. Mais de 400 traba-lhadores vêm-se numa situação aflitiva. Asreivindicações e as lutas sucedem-se.

Perante a indiferença da Teresa, os planosde recuperação da empresa, que contam como apoio do Estado, não se cumprem. “Pior ain-da, acrescenta José Ferreira, membro daComissão de Trabalhadores, a concorrênciacria e desenvolve “lobbie” e apodera-se domercado”.

“O Sindicato desenvolveu esforços e nóstambém. O Estado que, através do Ministérioda Economia aprovou planos de viabilizaçãoda Fábrica, também apresentou propostas dereorganização, mas elas não deram andamentoa nada”, conclui Armindo Baltasar, delegadosindical.

É IMPERIOSO EXIGIR AREPARTIÇÃO DA RIQUEZA

Hoje em dia, com a redução do processoEd i鋏es Re f l ect i r R i r

contratual que era necessário ao anterior mo-delo fordista, estamos situados na era dacompetição global, que substitui os métodosanteriores, utilizando a “fidelidade”, a “autoactivação”, a “participação”, etc., conduzindoà diminuição do desempenho dos sindicatos,quantas vezes reduzidos ao triste papel de con-dutores dos trabalhadores para as situações quemais interessam ao capital na actualidade. Gra-dualmente apoiam a redução do número detrabalhadores na empresa e mesmo apolivalência e a precarização, em troca de umamão cheia de promessas. Tudo isto é práticacorrente nos países mais industrializados.

Torna-se imperioso perceber que o traba-lho está em vias de uma drástica redução, quetem de se exigir a repartição dos frutos de umaprodução cada vez mais automatizada, que temde se questionar a finalidade da actual produ-ção, que é preciso distinguir entre o trabalhoassalariado e actividade social. E, sobretudo,que é imperioso exigir, não a repartição do tra-

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Utopia 946

balho, mas sim da riqueza.Pergunto a que se deveu a actual luta, que

conduziu à ocupação da Fábrica: “Desde háanos que a situação da Fábrica se encaminhoupara o precipício, respondem-me. Numa dis-puta com o Banco Português do Atlântico,pequeno credor que estranhamente pediu afalência, perderam-se 9 meses. Entretanto ossalários em atraso e as dívidas acumulam-se,Teresa de Ávila prossegue a sua estratégia dedescapitalização da empresa”.

Pergunto se não pensaram em gerir elesprópros a Fábrica, pondo Teresa de Ávila narua. José Ferreira responde-me: “O Secretá-rio de Estado propôs-nos isso. O Estadoconcedia um apoio de 400.000 contos e nósficaríamos com a responsabilidade da gestão,com o apoio dos quadros. Mas a patroa, queteria de abandonar a administração, não acei-tou a proposta e, além disso, já tinhadispensado os quadros competentes, que es-tavam do nosso lado”.

O empobrecimento da empresa e dos tra-balhadores prosseguiu, enquanto a proprietáriacriou una empresa importadora do mesmo tipode materiais para fazer concorrência à Fábri-ca. Não contente em fazer desaparecer materialque, entretanto, aparecia por artes e manhasna sua nova empresa, em S. João o Estoril, ain-da tentou o golpe máximo. Em 9 de Dezembrode 1997, apoiada por alguns marginais, tentouroubar equipamentos e materiais, enquantoprocurava proibir a entrada dos trabalhadoresna empresa.

Desesperados os operários ocuparam aFábrica, deixando-a isolada no seu gabinete.A capitalista enfurecida entrou em contactocom o Governo Civil, pretextando um seques-tro. Aquela autoridade enviou prontamente umesquadrão da polícia para proteger a assaltan-te, acontecimento jamais visto, enquanto ostrabalhadores eram espoliados.

Perante estes acontecimentos e a

divulgaçãoo distorcida dos factos por parte dosmeios de comunicação de massas, os operári-os reforçaram a ocupação e trataram dedifundir a verdade dos factos.

Impossibilitada de levar a cabo o golpe, aTeresa saíu sob a protecção da PSP, da GNR edo próprio Governador Civil. Dizia-se seques-trada e ameaçada, mas jamais conseguiuapresentar provas dessa conversa.

Passados mais de dois anos, a ocupaçãocontinua. Revezando-se por turnos, os traba-lhadores, mantêm-se 24 horas por diavigilantes, perante a tentativa de um novo gol-pe que, de quando em quando, a ex-patroaameaça através de terceiros. Tudo o que exis-te nas instalações é a garantia de que os créditosque têm sobre a empresa Ihes serão pagos e afutura transacção a efectuar pelo Estado comoutros capitalistas terá de ter em conta a suasituação. No período de maior actividade jáforam mais de 400 trabalhadores, hoje são 230,com uma média de trabalho na empresa de 27anos.

Por entre condicionamentos de toda a or-dem e a incompreensão e ignorância de tantos,os trabalhadores dos Cabos de Ávila tomarama palavra. Uma vez mais demonstraram que épossível conduzir uma luta prolongada contraa prepotência e a arrogância. Contra as novascondições de produção, que tendem a trans-formar a Fábrica numa instituição, em que otrabalhador vê desaparecer, por entre os de-dos, tudo o que até agora era estabelecidoatravés da negociação colectiva. Impõe-se umaluta, não para um inviável regresso às anterio-res forma exploração, mas sim que asseguremelhores condições para os trabalhadores eestabeleça comunicação e articulação de es-forços entre as várias camadas do sector dotrabalho, do não trabalho, do consumo, da re-sidência, da cultura e outras, que as actuaisformas de produção e de existência tendem aisolar, reduzindo cada um e todos a simples

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Utopia 9 47

átomos, presos numa infernal engrenagem deuma competição constante por um simulacrode vida. Face a uma empresa não adaptada aosnovos métodos da fábrica pós-fordista, na qualo capital procurou alijar a carga das responsa-bilidades para com os assalariados e outros,tentando encontrar a sua saída através da cons-tituição de uma empresa similar, a funcionarconforme os novos moldes, os trabalhadoresrecusaram assistir passivamente à destruiçãoda sua vida, enrolados em promessas que oEstado lhes prodigaliza com abundância. A sualuta é também a de todos aqueles que aspirama uma nova maneira de viver e acreditam nasolidariedade.

Pese a estratégia de isolamento e divisãoque o Estado, e não só, lhes ministra, estestrabalhadores demostram que uma luta lon-ga é possivel, que a derrota não é inevitávele que não somos obrigados a aceitar tudo oque os diferentes poderes nos pretendemimpôr. Estas lutas proporcionam oportuni-dades de romper esse mesmo isolamento, deabordar questões vitais para a nossa sobre-vivência e futuro, de aprender a saborear eaproveitar o tempo, articulando esforçoscom outros trabalhadores, aqueles que fi-caram desempregados, que só encontramtrabalho precário, que auferem salários re-duzidos, que emigraram para poderemsobreviver, que passam a vida nos transpor-tes, que vão morar para onde não querempor falta de dinheiro, que vivem em casassem condições ou mesmo não têm casa, detodos aqueles que são vítimas deste irracio-nal e violento modo de vida. Falarmos unsaos outros, para circular informação e es-tabelecer cumplicidades, eis um passodesejável a dar.

Pergunto como se aguentam, se auferemalgum rendimento. Responde-me o JoséFerreira: “Recebemos por parte do Estado oequivalente ao subsídio de desemprego. Cla-

ro que isto não chega, mas temos de nos aguen-tar, com a idade que temos não conseguimosarranjar outra coisa. Eu prório tenho 52 anos,25 dos quais aqui passados”. “Eu 47 anos,com 33 anos a trabalhar nesta empresa.”, in-terrompe Armindo Baltazar.

No modelo pós-fordista exige-se o máxi-mo de disponibilidade e flexibilidade aostrabalhadores para se responder ao caos pro-vocado por uma competição global. A anteriorvia normativa que conduzia à formalizaçãoatravés do planeamento e a uma base contratualque reduzisse ao mínimo os distúrbios, já nãose impõe no novo modelo de concorrênenciatotal, em que se navega à vista. A “fidelidade”e “a participação” actualmente exigidas, a parda flexibilidade, dificultam a manutenção dostrabalhadores mais antigos.

A Teresa, recordam-me ainda, quando as-sumiu o lugar de administradora, fez inúmeraspromessas. O futuro seria tão radioso, segun-

ATENÇÃO

Se os pastores que

ordenhame as ovelhas que

os seguemte fazem vomitar

não os deixes dormire permanece de fora.

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Utopia 948

do as suas palavras, que grande parte dos tra-balhadores apoiou a sua promoção, embora jáa conhecesse de outras funções. Era tudo con-versa, claro. Até um Plano de Amortização dasdivídas ao Estado e à Seguranga Social, quese comprometera a pagar em 10 anos, não pas-sou de isso mesmo, de mais uma promessa.Outro aspecto bastante significativo, prende-secom situação dos quadros da empresa. JoséFerreira revelou-nos que os antigos quadros,calejados por lutas passadas, eram solidárioscom a luta de todos os trabalhadores, identifi-cavam-se com as suas acções. Por isso mesmoa Teresa de Ávila tratou de os afastar e admi-tiu quadros novos. Eram simples lambebotasda patroa, a quem obedeciam servilmente, masnão percebiam absolutamente nada das tare-fas que lhes competiam. Armindo Baltazarconclui: “De dívida em dívida, de fracasso emfracasso, a Cabos de Ávila, foi descendo a la-deira rumo à falência. Dos duzentos e tal. milcontos de facturação da anterior gerência des-cemos a menos de uma quarta parte”.

Interrompo para procurar saber como fun-ciona a ocupação actualmente. Dizem-me queos bens foram arrolados, e ninguém entra nosedificios da Fábrica, entretanto selados a pe-dido dos ocupantes. Ocupam apenas aquelassalas dos pequenos pavilhões da entrada. De-fendem o património, que também é o seu. ATeresa ou os seus sicários telefonam, de quan-do em vez, para a policia da zona a dizer queos trabalhadores estão a roubar equipamento e

materiais dos edifícios da empresa. Quem sabese esses relatos nao serão inspirados nos des-vios que ela própria cometeu. Os “stocks” dasua nova sociedade são a prova mais evidentedo golpe que efectuou e que gostaria de repe-tir. Para evitar tudo isso o pessoal decidiucontratar um policia que se mantém permanen-temente no portão de entrada.

TRABALHADORES VIGILANTESDIA E NOITE

Os trabalhadores mantêm a vigilância du-rante todo o dia e toda a noite, sete dias porsemana. Actuam por turnos, que mantêmpernamentemente, preparam as refeições, dis-cutem os assuntos relacionados com a Fábrica,jogam às cartas, conversam, preparam-se parao que der e vier e, sempre atentos, não desar-mam.

O Estado, principal credor, tem entabuladonegociações com outros capitalistas para apossivel venda da Fábrica. Outra hipótese é adeclaração de falência.

Pergunto o que preferem: “Tudo é negoci-ável, desde que os nossos direitos sejamsalvaguardados”, responde-me, com firmeza,José Ferreira. Annindo, Baltazar acrescenta:“Que o ânimo continua a ser elevado, Todasas semanas, há um plenário, em que partici-pam elementos do sindicato, durante o qual asituação existente é discutida, bem como osacontecimentos decorridos durante a semanae as perspectivas futuras”.

Os trabalhadores da Cabos de Ávila foramapanhados numa alteração de relações de tra-balho em que o poder das negociações, apossibilidade de chegar a um acordo, atravésde conversações entre o sindicato e o patronatoestá tendencialmente a desaparecer. Já nãointressava à entidade patronal manter a empre-sa e os seus encargos, próprios do modelofordista anterior. Por isso deixou degradar a

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Utopia 9 49

situação e tratou de criar uma nova empresa,tratando de levar para lá não só os contactos eo know how, mas também aquilo que conse-guiu sacar da Fábrica. Levou tudo o que pôde,deixando para trás os trabalhadores. Esses, tra-tados como coisas, como manda o uso, foramdeixados ao abandono.

O Estado trata de os acalmar com inúme-ras promessas e uma pensão de miséria.Através da fiscalidade, alimentada, acima detudo pelo trabalho, o Estado sustenta osdesregramentos e a readaptação do capital, queassim se prepara para o novo modelo empre-sarial, cada vez mais moderno e europeu,conforme a propaganda dos meio de comuni-cação de massas não deixa constantemente denos lembrar.

Quanto ao futuro os meus interlocutoresdissipam quaisquer dúvidas: “Vamos manter-nos aqui o tempo que for necessário, até que anossa situação seja resolvida”.

NÃO NOS DERROTAM PELOCANSAÇO

“Continuaremos com os piquetes de ocu-pação, faremos as manifestações que foremnecessárias para alertar a população. Continu-aremos as negociações com os representantesdo Governo, estamos abertos a qualquer solu-ção, desde que a nossa situação seja resolvida.Temos recebido muitas promessas, mas a situ-ação mantem-se na mesma, ou antes pior,porque à medida que o tempo passa mais difí-cil se torna o nosso sustento com o pouco quenos é atribuido.

Mas não julguem que desistimos. Trabalhá-mos muitos anos aqui, enriquecemos ospatrões, não nos podem deitar agora na lixei-ra.

Prosseguiremos a nossa luta, as consciên-cias sendo alertadas, mesmo que nestes dias jápouco falem de nós, na televisão e nos jornais,

continuamos a estar presentes para quem aquipassa e não deixaremos de alertar a opiniãopúiblica sempre que se torne possível.

As acções a desenvolver dependem da opor-tunidade, de cada momento, mas estejam certosque não desistimos, queremos a nossa situa-ção resolvida, não podemos continuar a viverassim as nossas vidas. Uma coisa é certa, nãonos derrotam pelo cansaço”.

O caso da Fábrica de Cabos de Ávila é, ameu ver, exemplar. Uma vida passada entreparedes para enriquecer outros, através de umaactividade que obrigou, ao longo dos anos, àobediência estrita e a aceitar tudo o que se de-testa para poder assegurar (mal) o pão de cadadia.

Desmando após desmando, a entidade pa-tronal, resolve adaptar-se aos novos tempos dacompetição generalizada e abandonar à suasorte os trabalhadores que lhe ergueram o bem-estar e a fortuna. Para trás ficam as dívidas, os

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Utopia 950

salários em atraso...Não contente com tudo isso procura impe-

dir a entrada dos trabalhadores na Fábrica edesviar tudo o que pode para a nova empresa.

Todo este ardil esbarrou na vontade dosoperários. Apesar da ignorância e daincompreensão que os cercavam, empreende-ram uma luta que animosamente mantêm hámais de dois anos.

Quase ignorados pelos meios de comuni-cação (manipulação) de massas, esquecidos dequase todos, persistem e fazem ouvir as suasreivindicações.

Vítimas das promessas do Estado, dos há-beis gestores de expectativas que os procuramiludir, mantêm a sua determinação, numa ati-tude que deve ser reconhecida por todos edivulgada. A sua luta é também a nossa luta, ade todos aqueles que não se revêm nesta soci-edade e procuram mais solidariedade e maisliberdade para todos.

Eles demonstram claramente que os desem-pregados, os subempregados, os excluidos dobanquete consumista, não estão sós, como di-zem os meios de comunicação de massas. Asua situação não é como nos dizem, geradorade depressão, de vergonha e de isolamento.

No seio deste colectivo as pessoas estãovivas, apesar da estratégia do governo desti-nada a dividir e a debilitar os que são postos àmargem. Isto demonstra que os desemprega-dos, os excluidos e outros, podem ter umaoportunidade para romper com o isolamento aque os querem votar, para estabelecer ligaçõescom outros explorados e oprimidos, para criarredes de informação e acção, para utilizar demaneira frutífera o tempo, que os desempre-gados e inactivos dispõem em grandequantidade.

Quem sabe se assim não será possível in-ventar uma existência mais digna e mais livre.

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Utopia 9 51

O TRABALHO E OSINDICALISMO NO LIMIAR

DO SÉCULO XXI

J.M. CARVALHO FERREIRA

Na actualidade, entre as várias tragédias da humanidade, importa referir so-bremaneira os efeitos perversos do

trabalho e do sindicalismo. Não obstante ascrítcas de que foram objecto, cada um destesfactores depresssa se tornaram num conjuntode proposições positivas, cujas características,na voz dos seus defensores, primavam pelodesenvolvimento da razão, do progresso e daciência no contexto da evolução das socieda-des.

Para alguns, o trabalho era e fonte exclu-siva de criação de riqueza social, de produçãoe de reprodução das sociedades. Para outros,foi e é uma das bases essenciais de bem-estare de liberdade individual. O sindicalismo, nassuas múltiplas formas, emerge históricamente

nos finais do século XIX nas países capitalis-tas que enveredaram pelos ditames darevolução industrial. Nas suas múltiplas ma-nifestações de acção colectiva ou demovimento social revolucionário sempre seenquadrou nos parâmetros reivindicativos oude mudança radical da organizaç\ao do traba-lho.

No quadro desta análise, não nos interessaaprofundar as várias formas que o trabalho temassumido na história, nomeadamente aque-las que decorrem de sociedades baseadas naescravidão e na servidão. Neste sentido, sebem que o trabalho tenha precedido o apare-cimento do sindicalismo, este, nas suas formase conteúdos, surge como fenómeno de reac-ção e de adaptação às contingências negativas

Antes da greve...

Dossier do Trabalho

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Utopia 952

de exploração e de opressão do trabalho assa-lariado capitalista.

Apesar de subsistirem dúvidas para algunsincautos quanto à sua substancialidade, o tra-balho, como meio da prossecução do lucro, éo elemento crucial da estabilidade normativada racionalidade instrumental do capitalismo.Por esta razão, nem o capital existe sem traba-lhadores assalariados, nem estes podemtrabalhar sem a ele recorrerem. Dependendoum e outro, são partes integrantes de um todoindissociável que só pode acabar com a mortede ambos (1).

Pelo facto de realçarmos asinterdependências e complementaridades quetem existido entre o capital e o trabalho, issonão obsta que a emergência da exploração eda opressão do primeiro sobre o segundo nãotenha gerado contradições e conflitos que seconsubstanciaram em processos sociaisreivindicativos e até, em alguns períodos his-tóricos, em tentativas insurreccionais erevolucionárias. Compreende-se, assim, que setenham desenvolvido vários tipo acção sindi-cal, com incidência em ideologias e práticascontrastantes: sindicalismo reformista,sindicalismo revolucionário e anarco-sindicalismo.

Em tudo o que acabo de afirmar, subsistemum conjunto de dúvidas e de interrogações.Mantendo-se as bases da exploração e daopressão sobre o trabalho assalariado, quaisas razões porque existe tanto gente ainda areivindicá-lo e a sofrer as suas viccissitudesnegativas? Se o sindicalismo foi criado com ointuito de libertar os trabalhadores assalaria-dos do jugo capitalista, porque razão ele setransformou numa modalidade de gestão damanutenção da estabilidade normativa do sis-tema capitalista e tende progressivamente paraser mais uma inutilidade histórica? Enquantouma modalidade diferente do sindicalismo,mesmo que o anarco-sindicalismo continue a

reivindicar uma função de emancipação soci-al das massas trabalhadoras, qual a razão dasua atomização e incapacidade de mobilizaçãosocial?

Por forma a responder a algumas dessasdúvidas e interrogações, vou tentar debruçar-me sobre os conteúdos e as formas do trabalhoe do sindicalismo em três períodos históricosdistintos: o primeiro período que oscila entrefinais do século XIX e o advento da revoluçãorussa de 1917; o segundo que se enquadra nocontexto do taylorismo e do fordismo e tem oseu apogeu nos finais da década de 60; o ter-ceiro que incide no período da revoluçãotecnológica em curso, tem o seu início nos prin-cípios da década de 70 e vai até aos nossosdias.

Pela extensão e profundidade das temáticasem análise, cingir-me-ei ao contexto geográfi-co da Europa ocidental e dos EUA. Os aspectosa que darei mais atenção cicunscrevem-se aoprocesso histórico da racionalização da orga-nização do trabalho, à natureza dos conflitosque emergiram entre o capital e o trabalho e,ainda, às modalidades de acção colectiva de-senvolvidas pelos sindicatos e as massastrabalhadoras.

1. TRABALHO E SINDICALISMO NO

CONTEXTO DA PRIMEIRA REVOLUÇÃO

INDUSTRIAL

Ainda que sumariamente, se traçarmos umquadro genérico da organização do trabalhonos finais do século XIX, com base nas carac-terísticas da divisão do trabalho, da estruturada autoridade hierárquica, nos processos dedecissão e de liderança, verifica-se que per-sistia um papel reponderante do patrão,nomeadamente nas funções de controlo e decoordenação do processo de trabalho. Perantea frágil institucionalização e formalização das

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Utopia 9 53

relações sociais que decorrria do funcionamen-to interno das empresas, o seu poder deiniciativa e de gestão era quase omnipotente.Sem grandes argumentos científicos e racio-nais para liderar e decidir, possuia, no entanto,a força despótica das sanções e adiscricionaridade do dinheiro para regular osconflitos que emergiam nos locais de traba-lho. Para o efeito, para levar por diante a suaânsia pelo lucro e o enriquecimento, bastava-lhe o auxílio da figura intermédia da autoridadehierárquica do contra-mestre ou do capatazpara manter uma massa de enorme de operári-os na ordem.

Com horários de trabalho que oscilavam,por vezes, entre 14 a 16 horas por dia, comsalários baixíssimos e, ainda, sem direitos esem regalias sociais, tornava-se fácil, mas, aomesmo tempo, perigoso, pro-duzir, distribuir e consumirmercadorias que permitam aapropriação de lucro fácil porparte do patronato. Na altura,o Estado era uma figura qua-se reduzida a funções derepressão militar e policial,quando o patronato se mostra-va incapaz de resolver os seusconflitos internos. Dessemodo, o Estado não podiaobviar as condições paupérri-mas a que o operariado estavasujeito, não sendo para o efei-to capaz de suprir as suasinsuficiências através de políticas económi-cas, educacionais, de assistência social e desaúde. A sua capacidade de arbitragem nosdomínios da legislação laboral e da negocia-ção colectiva, quando surgiam conflitos entreo operariado e o patronato, era reduzida, paranão dizer nula.

Seguindo esta linha de raciocínio, consta-ta-se que os níveis hierárquicos da autoridade

formal não eram grandes. Todavia, o patrão eo capataz não vigiavam nem controlavam comproficiência devida todos os gestos, movimen-tos, tempos e pausas que resultavam dasinteracções sociais no processo de trabalho. Setomarmos como exemplo o modelo de fábricado processo e industrialização, facilmente che-gamos à conclusão que a divisão social dotrabalho não era muito desenvolvida. À divi-são social do trabalho era traduzida naexistência dos grupos sócio-profissionais dostorneiros, dos fresadores, dos serralheiros, dosmecânicos, dos electricistas, etc..., denotando-se também as diferenças de qualificaçãoassentes nos conhecimentos e funções dos ofi-ciais, ajudantes, aprendizes e serventes.

Neste contexto de evolução da organizaçãodo trabalho, a integração da ciência e da técni-

ca no sentido daracionalidade instrumen-tal do capitalismo erapouco expressiva. O pa-pel da comunidadeoperária, por tais moti-vos, era muito relevante,quer como função de dis-pêndio de energia quercomo função de conheci-mento e informação do“saber-fazer” materiali-zado na produção demercadorias. Para ooperarido de então, estefacto revelava-se estrate-

gicamente importante para a sua margem demanobra no contexto da organização do traba-lho. Não obstante existir já a máquina a vapor,as máquinas-ferramentas não tinham ainda sidoobjecto de uma grande automatização. Nosfinais do século XIX, nos seus primórdios, adescoberta da electricidade e do petróleo, talcomo do motor a combustão e a explosão, nãoretiraram nem substituiram de forma radical a

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Utopia 954

força física do operariado, enquanto função deenergia, no processo de trabalho.

Todos esses factores conjugados determi-navam que o operariado existisse comocomunidade sócio-profissional e usufruisse deum papel estratégico no processo de trabaho.As suas competências e qualificações eramcruciais para o funcionamento das empresas,na estrita medida em que através do conheci-mento, da informação e da energia que possuía,liderava e decidia, em última análise, da perí-cia, dos ritmos e dos tempos que eramnecessários para produzir as mercadorias.Ainda que sujeitos à exploraçâo e à repres-são patronal, com base na socializaçãodestes predicados de uma comunidade pro-fissional, construiu uma identidadecolectiva que se revelou fundamental na sualuta contra os desígnios do capitalismo (2).

Nesta situação, da mesma forma queconseguimos observar uma certa incapaci-dade da racionalidade instrumental docapitalismo em optimizar o factor trabalhocomo meio de extração de lucro dentro dafábrica, por outro lado, verifica-se que omercado e o Estado ainda não tinham evo-luído no sentido da total capitalização doespaço-tempo da vida quotidiana do ope-rariado exterior ao local de trabalho. Este,para fazer face aos constrangimentos da suacondição económica, social, política e cul-tural paupérrima, por omissão eincapacidade do mercado e do Estado, es-trutura um projecto de solidariedade e defraternidade colectiva nos bairros, nos cafés,nas associações de diferentes tipos, nos jor-nais, revista, nas cooperativas e nos sindicatos.

Ao mesmo tempo que se assiste a uma re-lativa relativa incapacidade deinsrumentalização do operariado na lógicamercantil do capitalismo, o operariado, deentão, estrutura as bases de uma identidadecolectiva que se opôs aos ditames do capita-

lismo. A emergência histórica do sindicalismoreporta-se, em grande medida, a essa situaçãohistórica (3). Entregues a si próprios num pro-cesso de aprendizagem social que geravaabrupatmente reivindicações, greves, sabota-gens, insurreições e outras formas de acçãocolectiva, não admira que a partir dessa alturase assiste-se à criação de teorias e práticas sin-dicais distintas. Entre os mais representativos,destaca-se: o sindicalismo de tipo reformista eque geralmente funcionava como correia de

transmisão dos partidos de cariz marxista,como foi o caso do partido social- democrataalemão; o sindicalismo revolucionário que sedesenvolve a partir da Carte d’Amiens em 1906em alguns países capitalistas da Europa oci-dental; e o anarco-sindicalismo que teve a suaexpressão máxima nas primeiras décadas doséculo XX na Espanha, Argentina, Itália ePortugal (4).

O primeiro tipo de sindicalismo de cariz

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reformista estruturou-se numa perspectiva“economicista”, procurando através de reivin-dicações sucessivas uma mehoria gradual dossaláros e da condições de trabalho do operari-ado no quadro da perpetuação e legalidaecapitalista. Tratava-se, no fundo, de envere-dar por formas de lutas parciais, por forma aconquistar um conjunto de regalias e direitos,sem perturbar os mecanismos de concorrênciaempresarial no mercado. Neste aspecto, peseembora luta dos “luddistas” (5) na Inglaterra,nos finais do século XVIII, contra o processode automatização gerado pela introdução demáquinas-ferramentas no processo de trabalho,sabotando e destruindo as máquinas que eli-minavam a sua autonomia e liberdadeprofissional nas fábricas, posteriormente, foinesse país que sindicalismo reformista sin-grou. Na Alemanha a sua influência tambémse tornou preponderante, mas neste caso, maiscomo estratégia de subordinação à luta pelopoder dos partidos políticos.

Ao focarmos o sindicalismo revolucioná-rio como muito importante neste contextohistórico, devemos referir dois aspectos essen-ciais. Em primeiro lugar, ele expressa umestado de espírito de revolta e de emancipa-ção contra as características negativas daopressão e exploração capitalista sobre os ope-rários. Em segundo lugar, é uma respostahistórica do operariado contra a integração dassuas lutas nos parâmetros da perpetuação docapitalismo. Neste sentido, o objectivo fulcraldo sindicalismo revolucionário passava poruma transformação radical da sociedade capi-talista. Quer em relação aos seus princípiosquer em relação aos seus métodos de luta, pug-nava por uma visão autonomista e organicistado sindicalismo. O sindicato, como espaço-tempo da vida quotidiana do operariado, antesde mais, era a base experiência e de aprendi-zagem social de todos os aspectos relacionadoscom a produção. distribuição e consumo de

mercadorias imprescindíveis à construção deuma sociedade identificada com os interessesexclusivos da classe operária. Asustentabilidade de uma sociedade harmonio-sa no futuro, só poderia ter alguma viabilidadedesde que os sindicatos se assumissem enquan-to projecto de luta pela emancipação social.Por essa razão, eram apologistas da greve ge-ral, da sabotagem, do boicote e da insurreiçãosocial. A sua concepção sindicalista centradana acção directa e na reorganização radical dasociedade, opunha-se a qualquer tipo de parti-cipação ou de negociação do operariado comos partidos políticos ou com Estado, opçãoque levada ao extremo prescindia de análisese de transformações de carácter político, soci-al e cultural.

O anarco-sindicalismo, nos seusprimórdios, é uma perspectiva que emerge nocontexto da evolução do sindicalismo revolu-cionário e reflecte a acção dos anarquistas noseio do operariado e dos sindicatos. Todavia,os anarco-sindicalistas tinham uma visão quenão era tão obreirista e sindicalista, como aque-la pelo qual os sindicalistas revolucionáriospugnavam. De facto, os anarco-sindicalistasembora fossem apologistas da extinção doEstado e dos partidos políticos, consideravamque os sindicatos eram muito importantes paraa emancipação social da classe operária, por-que eles eram o local fulcral da socializaçãodas vivências e dos problemas que afectavama sua vida de oprimidos e de explorados. Dis-cutindo e sentido os seus problemas comoninguém, podiam e deveriam transformar osseus sindicatos em local privilegiado de edu-cação e de emancipação social. Mas, antes demais, o sindicato era simplesmente um meio,não fim da revolução social (6). A revoluçãosocial abrangia todos os indivíduos e gruposque aspiravam a viver numa sociedade semEstado, sem capital, sem trabalhao assalaria-do, sem propriedade privada e sem dinheiro.

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Utopia 956

Sem chefes e sem qualquer tipo de autoridadehierárquica, eram fervorosos adeptos da acçãodirecta, estimulada e praticada com especialincidência pela greve geral, pela sabotagem,pelo boicote e pela insurreição social. Comoconsideravam difícil consumar a revoluçãosocial a partir do estrito limite das fronteirasfísicas das fábricas e dos locais de trabalho,consideravam que a sociedade futura seria umcompósito harmonioso de realidades sociais,económicas, políticas e culturais.

Estas foram, sem dúvida, as três modalida-des de sindicalismo que tiveram grandeimpactono no seio do operariado, nomeada-mente desde finais do séulo XIX até a eclosãoda primeira Guerra Mundial de 1914-18 e darevolução russa de 1917. Para o efeito, na suaorigem e evolução é possível extrair algumasilacções.

O sindicalismo reformista singra fundamen-talmente na Inglaterra, Alemanha e em outrospaíses capitalista desenvolvidos, porque a ca-pacidade de resposta desses países se reveloucoincidente com uma parte substancial dasreivindicações do operariado. Melhorandogradualmente as condições de trabalho e ossalários, foi posível desenvolver umsindicalismo reformista que se adequou bem àestabilidade normativa dos sindicatos e do ca-pitalismo. Por outro lado, é necessáriosublinhar que o sindicalismo reformista foi aopção mais lógica de adaptação e desubalternização dos sindicatos às estratégiasdos partidos social-democratas na sua luta pelopoder político.

Nos casos do sindicalismo revolucionárioe do anarco-sindicalismo, que tiveram a suamaior expressividade social na Espanha, Ar-gentina, Portugal, Itália e França, importasublinhar, em primeiro lugar, que esses paísesnão eram muito desenvolvidos, o que resultouna sua incapacidade em responder positiva-mente às reivindicações que foram entretanto

fomentadas pelo operariado. Para agravar maisesta situação, denota-se também que persistiauma grande incapacidade da racionalidadeinstrumental do capitalismo em integrar as as-pirações sociais e revolucionárias dooperariado na sua lógica normativa. Comodentro e fora da fábrica ainda era possível ob-servar relações sociais pautadas pelointerconhecimento, a informalidade e a espon-taneidade, não admira que o operariado dessespaíses enveredasse pela prática da acção di-recta, da solidariedade e da fraternidade eestruturasse, através de uma aprendizagemsócio-cultural antagónica aos ditames do Es-tado, do capiatl e do mercado, uma identidadecolectiva traduzida em greves gerais, insurrei-ções sociais e tentavivas de realização darevolução social.

2. O ADVENTO HISTÓRICO DO

TAYLORISMO E DO FORDISMO

Ao adoptar a organização científica do tra-balho como princípios e práticas conducentesa uma maior racionalização dos métodos degestão, de controlo e de integração do factorde produção trabalho, o capitalismo reconhe-ceu quão foi importante a perspicácia e omaquiavelismo do taylorismo como fenómenode domesticação e de dominação do operaria-do no processo do trabalho. Na verdade, sema introdução dos princípios e das práticas dotaylorismo, dificlmente poder-se-ia destruir amargem de manobra e a autonomia que a co-munidade profissional operária usufruia nosdomínios das suas qualificações, competênci-as e saberes (7).

Com a generalização do taylorismo nasempresas, a concepação, o planeamento e agestão do seu funcionamento quotidiano pas-sa a ser centralizado nas tarefas confinadas aopapel dos empresários, gestores e quadros téc-nicos, enquanto que as tarefas do processo de

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Utopia 9 57

produção de mercadorias é entregue ao opera-riado. Ao introduzir-se a separaçãoespaço-temporal do momento da concepção,do planeamento e da gestão com o momentoda execução de tarefas no processo de produ-ção de mercadorias, desenvolve-se os níveishierárquicos de autoridade formal , acontecen-do o mesmo como a divisão social do trabalhopela via do acréscimo de especialização dofactor de produção trabalho na execução detarefas.

As consequências do desenvolvimento daespecialização na execução das tarefas reper-cutiu-se sobremaneira na diminuição drásticada margem de manobra do operariado nos lo-cais de trabalho e também na redução dautilização das suas capacidades, em termos dehabilidade e perícia profissional. Se antes, es-tes podiam interagir relativamente de umaforma livre e espontânea, fazendo valer a suaexperiência, os seus conhecimentos e o seu“saber-fazer”, com a introdução do taylorismonas fábricas e nas empresas, tudo isso é ob-jecto de estandardização, de controlo e deintegração, no sentido da maximização do lu-cro. Doravante, gestos, movimentos, pausas etempos são medidos e racionalizados com afinalidade exclusiva de aumentar a produtivi-dade do trabalho.

Os efeitos práticos do taylorismo manifes-tam-se principalmente num acréscimogigantesco dae produção de mercadorias e delucro. Por outro lado, em termos de atitudes eideologia, o taylorismo desenvolve um proces-so de estímulo-resposta centrado empressupostos economicistas e concorrenciais.O “homem certo no lugar certo”, para Taylor,significava não só produzir mais e melhor parao patrão, mas também, segundo ele, mais sa-lário e riqueza para o operário. A instauraçãodo salário à peça enquadra-se nesse mecanis-mo de estímulo-resposta em que o operário évisto como uma peça numa engrenagem que

só funciona quando é recompensado por umacontrapartida monetária, sendo esta a melhorforma para satisfazer as suas necessidadesbásicas. Trabalhando mais, ganha mais, maspara isso só pode contar consigo e deve, emtodas as circunstâncias, competir com os ou-tros operários na consecução desse objectivoprimacial.

Entretanto, o capitalismo consegue integrare racionalizar com maior proficiência os ele-mentos tecnológico e científico no processofabril. Na ocorrência, o petróleo e aelecticidade, conjugados com a introdução domotor a explosão e o motor a combustão, noprocesso de trabalho, tornam-se fundamentaispara o desenvolvimento da automatização dasmáquinas- ferramentas e, consequentemente,do aumento da produtividade do trabalho. Oincremento da industrialização e da urbaniza-ção das sociedades torna-se um facto históricoirreversível, assim como os sectores daquimíca, da siderurgia, da mecânica e da in-dústria automóvel se tornam nos baluartes docrescimento económico capitalista.

No mesmo período há também quereferenciar dois acontecimentos históricosimportantíssimos: a primeira Guerra Mundialde 1914-18 e a revolução russa de 1917.

A ocorrência da primeira Guerra Mundialteve efeitos práticos nos princípios e na práti-ca do sindicalismo com característicasinternacionalistas, destruindo todos os pressu-postos de solidariedade e de fraternidadeuniversal que estavam directamente relaciona-dos com os desígnios emancipalistas dooperariado e dos ideológos da luta de classes.Os oprimidos e explorados em vez de utiliza-rem as armas contra o Estado e as burguesiasnacioanais, tornaram-se numa grande fonte decarne para canhão dos seus exércitos e revela-ram-se os coveiros dos seus irmãos de classe.A ineficiência do internacionalismo proletárioteve, sem dúvida, uma grande influência no

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desmoronamento do sindicalismo revolucio-nário e do anarco-sindicalismo. O sindicalismode tipo reformista adaptou-se melhor à reali-dade criada pela primeira Guerra Mundial e,por outro lado, o desenvolvimento da ideolo-gia conservadora e nacionalista revela-sepropícia para o aparecimento de umsindicalismo de cariz cristâo e fascista.

No caso da revolução russa de 1917 pode-mos observar duas consequências que tiveramgrande impacto na evolução do movimentosocial operário. Este, pela primeura vez na his-tória da humanidade, realizava uma revoluçãosocialista com incidências manifestas no seuprojecto societário emancipalista. Lideradopelo partido bolchevique, consegue realizarnum contexto de miséria endémica e de criseprovocada pelo czarismo e a primeira guerramundial, o que não tinha conseguido nos paí-ses capitalistas desenvolvidos. Para oimaginário colectivo do operariado, a revolu-ção russa emerge como um farol esimultaneamnte como o melhor modelo paraextinguir a opresssão e a exploração capitalis-ta.

Não obstante a revolção russa se ter reve-lado, logo no seu inicío, uma grande mentirahistórica (8), quer em relação aos seus objec-tivos quer em relação à substancialidade dasmudanças operadas, a partir do momento emque se legitimou com projecto societário soci-alista credível, adquiriu uma enorme forçamobilizadora junto ao proletariado mundial.A prova dessa força mobilizadora resultou naformação de partidos comunistas nos diferen-tes continentes. Ao mesmo tempo que estes sãocriados com base na imposição das 21 condi-ções impostas em 1919 pelo partidobolchevique, denota-se uma totalsubalternização da sua acção às estratégias etácticas do marxismo-leninismo. Os sindica-tos, por outro lado, transformaram-se emcorreias de transmissão dos desígnios da luta

pelo poder dos partidos comunistas que, en-tretanto. tinham sido criados.

O impacto da primeira Guerra Mundial eda instauração do socialismo de cariz marxis-ta-leninista, como não podia deixar de ser,mudou substancialmente a atitude revolucio-nária e utópica do movimento social operário.Não admira assim que, passado pouco tempoda ocorrência desses dois acontecimentos his-tóricos, muitos dos operários que tinhamengrossados as fileiras do anarco-sindicalismoe do sindicalismo revolucionário passassem,com “armas e bagagens”, a liderar o processohistórico de criação de partidos comunistas ede sindicatos em obediência estrita aos impe-rativos do socialismo soviético. A criação daInternacional Sindical Vermelha, em 1922,expressa de forma significativa essa evolução.

Com a excepção da Espanha, do que nãorestam duvidas, é de que o anarco-sindicalismoe o sindicalismo revolucionário começaram aperder progressivamente a sua força de atrac-ção junto dasa massas trabalhadoras. Desdeentão a perspectiva reformista do sindicalismodesenvolveu-se com maior proficiência naEuropa ocidental e nos EUA, sobretudo comocorreias de transmissão dos partidos comunis-tas, socialistas e social-democratas. Com acrise dos anos 20 e a subsequente evolução dospaíses para regimes políticos fascistas - Itália,Portugal, Alemanha, Itália, etc... - não admiraque daí emergisse um sindicalismo do mesmocariz e que tenha vergado operariado nos seuspropósitos reivindicativos e emancipalistas.

Ao mesmo que ocorrem estas transforma-ções de carácter político e sindical, o fordismosistematiza e aprofunda os pressupostos daracionalização da organização do trabalho. Nãoobstante a sua materialização prática e visibi-lidade social revelar-se mais pertinente nasdécadas de 30, 40 e 50, com a introdução dalinha de montagem na fábrica de automóveisde Detróit em 1914, o processo de

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Utopia 960

automatização imposto pelas máquinas-ferra-mentas é também alargado às relações sociaisque estavam articuladas com o transporte dasmatérias primas, da energia e dos instrumen-tos de trabalho manipulados pelo factor deprodução trabalho na execução das suas tare-fas. Ou seja, com a introdução da linha demontagem, o espaço-tempo de liberdade e demargem de manobra do operariado édrásticamnet reduzido no procsso de produçãode mercadorias, o que se traduziu num aumentosubstancial da produtividade do trabalho e noincremento do controlo e da padronização dostempos, dos movimentos, dos gestos e das pau-sas para executar as suas tarefas.

No plano da racionalidae instrumental docapitalismo, o fordismo, ao permiir um acrés-cimo da produtividade do trabalho superior àque tinha sido coseguida pelo taylorismo, re-vela-se como uma das expressões maisrelevantes do processo de industrialização ede urbanização das sociedades, nomeadamen-te nos EUA e na Europa ocidental. A suacapacidade produtiva é bem expressa nas ta-xas de crescimento económico e na quantidadegigantesca de bens e serviços que as socieda-des desses países passaram a consumir, desdeo epílogo da segunda Guerra Mundial até fi-nais da década de 60.

Ao confrontarmos as consequências dofordismo, e também do taylorismo, com aemergência de contradições e conflitualidadenas empresas, organizações e instituições ca-pitalistas e estatais, conseguimos facilmenteapercebermo-nos de que historicamente elasforam bastante reduzidas. Neste sentido, quan-do se fala ou escreve sobre o fordismo, deve-seafirmar, em primeiro lugar, que ele personifi-ca um grande desenvolvimento daracionalidade instrumental do capitalismo,sobretudo se tivermos presente as mudançasrealizadas na organização do trabalho. Ao tor-nar o trabalho um elemento de eficiência de

produção de lucro e de mercadorias, pemitiusimultaneamente que o Estado e o mercadoassumissem um grande papel na regulação darepartição de rendimentos, na distribuição econsumo de mercadorias e, ainda, no domínioda política económica.

Em termos práticos, com o aumento do sa-lário real e do desenvolvimento doEstado-Providência, o operariado consegueusufruir de maior consumo mercantil, e tam-bém de um conjunto de regalias sociais, deeducacão, de segurança social e de saúde. Poresta via, o capitalismo e o Estado conseguemresponder de uma forma positiva às reivindi-cações que o operariado ansiava há váriasdécadas. As contradições e a conflitualidadeentre o capital e o trabalho atenuam-se e, poroutro lado, a motivação do operariado paraenveredar por um processo revolucionário égrandemente condicionada.

Se tivermos presente as consequências dofordismo e das funções do Estado-Providên-cia junto do operariado da Europa ocidental edos EUA, constatata-se que, desde o final dasegunda Guerra Mundial, persistiu uma ten-dência para a dualização da actividadesindical: o sindicalismo de tipo reformista ins-crito numa melhoria progressiva dos saláriose das condições de trabalho do operariado; euma outra que. embora fosse de incidência re-formista, funcionava muito mais como projectosubalterno da luta dos partidos comunistasidentificados com os propósitos estratégicosdo socialsimo soviético.

É certo de que não podemos esquecer aenorme importância histórica que o anarco-sindicalismo assumiu na Espanha, no períodode 1936-39 (9). Todavia, nos podemos esque-cer que a assunção da sua radicalidade ematerialização prática da revolução social foibaseada num contexto sócio-geográfico mui-to limitado e numa situação de crise capitalista.Temos ainda que ter presente os constrangi-

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Utopia 9 61

mentos impostos pela guerra civil e ainexistência de uma solidariedade internacio-nal representativa por parte do operariado.Ainda que possamos compreender todos essesfactores que estiveram na origem da estagna-ção do anarco-sindicalismo na Espanha, já omesmo não podemos dizer em relação a ou-tros países. O anarco-sindicalismo, assim cmoo sindicalismo revolucionário, com o adventoda revolução russa, do taylorismo e dofordismo, perdeu uma enorme capacidade deacção junto dos interesses específicos do pro-letariado.

Pelas razões acima descritas, o capital per-sonificado agora mais na figura dosempresários e dos gestores, o Estado com osseus governos, os seus ministérios e tribunais,e os sindicatos com as suas burocracias, têmmuito a ganhar e nada a perder, se se mantivera estabilidade normativa do capitalismo. Acontratação colectiva, a negociação colectiva,a democracia industrial foram so métodos maisadequados para esse efeito. As greves e todotipo de reivindições tornaram-se possíveis,desde que não ponham em causa as relaçõessociais de produção, a divisão social do traba-lho, a autoridade hierárquica, a propriedadeprivada dos meios de produção, o trabalho as-salariado, o dinheiro e o Estado. Neste amplosentido, o sindicalismo reformista atingiu o seuapogeu desde o final da segunda Guerra Mun-dial até finais da década de 60. Mas diga-se depassagem que, antes de mais, eles se torna-ram os mediadores de uma mercadoria quenecessita de ser comprada e vendida. Enquan-to expressão genuína dos interesses dooperariado, nada mais personificaram de queserem os gestores sociais da sua desgraça his-tórica.

3. REPERCUSSÕES DAS NOVAS

TECNOLOGIAS SOBRE O TRABALHO E O

SINDICALISMO

Sem pretender ser exaustivo, penso que asimplicações das novas tecnologias, nos nos-sos dia, são uma facto insofismável naorganização do trabalho e do sindicalismo. Defacto, as novas tecnologias, personificadaspela informática, a micro-electrónica, arobótica, a telemática e a biotecnologia, revo-lucionaram todo o processo de socialização dainformação, do conhecimento e da energia quese consubstanciavam na acção individual ecolectivo do factor de produção trabalho nasempresas, organizações e instituições de ca-rácter privado ou público.

Esta tendência é a expressão genuína de mamaior integração entre a ciência e a técnica,enquanto objectos de eficiência, no quadro daevolução histórica da racionalidade instrumen-tal do capitalismo. Genericamente estatendência que tem o seu início na década de70 e atravessa na actualidade todas as socie-dades, observa-se não somente na crescenteterciarização das actividades económicas emtermos da produção de bens e serviços especí-ficos, nos efeitos mediáticos da difusão dainformação pela televisão, como também naprópria fenomenologia da globalização em ter-mos da padronização política, económica,social e cultural.

De facto, estamos em presença de uma ten-dência que se cinge cada vez mais na forçaestruturante, no poder e no totalitarismo docapital financeiro, da bolsa, da ONU, daNATO, do FMI, do Banco Mundial e do grupodos 7 sobre todas as sociedades, em detrimen-to da acção de cada Estado, país, comunidade,grupo ou indivíduo (10). Em consonância, comesta nova realidade, quando analisamos o queé hoje o Estado, a propriedade privada, o tra-

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Utopia 962

balho assalariado, a relação social de produ-ção, o dinheiro, temos que ter presente ascaracterísticas do processo de socialização queatravessa essas realidades.

No campo especifico da organização do tra-balho, o que podemos dizer é que a forçamediatizadora das novas tecnologias no pro-cesso de trabalho, nomeadamente nos aspectosrelacionados com a execução de tarefas, per-mite a codificação e a descodificação delinguagens cada vez mais padronizadas. Namedida em que, grande parte da energia, dainformação e do conhecimento que estava in-corporado na acção individual e colectiva dooperariado no processo de produção foideslocada para os mecanismos automáticos dasmáquinas-ferramentas de comando numérico,por outro lado, como a introdução daconcepação, planeamento e fabricação assis-tida por computador, o “saber-fazer” clássicodo operariado, que ainda assumia alguma im-portância no contexto do taylorismo e dofordismo, revela-se desnecessário. A perícia,as habilidades, o conhecimento e as qualifica-ções do operariado clássico tornam-se, por viadisso, numa inutilidade histórica.

O hiato entre o espaço-tempo da concep-ção, do planeamento, da gestão e do controloe o espaço-tempo da execução de tarefasaprofunda-se. Os processos de decisão e de li-derança nas empresas são cada vez maiscentralizados no papel dos gestores e dos qua-dros técnicos, em detrimento da grande massade trabalhadores indiferenciados com pouca ounenhuam qualificação. Estes, são meros apên-dices funcionais de máquinas automáticas queescapam ao seu controle, existindo somentecomo serventuários expectantes dos seus rit-mos e movimentos cada vez mais sofisticadose complexos. Em contrapartida, os gestores equadros técnicos de diferentes tipos apropri-am-se e regulam a informação substantiva queé básica para assumir um papel preponderante

no processo decisão, no processo de liderançae da autoridade hierárquica nas empresas, or-ganizações e instituições públicas e privadas.

Esta tendência está a provocar uma sériede dualizações na organização do trabalho.

A primeira reporta-se a um crescendo pro-gressivo da procura no mercado de trabalhode trabalhadores com qualificação e de outrossem qualquer qualificação. Desse modo, todosaqueles que tem as qualificações e as compe-tências apropriadas são integrados na execuçãode tarefas relacionadas com a concepção, pla-neamento, gestão, controlo e reparaçãoinerentes à divisão de trabalho determinadapelo manipulação e o “saber-fazer” exigidopelas novas tecnologias. No sentido oposto,são necessários uma conjunto de trabalhado-

res indifenciados, sem qualificaçôes que selimitam a limpar, a vigiar e a carregarmecanicamnete nos botões das novastecnologias.

A segunda dualização, como consequênciado deslocamento da energia, da informação,do conhecimento humano para os mecanismosautomáticos das novas tecnologias, dispensado processo de trabalho uma quantidade imen-sa de trabalhadores com qualificações

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Utopia 9 63

inapropriadas ou que tampouco tem tarefaspara executar. Ainda que em termos de acti-vidades económicas se assista à criação deemprego no sector terciário, o que se perdenos sectores agrícola e industrial ultrapassalargamente o que é criado nesse sector. Estadualização estrutura-se no sentido do empre-go/desemprego. O mundo de hoje e de amanhãtende para que poucos tenham trabalho e mui-tos já não o possam ter (11).

A terceira tendência fundamenta-se naexistência de uma outra dualizaçãoconsubstanciada em vínculos contratuais es-táveis e em vínculos contratuais precários.Com a globalização, a mobilidade de capitais,de tecnologias e de investimento desenvolve-se facilmente. A capacidade de concorrênciae de competividade permite que o capitalis-mo se dê ao luxo de usufruir de custos deprodução diferenciados e assim aumentar arendibilidade dos seus investimentos, nome-adamente em países onde os custos salariaissão bastante baixos e os direitos sociais e sin-dicais são quase inexistentes. Perante estequadro, o capital exige flexibilidade epolivalência ao factor de produção trabalho,o que implica poder trabalhar de forma pre-cária e com contratos a tempo parcial. Ouseja, ter trabalho e salário correspondente a 4horas por dia, um dia numa semana, uma se-mana no mês, ou num mês durante um ano.

Para todos os trabalhadores assalariadosque conseguem competir e concorrenciar comproficiência, neste contexto da racionalidadeinstrumental do capitalismo, haverá ainda umahipótese de encontrar situações estáveis devínculos contratuais. Para os que já estão ouevoluirão no sentido contrário persistirá a pre-cariedade contratual.

Finalmente, estas tendências vão provocara segmentação do mercado de trabalho. Defacto, todas as tendências de dualizações des-critas na organização do trabalho

manifestam-se de uma forma pertinente nodesenvolvimento da estratificação social noseio das massas trabalhadoras. As diferençasque realçamos no domínio das qualificações,da autoridade hierárquica, dos vínculoscontratuais e do desemprego, traduzem-se nahipóteses de usufruir salários, de apropriaçãode riqueza, de exercer poder, de executar ta-refas e funções assentes na desigualdade. Nãoadmira assim que desempregados, trabalha-dores desqualificados, jovens, velhos,mulheres, minorias étnicas, imigrantes, etc,sejam aqueles que exerçam as profissões commenores exigências de qualificação, que en-trem mais facilmente no desemprego e que sóconsigam encontar trabalho através de víncu-los contratuais precários.

Procurando agora compreender a actuali-dade do sindicalismo no contexto das novastecnologias e da organização do trabalho, ve-rifica-se que o seu futuro indicia o caminhoda morte. Várias razões ajudam-nos a opinarnesse sentido.

Em primeiro lugar, os sindicatos como es-trutura de representação social do operariadoburocratizou-se de tal modo, que a sua suavisibilidade e capacidade de mobilização juntodos locais de trabalho é quase inexistente. Asua de legitimidade e de credibilidade é notó-ria, na estrita medida em que não conseguemencontar militantes sindicais sem que para oefeito tenham que enveredar porcontrapartidas monetárias. Como fábricas deregulação social dos conflitos entre o Estado,o capital e o trabalho não conseguem actuarcom eficiência devida, daí como qualquerempresa, os seus serviços não tenham qual-quer utilidade social e possam, por via disso,entrar na falência.

Em segundo lugar, como condição-função,não existe mais homogeneidade política, so-cial, cultural e económica no seio da classeoperária. A estratificação social que atraves-

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Utopia 964

sa a sua condição-função não permite agir epensar como uma comunidade de interessesespecíficos antagónicos aos desígnios do ca-pitalismo e do Estado. Por outro lado, aodesenvolveram a sua acção colectiva nos es-tritos limites das reivindicações que seenquadram na lógica normativa do trabalhoassalariado, nada mais fazem de que cavar ofosso que destrói essa hipotéticahomogeneidade. Incapaz de representar qual-quer tipo de interesse ou identidade colectivano seio das massas trabalahdoras, a qualquersindicato, só lhes resta desenvolver negocia-ções ou contratos colectivos numa lógicacorporativa de incidência profissional ou em-presarial.

Em terceiro lugar, os sindicatos actuais, talcomo o capital e as empresas, são confronta-dos com restrições inelutáveis no quadro daracionalidade instrumental do capitalismo.Neste aspecto, enquanto persistir a proprie-dade privada dos meios de produção, otrabalho assalariado, as relações sociais deprodução capitalistas e o dinheiro, o factor deprodução trabalho é e só poder ser um meioque se enquadra num projecto histórico deracionalização máxima, com a finalidade deproduzir mais mercadorias e lucro.Independemente da vontade de qualquer ca-pitalista, qualquer governo ou burocratasindical, só haverá necessidade de existir tra-balhadores assalariados, quando esesrequisitos básicos persistirem. Se o capitalpudesse transformar todos os seres humanos,que habitam no planeta Terra, em produtorese consumidores de mercadorias fá-lo-ia, por-que é essa efectivamente a sua essência e razãode persistir na história da humanidade. Assimcomo a morte do capital será realizada pelocapital, a morte dos sindicatos torna-se plau-sível porque continuam a reivindicar oimposível: trabalho assalariado.

Poder-se-ia pensar da minha análise que

antevejo uma perspectiva muito diferente paraas aspirações do anarco-sindicalismo em re-lação ao seu projecto de emancipação dasmassas trabalhadoras. De facto, muitas daslimitações que vejo para a acção dosindicalismo de tipo reformista, são tambémevidentes para as aspirações do anarco-sindicalismo. Os tempos de antanho fazemparte de um passado longíquo que não temhoje expressão prática, se tivermos em linhade conta que o capitalismo e o Estadoevoluiram nos conteúdos e formas de explo-ração e de opressão sobre as massastrabalhadoras. Por outro lado, está demons-trado à saciedade que pelo facto domarxismo-leninsmo ter sucumbido na Rússiae nos países satélites, isso não implica que oanarcho-sindicalismo tenha razão no passadoe que possa transportá-la mecanicamente paraos nossos dias. Não foi por causa do fim des-sa mentira histórica, que o proletariado aderiuem massa aos princípios e práticas do anarco-sindicalismo. De facto para o operariado dehoje, o sentido restritivo da luta de classes nãofunciona como base do seu imaginário colec-tivo. Todos os oprimidos e explorados senteme agem como factores da ordem social insti-tuída. Para enveredarem por um projecto commaterialização prática numa revolução soci-al, só o poderão fazer desde que lutem pelasua própria extinção e de todas as causas queestão na sua origem.

Se nos propósitos do anarco-sindicalismoexiste uma intenção estratégica de transfor-mar os sindicatos numa escola de emancipaçãosocial, essa será uma tarefa inglória pelas ra-zões em mais trás sublinhei. Confinar a lutanos locais de trabalho e no quadro do traba-lho assalariado é por motivos óbvioscontraproducente (12). Hoje, se pode existiralguma projecto de educação e de aprendiza-gem só pode ser viabilizado no espaço-tempoda vida quotidiana dos oprimidos e dos ex-

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plorados e de todos os indivíduos que aspi-ram a uma vida soberana e livre. Esse espaçode intervenção é no local de trabalho, na pra-ça, na rua, no café, no bairro, na comunidade,na região, no país e no mundo. Não há maislugar para separações territoriais, linguísticas,culturais, económicas, sindicais, políticas ousociais. Mais do que nunca, o cerne de qual-quer anarquismo, que queira valorizar a suaacção na luta pela emancipação social, devesituar-se preferencialmente no indivíduo, de-pois no grupo, a seguir na comunidade, parafinalmente chegar a construir uma sociedadeverdadeiramente emancipada. Se o anarco-sindicalismo conseguir evoluir neste sentidopode perdurar, senão terá o mesmo fim queos outros sindicalismos.

Referências bibliográficas:

(1) Bob BlacK, A abolição do trabalhoassalariado, Lisboa, Ed. Crise Luxuosa, 1998.(2) Renaud Sainsaulieu, L’ identité au travail, Paris,Presses de la Fondation Nationale des SciencesPolitiques, 1977.(3) Sobre a emergência histórica do sindicalismo,ver, entre outras obras: Pierre Besnard, Ossindicatos operários e a revolução social, Lisboa,Grupo Editorial O Argonauta, 1931; Max Beer,Historia general del socialismo y de luchassociales, Madrid, Zens, 1931; Jean Maitron eColette Chambelland, (org.), Syndicalismerévolutionnaire et communisme - les archives de

Pierre Monatte, Paris, Librairie François Maspero,1968.(4) A este propósito, ver: CNT/AIT, Syndicalismerévolutionnaire et anarcho-syndicalisme, Ed.Union Départamental CNT du Val d’Oise, 1996;Neno Vasco, Concepção anarquista dosindicalismo, Porto, Afrontamento, 1984; RudolfRocker, De la doctrine à l’action - l’anarcho-syndicalisme des origines à nos jours, Lyon, Atelierde Création Libertaire, 1995; Evert Arvidsson; Elanrcosindicalismo en la sociedad de bienestar,Máxico, Ediciones CNT, 1961.(5) A.L. Morton e George Tate, O movimentooperário britânico, Lisboa, Seara Nova, 1968.(6) L. Mercier-Vega e V. Grifuelhes, L’anarcho-syndicalisme et syndicalisme révolutionnaire,Paris, Spartacus, 1978.(7) F. W. Taylor, La direction scientifiques desentreprises, Paris, Dunod, 1965.(8) Voline, La révolution inconnue, (3 volumes),Paris, Pierre Belfond, 1972.(9) Juan Gómez-Casas, Historia delanrcosindicalismo en España, Madrid, EditorialAguilera, 1977.(10) George Soros, A crise do capitalismo global,Lisboa, Círculo de Leitores, 1999; Hans-PeterMartin e Harald Schumann, A armadilha daglobalização - o assalto à democracia e ao bem-estar social, Lisboa, Terramar, 1998.(11) Viviane Forrester, L’horreur économique,Paris Fayard, 1996; Jeremy Rifkin, La fin du travail,Paris, Editions la Découverte, 1996.(12) CNT/AIT, El anarcho-sindicalismo en la eratecnologica, Madrid, Fundación de EstudiosLibertarios Anselmo Lorenzo, 1988.

...depois da greve

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Utopia 966

Abrilada:vinte e cinco anos de sombras

JÚLIO HENRIQUES

Ao serem vencidos na prática, os movi-mentos revolucionários são-no tam-bém nas ideias. A partir da sua derro-

ta, é exercida pelo poder de Estado umametódica e bem organizada censura selectivacom vista a encobrir aquilo que de socialmen-te subversivo contiveram; trata-se de umaoperação preventiva, cujo objectivo consisteem evitar que um tal movimento possa repe-tir-se. Em geral, para a boa prossecução destaactividade de encobrimento, o poder de Esta-do conta com a participação dos intelectuaismercenários, e especialmente com os revolu-cionários arrependidos, cujo contributo serevela sempre da maior utilidade. Não é poissurpreendente que vinte e cinco anos após o

25 de Abril a prática subversiva e as corres-pondentes ideias do movimento social ocorridoa partir da Primavera de 1974 se vejam soter-radas pelo enormíssimo peso da mistificaçãocorrente, profissionalmente elaborada paraconsumo das massas entretanto informatizadas.O sistema político do capitalismo, em duasdécadas e meia, aprendeu bastante no que tocaà sua necessária primeira função ideológica, amanipulação dos factos. E hoje, dotado commeios de propaganda muito mais difusos,consensuais e eficazes do que eram os do fas-cismo, a sua capacidade de condicionamentofuncional mostra-se sem dúvida mais efectivado que no estádio anterior a 1974.

Deste modo, o 25 de Abril será necessaria-

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mente visto como uma mera ocorrência de ín-dole estatal: um golpe militar de esquerda quevoltou a pôr no aparelho de Estado represen-tantes do povo drenados pela competiçãoeleitoral. Da subversão que varreu o país du-rante quase dois anos, dessa luta de classes queo transfigurou, da rebeldia criativa que come-çara a transformar as classes trabalhadoras comvista a um ataque generalizado à sacrossantapropriedade, não há-de assim rezar a históriapiedosamente contada, não só às criancinhasdas escolas mas também às populações devi-damente domesticadas pela televisão e demaisaparelhos ideológicos do Estado e da econo-mia — e normalizadas pela própria sujeiçãoexercida pelo trabalho e seus inúmeros produ-tos.

Ao contrário daquilo que essa história ofi-cial e oficiosa mostrará com profusão e a cores,dissimulando com mão férrea o essencial, oque de mais importante historicamente ocor-reu naquilo a que chamamos o 25 de Abrilforam as lutas sociais — e, insisto, directa-mente sociais —, com a ocupação pelostrabalhadores de empresas industriais e comer-ciais, herdades agrícolas e habitações. Se istonão tivesse ocorrido, o 25 de Abril limitar-se-ia a ser um novo 5 de Outubro, um simplesgolpe de Estado. Ou seja, o que de decisivoaconteceu em 1974-75 foram os conflitos quepela primeira vez desde os anos 20 puseramem xeque na sociedade portuguesa, com todaa evidência, o poder capitalista, visse-se eleexercido pelos seus tradicionais representan-tes (os patrões) ou pelos novos gestoresproduto já da reviravolta operada no Estado.

Já então, como não podia deixar de ser, es-sas lutas em que os trabalhadores emergiamcomo classe autónoma, oposta ao capital, fo-ram combatidas com todos os meios (damentira organizada à polícia de choque) pelasfracções políticas directa ou indirectamente nopoder. Observando-se a história desse perío-

do, ver-se-á sem dificuldade que todos os par-tidos políticos, independentemente das suasdiferenças no plano táctico, convergiam nosentido estratégico de controlar as lutas soci-ais, sempre com vista a sustê-las adentro delimites comportáveis pelo capitalismo, agorademocrático. Ou seja, reduzindo-as ao meroestatuto de reivindicações parcelares (por au-mentos salariais corporativos, por melhoriasnas condições de laboração), repelindo a ten-dência à sua generalização e ao igualitarismonelas manifesto.

Foi o conteúdo social e a forma revolucio-nária dessas lutas autónomas, de caráctercolectivo e igualitário, criando expressivamen-te os vocábulos apartidário e apartidarismo,e com isso não só se distanciando dos partidosmas também criticando na prática a razão deser destas máquinas para-estatais, que tama-nho interesse suscitaram noutros países, querentre os activistas das classes trabalhadorasquer, sobretudo, no seio dos capitalistas, porrazões obviamente opostas. As lutas sociais naEuropa de então constituíam sérios motivos depreocupação para os donos do mundo, e estasúbita brecha claramente aberta no Sul, com«o poder na rua» em Portugal e o seu muitoprovável alargamento à Espanha franquista,não eram coisas com que se brincasse. Os par-tidos políticos do novo regime, a começar peloPS, tiveram então um papel de primeiríssimaordem no combate ao movimento grevista eao aprofundamento político que neste se deli-neava com vista à criação de um poder dostrabalhadores — não um poder de fachada,mero formalismo legal escarrado num papel,mas um poder efectivo que começava nas em-presas, no controle da produção e da sua lógicasocial, e daí extravasava para todos os aspec-tos da vida quotidiana.

Tais objectivos revolucionários eramincomportáveis no quadro duma democraciaparlamentar, que se resume, aqui, ao poder

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político do capitalismo «amadurecido» (ama-durecido, no caso português, à força). Nestademocracia, o poder é até com vantagem exer-cido por partidos de esquerda, tudodependendo apenas das circunstâncias, daoportunidade com que intervenham no contex-to da luta de classes. Em certos momentoshistóricos, e foi o que também sucedeu emPortugal, esses partidos, graças à maior confi-ança que neles depositam os trabalhadores(comparativamente aos partidos de direita), sãoos mais aptos a gerir os movimentos de sub-

versão social que ameaçam tornar explícita egeneralizada a crítica da alienação do traba-lho, com as desastrosas consequências que issoimplica para as classes dominantes, que vivemexclusivamente da exploração do trabalho as-salariado.

Convém dizer que esta visão das coisas,aqui sucinta, teve sempre poucos partidáriosno seio das correntes políticas de extrema-es-querda. A acção autónoma das classestrabalhadoras, ou não foi historicamente com-

preendida, ou, tendo-o sido, viu-se em geralrechaçada precisamente por isso, por ser autó-noma. As organizações de extrema-esquerdaencontravam-se minadas por ideários políticose organizativos assentes no leninismo, o queimplicava uma visão dos movimentos sociaiscomo manifestações incapazes, por si, de cons-tituírem um poder dissolvente do capitalismo.A grande preocupação dessas organizaçõesconsistia, por isso, na reconstrução de um ver-dadeiro partido comunista (alternativo ao PCPreformista), naturalmente estribando-se nas

movimentações sociais. Mas, por via disso, omodo como abordavam estas últimas implica-va forçosamente um equivocadorelacionamento de chefia. E, adentro da feroze amiúde autista luta política pela preeminên-cia ou hegemonia na liderança das «massas»,esse quívoco multiplicava-se furiosamente emlutas de tendências, com muito negativas re-percussões na coordenação, reflexão eaprofundamento daquilo que as lutas sociaisiam podendo pôr a claro: que se tratava de su-

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perar o antifascismo, de desmantelar o própriopoder do capitalismo nas empresas e no espa-ço social; que este poder tinha diversos rostose podia ser de esquerda; que as formas de lutaadoptadas precisavam de ser públicas e anti-hierárquicas, com base em decisões deassembleia e generalizáveis ao conjunto dosassalariados, tudo isto numa perspectivainternacionalista.

O movimento social autonómico,consubstanciado nas Comissões de Trabalha-

dores e de Moradores, por força do peso polí-tico exercido por uma impressionantevariedade de organizações semelhantes que sedigladiavam, não sendo por elas fomentadomas incompreendido, e, por outro lado, direc-ta e indirectamente atacado pelo poder deEstado, acabou, ao não poder generalizar sufi-cientemente o seu conteúdo revolucionário, porperder fôlego e voz. Quando se dá o fatídicogolpe de 25 de Novembro de 1975, o movi-mento autónomo já se encontra em boa medidadesagregado por essa confluência contraditó-ria, e às fracções da classe dominante quepromovem esse contragolpe militar já não vaiser necessária uma grande demonstração deforça. A «ordem democrática» é reposta, nopreciso sentido em que a auto-organização dostrabalhadores e o seu poder, a partir daí, pas-sam a ser impossíveis. Com tais democratasnas rédeas do Estado, o capitalismo em Portu-

gal ia agora poder salvar-se, primeiro, para logoa seguir se desenvolver; no horizonte estavajá a sua expansão no quadro da CEE, ou seja,das multinacionais e da futura «globalização».A integração neste bloco exprime antes de maisnada o internacionalismo efectivo dos capita-listas, e resulta, nas condições da época, dostemores internacionalmente provocados pelasubversão social na região portuguesa, que atodo o custo convinha suster.

Vinte e cinco anos depois, como é óbvio, o

capitalismo está claramente muito mais im-plantado na sociedade portuguesa; quer noespaço físico e na paisagem quer nas mentali-dades. É esse, naturalmente, o resultado daderrota do movimento revolucionário que aquiocorreu. Mas Portugal chega ao capitalismopleno, com a sua estridente fachada dehipermercados, centros comerciais, auto-estra-das, histeria publicitária, «realidade virtual»,informatização de tudo e disseminaçãocorrelativa do espírito mafioso — com abarbárie batendo rijamente à porta nas metró-poles. O reino que tudo isto anuncia é mesmodeste mundo: além de ser um reino de facha-da, como é típico da pós-modernice, exprimeo estado de coisas duma imperiosa fuga emfrente — fuga, ainda e sempre, do que ocorreupor cá a seguir àquela Primavera de 74: da ten-tativa de expropriação dos expropriadores.

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Utopia 970

Episódios da modernidadeportuguesa

CHARLES REEVE

«Ironia, liberdade verdadeira! És tu que me libertas da ambição dopoder,

da servidão dos partidos, do respeito pela rotina, do pedantismo daciência,

da admiração pelas grandes personagens, das mistificações da política,do fanatismo dos reformadores, da superstição deste grande

universo e da adoração de mim mesmo.»P.J. Proudhon, Confessions

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Utopia 9 71

1. REVISIONISMOS

O 10 de Junho, que durante o regime fas-cista foi o «Dia da Raça», tornou-se em demo-cracia o «Dia de Portugal e das ComunidadesPortuguesas». É igualmente o «Dia da Recor-dação» para os antigos funcionários da pide,reunindo-se em Fátima para celebrarem o pas-sado e agradecerem ao Altíssimo. A escolhado lugar foi politicamente correcta, porque semdúvida nenhuma a Virgem Santa lhes salvou avida. Segundo a lógica não negociável de qual-quer revolução, estes miseráveis indivíduosdeveriam ter sido linchados pelo povo revol-tado. Ora acontece que saíram delamiraculosamente vivos, protegidos pelos mi-litares golpistas que queriam encontrar umasolução para a guerra nas colónias. Na RuaAntónio Maria Cardoso, em Lisboa, o prédioda pide lá continua, meio abandonado, com afachada decrépita, as janelas arrombadas, asparedes rachadas. À espera de ser renovado,talvez para um futuro centro cultural ou, quemsabe, para museu da polícia não democrática.No nº 20-24, uma placa lembra que na tardede 25 de Abril de 1974, a pide disparou umaúltima vez contra o povo de Lisboa, que acor-rera a pedir-lhe contas, pouco faltando para oprédio ser tomado de assalto. A carnificina,sem dúvida, teria sido grande. Mas quem po-derá saber por onde teriam enveredado osacontecimentos se o o exército se não tivessemetido de permeio? Nesta rua, foram entãomortos pela pide Fernando Gesteira, JoséBarreto, Fernando Barreiro e José Arruda. Naparede defronte, uma inscrição anarquista lem-bra a imperativa fórmula do presentedemocrático: «Não se mexam!»

Em 1958, após ter superado as provaçõesda guerra graças à colaboração com os doiscampos inimigos, o regime fascista vivia a suaidade de ouro. O poder ditatorial reinava comtal arrogância que até a muito fascista e

honorável Ordem dos Advogados se viu obri-gada a protestar junto do Ministério da Justiçacontra os poderes exorbitantes da PIDE e daPolícia Judiciária, que então tinham o «direi-to» de manter as pessoas presas durante seismeses fora de qualquer controle judicial.

Durante meio século, estes sinistros perso-nagens torturaram, violentaram, perseguiramou assassinaram todos quantos se opunham aoregime ou manifestavam alguma desconfian-ça perante a ordem estabelecida. Detinham,escutavam as conversas telefónicas, abriam acorrespondência, violavam e revistavam ascasas, impediam os opositores de obter empre-go. Segundo o New York Times, que não épropriamente uma fonte informativa extremis-ta, a PIDE, nas vésperas do 25 de Abril de1974, dispunha de 3000 funcionários e deinformadores (os bufos) cujo número era esti-mado em 30 000. Ou seja, um polícia por cada300 pessoas. Nesta especialidade, a famosaStasi da ex-Alemanha de Leste não se tinhamostrado original.

Após o golpe do 25 de Abril, a impunidadedestes funcionários foi protegida pelos milita-res do MFA e os bufos perderam-se napaisagem. A PIDE teve a sabedoria e o temponecessário para apagar pistas, sendo o restodo trabalho de camuflagem concluído peloexército democrático e pelas forças políticasque se foram sucedendo à cabeça da institui-ção oficialmente encarregada de reorganizar aantiga máquina policial (1). Após algumasperipécias e apesar da sua implicação em vári-os atentados terroristas (2), os funcionários daPIDE acabaram por ser amnistiados e os seusregistos criminais foram limpos, com a men-ção «Serviços Prestados à Pátria».

Deste modo, um antigo chefe desta organi-zação de criminosos de Estado, Cunha Passos,pode hoje declarar publicamente perante ascâmaras da televisão coisas como esta: «Nun-ca prendemos ninguém em Portugal por ter

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ideias.» Porque, como é óbvio, ideias toda agente as tinha. Bastava não as exprimirem.Caso contrário, talvez nem as prendessem, li-mitavam-se a liquidá-las. O homem declaraaquilo, e tudo continua como se nada fosse.Um outro miserável acrescenta cinicamente:«Naturalmente, nós não éramos nenhuma or-ganização de caridade. Mas é possível que osnossos inimigos se tenham mostrado muitosensíveis. [...] É verdade que tínhamos largue-zas na acção. Mas se tínhamos muito poder,era para actuar bem.» Prova irrefutável destaeficácia ao serviço do mundo livre, vinte e cin-co anos depois umdestes bandalhos exibena televisão botões decamisa oferecidos pelopresidente norte-ameri-cano Richard Nixon.Haverá mais sólida re-ferência derespeitabilidade? Porisso, feitas as contas, aPIDE - nome execradoque perdura na memó-ria social - terá mesmoexistido?

A revisão da Histó-ria é o projecto políticoque consiste em apagar, na memória social, osvestígios incómodos do passado. É a criaçãode um esquecimento. Este apagamento consti-tui aliás um elemento indispensável ao governodo presente, através dos poderes e dos seusmeios de massas. À perturbação da ordem ca-pitalista pela acção colectiva autónoma dopós-25 de Abril sucedeu a normalização de-mocrática, que preparou a integração do paísna chamada comunidade europeia. E a entra-da em marcha forçada desta sociedade arcaicana modernidade pôs tudo de pantanas. O apa-gamento da memória do período precedentetornou-se assim mais fácil. Doravante, a His-

tória começa com esta modernidade. Tudo oresto tem de ser revisto, esquecido,relativizado, adoçado, isolado do presente. Nãoé só que convém as pessoas não se mexerem,como diz a inscrição anarquista; impõe-se queas pessoas não se lembrem, que ignorem. Opassado é aquele que nos contam. Os episódi-os da PIDE e dos seus sicários são apenas umaparte destes anos de que só se fala agora deforma revista. A guerra colonial levada a cabo,de 1959 a 1974, em três frentes africanas, éoutro exemplo.

Em quinze anos, num país de nove milhõesde habitantes, ummilhão e meio dejovens passarampor esta experiên-cia sangrenta etraumática, máqui-na de triturar vidase mentes. Catorzemil mortos, trintamil feridos, cento equarenta mil víti-mas do stress deguerra, centenas demilhares de pesso-as massacradas naGuiné-Bissau, em

Angola e em Moçambique. Os sobreviventesdeste inferno vão-se arrastando neste encanta-dor país de praias, auto-estradas, Expos emonumentos históricos que em maioria sãoigrejas; centenas de milhares de pessoas des-feitas, deprimidas, desmunidas, doentes. Aguerra deixou profundas feridas psicológicasem toda uma geração. À qual, ainda por cima,se pede um esforço de amnésia em prol doconsenso. Porque o silêncio oficial sobre aguerra faz parte da cultura oficial. Este silên-cio recobre também um outro aspecto desteperíodo, a maciça rejeição da guerra por umaparte da juventude, uma das mais importantes

Fotografia de João Camacho

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oposições da história moderna. Em finais dosanos 60, havia duzentos mil refractários edesertores portugueses espalhados pela Euro-pa. Em vésperas do colapso do antigo regime,apresentava-se ao serviço militar a metade dosjovens em idade militar, ou nem tanto. De iní-cio eram sobretudo estudantes, oriundos dasclasses médias, mais ou menos politizados, osque «fugiam», como então se dizia em lingua-gem popular. Mas esta rejeição da guerradepressa se alargou às classes proletárias, so-bretudo nas maiores cidades, utilizando asredes da emigração clandestina para evitaremmorrer como patriotas. Sem este movimentoinformal de oposição à guerra, que desorgani-zava e desmoralizava o exército, o golpe militardo 25 de Abril nunca teria ocorrido. Esta recu-sa não era organizada, e ainda menosencorajada, pela oposição ao regime. O PCPtinha então uma só palavra de ordem destina-da aos seus militantes e simpatizantes: fazerema guerra para se lhe oporem por dentro. Umatípica táctica de aparelho, paga muito caro pe-los que se lhe submeteram. Na realidade, oobjectivo do PCP consistia em infiltrar o exér-cito com vista à eventualidade de uma revoltamilitar contra a guerra. No seu livro Os Alfe-res, o escritor comunista Mário de Carvalhodescreve a experiência desta época, dos jovensmilitantes que se viam no mato, detectadoscomo comunistas pela hierarquia militar, obri-gados a matar para não serem mortos, onde «aangústia do medo se mistura a um terrível sen-timento de injustiça». Mas se a pertença àcategoria dos que «fugiram à guerra» conti-nua a ser reconhecida com indulgência nasociedade portuguesa, em contraparida o so-frimento dos que a fizeram é ignorado, oumesmo negado. O discurso oficial martela umaúnica mensagem: a democracia está instaura-da, a guerra acabou, as colónias tornaram-seindependentes. Impõe-se esquecer. O preço dademocracia é o dever de olvido, o silêncio. Ora,

para muitos antigos combatentes e suas famí-lias a guerra nunca acabou, as suasconsequências são vividas de modoobsessionante. Porque o que é esquecido à for-ça, pelo interdito, acaba por invadir todo oespaço da mente. «Participar em massacres eser obrigado a matar para não morrer, assistire participar no assassínio de crianças e mulhe-res, assistir a bombardeamentos, tiroteios,rebentamento de minas, utilização de napalm,tudo isso transformou estes jovens em homensprecocemente envelhecidos», conta um anti-go combatente.

Em 1992, alguns indivíduos marcados poresta experiência conseguiram organizar-se econstituíram uma associação, a APOIAR (As-sociação de Apoio às Vítimas do Stress deGuerra) (3). De início tratava-se sobretudo deprestar apoio médico e jurídico aos antigoscombatentes. Mas depressa perceberam que«as autoridades faziam questão de apagar amemória da guerra e dos sofrimentos dos quea fizeram»; e que o Estado português se recu-sa a reconhecer o stress de guerra. Na suaactividade de denúncia da guerra e do fabricodo esquecimento, a associação Apoiar viu-seinevitavelmente em conflito com as autorida-des. O jornal que publica levanta regularmentea questão da responsabilidade do Estado, acontinuidade entre o antigo e o novo regime, ahipocrisia da classe política, o carácter colo-nial da guerra. «Para o espírito amputado, nãohá prótese!», desabafam. E sobretudo dão apalavra aos antigos combatentes, que narramos horrores da guerra, descrevem os massacresmas também, por vezes, actos de confraterni-zação com as populações africanas, asolidariedade entre os soldados, a falta de con-fiança na missão que tinham, a atitude racistae fascista de certos oficiais, as dúvidas de ou-tros, o papel da PIDE no seio da hierarquiamilitar. Tudo isso incomoda. Como diz MárioGaspar, um dos fundadores da Apoiar (que as

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Utopia 974

autoridades encaram como um excitado), «oque eles querem é que a nossa geração acabe eque não se fale mais nisso. Para poderem dor-mir em paz.» Mas a verdade é que aquilo queeles exprimem tende a difundir-se, que em to-das as ocasiões propícias os jornais se vêemcheios de cartas de antigos combatentes, ex-primindo em maioria o sentimento de teremsido utilizados e entregues à sua sorte pelamáquina militar e o poder político. Stress deguerra? perguntam os que querem sacudir aágua do capote. Isso é bom para os antigos doVietname. No exércio colonial português nun-ca houve stress. O cinismo oficial é tanto maisforte quanto se sabe que no seio da nova clas-se política são muitos os que «fugiram àguerra» e foram militantes, no exílio, em par-tidos da oposição. O socialista Arons deCarvalho publicou até, antes do 25 de Abril,um livro sobre a liberdade da imprensa em Por-tugal denunciando o facto de oficialmente serproibido mencionar o emprego de napalm emétodos de intervenção química pelo exércitocolonial. O livro foi reeditado em 1999 compompa e circunstância, mas hoje este cavalhei-ro é secretário de Estado duma coisa chamadaComunicação Social. E mudou de verdades.

2. O ADMIRADOR DEKROPOTKINE E OS OCUPAS; OS

BAIRROS DA LATA SOCIAL-MENTE MERECIDOS

Queluz, entre Lisboa e Sintra, «a residên-cia preferida da Rainha, é um sítio bonito»,escrevia em 1880 Maria Rattazzi na sua deli-ciosa crónica sobre as taras da sociedadeportuguesa, Portugal de Relance. Um séculomais tarde, o palácio real é etapa turística, arepública está solidamente implantada e o sí-tio irreconhecível. Na avenida António Enes,nº 27, a uns passos da estação de caminho de

ferro, uns jovens anarquistas ocuparam umprédio degradado e ao abandono, a antiga es-tação dos Correios. Ao lado, num prédio meioacabado, dois polícias guardam orgulhosamen-te a propriedade privada e as mercadorias dumsórdido centro comercial sem clientes. Queluzé hoje uma das periferias-dormitório de Lis-boa, um bisonho lugar constituído por umamontoar de habitações do tipo gaiola em be-tão armado. «Por que razão será o dinheiromais importante que as pessoas?», interrogauma bandeirola afixada nas janelas da velhaestação dos Correios. Colado no portão da rua,um texto explica o sentido da ocupação: «Pre-cisamos de um espaço comum onde possamoster relações com outras pessoas que não sejamos nossos pais, onde seja possível discutir, fa-zer amizades, levar a cabo actividadescolectivas. É por isso que ocupamos esta casa.[...] Gostaríamos que a comunicação se resta-belecesse entre os vizinhos, esta relação quese perde com individualismo, fechando-se cadaqual em casa com os olhos e a mente fixos noecrã de televisão, passando ao lado da vidaverdadeira.» Facto surpreendente, os vizinhose os transeuntes apoiam a ocupação e o abai-xo-assinado, ao fim do dia, fica cheio denomes. Algumas pessoas até lhes levaram coi-sas úteis, alguns móveis. Será possíveldeduzirmos disto uma mudança da atitude po-pular relativamente a estas acções? Quem selembra da destruição destas antigas grandesaldeias do tecido urbano, levada a cabo pelaespeculação imobiliária dos últimos trintaanos? Uma destruição rápida e caótica, tradu-zindo a força arrogante do dinheiro. Os camposportugueses, os arrabaldes das cidades, tudo oque é habitável em redor dos eixos rodoviári-os, são hoje spaços duma fealdadeindescritível. Para quem tenha guardado namemória a imagem dos bilhetes postais de an-tigamente, o país está irreconhecível. É em vãoque o viajante o procura, por entre as auto-

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estradas e o cimento armado.Uns meses antes desta ocupação de Queluz,

numa estreia memorável, um velho prédio foiocupado em Lisboa por um grupo de jovens,na zona da Fundação Gulbenkian (4). A sur-presa foi tanta que o presidente da Câmara dacapital foi ver o que lá se passava, rodeadopor uma esquadra de engravatados adjuntos.«Este prédio está muito degradado e terá deser destruído. Por enquanto podem cá ficar.Mas cuidado, não se deve generalizar este tipode acção. Compreendo-vos, eu também li oKropotkine!»

O autarca tem a quem sair. O pai, chefe his-tórico do PS, foi o digno restaurador da ordemcapitalista na sequência da agitação social pós-25 de Abril. O filho é um carreirista ambiciosoque governa a grande cidade a golpes de de-magogia, estabelecendo redes de influência eclientelismo. Uma mistura do francês Tiberi edo moscovita Lujkov. Está em todas: ecolo-gista, liberal, cristão, social, humanista,tolerante dos libertários desde que se compor-tem de forma civilizada. Uma prova? Esteleitor de Kroptokine não hesita em convidarpara um porto de honra um grupo de peritosanarquistas, reunidos em Lisboa num colóquiocom vista a debater as virtualidades libertáriasdo poder municipal. Mui esperto, o filho apren-deu com o pai que vale mais ouvir tais coisasdo que ser surdo. Mais vale uns colóquios anar-quistas do que uma vaga de ocupaçõesanarquizantes.

João Soares traz no rosto, aliás, as marcasde um período obscuro da sua existência. En-contrando-se um dia algures na África Austral,em serviço de apoio a Jonas Savimbi (o ho-mem da CIA e dos serviços secretos franceses),o nosso homem sobreviveu a um grave aci-dente de aviação provocado por algo que ficouna ordem do mistério. Trazido in extremis aomundo dos mortos-vivos graças à intervençãodo Espírito Santo, com uma cara à Frankenstein

produto das maravilhas da cirurgia estética,abandonou desde então o mundo perigoso dospoliciais para se tornar um dos caciques soci-alistas do país. Quando da abertura da Expo98, deu muito que falar declarando corajosa-mente à imprensa que não tencionava, de modonenhum, adoptar medidas repressivas contraos pedintes, prostitutas e vendedores ambulan-tes que enchem os passeios de Lisboa.«Opomo-nos a este género de operações decosmética social». Como um bom hegeliano,acrescentou: «Lisboa é o espelho do país real».Roga-se pois ao turista que não tome a apa-rência pela essência.

Lisboa, espelho do país real, cidade commais de um milhão de habitantes, conta hoje(recenseadas) mil pessoas sem abrigo. Nosvelhos bairros populares, metade dos alojamen-tos continua a não dispor de casa de banho eum terço não tem cozinha. O que há-de vir nãoé de bom augúrio, pois o programa que previapara o ano 2000 a total irradicação dos bairrosda lata em Lisboa e no Porto só pode concreti-zar-se em 14%, falando as previsões maisoptimistas de 42% dessa realização no finaldo ano e do século. Mas será isto deveras gra-ve? A secretária de Estado para a Habitação, aSra. Leonor (uma esquerdista dos anos 60,então exilada em Paris), declara à imprensa queos programas de realojamento dos pobres sóse justificam se for possível «reinseri-los nacomunidade», caso contrário será um desper-dício do erário público. No fim de contas, defacto, os que não trabalham não se cansam,por que razão precisariam eles de dormir, dese lavarem, de cozinhar?

3. JESUÍTAS E FANÁTICOS, OCINEASTA E O NOBEL

No fim do século passado, o núcleo maisbrilhante dos intelectuais portugueses encara-va a ideia nova de socialismo como a

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alternativa àquilo que consideravam ser omovimento de decadência dos povos peninsu-lares. Os da «Geração de 70», Eça, OliveiraMartins, Antero de Quental, moveram um pro-cesso sem concessões às taras da sociedadeportuguesa e da sua classe dirigente (5), bemcomo às responsabilidades da Igreja no avilta-mento do espírito popular. A respeito docarácter português, notava Antero: «Mesmoquerendo ser modernos, há sempre dentro denós, escondido, dissimulado, mas não de todoinerte, um beato, um fanático ou um jesuíta!O moribundo que se ergue dentro de nós é oinimigo, é o passado.» (6) Outrostempos, outras qualidades. No nos-so fim de século os intelectuaisportugueses reconhecidos vivem empaz com o «moribundo», fazendodestas ideias do passado o seu co-mércio.

Manoel de Oliveira é o homemque incansavelmente trata deentendiar-nos. Mas quando não estáa rodar um filme, acontece-lhe fa-lar. O antigo aluno dos jesuítas,católico praticante, viveu o 25 deAbril do ponto de vista do patrão deuma fábrica ocupada pelos trabalha-dores. «O 25 de Abril trouxe-memuitos prejuízos materiais. A fábri-ca da minha família entrou em falência e osmeus filhos foram obrigados a emigrar...» (7)Ainda assim o cineasta de sucesso não perdeutudo, porque graças a Deus o ofício de patrãoensinou-lhe a dirigir actores. Não convém es-perar muito da classe operária, é gente inculta,ingrata, que só pensa em trabalhar ou em fazera revolução e não é nada tolerante para com osartistas. Manoel de Oliveira, que é cristão,perdoou-lhe. A única coisa que ele não perdoaé que se critique Deus. «Deus não se discute»,lançou ele, num debate público, a JoséSaramago, o prémio Nobel.

Saramago é um outro género de jesuíta, oude fanático. Por muito que a gente procure, nãoiremos encontrar a assinatura do Nobel no abai-xo-assinado da velha estação dos Correiosocupada em Queluz. Um homem de uma talestatura não pode fazer tudo, tem prioridades.Mal tinha sido nomeado prémio Nobel, JoséSaramago desloca-se a Lisboa, para ser rece-bido na sede do PCP. A seguir vai ao Porto,para o comício de recepção do PCP a FidelCastro, vedeta da I Conferência Íbero-Ameri-cana. Aplaudido por uma multidão jubilosa, oditador das Caraíbas é apresentado por

Saramago como o homem «que personifica asmelhores virtudes do povo cubano». AméricoAmorim, mais conhecido como o Rei da Cor-tiça, quinta fortuna do país e membro do clubemuito chique dos «200 mais ricos do mundo»,não estava, quanto a ele, nessa recepção. Ti-nha encontro marcado com o líder máximonum excelente hotel do Porto, num encontroprivado. O Sr. Amorim conhece na ponta daunha a questão social; a fortuna da família foiconstruída graças à exploração de várias gera-ções de proletários, utilizando sempre arepressão contra os militantes sindicalistas re-

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volucionários e depois comunistas. Este ho-mem, que hoje é um reconhecido democrata,foi mesmo um pilar do regime fascista. Rode-ado de patrões portugueses, todos radiosos antea perspectiva de interessantes negócioscaribenhos, o Sr. Amorim anuncia à imprensaa aplicação de investimentos no turismo emCuba, onde já possui dez hotéis. E saúda Fidelsegundo as regras do militantismo marxista-leninista: «Hasta siempre, comandante!» Este,por seu lado, saúda em Amorim «o patrão sé-rio e um grande amigo», ao mesmo tempo queexplica a sua concepção da democracia: «Nomeu país cada cidadão é um partido. Temosmilhões de partidos.» Ao que parece, actual-mente é o seu partido pessoal que detém amaioria absoluta. Deve ser esta peculiar de-magogia aquilo a que Saramago chama «asmelhores virtudes do povo cubano». Um au-sente, notado, nestas festividades: OteloSaraiva de Carvalho, o antigo operacional deAbril hoje reciclado no pequeno comércio deimport-export com a África lusófona. Em ple-no período da agitação política, em Julho de1975, Otelo visitou Cuba, convidado por Fidelpor iniciativa do PCP, que então procurava in-tegrar o popular chefe das operações militares.Fidel foi directo, aconselhou-o a pôr-se ao ladodo PCP, cuja «experiência na direcção dasmassas é importante». Cá temos pois o homemrealista que agrada ao Rei da Cortiça. Mais umavirtude cubana. Vinte e cinco anos mais tarde,Otelo continua seduzido pelo prestígio do di-tador comunista: «A população tratava-o comoum irmão mais velho e para os miúdos ele erao Pai Natal».

Em Castro Verde, a pequena vila doAlentejo comunista, o oculista pôs na montrao Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago. Tal-vez ajude a vender o stock de óculos de sol.Um Nobel de literatura no país da Europa coma mais elevada taxa de analfabetismo (8), numasociedade onde as livrarias não abundam, é

coisa que deveria pôr alguns problemas demarketing. Mas não; afinal toda a gente com-pra um Saramago, até os analfabetos e oscegos. Mais de 300 mil exemplares vendidosno fim do ano, um totoloto positivo para aCaminho, a editora do PCP que já não conse-guia vender as Obras Completas de Lénin. Atéo Sr. João Carapeto, capitão da GNR aposen-tado, adquiriu o Ensaio sobre a Cegueira. Écerto que não o convenceu, pensa que é umaliteratura esquisita, sem parágrafos. Mas o país,que não é grande, tem necessidade de heróis,cimento da identidade histórica. E como ostempos são ingratos e os candidatos raros, umescritor comunista sem parágrafos pode muitobem servir. Saramago, aliás, segundo nos ga-rante a mercadoria, dá amiúde mostras do seupatriotismo, declarando: «a minha pátria é hojemaior», «tenho um sentimento patriótico», «te-nho sangue português», e por aí fora.

A Saramago nunca ninguém pergunta porque razão está ou esteve no Partido Comunis-ta. Perguntam-lhe por que razão é comunista.Como se fosse a mesma coisa. Isso permite-lhe invariavelmente divagar sobre ohumanismo de Marx e de deixar à conta dodeterminismo histórico «os erros do passado».A 21 de Agosto de 1968 as tropas do Pacto deVarsóvia entravam na Checoslováquia paraporem na ordem as veleidades reformistas dogoverno Dubcek. Dois dias depois, o PCP erao primeiro partido comunista em todo o mun-do a apoiar sem reservas a intervenção militar.Hoje Cunhal é considerado um homem de le-tras com opinião sobre as artes, publicandoromances com o pseudónimo Manuel Tiago.Ora, meses depois da invasão daChecoslováquia, Saramago adere ao partido.A data é eloquente. Após o 25 de Abril é no-meado director-adjunto do Diário de Notíciase encarregado pelo partido de controlar o jor-nal. Vinte e dois jornalistas publicam ummanifesto contra a situação interna, as práti-

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cas autoritárias e esse controle. Sem hesitar,Saramago põe-os na rua. Mais tarde, declara:«O jornal tinha a sua linha e não podíamosaceitar que se tornasse uma tribuna.» Mal teveao seu dispor uma pequena parcela de poder, onosso homem exerceu-a autoritariamente. Nelenão há sombra de espírito libertário, é umapersonalidade seca, racional, rígida, fanática.Estamos bem longe, com ele, dos sonhosemancipadores dos socialistas do início do sé-culo, caros à «Geração de 70».

4. OS INDÍGENAS DAS NOVASRESERVAS DE TRABALHO FLE-

XÍVEL NA PERIFERIA DOIMPÉRIO

Ao intervir em mais um Seminário sobre oModelo Social Europeu, o primeiro-ministroportuguês teve uma ideia de génio: amundialização deverá ser regulamentada. Du-rante o regime salazarista houve de facto aComissão Reguladora do Comércio do Baca-lhau; por que não criar, com base no mesmo

modelo, uma Comissão Reguladora daMundialização? Na altura a proposta foi la-mentavelmente ignorada pelos peritos; masmeses depois o grande pensador JacquesChirac retomou-a: a mundialização tem de serorganizada.

Na Azambuja, perto de Lisboa, aglobalização continua desorganizada. A direc-ção da fábrica Opel felicita «os seus operários»pelo aumento da produtividade verificado nosúltimos anos. «A flexibilidade da força de tra-balho, a sua docilidade, constituíram factores

determinantes dos bons resulta-dos obtidos.» Paradoxalmente, ostrabalhadores parecem inquietos.Isto porque mesmo ao lado a fá-brica Ford fechou, após ter sidoconsiderada durante anos, tam-bém ela, um caso exemplar deeficácia e produtividade na Euro-pa. Deverão as felicitações serinterpretadas como a participaçãode uma morte anunciada? EmSetúbal a globalização também sefez sentir. Após dez anos de exer-cício, a fábrica Renault encerra.Instalada com base em subsídiosda UE e do Estado português, eraali montado um modelo, o Clio,com peças e carroçarias oriundas

de fábricas espalhadas pela Europa. A longarede europeia de auto-estradas, esses milharesde quilómetros de betão e asfalto que percor-rem o velho continente, de Vilnius a Lisboa,assumem assim todo o seu sentido capitalista.Os proletas de Setúbal ouvem os agradecimen-tos da empresa, sendo os mais idosos remetidospara a pré-reforma e os outros orientados paraa lida sem fim das formações e indemnizações.«É toda uma vida atirada fora!», exclama pe-rante as câmaras Raimundo, com um brevegesto da mão indicando ao jornalista que nãoestá para colaborar mais na produção da sua

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própria imagem. Com uma expressão enoja-da, põe ponto final na conversa: «Nunca maishei-de votar por um partido, seja ele qual for.»Caso haja alguma questão a respeito dacredibilidade democrática, faça favor...

A região industrial de Setúbal é um exce-lente exemplo de como o capital multinacionalintegrou estas zonas proletárias da periferiana nova estrutura produtiva da modernidade.Já em finais do regime salazarista fora láconstruído um pólo industrial moderno (quí-mica, siderurgia e estaleiros navais) queabsorveu, durante anos, o excedente da popu-lação proletária do Alentejo. Esta zona, develha tradição reivindicativa, foi um foco deagitação operária. Após o 25 de Abril, o esta-leiro naval da Setenave (juntamente com o daLisnave, em face de Lisboa) foi um dosbastiões da esquerda sindical e dos adeptosdo projecto de poder poular apartidário. Atéao fim dos anos 80, o Estado português irámanter estas enormes estruturas industriais so-bretudo com o objectivo de preservar a pazsocial. A verdadeira repressão, que não é a dapolícia, virá depois. Uma classe operária der-rotada pelo revés duma acção colectivaportadora de ideias emancipadoras estava as-sim condenada a submeter-se a umaexploração sem limites.

Os especialistas portugueses doneoliberalismo mostram-se triunfantes: «Tí-nhamos as condições necessárias àreestruturação: uma população escolarizada,com boa formação profissional». Trata-se deoferecer ao capital uma reserva de mão-de-obra qualificada, flexível e precária, dócil ebarata. Pois não esqueçamos que em finais de1997 o salário horário mínimo continuava aser o mais baixo da UE (9). Os patrões euro-peus, seduzidos pela brandura do país, nãoperdem uma ocasião de o aplaudir: «O quemais me impressiona é que as pessoas traba-lham muito, longas horas e de maneira

intensa.» (10) Como afirmam os especialistasda identidade nacional, «o que há de intrínse-co na cultura portuguesa é o espírito desacrifício e uma boa dose de individualismo»(11). Concluindo os publicitários damodernidade: «O importante é criarmos umaimagem de competitividade». Porque é isso,precisamente, «o investimento do futuro». Asempresas devem instalar-se, apoderar-se dossubsídios e da mão-de-obra, e depois, ala, fe-char as portas; voltar, mais tarde,eventualmente, segundo determinem os inte-resses superiores do capitalismo. Como éóbvio, quando estes tão modernos empresári-os falam de vida não têm em mente a vida daspessoas. Hoje em dia, segundo precisam, «jánão é a fábrica que tem um ciclo de vida, é atecnologia». As infraestruturas e a mão-de-obra estão disponíveis para serem utilizadaspelos capitais e tecnologias que circulam, se-gundo as suas necessidades e não outras.Temos assim desvendado o mistério do famo-so ciclo do «saber social», para empregar alinguagem codificada dos universitáriosparisienses.

De modo a amortizar o «preço social» doprojecto, o Estado conserva uma função. Temde estar presente, com os seus magros abonose sobretudo com a sua polícia e acriminalização da miséria. Porque a criaçãodestas reservas de indígenas precários e fle-xíveis implica também o desenvolvimento dasdiversas formas da economia paralela. A dro-ga, a prostituição, o trabalho infantil e outrasactividades «negras» fazem parte da nova pai-sagem industrial pós-moderna. O Sr. Borges,um economista de Lisboa, inquietou-se como impulso desta economia paralela, que cres-ce como cogumelos nos baldios da antigaeconomia. Assustado, descobriu que em 1997a massa monetária correspondente a esta eco-nomia paralela representa em Portugal 20%do produto interno bruto. A expressão cobre

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múltiplas actividades ilegais, que vão da prá-tica clandestina do aborto à falsificação demarcas e à venda de tabaco. Em percentagemdos quantitativos financeiros em movimento,a droga e a prostituição representam, respec-tivamente, 50% e 10% do conjunto daeconomia paralela.

O desmantelamento industrial e o desastresocial foram condições para a entrada de Por-tugal, em 1986, na CEE, a fim de atrair oscapitais estrangeiros. A idade dourada destareestruturação foi a dos governos neoliberaisde Cavaco Silva, frio per-sonagem jesuítico (maisum) apaixonado pela Sra.Tatcher. Como em toda aparte, os socialistas quelhes sucederam «fazem amesma política mas me-lhor», retomando afórmula de MestreSchröder. As empresasmultinacionais que se ins-talam trazem cada vezmenos investimentos,continuam a sacar as sub-venções europeias e osempréstimos bonificadosoferecidos por Bruxelas(12), exploram a mão-de-obra local como deveser e zarpam depois para outras paragens.

Falarmos hoje de «economia portuguesa»,grega, espanhola ou irlandesa é um bico deobra. A periferia do Império do Euro não pas-sa de uma periferia industrial do centro, deuma reserva de mão-de-obra, com as suas po-pulações de gente entregue à triste sorte que éa sua e que lá vai vivendo com a respiraçãoassistida dos fundos comunitários. Toda a gen-te sabe que tais fundos têm fundo e não sãoeternos, sendo por isso constante a inquieta-ção relativa a uma nova repartição doorçamento da União, imposta pelos países ri-

cos. É por isso que os dirigentes recorrem semcessar à chantagem da agitação social com vis-ta a que os cheques vão entrando. Reside nissotodo o sentido da fórmula que insiste na «co-esão social» das periferias nacionais. EmPortugal, estes fundos de «coesão» represen-tam mais de 600 milhões de contos por ano,ou seja, metade do custo dos grandes traba-lhos programados; o último em curso é agrande barragem do Alqueva, no BaixoAlentejo, obra faraónica cujo objectivo emi-nentemente social consistirá em regar as

grandes extensões decampos de golfe queproliferam no meioduma paisagem esva-ziada de gente.Sempre «bom alu-no», Portugalexecuta os fundoscomunitários emmais de 70%. Issoconstitui a garantiade um bom retornodeste dinheiro, dre-nado pelos poderespúblicos europeuspara os cofres dasgrandes empresas

privadas da construção, os gigantes do cimen-to e do ferro. A ausência de défice público,aquilo a que os políticos chamam saneamen-to das finanças públicas, prova apenas que oEstado português gasta pouco. Ou que gastaessencialmente os fundos comunitários,contabilizados nos orçamentos dos Estadoseuropeus ricos (13). O saneamento das finan-ças públicas portuguesas é apenas o efeitolocal, marginal, da contribuição dos Estadosricos para o fianciamento da União, contri-buições estas que são, para todos os finspráticos, fundos públicos. Com estes «fundosde coesão», os Estados ricos prosseguem, na

Fotografia de João Camacho

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periferia do espaço europeu, uma políticakeynesiana de apoio à produção privada dasgrandes empresas capitalistas.

5. INVASORES MOLDÁVIOS NOPAÍS ONDE A POBREZA

É COLORIDA

A abertura de restaurantes de comida rá-pida e de imensos centros comerciais, aligação por auto-estrada entre Lisboa e Berlim,a proliferação dos telemóveis, o aumento doparque automóvel (14) e a abertura de lojasde grande luxo em Lisboa e no Porto podemcertamente ser prova científica da entrada namodernidade. Mas o que caracteriza as socie-dades da periferia é a coexistência poucopacífica entre os sinais exteriores demodernidade e o peso de arcaísmos tenazes.Na sua frieza, as estatísticas são eloquentes.O índice de pobreza de Portugal não só conti-nua a ser o mais elevado da Europa comocontinua a crescer. O país apresenta até a maiordisparidade de rendimentos entre ricos e po-bres de toda a União Europeia. Nesteencantador cantinho da Europa, 10% dos maispobres estripam-se para obter 2% da riqueza,ao mesmo tempo que os 10% mais abastadospartilham cortêsmente entre si 30% da mes-ma riqueza. Mas num país de tradição fatalistae de fado, uma desgraça nunca vem só. Ospobres, que são cada vez mais pobres, são tam-bém cada vez mais velhos. Inelutavelmente,submetido a uma maldição divina, o país en-velhece (15). A não ser que se trate daquilo aque os anarquistas do início deste século cha-mavam «a greve dos ventres», a redução danatalidade. A taxa de fecundidade tem baixa-do aqui mais do que na restante Europa. Alémdisso, os que não morrem de pobreza ou develhice, podem morrer graças aos efeitos doprogresso, acidentes da estrada ou poluição

(16).Falamos, na realidade, de dois países. A

região de Lisboa, com um rendimento próxi-mo da média europeia, e o resto, o país onde apobreza é colorida. O rendimento do Alentejo,para citar o exemplo mais extremo,corresponde a uma quarta parte do das regi-ões ricas da Europa. E um recente Relatórioda União sobre a famosa «Coesão Social» lem-bra que 27% das famílias portuguesas viviam,no início dos anos 90, abaixo do patamar depobreza, com menos de 60 contos por mês.Como as famílias pobres têm muitos mem-bros, estes 27% correspondem a uma versãooptimista do desastre. Toda a gente sabe quepor detrás do brilho da minoria europeizada,a pobreza e a angústia, ou até a fome, são oquinhão da maioria.

Por conseguinte, prosseguindo uma anti-ga tradição histórica, o que faz muita gente épôr-se a andar, pelos seus próprios meios ousubmetendo-se às redes de negreiros que pro-liferam. Em Espanha, há hoje mais de 40 miltrabalhadores portugueses sazonais. A parti-lha do mercado da exploração faz-se segundoas regiões: marroquinos na região de Valência,portugueses no País Basco. Uma boa partedestes proletários (17) vive controlada pormáfias que sacam três quartos dos seus ma-gros salários, às vezes a totalidade. Muitosdestes trabalhadores portugueses são remune-rados em «serviços», que vão da droga àprostituição. Os que se atrevem a resistir sãodesancados. De que está o comité central daETA à espera para fazer justica? Segundo pa-rece, esta forma imaginativa de pagar a forçade trabalho está a fazer escola em Portugal.Vítima de um acesso de zelo da polícia, umempresário do Porto foi preso, em finais de1998, por pagar os «seus» operários com trêsdoses diárias de heroína, mais uma dose pe-las horas extra.

Temos de reconhecer que esta questão da

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Utopia 9 83

emigração é uma das mais complexas; comefeito, Portugal continua a exportar mão-de-obra para os países vizinhos mais ricos aomesmo tempo que a importa dos mais pobres.O dia 30 de Agosto de 1998, por exemplo,ficará como um dia de glória para «o esplen-dor de Portugal». Nesse dia, arranca de Lisboao primeiro voo charter de trabalhadores imi-grantes clandestinos expulsos do país. Oexemplo francês, pátria dos Direitos do Ho-mem, acaba sempre por se impor. Mas ogoverno português faz questão de manter asua originalidade: daqui expulsam-se médi-cos, engenheiros, em suma, gente bem.Direcção: Moldávia. O espírito de descobertadas terras longínquas mudou de campo.Doravante são moldávios e romenos que vêmdescobrir o país das descobertas. Depois depagarem 1200 dólares a intermediários, o equi-valente de um ano de salário, e viajarem maisde 4500 km de autocarro, os moldávios che-gam a Portugal para trabalharclandestinamente na construção civil. No Ve-rão de 1998, a polícia de estrangeiros efronteiras detém uma centena desses homens.Os trolhas são engenheiros e estudantes uni-versitários, alguns são médicos. Todos embusca de um modo de sobreviver no capitalis-mo global subsequente à queda do muro deBerlim. Sem grandes ilusões, as organizaçõesde apoio aos imigrantes protestam. «Portugaltem necessidade destas pessoas. Quem é queconstruiu a Expo, a nova ponte sobre o Tejo,quem é que está a construir a barragem doAlqueva e outras grandes obras?» ParaLopescu, romeno de trinta anos, os pontos deinterrogação são supérfluos. Trabalha clandes-tinamente desde há três anos na construçãocivil, em Lisboa, e sabe que as fiscalizaçõesda polícia se intensificaram no fim das obrasda Expo. Lopescu arranja trabalho ao dia, porvezes à semana, através de intermediários queo vão buscar à pensão onde mora. «O traba-

lho é extremamente duro. Trabalho como aju-dante de marceneiro, 60 a 70 horas porsemana. Quando arranjo trabalho, só descan-so no domingo.» (18)

6. A EXPLO DOS OCEANOS,OS RATOS DE ÁGUA E O

DESPERTAR DA ECOLOGIASOCIAL

A exposição universal de Lisboa (a Explo,como lhe chamaram os libertários) tinha portema «Os oceanos, um património para o fu-turo» e foi inaugurada a 18 de Maio de 1998.Os da Explo celebravam nesse dia o quintocentenário do desembarque em Calcutá de umpirata oficial chamado Vasco da Gama. Teri-am podido perfeitamente esperar mais quatroanos e celebrar o dia 29 de Setembro de 1502,gloriosa jornada lusitana em que o barbudosanguinário, embebido da sua santa ignorân-cia religiosa, friamente incendiou o navio Mirique regressava duma peregrinação a Mecacom 250 passageiros a bordo e cujo saque lhepareceu insuficiente. Entre homens, mulherese crianças, Deus lá há-de escolher os seus.Graças a estes altos feitos, o embrutecidomembro da pequena nobreza alentejana tor-nou-se um grande herói da História dePortugal. Nessa altura os fundos comunitári-os de coesão ainda não existiam, e bem precisoera viver da pilhagem e do contrabando de es-peciarias. No fim do século passado, Anterode Quental disse-o na perfeição: este país nun-ca teve senão uma indústria, a Índia.

A Explo de Lisboa escondeu de facto umvasto projecto imobiliário que prevê a cons-trução de dez mil apartamentos e dequatrocentos e cinquenta mil metros quadra-dos de escritórios, tudo isto ornamentado comum porto de recreio, salas de espectáculo, co-mércios. Como era de prever, o nome de Vasco

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da Gama teria de apadrinhar negócios escu-ros, a recuperação imobiliária de zonasindustriais abandonadas na margem do Tejo,para proveito da nova burguesia lisboeta. Depassagem, os grandes grupos privados euro-peus do BTP recuperam uma fracção nãonegligenciável destes 600 milhões de contosdas subvenções europeias investidos nas gran-des obras.

A Explo de Lisboa simbolizou assim o co-roar da ideia de modernidade. O país entroucom ambos os pés no presente, suscitando umdespertar do orgulho patriótico: «Já não so-mos um país de campónios ignorantes, já nãosomos uns incapazes, demonstrámos a nossacapacidade de realização». Isto não passou,bem entendido, do banal fraseado demagógi-co da classe política, uma classe médiacomplexada e arrogante, perfeitamente insen-sível ao estado da restante sociedade. Aopinião popular foi menos entusisasta. «Ogoverno fez isto para os ricos», ouvia-se di-zer um pouco por todo o lado. E apesar doselogios concertados e das declaraçõesautosuficientes, a reticência popular acaboupor ter algum eco nos meios de massas. A se-nhora Alzira, desempregada e com 35 anos,que mora nos Monte dos Arrumadões, pertode Beja, onde o desemprego e a fome existemno quotidiano, considerou o lema «a Expo,uma fábrica de emoções» uma fórmula obs-cena de publicitários e não apreciou nada estealarde de dinheiro. Para quem sobrevive gra-ças a trabalhos agrícolas precários, os cincocontos de entrada eram uma provocação. NaRégua encontrei alguém que andou a traba-lhar na Explo. Na Régua - triste vila namargem direita do Douro e centro de produ-ção do vinho do Porto. Durante séculos, ospobres desta região viveram sob a canga daIgreja, dos caciques e dos grandes proprietá-rios de vinhedos. O álcool ajudou-os a suportara miséria sem revoltas. No vestíbulo da esta-

ção da CP, uma placa oficial celebra o cente-nário da ligação feroviária ao Porto: «Ocaminho de ferro foi uma revolução. Oxalátodas as revoluções sejam como esta.» Sem-pre inquieta, a burguesia portuguesa... Durantetrês meses, sem parança, Fernando trabalhoupara a Explo. Mas de regresso à Régua conti-nua a não saber que aspecto poderá ter o«Pavilhão da Utopia». Num impulsoreivindicativo, todavia, põe-se a pensar quetodos aqueles que trabalharam para a Explodeveriam ter direito a uma entrada grátis. EsteFernando é mesmo extremista! Não verá eleque nem sequer um governo PS, com toda asua boa vontade, poderia satisfazer tamanhareivindicação maximalista?

«Os oceanos, um património para o futu-ro», rezava a publicidade. A realidade, porém,está longe da publicidade, e os 1800 km decosta portuguesa são uma péssima montra. Àsbem conhecidas poluições turísticas convémacrescentar as poluições resultantes de des-cargas e esgotos, petróleos e derivados,nitratos e fosfatos de origem agrícola. Nestefim de século, só 63% da população portu-guesa tem acesso ao sistema de esgotos, e emtodo o país apenas 25% das águas usadas sãotratadas. Mais de um milhão e meio de portu-gueses (15%) bebem água não controlada,contaminada em diversos graus sobretudo pornitratos.

Descendo pelos cais da cidade velha, paraoeste, ultrapassamos a ponte 25 de Abril echegamos aonde o rio encontra o mar. As prai-as de Caxias e da Cruz Quebrada sãofrequentadas pelos proletários de Lisboa semdinheiro para penetrar no Pavilhão da Utopia- reformados, imigrantes, pobres. Naturalmen-te, sempre que chega o Verão, os bombeirosde serviço tentam dissuadir os banhos em todaesta zona, visto os líquidos nauseabundos dosesgotos da grande metrópole darem todos parao Tejo, apesar de uma ligeira melhoria ocor-

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rida nos últimos anos. Trata-se de umadissuasão democrática, pois, conforme expli-ca um bombeiro, «não podemos proibir aspessoas». O senhor Lima, aposentado, com 62anos, não aprecia os ratos da água que lheaparecem pela frente, mas replica: «Se a praiaé limpa ou suja, quem tem dinheiro para irmais longe? Eu cá nunca fiquei doente. Rogoa Deus para que assim continue.» O senhorLima tem mais confiança em Deus do que noEstado português. É dizer muito.

Umas centenas de quilómetros mais aonorte, na periferia do Porto, é outra história.O senhor Manuel também não teve meios deir até Lisboa para visitar o famoso Pavilhãoda Utopia. Para ele, o oceano não é o patri-mónio do futuro, é o Texas. Não se trata aquide um poço de petróleo a céu aberto, simples-mente de uma pequena bomba de gasolinapessoal que lhe permite juntar uns cobres àreforma. Desde há anos, o senhor Lima recu-pera petróleo em bruto fazendo uns buracosna areia da praia de Leça da Palmeira, na zonaonde se encontra instalada uma das maioresrefinarias portuguesas. Obtém assim por diauns 300 litros de uma gasolina a que lá nosítio chamam «gasolina de caranguejo». Oestado de degradação da refinaria explica ofilão. Não é um passatempo de grande segu-rança, este do senhor Lima, porque às vezesdão-se explosões, chegando a acontecer quepescadores se sumam com o fumo. Mas é pre-ciso ver que não passam de uns pobres,arriscando inutilmente a vida em vez de pas-sarem a tarde no Aquário da Explo a ver nadaros seus doze mil peixes.

Gente contestatária poderia concluir queas condições de vida se degradam nas regiõescosteiras, onde agora vive a grande maioriada população. Mas as mobilizações contra oestado do meio ambiente só surgiram nos úl-timos anos. São porventura os primeirosmovimentos de resistência colectiva desde a

revolução dos cravos. Em duas vilas industri-ais (Souselas, perto de Coimbra, e Maceira,perto de Leiria) a população opõe-se desdehá dois anos à transformação das antigascimenteiras em incineradoras dos resíduosindustriais tóxicos. Diz-se que estas duas fá-bricas podem queimar por ano a totalidade dosresíduos industrais do país. Entretanto, milha-res de pessoas afrontam regularmente apolícia, os dirigentes oficiais e os represen-tantes das empresas, aos gritos de «queremosrespirar, queremos viver!» Alguns chegam apropor que o governo instale as incineradorasnas periferias ricas de Lisboa. No ar poluídocheira a revolta de classe. Sinal dos tempos,um dos directores da empresa que deve geriro sistema de incineração foi antes disso vice-presidente da mais conhecida associaçãoecologista, a Quercus. Agora que a ecologiajá não corresponde à sobrevivência dos pas-sarinhos mas à das próprias pessoas, oex-ecologista tornou-se homem de negócios.E tenta explicar ao bom povo que o exemplofrancês constitui a prova da viabilidade de umtal projecto, que em França doze das treze fá-bricas da multinacional Lafargue utilizam osfornos como incineradores de resíduos indus-triais perigosos. Visto a França ser o país dosDireitos do Homem, o exemplo deveria serconvincente. Depois do Existencialismo e daNova Filosofia, os franceses seriam especia-listas da Poluição. Mas a população não quersaber disso, o que ela quer é respirar. A mi-nistra do Ambiente bem insiste: «Fazemos emPortugal o que se faz por todo o lado na Euro-pa. Tratar os resíduos tóxicos da mesma formaque na Europa é uma fase do desenvolvimen-to do nosso país». Só que, pela primeira vez,o bom povo português começa a entender oprogresso e a modernização como sinónimosde barbárie.

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7. AS DIFICULDADES DOMILAGRE PÓS-MODERNO E O

ESPIRITISMO

O referendo sobre a alteração da lei sobreo aborto, no Verão de 1998, punha a seguintequestão: «Está de acordo com adespenalização da interrupção voluntária dagravidez, feita, a pedido da mulher, duranteas primeiras dez semanas de gravidez?» Tra-tava-se de despenalizar as mulheres queabortam nestas condições e não de umaliberalização do aborto. Mas mesmo uma tãolimitada revisão do direito de a mulher dispordo seu próprio corpo e da sua vida desenca-deou uma tempestade nesta periferia doImpério. Durante os debates a taxa de abortosmanteve-se igual, uma das maiores na Euro-pa e a primeira causa de mortalidade entre asmulheres jovens. Quando sabemos que umaborto clandestino, feito numa das numero-sas clínicas privadas pertencentes à máfiamédica, custa o equivalente de três saláriosmínimos, percebemos melhor quem morre eporquê. Apesar da importância desta questão,apesar da propaganda moralizadora que acom-panhou a campanha, o povo não se sentiumotivado. Os 30% de participação constitu-em um exemplo eloquente da perda decredibilidade da democracia parlamentar. A 25de Abril de 1975, quando das eleições para aassembleia constituinte, o povo fazia bicha,durante horas, para votar. Hoje é raro que maisdo que um cidadão em cada dois se dê ao tra-balho de o ir fazer. O resultado do referendo(uma ligeira maioria contra a despenalização)não pôde ser validado e as mulheres continu-am a morrer exactamente como antes.

A campanha moral sobre o aborto veio pôrem primeiro plano a atitude reaccionária daIgreja, a cobardia e o oportunismo dos parti-dos políticos. Viseu mostrou-se um feudo do

catolicismo fundamentalista. O Jornal dasBeiras não deixava por lá margens para dúvi-das: «Por Deus e pela Pátria». Segundo o bispodo sítio, «esta lei é uma continuação dabarbárie nazi. Será ela tão diferente dos for-nos onde se exterminavam pessoas?» O santohomem esquecia a caução que o seu partidodera, em devido tempo, à barbárie nazi. Umpouco mais ao norte, o bispo de Bragança foimais longe, comparando o projecto de lei auma acção de Hitler: «Precisamos de almas equerem fazer leis para as matar, sem necessi-dade.» Esta precisão é importante: «semnecessidade». Porque se podeperfeitissimamente matar com a bênção daSanta Igreja, havendo necessidade. Lembre-mos tão-só o apoio dado pela Igreja aosmassacres da guerra colonial, para não irmosmais longe. Por seu turno, as Assembleias deDeus, a mais forte corrente evangélica do país,em grande concorrência com o Vaticano, nãose deixaram ficar para trás, propondo uma vi-gorosa campanha de educação sexual e umaalternativa concreta à interrupção voluntáriade gravidez, com base na oração... Quanto àsforças políticas, estas brilharam pelo silêncio,meio incomodado. O PS, força conservadora,colocou-se oportunamente atrás do seu primei-ro-ministro, católico praticante, beato, ao queparece próximo da Opus Dei e declaradoopositor do aborto. Mais uma esquisitice so-cialista destas terras perdidas na periferia doEuro. O PCP, quanto a ele, optou pela discri-ção, opondo-se com moleza à criminalizaçãodas mulheres; na verdade protegia a tácticada mão estendida aos católicos, elemento es-sencial da sua sobrevivência. Odete Santos, apobre deputada encarregada pelos chefes delevar a cabo a campanha, nunca deixou dealertar para «o perigo de certas afirmaçõescontra a Igreja, que podem molestar católicosainda indecisos».

O descalabro da produção agrícola, a

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desertificação rural, as migrações para o es-trangeiro, para as cidades e o litoral, minaramas próprias bases do poder tradicional da Igrejacatólica; em vinte anos, a parte da agriculturana produção total passou de 15% a 4%. A pi-toresca sociedade rural dos bilhetes postaissumiu-se. Deste modo, o terreno está livre paraa progressão das seitas e das igrejas evangéli-cas, que se enraízam melhor no betão da selvaurbana, propondo respostas às aflições da épo-ca que são o egoísmo e o individualismo, adestruição da família, a deriva da juventude.Quando tudo se some em estilhaços, todos osmeios são bons para salvar a loja. A Igreja,outrora, dispunha de uma solução eficaz: omilagre. E Portugal, ao longo dos séculos, tor-nou-se um país possuidor de uma respeitáveltradição, a dos milagres, que ocorriam sem-pre na altura devida. Na altura desta histeriaanti-aborto, o Sr. Edmundo Estêvão pareciapois ser o homem da situação. Enfermeiro,responsável pelo Colégio Interno do SagradoCoração de Jesus, na vila de Oleiros, a 60 kmde Castelo Branco, era um homem com expe-riência. Durante a guerra colonial, em Angola,dera à luz uma imagem de Santa Filomena quechorava. E se é verdade que o milagre nãoconseguiu levar o exército português a ganhara guerra, pelo menos trouxe o senhor Estêvãoincólume para a sua aldeia. Desta vez foi nacapela do referido Colégio que Edmundo Es-têvão descobriu, um belo dia logo demanhãzinha, uma imagem de Nossa Senhorade Fátima chorando lágrimas de sangue. Diasdepois já para ali convergia uma piedosa mul-tidão, mais de cinquenta mil pessoas vindasde toda a parte. Houve até emigrantes que deFrança ali se deslocaram, ao ouvirem por látais novas. Os jornalistas puseram-se logo emcampo e os peregrinos, fazendo filas dia enoite, lá foram deixando à conta do milagredinheiro e jóias em boa quantidade. (Lembre-mos que estamos em 1998, ano da Expo e dos

seus pavilhões do virtual.) Segundo um inte-lectual, tratava-se, nem mais nem menos, deum «milagre contra os valores liberais quedestroem a sociedade portuguesa». Nada deenganos, porém; o liberalismo em questão éoutro: «A Santa Virgem toma posição contraa lei do aborto». Chamado, o chefe dos bom-beiros declara ter dúvidas. São entãosolicitadas algumas sumidades do Laborató-rio Científico da Universidade do Minho,porque nestas coisas a Ciência tem semprealgo a dizer e estamos num país moderno. Aperplexidade é geral, e até o inquérito da Po-lícia Judiciária nada revela. Os peregrinos,quanto a eles, continuam a chegar.

E teriam continuado a chegar. Mas o país,apesar de tudo, mudou desde que em Maio de1917 a Virgem Santa confiou os seus segre-dos aos três analfabetos pastorinhos a respeitodos destinos da Rússia que caíra nas mãos dosbolcheviques. Desta vez, uns quantos espíri-tos, motivados pela dúvida racionalista,mostraram-se mais perspicazes que os cien-tistas e a PJ. E, pela calada da noite, foramdar com o Sr. Edmundo Estêvão a lambuzarcom sangue a estátua fatimista. Apesar do re-vés deste milagre, a interrupção de gravidezcontinua a ser penalizada como antes.

8. A DEMOCRACIA DASEGURANÇA E O ESTADO

PENAL PORTUGUÊS

O aumento da taxa de encarceramento nospaíses europeus é particularmente visível emPortugal, onde passou de 50, em 1970, para140 em 1997, a mais elevada da UE e umadas maiores do mundo. Em 1998 havia nascadeias portuguesas, sobrepovoadas (19),mais de catorze mil detidos, para uma popu-lação de nove milhões de habitantes, estandouma boa metade em preventiva. Desde a épo-

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ca do regime fascista, a taxa deencarceramento praticamente triplicou. A cadaregime as suas formas de repressão social, osseus métodos de assegurar a paz social capi-talista.

O PS, que ganhou as últimas eleições combase num programa «securitário», instala umapolítica de presença policial visível e arrogan-te. Em 1990, a polícia portuguesa era naEuropa a segunda em percentagem da popu-lação, com um aumento de cinco mil políciaspor ano. Eis um ofício com garantia de em-prego neste país de precaridades, voltado parao «ciclo da tecnologia do futuro» e para osaquários gigantescos. A famosa «luta contra adroga» (nova designação mundial da manu-tenção da ordem) deixa intactas as grandesredes de importação e comercialização parajustificar o enquadramento policial das popu-lações pobres. São adoptadas medidas penaismuito duras contra os jovens, os primeiros quese vêem perante os efeitos do desemprego, daprecaridade e da desestruturação urbana. Nes-te contexto idílico de democracia musculada,os abusos, as torturas e as violências policiaistornaram-se correntes, confirmados pelos re-latórios de organizações humanitárias comoa Amnistia Internacional. A decapitação, apóstortura, em Maio de 1996, numa esquadra daGNR em Sacavém do jovem toxicodependenteCarlos Rosa, ficará como o bárbaro facto quetestemunha este estado de coisas. O aconteci-mento foi objecto de uma narrativa de AntonioTabucchi, A Cabeça Perdida de DamascenoMonteiro.

Em Março de 1996, uma amnistia presi-dencial liberta os últimos reclusos políticosdo grupo de acção armada FUP/FP 25 (20). Oanúncio desta medida desencadeia um movi-mento espontâneo de protesto dos prisioneirosde direito comum que reivindicam o alarga-mento da amnistia e a melhoria das condiçõesde detenção. Note-se que os reclusos não pro-

testam contra esta amnistia, protestam contrao facto de ela ser reservada aos «políticos»,considerando-se eles também vítimas de umasociedade injusta. Vinte e dois anos antes, nosmeses que se seguiram ao golpe militar deAbril de 1974, os presos tinham-se revoltadoem Lisboa para pedirem uma amnistia. Os mi-litares responderam enviando uma forçamilitar para a prisão do Limoeiro, com vista asufocarem a revolta, mostrando isto que a for-ma como uma revolução trata os prisioneirosda antiga sociedade é sempre reveladora dassuas virtualidades subversivas.

O movimento de 1996 depressa adquireamplitude nacional, com abaixo-assinados,greves do trabalho e de fome (21). Os presosorganizam-se em comissões, denunciando ageneralização da difusão da droga nas cadei-as, a promiscuidade, o estado deplorável dascondições sanitárias e da própria saúde dosdetidos. Num comunicado, a comissão de re-clusos duma prisão de Lisboa escreve: «Somoslevados a pensar que o desemprego, o empre-go precário, a falência do sistema de apoiosocial, a falta de respeito pelas minorias, acriação de guetos urbanos (onde a qualidadede vida é sub-humana), a inadaptação dos jo-vens (que se traduz pelo aumento da

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toxicodependência) constituem factores dedisfunção social contribuindo para que a vidase torne cada vez mais conflituosa na nossasociedade.» Interpelados pelo alarido da re-volta, os políticos de serviço sobem à ribaltapara defender o sistema. O PS opõe-se ao alar-gamento da amnistia porque isso provocaria«um aumento da insegurança e dacriminalidade nas ruas», exprimindo o PCPcertas reservas. Finalmente, a 23 de Março de1996, os reclusos da prisão de Caxias amoti-nam-se e recusam voltar às celas. Aintervenção da polícia, com vista a «assegu-rar a ordem democrática», é brutal e provocamuitos feridos. Perante as câmaras da TV, osreclusos brandem bandeirolas onde se lê: «Apolícia assassina, os juízes são criminosos eas prisões portuguesas campos de extermínio- Aqui não há democracia. Liberdade para osreclusos, os políticos prà prisão!» Quatro anosdepois, as condições de detenção continuama agravar-se. De tal modo que a ideia de am-nistia é de novo apresentada como soluçãoprovisória, até por parte dos que antes a refu-tavam. Animados pela sua natureza hipócrita(e, bem entendido, pelo facto de as prisõesestarem atulhadas) os políticos de serviço ti-veram veleidades de festejar os vinte e cincoanos do regime democrático com uma amnis-tia alargada aos prisioneiros da democracia;só veleidades.

Mas quem são estes reclusos que se amon-toam, sob o sol luminoso do Sul, nestasvetustas cadeias da periferia do império euro-peu? São sobretudo os abandonados damodernização. Uma quinta parte dos detidostem menos de 25 anos e 50% são recidivistas;46% são operários, 10% desempregados. 70a 80% das penas decorrem de situações detoxicodependenência (tráfico de heroína, es-sencialmente). Tal como acontece na maiorparte dos países, os crimes contra pessoas es-tão em diminuição, aumentando os crimes

contra a propriedade. Num relatório de 1998a PJ sublinha aquilo que bem sabemos: «oaumento do consumo de drogas leva ao au-mento dos crimes praticados por necessidadee não previamente organizados». Segundo osnúmeros da própria polícia, a taxa detoxicodependência nas prisões era da ordemde 85% no início de 1998. Em Portugal tam-bém, as prisões integram a economia da droga,ao mesmo tempo que se tornam lugares deextermínio. Uma quarta parte da populaçãocarceral portuguesa é seropositiva, encontran-do-se Portugal em terceira posição, na Europa,no respeitante à percentagem de reclusosseropositivos; a tuberculose e outras doençasinfecto-contagiosas estão em aumento cons-tante. Em tais condições, conforme sublinhamos libertários, «não é exagerado dizer que apena de morte não foi abolida em Portugal».

No país onde a pobreza é colorida, o con-trole policial do espaço e a criminalização damiséria tornaram-se complementos inevitáveisdas reservas de trabalho precário, da sobrevi-vência na economia paralela, da ausência defuturo, da morte lenta da juventude. O Estadopenal é o outro lado da moeda dos pavilhõesda Utopia, do aumento das lojas de luxo e dosmegacentros comerciais. Para a sociedademais pobre do império europeu, é isso queconstitui o bilhete de acesso à modernidade.

Resta-nos esperar que o espírito libertárioque aqui dorme possa sacudir o servilismo in-culcado durante décadas pelo regimeautoritário, reforçado entretanto pela medio-cridade e o envilecimento da democracia emque o dinheiro é rei. Que a revolta possa vol-tar a ligar-se aos episódios entusiásticos deum passado ainda próximo, o das lutas anar-quistas revolucionárias do princípio do séculoe das lutas autónomas que em 1974-75 busca-ram, às apalpadelas, a emancipação social paraalém da queda do fascismo.

Tradução de Júlio Henriques

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Utopia 992

Luciano é um terrorista cultural. Tendonascido na Síria, nos confins do Impé-rio Romano, entre cerca de 125-190

DC, dedicou-se à advocacia e viveu percor-rendo grande parte do mundo conhecido,nomeadamente palmilhou bem toda a parteoriental do mediterrâneo. A sua escrita abran-

ge formas desde o uso da forma dialógica atéchegar ao devaneio puro e duro em obras maisficcionais. Mas todos os seus livros reflectemum espírito crítico e que escarnece das ideiasfeitas. Luciano é um parte-estátuas, um nó-mada do riso e da arte de bem cobrir tudo aridículo.

Um Terrorista Cultural doSéculo II

RAFAEL DIONÍSIO

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Utopia 9 93

De certa maneira, Luciano é marginal aosistema, ao mundo romano e à herança cultu-ral grega, no entanto, vive dele e nele. Umapersonagem lúcida, com os pés bem assentesna terra da sua época. Luciano não nos pro-põe uma ideia, uma orientação a não ser asabedoria, a independência, a verdade, a pala-vra franca, a liberdade. O que como doutrinanão é muito. Mas tem a grande vantagem denão escangalhar uma estátua para em seguidaa substituir por outra estátua. O que ele gostamesmo é dos pedestais vazios. Não veio à ter-ra para salvar ninguém com as suas palavras,nem para reformar a sociedade, mas apenaspara atirar as suas pedradas aos ídolos. Mas écom elegância e bom humor que vaiencharcando de ridículo a charlatanice e a cren-dice. Luciano tem “uma visão extremamentecrítica da sociedade do seu tempo, dominadapelo irracional, que impregnava não só asgrandes massas populares (variadas religiõesde mistério e salvação, crendice nas práticasda magia, etc), mas até ao mundo intelectual,quando este ultrapassava o idealismo estrita-mente filosófico em que deveria confinar-se”(p.13, pref. Ment.).

A sua deliciosa imaginação, aliada a umcinismo digno do mais exímio franco-atirador,aliam-se numa fórmula explosiva contra asmorais, os costumes e os deuses. A sua ironiasubversiva é brilhante: “na verdade, o que euardentemente desejava era permanecer ali eencontrar algumas dessas mulheres peritas emartes mágicas, e presenciar algo incrível,como, por exemplo, uma pessoa a voar ou atransformar-se em pedra” (p.31, Burr.). A ac-tualidade das suas farpas é inegável, com aproliferação actual de seitas maradas, de reli-giões também maradas e de profetas mais oumenos apocalípticos e também necessariamen-te marados. Luciano é um espírito livre,reticente em relação às ideias da sua época,contra a vontade de crer em personagens

míticas ou crenças absurdas. É, para nós, umalição de espírito inquieto e vigilante contra aestupidez do macaco nu, a transbordar de cé-rebro, sempre pronto a enfiar-se nas goelas doobscurantismo e da autoridade. Em relação àautoridade divina, Luciano comenta que écomo “se alguém cuidasse que poderia pro-var a existência de deuses, lá porque vemosos seus altares” (p.117, Herm.). É um comen-tário certeiro porque os deuses, os marcianos(e os extraterrestres em geral), são feitos ànossa medida e não o contrário. São invençõesdo espírito humano e não realidades. Por falarem merda, os cristãos, que já pululavam den-tro dos esgotos, conspirando contra a felicidadee a saúde, são referidos apenas como mais umaseita (mais uns mistico-depressivos, que nãose distinguem das outras seitas) e não apre-sentados como os protagonistas da aventuraheróica e gloriosa em que eles nos fazem crer.

Luciano quando escreve as divertidas me-mórias de um burro inventa uma personagemque, por causa de um feitiço ter corrido mal,fica reduzida à sua condição asinina, sem dei-xar de pensar como um homem e de ter osmesmos apetites carnais (ou seja, com mulhe-res e não com burras). As desventuras do ditoburro acabam com uma amante a queixar-seda sua transformação de novo em humano por-que “eu amava não era a tua pessoa, mas simo burro que tu eras; com esse e não contigo, éque eu dormia (...) trouxesse contigo pelo me-nos aquele singular e enorme símbolo doburro, mas em vez disso apareces-me feitomacaco, tu que eras aquele tão lindo e útilanimal” (p.149, Burr.)

O seu espírito irónico, não se conforman-do com o estabelecido, pode ser ilustrado pelapassagem sobre os costumes funéreos: “tra-zem logo um óbolo e metem--lho na boca parapagar a passagem ao barqueiro. Não se infor-mam primeiro de qual é a moeda usada e quecircula nos infernos” (p.64 Dial.). As perso-

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nagens ilustres também se abatem: “Que é issoò Alexandre! Também tu morreste como nóstodos?” (p. 55, Dial.). A temática da obra, Di-álogo aos Mortos, que trata da passagem nabarca para o outro mundo, foi também usadapor Gil Vicente.

Em Uma História Verídica, obra de ficção,Luciano abre o texto com uma confissão desinceridade e verdade, francamente admirável,criticando aqueles que faziam relatosfantasiosos sobre países distantes, fenómenosestranhos e espíritos, dizendo que se recusa afazer figura de aldrabão e que o que vai narrarem seguida é tudo mentira. Chamou-lhe UmaHistória Verídica e tem a alfinetada semprepronta: “quem lhes serviu de guia e mestreneste tipo de charlatanice foi o Ulisses deHomero.” (p.19 His.Ver.). Nesta verdadeirahistória onírica, podemos ver batalhas cósmi-cas de, entre outros, Cães-Bolotas,Centauros-das-Nuvens e Bailarinos-do- -Es-paço. São acontecimentos verídicos que sedesenrolam com uma imaginação impressio-nante. Diz-se que o primeiro surrealista foiHyeronymus Bosch, no entanto, Luciano emUma História Verídica excede as expectativas.

Luciano mostra-nos que o conhecimento detudo o que é elevado está cheio de preconcei-tos, atenda-se à passagem: “[estamos] aqui atentar convencer esta cabeça dura (e aponta-va para mim) de que existem espíritos efantasmas, e que as almas dos mortos errampelo mundo e aparecem a quem querem!” (p.59, Ment.). Não são estes muitas vezes, e emúltima análise, os argumentos usados numadisputa? Ou até mesmo argumentos mais ex-tremistas como nos lembra o nosso autor:“como o fulano se mostrava fanfarrão eimplicativo, e não queria deixar-se convencernem aceitava às boas que o contradissessem,o valentão do teu mestre, que tinha na mãouma taça (...) prega com ela em cima do ou-tro” (p.35, Herm.). A maneira como se opta

por uma determinada corrente é também des-mascarada “vi a maior parte das pessoas acorrerem para esta, calculei que ela era amelhor” (p.41, Herm.)

Luciano, embora abra fogo sobre todas astendências, poupa naturalmente aquelas cujadoutrina mais se assemelha ao seu espírito (osepicuristas, os cínicos e filósofos radicais comoDiógenes). Luciano é um niilista bem dispos-to, um terrorista cultural pela ironia e peloridículo e não se esquece de dar, regularmen-te, umas palmadas a Sócrates. Tem umavigilância crítica sobre o seu mundo, o que meparece de facto admiráveis para a época.

Nota: Ment, Hist Ver, Burr, Herm, Dial, são asabreviaturas dos livros citados.

Bibliografia:

ABBAGNAMO, História da Filosofia, Tomo I e II,Editorial Presença.ARVON, Henry, O Ateísmo, Publicações Europa-América.EPICURO, Carta sobre a Felicidade; SÉNECA, Davida feliz, trad. e introd. de João Forte, Relógiod’Água, 1994.LUCIANO, A Deusa Síria, trad. e notas de LoboVilela, Inquérito, 1939.LUCIANO, Eu Lúcio, Memórias de um Burro, pref.,trad. e notas de Custódio Magueijo, Inquérito, 1992.LUCIANO, Diálogos dos Mortos, int. versão dogrego e notas de Américo da Costa Ramalho, INIC,1989.LUCIANO, Hermotimo, pref., trad. e notas deCustódio Magueijo, Inquérito, 1985.LUCIANO, O Mentiroso, trad. int. e notas deCustódio Magueijo, Colibri 1995.LUCIANO, Uma História Verídica, pref., trad. enotas de Custódio Magueijo, Inquérito.

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Utopia 9 95

Maria Lacerda de MouraUma anarquista individualista

brasileira

ADELAIDE GONÇALVES1

JORGE SILVA2

“Sou “indesejável”, estou com os individualistas livres, os quesonham mais alto, uma sociedade onde haja pão para todas as

bocas, onde se aproveitem todas as energias humanas, onde se possacantar um hino à alegria de viver na expansão de todas as forçasinteriores, num sentido mais alto – para uma limitação cada vez

mais ampla da sociedade sobre o indivíduo.”Maria Lacerda de Moura

Maria Lacerda de Moura

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Utopia 996

Um dos temas da história do movimentooperário e, particularmente, do anarquismo,que até hoje tem sido pouco pesquisado é o dapresença feminina. Na história do anarquismo,e do socialismo no seu conjunto, a atuação dasmulheres, mesmo não sendo rara, é significa-tivamente menor do que a masculina. Existemrazões de sobra que explicam esse fato. Emprimeiro lugar, na composição do operariadoque viria a gerar esses movimentos, a percen-tagem de mulheres foi, ao longo de muitasdécadas, muito inferior à dos homens. Um fatoainda mais evidente nos círculos daintelectualidade independente que esteve as-sociada ao nascimento das idéias socialistas.Por outro lado, a cultura familiar reacionária,ou revestida de valores conservadores, estavabem presente no mundo operário do séculoXIX e primeira metade do século XX, fazen-do com que as mulheres acabassem, mesmonos movimentos sociais, adotando - ou sendoempurradas em alguns casos - para uma posi-ção subalterna, ligada a velhos preconceitosassociados a idéias como “fragilidade femini-na”, papel “maternal” das mulheres ou da sua“passividade”.

É certo que em muitos casos era tão-só ahistórica divisão de papéis sociais que relega-va as mulheres para uma função doméstica quecontrariava, ou dificultava, a sua militânciasocial. Talvez por isso, entre as mulheres quemais se destacaram no movimento anarquista,exista um número importante de personagensfemininas que optaram por uma vida pessoalindependente, onde o casamento e uma rela-ção familiar mais tradicional, ou até amaternidade, foram recusadas em nome da li-berdade e da autonomia.

Evidente que o papel das companheiras ecúmplices - sentimentais e de idéias - dos anar-quistas, e dos militantes operários em geral,foi de tal forma relevante que constituiu, porsi mesmo, uma destacada presença feminina

no movimento. Ainda que um feminismopseudo-radical, incapaz de situar histórica eculturalmente as relações de gênero, veja nes-sa relação ou em aspectos tradicionais dasrelações dentro das famílias dos militantes ope-rários e anarquistas a prova irrefutável damanutenção de valores machistas e de sujei-ção das mulheres nos movimentosanti-burgueses.

A cultura operária anti-capitalista sempreprocurou valorizar os direitos intrínsecos eespecíficos das mulheres. Era também comum,na imprensa e literatura libertárias, a críticadas instituições familiares, do casamento bur-guês e a defesa do amor livre3 , tematizaçãoque alguns pensadores individualistas chega-ram a dar um relevo especial. Foi o caso deEmile Armand4 e Han Ryner5 . Mulhereslibertárias, como Emma Goldman6 , tambémderam uma particular atenção ao tema.

Mesmo sendo assim, há que se reconhecer,a presença efetiva, marcante e autônoma dasmulheres, no movimento operário e noanarquismo, foi limitada. O que não impediuque em alguns setores operários, particular-mente no têxtil, tecelãs e costureiras tivessemum papel determinante na organização e naslutas sindicais, a partir das quais se destaca-ram importantes militantes libertárias esocialistas que contribuíram para o anarco-sindicalismo e para o sindicalismorevolucionário internacional. É no contexto daépoca e das sociedades onde desenvolveramsua militância que poderemos explicar as di-ferenças de presença, de importância ou dedestaque entre mulheres e homens no movi-mento operário anarquista ou no movimentosocialista em geral. Por essa mesma razão, nãoé de estranhar a ausência de um número maissignificativo de teóricas do anarquismo e dosocialismo, principalmente no século XIX.

Apesar de tudo isso, nomes como MaryWollstonecraft7 , companheira de William

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Utopia 9 97

Godwin8 e precursora do feminismo, FloraTristán9 , Louise Michel10 , Emma Goldman,Voltarine de Cleyre11 , Lucy Parsons12 , Tere-za Mané13 , Federica Monteseny14 , MayPicqueray15 , Giovanna Caleffi16 e LuceFabri17 , deixaram profundas marcas nos mo-vimentos sociais e no pensamento libertáriode seus respectivos países. Em Portugal, al-guns nomes se destacam: Miquelina Sardinha18

, Virgínia Dantas e Luisa Franco Adão. NoBrasil, Edgar Rodrigues, na sua obra Os Com-panheiros, que reúne em cinco volumes umaampla pesquisa biográfica de militantes anar-quistas, lista o nome de 52 mulheres que

tiveram especial relevância no movimento so-cial, no período que vai do final do século XIXà metade do século XX.

Entre estas mulheres, Maria Lacerda deMoura merece um lugar à parte, não só pelasua personalidade combativa, pela sua múlti-pla atividade de escritora e conferencista, comopelo destaque que chegou a ter, não só no Bra-sil, como em outros países da América do Sul,tendo os seus textos divulgados em Portugal,

na França e, principalmente, na Espanha.Nascida em Minas Gerais a 16 de maio de

1887, desde jovem se interessou pelo pensa-mento social e pelas idéias anticlericais.Formou-se na Escola Normal de Barbacena,em 1904, começando logo a lecionar nessamesma escola. Inicia então um trabalho juntoàs mulheres da região, incentivando ummutirão de construção de casas populares paraa população carente da cidade. Participou dafundação da Liga Contra o Analfabetismo.Como educadora, adotou a pedagogia libertáriade Francisco Ferrer Guardia19 . Após se mudarpara São Paulo, começou a dar aulas particu-

lares e a colaborar na imprensa operária e anar-quista brasileira e internacional. No jornal APlebe (SP) escreveu principalmente sobre pe-dagogia e educação. Seus artigos foramtambém publicados por jornais independentese progressistas, como O Combate, de São Pauloe O Ceará (1928), de Fortaleza, de onde seextraiu o texto Feminismo? Caridade?, bemcomo em diferentes jornais operários e anar-quistas de todo o Brasil.

Maria Lacerda de Moura

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Utopia 998

Em fevereiro de 1923, lançou a revista Re-nascença, publicação cultural divulgada nomovimento anarquista e entre setores progres-sistas e livre-pensadores. A importância destamilitante pode ser avaliada, entre outros, pelofato de que, em 1928, jovens estudantes e tra-balhadores paulistas terem invadido o jornalpró-fascista italiano Il Piccolo, como respostaa um artigo que caluniava violentamente a pen-sadora libertária. Na mesma época, Rachel deQueiroz20 polemizou acaloradamente, nas pá-ginas d’ O Ceará, com um jornalista cearenseque atacou Maria Lacerda.

Ativa conferencista, tratava de temas comoeducação, direitos da mulher, amor livre, com-bate ao fascismo e antimilitarismo, tornando-seconhecida não só no Brasil, mas também noUruguai e Argentina, onde esteve convidadapor grupos anarquistas e sindicatos locais.

Entre 1928 e 1937, a ativista libertária vi-veu numa comunidade em Guararema (SP), noperíodo mais intenso da sua atividade intelec-tual, tendo descrito esse período como umaépoca em que esteve “livre de escolas, livre deigrejas, livre de dogmas, livre de academias,livre de muletas, livre de prejuízos governa-mentais, religiosos e sociais”.

Maria Lacerda de Moura pode ser conside-rada uma das pioneiras do feminismo no Brasile uma das poucas ativistas que se envolveudiretamente com o movimento operário e sin-dical. Entre os seus numerosos livrosdestacam-se: Em torno da educação (1918);A mulher moderna e o seu papel na sociedadeatual (1923); Amai e não vos multipliqueis(1932); Han Ryner e o amor plural (1928) eFascismo: filho dileto da Igreja e do Capital(s/d).

O texto de Maria Lacerda de Moura quetranscrevemos de seguida foi publicado no jor-nal independente O Ceará (1928), deFortaleza, a pedido da então jovem escritoraRachel de Queiroz, que se consagraria como

uma das grandes romancistas brasileiras con-temporâneas. Esse texto expressa opensamento de Maria Lacerda de Moura so-bre o feminismo e sua visãoanarco-individualista. Uma filosofia libertáriabastante influenciada por Han Ryner, um pen-sador libertário original que se destacou emFrança como ativista anti-militarista, anti-cle-rical e defensor do amor livre. Outra influêncianotória no texto é a de Emile Armand.

É certo que ele não representa todo o pen-samento da anarquista brasileira. Como todomilitante, com larga atividade literária, passoupor diferentes fases e sua reflexão abordou te-mas tão diversos comoa guerra, omalthusianismo e a pedagogia libertária.

Polêmica na literatura e na militância, Ma-ria Lacerda de Moura passou pela Maçonariae pela Fraternidade Rosa Cruz, com quem rom-peu denunciando-a como agente do nazismo.Atravessou algumas fases de maiorenvolvimento social e outras de isolamento,umas de otimismo e outras de declarado pes-simismo. E, se no fim da vida, permanecia numcerto pessimismo, isso deve-se certamente àsdivergências e rupturas que, no fim da décadade 20, confrontavam anarquistas e comunistasao mesmo tempo em que acontecia a ameaça-dora ascensão do fascismo. No entanto, quandoapós a fundação do Partido Comunista dirigen-tes desse partido, fizeram várias tentativas paraaliciá-la, a pensadora libertária recusou-se aabandonar sua visão de mundo, mantendo atéao fim da vida o seu anarquismo individualis-ta21 .

Maria Lacerda de Moura é praticamentedesconhecida no Brasil, onde um certo femi-nismo parece querer ocultar aquela que seriauma das primeiras e mais importantes ativistasdas causas das mulheres, mas que nunca reco-nheceu no Estado, no Direito e no acessoprofissional burguês a sua causa. Na verdade,isso acontece porque, antes de tudo, via gene-

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Utopia 9 99

rosamente a luta feminista como parte integran-te do combate social compartilhado igualmentepor homens e mulheres engajados na luta pelaeliminação de toda exploração, injustiça epreconceito. Talvez por isso mesmo, ela sejaainda um símbolo incômodo para toda a soci-edade conservadora, até para o atualconservadorismo feminista, mero arrivismosocial de classe média em busca do seu lugarao sol no Estado e no capitalismo, tal comoofoi para as sufragistas da classe média e daselites do seu tempo.A militante anarquistamorreu em 1945, no Rio de Janeiro.

Notas:

1 Historiadora e professora da Universidade Federaldo Ceará.2 Doutor em nada, militante anarquista e

colaborador da imprensa libertária3 Giovanni Rossi (1856-1943), idealizador da

Colônia Cecília fundada em 1891 por anarquistasitalianos no sul do Brasil, chegou a escrever o livroUn Episodio d’amore nella Colonia Cecilia, ondeanalisa a sua experiência pessoal de um amor plurale as dificuldades de superação das relações e moralconvencional numa comunidade libertária.4 Emile Armand (1872-1963).Um dos mais

importantes militantes anarquistas individualistasfranceses. Autor de L’ Iniciation IndividualisteAnarchiste e Anarquismo e Individualismo.5 Han Ryner (1861-1938). Pensador e escritor

anarquista individualista francês nascido na Argélia.Pacifista, anticlerical e defensor do amor livre. Autorde O Pequeno Manual Individualista e de O QuintoEvangelho, exerceu grande influência sobre MariaLacerda Moura, mais visível no seu livro Han Rynere o Amor Plural, de 1933.6 Emma Goldman (1868-1940). Militante e

pensadora anarquista de origem russa, emigrou paraos EUA em 1886. Em 1919 foi expulsa para aRússia, mas logo teve de abandonar o país pordiscordar do que denominava a evolução autoritáriada Revolução Soviética. Viveu em vários países eteve um importante papel no apoio à Revolução

Espanhola de 1936. Viria a falecer no Canadá.7 Mary Wollstonecraft (1759-1797). Ativista

libertária inglesa, companheira de William Godwine autora do livro precursor do feminismo Vindicatinof the Rights of Woman, editado em 1792.8 William Godwin (1756-1835). Considerado um

dos primeiros pensadores anarquistas modernos foio autor do livro Investigação Acerca da JustiçaPolítica, editado em 1873.9 Flora Tristán (1803-1844). Libertária, de pais

peruanos, nascida em Paris. Preocupada com oproblema social, engajou-se nas lutas operárias eescreveu, em 1843, a União Operária, uma dasprimeiras propostas de organização internacionaldos trabalhadores.10 Louise Michel (1833-1905). Professora e

militante anarquista francesa. Participou da Comunade Paris e acompanhou de forma ativa o crescimentodo movimento operário e do anarquismo francês.11 Voltairine de Cleyre (1866-1912). Uma das mais

ativas agitadoras e oradoras anarquistas americanas,colaborou na revista Mother Earth e destacou-sepor tratar dos temas referentes às mulheres e ao amorlivre.12 Lucy Parsons (1853-1942). Militante operária

e anarquista americana. Companheira de AlbertParsons, um dos mártires de Chicago, continuousendo uma ativa militante operária até ao final dasua vida, dando destaque aos temas da mulher e doracismo.13 Teresa Mané (1865-1939). Militante anarquista

e professora, ficou conhecida pelo pseudônimo deSoledad Gustavo, foi companheira de FedericoUrales e mãe de Federica Montseny, queconstituíram uma das famílias mais ativas nomovimento anarquista espanhol.14 Federica Montseny (1905-1994). Uma das mais

conhecidas militantes anarquistas espanholas.Militante da CNT, durante a Revolução de 1936integrou o governo republicano como ministra dasaúde, por decisão majoritária, embora polêmica domovimento anarquista.15 May Picqueray (1898-1983). Anarquista

individualista e ativa pacifista francesa.16 Giovanna Caleffi (1897-1962). Militante

anarquista italiana, companheira de Camilo Berneri,assassinado pelos estalinistas em Barcelona.

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Utopia 9100

Continuou sua militância em Itália até morrer. Suafilha Maria Louise Berneri, foi também militanteanarquista.17 Luce Fabri (1908-). Ativa militante anarquista

uruguaia ainda viva, filha de Luigi Fabri (1877-1935) um dos mais ativos anarquistas italianos desteséculo.18 Miquelina Sardinha (1902-1966). Professora e

militante anarquista portuguesa, companheira deFrancisco Quintal (1898-1987) ativo militanteanarco-sindicalista.19 Francisco Ferrer y Guardia (1859-1909).

Pedagogo e militante anarquista espanhol quedesenvolveu os princípios da Escola Modernabaseada no ensino misto, laico, crítico e científico.O seu método e filosofia de educação espalharam-se por diversos países entre os quais o Brasil. Omovimento operário, principalmente o anarco-sindicalista, criou escolas nos sindicatos baseadasno pensamento de Ferrer. Franscisco Ferrer viria aser fuzilado, em 1909, em razão das suas idéias eda sua militância social.20 Rachel de Queiroz (1910-). Romancista e

cronista brasileira nascida no Ceará. Autora dos

romances: O Quinze; João Miguel; Caminho dasPedras e Memorial de Maria Moura, entre outros.Esteve próxima às posições trotskistas e hoje gostade se definir como “uma anarquista doce”.21 Embora no livro de Míriam Leite, Outra face

do feminismo, se tente provar a aproximação deMaria Lacerda de Moura do Partido Comunista,Otávio Brandão, dirigente comunista da época, eex-anarquista, desmente na sua autobiografia,Combates e Batalhas (São Paulo: Alfa-Omega,1978), que a sua tentativa tenha resultado.

Bibliografia consultada:

- Combates e Batalhas, Otávio Brandão. São Paulo:Editora Alfa-Omega, 1978.- Os Companheiros (vol 1 a 5), Edgar Rodrigues.Florianópolis: Editora Insular, 1997-1998.- Os Libertários, Edgar Rodrigues. Petrópolis:Editora Vozes, 1988.- Outra Face do Feminismo: Maria Lacerda deMoura, Míriam Lifchtitz Moureira Leite. São Paulo:Editora Ática, 1984.- Jornal O Ceará, Fortaleza, 1928.

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Utopia 9 101

A palavra “feminismo”, de significação elástica, deturpada, corrompida, mal interpretada, jánão diz nada das reivindicações feministas. Resvalou para o ridículo, numa concepção vaga,adaptada incondicionalmente a tudo quanto se refere à mulher.Em qualquer gazela, a cada pas-so, vemos a expressão “vitórias do feminismo” – referente, às vezes, a uma simples questão demodas! Ocupar uma posição de destaque em qualquer repartição pública, cortar os cabelos “à lagarçonne”, viajar só, estudar em academias, publicar um livro de versos, ser “diseuse”, divorci-ar-se três ou quatro vezes, pelas colunas do “Para Todos”, atravessar a nado o Canal da Mancha,ser campeã de qualquer esporte. – tudo isso consiste “nas vitórias do feminismo”, vitórias quenada significam perante o problema da emancipação integral da mulher.

FEMINISMO? CARIDADE?

MARIA LACERDA DE MOURA

– é agora que a mulher acorda e sai correndoatrás do voto, coisa que deveria ser reivindi-cado a cem ou duzentos anos atrás... o supõe,ingenuamente, estar cuidando dos interessesfemininos ou dos interesses sociais.

A SOLUÇÃO PARA OS PROBLEMAS HUMA-NOS NÃO É A CARIDADE

E quando chegamos à conclusão de que acaridade humilha, deprecia, desviriliza;desfibra a quem dá e a quem recebe; quandosentimos que a solução para os problemas hu-manos não é a caridade que sufoca todas asfibras interiores de que tira, às faces escanca-radas da miséria, as sobras, o supérfluo; acaridade que estrangula todas as energias la-tentes daquele que estende as mãos parareceber, servilmente, o que sobra das orgias eda exploração dos que vivem à custa do traba-

A VERDADEIRA EMANCIPAÇÃO É POSTA

DE LADO

É uma tática bem manejada. Enquanto asmulheres se contentam com essas “vitórias”, asua emancipação é posta de lado ou nem che-ga a ser descoberta pelos tais reivindicadoresde direitos adquiridos... E essas reivindicaçõesnão se podem limitar a ação caridosa ou a umsimples direito de voto que não vem, de modoalgum, solucionar a questão da felicidade hu-mana e se restringirá a um númerolimitadíssimo de mulheres. Aliás, quando oshomens sérios retiram-se, num ostracismo vo-luntário, dessa política de latrocíniosoficializados, desse bacanal parasitário, dessedespudor em se tratando dos negócios públi-cos; quando se decreta, positivamente afalência, o descrédito do parlamentarismo emtoda uma sociedade em plena decomposição,

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Utopia 9102

lho alheio; quando por si mesma, a moral deque se alimenta a sociedade vigente decreta afalência, essa moral odiosa, de classes de ri-cos piedosos e de pobres a receberem esmolas,de exploradores caridosos e exploradoscalculadamente vigiados pela força armada,mantenedora da passividade exterior e da re-volta latente dos ilótas modernos; essa moralfarisaica que, para os ricos aconselha a cari-dade, a distribuição ostentosa do supérfluoadquirido à custa do suor proletário, e para ospobres recomenda a resignação passiva, o re-ceber humildemente as sobras que espirram,por acaso, das mesas dos ricos e olhar aindaagradecidos, para essas mãos orgulhosas quese divertem nas caridades exibicionistas dossalões elegantes, tirando partido das misériassociais para o seu prazer; quando novas fór-mulas de uma moral mais pura se nosapresentam para outra organização social demais eqüidade, – ainda a mulher estáconvencida de que a sua mais alta missão navida é a caridade e só conhece a questão soci-al através da caridade, mas, dessa caridade dechás, tangos e requebros nos salões...

GASTAM SOMAS FABULOSAS COM A

CONSTRUÇÃO DE IGREJAS E EXPLORAM

TORPEMENTE OS CRIADOS

Essa mesma mulher que reparte altas so-mas para a construção de igrejas ou “creches”religiosas, explora, torpemente, os criados, acozinheira, a lavadeira, a costureirinha con-tratada para trabalhar em sua casa, horas ehoras, sob o olhar impertinente da mundanaociosa, da criatura virtuosíssima que, pelascolunas da imprensa, espalma as mãos dadi-vosas consolando os infelizes, os malinstalados na vida... Dá por um chapéu, poruma pluma, um brinco, um vestido de baile,um leque, uma sombrinha, uma jóia, por qual-

quer fantasia, somas fabulosas, inacreditáveis,entretanto, exerce pressão vergonhosa sobrea sua bordadeira que lhe cobra uma misériapor qualquer trabalho feito com sacrifícioinaudito, em horas triturantes de agonia, ànoite depois de exausta do trabalho diário doatelier – no qual também já lhe tiraram gotasde sangue, na amargura da exploração pelosalário quotidiano.

CHORA ANTE O ECRAN DO CINEMA E

FICA IMPASSÍVEL ANTE AS INJUSTIÇAS

SOCIAIS

Sentimentalismo de epiderme que faz cho-rar ante o écran do cinema e, todavia, soluçaem torno da elegância caridosa, toda a misé-ria ciclópica da luta pela vida e ela não vê,não quer ver o sofrimento milenar da mulherproletária , calculadamente cultivada a suaignorância através do pão duro de cada dia,no trabalho exaustivo da fábrica, das oficinase no lidar doméstico – servindo à ociosidadefarta da alta sociedade ou dos bordéis do ví-cio elegante.A piedade das senhoras caridosasnão vê, não sabe da luta dantesca de uma po-bre moça do povo que resvala na miséria maisnegra se não cai nos braços escancarados daprostituição “necessária” nesta sociedade bes-tial e moraliteísta. A atividade da mulherelegante só sabe votar-se a essa caridadeexibicionista dos salões iluminados, onde os-tenta a sua beleza e sentimentos problemáticosde uma bondade estudada no espelho... Amulher é vaidosa e comodista e os psicólogosfemininos preocupados em agradar, em fazerpsicologia de “boudoir” – não perscrutam, nãoquerem ver a falsidade dos altos sentimentoscaridosos do mundanismo elegante. Preferecontinuar a sofrer as conseqüências do seuservilismo, da sua submissão a desenvolver ocaráter, as faculdades de iniciativa para lutar

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Utopia 9 103

contando com as suas próprias energias. Pro-cura conservar o seu parasitismo dourado,indiferente aos males sociais: é odalisca ecortesã, mas, vai à Igreja, em horas chics, re-zar pelo próximo e, dançando um passomoderno, exerce a caridade. Como é odiosa eperversa essa caridade!

CIVILIZAÇÃO DE PROTETORES E PROTE-GIDOS

E a mulher duplamente escravizada nãocompreendeu que é necessário sim, alevantaro ânimo abatido do que luta, do que pensa su-

cumbir aos embates da injustiça social, dar-lhe meios de subsistência pelo próprio esforçoe fazer dele um indivíduo capaz de ver a castacivilização de fartos e famintos, de ociososparasitas vivendo à custa do sacrifício alheio,civilização de protetores e protegidos, de lo-bos e cordeiros, em que os mais altossentimentos se confundem com as mais tor-pes baixezas, de chibata azorrague, de avariose

e cafetismo, de excesso de ociosidade e ex-cesso de miséria. E tudo, inclusive,principalmente a literatura, essa literatura ne-fasta, de elogios, de louvores incondicionais,literatura odiosa endeusando a fêmea, litera-tura à Júlio Dantas tudo contribui para ocultivo sistemático da pieguice, de chiliquese requebros, do falso sentimento, do sentimen-talismo para o público. E o raciocínio, por siobscurecido através da escravidão femininasecular, da tutela dos dogmas e da moda, dosprejuízos e da rotina, fecha-se sob a chuva degalanteios, de frases feitas. E a mulher esque-ce-se de que tem mais alguma coisa além da

sua carne, do seus contornos perturbadores.Deixa de ser mulher para ser apenas o animaldo homem. A grande miséria, a enorme dordas injustiças sociais vive ao seu lado e amulher desvia o olhar para poder divertir-se,gozar das regalias e do seu comodismo de“bibelot”, de lulu número 1, prisioneira nasgaiolas douradas das avenidas elegantes, sem-pre a mesma escrava, odalisca e cortesã.

Fotografia de Maria Lacerda de Moura

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Utopia 9104

ADORMECIDA DENTRO DOS TRAPOS

A alma feminina jaz adormecida dentro dostrapos, das jóias, do império da moda, – a eter-na sultana desse harém de civilizados queainda compram, vendem, exploram, seduzem,abandonam por imprestável a mesma mulher,cuja posse exclusiva consiste a sua preocupa-ção única. É deprimente a situação da mulhersuperior, neste meio de cafetismo social, emque os homens não sabem olhar uma mulhersenão desrespeitando-a.

E para quê enumerar essas associaçõesatrasadas do feminismo de caridades?

Sem dúvida é doloroso perscrutar as misé-rias dos famintos, da nudez, dos cortiços.

Mas, não se trata de esverrumar a causa dachaga sangrenta da miséria, mesmo do cora-ção da opulência, ao lado da ociosidade quese diverte cinicamente, depois de atirar unsníqueis para os esfaimados, níqueis roubadosao trabalho árduo dos explorados do salário.

DIVERTIMENTOS À CUSTA DA DOR

Há apenas a preocupação de se jogar mi-galha na boca escancarada da fome, talvezpara que nos deixem em paz... E, divertir-se acusta da dor, da amargura, da fome, é insultaro sofrimento.

E a miséria está de tal modo humilhada,deprimida, que nem forças tem para devol-ver, orgulhosamente, os restos que se lheatiram através dos esplendores dos salões ele-gantes, por entre as pontas dos dedosenluvados para que não volte um salpico dascalçadas a enlamear-lhes as mãos dadivosas.Não houvesse ociosos fartos, degeneradospelo tédio e pelos vícios elegantes, não hou-vesse a exploração do homem pelo homem,não houvesse a exploração da mulher pelohomem, e certo não seria “necessária” a pros-tituição, essa perversidade inominável em

nome da virtude.A caridade é “a janela da consciência”,

aberta para a exploração diurna e noturna doproletariado nas oficinas, nas fábricas e docamponês, do colono na agricultura. Para quea elegância brilhe, para que triunfe omundanismo, para que os “cabarets” e os “cas-sinos chics” regorgitem de ociosos – é precisoque o colono, campônio e o operário de am-bos os sexos seja triturado, dobrado, esmagadonas oficinas, na lavoura, nas fábricas, dia apósdia, sem tréguas, sem nenhum direito a nãoser o direito ao trabalho obrigatório.

AS VÁRIAS SUPERSTIÇÕES

É a escravidão moderna do salário – paramatar a fome e cobrir a nudez dos filhos, tam-bém cedo destinados à exploração torpe emiserável do parasitismo social, incansável nasua faina, de acumular bens para gozar à cus-ta do suor exaustivo das máquinas de trabalho,dos animais de tiro, do proletariado mundial.Devemos à superstição governamental, à su-perstição religiosa sectarista, à superstiçãopatriótica, à superstição nacionalista, à supers-tição do progresso material, à ganância de unse ao servilismo da maioria – o predomíniodesta civilização de duas classes sociais: a dosricos e a dos pobres.

A humanidade custará a compreender quea vida social poderia desdobrar-se num ambi-ente de solidariedade, de auxílio mútuo, semamos nem escravos, sem protetores e protegi-dos, sem representações parlamentares emmediocracias diplomadas...

RELIGIÕES –INSTRUMENTOS DE EXPLORAÇÕES

DOS INCAUTOS

Levará ainda tantos séculos a perceber que

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Utopia 9 105

as religiões organizadas, política e economi-camente, não são senão instrumentos deexploração dos ignorantes, dos desfibrados,dos ambiciosos, dos moluscos, dos que care-cem de espinha dorsal... Ninguém cresce nasua individualidade através da consciência ou,talvez, da inconsciência de outrém. Não é de-mais repetir que a atual organização socialbaseia-se na ignorância de uns, no servilismoda maioria, na astúcia de outros, no comodis-mo de muitos, na exploração dos espertos, nafelicidade dos “proxenetas” e “souteneur ”,desse cafetismo, desse regime de concorrên-cia, em que se compra e vende tudo, inclusiveo Amor e a Consciência – as mais altas mani-festações do que é nobre e belo e grande, doque tumultua na vibração interior da nossavida profunda.

REPRESENTAÇÃO PARLAMENTAR: CIRCO

DE CAVALHINHOS

Sentimos que as mentalidades de “elite”ultrapassaram de há muito a moral atual quetenta acorrentar ainda as aspirações humanaslibertárias. Tudo faliu: a igreja, o parlamenta-rismo, a academia, a instituição legal docasamento, o ensino universitário, o patrio-tismo. Pois bem: é agora que a mulher vemreivindicar o direito do voto – quando a re-presentação parlamentar é circo de cavalinhos,o sufrágio universal uma mentira. A mulher,essa energia latente formidável que vem des-pertando para a atividade social, já foienlaçada pelo passado reacionário – para dis-persar todas as suas forças na corrente das“verdades mortas”.

FEMINISMO DE VOTOS E FEMINISMO DE

CARIDADES

É a razão por que não posso aceitar nem o

feminismo de votos e muito menos o feminis-mo de caridades. E enquanto isso – a mulherse esquece de reivindicar o direito de ser donade seu próprio corpo, o direito da posse de simesma. Sou “indesejável”, estou com os in-dividualistas livres, os que sonham mais alto,uma sociedade onde haja pão para todas asbocas, onde se aproveitem todas as energiashumanas, onde se possa cantar um hino à ale-gria de viver na expansão de todas as forçasinteriores, num sentido mais alto – para umalimitação cada vez mais ampla da sociedadesobre o indivíduo. Que representa uma “cre-che”, um hospital ou o direito de voto ante avastidão dos nossos sonhos de redenção hu-mana pela própria humanidade? É subir maisalto o coração e o cérebro, ver horizontes maisdilatados – além do sectarismo religioso ouda superstição social governamental. Isso éfeminismo? Dêem o nome que quiserem, pou-co importa: o que esse feminismo (não meagrada a expressão tão estreita para ideal tãoamplo) reivindica é o “Direito Humano”, oDireito Individual, acima de qualquer outrodireito, além dos direitos limitados ao parla-mentarismo, além dos direitos de classe.

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Utopia 9106

Apocalipse de Carlos— um ensaio sobre o presente —

CARLOS CÉSAR PACHECO

Deus

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Utopia 9 107

1 – VISÃO INAUGURAL

Eu, Carlos, vosso companheiro, estavanuma manifestação, pela causa da liberdadedo Homem.

Caí em êxtase, no dia primeiro de Maio eouvi atrás de mim, uma voz forte, como umatrombeta, que dizia: «Escreve num livro o quevês e envia-o para todas as livrarias».

Voltei-me para ver a voz que me falava e,ao voltar-me, vi oito processadores de cobree, no meio dos oito processadores de cobre,um cubo. Cada face do cubo era semelhante aum monitor com uma coluna. Cada ecrã eracomo uma chama ardente. Os contornos se-melhantes ao bronze precioso, purificadonuma fornalha. A sua voz soava como o ruídodos oceanos. A sua imagem era como o sol

quando brilha com toda a sua força.Quando o vi, estremeci de desalento, mas

o Cubo vibrou e disse-me: «Não temas; Eusou Alfa e Omega; O que Existe. Não existia,mas eis que existo por todos os séculos dosséculos. E tenho as chaves do crédito e da ale-

gria fútil. Escreve, pois, as coisas que viste,as presentes e as que hão-de acontecer depoisdestas. Os oito processadores de cobre têm acapacidade de executar seiscentos e sessentae seis milhões de MIPS por segundo e por issotêm o poder de processar todos os movimen-tos no multibanco, chamadas telefónicas,faxes e correio electrónico da terra. Submete-te, tu e os poucos que te acompanham. A lutaque travais pela emancipação do Homem é emvão».

2 – O TRONO DE DEUS

Depois disto vi um rasgo aberto no hori-zonte e a voz que antes ouvira falar-me comouma trombeta, disse: «Olha para o Cubo emostrar-te-ei o que deve acontecer depois dis-

to». De repente elevei-medentro do Cubo e vi um tronoonde um Cifrão pairava. O Ci-frão que pairava erasemelhante a uma pedra dejaspe e de sardónio e, um arco-íris circundava o trono, comreflexos semelhantes à esme-ralda. Ao redor do trono, haviaoutros cento e oitenta e novetronos sobre os quais estavamsentados cento e oitenta e noveChefes de Estado, de fato e gra-vata com satélites sobre ascabeças. Do trono saíam relâm-pagos, vozes, trovões e, adianteDele brilhavam noventa e setelâmpadas ardentes que são asnoventa e sete grandes

multinacionais.Diante do trono havia ainda como que um

mar de vidro semelhante ao cristal. No meiodo trono e à volta Dele, havia cinco Animais,constelados de olhos por diante e por detrás.O primeiro Animal é semelhante a um econo-

Carlos

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Utopia 9108

mista, o segundo parecia um político. O ter-ceiro é como um militar de carreira; o quartotinha um rosto como de um homem; o quintoera semelhante a um jornalista em pleno voo.Os cinco Animais tinham cada um seis caixascobertas de antenas em toda a volta por fora epor dentro; e não cessam de repetir, dia e noi-te: «Grande, Grande, Grande, o Senhor CifrãoOmnipotente, O que era, O que é, O que há-de vir». E cada vez que os Animais dão glória,honra e se submetem Àquele que paira sobreo trono e que vive eternamente, os cento e oi-tenta e nove Chefes de Estado (ditadores eeleitos) prostram-se diante d’Aquele que pai-ra sobre o trono e adoram Aquele que viveeternamente e lançam os seus satélites diantedo trono, dizendo: «Tu és digno, Cifrão nossoDeus, de receber a glória, a honra e o poder,porque criaste todas as coisas e por Tua von-tade elas existem e foram criadas».

3 – O LIVRO DOS NOVENTA E SETE

SELOS

Vi então na mão direita d’Aquele que pai-rava sobre o trono, um livro enrolado, escritode um lado e do outro, selado com noventa esete selos. E vi um deputado gordo, que bra-dava em alta voz: «Quem é digno de abrir olivro e de quebrar os selos?». Mas ninguémera capaz, nem no Parlamento, nem na Bolsa,nem dentro da Universidade, de abrir o livroe de o ler. E eu alegrava-me muito, por nãohaver ninguém capaz de abrir o livro e de oler. E um dos Chefes de Estado disse-me:«Alegras-te em vão. Eis que vem aí o Papa –a grande Besta – que abençoou Pinochet, traiuos seus condiscípulos na América-Latina afavor das noventa e sete grandesmultinacionais e, por isso abrirá o livro e osnoventa e sete selos». Vi então de pé, entre otrono e os cinco Animais e os Chefes de Esta-do, a Besta. Tinha noventa e sete chifres e

noventa e sete olhos que são as noventa e setegrandes multinacionais, enviadas pela terrainteira. Ela avançou e tomou o livro d’Aqueleque pairava sobre o trono. Quando recebeu olivro, os cinco Animais e os cento e oitenta enove Chefes de Estado prostraram-se dianteda Besta, tendo cada um, um canal de televi-são e várias emissoras radiofónicas, cheias deperfumes para alienar o Homem Livre, trans-formando-o em produtor-consumidor-eleitore cantavam um cântico novo, dizendo: «Tu ésdigno de receber o livro e de lhe quebrar osselos, porque com teus antepassados e corre-ligionários, agindo a uma só voz e um só

corpo, resgataste para o Cifrão, homens detoda a tribo, língua, povo e nação e transfor-maste-os para o nosso Deus, numa multidãode produtores- consumidores-eleitores deter-minados, que reinarão sobre a terra. Ouvitambém a voz de muitos gestores reunidos emvolta do trono, Animais e Chefes de Estado –contavam-se por miríades e miríades e pormilhares de milhares1 – e diziam em voz alta:«A grande Besta, é digna de receber poder,riqueza, sabedoria, força, honra, glória e lou-vor». E ouvi todas as criaturas que estão noscentros comerciais, hipermercados, sentadosa ver televisão, nas discotecas e, o universo

Carlos

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Utopia 9 109

inteiro exclamarem: «Ao que paira sobre o tro-no e à Besta, louvor, honra, glória e poder portodos os séculos e em todos os canais». E oscinco Animais diziam: «Amen». E os Chefesde Estado prostraram-se em adoração.

4 – ROTURA DOS NOVENTA E SETE

SELOS

— OS CINCO CAVALEIROS —

Quando a Besta abriu o primeiro dos no-venta e sete selos, ouvi o primeiro dos cincoAnimais que dizia, com voz de trovão: «Vem».E apareceu à minha vista um cavalo branco.E aquele que o montava tinha uma pasta; efoi-lhe dado um telemóvel e partiu como ven-cedor para novos negócios.

Quando abriu o segundo selo, o segundoAnimal exclamou: «Vem». E saiu outro cava-lo, negro; aquele que o montavatinha a Bolsa na mão; e ouvicomo que uma voz, no meio doscinco Animais que dizia: «Vai eespalha a fome nos terrenos maisférteis da terra».

Quando abriu o terceiro selo,ouvi em uníssono a voz dos pri-meiros três Animais que dizia:«Vem». E apareceu aos meusolhos um cavalo esverdeado;Aquele que o montava chama-va-se F.M.I. e seguia-o umbatalhão de conselheiros e outrode mercenários, alguns de cola-rinho branco. Foi-lhe dado opoder sobre três das quatro par-tes da terra, para exterminarem pela espada,pela fome, pela peste e pelas feras da terra.

Quando abriu o quarto selo, ouvi o quartoAnimal exclamar: «Vem». E apareceu aosmeus olhos um cavalo sem cor e, aquele queo montava era o pequeno e o grande filho-da-

puta: o filho-de-deus; eram aqueles que tinhamvivido pela Palavra do Cifrão e pelo testemu-nho que tinham dado Dela. E gritaram em vozalta: «Até quando, Senhor grande e verdadei-ro, esperarás para fazer justiça e tirar vingançadas nossas inquietações, sobre os pedreiros-livres da terra?». E foi dada a cada um delesuma bacia com água e foi-lhes dito que lavas-sem as mãos e que esperassem um pouco atéque se completasse o número dos seus cole-gas de trabalho e dos seus irmãos que deviamconsumir como eles.

Quando abriu o quinto selo, ouvi o quintoAnimal dizer: «Vem». E apareceu aos meusolhos um cavalo vermelho; e àquele que omontava foi dado poder para fomentar a dis-córdia entre os Homens Livres e fazer comque se aniquilem uns aos outros. E foi-lhe dadoo controle de alguma imprensa radical.

Quando abriu o sexto selo, sobreveio umviolento tremor de terra; o sol tornou-se ne-gro como um saco de crina; o continenteafricano toldou-se em sangue, como que su-gado por um tufão impetuoso2 . A paisagemtransformou-se como uma laranja que se de-sidrata e todos os montes e rios foram

FMI

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Utopia 9110

removidos dos seus lugares3 . Apareceu entãouma redoma de vidro em órbita da terra.

E a Besta abriu o sétimo selo e, continuouabrindo os seguintes; por cada selo que abriaexauria-se uma região da terra e surgia outraredoma de vidro em órbita. À medida que asredomas de vidro surgiam ficavam ligadasentre si. Ao quebrar-se o nonagésimo sextoselo sopraram ventos e revoltaram-se as ma-rés por toda a terra inóspita. Nessa épocabrilhava em órbita da terra a cidade-suspensacom noventa e uma redomas de vidro ligadasentre si por quatro mil cento e oitenta e seiscanais, dentro do Cubo; O seu nome é Gran-de Vaca e é inacessível senão aos Chefes deEstado da terra, aos grandes, aos generais, aosricos, aos poderosos, todos enfim que mere-ciam estar a salvo perto da face d’Aquele quepaira sobre o trono e longe da ira da natureza,porque chegou o grande dia da Sua ira e quempoderá subsistir?

5 – OS ELEITOS

Depois disto, vi quatro senadores, de pé,nos quatro ângulos da terra. Sustinham as no-venta e sete grandes multinacionais da terrapara que nenhuma delas soprasse sobre a ter-ra, nem sobre o mar, nem sobre nenhumaárvore. Depois vi um outro senador subir deOcidente, trazendo o selo do Deus vivo. Gri-tou, com voz forte, aos quatro senadores aquem foi dado o poder de danificarem a terrae o mar: «Não façais mal à terra nem ao mar,nem às árvores até que tenhamos marcado comum chip a fronte dos servos do nosso Deus».

Depois disto, vi uma multidão imensa queninguém queria contar, de todas as nações,tribos, povos e línguas da terra. Estavam depé, diante do trono e diante da Besta, vestidoscom roupas de marca conhecida, com cartãode crédito na mão e, gritavam com voz poten-te, dizendo: «A salvação pertence ao nosso

Deus que paira sobre o trono e à Besta». Etodos os deputados reunidos em volta do tro-no, os Chefes de Estado, os cinco Animaisprostraram-se diante do trono com a face porterra e adoraram o Cifrão e diziam: «Amen,louvor, glória, sabedoria, acção de graças,honra, poder e força ao nosso Deus pelos sé-culos dos séculos. Amen.».

Um dos Chefes de Estado tomou então apalavra e disse-me: «Estes são o que vêem dosgrandes hipermercados. Trazem roupas degrande marca e compraram-nas com cartão decrédito. Estão diante do trono de Deus, ser-vindo-O dia e noite, no Seu templo; e Aquele

que paira sobre o trono, fornecer-lhes-àPROSAC e crédito ilimitado sob a sua tenda;Nunca mais serão molestados pelo sol nempor nenhum vento ardente, porque a Besta queestá no meio do trono será o seu pastor e con-duzi-las-à às fontes da água parada. E o Cifrãoenxugará todas as inquietações dos seus olhos.

6 – O NONAGÉSIMO SÉTIMO SELO

Quando a Besta abriu o nonagésimo séti-mo selo, houve no Cubo um silêncio de cercade meia hora. Apareceram então os quatro

Futebol

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Utopia 9 111

senadores, de pé, nos quatro ângulos da terrae foram-lhes dadas quatro trombetas. Veioentão o outro senador com um cântaro cheiode fogo e lançou-o sobre a terra. Houve inun-dações, vozes, relâmpagos, glaciação e seca.

7 – AS TRÊS PRIMEIRAS TROMBETAS

Os quatro senadores que tinham as quatrotrombetas preparam-se para tocar. E o primeirosenador tocou e rompeu-se então a camada deozono e fogo misturado com sangue foi lan-çado sobre as planícies e cidades da terra eforam consumidos três quartos da terra; fo-ram consumidas três quartos das árvores e todaa erva verde foi consumida.

Tocou o segundo senador e então incendi-aram-se algumas plataformas de extracção depetróleo e rebentaram os bidões radiactivosno mar do norte e, o mar tornou-se sangue.Morreram assim três quartos das criaturas queviviam no mar e três quartos dos navios fo-ram destruídos.

E o terceiro senador tocou e a terra trans-pirou de calor e humidade4 . As colheitasperderam-se e a fome grassou. O dia perdeuum terço da sua claridade e igualmente a noi-te.

E só os eleitos marcados com um chip nafronte e com crédito ilimitado puderam pro-teger-se; e entre esses só os grandes da terrapuderam refugiar-se na cidade-suspensa cujonome é Grande Vaca.

Vi ainda uma galinha arrastando-se no pân-tano radioactivo e que dizia com uma vozdébil: «Malditos os produtores-consumidores-eleitores da terra, por causa do som da últimatrombeta que o quarto senador deve ainda to-car.

8 – A QUARTA TROMBETA

E o quarto senador tocou. O sol e o ar fica-

ram obscurecidos com o som da trombeta.Irromperam pragas de gafanhotos que se es-palharam sobre a terra exausta. A energia foiracionada e o fornecimento de alimentos àscidades começou a falhar; Havia vídeo e arcondicionado nas casas, mas não havia elec-tricidade; Havia sementes, mas a meteorologiaincerta aniquilava as colheitas; Havia o Ci-frão e o crédito ilimitado, mas não o quecomprar com ele; Os mercados enchiam-se deestômagos vazios.

Estalou então a revolta entre os produto-res-consumidores-eleitores instigados pelospoucos pedreiros-livres que restavam.

E os cento e oitenta e nove Chefes de Es-tado que estavam sentados nos seus tronos,diante do Cifrão, prostraram-se e adoraram oCifrão, dizendo: «Graças Te damos, Senhor,Deus todo poderoso que És e que Eras, por-que assumiste o Teu imenso poder e começastea reinar. As nações enfureceram-se; mas che-gou a Tua ira. É tempo de executar ospedreiros-livres, de recompensar os Teus ser-vos, os economistas, os políticos, os militares,

os sem rótulo, os jornalistas e os que respei-tam o Teu nome, pequenos e grandesfilhos-da-puta: os filhos-de-deus; e de exter-minar os que corrompem a terra, os que lutampela liberdade e pela autonomia e sonham comrelações sociais paritárias, fraternas, não

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Utopia 9112

hierarquizadas: os livres pensadores, os pe-dreiros-livres.

Abrira-se então as portas dos quartéis esaiu, em colunas, um exército numeroso for-mado por soldados-biónicos , semelhantes aosescorpiões da terra. Foi-lhes ordenado que nãofizessem mal à erva da terra, mas que feris-sem somente os homens que não tivessem nafronte o chip de Deus. Não lhes foi permitidomatá-los, mas que os atormentassem durantecinco meses. A dor que eles provocam é se-melhante à da picada de um escorpião.Naqueles dias, os Homens Livres procurarãoa morte sem a encontrar.

Ora estes soldados-biónicos, produto daengenharia genética e da ciência dos compu-tadores eram, pelo seu aspecto, semelhantesa cavalos equipados para a guerra; sobre ascabeças deles havia antenas e os seus rostoseram como rostos humanos; tinham cabeloscomo os das mulheres e os seus dentes eramcomo os dos leões. Tinham o tórax como cou-raças de ferro e o ruído das suas asas erasemelhante ao ruído dos automóveis de Fór-mula Um. As suas bocas vomitavam fogo eeram em grande número. Pelo que, já eramvitoriosos ao quinto dia de luta.

Então os produtores-consumidores-eleito-res da terra alegraram-se com sua vinda efelicitaram-se e trocaram presentes entre eles,porque os soldados-biónicos traziam com elesa promessa de tempos melhores ereinstituiriam a pena de morte e promulgaramque ninguém, pequeno ou grande pudessecomprar ou vender nada, se não tivesse nafronte a marca de Deus.

Os poucos sobreviventes, cheios de medo,entregaram-se glorificando o Cifrão.

9 – OS OITO FLAGELOS

Depois disto, vi chegar num vaivém umoutro senador que tinha grande poder e a ter-

ra ficou iluminada com sua glória. Apareceumontado num cavalo branco e chama-se “Fiel”e “Verdadeiro”. Vigia e submete com eficiên-cia. Os seus olhos são uma chama ardente defogo; tem sobre a cabeça vária diademas; esobre ele inscrito está um nome que só eleconhece.

Então no centro da cidade-suspensa quetem o nome de Grande Vaca, no centro doCubo, em órbita da terra, à volta do trono so-bre o qual paira o Cifrão, levantaram-se oscento e oitenta e nove Chefes de Estado, oscinco Animais e a grande Besta e todos osservos com a marca de Deus na fronte, que secontavam por centenas de milhares, entregestores, comissários, altos secretários, em-

presários, deputados e artistas e deram aleluiase rejubilaram de felicidade, pois o Cifrão tri-unfara em absoluto sobre a terra submetida.

Era agora tempo do descanso e da festacom seus filhos e os filhos de seus filhos, eter-namente. Pois a farsa tinha terminado: osenador que eu vira chegar e que tinha grandepoder e que tinha iluminado a terra para quenada aos seus olhos se pudesse esconder5 , erao chefe da super esquadra que policia todosos habitantes da terra.

Os habitantes da terra, que se contavampor milhares de milhões, estavam constante-

Telenovela

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Utopia 9 113

mente mergulhados em publicidade e a verfutebol e telenovelas com um cartão de cré-dito na mão, mesmo os do segmento D,igualmente mergulhados em publicidade e aver futebol e telenovelas na televisão, embo-ra com fome: todos adoradores do grandeCifrão, Deus e Senhor.

Os poetas que havia cantavam as virtudesdo ar condicionado e da submissão ao Cifrão,Deus e Senhor e eram por isso publicitadasna televisão e em todos os canais.

E os habitantes da terra embriagados pelocrédito, a publicidade, o futebol e as teleno-velas iam diminuindo em número, já que osemissários de “Grande Vaca” lhes iam reti-rando os órgãos6 e os iam esterilizando paraque se não reproduzissem, enquanto adorme-cidos viam futebol, telenovelas, publicidadee usavam o cartão de crédito.

E esta latência durou mil anos.

10 – CÂNTICOS DE TRIUNFO

EM ÓRBITA

Depois disto, ouvi como que a voz de umamultidão imensa no Cubo que dizia: «Aleluia,salvação, glória e poder são devidos ao nossoDeus, porque os Seus juízos são verdadeirose justos. Eliminou a seita maligna que cor-

rompia a terra com a ânsia de liberdade e au-tonomia e vingou sobre ela a inquietação dosseus servos». Depois repetiram: «Aleluia. Ofumo da sua exploração sobe pelos séculosdos séculos». Os cento e oitenta e nove anti-gos Chefes de Estado e os cinco Animaisprostraram-se então para adorar Deus que pai-ra sobre o trono e disseram: «Amen. Aleluia.».E do trono, saiu em seguida, uma voz que di-zia: «Louvai o nosso Deus, vós todos que soisSeus servos; vós que O temeis, pequenos egrandes». Ouvi então, como que o ruído deuma multidão imensa, como o ruído dos Oce-anos, como o ribombar de violentos trovõesque diziam: «Aleluia. Porque o Senhor, nossoDeus Omnipotente, tomou posse do Seu rei-no. Alegremo-nos e exultemos, dêmos-lheglória porque a farsa acabou e eis que chega-ram os dias da festa eterna».

Entretanto na terra mil anos passaram e osdescendentes do Homem orientados pelos ci-entistas de Grande Vaca tinham despoluído aterra e, com a ajuda de toda a maquinaria ne-cessária forneciam a cidade-suspensa deórgãos e de todos os géneros necessários àalimentação dos servos de Deus.

Vi com meus olhos os descendentes doHomem: tinham perdido a capacidade de fa-lar e eram comandados por um chip colocadona nuca; as suas faces eram rosadas e tinhamum olhar vazio; traziam no braço um boiãocom uma solução de PROSAC e vitaminas e,era tudo o que precisavam para se alimentar.

O seu número tinha diminuído para cente-nas de milhar: o estritamente necessário.

11 – A CIDADE-SUSPENSA

Vi depois um céu novo e uma terra nova(Is-65-17)7 porque o primeiro céu e a primei-ra terra desapareceram e o mar já não existe.

Vi a cidade-suspensa, Grande Vaca, quedeslizava para uma órbita mais baixa, resplan-

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Utopia 9114

decente no céu limpo com as suas noventa euma redomas de vidro semelhantes ao cristalpuro, ligadas entre si pelos quatro mil cento eoitenta e seis canais de ouro maciço, ilumina-da pela luz da lua e das estrelas distantes. Ouvientão uma voz que vinha do centro do Cubo edizia: «Eis a morada do Cifrão com o homemnovo. Ele habitará com eles; serão o seu povoe o próprio Deus estará com eles. E enxugarátodas as inquietações dos seus olhos; não ha-verá mais morte8 , nem dúvidas, nem dorporque o mundo antigo desapareceu».

Então O que pairava sobre o trono, disse:«Eis que faço de novo, tudo quanto há». De-pois acrescentou: «Escreve: Estas palavras sãocertas e verdadeiras. Elas realizar-se-ao»; Dis-se-me Ele ainda: «Eu sou o Alfa e Omega, oPrincípio e o Fim. Àquele que tiver sede dar-lhe-ei a beber, a fundo perdido, da fonte daágua parada. O produtor-consumidor-eleitorreceberá esta herança. Eu serei o seu Deus e

ele o Meu filho. Mas os vegetarianos, os au-tónomos, os libertários, os impúdicos, ateus etodos os pedreiros-livres terão o seu lugar nolago do fogo e de enxofre ardente».

Disse-me ainda: «Não conserves secretasas palavra proféticas deste livro, porque o tem-po está próximo. Que o pecador continue a

pecar, que o homem impuro continue ainda aser impuro, mas que o produtor continue aproduzir, o consumidor consuma ainda maise, que o eleitor exerça o seu dever. Eis quevenho em breve e trarei comigo o crédito ili-mitado que concederei a cada um segundo asua conta bancária.

Eu sou o Alfa e Omega, o Primeiro e oÚltimo, o Princípio e o Fim. Felizes os quevestem roupa de grandes marcas a as compra-ram a crédito, pois têm um lugar asseguradona cidade-suspensa. Ficarão de fora os cães,os feiticeiros, os impúdicos, os ateus, os ve-getarianos, os libertários, os autónomos, ospedreiros livres e, todo aquele que ama e pra-tica a utopia e a mentira».

Eu declaro a todos os que ouvem as pala-vras proféticas deste livro: «Se alguém lheacrescentar alguma coisa, Deus fará vir sobreele, todos os flagelos descritos neste livro. Equem ousar tirar alguma coisa às palavrasdeste livro profético, Deus, retirar-lhe-à o cré-dito em todos os bancos da terra e perderá oseu lugar na cidade suspensa que está descri-ta neste livro».

Quem dá testemunho destas coisas, afir-ma-o: «Sim, venho em breve».

Amen. Vem, Senhor Cifrão.Que o crédito do Senhor esteja com todos

vós.Segunda/Quinta-Feira

16 e 19 de Novembro de 1998(1900 anos depois....)

1 Todas as criaturas se unem para dar louvores ao Cifrão2 Referência às multinacionais3 Referência à extracção mineira4 Referência ao efeito de estufa5 Referência às câmaras de vigilância6 Referência ao transplante de órgãos7 Matrícula de um automóvel8 Referência ao transplante de órgãos

Carlos

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Utopia 9 115

Livros e Leituras

A MÁQUINA QUE DOMINA O MUNDO

Parece mu ito oportuna a publ ica鈬o, pe laAnt刕ona, deste l i vro de Jerry Mander, publica-do nos Estados Un idos jna d馗ada de setenta,mas que cobra, entre n, agora, plena actua l i-dade. Jerry Mander, um ex-publ icit疵io que, apart i r da sua exper i麩cia de comun ica鈬o nosmass media, se concentra nos efe i tos de propa-ganda conduz idos pe la te lev i s縊 e pe la e l i t et馗nico-industr i a l que a dom ina e de la se servepara a l icer軋r os mecan ismos de dom ina鈬o doC a p i t a l i s m o .

Livro oportuno que ataca, com provas vis-ta, o m i to das 鍍ecnologias neutras aodemonstrar que a te lev i s縊 sobretudo aptapara vender produtos, os produtos de massa dasociedade de consumo. Tentar reformar o me ioin偀il, ele adequado ao seu objectivo, a pro-paganda para as massas, como aponta mu i tobem J伃io Henr iques na sua 哲ota Tradu鈬oPortuguesa ao prop traduz i r a express縊杜 ass mediapela express縊 杜 eios de informa-鈬o de massas

Os argumentos de J.M. n縊 se de ixam resu-mir numa s匤tese f當i l. Os quatro argumentosno seu conjunto est ruturam uma an疝ise cr咜icado t ipo de exper i麩cia humana e de sociedade,autor i t疵ia e aut i sta, criada pe la te lev is縊. ノ opr ime i ro argumento: a med ia t iza鈬o da exper i-麩cia. Ao romper com as condi鋏es natura i s dav ida, ancestra lmente l igadas sobrev iv麩cia daesp馗ie, o ser humano passa a depender de ummundo art i f icia l constru冝o pe los mass med ia,em especia l pe las imagens da te lev i s縊. 泥es l i-gados, como astronautas f lu tuando no espa輟,n縊 podemos agora d is t i nguir o a lto do baixo oua verdade da f ic鈬o. Estas condi鋏es favorecema imp lanta鈬o de rea l i dades arbitr疵ias(p. 61)A pr iva鈬o de contacto com as condi鋏es de vidano planeta e a sua subst i tu i鈬o por rea l i dadesmed ia t i zadas perm i te aqui lo a que J.M. des ig-na por 兎xpropr ia鈬o do conhecimentoe que agora um fen eno imp lantado em larga esca-

la em todas as sociedades desenvolv idas. O co-nhecimento rea l decorrente da exper i麩cia e daaprend izagem sensor ia l fo i subst i tu冝o por umainforma鈬o criada pelos 兎special istasque atra-v駸 dos media impm a sua autor idadeind iscut咩el: 徹s cient istas, per i tos de tecnologia,ps icogos, industr i a i s, economistas e os med iaque in terpretam e d ivu lgam as respect ivas des-cobertas e op in is tornaram-se na nossa fonte.Actua lmente s縊 e les que nos d izem o que anatureza, o que somos, como nos re lacionamoscom o cosmos, de que necess i tamos para sobre-viver e sermos fe l i zes, e qua is as formasadequadas para organ izarmos a nossa ex i st麩-cia ( A nossa exper i麩cia n縊 tem va lor antesde conf i rmada pe la ci麩cia. (o le i t e materno saud疱el!)(p. 85). A realidade torna-se portan-to arbitr疵ia e J.M. chama mui to oportunamentecola鈬o George Orwe l l e Aldous Hux ley, auto-res de 1984 e Admir疱el Mundo Novo. Aarbitrar i edade do conhecimento ( i n forma鈬omed ia t i zada) conduz ao controlo do Grande I r-m縊, que nos d irn縊 apenas aqui lo que bome o que mau, mas tamb駑 o que foi o passado,o que o presente e o que nos reserva o futuro.A imp lanta鈬o de uma rea l i dade arbitr疵ia, como recurso 灣 teconologias electricas hoje bas-tante ev idente nas grandes empresast ransnaciona i s que governam o mundo, que nosgovernam e mo ldam a nossa ex is t麩cia e formama mund iv id麩cia das massas. Esta poss ibi l i da-de de imp uma rea l i dade arbitr疵ia, dedominar o passado, o presente e o futuro a es-s麩cia do Tota l i tar i smo. As tecnologiasut i l i zadas para produzi r esse efe i to s縊 tudomenos inocentes.

Segundo argumento: a colon iza鈬o da expe-ri麩cia. Com este argumento J.M. pretendedemonstrar como a te levi s縊 est viscera lmentel igada ao aparecimento da 都ociedade de consu-moe sua necessidade de transformar tudo emmercador ia, a come軋r pe lo prrio ser huma-no. A te levis縊 serve essencialmente a estrat馮iade formatar o ind iv冝uo para o tornar a lvo dapublicidade necess疵ia ao s i s tema econ ico.

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Utopia 9116

Na te lev i s縊 nem tudo publ icidade, no sent idoest r i to de an佖cio de um produto comercial, masa te levis縊, no seu conjunto, e sa lvo muito rarasexcep鋏es, o me io por excel麩cia de cria鈬o ed i fus縊 de um est i l o de v ida compu ls ivamenteconduz ido pe la publ icidade: o das necess idadesart i f icia is. A te levi s縊 o me io publ icit疵io porexcel麩cia. Ora, a publicidade suportada pe lopequeno n伹 ero de empresas que contro lam os i s tema econ ico nos Estados Un idos e nomundo in te i ro. 鄭s em isss de te lev i s縊, ta lcomo outras tecnologias mono l咜icas, da m痃ui-na de debulhar mi lho com capacidade para o i tof i l as de cult ivo 灣 mul t i naciona i s da agricultu-ra, passando pe los navios-tanques com ma is de75 000 toneladas, centra is nucleares, redesinform疸icas, ed if兤ios de escri tios de cem an-dares, comun ica鋏es por sat駘ite, engenhar iagen騁ica, oleodutos i n ternaciona i s e av is su-persicos, est縊 apenas dispos i鈬o de for軋sempresar ia is gigantescas(p. 190). A te levi s縊o meio por excel麩cia encontrado por estes in-teresses para constru i r a sua dom ina鈬o, o queconf i rmado pe los efe i tos que a te lev i s縊 pro-voca nos indiv冝uos. ノ o terceiro argumento: atelevis縊 e os seus efeitos nos indiv冝uos. 徹 maispoderoso ins t rumento de man ipu la鈬o menta lda histia(p. 328), a te lev i s縊 desenvo lve asreac鋏es neurof i s i o licas adequadas l imi ta-鈬o da consci麩cia, da capacidade cr咜ica e decomprova鈬o da verdade. J.M. percorre, em d i-versos cap咜ulos, os poss咩eis efe i tos que aobserva鈬o da imagem te lev i s iva pode provocarnos ind iv冝uos. Entre os que podem cons iderar-se comprovados conta-se o efe i to hipnico e aconfus縊 menta l que se pode detectar - sobretu-do nas crian軋s e ado lescentes - quanto dist i n鈬o entre rea l i dade e imagem te lev i s iva.鄭 problem疸ica do rea l ou n縊 rea l const i tu iuma nov idade, e la prria abstracta e impossvel de compreender. A evolu鈬o natura l leva-nosa ver todas as coisas como rea i s, po i s sempreass im se man i festaram. Tomar por fa l so e n縊rea l aqui lo que vemos na te lev i s縊 ex ige umaaprend izagem. Vai contra a natureza humana.E ens inar isso a uma crian軋? Quando esta as-siste a um programa te lev i s ivo n縊 possu iqua lquer capacidade inata que lhe perm i ta d i s-tinguir o rea l da f ic鈬o(p. 313). A perda dedom匤io dos processos menta i s, o car當ter un i-latera l e autor i t疵io da informa鈬o te lev is iva(confund ida com a rea l i dade) t ransformam-no

num inst rumento idea l de man ipula鈬o. ノ oquarto argumento: as l im i ta鋏es inerentes te-lev i s縊. 鄭 teconologia te lev i s iva predeterm inaos limites do seu conte棈o(p. 325). Nem toda amensagem apta a passar na te lev i s縊. Pe lassuas prrias caracter﨎t icas tecnolicas, a te-lev is縊 um inst rumento de manipu la鈬o e,neste sent ido, n縊 reform疱el. Em pr ime i rolugar, as imagens te lev is ivas de l im i tam e e l im i-nam mesmo a percep鈬o sensor ia l. Quem vuma imagem na te levis縊 n縊 vtudo o que po-deria ver se est ivesse no local onde foi colhida aimagem. Al駑 disso, a imagem corta o especta-dor do som rea l, das cores, da temperatura, docheiro e de qua lquer sensa鈬o t當t i l. A te levi-s縊 provoca portanto desconex縊 sensor ia l e asepara鈬o do tempo e do espa輟. O tempo acele-rado da te levis縊 n縊 o tempo da natureza, otempo rea l, 兎sprem ido no processamento dasimagens. As imagens f lutuam no tempo e noespa輟, s縊 inculcadas na mente do espectador,mas n縊 podem nunca ser objecto de comprova-鈬o. 哲estas circunst穗cias torna-se poss咩elque as not兤ias ex i s tam un icamente nos med ia,n縊 ocorrendo nunca no mundo rea l. Aqui te-mos po i s, entre n, a s i tua鈬o retratada porOrwel l em Mi l Novecentos e O i tenta e Quatro(p. 365). No cap咜ulo XVI JM anal isa as l im ita-鋏es t厓icas do me io te lev is ivo ( i nd ica 33, porexemplo: a guerra melhor em te levis縊 do quea paz ; os produtos passam me lhor do que aside ias (que n縊 podem ser an imadas) ; as f igu-ras car i sm疸icas passam me lhor do que osgrupos ou personal i dades n縊 autor i t疵ias, etc).A televis縊 n縊 pode portanto ter um uso a lter-nat ivo, ser usada para bons f i ns, quem ut i l i za ome io submete-se sua ideo logia in tr匤seca (ta lconclus縊 levou JM, como nos conta no f i na l docap. XVI, a recusar apresentar e d iscut i r o seul i vro na te lev i s縊 amer icana). Caracter﨎ticasque transformam a te lev is縊 na m痃uina dedomina鈬o por excel麩cia: a que leva domina-鈬o pe lo i nconsciente.

Uma s匤tese not疱el das concluss do l i vroencontra-se no pf當io do autor: 鄭 televi s縊consi s te mai s num inst rumento de lavagem aoc駻ebro indutor de estados le t疵gicos e/ou hip-nicos, do que num ve兤ulo capaz de est imu larprocessos de aprend izagem conscientes. ( Al-tera a percep鈬o humana do mundo. (Acreditamos que a TV nos oferece um maior co-nhecimento, quando, na rea l idade, esse

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Utopia 9 117

conhecimento cada vez ma i s reduz ido. (Contr ibui para a supress縊 do conhecimentopessoa l, subst i tu indo-o por um conjunto de in-forma鋏es man ipu ladas por uma el i t etecnolica, cient凬ica e indust r ia l

S縊 sempre oportunas as notas exp l icat ivasde J伃io Henr iques.

JERRY MANDER, Quatro Argumentos para Acabar coma Televisão, Antígona, Lisboa 1999, 456 pp.

Jos Pau l o Vaz

GEOPOLÍTICA DO CAOS

Nunca os senhores da Terra foram t縊 pou-cos e t縊 poderosos. Esta frase do autor diz quasetudo sobre a 敵eopol咜ica do Caos Hoje jn縊s縊 os Estados que partem conquista do espa-輟 mas antes empresas, grupos indust r i a i s ef i nanceiros que pretendem dom inar o mundo,fazendo todos os d ias as suas i n terven鋏es nosent ido de acumularem um espio cada vezma ior. Por i sso, ass i s t imos sem d nem p iedade destru i鈬o dos me ios ambientes natura is empro l da acumula鈬o mass iva de ma i s capi ta l soba 馮ide da l i vre circula鈬o e em s imu l t穗eo dain tegra鈬o f inanceira e monet疵ia quer Europe iaquer mundia l.

Em busca da sobrev iv麩cia ass is t imos cadavez mai s concentra鈬o da popula鈬o em tornodas cidades, cujo crescimento desmed ido estcada vez mais fora do controle humano. Tanto aNorte como no Su l, as 殿glomera鋏estentaculares a l teram os equi l兊r i-os ecolicos, socia i s e econ icos,drenam o essencia l das r iquezas,acumulam, entre uma minor ia depr iv i legiados e a massa dos excludos, tenss que n縊 t麥 s idoresolv idas, pacif icamente, por umpoder que, na maior ia das vezes pouco democr疸ico.Eis nesta fra-se o dramat i smo da evolu鈬ofutura. Equi l兊r ios que ao seremdestru冝os pm em causa a sobre-viv麩cia da maioria em prol do gozoe sat i s fa鈬o de uma m inoor ia. Asper if er i as tendem de facto a sercada vez mai s os tent當ulos de umpo lvo cuja cabe軋 se sente i nchadape la m is駻ia circundante, pe la v idavegetat iva que nos tent當ulos ocor-re e os qua is, porque n縊 se entrecruzam,crescem, crescem, sem que uns d麁m conta docrescimentos dos outros e da sua contr ibui鈬o

para o centro. A fa l ta de qual idade de v ida nasenormes e crescentes per i f er i as parece ser des-conhecida pe los prrios que a vivem, ou pe lomenos, querem levlos a pensar que o facto deres id irem perto das grandes cidades um bene-f兤io spor s i suf iciente para cons iderarem terma i s qua l idade que nos seus lugares de or igem.E toda esta gente faz de facto todos os d ias osseus t ra jectos incessantes, qual form igas nocarre i ro, talvez pensando se ser sempre ass im.Poder ser ass im e a inda p ior, enquanto n縊exist ir uma consci麩cia colectiva de que se ins-trumento numa sociedade man ipuladora quen縊 cons idera n ingu駑 como pessoa, mas ape-nas como consum idores, e de prefer麩ciahomeneos. Segundo o autor, a classe po l咜icaest cada vez ma i s desacred i tada, emdesfasagem re la t ivamente opin i縊 p炻l ica, ospart idos dom inantes de i xaram de insp i rar con-fian軋 e perdem e le i tores. Pudera! Com tantament i ra apregoada d iar iamente! N縊 querem

crer que n縊 se sersempre es-t侊ido para votar ne les e queoutras a lternat ivas ex i s tem!!.

ノ verdade que os part idos eos po l咜icos s縊 amplamente con-siderados como os respons疱eispela crise global de uma socieda-de que n縊 oferece seguran軋,nem so l i dar iedade, e na qual semu l t ip l icam as f rust ra鋏es detoda a esp馗ie. Tamb駑 o comoaf i rma o autor, que os cidad縊sparecem cansados da m gest縊;da corrup鈬o; das d is fun鋏es dosservi輟s p炻l icos; do pagamentode impostos que, para e les, n縊trazem benef兤ios na v ida quot i-diana ; da aus麩cia de reformas ;do excesso de burocracia e da fal-

ta de so l icitude por parte do Estado.A maior ia das pessoas permanece de facto e

a inda i l e trada por n縊 perceber que a economia

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Utopia 9118

OS CRIMES E OS VÍCIOS DO ESTADO

Com excelentes t radu鋏es de Miguel SerrasPere i ra, a Fenda ed i tou recentemente do i s l ivrosde Lysander Spooner: Insultos a Chefes de Esta-do; Os V兤ios n縊 s縊 Crime.

Escritos na d馗ada de 70 do s馗ulo XIX, am-bos os l i vros foram estruturados no sent ido deuma cr咜ica rad ical do Estado, nomeadamenteem re la鈬o aos seus efe i tos perversos sobre al iberdade e a soberan ia i na l i en疱el dos i nd ivduos. De facto, contrar iamente 灣 tesesdesenvo lv idas por Hobbes no seu l i vro Levia t,para Lysander Spooner n縊 o homem que lobo do homem, mas o Estado, person i f icadope las inst i tu ics mi l i tar e po l icia l, pe la Cons-t i tu i鈬o, pe los burocratas que governam,dominam e opr imem o cidad縊 comum.

No contexto da emerg麩cia do anarquismonos EUA, a part i r de meados do s馗ulo XIX,se olharmos, com aten鈬o para a vida e a obrade Lysander Spooner, depressa nos apercebe-mos qu縊 grande fo i a sua lu ta contra aescravatura, a guerra, a re l igi縊, a m is駻ia eas in just i軋s que pro l i feravam nesse pa﨎.Companheiro 匤t imo das ide ias e das pr疸i-cas dos anarquistas Jos iah Warren eBenjam in Tucker, fo i um lutador i ncans疱elde um anarquismo de car iz i nd iv idua l is ta.Esse sentido da vida e da obra do autor, pa-

de mercado tem por regra o sa lve-se quem pu-der, tem por pr inc厓io o ego﨎mo, oind iv idua l ismo e n縊 o colect ivo, a in tera juda esol i dar iedade. Daas consequ麩cias, vis咩eis portodo o lado, das po l咜icas encetadas no 穃 bitodo l ibera l ismo puro quer em termos de custossocia i s, quer em termos ecolicos e, por f im,ps icolicos como sejam: aumento acelerado dodesemprego sem que ex i s tam hoje verdadei rasent idades que prote jam os t rabalhadores no ac-tivo e os desped idos dado o enf raquecido pape ldos s i nd icatos,os problemas de de l iqu麩cia, con-sumo de alcool ou droga (como forma de aliena鈬ode um quot id iano que n縊 oferece qua isquerperspect ivas de me lhoras futuras), o sofr imentoque leva ao ressent imento e ao racismo, enf im,todo o t ipo de consequ麩cias que se repercutemnorma lmente sobre quem por vezes mu i to pou-co possu i em termos de economia de mercado,

mas que em termos socia i s dever ia ser ex igidoum tratamento humano que cada vez ma i s va ir a r e a n d o.

Pelos momentos de reflex縊 que, sobre a evo-lu鈬o das sociedades actua i s, este l ivro suscitavale a pena ser l ido. Embora nele sejam aborda-das mat駻ias que, quot id ianamente, s縊veiculadas pe los pr incipa is med ia const i tu i, noentanto, uma boa s is temat iza鈬o sobre o que dema i s importante tem s ido destru冝o, sobretudo,ao n咩el da d imens縊 humana nas 伃t imas dcadas ataos d ias de hoje.

IGNACIO RAMONET, Geopolítica do caosTradução de Guilherme João de Freitas Teixeira

Editora Vozes, Petropolis, 1998

Guad a lupe Subt i l

tente nos art igos e l ivros que escreveu, mas tam-b駑 nas at i tudes e in iciat ivas que tomou. Nestedom匤io, subl inhe-se as prof i sssmul t i f acetadas de professor, advogado e conta-bil ista, e, por outro lado, o pione ir ismo na cria鈬ode uma companhia de corre io posta l e aest rutura鈬o de uma economia cooperat iva con-tra o monopio esta ta l e as incid麩ciaslucrat iv i s tas das empresas pr ivadas.

Regressando, agora, subst穗cia ana l咜icados l i vros recentemente publ icados pe la Fenda,Lysander Spooner ao escrever I nsu l tos a Chefesde Estado, f lo com uma consci麩cia e arad ical idade de um homem que acred i ta sobre-

manei ra nas v i r tudesnatura i s e espont縅eas doser humano, enquantoent idade soberana e l ivre,que sabe melhor de n in-gu駑 part i lhar e decid i rsobre tudo o que respe i tasua v ida quot id iana e vida em geral na socieda-de. Neste amplo sent ido,qualquer activ idade eco-n ica, qualquerConst i tu i鈬o, qualquerEstado, qualquer impos i-鈬o f i scal, qualquerinst i tu i鈬o po l咜ica, mi l i-

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Utopia 9 119

tar, jur冝ica, ou pol icial, que n縊 esteja ident i f i-cado com os des刕nios espont穗eos e natura i sdos indiv冝uos, torna-se a express縊 de uma re-al idade sustentada pe la opress縊 e exp lora鈬odo homem pe lo homem.

Por i sso, quando querem imp mecanica-mente a qualquer ser humano, que nasce e passaa integrar uma dada sociedade, uma Const i tu i-鈬o, uma le i, impostos, tr ibunai s e guerras, n縊obstante esse ser humano n縊 ter contr ibu冝opara a cria鈬o dessas perverss da evolu鈬o doEstado e da sociedade, estse a muti lar e a des-truir o sent ido da sua vida, da sua autenticidade,da sua l iberdade e da sua autonom ia. No fundo,o Estado ou o governo impm de uma formad i tator ia l e d i scricion疵ia um contrato socia l atodos i nd iv冝uos, independentemente de es-tarem ou n縊 de acordo com as sua premissasb疽ica s.

Na op in i縊 do autor, entre outras coisas,徹 escrut匤io secreto produz um governo se-creto ; um governo secreto uma associa鈬osecreta de ladrs e de assassinos. Seria prefe-r咩el um despot i smo declarado. O d駸potaapresenta-se, sele, diante de todos e procla-ma: ォO estado sou eu. A minha vontade a lei,Sou eu o vosso senhor. Assumo a responsabil i-dade dos meus actos. A 佖ica arbitragem queque reconhe輟 o da espada. Se algu駑 con-testa o meu direito, que puxe da espadaサ(p疊s.67-68). Numa pr ime i ra le i tura poder-se-iapensar que as cr咜icas de Lysander Spoonerse d i r igem essencia lmente ao Estado, 灣 ins-t i tu i鋏es e prof i sss que o person i f icam.Nada ma i s errado. Ele consegue perceber, comuma persp ic當ia s ingular, as cumpl icidades ein terdepend麩cias que ex i st i am e ex i s tem en-tre a economia, a po l咜ica, o Estado e ocapita l i smo. Todos estes fen enos preenchemos requis i tos da estabi l i dade normat iva de ums i s tema despico que subjuga a l iberdade e asoberania dos indiv冝uos e dos povos. Nesse sen-t ido, 徹s Rothchild, e essa categoria deprestam is tas de quem e les s縊 agentes e repre-sentantes pessoas que nunca pensaram ememprestar um xe l im ao v iz inho do lado an ima-do dos propitos da honest idade ma i si ndust r iosa sem ex igirem as garant ias ma i s se-guras e as taxas de juro ma is e levadas -, est縊dispostos, a qualquer instante, a emprestar quan-tidades desmed idas de d inheiro a esses ladrs eassass i nos que se in t i tu lam governos, d inheiro

que serv irpara fuz i l ar aqueles que n縊 acei ta-rem com suf iciente seren idade cont inuar a serroubados e dom inados (p疊. 100).

No outro l i vro que jrefer imos Os V兤iosn縊 s縊 Crime -, Lysander Spooner orienta a suacr咜ica aos fundamentos hipri tas e perversosda moral, da lei, dos tr ibunais e do governo, queprocuram arbitrar iamente im i scuir-se e sancio-nar deciss natura i s e espont穗eos quepertencem exclus ivamente ao dom匤io da von-tade soberana dos i nd iv冝uos. Nenhum poderd iv ino, nenhum Estado, nenhum governo ouConst i tu i鈬o pode substuir-se vontade e l iber-dade de qualquer ind iv冝uo Se este reso lvesu icidar-se, embriagar-se, drogar-se, prost i tu i r-se, f lagelar-se, empobrecer, margina l i zar-se,

etc tudo isso a expres-s縊 lica do seu sent idode vida e de l iberdade, ques ele d iz respe i to. Poressa raz縊, os v兤ios que asociedade capi ta l i s ta e oEstado pretendemcrimina l i zar e mora l i zarcomo a lgo de desv iante ede negat ivo n縊 t麥 ne-nhum fundamento.

Contrar iamente aosm伃tip los fen enos de-nominados de crime, queaparecem como t ipos dedesv io que cerceia a v idae a l iberdade dos i nd ivduos, os v兤ios s縊 de

natureza d i f erente: 徹 que visado pe la pun i-鈬o dos crimes garant i r, para cada um comopara todos e da mesma maneira, a l iberdade maiscompleta que o ind iv冝uo possa esperar seminfr ingir os d ire i tos equivalentes dos outros deprocurar a sua prria fe l icidade, seguindo osconselhos do seu prrio ju坥o e usando dos seusprrios bens. Por outro lado, o que visado pelapuni鈬o dos v兤ios privar cada homem do seud i re i to e da sua l iberdade natura i s de buscar asua prria fe l icidade, aconselhado pelo seu prprio ju坥o e usando dos seus prrios bens (p疊.25).

Mais uma vez, para perceber a causa pro-funda dos aspectos negativos que os v兤iospossam eventua lmente person i f icar, torna-seimper ioso abordar a sociedade que em 伃t imainst穗cia os fomenta. Na verdade, para Lysander

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Utopia 9120

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e dê você mesmoum coice

Publicação editada porRede de Editores e Livreiros Di Viñus

Contacto:J. Tavares, Apartado 214771134 Lisboa codex,

Portugal

Spooner, se ex i s te pervers idade nos v兤ios, e lest麥 a sua expl ica鈬o plaus咩el, em pr ime iro lu-gar, na sociedade que transforma os homens emescravos assa lar iados e a l ienados: 鉄e esses tra-balhadores de Inglaterra, hoje b鹵ados e viciosos,t ivessem t ido as mesmas oportun idades e conhe-cido o mesmo quadro de ex is t麩cia que t麥 as

classes ma is abastadas ; se t ivessem s ido criadosem lares confort疱eis, fe l izes e v i rtuosos, e n縊em lugares sdidos, miser疱eis e viciosos; se t i-vessem t ido as ocas is de adquir i rconhecimentos e bens, e de se tornarem inte l igen-tes, prperos, fe l izes, independentes, respei tados,garant i ndo-se todas as sat i s fa鋏es inte lectua i s,socia i s e dom駸ticas 灣 quais uma act iv idadehonesta e justamente ret r ibu冝a lhes perm i t i r i ao acesso -, se tivessem tido tudo isso, em vez deterem nascido num duro mundo de labor semretr ibui鈬o, e que os marcou com certeza de te-rem de se matar for軋 de trabalho, estar iamhoje t縊 l ivres dos seus v兤ios e fraquezas comoaqueles que se er igem em seus acusadores (p疊.59).

LYSANDER SPOONER, Insultos a Chefes de Estado,Lisboa, Fenda, 1999; Lysander Spooner, Os vícios

não são Crime, Lisboa, Fenda, 1999.

J. M. Carva lho Fe r re i r a

Universo Ácrata, Edgar RodriguesEditora Insular

«Este livro, salvo as naturais limitações destaproposta, é uma síntese da história domovimento libertário universal. Porém, nãoé como aqueles tradicionalmente produzidose financiados nas academias. Universo Ácrata“aponta no rumo da socialização doconhecimento histórico, opondo-se à visão in-strumental da pesquisa acadêmica feita paraperpetuar hierarquias elitístas, a manipulaçãoideológica e a sustentação das mentirasconvencionais”»

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Utopia 9 121

Publicações Recebidas

al margenPortavoz del Ateneo Libertario, Ano VIII, nº29, Primavera 1999Do Sumário:Cómo nos Diezman!; Arte; Gal-gos, Podengos o… C*T; Apólogos amorales(X): Beckettiana; De: “Etcétera”; Estultitiaquousque tandem – Entierro; La universidady el saber; La función lógica de la vida;Tempus Fugit: Carpe Diem; La historia deMaría; La defecación es la solución; Poesía;A todas las personas u organizaciones liber-tarias del planeta tierra; Ser o no ser…; Acer-ca del potencial carácter subversivo de loirracional; Poesía; No al día de…; Eldiccionario del diablo; El Eco del Rebelde.Contacto: al margen, C/ Palma, 3 – 46003Valencia, España.

ArchipiélagoCuadernos de Crítica de la Cultura, nº 34/35, 1998Do Sumário: El moredeador; Altares detecnología punta; La espacialidad del Ojomiope (del Poder); El espacio/tiempo social:fragmentos de ontologia política; Lareivindicación de la casa; De espaciosmentales, imágenes y razones; La pinturaCh’an mirando un campo que se dilata;Desierto, catastro y espacio técnico; Luga-res sagrados: el espacio sonoro de la India;Fragmentos para una reconstrucción del tex-to literario como espacio formal del secreto;Algumas notas sobre cuestión de las perife-rias; Tiempo y sitio como materiales delproyecto en Schinkel y Aalto; Territorio versusplanificación: metáforas del desarrollo; FueAuschwitz una ciudad?; La casa anarquista;Fuera de lugar?; El autorretrato de Lequeu.Contacto: Editorial Archipiélago, Apartado deCorreos nº 174, 08860 Castelldefels (Bar-celona), España.

BicelBoletin Interno del Centro de EstudiosLibertarios Anselmo Lorenzo, nº 8, Março1999Do Sumário: Editorial; DonacionesCulturales; La selecta biblioteca anarquis-ta de Fernando Serrano y Pilar; Lavideoteca de Miguel Bilbatúa; Durruti en larevolución española; Anarquismo básico:

hacia la anarquia;Dos nuevos testimonios;Guerre d’Espagne; Comunicación, poder ycultura; Helios Gómez y Margaret Michaelis– dos anarquistas recuperados del olvido;La pasión estética y vital de Alfred Levitt;Julián Pacheco, el arte provo; Investiga, queestimula; Los tiempos de libertad; Garrotevil para dos inocentes: el caso Delgado-Granado; La guerra civil en Extremadura; Loque la historia oficial ha calado; Actualizacióndel catálogo de Abril de 1998.Contacto: Fundación de Estudios LibertariosAnselmo Lorenzo, Passeo Alberto Palaciosnº 2, 28021 Madrid – España.

BicicletaEspaço Velocipédico-Kultural, nº 2, Outubrode 1998Do Sumário: Pedalando; V Encontro Inter-nacional de Editores Independentes; Reci-tando o processo; “Objectos perdidos namemória de um guerreiro (forçado)”; Dellenguaje visual al libro-objecto.Contacto: Centro de Cultura e Pesquisa deArte, Apartado 65, 2751 Cascais Codex.

BoletínFundació d’Estudis Libertaris I Anarco-Sindicalistes, nº 4, Primavera 1999Do Sumário: Salvador Puig Antich I el Mil;Actividades de la FELLA; El “Assalto Cientí-fico” de la Biotecnologia; Una Mirada a laBarcelona de la República; Armand Guerra,cineasta anarquista. Sobre la recupéraciónde su película “Carne de Fieras; MujerSaharaui; La semana tragica. Contacto: Boletín , C/ Joaquim Costa, 34,08001 Barcelona – España.

CIRACentre International de Recherches surl’Anarchisme, nº 55, Março 199Do sumário: Rapport d’activités et comptes;Hommage à pier Carlo Masini; Colloques àvenir; Des têtes d’anarchistes mises à prix,Nouvelles de l’édition; Revues indexées;Liste 55: nouveaux ouvrages.Contacto: CIRA, Avenue de Beaumont, 24, CH-1012 Lausanne, Suisse.

Coice de MulaPublicação da Rede de Editores e Livrei-ros Di Viñus: Livraria Utopia, Nihl Obstat,Crise Luxuosa - nº 1, Março/Abril 1999Do Sumário: Albert Cosseny; Sobre o tra-balho e a sua superação – trabalhar paraquê?; Nós, Lista de livros; Como era o novotempo?; Merz e o dadaísmo; A mula da dro-ga; Um teatro dentro do corpo; A religião docapital; Últimas.Contacto: José Tavares, Apartado 21477-1134 Lisboa Codex.

Courant AlternatifOrganisation Communiste Libertaire, nº 88,Abril 1999Do Sumário: Nucléaire: ambiguité de la Dsin;Répression à Reims (suite); Rubrique flics;L’école, labo du libéralisme; Lutte pour laterre au Pays basque (suite), Pas vrai libertésans égalité!; Chronique de la précarité; sangcontaminé: l’Etat irresponsable; Rubrique:brèves; rubrique: social; Immigration: vive lacarte de 100 ans!; Rubrique: livres, Autourdu livre de michel Auvray, Rubrique vit’fait.Contacto: OCL/Egregore, B. P. 1213, 51058Reims Cedex, France.

El LibertarioOrgano de la Federación Libertaria Argenti-na, Ano 14, nº 42, Dezembro 1998/Janeiro1999Do Sumário: Pinochet (y la omnipotencia delEstado) en el banquillo; Sindicalismo: delcompromiso a la complicidad; Hacia dondeva la economia? (XXI) –“estafas de la vidacotidiana”; Polémica sobre criminalidad,delicuencia y… Lombroso; Noticias y activi-dades libertarias; El santo que nos faltaba;Suplemento Especial - La Semana Trágioa;Una historia de Chiapas; Al margen del po-der y de los partidos; El auto, parodoja delcapitalismo; De la libertad y de las ideas;Tráfico de armas: paradigma de la corrupciónContacto: El Libertario, C/ Brasil 1551,(1154) Buenos aires, Argentina.

Ekintza ZuzenaAldizkari Libertarioa, 24. Zkia., 98/99 NeguaDo sumário: Bienestarismo: la ideologia delfin de siglo; Egin – la ley del silencio; Las

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huelgas que cuentan que ganamos; Elmovimiento contra el paro en el estadoespañol; Movilidad motorizada, globalizacióneconómica y «proyecto» europeo; Elverdadero rostro de la profesionalización; Elentramado britanico en la lucha contra lainmigración; Europa África, Colombia; VIH/SIDA; Su moral es asquerosa; Nikez; Ojarbanzo negro, “sempre vai alghun na pota”;El corazón del sapo, Liburuak.Contacto: Ediciones E. Z., Apartado 235,48080 Bilbo, España.

FisgaFolha Informativa Libertária, Fevereiro/Abril1999Do Sumário: Editorial; Notícias – encontroscom o maldito; Opinião – tens pedaladas?;Endereços.Contacto: Apartado 4720, 4012 Porto Codex.

La Campanasemanario de información y pensamientoanarquista, nº 109, 1999Do Sumário: Buzón de la Campana;Editorial;Trabajadores liberados; La CGTante la guerra de Yugoslavia; Debate alRojinegro –El tiempo de los tío Tom; 12 añosde régimen carcelario criminal – Militantesde acción Directa: parar el ensañamientojudicial; Identidades asesinas; Poesia; Elárbol de los zuecos, Anuncios breves,convocatorias; intercambios; Florentino deCarvalho – la erguida voz del roble.Contacto: La Campana, C/ Pasantería, 1-3ºplanta, 36002 Pontevedra – España.

la otra bolsa de valoresautopoiesis - reforma y mutación… o co-lapso, nº 46, 1998Do sumário: ; Economia y política: pasma-das ante la crisis del siglo – La sociedad plu-ral y militante: por un codigo ético y clarasestrategias de sostenibilidad, PNUD eINSOL apoyan la segunda fase del Ba’Asolay– cooperación tecnica para organizacionessociales, indigenas y no gubernamentales;“Diálogo global” convocado por Iggri y Kepa– redes por una estrategia; Qué hacer?Renacen simbolos de valor social; Examede Occidente y su ayuda – La ONG y elTitanic; Por un ser nuevo en vísperas de umsiglo nuevo: “La otra bolsa de valores” –cumplio nueve anos y agradece; Tianguis– Tlaloc por una economia en manos de lagente – ofertas y directorio, some steps

ahead – Building a more just, sustainableand democratic world – HanasaariStatement; por la audición del Bardo Todhol– La gran liberación.Contacto: Promoción del Desarrollo Popu-lar, Tialoc 40-3, Col. Tiaxpana, CP 11370,México D.F., México.

letralivreCultura Libertária, Arte, Literatura, Ano II,nº 22, 1999Do Sumário: O comunismo libertário; A re-pública do silêncio; Reflexões sobre MalcomX (2); Em defesa da palavra; O homem daflor na boca; Os poetas e a MPB; Sete Con-tos; Campanha de novos assinantes.Contacto: letralivre, Caixa Postal 50083,CEP 20062-970 Rio de Janeiro – RJ, Brasil.

Le Monde LibertaireHebdomadaire de la Fédération Anarchiste,6-12 Maio 1999Do Sumário: Une seule guerre: la guerre declasses!; Pour lutter contre les ségrétationssociales: construisons l’école de l’égalité;C.M.U, plan Johanet, rapport Charpin –Menaces généralisées sur la protectionsociale; Encore des coups sur les Balkans;L’Europe de la calotte; Nouvelle Calédonie:la loi du clan?; Sale temps d’avril sur Lon-dres; Anars gays: la croisière s’amuse…;Journée d’expression libertaire à Montpellier;le samedi 8 mai.Contacto:Le Monde Libertaire, 145, RueAmelot, 75011 Paris, France.

LiberaInformativo do Círculo de EstudosLibertários Ideal Peres; Ano 8, nº 91, De-zembro 1998Do Sumário: … adeus Antônio Martinez; Osentido da revolução e o seu sentido; NoamChomsky: a política externa dos EUA e oterceiro mundo; Recordando um companhei-ro ou a primeira vítima mortal do Tarrafal;Notícias libertárias.Contacto: CELIP/RJ, Caixa Postal 14576,CEP 22412-970 Rio de Janeiro-RJ, Brasil.

Novos TemposRevista Anarquista Mensal; nº 2, Novembro1998Do Sumário: Justiça, administração, polí-cia; Os ursos de Berna e o urso de SãoPetersburgo; Foucault e a anarquia; Umaeducação libertária; Da polis e do espaço

social plebeu; Municipalismo libertário.Contacto: Editora Imaginário, Av. Pompeia,2.549 conj. 01 – Sumarezinho, 05023-001São Paulo – Brasil.

Opción LibertáriaOrgano de GEAL – Grupo de Estudio yAcción Libertaria, nº 30, Janeiro 1999Do Sumário: Hacia un nuevo feudalismo?;La tecnologia y sus espejismos; Entre la li-teratura y teoria social; Nuevamente guerraen Golfo Pérsico; Mensage para médicos;En defensa de la piratería.Contacto: Luce Fabbri, Casilla de Correos141, C.P. 11000 Montevideo, Uruguai.

Política OperáriaRevista comunista, Ano XIV, nº 69, Março/abril 1998Do Sumário: Nato nazi; O estado da nação;Há 25 anos – “O povo é que mais ordena”;perguntas ao bloco; As palavras – a touradado costume; 50 mil contra o pacote “socia-lista” – agitação laboral por todo o país; De-saforos do Pina - factos e números; STPC– 500 postos de trabalho ameaçados; Telex;EUA, um estado policial; Negócios com osnazis; Direitos da mulher; Timor-Leste noquadro da crise indonésia; Terror de Estadona democrática França, A esquerda brasi-leira face ao neoliberalismo: riscos dedomesticação; 25 de Abril: comemorar oquê?; As supermulheres, a guerra entre ossexos e as quotas; Diálogo sobre o futuro;Por um encontro marxista no ano 2000; Ca-pitalismo e concorrência na ex-URSS.Contacto: Política Operária, Apartado 1682,1016 Lisboa Codex, Portugal.

RéfractionsRecherches et expresions anarchistes, nº 3,Hiver 1998-99Do Sumário: L’anarchisme, genre mineur;Des histoires (presque) vraies; La liberté: lesmains dans les poches; Caleb Wlliams oules choses comme elles sont; Franz Kafkaet le socialisme libertaire; Oskar Panizza etla psychopathia criminalis; La nature contre-culture; Paco Ignacio Taibo; Je donne un nomà de très petites choses; La littérature - armesituationniste; Les cueilleurs de coton; Poésieet circonstance; Demandez l’imposible, c’estfini!; Les ailes du vent; Ba Jin, sa premièreoeuvre.Contacto: Les Amis de Réfractions, BP 33,69571 Dardilly Cedex, France.

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SOS PrisõesAno II, nº 24, 15 de abril de 1999Do Sumário: Um “self-service” politicamen-te correcto e autorizado; Perdão de penas:o sonho nunca morre, mas… transforma-se;A perversão no país de Tocqueville; E .P. deSintra – cerca de 200 queixas-crime contradirector; Pelo perdão de penas e a demo-cracia nas prisões; As prisões na imprensa;Comunicado da ACED; Delegação da ACEDfoi recebida pelo grupo parlamentar do PS.Contacto: SOS Prisões, Apartado 1928,1057 Lisboa Codex.

Umanità NovaSettimanale Anarchico, Ano 79, nº 14, 25 deAbril de1999Do Sumário: La banalità della guerra; DietroI massacri – la logica del neo-protettorato; Ilbombardamento della propaganda; Losciopero dei ferrovieri; Banche: un contrattoda sudare; Lotte in Telecom contro gliesuberi; Iniziative contro la guerra; Bologna.Soldi alle scuole clericali; Letture; Strategiadi guerra USA; Il corteo del 27 marzo aParigi: a fianco dei sans papier; Sindromedel golfo.Contacto: Umanità Nova, c/o G.C.A. Pinelli,via Roma 48 - 87019 Spezzano Albanese(CS), Itália.

Outros documentos e livros recebidos

A Abolição do Trabalho, Bob Black, Tradução de A. Samy Boyd e Lumiv Nahodil, Edição Crise Luxuosa.ALBATROZ, Lard du Peuple le Monde, Paris, 1998.CARVALHO, Silva, Palingenesia ou o estado e o processo do romance, Lisboa, Fenda, 1999.CULLA, Daniel de, Pito Blanca, Burgos, Edição do Autor, 1999.CULLA, Daniel de, Cada uno de los Setenta Prelados, Burgos, Edição do Autor, 1999.GRUPO INVISÌVEL OS MARTELOS, 2984 – Mil Anos Depois, Lisboa, Edições Reflectir, 1998.Investigações de Um Cão, Franz Kafka, Tradução de André O. Benavente, Edição Crise Luxuosa.PEREIRA, Sérgio, O Absoluto Reverso, Santa Maria da feira, Edições Tomahawk.RODRIGUES, Edgar, O Universo Acrata, (2 volumes), Florianópolis, Ed. Insular.SOUSA, Almeida e, Objectos Perdidos na Memória de um Guerreiro (forçado), Lisboa, Crise Luxuosa, 1999.

Xina LlivrePublicação Anarquista, Inverno-Primavera1999Do Sumário: nada es tan desalentador comoun esclavo satisfecho; Llabres, la cara masinquisitorial del pp ciudadelano; Carta des-de la prison de Koridallos; Llibertat per NikosMaziotis; Que esta pasando y las razonesdel porque; Las revueltas de los pueblos deVarvara y Olympiada contra lamodernización y la muerte; Italia;Construcción de la red de afinidad anarkjistaen le mediterráneo ibérico; Mare mothermater mère math madre ma ma; Valencialbertaria.Contacto: não existe

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PRINCヘPIOS EDITORIA IS

UTOPIA define-se como revista anarquista de cultura e intervenção, o que significa areivindicação do património histórico das ideias libertárias e do movimentoanarquista, ainda que à luz de um pensamento próprio, activo e actual, e no

respeito face a outras interpretações desse património.

Ao definir-se como de cultura e intervenção, UTOPIA pretende-se como um espaço detolerância, diálogo e criação, procurando contribuir para o aperfeiçoamento dos

homens e para o alargamento das suas possibilidades de expressão e de invenção.

Ao definir-se como de intervenção, UTOPIA pretende-se como um espaço de análise edebate dos fenómenos sociais e políticos das sociedades contemporâneas, procu-rando contribuir para a emancipação e a liberdade dos indivíduos e dos grupossujeitos a quaisquer situações de opressão, repressão e intolerância, assim como

procurará opor-se aos sistemas e mecanismos conducentes a manter situações deconstrangimento e desvantagem social e económica de indivíduos e grupos emrelação a outros, e ao Estado, entendido como um poder a que todos os homens

devem obedecer mesmo que em desacordo com ele. Nesta intervenção, UTOPIAserá a expressão de lucidez e de revolta, assumindo plenamente o carácter utópico

das tarefas a que se propõe.

UTOPIA guiará a sua acção por uma ética de honestidade, frontalidade, solidariedade etolerância, que se procura expressar nestes princípios editoriais e que levará àprática em cada edição e em quaisquer actividades que venha a desenvolver.

As colaborações não solicitadas são desejadas, embora sujeitas à apreciação do colectivoeditorial. Qualquer colaboração não publicada será devolvida ao autor, com a

justificação dessa decisão.O colectivo editorial compromete-se a abrir rubricas de debate quando tal for considera-

do enriquecedor e esclarecedor para os leitores e para os princípios aqui defendi-dos, sendo os autores previamente informados dessa intenção.

A indicação de um proprietário e de um director da revista deve-se a exigências legais,sendo desejada a rotatividade da direcção entre todos os que fazem UTOPIA.

A responsabilidade dos textos assinados é dos seus autores e a responsabilidade peloprojecto é de todo o colectivo editorial.