seres amazônicos

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O coração de uma floresta guarda mistérios que nenhum ser humano jamais seria capaz de imaginar. Longe da luz das cidades e do barulho dos carros, lendas sobre os mais diversos assuntos divertem e assustam os moradores desse mundo selvagem. Quais são os mistérios que cercam uma floresta intocada? Isso você descobre na antologia Seres Amazônicos.

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Copyright © 2015 COELHO, Maurício.

Todos os direitos reservados e

protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998.

Nenhuma parte deste livro, sem

autorização prévia por escrito da

autora, poderá ser reproduzida ou

transmitida sejam quais forem os

meios empregados: eletrônicos,

mecânicos, fotográcos, gravação

ou quaisquer outros. Esta é uma obra

ctícia, qualquer semelhança com

pessoas reais vivas ou mortas é mera

coincidência.

Arte da capa

Czech Xie

Diagramação

 Jean Thallis

Organização

Maurício Coelho

Revisão

Bruno Eleres e autores

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SUMÁRIO

Suindara – Ed Rastum, 5

A Vingança da Sereia – Amauri Chicarelli, 17

O Grito veio da Floresta – Bruno Eleres, 23

O Bravo Pirarucu – Raphael Miguel, 32

O Criador de Lendas – Jhon Mark,39

A Face do Boto – Patrick Santos, 46

O Fogo de Angatu – Wilson Faws, 54

A Proposta – Santiago Castro, 62

A Pedra Verde das Icamiabas – J. L. Costa, 67

Guardiões – Francélia Pereira, 75

No Coração da Selva – Alfredo Alvarenga, 84

Os Dois Deuses e o Senhor da Travessura – V. M. Gonçalves, 91

Um Amor – Endell Menezes, 101

Estrada Inca – Jean Thallis, 103

O Bezerro Rosilho – Ailton Silva Favacho, 107

O Saci – Gustavo Valvasori, 116

O Coronel e o Lobisomem – Ana Rosa de Oliveira, 124

A Fuga do Curupira – Inácio Oliveira, 131

O Tabaco da Caipora – Moisés Diniz,133

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O Porto – Anderson do Couto Candido, 145

A Sereia Sem Canto – Priscila Machado, 152

A Misteriosa Origem dos Filhos D’água – JBAlves, 160

A Magia da Floresta – Sirius, 168

Saci da Floresta – Fred Sá Teles, 180

Runolfo e o Encantamento da Cobra Ajuritana – Márcio Fernandes

Conceição, 188

Matita Maria – Hileane Barbosa Silva, 194

O Mapinguari – Edweine Loureiro, 200

Criatura – Maurício Coelho, 205

Minibiográas, 210

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SUINDARA

Ed Rastun

Ela corre pela mata. Por um caminho conhecido. Tão logo perto

do riacho, vê um garoto brincando à beira d´água. Ele joga pedras

na água e ela aproxima-se sorrateiramente. O garoto aparenta ter

cinco anos, a cabeça sem cabelos e sem roupas, como se um dos

 garotos da vizinhança. Aparenta estar bem feliz. Mas ela não se

lembra de tê-lo visto por essas partes da Mata. Ela estende a mão

esquerda para tocar o seu ombro e ele vira-se velozmente. Não há

olhos, mas sim vermes que passeiam entre os buracos de sua face e

devoram a carne podre e fétida. Ela cai sentada no chão. Com pavor

e amedrontada. Logo estaremos juntos, ele diz, poderemos jogar

pedras pra sempre no igarapé. As águas se tornam um caldeirão

onde vários corpos pútridos jorram pus e sangue... A cada palavra

daquele menino, sangue cai de sua boca... Ela fecha os olhos...

***

Renque, renque...

O barulho perturbador e costumeiro do punho na rede

deslizando na escápula velha, cravada na viga da humilde casa

encravada na Mata. É a primeira coisa que Suindara ouve ao

acordar daquele terrível sonho.

Ela abre os olhos, a primeira imagem que reconhece é a

gura do pai fazendo café. A fumaça do fogão a lenha e o cheiro

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do café silvestre, isso tudo ao som daquele assovio de todas as

manhãs. Uma canção com notas tristes, e intervalos menores de

uma escala que soa dor e perda.

Mas essa era a canção de todas as manhãs. Já não seincomodava mais com isso.

– A sua benção, pai?! – ela diz.

– Deus te abençoe, minha lha! – responde o homem.

Mesmo sem notar o susto que o pai levou, com o

repentino pedido de bênçãos, continua a observar Anselmo...

Que amassa folhas e raízes para fazer o remédio que toma

para as dores estomacais matutinas. O velho cheiro cítrico das

cascas de laranja secas, que o pai toma para soltar os intestinos,

juntamente com aroma do café, a trazem de volta ao mundo,

como se tivesse ido para um lugar que não queria lembrar.

Após escovar os dentes, a menina senta-se à mesa, toma

o café com o pão do dia anterior que estava em um protetor

abobadado, feito de tecido mosqueteiro, que já estava tão

encardido que nem sabia direito a cor verdadeira. Ela termina o

café, sai para começar a limpeza pelo terreiro da casa.

Anselmo bebe o chá feito com as folhas secas, agora

arruma e tira o mofo das ervas, que estão penduradas perto

da janela onde ca o jirau de louças. Tão logo a menina varre

o espaço ao redor da casa, ao longe aparece alguém, que traz

outro apoiado pelo ombro.

Suindara se afasta, pálida e fria. Anselmo, da janela em

que estava, avista as duas guras que se aproximam. Ao sair

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da casa, pela porta em que sua lha havia saído, os dois recém-

chegados vão cambaleantes ao pé da porta.

– Seu Anselmo, ajude meu irmão, ele está doente. Está

com dor faz dois dias, não come e só bebe água! Exclama um dosvisitantes.

– Calma, menino Antônio. Me ajude a levantar e colocar

ele na mesa da cozinha.

Os olhos de Anselmo encontram com os de Suindara,

que está perto da goiabeira com a vassoura de palha na mão. Ela

aperta o cabo da vassoura com força. Ele sabe que, por mais que

se esforce, aquele rapaz iria morrer e só poderia lhe dar algo para

aliviar a dor...

Ele entra.

Ela sai, em direção ao igarapé.

A manhã segue, como de costume. Algumas pessoas

aparecem para pedir ajuda a Anselmo. Com exceção do primeiro

visitante, Suindara não tem aquela estranha sensação e continua

a arrumar a casa.

Enche o pote; lava a louça; espera o pai retornar da feira;

prepara parte do almoço e asseia-se para ir à escola.

– Sua benção, pai?!

– Deus lhe abençoe, minha lha!

Ela segue o caminho em uma velha bicicleta, que fora de

sua mãe. Pedala pela Mata por alguns quilômetros, até encontrar

Pedro, seu único amigo dentro da escola.

Ele não se assusta com a presença de Suindara, como

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fazem as outras crianças. As piadas que fazem sobre seu pai

ser um feiticeiro ou com sua estranha aparência não parecem

incomodar Pedro, cujo qual possuía a mesma idade da garota.

Alguns, que tiveram ajuda do seu pai, nada falam, porémnão a defendem.

Ela é aplicada. Possui boas notas, mas sente que escola

é um desperdício de tempo. Suas lições não fazem sentido, não

ca à vontade naquele lugar.

***

Ela vê alguém se afogar. Um braço que segura alguém debaixo

d´água. Não consegue ver quem segura, mas é ela quem está sob

a água. Sente o líquido invadindo a boca. Descendo pela garganta.

Enchendo o peito. Aos poucos a água desce e se encontra com aquela

que volta dos pulmões. Sente a raiva de quem enforca. Contorce o

corpo. Sente o peso do outro corpo, que a prende submersa. Não.

Não. Nããão...

Suindara acorda com o balanço infalso da velha cadeira.

A professora se aproxima assustada. Todos na sala estão

assustados. Alguns riem. Ela olha ao redor. Suas mãos estão

suadas. A professora toca em suas costas, pergunta se passa

bem.

– Desculpa, professora, tive um sonho, mas já passou!

Mas nunca passa.

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Seus sonhos são sempre sobre algo, alguém, e nunca

são coisas boas. Ela nunca sabe com quem ou onde. Dessa vez

foi uma das piores. Sonhar que está sendo morta afogada não é

uma das melhores experiências oníricas. E Suindara se perde empensamentos durante o restante das aulas.

A tarde se esvai.

Ela retorna junto com Pedro pelo mesmo caminho,

porém, ele não se arrisca a perguntar o que tinha acontecido. Ela

percebe certa desconança na expressão do garoto.

Despedem-se e ela continua seu caminho solitário.

Ao chegar ao desvio para o terreno de sua família, ela

decide ir caminhando a pé empurrando a bicicleta. Retira as

sandálias para sentir o chão que tanto gosta. A brisa que balança

as folhas e o cheiro de mata combina com o brilho do sol das seis,

que se põe por entre os galhos das árvores. Dois lhotes de cutias

passam brincando com algum fruto que encontraram e disputam

animados o achado. Ela sorri com aquilo. Pensa que poderia ter

ido com sua mãe, mas ela sempre pensou que deveria ser terrível

car entre tanta gente na cidade. Os jornais que a escola recebia

eram marcados por mortes, assassinatos e, estranhamente,

mulheres seminuas. Aquilo a deixava confusa... Logo esqueceu

de tudo, quando sentiu o cheiro das jacas, entrelaçados com o

das mangas e da terra úmida que a chuva deixou por ali. Então

pensou: nada é melhor do que estar em casa.

***

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Arf! Arf! Arf!

Anselmo corre desesperado pela Mata.

Ele está cansado, mas tenta acelerar o passo. Se joga na

água e caminha por entre as pequenas vitórias-régias presas àencosta.

Suindara está lá! Como se só estivesse aproveitando a

água fria ou utuando em líquido amniótico no ventre de sua

mãe. Lábios roxos. Olhos virados. Expressão serena.

Morta.

Anselmo carrega o corpo de sua lha pelo caminho

iluminado pelos raios do anoitecer, que atravessam os galhos das

árvores da velha Mata. A água pinga no chão e marca o caminho

fúnebre por onde ele segue. O sal da lágrima solitária que escorre

pelo seu rosto cai sobre o rosto de Suindara...

Anselmo senta porta da casa amola seu punhal. A carne

crescida em seu olho esquerdo latejava como nunca.

Ele parte em direção à cozinha, vai até um velho baú,

perto da janela e apanha uma mortalha, que havia sido costurada

por um antepassado. Não lembra mais o motivo e nem porque

nunca foi usada. Ele caminha até onde descansa o corpo de

Suindara. Envolve a lha com cuidado com a mortalha, então,

entoa a canção que a lha sempre o ouvia cantarolar todas as

manhãs.

Menina da pele branca

Onde mandei buscar a sua cor 

Só me cou o seu amor. O seu amor.

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Menina encanta sua pele branca

Onde mandei fazer sua dor 

Só me deixou com essa dor. Com essa dor.

Ele termina. Cobre o corpo de Suindara com folhas secas,embaixo da mangueira plantada quando soube da gravidez de

sua mulher. A árvore tinha a idade da menina. E lá ela estava,

coberta com as folhas mortas da árvore idílica.

Anselmo tira o aço moldado. Beija a lâmina e arranca

os olhos da menina. Tenta aparar o sangue que escorre pela

mortalha. E canta.

Minha menina, levo seus olhos.

Pra trazer o brilho te dou o meu amor.

O meu amor, leva essa dor...

Ele rasga um pedaço da mortalha que cobre o corpo de

Suindara e enrola os olhos e acomoda, com cuidado, na bolsa

feita de folha de palmeira, que trazia pendurada. Em seguida,

recolhe o punhal na bainha de couro cru, e esconde-o na parte de

trás do cós de sua velha calça.

E inicia a caminhada, tendo como companhia somente

pensamentos confusos.

Eu nunca pensei ter que entrar aqui. Nem sei aonde esse

caminho vai levar. Mas, eu não posso deixar ela ir assim. Só sobrou

ela, não tenho nada mais para deixar nessa vida. Meus pecados,

meus lhos, não posso deixar tudo acabar assim. Aquela velha,

vai ter, enm, o que sempre quis. Depois de tanto tempo, agora

entrarei aqui e não poderei voltar atrás...

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Anselmo parte em direção à Mata. Os primeiros passos

eram como se conhecesse, até ali, muito bem o caminho. A cada

metro parecia conhecê-lo menos. Os raios de sol passavam cada

vez com mais diculdade por entre a copa das árvores. Jacaranda copaia,  de tamanho quase sem m, indo

para além das outras também frondosas árvores.  Anacardium

 giganteum¹, ali ao pé da gigantesca árvore colheu alguns frutos

recém-caídos. Seguiu sua viagem por entre árvores, a cada passo

o sol diminuía seu brilho. O vento frio, como um canto horrendo

de pássaros desconhecidos, começara a ser ouvido; então soube

que estava perto do m de sua exaustiva caminhada. Encostou-se

sobre uma árvore morta e comeu alguns cajus enquanto tentava

respirar o ar pesado da Mata,

Levantou meio tonto, por conta do efeito fermentado

do caju, ao longe avistou a gruta. Prendeu respiração que ainda

possuía. Os últimos passos, antes de entrar na horrenda boca,

que lhe chamava, foram os piores.

O efeito do caju deixava o corpo mais pesado, a cada

passo. Era assustador o barulho da revoada de pássaros, que

estavam invisíveis para Anselmo. Apoiou-se na entrada arfando

e entrou.

Seus pés tocam o que parecia ser um pequeno corredor,

que parte de algum lugar. Ele acende a lamparina, que imaginou

não precisar, pois, quando partira não imaginou ir tão longe.

Acende-a com diculdade, a luz que emana é uma chama

¹Conhecida como Cajuaçu. (Nota do Autor)

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plasmática que dança sobre o pavio embebido em querosene.

Anselmo se assusta com aquela luz, entende que, agora, não está

mais em um mundo que segue as nossas regras. Segue o curso

da água que sai debaixo da pedra da batente da entrada. Seuspassos ecoam pelo caminho por uns metros, até que não sente

mais a corrente de ar da entrada. A luz de lamparina se torna

amarela. E água toma a cor de sangue pútrido. O cheiro deixa

Anselmo atordoado, ele corre e aos tropeços e cai, tomando

aquele líquido viscoso e pestilento. Ele vomita na escuridão. A

lamparina boia na água, estranhamente, ainda acesa. Levanta e

com diculdade e empurra-se para fora da pequena e sangrada

vala. Cai com uma tosse de engasgo. Do eco de sua tosse, ouve

um choro de criança como resposta. Anselmo se assustou e

empunha a lamparina para tentar ver ao redor. Toca o bolso para

ter certeza que os olhos da menina ainda jazem lá.

Ao redor vê um buraco na parede. Engole em seco e um

arrepio lhe sobe à costa. E decide subir uma coluna pedregosa.

 Ali estaria o caminho para a toca da velha? Pensou com receio.

Entrou no buraco e seguiu por um túnel, e a cada passo,

cortes sangravam em seus pés, braços, mãos, costas. De súbito

cai rolando por uma ladeira. Esbarra em algo que não olha de

início.

A dor é insuportável. Ao se levantar vê com horrendo

esplendor as colunas de uma civilização que viveu ali, colunas

que, na verdade, eram vasos mortuários com desenhos de

estranha aparência. Anselmo assusta-se com aquilo e imagina de

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que tamanho eram aqueles que foram ali enterrados.

Gigantes, era o que sua mãe dizia sobre os antigos

moradores da sombria Mata. Caminhou por um tempo incontável.

Sabia que dali não sairia mais com vida. Os ferimentos de seuspés faziam com que cambaleasse pelo corredor do mortuário e

apesar de receoso escorava-se nas gigantes tumbas.

Ao nal do corredor, avista um pórtico coberto com

galhos e musgo. Por um instante, pensa em sua lha e em seu

lho jamais nascido, e então adentra a escuridão depois da

passagem. Quase uma queda no abismo escondido. Equilibra-

se com diculdade, mesmo com a dor dos cortes. Encontra um

galho espinhoso e apoia o corpo machucado e cansado. Arrasta-

se até a batente dando a volta em direção à outra entrada. A

cada passo, o grito horrendo do fundo do abismo quase arranca

o resto de sua sanidade.

Ouve seu pai, sua mulher, seu lho, sua lha, a si mesmo.

Cai, para a escuridão à sua frente, desmaiado.

Ao acordar, ouve o estalar de lenha e sente o cheiro acre

de sangue fervente. Leva as mãos ao bolso, não encontrando

nada. Tenta olhar ao redor. Vê a carcaça de alguns animais

recém-abatidos, o sangue ainda a pingar em cuias marrons. Aves

rasgadas ao meio. Cabeças de bois empaladas, com vermes que

lutam pelo restante de carne.

Ao terminar a visão horripilante, sente o toque gélido de

alguém que lhe levanta pelos cabelos, e lhe solta uma baforada

de algo que parece ser tabaco.

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A visão embaça e só enxerga a ponta do vestido velho e

fétido, que sai na direção oposta.

– Então você, enm, veio! – Uma risada, arranhada, enche

seus ouvidos de desespero.

– Mãe! Ela se foi...

– Sim eu sei, fui eu que a levei e posso trazê-la de volta.

Porém, seu verme, depende só de você.

Anselmo levanta-se, vê os olhos de Suindara nas mãos

cadavéricas de Matinta.

– Você tem o mesmo dom do fraco do teu pai. Por culpa

dele minha maldição se cumpriu e quei presa aqui até que

alguém viesse e trouxesse os olhos de sua cria. Claro que tive

que fazer as coisas acontecerem.

Uma risada, seguida de uma cusparada de algo que

acendeu ainda mais a chama em que fervia o caldeirão no meio

da sala.

– Sim, eu aceito. Traga ela de volta. E eu co com você

até que sua penitência acabe. - O tom da gargalhada amaldiçoada

que deu tirou as últimas forças de Anselmo, que cai desfalecido

aos pés da Matinta.

A velha levanta e empurra o corpo do lho para o canto.

Arremessa os olhos da neta no caldeirão, depois apanhou um

pouco do sangue de Anselmo em um punhal e lança sobre a lenha

em brasa. Uma explosão de cinzas e faísca toma a sala. Depois,

apenas a escuridão da oresta.

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Algo se move debaixo da terra, no lugar onde Anselmo

escondeu o corpo de sua amada lha. Empurra o véu da mortalha.

Um grito horrendo é ouvido a quilômetros dali e até mesmo os

ditos corajosos se arrepiam de horror.Esse grito que marcou aquela fatídica noite, pode ser

ouvido ainda hoje por todos aqueles que temem e entendem

nossa única certeza enquanto seres mortais.

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A VINGANÇA DA SEREIA

Amauri Chicarelli

Quando acordou, sentiu-se acariciada pelas águas que

massageavam seu corpo. Olhou para os lados e se assustou com

a enorme quantidade de peixes de todos os tamanhos e formas

que a rodeavam, mas não sentiu medo. De alguma maneira

inexplicável ela sabia que os animais aquáticos estavam ali para

protegê-la. Sua cabeça ainda dava voltas, e as tentativas de se

lembrar do que aconteceu horas antes eram inúteis. Apenas

fragmentos minúsculos de vozes e do farfalhar das folhas

passando rapidamente sob as nuvens brancas persistiam em

sua mente. Mas pouco a pouco percebeu que podia entender a

linguagem muda dos seres do rio que não falavam, mas podiam

transmitir seus pensamentos. Então os peixes lhe contaram

como ela foi salva do afogamento.

Yara era a lha do cacique e a moça mais bonita de

toda a tribo. Mas longe de trazer alegria, a beleza lhe trouxe

contrariedades. Era hostilizada pelas outras moças da tribo,

ao mesmo tempo em que era disputada pelos índios em lutas

mortais. Desde cedo teve consciência de sua beleza e por isso

fugia do convívio tribal, preferindo car à beira do rio sobre uma

rocha enquanto apreciava seu reexo nas águas e cantava para

os peixes. Também jogava sementes e pequenas bolinhas feitas

com farinha de mandioca que distribuía prodigamente aos seres

do rio que considerava amigos.

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O pajé Juína, homem invejoso e cheio de rancor, insistira

com o cacique desde o nascimento de Yara para que formasse uma

aliança consigo, uma vez que o chefe da tribo já estava em idade

avançada e só tinha aquela lha, pois os lhos foram mortos nasguerras. Com sua morte, o marido da recém-nascida se tornaria

o senhor da aldeia. Queria que a menina fosse prometida a um

de seus nove lhos, Cauré, que na época tinha três anos. Mas o

cacique Acauã não via o feiticeiro com bons olhos e, contrariando

os costumes imemoriais de seu povo, disse a Juína que sua lha

escolheria o próprio marido. Desde esse dia o ódio passou a

envenenar o sangue do pajé. Sentiu-se humilhado por Acauã e

jurou vingança. Se a menina não pertencesse a seu lho, não

seria dada a mais ninguém.

Quanto mais orescia a beleza de Yara, mais a ira de

Juína envenenava o seu ser. Sorrateiramente, passou a incutir

o ódio e a inveja entre as jovens da aldeia, que passaram a

persegui-la. Quando Yara completou quinze anos sua beleza

resplandecia na oresta. Mesmo as feras da mata não a atacavam

e os pássaros ariscos não fugiam à aproximação. Pousavam nos

seus ombros aninhando-se em seus cabelos e faziam serenatas

como prova de amor. Enquanto isso os jovens índios faziam de

tudo para conquistar a lha do cacique. Debatiam-se nos jogos

com demonstrações de força, exibiam os animais caçados ou

pescados, como troféus diante da princesa indígena. Mas Yara

não gostava dessas manifestações de orgulho e arrogância. Ela

alimentava-se de raízes e frutas, não comia carne ou peixes e

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considerava a caça e a pesca uma maldade contra a vida.

Naquele tempo, depois de uma tempestade de granizo

que castigou a região durante dias e destruiu as plantações de

mandioca – alimento básico dos índios – o sol voltou a brilharcom uma intensidade nunca vista antes. Os animais morriam

de calor e os peixes fugiam para as águas profundas onde a

temperatura era menor. Assim em poucas semanas a fome

ameaçava não só aquela tribo, mas também as aldeias vizinhas,

amigas e inimigas. Foi então que Juína começou seus rituais de

magia dirigindo-se aos espíritos do sol, da lua e das estrelas,

mas tudo em vão. O sol não diminuía seu calor e nas poucas

vezes que chovia, as gotas queimavam a pele dos homens, de

tão quente que eram. Todos temiam o m do mundo, mas aí um

velho centenário que vivia afastado da aldeia lembrou-se de uma

antiga tradição já esquecida por todos, pela qual era dada ao pajé

a responsabilidade de acalmar os deuses e caso não conseguisse,

deveria ser sacricado.

Os indígenas cada vez mais desesperados exigiam de

Juína a solução do problema ou o auto-sacrifício. Ao car sabendo

que queriam ressuscitar um costume abandonado há dezenas de

anos, o pajé soube também que precisava agir depressa antes

que dessem cabo de sua vida. E então o inesperado aconteceu.

No meio de uma tarde escaldante, o sol eclipsou-se e a escuridão

parecia cobrir toda a terra. Homens e mulheres prostravam-

se diante dos totens como sinal de humildade, desespero e

reverência. Depois de algum tempo o feiticeiro ergueu a lança e

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gritou aos céus que lhes devolvessem o astro. Como por magia a

lua começou a se afastar lentamente da frente do disco solar e a

luz retornou em pouco tempo. Os índios ajoelharam-se perante

Juína, que naquele momento encontrou a forma de sua vingançacontra Yara e seu pai.

Mostrou aos índios que a caça morria por estar

desgostosa pelo asco que a lha do cacique demonstrava por

ela. Que os peixes fugiam por não se sentirem bem perto de

uma terra onde a lha do chefe desprezava sua carne, enquanto

a chuva quente era para limpar o mundo da ingratidão daquela

alma. Sim. Até o sol estava zangado e lhe dissera que voltaria a se

esconder em breve e para sempre, caso aquela moça não fosse

sacricada. Deveria ter seu corpo entregue ao rio em uma canoa

em chamas para que a fumaça subisse aos céus e acalmasse a ira

dos espíritos dos astros.

  O poder do Cacique era apenas sobre as leis e

os costumes da tribo. O pajé tinha tanta autoridade quanto ele

quando se tratava dos espíritos, e o desespero dos indígenas

era facilmente manipulado. Acauã bem que tentou impedir o

sacrifício da única lha que lhe restou, mas a turba atiçada pelo

pajé não lhe dava ouvidos. Yara foi amarrada e conduzida sobre

um tablado de galhos até a margem do rio que levaria seu corpo.

A caminhada não foi muito longa, e deitada de costas ela entrevia

as nuvens brancas que pairavam silenciosas além da copa das

árvores. Colocaram-na no centro de uma grande canoa que foi

incendiada e em seguida solta no rio. Ela não emitiu um grito,

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um soluço sequer. Mesmo com sua simplicidade pôde entender

o que estava acontecendo. Há muito tempo havia percebido as

maquinações do pajé contra si, mas agora era o m. Nada mais

podia ser feito.A canoa seguia o curso das águas soltando rolos de

fumaça em direção ao céu. Foi quando um terrível vendaval,

seguido de uma tempestade, apagou o fogo e fez a embarcação

virar, levando o corpo da princesa indígena para o fundo do rio,

onde foi reconhecida pelos peixes.

A notícia se espalhou telepaticamente pelas profundezas

e o corpo foi cercado por cardumes de todas as espécies, que

lamentavam a sorte daquela que cantava para eles e os alimentava

com carinho. Então o rei do rio, um enorme tucunaré foi chamado,

pois era o único que poderia salvá-la. O grande peixe ordenou

que um cardume de piranhas roesse os cipós que prendiam o

corpo da menina e em menos de um minuto Yara estava livre.

Mas a vida se fora. Suas pernas foram queimadas e não poderiam

ser refeitas. Então o tucunaré rei, que possuía poderes mágicos,

reconstituiu a parte destruída pelo fogo, dando-lhe a forma de

peixe, pois não poderia fazer diferente sob as águas. Então ele

assoprou em sua boca o fôlego da vida e Yara acordou.

Quando nalmente a princesa recobrou todas as

lembranças, contrariamente à sua natureza bondosa, foi invadida

pela ira. Agradeceu aos peixes e ao rio que se tornou seu novo

lar, e jurou vingança contra os homens.

A partir de então Yara passou a atrair os pescadores

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com seu lindo canto. Extasiados, eles se deixavam conduzir até

o fundo do rio, de onde jamais retornavam. Às vezes, a princesa

deixava um ou outro escapar e retornar a terra, como uma

mensagem viva. Esses poucos que se salvavam cavam loucose eram levados ao pajé, que realizava toda sorte de feitiços para

trazê-los à razão.

Mas ela não fez isso com todos os homens. Quando foi

ressuscitada pelo tucunaré-rei, Yara recebeu o dom da telepatia

e assim podia explorar a mente e julgar o coração dos homens.

Também ouvia as conversas dos pescadores e dessa maneira

cou sabendo da morte iminente do pai. Queria vê-lo antes que

ele partisse e ao aproximar-se da margem do rio percebeu que

quanto mais avançava em direção a terra seu corpo ia assumindo

a forma anterior. Já totalmente humana foi ao encontro do

pai que se afastara da aldeia para morrer sozinho conforme os

costumes de então. Despediu-se de Acauã e retornou ao rio.

O primeiro a encontrar a morte foi o arrogante Cauré e

depois, um por um os lhos do pajé foram atraídos pelo canto

da sereia e devorados pelas piranhas e outros peixes carnívoros.

Em algumas noites de luar, Yara ainda sai do rio e se senta na

antiga pedra de onde, no passado, cantava aos peixes. Nesses

momentos os animais se aproximam e passam horas ouvindo os

cantos da sereia. Mas os homens a temem. Nenhum pescador,

mesmo os que têm o coração puro, se arrisca a soltar sua canoa

no rio sem antes entupir os ouvidos com cera de abelha para não

ouvir o canto da mãe d’água.

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O GRITO VEIO DA FLORESTA

Bruno Eleres

– Como descrito anteriormente, a cavidade abdominalnão apresenta segregação total da cabeça, pois não apresenta

cintura peitoral bem denida. Segundo protocolo para peixes e

anfíbios, uma incisão na superfície ventral do corpo está sendo

realizada, de 10 centímetros abaixo do olho hipertroado na

porção central da cabeça, até o início aparente da cintura pélvica.

Apesar do cheiro pestilento que infestava a sala, Diana

não parecia incomodada. Anos de prática na taxidermia tornaram

seu estômago forte ao apodrecimento de animais. O celular no

bolso do jaleco gravava as informações, que ditava com clareza,

para que pudesse transcrever no m do dia. Sua mão segurava

rme o bisturi, que se movia com facilidade sobre o ventre

da criatura gigantesca depositada sobre o balcão central do

laboratório.

– A incisão, aparentemente, não era necessária. O

possível exemplar de Megatheriidae apresenta uma deformidade

que não é similar a nenhuma que conheço, na qual uma fenda se

estende da cabeça até o nal da porção mediana do abdômen.

Com auxílio de pinças, afastei uma estrutura similar a lábios da

fenda. É possível visualizar estruturas similares a dentes por

toda a extensão da “boca”, como passarei a chamar daqui em

diante. Os dentes são largos e apresentam em torno de cinco

centímetros de comprimento.

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Com as luvas e as pinças, Diana descobria cada pedaço

do ser que havia sido abatido no Parque Nacional de Kamuatá,

na fronteira entre Acre e Amazonas, a alguns quilômetros de

onde estava, a Estação Cientíca Miltes Cavalcante. Em geral, aEstação Cientíca cava vazia, recebendo ocasionais visitas de

pesquisadores do INPA e do Museu Paraense Emílio Goeldi que

faziam amostragens no entorno.

Para a felicidade da Dra. Diana Souza, ela era a única

pesquisadora no dia. Era meados de novembro, quando a

maior parte de seus colegas estavam orientando alunos de pós-

graduação e ministrando, exaustivamente, aulas. Iria aproveitar

bem a solidão. Queria pesquisar o máximo que pudesse do animal

antes que os outros pesquisadores começassem a aparecer e

ocupar os outros balcões e salas.

Não era nem que gostasse da solidão, mas sim que

uma descoberta daquelas proporções não era para ser dividida.

Poderia ganhar um nome em cima daquele animal.

Por volta do meio-dia, a fome começou a lhe incomodar.

Ela terminou de fazer anotações sobre o trato digestivo e sobre

o posicionamento dos outros órgãos da cavidade abdominal da

criatura, e se afastou da bancada. Livrou-se das luvas e pausou a

gravação. Cinco horas seguidas de áudio. Depois do almoço, tinha

que passar o arquivo para o computador, senão não teria espaço

na memória do celular para continuar o trabalho. Aproveitaria

para pegar a máquina fotográca e fazer imagens dos órgãos

internos.

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Passou rapidamente pelo banheiro e lavou as mãos antes

do almoço. Sua cabeça estava enuviada com tantas informações

conitantes. Vinda de Santa Catarina há três anos, Diana ainda

não sabia muito da cultura local, e nem era muito chegada àslendas e mitos brasileiros. Crescera assistindo aos lmes de

ação norte-americanos e lendo autores de qualquer outro lugar,

menos os daqui. Assim, pouco sabia das histórias que passavam

de avô para neto. Sabia mesmo era de lobisomens, vampiros e

monstros do lago. Nem associou o que estava em sua mesa com

qualquer causo ribeirinho, e sim às antigas preguiças-gigantes.

À sua mente, informações logenéticas e suposições

sobre a ecologia do clado surgiam em turbilhão. Aos poucos,

interligava as peças. Era, de fato, uma descoberta imensa. Talvez

a grande descoberta da sua vida cientíca.

Imaginando-se recebendo prêmios e dando conferências,

chegou à cozinha sem nem pensar no caminho, já acostumada

com o trajeto que zera com tanta frequência nos últimos anos.

João Pedro, o cozinheiro, havia servido o almoço no horário certo,

como de costume, e os outros funcionários – dois seguranças e

dois funcionários da limpeza – já estavam com os pratos quase

vazios.

– Desculpem o atraso, gente. Estava um pouco ocupada

lá em cima.

– É, abrindo bicho, né? – perguntou Silmara, que

trabalhava na segurança do Centro. – A gente tá sentindo o

cheiro o dia todo. O bicho que tu tá mexendo fede, viu?

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– Fede? Nem percebi! – riu-se Diana.

Diana sentou-se à mesa, e logo os funcionários do centro

se despediram e se levantaram. Descera tarde. Normalmente,

as pessoas dali almoçavam cedo e dormiam um pouco naquelehorário – embora os seguranças se revezassem na sesta. João

chegou em seguida e se sentou à frente de Diana. Ela não se sentia

tão confortável com ele – quieto demais, achava. Cumprimentou-o

e eles comeram em silêncio, acompanhados apenas pelo som da

televisão, que soltava continuamente a opinião sobre os crimes

na capital do estado através da verborragia enérgica, e supercial,

de um homem corpulento.

Eles comiam lentamente, cada um imerso em seu próprio

multiverso. Diana, embora olhasse para a televisão, estava

realmente focada nas ideias que pipocavam. Tinha que voltar

ao Parque Nacional. Talvez existissem outros daqueles bichos

lá, uma população inteira. Talvez pudesse até observá-los. E se

imaginou a própria Dian Fossey, lutando pela defesa do habitat

do animal que todos supuseram estar extinto, e protagonizando

um documentário sobre o comportamento da espécie no Animal

Planet.

De tão absorta nos próprios pensamentos, demorou

alguns segundos até reparar que Pedro estava de pé. Observou-o

por alguns segundos.

– O que houve?

Ele levou o indicador à boca, pedindo silêncio. Ela se

levantou devagar e tentou escutar o mesmo que ele. Sempre

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achou estranho como é mais difícil reparar num som que você

está buscando do que encontrá-lo sem querer – como diabos ela

deveria saber o que procurar?

Depois de um tempo quieta, ouviu. Era um grito humano.Mas parecia cheio de raiva e, teve a impressão de que, a cada

segundo, o som se tornava mais alto. Talvez fosse alguém se

encaminhando para o Centro, já que não existia muita coisa ao

redor. Olhou para Pedro e o nervosismo começou a tomar seu

corpo.

– O que é isso?

Ele não respondeu e, juntos, ouviram os gritos se

aproximarem cada vez mais de onde estavam. Mais e mais, até

que ouviram Silmara e Tico falando alto na entrada da Estação.

Suas vozes se misturavam ao grito estridente e, de repente,

ouviram o grito de Tico e sua voz desaparecer. Silmara chamou o

nome do amigo algumas vezes, mas logo sua voz foi substituída

por tiros.

Diana não sabia o que fazer. Por um segundo, pensou

que tudo caria bem depois dos tiros, mas logo os tiros cessaram,

mas o grito enfurecido continuou. Agora o som ecoava pelas

paredes do Centro, e ela tinha a indescritível sensação de que

seja lá o que fosse, estava ali dentro com eles.

– Vô’ pegar a arma do Tico. Te esconde em algum lugar.

Pedro saiu correndo pela porta de trás e ela imaginou que

ele iria dar a volta no Centro, para encontrar as armas largadas

na entrada. Ainda paralisada, ouviu novos gritos se mesclando

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com o berro da criatura e, nalmente, veio à sua cabeça. Era A

criatura. Anal, não precisou ir ao Parque para encontrar um

novo exemplar.

Num átimo de segundo, seus movimentos voltaram.Tinha que capturá-la. Estava sem nenhum mateiro, que é quem

normalmente faz as capturas para os pesquisadores, mas ela sabia

manejar uma arma, e tinha algumas no laboratório. Encontrar um

esconderijo uma ova. Ia sedar a criatura e depois pensaria no que

fazer. Não queria mais um espécime tão raro morto.

Correu para o laboratório, que estava, para a sua sorte,

na direção oposta do animal. Abriu a porta da sala e sentiu o

cheiro pútrido enchendo suas narinas. Sentiu ânsia de vomitar,

mas logo se controlou. Pegou uma máscara em cima do balcão e

se equipou enquanto chegava até os armários laterais.

– Onde estava? Onde estava? – perguntava-se alto,

o nervosismo crescente à medida que os urros de fora da sala

cavam mais intensos.

Abriu o primeiro armário e encontrou uma pilha de caixas

de luvas. Merda, merda.  As vozes dos companheiros haviam

sumido. O segundo armário tinha vários potes com amostras

de fezes de mamíferos. Merda, literalmente merda. O urro

animalesco vinha do corredor que estava. Encontrou a chave do

terceiro armário com diculdade e a encaixou na fechadura, mas

ele não abria de jeito nenhum. Diana puxava com toda a força

que tinha, mas nada acontecia.

Um baque forte se fez ouvir na porta. Ela puxou ainda

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mais, frustrada e completamente aterrorizada. O segundo baque

fez a porta ser arrancada da parede e cair. A criatura entrou.

Diana a encarou com um misto improvável de sentimentos.

Havia medo, com toda a certeza, mas também havia admiração.A criatura era magníca. Tinha quase dois metros de altura e o

pelo lhe cobria toda a superfície do corpo. Um único olho saltava

através da pelugem e uma boca imensa se abria do olho até o

nal do que poderia ser a barriga.

Mas sua admiração foi pulverizada. Ao ver a criatura-

gêmea sobre a mesa, o animal emitiu um som agudo, como se

lamentasse a morte do outro. Diana sentiu os ouvidos doerem

por causa do som, mas não os protegeu, e sim tentou girar a

chave novamente, o desespero assumindo controle do seu corpo.

A criatura a olhou e andou em sua direção, jogando para longe

todos os equipamentos no caminho. Fez-se um click e a porta se

abriu, revelando que, por trás de tanta diculdade, havia apenas

algumas lupas e balanças. Diana gritou de raiva e se afastou o

quanto pôde, de costas.

O animal estava a menos de cinco metros e ela sentia

o cheiro inefável atravessando a máscara, deixando-a zonza.

Quando sentiu que a criatura poderia esticar os braços e agarrá-

la, ouviu mais tiros. João estava parado à porta e atirava com um

revólver. O bicho se virou e avançou em João, que continuou

atirando.

Diana não parou para respirar de alívio. Lançou-se

para o armário do lado. Tinha que encontrar a arma. Procurou,

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desesperadamente, a chave no molho que tinha em mãos. Por

um segundo, olhou para o lado e viu a criatura cara-a-cara com

João. Abriu a porta com facilidade e, como divina providência, lá

estava a carabina.Puxou a caixa e montou a arma com pressa. Quando

engatilhou a carabina de pressão, João foi jogado para a parede.

Olhou rapidamente na direção e viu o sangue escorrendo pelo

braço do cozinheiro. De volta para a carabina, colocou os dardos

anestésicos e se levantou. Apoiou a coronha no peito e mirou.

Respirou fundo. Fazia muito tempo que não atirava. Apertou o

gatilho com lentidão, até que o tiro a surpreendeu, acertando o

animal em cheio com o dardo.

No entanto, a criatura não parou. Virou-se para Diana

e foi em sua direção. Ela atirou uma segunda vez, e então uma

terceira, até que nalmente ele pareceu car mais lento. Balançou

sua cabeçorra pouco discernível, como se quisesse afastar o sono

que lhe acometia. Diana abaixou um pouco a arma, acreditando

que logo ele cairia. Mas, nem bem ela fez o movimento, a vida

voltou aos olhos do animal e em um único salto ele alcançou

a mesa central. Sem esforço, levantou o cadáver que Diana

estudava e correu da sala.

Diana cou estática. Pensou em correr atrás do

megaterídeo e atirar mais dardos nele, mas seus olhos

encontraram o pobre João que voltara para lhe procurar. Colocou

a arma sobre a bancada e foi até ele. Observava os ferimentos

no corpo do homem enquanto ligava para o 192 da cidade mais

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próxima. Ele murmurava alguma coisa incompreensível, e ela se

aproximou para ouvir melhor:

– Ma... Mapin... guari...

O grito assustadoramente humano do Mapinguari faziafundo à voz de João, e aquietava todas as outras criaturas da

Amazônia.

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O BRAVO PIRARUCU

Raphael Miguel

Verdadeiramente, um feito para se comemorar

exaustivamente. Dias e dias de festa não seriam sucientes para

enaltecer aquela que se tornou a maior de todas as vitórias do

povo guerreiro que defendia as margens do Rio Iça.

Por anos, os Uaiás travaram uma guerra contra

os invasores, aqueles diabos brancos que viviam tentando

escravizar seus homens e utilizar suas mulheres como objeto de

mero prazer carnal. Por muito tempo, os Uaiás permaneceram

rmes, guardando a última resistência indígena ao ataque feroz

dos estrangeiros.

Conhecedores da região, andavam por entre a mata com

maestria, utilizavam o rio a seu favor e lutavam com a audácia

de bravos guerreiros abençoados por Tupã. Os diabos brancos

e suas armas de fogo não eram páreos para aquele povo da

oresta.

Agora, com a derrota dos estrangeiros, era o momento

de comemorar o feito. O Rio Iça estava livre da dominação branca.

Tambores soavam e todos dançavam ao redor das fogueiras.

Comiam, bebiam, se divertiam. Era momento de confraternização

e agradecimento aos deuses.

No entanto, havia alguém que não se sentia satisfeito

para comemorar com os demais.

Em pé, com os braços cruzados, carrancudo e sisudo,

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Pirarucu observava, de longe, a festança de seu povo. O maior

guerreiro da tribo estava descontente.

Como o mais bravo dos Uaiás, Pirarucu liderou os outros

durante o ataque certeiro aos brancos. Com sua habilidade deguerra, esmagou com brutalidade a horda dos demônios que

insistiam em adentrar a mata e ameaçar o rio que tanto amavam.

Os invasores tiveram o que mereciam durante o conito, mas o

castigo terminou com a rendição dos mesmos.

Sabendo que iriam perder aquela disputa e que não iriam

sobreviver à fúria de Pirarucu e seus comandados, os últimos

brancos vivos ergueram as mãos aos céus em sinal de rendição.

No entanto, aquele gesto de rendição somente fez com

que o destemido guerreiro de cabelos lisos, negros e compridos

casse ainda mais furioso. Não eram poucas as histórias

macabras que se contavam a respeito daqueles forasteiros. Pelo

que diziam, os brancos eram terríveis e Pirarucu estava disposto

a vingar com sangue cada uma das desgraças provocadas pelos

demônios ao povo da oresta.

Nas mãos do jovem, os estrangeiros teriam um m certo

e brutal.

Não foi o que aconteceu. Observando o nítido sinal de

rendição dos brancos, Pindarô, chefe da tribo e pai de Pirarucu

ordenou o m do massacre. Os sobreviventes daquela chacina

iriam se tornar prisioneiros dos Uaiás e não sofreriam quaisquer

represálias durante o cárcere, tudo para honrar aos deuses.

Para Pirarucu, o pai sempre se mostrou muito mole de

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coração, sem a rispidez necessária aos líderes. Aquele ato de

benevolência do chefe em nada representava a fúria sentida

pelos indígenas após tanto tempo de terror.

Por este motivo, Pirarucu observava à distância a farrados companheiros. O guerreiro ainda estava sujo, impregnado

com o cheiro da batalha e banhado em sangue branco. Era sua

maneira de mostrar a todos que a guerra não havia acabado. Não

para ele.

As comemorações avançavam a noite e o rapaz

permanecia no mesmo lugar, guardando o mesmo semblante

carregado que trazia desde o nal da luta. Aborrecido e entediado,

negava-se a participar das festividades, embora convidado por

diversas garotas a tomar parte em alguma dança.

O jovem, sempre bravo, sempre furioso, planejava algo

para distrair sua mente. Mais do que isso, planejava algo para

corrigir aquele que parecia ter sido um grande engano do pai.

Não havendo mais o que fazer ali, no centro da algazarra,

Pirarucu procurou colocar em prática o plano que fomentou a

noite inteira em sua mente.

Próximo à mata densa, já no limite do território da

tribo, Pindarô havia mandado construir uma espécie de cárcere

improvisado para aprisionar os mais novos “membros” da

comunidade, os diabos brancos. Com ódio no coração, Pirarucu

avistou a construção rudimentar feita com galhos grossos e

amarrados com cipós. Dois companheiros deveriam fazer a

guarda do local, deveriam cruzar suas lanças no ar e manter os

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curiosos à distância.

Mas Pirarucu não era um reles curioso. Era o terceiro

homem mais importante daquela tribo, atrás apenas do chefe e

do Pajé. Assim que avistaram a gura do guerreiro, os guardiõeso saudaram em uma espécie de reverência e descruzaram as

lanças. Talvez entendendo o que se sucederia ali, deixaram o

guerreiro a sós com os prisioneiros.

O sangue de Pirarucu ferveu ao se aproximar dos

forasteiros. Estes falavam algo em uma língua desconhecida

e beijavam um ornamento em forma de cruz que traziam ao

pescoço. Ao verem a gura transtornada do índio, demonstraram

um medo genuíno.

Os brancos estavam certos em temerem Pirarucu.

O bravo apanhou as brasas incandescentes de uma fogueira

próxima e arremessou para dentro da cela onde estavam os

aprisionados. Como se o fogo correspondesse à ira do guerreiro,

começou a se alastrar rapidamente. O índio parecia se divertir

com os gritos de dor e angústia proferidos pelos inimigos.

Rapidamente, o resto da tribo correu até ali e logo

entenderam o que se sucedeu. Alguns tentaram apagar as

chamas, mas o esforço foi em vão. A carne dos forasteiros foi

tostada até os ossos, em um comportamento incomum das

chamas, como se estas reetissem os desejos de Pirarucu com a

mesma intensidade.

Para Pindarô, a atitude do lho era injusticável e

inadmissível. Os inimigos haviam se rendido durante a batalha e,

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agora, eram seus prisioneiros. Não cabia a Pirarucu sentenciá-los

à morte de forma tão brutal.

Certamente, a desgraça recairia sobre os Uiaiás. Os

deuses não se contentariam com a execução sumária daqueleshomens e Pirarucu seria o responsável pela desolação que a tribo

enfrentaria.

Mas, não era justo que toda a tribo pagasse pela atitude

irresponsável de um único guerreiro. Pensando nisso, o Pajé

aconselhou a Pindarô que exilasse o lho, como forma de evitar

o castigo dos deuses. Foi o que o chefe decidiu.

Pirarucu encarou a decisão do pai em tom de deboche e

se vangloriou pela vitória alcançada contra aqueles que chamava

de diabos brancos. Enfurecido, blasfemou contra todos os deuses

indígenas e assegurou que não precisava da intervenção divina,

nem do apoio dos Uiaiás para sobreviver. Irritado, deixou a tribo

levando um colar que o acompanhava desde menino com dentes

de onça pendurados, duas lanças, um arco e algumas echas.

Sequer se despediu do pai ou de algum outro companheiro.

O bravo índio trilhou um caminho solitário ao longo do

Iça. Ali, Pirarucu se sentia em casa.

Os anos que sucederam o exílio do bravo guerreiro

demonstraram que, talvez, Pirarucu estivesse certo em não

precisar do apoio dos outros. Entre os Uiaiás cresciam boatos

de que o lho de Pindarô se transformou em uma espécie de

guardião da oresta e protetor do Iça.

Contudo, Tupã, o poderoso deus dos deuses, tramava

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uma vingança contra o índio de coração perverso. As blasfêmias

de Pirarucu não cariam impunes. Planejando o revés

contra Pirarucu, Tupã convocou Pólo e Iururaruaçu para que

controlassem uma severa torrente contra o rapaz.A tempestade que se anunciava no horizonte preocupou

o guerreiro. Aquelas nuvens negras eram o prelúdio de algo

apavorante. Mas, Pirarucu, embora estivesse com medo, não

demonstrava tal sentimento. Aquela seria apenas mais uma

tormenta da oresta, algo até comum na região.

No entanto, não era uma simples tempestade. Sem

mais avisos, a chuva chegou. Os fortes ventos cortavam a pele

rígida de Pirarucu e parecia que iriam derrubar todas as árvores

da oresta. A água pingava doída do céu e as nuvens negras

emitiam os mais sonoros trovões. Os relâmpagos, intensos e

azuis, iluminavam toda a oresta e Pirarucu testemunhava olhos

vermelhos lhe observando da mata densa.

Apavorado, o bravo guerreiro percebeu que iria morrer

ali. Parecia que os raios caíam do céu em sua direção. Sem ter

escapatória e temendo pela sua vida, correu até as margens do

Iça. Era ali que se sentia seguro. Pensou em mergulhar no rio e

esperar até a tormenta passar, mas não teve tempo de executar

seu plano de salvação. Antes que pudesse mergulhar para a

sobrevida, foi atingido no peito por um raio azul brilhante. O

corpo sem vida e eletrocutado de Pirarucu foi atirado ao fundo

do rio Iça pela violência com que recebeu o impacto.

Porém, muitos se recusaram a acreditar no m trágico

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daquele índio temperamental. Entre os mais velhos dos Uiaiás,

conta-se que Tupã, apesar de sua ira, admitiu que Pirarucu era

um bom guardião do Iça e da oresta, portanto, decidiu dar uma

nova oportunidade ao guerreiro. Pirarucu havia se transformadoem um perigoso peixe gigante e escuro como sua alma, passando

a aterrorizar quem ousasse violar as águas e a oresta até os dias

atuais.

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O CRIADOR DE LENDAS

Jhon Mark

Mais de quatro meses se passaram e o trepidar crônico

ainda assolava o corpo de Fausto. Ele não saberia armar se este

sintoma era devido ao súbito momento do susto ou se era pelo

medo gerado posteriormente.

Fausto Clorius era um homem bem sucedido em meados

do século XX. Morava em uma mansão em meio a uma densa

oresta localizada a noroeste do Amazonas. Não tinha nenhum

familiar vivo, e, portanto vivia sozinho com seus inúmeros

empregados que realizavam todas as tarefas de casa. Alguns

cabelos brancos ousavam eclodir de sua cabeça, mas ainda

sentia-se como um jovem, excluindo a manifestação tremulante

em seus ossos: os Seres da Floresta são os responsáveis por ter

causado isso em Fausto. São criaturas infernais que resolveram

de uma hora pra outra rondar a ilustre moradia do ex-advogado.

Finalmente, o ritual de paz e concentração foi nalizado

e, com um cuidado clínico, Fausto abasteceu sua xícara com um

denso café preto. Segurando-a com as duas mãos, caminhou

até a rede no corredor externo de entrada de sua mansão e

impulsionou a mesma em um leve balançar. Ele visualizava a

densa oresta através do véu fumegante que subia de sua xícara

quando um chiado excruciante reverberou o solo que equilibrava

toda a estrutura da casa. Fausto derramou o café pelo próprio

corpo, mas não sentiu a queimadura, pois estava concentrado

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em manter-se de pé e correr para dentro de sua casa. Com

agilidade, ele se prostrou sobre as inúmeras janelas acionando

as travas de fechamento. Segundos depois o chiado retrocedeu

e duas janelas foram despedaçadas. Ele percebeu que a criaturaaplainava a volta da mansão, com suas imensas asas escamosas.

Por m, a criatura pairou em frente à entrada e jorrou uma lufada

de fogo sobre a porta de entrada, o que a fez se despedaçar em

milhões de pedaços ígneos.

Foi assim que a investida terminou. Fausto se escondeu

no porão, mas quando o silêncio voltou a dominar, ele reuniu seus

empregados e solicitou que a frente da casa fosse reconstruída

e reforçada. Os subordinados aparentavam puro desespero.

Contudo, antes mesmo do alvorecer, uma nova porta fora

colocada e Fausto se preparava para ir à cidade em sua suntuosa

carruagem.

Ele se sentou desajeitado na parte interna da carruagem

enquanto um de seus empregados instigavam os cavalos sobre a

trilha acidentada. Na cidade, com a presença de outros humanos,

Fausto sentiu certo alívio. Em frente à única faculdade da cidade,

ele desceu e seguiu em direção a sua sala de aula. Depositou uma

mala de couro preta sobre a mesa enquanto cumprimentava

cada um de seus alunos com seu sorriso desajeitado. Vez ou

outra ele perdia o foco e aos poucos os jovens alunos iniciavam

um falatório paralelo, entretanto, Fausto não executou nenhum

grito de ordem.

O horário do almoço chegou e os alunos deixaram a sala

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com sorrisos nos olhos quando uma professora na casa dos trinta

anos avançou em direção ao professor.

– Não tenho palavras para lhe agradecer – Fausto

respondeu com seu costumeiro meio sorriso.Por m, ela deixou um envelope branco sobre a mesa

dele se retirou. Depois de uma ronda com os olhos à sala vazia,

ele o depositou dentro do bolso e seguiu de volta a carruagem.

A trilha acidentada lhe deixava cada vez mais tenso. Buscou o

envelope no bolso e o abriu: um rolo de dinheiro caiu sobre o

piso, mas logo foi devolvido ao bolso. Havia também um papel

que dizia: O meu lho nalmente apresentou melhoras. Obedece-

me como nunca.

De repente, a carruagem freia com violência. Fausto

abriu a porta e quando desceu ao solo, avistou aquela gura

estranha, humanoide, de corpo esquelético e esverdeado, com

cabelos feitos galhos e olhos completamente negros: os Seres da

Floresta. Havia quatro meses desde a primeira vez que os vira e

desde então, jamais dormiu em paz.

– Saia da Floresta e a Floresta lhe poupará – chiou a

criatura e desapareceu entre as árvores. Por que eles não o

queriam mais na oresta? Ele nunca desmatou, não executava

queimadas e muito menos cultuava contra deuses ou a favor de

seres malignos. Sem mais demora, voltou à carruagem e ordenou

que seu espantado subordinado prosseguisse com o caminho.

Ao chegar à sua mansão, ele correu ao porão. Acendeu

um belo lampião e avançou sobre o extenso cômodo. Logo no

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início, ele parou sobre uma detalhada máscara: um rosto de

crocodilo entalhado. Havia também uma capa com o mesmo

couro esverdeado e logo acima uma placa que dizia: Cuca. Sem

hesitar, ele depositou o dinheiro que a professora havia lhe dadopor ter assustado o lho dela com o medonho personagem. De

início, aquela ideia poderia parecer grotesca, mas era efetiva.

Pouco mais a frente, havia vários quadros de lagos com

um homem prostrado a beira. O título deste era O Boto. Fausto

foi um exímio advogado que ajudou muitos homens a se livrarem

de amantes. Ele criou a lenda de que um homem bem-apessoado

atraia as mulheres à beira de um lago, lhes tirava a virgindade

e depois fugia sobre a água, após tornar-se um boto. Com essa

singela e nada criativa história, ele conseguia transformar as

jovens vítimas de maridos-a-procura-de-aventuras em prostitutas

que foram seduzidas por um homem-peixe.

Finalmente ele chegou a um suntuoso armário e ao abrir

uma pesada porta, uma mangueira grossa encapada com algo

que parecia escamas caiu sobre seus pés.

– Onde você escondeu meu machado, Boitatá? –

perguntou com raiva, à sua mais nova criação amejante. Os

olhos desproporcionais era nada mais nada menos do que o

reservatório de combustível da serpente inanimada.

Finalmente, o rico, entediado e solitário, encontrou seu

machado e uma tocha e correu ao estábulo. Montado no seu

cavalo mais veloz, ele adentrou sobre a oresta, certo de que só

pararia no seu destino ou se fosse interceptado com ferocidade.

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Contudo, a breve viagem ocorreu sem qualquer pormenor e

quando se aproximou da casa do seu único amigo, na divisa com

a cidade, ele desceu do cavalo e socou a porta com pressa.

Um jovem rapaz de pele escura abriu a porta após algunssegundos e ao ver o visitante, forçou um sorriso ao mesmo tempo

em que tragava seu cachimbo como se fosse uma chupeta.

– Meu amigo Saulo, como vai? – saudou Fausto inquieto.

Como não houve resposta, ele continuou – Posso entrar? – disse

empurrando a porta e quase levando o amigo ao chão, pois o

mesmo não possuía a perna direita.

Saulo Cícero, era, há alguns anos atrás, o melhor amigo

de Fausto. Juntos eles prestavam serviços diferenciados à

população da cidade, tais como: provocações a terceiros, sustos

homéricos, iniciação de caos. Tudo o que há no porão de Fausto,

é ideia de ambos. Tudo começou com uma brincadeira, onde Saci

(como era conhecido Saulo) dizia que seu gorro tinha poderes

mágicos. E como a simples população começou acreditar,

criaram um poderoso comércio do medo. Porém, em uma das

travessuras bem remuneradas, Saulo foi atacado por uma cobra,

e como estava longe da cidade, de um antídoto, a única forma de

manter a vida era amputando sua perna. Depois deste acidente,

a sociedade de ambos foi rompida e somente Fausto continuou

com o negócio.

Entretanto, como atualmente o próprio Fausto estava

sendo a vítima de diversas investidas folclóricas, decidiu pedir a

ajuda do amigo para acabar de vez com os Seres da Floresta.

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– De jeito nenhum eu irei aceitar suas ideias... – Saulo

parou de falar assim que Fausto depositou um grande canudo de

dinheiro sobre a mesa.

Saulo aceitou!Planejaram até o anoitecer como que avançariam contra

os seres da oresta. Com a ajuda de duas velhas muletas, Saulo o

seguiu em meio às titânicas árvores. As tochas criavam desenhos

bruxuleantes no chão, o medo deixava o ar mais denso. O tempo

passou até que nalmente o chiado do lagarto voador bambeou

a perna de ambos. Os seres da Floresta o cercaram. O machado

foi usado para repelir o grupo, mas não surtiu efeito. Sem mais

opções, Fausto chutou uma das muletas do amigo, levando-o

ao chão. Com o hesito dos seres esverdeados, ele correu em

disparada, deixando Saulo à morte.

Desesperado e ainda com diculdades para respirar,

Fausto montou em seu cavalo e voltou correndo a mansão. Com

os olhos desfocados, ele fez uma pequena trouxa de roupas e

outra com alimentos não perecíveis. Ao sair para a noite aberta,

seu coração espremeu ao olhar para a oresta obscura e cheia

de mistérios. Finalmente ele alinhou a cela do cavalo para partir

quando ouviu dois de seus empregados falando em cochichos e

apontando para as árvores:

– O que está acontecendo? – perguntou Fausto.

– Os... Os seres da...

– O que é que tem? – cuspiu com pressa e raiva.

– Eles vieram até nós – houve uma pausa. – Eles disseram

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que para se tornar um deles, deve-se queimar em fogueira de

carvalho, a maior riqueza que possui.

Aquelas palavras abriram os olhos de Fausto. Ele deixaria

tudo para trás? Não teria como fugir com suas economias, masnão as deixaria para ninguém. Então, ele foi ao porão e trouxe

para fora dois enormes baús de madeira. Encaminhou-os ao

celeiro. Minutos depois ele trouxe um quadrúpede feito de aço

e borracha em cima de uma prancha com rodas. O animal não

possuía cabeça. Com tudo dentro do celeiro, ele mirou o pescoço

da mula ctícia sobre uma torre de feno e acionou uma pequena

alavanca, no qual fez jorrar uma língua de fogo.

Por um momento ele observou as chamas consumirem

o local e quando concluiu que seria necessário sair, percebeu que

o celeiro estava trancado.

Do lado de fora estavam os subordinados de Fausto,

ao lado dos seres da Floresta que aos poucos retiravam suas

detalhadas fantasias. Sorriam. Congratulavam. Pois, acabaram

de vencê-lo.

A princípio Fausto era o grande mestre, o Criador de

Lendas, e jamais será esquecido. Porém, ele foi descoberto.

Outros humanos ainda mais ambiciosos decidiram se apoderar

de tudo o que ele conseguiu. Deu-se início, então, a uma nova

era de lendas e mitos, entretanto, o mesmo vilão que sempre

assombrou a Floresta, ainda permanece vivo. E o nome dele é:

Ganância.

 

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A FACE DO BOTO

Patrick Santos

A história que será contada aqui relata um caso de

sumiço de uma linda rapariga do interior do estado do Pará. O

alvo principal do sequestrador, que se aproveitava da singela

inocência das garotas que sempre se engraçavam por rapazes

vindos da capital do estado e sonhavam em se casar, eram

meninas entre quatorze e dezesseis anos. O homem, que de fato

era um notório galanteador, sempre andava com camisa, calça e

chapéu cor de rosa. Era possuidor de uma admirável persuasão e

nunca desistia de suas presas.

Sua chegada à cidade foi um grande alvoroço e tomou

conta de Altamira, no Pará. Todos queriam saber quem era

aquele simpático cavalheiro que havia alugado uma soberba casa

no centro da cidade. Poucas pessoas viram o homem naquele

primeiro dia. As pessoas que o viram, disseram para outras que

ele era de uma estatura bastante elevada, de nariz empinado,

vestes de um típico cavalheiro, cabelos bem cuidado e bastante

charmoso. As moças se agitaram bastante na cidade. Na casa

da madama Lucinéia, que tinha nada mais nada menos que sete

lhas, sendo duas casadas, só se falavam no digníssimo homem

de vestes cor de rosa.

– Que nobre cavalheiro! – disse uma delas.

– Bom; bem sabes, honrada mãe, que, como eu, sendo

a mais velha das daqui presentes, visto que as outras velhas já se

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casaram, é a mim a quem deves indicar o nobre cavalheiro. Seria

muita injustiça se você desse aval para estas crianças que ainda

nem lavam suas vestes íntimas – disse Maria Jandira, a lha mais

velha de dona Lucinéia.

***

A mãe das meninas pedia calma naquele instante, porém

em debalde. Escusado é dizer como foi à noite daquelas meninas

visto que todas dormiam no mesmo quarto imenso.

– Você é muito oferecida, Maria Jandira – disse uma das

irmãs num atribulado momento de altercação no apagar das

luzes, após o sino da meia noite ter tocado.

– Eu o vi primeiro. Então quem longe dele – redarguiu a

moça, severamente.

– Você, apesar de ser a mais velha das daqui presentes,

se comporta como uma criança, Maria – disse a mais nova.

–Égua! Não me aporrinhem – berrou Maria Jandira em

um possesso de ira.

– Isso é verdade – disse outra, entrando na discussão. –

Deveríamos esperar ele escolher quem quer e não se jogar assim

em cima assim como uma mundana.

– É isso mesmo! – disse as outras, agravando ainda mais

a confusão.

– Tenho certeza absoluta de que ele não é nenhum papa-

anjo. O que ele procura é uma mulher de verdade, como eu –

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disse Maria, altivamente e com desdém.

Todas se acudiram zombando da cara de Maria Jandira.

– Você se acha uma mulher feita já, né, Maria Jandira.

Você só tem dezesseis anos, um ano a mais que eu. Você não émelhor que ninguém só porque é mais velha. E têm mais, esses

homens da cidade gostam de raparigas de treze e quinze anos,

também, então vá tirando o cavalinho da chuva se você pensa

que é a última cocada do deserto e que é melhor que a gente.

Maria Jandira bocejou, dando a entender nitidamente

que já estava fatigada daquela discussão, e disse:

– Tudo bem, tudo bem. Então vamos esperar ele decidir

quem ele realmente quer. Que vença a melhor.

– Que vença a melhor – disse as outras em uníssono.

***

– Mamãe, por favor, leve-me para conhecer o nobre

cavalheiro, por favor, mamãe – disse Maria Jandira, toda faceira,

após suas irmãs dormirem e se dirigir até o atelier de sua mãe que

sempre costurava até tarde da noite.

Sua mãe tirou os óculos da têmpora, pôs em cima de sua

escrivaninha, e disse:

– Ora, lha; não me é de convir isto. Sabes muito bem

que não temos homem na família. Não posso ir até a casa de um

senhor, ao qual nem conheço, e pedir permissão para lhe saudar.

Isso soa imoral.

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– Mas somos da família Carmo, mamãe; e este sobrenome

é bastante relevante.

– Sim, Maria Jandira, pode ter certeza disto. Mas você

está ciente de que a nossa riqueza está entrando em escassez.Nós não pertencemos mais à alta sociedade. Seu pai Jurandir só

nos deixou dívidas e mais dívidas.

– Evite-me a lembrar disto, mamãe, por favor – disse

Maria Jandira, com asco.

– Escute, não se reprima, Maria Jandira. Haverá outros

meios de você se apresentar a este homem.

Maria Jandira já ia subindo às escadas, bastante

cabisbaixa, quando a mãe falou:

– Ah! – disse de súbito, após lhe vir uma condescendente

reminiscência. – A festa junina da nossa cidade não é neste nal

de semana? Será uma ótima oportunidade de você o conhecer,

não é verdade?! O que você acha?

– Sim, mamãe. Havia esquecido a festa junina – disse a

jovem num eriçamento de pelos.

Aquela ideia amenizou os anseios da moça que subiu as

escadas e voltou para o seu quarto, cantarolando uma canção

quase inaudível e sem nenhuma vontade de dormir.

Maria Jandira era uma jovem dama que sempre sonhara

em se casar e, que sempre em sua janela, cogitava seus possíveis

maridos. Adorava um bom baile e uma boa festa de São João.

Adorava também as comidas típicas, como: mingau de milho,

canjica, bolo de macaxeira, pamonha, bolo de fubá, dentre outras

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deliciosas guloseimas.

Era conhecida como a namoradeira da cidade. De

fato, a menina era demasiado linda. Possuía um lindo cabelo

encaracolado que cobria toda a sua face vermelha como a cordo jambo. Todos os homens da cidade já lhe haviam pedido em

casamento, porém a moça negava ao pedido de todos.

– Minha lha é jovem demais para se casar! – dizia a sua

mãe quando homens vividos vinham até a casa desta pedindo a

lha em casamento.

No entanto, nesta pequena vila de Altamira, morava um

jovem que jamais havia se declarado à moça, por ser demasiado

tímido. Suas declarações eram apenas feitas através de cartinhas

escritas por sua irmã que não apoiava aquela paixão inútil do

irmão, como a própria falava. Sua irmã conhecia muito bem Maria

Jandira. Ela jamais daria uma chance ao jovem, por ser um rústico

do campo que nem sequer sabia ler e escrever. Mas o homem

não desistia e, através de pequenos alcoviteiros, enviava as

cartas que nunca eram correspondidas. Seu nome era Francisco,

mais conhecido como Chico da Carroça. Este daria até a sua vida

pela linda Maria Jandira.

Enm o dia 24 de junho chegara, e com ela uma grande

festa atraindo pessoas de todos os estados do Brasil. No

entanto, esta festa cou marcada pelo o horripilante desfecho

que sucedera.

No aglomerado de pessoas que dançavam e curtiam

as músicas de São João, Maria Jandira enxergou um lindo

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jovem que apreciava uma fogueira que estava montada bem

no centro da festa. De súbito Maria Jandira se encantou pelo o

rapaz, vestido de rosa, que possuía um chapéu da mesma cor. O

homem, instintivamente, percebeu que estava sendo encaradopor alguém. Diretamente seus olhos se dirigiram para a Maria

Jandira que se assustou com o repente do rapaz. Aquele olhar

atirou várias echas no coração da jovem que, submissa ao amor,

se entregava imensamente. O homem, então, fez-lhe um breve

aceno e este foi bem correspondido, pois a moça utuava na

direção do rapaz.

– Você aceita uma dança? – perguntou o homem.

Maria Jandira prontamente assentiu.

O homem dançava divinamente e tinha um cheiro

bastante agradável como ores de um igarapé. Aquele agradável

odor se emanava por toda a festa e atraia olhares de todos os

cantos da festa. As irmãs de Maria Jandira caram enciumadas e

não pouparam ofensas banais a irmã.

Dançaram por longos instantes e logo se afastaram da

multidão.

– Você quer ir para um lugar mais calmo, minha deusa do

mar? – perguntou ele.

– Sim – disse ela.

  Porém os dois não sabiam que estavam sendo

perseguido pelo o jovem Chico da Carroça. Este os seguia.

Um ciúme inaudito tomou conta do jovem Chico da

carroça. O Homem, que segurava a mão da moça, e que dizia

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que suas riquezas provinham do mar, era um príncipe perto do

humilde e rústico Chico da carroça.

Maria Jandira e o estranho desbravavam matas e a moça

sentia-se arrependida de ter se afastado da multidão. O homema levava na direção de um rio que se localiza ao norte da cidade.

– O que será que ele quer comigo? – monologou a moça.

– Que se dane! Vou até o m com isso.

Cruzaram vários caminhos nunca transitados. A mata

virgem soltava o seu odor ao serem pisoteadas. A escuridão era

às vezes importunada por vagalumes que vagueavam por ali.

A paixão de Maria oscilou por uns instantes, mas assim

que eles chegaram nalmente ao ermo rio, o homem deu um

longo beijo que lhe tirou todo o receio de lhe seguir. Maria

Jandira, por conselhos de sua mãe e do povo supersticioso, por

diversas vezes havia tentado tirar o chapéu do moço, mas este

sempre lhe repelia.

Durante o longo beijo do casal, Chico da carroça

surgiu e teve uma reação que nem o próprio esperava. Gritou,

desesperadamente:

– Você nem conhece ele, Maria!

Maria Jandira olhou para Chico, e disse com desalinho:

– E eu, te conheço?

– Como assim, Maria?! Eu que sempre capinei o terreno

de seu falecido pai. Éramos até amigos.

– Pois não o conheço. Agora suma daqui!

– Mas, Maria...

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– Égua, moleque. Cai fora daqui! – disse Maria Jandira,

impetuosamente.

Chico da Carroça se sentiu humilhado pela moça. Então

decidiu ir embora; porém uma intuição terrível lhe incitava avoltar.

Ao se aproximar novamente do rio, Chico da carroça

vislumbrou uma cena funestíssima:

O estranho homem cor de rosa começou a sofrer uma

mutação horrenda que Chico da carroça denominou como

demoníaca. As vestes do homem foram todas rasgadas e seu

corpo foi possuindo uma massa lisa e pastosa. Sua cabeça cou

do formato de um boto e seus membros viraram barbatanas.

Maria Jandira gritou desesperadamente, porém tarde demais,

pois o abominável animal mergulhou para o fundo do rio levando

a consigo para de lá nunca mais voltar.

Chico da carroça bem que tentou correr para salvar a

sua amada, mergulhando no rio. Mas os dois haviam realmente

sumido.

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O FOGO DE ANGATU

Wilson Faws

O operador de câmera fazia os últimos ajustes,

enquanto Mariana tomava um gole d’água. Tratores trabalhavam

derrubando árvores não muito longe.

– Pronta, Mari?

– Estou sempre pronta, Marcos.

– Gravando em 3... 2... 1.

– Bom dia. Aqui é Mariana Lin, falando da cidade de

Angatu, sul do Amapá, onde está em fase inicial a construção da

maior usina hidrelétrica do país desde Belo Monte. Em Macapá,

porém, os protestos aumentam a cada dia. Mais de 200 pessoas,

entre índios, moradores e ONGs voltadas ao meio ambiente,

estão acampadas em frente ao Palácio do Setentrião. A revolta

se deve a um artigo que circulou nas redes sociais que prevê a

devastação pela usina de uma área orestal dez vezes maior do

que o anunciado. O Ministro de Meio Ambiente, por outro lado,

desmentiu esses boatos...

Um forte barulho pegou-os de surpresa. Um condutor

desceu irritado de seu trator.

– Parece que surgiu um problema por aqui, vamos

conversar agora com um trabalhador da obra – fez sinal para

Marcos acompanhá-la. – Senhor, estamos em rede nacional,

poderia, por favor, nos explicar o que está havendo?

– Já é o quinto essa semana! O motor dessas porcarias

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esquenta sem motivo! A gente paga os nossos impostos, tem

família pra alimentar, trabalha 16 horas por dia, mas desse jeito

não dá, a gente não tem nem instrumento pra fazer o nosso

trabalho!Agradeceu o condutor e se voltou para a câmera.

– Aparentemente, não é o primeiro trator com problemas

essa semana. O que não está claro é se os veículos não foram

projetados para aguentar esse trabalho, ou se houve sabotagem

por parte dos manifestantes, que já ameaçaram impedir a

construção da usina a todo custo. Voltaremos em breve com

mais informações.

Marcos desligou a câmera, e caminhou com a repórter.

Antes de chegarem à caminhonete, Mariana foi surpreendida por

uma luz no meio das árvores que ofuscou sua visão. Parou para

tomar outro gole d’água.

– É muito fácil pegarmos insolação nesse lugar. Vamos

passar no centro para tomar um café da manhã decente, e depois

voltamos pra rodovia. Temos horário marcado com o Ministro na

capital.

– Sabotagem por parte dos manifestantes?

– Já sei o que você vai dizer. Não tem nada a ver com a

minha mãe.

– Você acabou de acusá-los sem motivo!

O tom de voz da repórter aumentou.

– É porque é sempre a mesma coisa, Marcos. Quando

o país começa nalmente a andar pra frente, aparecem pessoas

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querendo criar problemas. Minha mãe veio pro Brasil por causa

dessa usina e deu a vida por ela!

Sem perceber, Mariana começou a gritar.

– Seria muito melhor se as pessoas usassem a cabeçapara dar um jeito de minimizar esses impactos, ao invés de car

fazendo ameaças e revoltas! Isso nunca muda nada, só gera

violência, e pessoas acabam morrendo!

Marcos a interrompeu com um abraço. Os olhos da

repórter estavam em lágrimas.

– Calma, amiga... Você já está fazendo o seu melhor.

Mariana soltou o amigo e secou os olhos.

– Ministro.

– Ministro – respondeu Marcos, entendendo o recado.

***

Meia hora depois de terem partido em direção ao centro

urbano de Angatu, a caminhonete parou no meio da estrada.

Marcos foi o primeiro a sentir o cheiro.

– Mari, desce do carro!

Ambos desceram em meio ao odor de queimado.

Olharam em volta. Apenas árvores e mato nos dois lados da

estrada. Procuraram algum sinal de celular, mas logo desistiram.

– Não tem como os manifestantes terem feito isso –

disse Mariana, decepcionada. – Não há ninguém por aqui.

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– Você precisa de um psicólogo, amiga. Vou checar a

caminhonete.

Marcos abriu a tampa dianteira do veículo, e após

dispersar a fumaça, percebeu que parte do motor havia derretidoe o radiador estava completamente seco. Viu algumas coisas

queimadas, e tentou tirar outras do lugar, mas já não importava

mais.

– Essa tralha não vai pra lugar nenhum, vamos ter que

voltar a pé pra construção... Mari?

Ela havia desaparecido.

***

Minutos atrás, Mariana vira novamente uma luz passar

no meio das árvores, rápida como um relâmpago. Sua vista cou

marcada com um risco laranja quando fechou os olhos, e só por

isso não pensou estar alucinando. Não poderia ser coincidência.

Viu Marcos ocupado com a caminhonete. Ele a recriminaria pelo

que estava prestes a fazer, então decidiu não falar nada. Pegou

uma pequena câmera de mão emprestada e entrou na oresta

atrás do responsável pela sabotagem.

Perto de onde vira a luz, Mariana encontrou um rastro,

uma trilha de folhas e galhos queimados que, por algum milagre,

não causaram um enorme incêndio na oresta. Seguiu-a,

passando por pequenas elevações seguidas de declives, e só

depois de algum tempo notou que os sons dos animais haviam

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cessado. Ligou a câmera e caminhou mais devagar, enquanto

tentava justicar para si mesma o risco que corria.

Subiu mais uma elevação, e se viu em uma clareira. Ao

redor, um conjunto de árvores em tom avermelhado formavamuma espécie de muro. Eram retorcidas e seus galhos continuavam

umas nas outras, como se fossem um único ser vivo. Mariana

começou a lmar, e só quando deu uma volta completa percebeu

que o local por onde entrara também estava coberto pelas

árvores. Não teve tempo de se desesperar, pois sentiu um calor

intenso em suas costas.

Ao se virar, a impressão que Mariana teve foi a de estar

cara a cara com uma enorme fogueira. As chamas preenchiam

toda a sua vista, e do meio delas, dois grandes olhos a encaravam.

As chamas se afastaram, e Mariana reconheceu um formato

esguio. O ser se assemelhava a uma cobra de fogo, maior que

qualquer outro réptil vivo. Seu corpo era grosso como as maiores

árvores que vira por ali, e as escamas de sua pele dourada se

pareciam com novos olhos espelhados pelo corpo. O corpo mal

cabia no espaço da clareira, e a altura de seu rosto passava a de

Mariana.

A repórter só teve reação quando sentiu sua mão

queimar. Gritou de susto. A câmera caiu na grama e derreteu,

virando uma pasta negra. Encarou a cobra majestosa e tomou

coragem para iniciar um diálogo.

– Quem é você? Por que me trouxe até aqui?

A criatura não respondeu, mas seu corpo explodiu em

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chamas ainda mais altas. Mariana reparou que o fogo entrava em

contato com as árvores ao redor, mas não as queimava. Viu então

as chamas se virarem em sua direção. Afastou-se, com medo, até

chegar ao limite da clareira, de onde não tinha mais escapatória.– Pare! Por que você está fazendo isso? Socorro!

Foi atingida. Abriu os olhos. Ainda estava viva, e só havia

fogo à sua volta. Céu e chão eram feitos de chamas. Olhou para

o lado e viu uma mesa de escritório, perdida no meio do fogaréu.

Sentado à mesa, reconheceu o ministro responsável pela usina.

No outro lado, em pé, uma senhora de feições orientais e muito

irritadas. Ao ver sua mãe ainda viva falando com o ministro,

Mariana soube estar presenciando a visão de um passado

distante.

– É um absurdo! Como você foi capaz de permitir que

ocultassem todas essas informações? Não foi pra isso que eu vim

pra cá!

– Sra. Lin, eu sei que você está nervosa, mas me deixe

explicar...

– Explicar o quê? Como se explica isso? Você vai extinguir

espécies inteiras, ribeirinhos carão sem ter onde morar! É um

crime! Você não se importa com a nação, nem com o meio

ambiente!

– Se quiser deixar o projeto, que à vontade! Você não é

desse país, Sra. Lin, e não sabe como as coisas são feitas por aqui.

– Vou deixar sim o projeto, mas não somente isso. Vou dizer

pra todo mundo o que você está fazendo. Vai ouvir notícias minhas.

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Mariana viu-a se virar para ir embora, e então ouviu um

estrondo. Sua mãe caiu para frente, sem vida. O ministro guardou

a arma, e discou um número no ramal. Logo, dois seguranças

apareceram, sem se importarem com o corpo estirado em suafrente.

– Tirem ela daqui. Provoquem um tumulto com os

manifestantes, e façam parecer que foi culpa deles.

Os homens carregaram o corpo, enquanto Mariana se

via de volta à clareira, agora vazia. Ficou em choque por algum

tempo, com calafrios e o corpo inteiro tremendo, enquanto

digeria o que acabara de acontecer.

***

Marcos viu a repórter sair do meio do matagal.

– Mari! Onde você estava? Consegui sinal e chamei um

guincho, vai dar tempo de falarmos com o Ministro!

– Não vamos falar com o ministro.

– E talvez a gente ainda consiga comer um lanche antes...

Espera... O que você falou?

***

Três horas mais tarde, o táxi parou a uma quadra do

Palácio do Setentrião.

– Você não acredita, não é?

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– Olha, Mari... É difícil aceitar assim a parte da cobra

apocalíptica. Mas eu acredito no que houve com sua mãe. Pode ter

sido uma memória reprimida, e o sol pode ter feito você ver coisas.

– É o suciente. Obrigada, Marcos.

Desceram do veículo. Mas ao invés de se dirigirem à entrada

do palácio, foram em direção ao acampamento dos manifestantes.

Após um burburinho entre os mesmos, um homem forte, rosto

fechado, vestido de maneira casual e com traços levemente indígenas

parou no caminho de Mariana e esperou que ela se aproximasse.

– Boa tarde. Meu nome é Mariana Lin. Você é o líder desse

pessoal?

– Esse pessoal existiria sem mim, mas sim, estou

representando o movimento. Quem é você, jornalista? Se veio para

nos esculachar, como todos os outros, já peço agora que não perca

seu tempo.

– De maneira nenhuma, não é por isso que estou aqui.

Gostaria de expor a opinião e os argumentos dos manifestantes em

rede nacional, para ajudar vocês a combater os absurdos que estão

cometendo aqui. Você aceitaria ser entrevistado?

O homem de rosto fechado sorriu. Marcos começou a

montar os aparelhos. Mariana não sabia se essa entrevista poderia ser

exibida, nem em que problemas estaria se metendo, considerando

o nível de corrupção envolvida. Mas sabia que faria o país car

sabendo daquilo, de uma forma ou de outra. E assim poderia dizer

que honrou, enm, a memória e o trabalho de sua mãe.

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A PROPOSTA

Santiago Castro

A conversa já se arrastava por horas. De um lado,

Valter Dogmus, que tinha uma proposta de trabalho ao médico

Luiz Vergueiro. Valter estava doente, e tinha convicção de que

morreria logo. Queria contratar o médico não para si, mas para a

esposa, Janice. Havia dois problemas na questão: primeiro, Luiz

morava na Amazônia, e não tinha interesse de mudar para Porto

Alegre, onde estavam. O segundo, por mais que Valter oferecesse

um salário muito acima do mercado, não cava claro porque uma

jovem mulher e sem nenhuma doença aparente precisava de um

médico a pajeando.

Eram dois homens de personalidade forte. Luiz era

alguém notável, até os 12 anos analfabeto, índio da tribo dos

Kambebas, na alta Amazônia. Uma vez alfabetizado, prosseguiu

nos estudos até se tornar um dos poucos índios no Brasil que

concluiu o estudo superior. Depois de formado, frequentava

aldeias, não apenas cuidando da saúde, mas também defendendo

que a educação era o melhor caminho para a liberdade e

crescimento dos índios.

Já Valter era um empresário bem sucedido, envolto em

mistérios e semirrecluso em sua grande casa. Não tinha lhos,

mas tinha uma bela esposa, bem mais jovem do que ele. Entrou

em contato com Luiz, marcando um encontro em Porto Alegre e

pagando todas as despesas. Luiz, a princípio, cou curioso: que

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proposta não poderia ser feita por telefone? Que especialidade

poderia ele ter que outros médicos do sul não tivessem? Mas

precisava de uma folga, e viu com bons olhos uma visita paga

a uma cidade que não conhecia. Quanto a proposta, não tinhailusões. A distância era muito longa para justicar o investimento,

pois médicos, com certeza, não deviam faltar numa capital como

Porto Alegre.

Mas Valter queria contratar Luiz e dinheiro não seria

problema. Ofereceu três vezes o que ganharia um médico de

ponta em qualquer hospital do mundo. A proposta era absurda

em todos os sentidos: Luiz deveria se mudar não apenas para

Porto Alegre, mas para a casa do empresário. Sua única obrigação

seria com Janice, se ela precisasse. E pelo incômodo relativo à

mudança ainda teria um bônus em dinheiro, além do salário.

Luiz achou a proposta um tanto absurda, mas em seguida

cou intrigado. Pediu uma conversa franca, sabia que não era

um dos mais classicados médicos do país. Sentia que havia algo

de estranho na história, ilícito talvez, e não estava disposto a ir

para a cadeia por qualquer valor que fosse. Valter o olhou por

uns segundos, e mudou o tom da conversa. Acendeu um cigarro,

bebeu um gole de café e disse:

– O senhor não foi selecionado apenas por ser médico,

embora isso seja um plus, denitivamente. Foi escolhido por um

artigo seu que li no qual o senhor menciona ser um crente nos

antigos mitos amazonenses. Reli diversas vezes, e considero um

dos melhores já escritos.

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Luiz não entendeu a menção: tinha escrito esse artigo

para uma revista obscura, onde dizia, entre outras coisas, que

a falta de instrução é o motivo de tantas superstições pelos

índios. Para provar, narrava um fato acontecido ainda quandocriança, quando um tio seu entrou no rio e morreu afogado. A

tribo culpou seres sobrenaturais, quando o mais provável era

que seu tio estava alcoolizado e morreu por acidente. Há tempos

não tocava no assunto, pois muitos diziam que havia uma grande

ambiguidade no artigo. Luiz mencionava ter visto uma mulher ao

longe, que de braços abertos chamava o tio. Mas não dizia ser

fruto da imaginação de uma criança ou uma visão sobrenatural.

Há muito se esquecera do artigo, até ser desenterrado por Valter.

– O senhor me faz viajar mais de 3.000 km e cita um

artigo que já me trouxe dissabores. Veja bem, sou um médico,

há muito abandonei a ignorância que tinha antes de estudar.

Não tenho interesse numa mudança, e não vejo o que poderia

fazer de diferente que qualquer outro médico aqui mesmo de

sua cidade não pudesse fazer. Agradeço-lhe o convite, mas devo

recusar. Agora, se me dá licença...

– O senhor nunca se perguntou se ela realmente existe?

– Ela quem? – pela primeira vez Luiz sentiu que talvez a

viagem tivesse sido um erro.

– Não importa. Antes de o senhor partir, deixe eu lhe

mostrar uma coisa. Não queria chegar a esse ponto, achei que

poderíamos acertar isso com mais facilidade. Quero sua opinião

sobre um assunto e lhe deixo em paz. O senhor se importa?

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– Opinião sobre o que? – estava visivelmente irritado e

queria sair logo dali.

Valter saiu em silêncio, o que fez Luiz car ainda mais

incomodado. Começou a pensar que o homem era mentalmentedesequilibrado, e pensou se devia temer pela própria segurança.

Além disso, a mulher era provavelmente mimada por um rico

marido acostumado a comprar tudo. Mesmo que aceitasse

a oferta não se imaginava trabalhando para alguém assim.

Depositou a xícara de café numa mesinha quando percebeu que

Valter tinha voltado. E não estava sozinho.

– Senhor Luiz, lhe apresento Janice, minha esposa.

Luiz cou intimidado pela bela mulher que entrou.

Estendeu a mão, gesto que ela não revidou. Era morena, cabelos

compridos, realmente bela, mas não simpática. Aliás, não sorriu

nem disse coisa alguma. Valter quebrou o silêncio.

– Senhor Luiz, eu a conheci há 45 anos, quando fazia

uma pescaria no Rio Xingu. Ela podia ter me afogado, mas por

algum motivo me pediu pra cuidar dela. E eu venho fazendo isso

desde então.

Luiz não ouviu o que ele disse. Estava fascinado por

aquela mulher. Percebeu que seus longos cabelos se mexiam,

como se fossem pequenas serpentes. Valter o cutucou no peito.

– O senhor não sabe, mas já a conheceu. E ela se lembra

do senhor.

Luiz acordou do transe e num ímpeto quis sair. Ambos

estavam um pouco a sua frente, entre a porta, e se deteve

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pensando como faria para passar por eles.

– Essa é a Iara, embora atualmente prera ser chamada

de Janice. Ela quer que o senhor cuide dela, e seu conhecimento

como médico e índio pode lhe ajudar a ser melhor do eu.Um misto de confusão e surpresa o atingiu, e tentou

sair correndo, mas um empurrão brusco de Valter o jogou

contra a cadeira. Luiz instintivamente pegou um peso de papel

na escrivaninha e se preparou para se defender, quando a

mulher começou a cantar. Primeiro, o peso lhe caiu das mãos,

e lentamente uma sensação de torpor e bem-estar foi tomando

conta do seu corpo. Valter chorava, embriagado pelos efeitos

de tantos anos ouvindo a Iara cantar. E Luiz, que já não sentia

mais nada, lembrou-se daquela música ouvida quando era uma

criança, e agora sua única vontade era car ali e nunca mais partir.

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A PEDRA VERDE DAS ICAMIABAS

J. L. Costa

Eram brancas e altas, tinham longos cabelos trançados e enrolados

na cabeça, eram muito robustas e estavam nuas, com as partes

íntimas cobertas, lutando tanto quanto dez índios homens.

Frei Gaspar de Carvajal, séc. XVI

— Nikola Tesla e Percy Fawcett? Isso não faz sentido,

Belchior.

— Estamos em 1954, Noah. E, pasme: negócios ainda

são negócios. Agora reme.

Cortavam caminho pelas jaçanãs que, em época de

polinização, banhavam o Rio Nhamundá com suas ores cor-de-

rosa. Belchior empunhava — e mirava o vazio ora ou outra — seu

Winchester 44, herança de família. Noah se agarrava aos remos.

Da oresta que, sombria, se apresentava a eles nas margens do

rio, podia-se ouvir o canto do uirapuru e o cheiro adocicado das

frutas tropicais, mas, das amazonas, nem sinal.

— Preciso de uma arma também — disse Noah.

— Não. Você precisa remar — disse Belchior. — E se

apresse. Não queremos estar tão vulneráveis nesse barco ao

anoitecer. Temos de chegar logo ao nosso destino. Sua alma está

segura em minhas mãos, Noah. Sou seu guia e seu guarda-costas.

— É isso o que me preocupa. Você nunca disparou um

rie. Na verdade, não me lembro de você ter pegado em armas

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alguma vez na vida.

— Enquanto você estava ertando com as francesas

em Paris (com a velha desculpa do gosto pelo estudo), eu cuidei

de fazer algo mais útil. Participei de alguns clubes de caça que opapai me indicou. Se quer saber, em Minas Gerais, há um retrato

meu em algum deles. Participei de uma competição de tiro e,

bem, não fui tão mal. Recebi um prêmio por distinção inesperada.

Aquilo, de alguma forma, não havia acalmado os ares de

Noah. Talvez os igapós ao seu redor o intimidassem o bastante

para que seu organismo evitasse sair do estado de alerta. Bruto,

com raiva, forçou os remos contra as águas escuras do Rio

Nhamundá e acelerou a canoa. Cravou os olhos em Belchior —

ele parecia estar prestes a matar algo ou alguém escondido nas

folhagens que margeavam o rio.

— Belchior?

Ele baixou a arma.

— Diga, Noah.

— Você não é o guia. E você sabe disso.

— Talvez. Mas Colombo também tinha uma bússola.

Eram jovens, ainda idealistas, um mais que o outro. Era

provável que, se assim não fossem, não estariam ali. Na verdade,

para Noah, não deveriam estar. Belchior ao menos tinha barba,

botas de couro melhores que as suas e um rie. E Noah? Talvez

pudesse dizer a si mesmo que dispunha de dois perigosos e

mortíferos remos de uma canoa roubada — mas ocialmente

emprestada de um velho ranzinza do porto. Tudo isso para quê?

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Para seguir os sonhos malucos de seu irmão, o primogênito, o

experiente, o responsável... e o mais burro. Ganância tinha limite.

E, quando você passa a acreditar numa bússola mágica, bem, o

limite já foi ultrapassado há séculos.— Posso dar mais uma olhada?

— Você precisa remar. Reme, irmão. Reme.

Noah largou os remos. A canoa parou.

— Belchior — disse Noah, em tom grave. — Se vou

morrer por algo estúpido, eu exijo saber pelo menos mais

detalhes dessa estupidez.

— Primeiro, você não vai morrer. E, segundo, as

amazonas não são estúpidas, Noah. As francesas podem até ser.

Mas não as guerreiras amazonas de Heródoto. Você sabia que o

próprio Hércules já enfrentou uma delas?

— Você fala de seres imaginários como se fossem

mesmo reais.

Belchior riu.

— Noah, se você não acreditasse nisso tanto quanto eu,

por que estaria aqui comigo, navegando num dos rios obscuros

das narrações de Carvajal sobre sua odisseia, no meio de uma

oresta tropical, em busca de um tesouro hipotético de uma

civilização ainda mais hipotética?

— Eu não sei — foi tudo o que Noah conseguiu responder.

— Ora, pois! Então reme.

— Eu quero ver a bússola. E a pedra também.

— Você sabe que os dois só trabalham em conjunto.

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— Mostre-os logo de uma vez!

— Tudo bem, tudo bem. Não há razões para gritar.

Aliás, é melhor que não grite mesmo — sua voz cou ainda mais

sarcástica. — Não sabemos se ainda existem índios nessa região.E muito menos se são canibais.

— Não sei como papai aguenta você...

Belchior, então, largou a arma no casco da canoa. De um

dos bolsos, pegou o que parecia ser uma bússola comum, mas

sem a típica agulha magnética. Depois, de seu pescoço, tirou um

colar com uma pequena pedra verde e irregular como pingente.

Em seguida, estendeu suas mãos na direção de seu irmão.

— Noah, Noah... — disse ele, recuando — Estou de olho

em você. Há um motivo muito claro que para eu que com isso

e com a arma de vovô. Você é o único aqui que poderia colocar

tudo a perder. Se, por acaso, você enlouquecer e jogar nosso

único mapa nesse rio, vou fazer questão de te ensinar a nadar. E

no meio de jacarés.

— Muito engraçado, Belchior. Muito engraçado. — E,

pondo enm as mãos na pedra e na bússola, continuou: — Agora

me conte, que relação Nikola Tesla, um físico sérvio-americano,

tinha com Percy Fawcett, um explorador britânico louco que foi

morto por índios?

Belchior coçou a barba.

— A mesma, irmão, que esse misterioso Fawcett tinha

com a Rainha Vitória. Ou com o MI6, o serviço secreto inglês. Eu já

te disse. Esse louco não era tão louco assim. Tinha bons contatos

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e muita coragem. Sim, tudo bem, ele teve o azar de não ser tão

bem recebido pela tribo dos kalapalos, mas o que realmente

importa é o que ele foi fazer em Mato Grosso.

— El Dorado.— Sim, ele era queria encontrar a mitológica Cidade de

Ouro. E, como sabemos, ele tinha quem patrocinasse essa busca.

Mas, ao contrário do que se pensa, ele não era tão intuitivo.

— Ele tinha um mapa.

— O mesmo que você segura agora.

Anoitecia. De tão calmas que estavam, as águas pareciam

um espelho, reetindo a espessa ora ao redor. Mergulhada no

Rio Nhamundá, a oresta espelhada parecia tão real quando a

original.

— Ele, Fawcett — prosseguiu Belchior —, descobriu a

pedra-chave ao acaso, numa de suas expedições seguindo o Rio

Negro, na Amazônia.

— Não consigo acreditar que ele encontrou, por sorte,

o esqueleto de um aventureiro espanhol caolho do século XVI.

— Você não precisa acreditar. O fato é que isso

aconteceu. Mas, bem, ele não encontrou o esqueleto de Francisco

de Orellana. Só o crânio, na verdade. Lá estava, na cavidade do

olho esquerdo, um muiraquitã real, feito por uma das icamiabas,

como caram conhecidas as amazonas na América do Sul. Aquele

idiota do Orellana escondia uma chave extradimensional no olho

e nunca se deu conta. Deve ter guardado como troféu, depois

que enfrentou as echas das icamiabas numa de suas incursões.

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Noah agora olhava para a minúscula pedra verde que

segurava.

— E o que você faz para isso funcionar?

— Você me chamaria de bruxo se soubesse. Ou, nomínimo, permaneceria cético.

— Belchior, você me trouxe até aqui e narrou uma

história digna de Monteiro Lobato. Já está na hora de revelar

seus segredos. Ou está com medo de comprovar sua insanidade?

A noite, enm, havia chegado. As jaçanãs, estrelas da

água, davam lugar às do céu.

Belchior suspirou.

— Erga o muiraquitã sobre a bússola — e, nas primeiras

palavras, já sentiu o semblante fechado do irmão mais novo. —

É um sistema eletromagnético, Noah. Aparentemente, Tesla de

fato já estudava portais para outras dimensões. Percy Fawcett

foi um instrumento perfeito.

— Estamos na Amazônia. Por que Fawcett foi para o

Mato Grosso?

— Pelo que pesquisei, esses portais são como ranhuras

xas no tecido da realidade, fendas dimensionais, mas que se

abrem aleatoriamente pelo globo. É um conceito muito abstrato,

mas real. Há quase uma década atrás, em 1945, a própria marinha

norte-americana perdeu cinco aviões numa dessas fendas, numa

região que vem sendo denominada de Triângulo das Bermudas.

Antes, com Fawcett, o muiraquitã apontava para o Mato Grosso.

Agora, conosco, nos guiou para cá. E, antes que pergunte, é

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óbvio que a bússola não foi dada a mim pelo próprio Tesla. Ah! E

foi adquirida legalmente, mas num comércio restrito.

— Papai disse que você anda mexendo com ocultismo.

É verdade?— Erga o muiraquitã, Noah! As guerreiras amazonas

estão prestes a nos revelar nada menos que El Dorado e toda a

riqueza e glória do mundo, e você ca aí, brincando de Sherlock

Holmes. Aliás, sabia que Fawcett era amigo de Conan Doyle?

Por alguma razão, Noah não se mexeu.

— Noah? — disse Belchior, sem resposta. — Se não vai

usar a bússola, devolva.

— Não.

Por perto, um peixe parecia ter saltado. Na copa das

árvores, pequenos olhos agravam uma inquietude na harmonia

da oresta. Vagalumes, aqui e ali, surgiam e sumiam na escuridão.

— Noah — Belchior estava ofegante —, não brinque

comigo.

Abaixou-se, devagar. Empunhava novamente o

Winchester 44.

— Vai me matar? — disse Noah.

— É apenas um incentivo. Uma brincadeira também. Erga

o muiraquitã sobre a bússola e veja que estou lúcido e falando a

verdade. Amanhã, estaremos rindo disso tudo, Noah, mas ricos.

— E se não funcionar?

— Faça o que eu disse! — sua arma já estava apontada

para o rosto de Noah.

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Estava quase tão claro quanto o dia. A lua e as constelações

iluminavam os rostos dos dois irmãos. Noah estava tenso. Ergueu o

colar e o posicionou acima da bússola de Belchior. Nada aconteceu.

Belchior estava pálido.— O que você fez, Noah? Isso... Isso deveria se mover!

Devolva-me.

— Vamos para casa, Belchior.

— Cale-se! Ninguém vai voltar até eu ver diamantes

jorrando de uma cachoeira!

A arma continuava apontada para Noah. Ele estendeu o

braço. Segurava o colar. O muiraquitã prestes a afundar na oresta

espelhada do Rio Nhamundá.

— Não se atreva a fazer isso, Noah!

Dedos se abriram. Um estrondo irrompeu o silêncio da

noite.

Um corpo caiu. Uma pedra afundou.

Belchior saltou nas águas. Mergulhou, cada vez mais

fundo. Devia salvar o muiraquitã. Estava sem ar, tonto, mas tinha

de tentar! Braçadas mais largas, olhar mais atento nas águas turvas

do rio.

De repente, algo ofuscou ainda mais sua visão.

Via, quase podia tocar, pirâmides inteiras de ouro. Ruas

ladrilhadas com rubis. Ocas decoradas com jade. Ao seu redor,

mulheres nuas nadavam. Apontavam para uma cachoeira.

De diamantes.

Mas isso Belchior não conseguiu ver.

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GUARDIÕES

Francélia Pereira

Um vento forte levanta as folhas caídas na oresta e faz

com que as copas das árvores dancem freneticamente. Um grupo

de homens corre entre a vegetação, eles estão desesperados,

gritando... O pânico parece mortal, eles sentem que o medo seria

suciente para fazer seus corações pararem, mas a adrenalina

liberada por seus corpos os impede de cair no chão, e eles

correm, correm, correm... Eliminando, sem perceber, todos os

obstáculos que aparecem; e quando algum deles cai, é pisoteado

pelo grupo ensandecido. E o vento sopra, cada vez mais forte...

Eles não imaginavam o que estava para acontecer quando saíram

da fazenda, na manhã daquele dia.

O motor do velho caminhão começa a roncar, os homens

já estão acomodados na carroceria, todos armados. Quando o

veículo começa a partir, um homem chega correndo, com seu

rie nas costas; os colegas o ajudam a subir e o motorista acelera

no chão de terra vermelha, úmida.

— Diacho, homi. Ocê tá sempre atrasado. Uma hora o

Coroné te manda embora...

— Disculpa, Zé!

— Num sei o quê minha irmã viu nocê, Rudrigo.

José, o Zé, era um homem de aproximadamente

quarenta anos, era capataz na fazenda de Henrique, chamado

de Coronel por seus funcionários, há quase vinte anos; a pedido

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da irmã conseguiu o emprego para o cunhado, o Rodrigo, que

era bem jovem e havia se casado recentemente. Grande parte

da população daquela região era de descendentes de indígenas

tradicionais, que tinham se perdido de suas raízes ancestraishá algumas gerações. Agora eram vistos como “brancos”,

denominação utilizada para diferenciar as pessoas que não

viviam de acordo com as tradições da terra.

O caminhão segue por uma estrada precária, após pouco

mais de uma hora, ele entra em um caminho aberto no mato e

para na entrada da Floresta. O motorista e os caronas abrem as

portas; os homens da carroceria começam a descer aos saltos.

Quando saltam do veículo, suas botas esmagam a vegetação

rasteira que se mistura com a terra molhada. Uma chuva na cai.

— Ei, vamos... Não temos o dia todo. — O líder do

grupo diz em tom ameaçador. Era o Geraldo, um dos homens de

conança do Coronel.

Os homens entram na oresta e seguem andando de

vagar, sempre atentos, como se estivessem perto de acuar um

animal feroz. Parecia uma caçada... E era.

De repente, algumas folhas se mexem. Geraldo pede

silêncio. Um dos homens fala baixo perto do ouvido dele.

— Eles já sabem que estamos aqui... Vamos embora...

Geraldo olha para o homem com uma expressão

ameaçadora, então continua seguindo em frente, bem de vagar

e, sem olhar para trás, faz sinal para que todos o sigam.

Os homens caminham apreensivos, Rodrigo é um dos

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com os cabelos deles. Enquanto o grupo segue em frente, o

homem olha para trás e não acredita no que vê. Instintivamente

ele começa a correr desesperado. Ele empurra os homens à sua

frente, querendo passagem. Quando esbarra em um deles éjogado no chão.

— Tá maluco, homi!

— Vamos morrer...

— Que morrer o quê...

Outro homem olha para trás.

— Virge! A muié tava certa, o demônio ixiste mermo...

Todos olham para o que estava se aproximando. Era

algo sobrenatural. Um redemoinho enorme dentro da oresta,

mas que não atingia a vegetação. Parecia um fantasma girando

e girando, mas somente um vento moderado era sentido pela

Natureza ao redor dele. Raios começaram a faiscar e dois olhos

ameaçadores puderam ser vistos por trás dos ventos ferozes.

Os homens gritam e começam a fugir desesperados. Geraldo

segue à frente, e quando olha para trás pode ver o redemoinho

engolindo um dos homens e cuspindo para todos os cantos seus

pedaços dilacerados. O terror quase congela suas pernas.

O furacão se divide, e parece direcionar os homens

para o mesmo lugar. O grupo se junta novamente, e o furacão

desaparece. Os homens se aproximam, ofegantes, aterrorizados.

Sentem-se como presas acuadas, perto de receber o golpe nal.

Então as copas das árvores começam a dançar novamente e as

folhas no chão começam a se levantar.

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— Ele tá voltando... Ele tá voltando! — Um homem diz

enquanto chora.

A intensidade do vento começa a aumentar, os homens

começam a correr novamente, mas agora o pânico que tomavaconta de seus corpos era muito maior. O furacão parecia estar se

divertindo com o desespero daqueles homens.

Eles então saem atropelando tudo que encontram

pelo caminho, se machucam em galhos, espinhos e quem se

desequilibra acaba morrendo pisoteado pelo grupo. O furacão

não aparece, aquele vento soprando aos seus ouvidos já era

suciente para congelar seus corações. Medo, o mais intenso

medo era o que todos sentiam. Nada da valentia e coragem de

antes, nada das certezas que carregavam restou. Suas armas

de nada mais valiam. Estavam sós, sem proteção, sem força;

estavam totalmente a mercê da Natureza e de seus mistérios.

Aqueles homens puderam sentir da forma mais dramática

possível a inutilidade de suas existências. E eles continuavam

correndo, enquanto a oresta ia escurecendo.

Após horas correndo sem parar, sem pensar, o efeito

da adrenalina passa e os homens não conseguem mais seguir

em frente. Um por um, eles vão caindo, exaustos, no chão da

oresta. Eles se arrastam para carem mais próximos uns dos

outros.

— Era só o vento...

Um deles diz, totalmente cansado e ofegante. Os

homens começam a rir.

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— Era só o vento...

Outro homem repete e as gargalhadas aumentam.

Quando param de rir, começam a chorar.

— Não vamos sobreviver... — Um homem diz chorando.Geraldo não diz nada. Está em estado de choque. Os

homens estão quase adormecendo, extremamente fracos; era

como se a oresta houvesse roubado toda a energia vital de seus

corpos. Então um homem sai de trás da vegetação. Era um homem

bem alto, forte, de pele vermelha; seus cabelos eram negros e

compridos. Seu corpo estava coberto por pinturas corporais. Ele

usava um amuleto no pescoço. Era um homem jovem, muito belo,

parecia uma divindade. Ele começa a caminhar entre os homens,

observando-os. Os homens não o temem. O jovem para no meio

daqueles homens deitados, inertes no chão. Ele então solta uma

gargalhada sinistra.

— Vocês são uma piada. Me diverti muito assistindo

vocês fugirem assustados pela oresta.

Ele se aproxima de Geraldo, se abaixa e diz ironicamente.

— O mocinho tem medo de ventinho...

O jovem diz e sopra a testa de Geraldo, ele morre

instantaneamente. O terror volta a tomar conta dos homens. O

jovem se levanta.

— Não se preocupem, não farei o mesmo com vocês.

Ah! A propósito, sou Kambaí².

 ²Segundo Olívio Jekupé, autor de O Saci Verdadeiro, o Saci original se chama Kambaí, emguarani, e Jaci Pererê, em tupi. No mito original ele é um garoto indígena. (Nota da Autora)

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Ele olha para um dos homens.

— Pelo visto, vocês nunca ouviram falar de mim; talvez

me conheçam pelo nome Saci que, como podem ver, não me

representa.Kambaí continua andando entre os homens enquanto

fala.

— Então vocês gostam de derrubar árvores e queimar

aldeias, certo?

Kambaí olha para três homens.

— Certo?

— Não, senhor!

Os homens respondem desesperados.

— Hum... Se não gostam, então por que fazem essas

coisas?

Ninguém responde.

— Sem resposta... Como já imaginava!

Kambaí olha mais uma vez para os homens.

— Vocês estão muito fracos, cansados, extremamente

assustados... — Kambaí diz com um sorriso sarcástico. — Decidi

que vou deixá-los viver. — Kambaí segue andando enquanto

fala. — Durmam... Ao amanhecer se sentirão melhor!

Kambaí desaparece no breu da oresta. Os homens

adormecem.

Bem longe dali, o pajé da aldeia incendiada sai de

seu transe. Os homens já haviam preparado a clareira para

construírem uma nova aldeia.

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— Obrigado, pajé!

O cacique agradece pela proteção que receberam. O

pajé sorri.

— Sempre podemos recorrer aos Guardiões da Floresta.Na manhã seguinte, um grupo de madeireiros encontra

o que restou dos corpos dos funcionários de Henrique. Haviam

servido de alimento para os animais noturnos.

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NO CORAÇÃO DA SELVA

Alfredo Alvarenga

Nas profundezas da oresta Amazônica ainda existem

recantos ocultos até os dias de hoje, com segredos envoltos

em uma bruma de mistérios. Tribos indígenas desconhecidas,

animais não catalogados, lendas e mitos que permanecem vivos

em meio à mata. Alguns; porém, ignoram os avisos e se arriscam

perambulando por terras de segredos antigos, onde o folclore é

vivo e pulsante.

Martim era justamente um destes que desaavam os

alertas. Estudante de Biologia, fora com colegas, do Sudeste, para

uma trilha ecológica, na Amazônia, com o objetivo de acampar,

na oresta, e desbravar os segredos da selva, em uma área ainda

intocada pela civilização. Os habitantes, da cidade mais próxima,

na qual haviam se hospedado, conheciam a região, e advertiram

o grupo, sobre o local em que iriam se aventurar. Pois, com suas

superstições e crendices populares, viam aquelas matas como

assombradas; todavia, os jovens estudantes se recusaram a crer

em causos folclóricos; anal, apesar de ecologistas, eram futuros

cientistas, com mentes céticas e que só acreditavam no que

pudessem ver, medir e estudar.

Após algumas horas de caminhada, no entanto, Martim,

que não era acostumado a exercícios físicos, cou para trás do

grupo. Seguiu pela trilha até que não mais conseguiu localizar

nenhum dos companheiros de estudos, e se descobriu perdido

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em meio à selva. Chamou pelos outros, mas não obteve resposta,

seu celular não tinha sinal e não sabia por onde seguir, pois não

havia uma trilha clara em meio às árvores. Assim, não havia

alternativa, a não ser embrenhar-se no seio da oresta, gritando,em vão, pelos amigos. A selva que tanto sonhara era um inferno

verde.

Era pouco mais de meio-dia, encontrava-se sozinho

em meio à mata, ouvindo o zumbido dos mosquitos que lhe

devoravam vivo... O calor era quase pungente e a sede castigava.

Tinha por companhia apenas o canto das aves durante sua jornada.

O povoado mais próximo cava há quilômetros, precisava achar

uma fonte de água e um caminho de volta. O desespero já se fazia

presente, quando um som, de súbito, chamou sua atenção. Era o

som de água corrente, uindo em algum lugar à frente. Caminhou,

naquela direção, com a alma enchendo-se de esperança, e seus

olhos foram presenteados com a esplêndida visão de um lago de

águas cristalinas, que era alimentado por uma queda d’água que

vertia por entre rochas. Algumas ores tropicais pontilhavam às

margens do lago com uma miríade de cores vibrantes.

Esqueceu-se de seus temores e se despiu. Correu até as

águas; detendo-se, porém, na margem, ao ouvir o belo som de

risos femininos. Tomado por certo pudor, voltou, apanhou sua

bermuda e a vestiu, novamente. Perguntou assustado:

– Tem alguém aqui?

Tudo voltou ao silêncio. Hesitante, decidiu mergulhar

sem tirar as roupas. Sentiu o frescor que a água continha inebriá-

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lo de alegria. Então, novamente, ouviu o mesmo riso delicado.

Martim olhou ao redor sobressaltado e viu escondida atrás

de uma árvore nas margens opostas, uma bela jovem de pele

morena.– Olá, moça! Tudo bem? Eu te assustei? – Estava

envergonhado, temendo ter sido apanhado nu, segundos antes,

pela desconhecida.

Ela apenas sorriu tímida, correndo para trás de outra

árvore. Martim, feliz, com aquela presença, que podia lhe conduzir

de volta à cidade, deu a volta, no lago e se aproximou da garota.

Viu, então, que se tratava de uma bela índia. Não imaginava

que houvesse uma aldeia por ali. A gura que se escondia por

entre as árvores era quase divina, tamanho o esplendor de suas

formas, como as índias dos contos românticos, como a Iracema,

de José de Alencar, ou talvez até mais bela... Nua, magra e com

a tez morena avermelhada, e corpo formoso, feições delicadas;

mas, ao mesmo tempo, madura, um nariz perfeito e com olhos

negros profundos e misteriosos... E um lindo sorriso em uma

boca, talvez também doce como o mel... Os cabelos negros e

lisos desciam até a cintura, tendo uma franja à frente dos olhos.

O paulista nunca imaginou encontrar uma índia de

tamanha beleza. Já vira muito descendente de índios, mas todos

vestidos com roupas modernas e indistinguíveis de qualquer

outro brasileiro. Mas esta a sua frente era diferente. Estava nua,

como uma “Vênus” tropical, com o corpo pintado em tons de

vermelho e negro, usando adornos de penas, como uma índia do

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século XVI deveria parecer, quando vista por olhos europeus pela

primeira vez.

– Você é uma índia? Você fala o português? – Apesar da

doçura da garota a sua frente, havia em Martim o receio de queela não estivesse sozinha. Lembra-se de histórias sobre tribos

que não tinham ainda contato com a civilização e outros grupos

de índios hostis, embora julgasse que seria impossível haver

tribos selvagens tão próximas de uma cidade.

Ela apenas sorriu à sua pergunta, de modo meigo. Estava

visivelmente curiosa a cerca do estranho e, mesmo escondida, ela

o tava atentamente e com visível estranhamento e admiração.

– Como é seu nome, menina? – Insistia em se comunicar.

– Tem quantos anos? Você está sozinha?

Ela nada respondia, apenas ria e olhava atenta e

curiosamente para Martim, jovem branco queimado de sol,

mestiço de italiano com espanhol. Era como se a pequena não

entendesse o que ele lhe dizia, como se o idioma português lhe

fosse desconhecido. Martim começava a acreditar que, apesar

de impossível e paradoxal, aquela garota índia poderia pertencer

a alguma tribo isolada e nômade, que deu sorte de nunca ter tido

contato com a civilização.

– Eu vou te machucar, garota... Eu vou te matar, agora! –

disse sorrindo e calmo, para conrmar sua teoria... E estava certo,

pois a índia apenas sorriu feliz, em resposta a sua falsa ameaça,

ou seja, ela não compreendera suas palavras.

Ele se aproximou, agora, com curiosidade cientíca,

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sorrindo amigavelmente, quando ela saiu de trás da árvore,

cando a sua frente, com toda a sua esplêndida beleza. O jovem

não teve reação diante de tal situação; apenas a tou e sorriu. A

índia retribuiu o sorriso como uma or que se abre perante o solda manhã, olhando profundamente para os olhos do paulista e

posicionando sua face mais próxima da do rapaz... E beijando-

lhe na boca de maneira meiga e carinhosa, selando os lábios com

amor. Saiu correndo, então, após o ósculo, escondendo-se atrás

de outra árvore, tomada de vergonha.

Sem entender o porquê do beijo e se recordando de algo

que ouvira sobre os índios desconhecerem o hábito europeu

do beijo, o estudante cou atônito. Voltou-se para a direção da

bela índia de longos cabelos negros, sentindo algo estranho no

coração. Caminhou para perto da índia, e esta correu até outra

árvore, ainda sorridente. O riso dela era fantástico e lindo como

o canto das aves.

– E, agora, o que você faz Martim – pensou em voz alta,

mantendo o sorriso amigável, e tentando processar tudo o que

ocorria.

A bela índia, então, parou de sorrir, e começou a cantar,

com uma voz doce, esplêndida e magistral. Cantava, à capela,

cantigas indígenas, e caminhava por entre as árvores, tando

furtivamente o estranho homem, seduzindo-o com sua bela

voz, e com a doçura de sua beleza primitiva e aparentemente

inocente.

Martim se sentia atraído pela bela índia, inebriado

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perante tal beleza, seguindo-a em sua caminhada ao redor do

lago. Aquela voz, naquela bela e jovem mulher, era a melhor

cena que ele já tivera em vida. Os olhos negros e profundos

seduziriam qualquer alma neste mundo. Naquele instante, achouentender as impressões que os primeiros portugueses tiveram a

se defrontarem com as primeiras mulheres do novo mundo.

A índia, mais uma vez, aproximou-se do paulista, beijando-

lhe a face e, em seguida, nos lábios, sempre prosseguindo com

a canção... Dançando ao redor de Martim... Mas, agora, também

lhe abraçando, para em seguida correr, e continuar a cantar. Os

pássaros silenciavam ao canto da bela índia. A natureza se calava

para ouvir suas melodias. Martim estava embriagado por aquela

voz e por aquele rosto, hipnotizado por aquele canto. Sentia a

paixão pulsando pela garota indígena.

Ela, mais uma vez, aproximava-se de Martim e, agora,

beijando-lhe ardentemente na boca, um beijo visivelmente

apaixonado. Em seguida ao beijo, mergulhou no lago, onde,

ainda cantando, nadou e se banhou nas águas frescas do olho

d’água. Seus cabelos molhados desciam por seu corpo, e seu

canto agora, convidava o forasteiro a se banhar nas águas.

Martim adentrou a lagoa. Estranho... Pensou ter visto

um grande peixe junto à índia, mas não deu atenção ao fato,

pois estava apaixonado por aquela joia das selvas. Um amor

repentino, relâmpago que lhe turvava toda a razão, como nunca

lhe ocorrera antes. A garota, com sua voz melodiosa, então,

dirigiu-lhe as palavras, pela primeira vez, de forma lenta, em

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uma frase da qual Martim nada entendeu, apesar de amar tê-las

ouvido.

– Landê abá sui ocara açu, rokéra Yara. Iguaçu icó nde

oca... Iguaçu icó nde igaçaba...³A índia nadou até perto do paulista e o envolveu a terno

abraço. Enfeitiçado por tamanha tanta beleza, Martim, também

abriu os seus braços para a bela mulher. Os lábios ardentes da

selvagem lhe entregaram outro ósculo de amor, fazendo-o lhe

faltar o ar, seus braços femininos o agarraram com mais força, e

ela o puxou para dentro da água. Sem reação, atordoado diante

do amor, Martim deixou-se ser puxado, para o profundo lago,

no qual aquela ninfa das águas mergulhava, levando consigo

um curioso forasteiro. Agora, nos braços da senhora das águas,

Martim encontrou a Amazônia que, no fundo, sempre sonhava

conhecer. Com seus mistérios vivos a serem revelados...

Das profundezas daquele olho d’água, saía apenas uma

bela cantiga que, de longe, atraia, inconscientemente, os homens

para nos braços de Yara morrer.

³Você homem da aldeia grande, dormirá com Yara. A lagoa será tua casa... A lagoaserá teu túmulo. (Nota do Autor)

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OS DOIS DEUSES E O SENHOR DA TRAVESSURA

V. M. Gonçalves

Sob a luz difusa do entardecer, Shkuí nasceu de um broto

deformado que inchou até arrebentar para fora do caule. Nasceu

já inteiro, mas pequeno, capaz de andar e de fazer tudo que um

trique4  saltador adulto podia fazer, embora ainda não pudesse

causar tanto estrago. Saltou do chão e começou a se lamber para

lavar de si a gosma do broto que o havia incubado.

Era menor que um ratão-do-banhado ainda, mas cresceria

mais até o m da noite. Tinha um corpo extremamente delgado,

de membros compridos, com cotovelos e joelhos que pareciam

nós de madeira. Sua pele tinha a textura de carvão vegetal, cinza,

negra, branca ou marrom, dependendo da região, quebradiça,

ressecada e farelenta. Nascido de um broto beijado pelo fogo,

como todos os triques saltadores, não possuía umbigo nem

órgãos genitais. Seu rosto era uma coisa plana, sem nariz nem

orelhas, com buracos assimétricos onde deveriam haver olhos e

uma boca sem lábios. O topo da cabeça era como uma panela.

Através das quatro aberturas aparecia o fogo em seu interior,

ainda tímido.

O fogo que dá a vida é o fogo que destrói. O fogo

guiava seu instinto, o desejo que todo trique saltador sentia de

4O termo trique é uma referência ao “Saci-Trique”, termo obscuro associado a uma dasformas do personagem conhecido como Saci Pererê. Também pode ser interpretadocomo uma referência ao termo inglês trickster, utilizado por teóricos das religiões paraser referir a divindades matreiras, como o nórdico Loki e a grega Eris. (Nota do Autor)

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viver intensamente por um breve período de tempo, queimar e

destruir: como fogo. Empolgado, ele se empertigou.

— Shkuí ! Esse é meu nome, não é, Pai do Carvão? Shkuí! 

Posso ver porque me trouxe a este mundo. É tudo tão verde, tãoazul e tão, tããão tedioso!

Shkuí  gargalhou e disparou pelo campo a uma velocidade

estonteante. À medida que saltava seu corpo ganhava estatura

e seu fogo interior aumentava. Logo, as labaredas saltavam

para fora de seus olhos, de sua bocarra e de sua cabeça oca. As

chamas saíam dele como uma cabeleira sinistra ou um longo

gorro incandescente.

Sua gargalhada estridente perfurou a noite jovem.

Por onde ele passava, a desgraça vinha logo atrás: incêndios

repentinos, ovos trocados nos ninhos, macacos enroscados nos

cipós. Um jaguar, que saltava para atacar um preá, viu passar o

clarão nefasto; quando caiu e mordeu, quase quebrou os caninos:

o trique substituíra sua presa por uma pedra do mesmo tamanho

e da mesma cor.

— Trique! Trique! — O grito ecoava pelo dossel verde da

mata. Eram as araras, que tudo viam, soando o alarme: — Trique

de fogo à solta!

O Moleque acordou desesperado.

— Maldição — praguejou ele. — Maldição!

O Senhor das Feras, que também era conhecido como

Moleque, havia sido homem um dia. No passado, pertencera ao povo

da Mata Nova. Mas o passado era passado. Quando foi possuído

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pela loucura dos espíritos, condenou-se ao cárcere das árvores, a

guardar as vidas que ali residiam de forças externas. Ali tornou-se

rei, e os animais eram seus súditos. Ali tornou-se deus da Terra.

Seu inimigo mais frequente era o Rei Água, um xamã quecontrolava os espíritos aquáticos e atormentava as pessoas da

região. Além deste rival, confrontava caçadores inescrupulosos

que matavam fêmeas prenhes e animais muito jovens ou que

matavam animas para retirar apenas uma parte, deixando a

carcaça às moscas.

Àquela altura, os caçadores do Ermo já eram mais

cautelosos e o Rei Água evitava chamar atenção para si, ofendendo

abertamente seu rival da Terra. Assim, se havia inimigos capazes

de infernizar o domínio do Moleque com frequência alarmante,

eram os triques. Eles apareciam toda primavera, ninguém sabia

como ou porque, e era muito difícil controlá-los. Felizmente, eles

morriam rápido: os mais longevos duravam três ou quatro dias

antes de queimarem completamente de dentro para fora; quase

sempre duravam bem menos.

Mas, ao longo de sua curta existência, um trique podia

causar muitos danos.

O Senhor das Feras assobiou e sua montaria veio até

ele: era um grande porco-do-mato de patas curtas e grossas,

coberto com uma pelagem áspera e cinzenta. O rei fazia jus

ao apelido, Moleque. Como seus ancestrais da Mata Nova, era

um homem extremamente baixo, um tanto rechonchudo, de

cabelos ruivos e eriçados, sobrancelhas fartas e pele castanha,

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coberta de manchas claras e escuras nas costas, no rosto e no

peito. Através da magia que emanava da loucura dos espíritos,

porém, seus traços se mantinham eternamente jovens e seus

pés eram deformados, com os calcanhares virados para a frente,de modo que produzia rastros confusos para qualquer inimigo

quando caminhava na oresta.

— Siga o cheiro de carvão, amigo — disse o Moleque,

saltando sobre o porco-do-mato.

— Sim, senhor! — roncou a montaria de guerra.

***

O Rei Água não era movido pelos mesmos princípios

que o Rei Terra. Ele vinha à tona quando o desejo fazia seu

corpo arder, desejo por humanas. Assim como o Moleque, ele

foi humano um dia, um curandeiro poderoso, cuja fraqueza era

a luxúria. Fartos de suas aventuras com esposas de outros, os

homens de sua aldeia o perseguiram até o rio e o amaldiçoaram.

O curandeiro usou seu poder para misturar-se aos seres da água,

enfeitiçou-os e tornou-se seu novo rei, o deus da Água.

Assumindo a forma de um boto-vermelho para viajar

pelos rios, ele emergia como um homem de grande beleza, de

pele rosada e sardenta, reluzente como a lua, usando sua beleza

exótica para seduzir as mortais. Já eram conhecidas muitas

histórias envolvendo a gura nefasta, e lho-do-boto era um

apelido comum para crianças cujo pai era desconhecido.

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O Vermelho emergira porque sabia que era uma época de

celebrações no Ermo, época de fartura de frutas e de fabricação

de vinhos, e porque era noite de lua cheia. Parou na primeira

aldeia que viu e se aprumou. Em meio à alegria das danças, dasautas e da bebedeira, conseguiu atrair uma jovem para longe da

aldeia com seu canto enigmático.

Ela viu o vulto entre as casas: um homem musculoso,

de corpo brilhante e olhos esverdeados. Seguiu-o para fora do

perímetro das casas. Ele era lindo, como os lhos da Lua, cultuada

no Ermo, a Deusa Pálida com olhos de água. Já bêbada e envolta

nos ânimos dos festejos em honra da fertilidade da Terra, a moça

se abandonou nos braços fortes e rosados do estranho.

— Você é uma estrela? — perguntou ela, abobalhada.

— Sim, sou lho da Lua — disse ele, rasgando a faixa

que segurava a tanga dela no lugar. — Percebe?

— Sim... — murmurou ela, arquejando enquanto ele

posicionava a mão entre suas pernas. — Você brilha e é tão...

quente...

O Vermelho sorriu maliciosamente e começou a acariciar

as coxas da moça. Então, um estrondo e um ruído líquido, seguido

por uma risada, interromperam seu momento de sedução.

— Aaaaargh! — gritou a jovem, quando um uxo gelado,

amarelo e aromático caiu do céu, derramando-se sobre ambos.

O ruído seguinte foi produzido pela imensa botija que

caiu no chão e se partiu. Alguém derramara uma ânfora inteira

de vinho de abacaxi fresco nos dois. Desperta do transe sedutor

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e acreditando que era tudo uma broma diabólica, a moça correu

para a aldeia.

— O Boto! — gritou, enquanto corria. — O Boto tentou

abusar de mim!  O Rei Água, furioso, partiu no encalço do miserável

intrometido, o desgraçado com a ânfora de vinho. Estava certo

de que aquela fora uma travessura do velho inimigo, o Moleque,

o Rei Terra, o Senhor das Feras. O deformado sempre tenta manter

essa gente afastada de mim..., pensou ele. Pois bem, acha que isso

foi engraçado? Espere até ver o que farei com você, Pé-Virado!

Ele mergulhou no regato mais próximo, transformou-se

e partiu para a desforra. Mas ele estava no encalço do inimigo

errado e foi na direção errada. A festa foi interrompida e os

homens da aldeia fechavam suas lhas e esposas dentro das

cabanas, cientes de presença do Vermelho, enquanto Shkuí

transmutava-se em colunas rodopiantes de fumaça, entrando

pelas aberturas nos telhados, assustando crianças e adultos.

Se ele tocava em alguma vasilha ou cesto, estragava

o alimento que havia ali. Se um pedaço de carne pendurado

no teto para secar esbarrasse em seu corpo, transformava-

se imediatamente em madeira, pedra ou uma pilha de insetos.

Bastou que alguns patos domésticos topassem com ele no centro

da aldeia para que as penas soltassem de seus corpos.

O trique era cada vez mais poderoso. As vítimas humanas

começavam a parecer tediosas. O “Boto”, este era uma vítima

digna de sua atenção.

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— Lama! Bolotas! Para que me ocupar de peixinhos,

quando posso pescar algo maior?

Os aldeões cantaram louvores quando o ser de fogo

rodopiou para longe dali. A mãe da jovem que dera o alarme seexaltou.

— Menina, você não sabe a diferença entre o Boto e um

trique saltador! — ralhou a idosa. — E eu sou a curandeira da

aldeia! Tem ideia da vergonha que você me faz passar?

***

A montaria do Moleque era forte, mas não se comparava

à velocidade que o Vermelho podia adquirir em sua forma

aquática e certamente parecia patética se comparada a Shkuí,

deslocando-se aos saltos e redemoinhos. Avançando na direção

errada, o Vermelho saltou para fora da água. Meia noite já havia se

passado. O Rei Água tentou usar sua sensibilidade para detectar

algo de diferente no ar, mas nada retornava à sua percepção.

Mas havia outra celebração ali perto. Música. Bebida.

Mulheres. Maldição!

O Vermelho era incapaz de resistir a seus próprios

instintos. Repetiu a estratégia de sempre, puxando a moça que

mais facilmente conseguiu atrair para fora da aldeia, encantando-a

com seu brilho, suas palavras doces e sua promessa.

— Você me ama mesmo, homem-estrela? — perguntou,

com a respiração pesada, beijando os músculos rijos e cintilantes

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do peito e abdômen do Vermelho. A pele dele era adocicada e

pulsava, quase como se transmitisse uma eletricidade suave

a seus lábios; quanto mais beijava, mais queria senti-lo. — Me

levará para viver na sua cabana, no Céu Noturno?— Sim, minha querida, só você é digna — disse ele,

acariciando seus longos cabelos negros, enquanto ela se abaixava

e aninhava o membro viril intumescido entre seus lábios.

O Vermelho estava distraído com a deliciosa carícia,

os sentidos fechados para o mundo. A jovem se concentrava

em desfrutar de seu homem-estrela. Não notaram a sorrateira

aproximação do estranho. Acharam que o calor do entorno vinha

de seus corpos. O trique gritou ao ouvido da moça:

— Você não devia por isso na boca! Não sabe por onde

andou!

A moça empalideceu. O susto foi tamanho que agiu por

reexo, fechando as mandíbulas. O Vermelho gritou; a moça

também, assim que sua boca relaxou.

— Não pareça tão surpreso — disse Shkuí para o

Vermelho. — Você sabia que cedo ou tarde isso ia acabar

acontecendo!

Desapareceu novamente, em um redemoinho

fumegante. A moça a olhou penalizada para o Rei Água, encolhido

no capim e chorando de dor.

— Me desculpe... — gaguejou. — Eu me assustei. Dói

muito?

Em resposta, o Senhor da Água apenas balbuciou:

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— Ervas... Unguento... Curativo... Rápido!

***

Ao contrário do Vermelho, o Moleque era respeitado noErmo, não temido. Os aldeões indicaram para ele o sentido que

o trique havia tomado. Logo, sua montaria captou o cheiro de

carvão. Dois terços de noite já haviam corrido. Freou bruscamente

seu avanço ao dar de cara com uma imagem desagradável.

— Mas o que...

O Vermelho jazia parado no meio da clareira.

Estranhamente, não estava nu como de costume, mas cobria-se

com uma tanga improvisada com um tecido do tipo usado pelas

mulheres do Ermo.

— Eu estava te esperando, Pé-Virado. Sei que tivemos

nossas diferenças no passado, mas claramente nenhum de nós

consegue dar conta deste diabrete. Precisamos nos unir para

conter a ameaça.

O Moleque estranhou a atitude altruísta do rival. Mas

tempos desesperados exigem medidas desesperadas. O rival o

deixava enojado, mas ele não podia deixar aquele ser maligno

circular por seu domínio por mais tempo.

— Está bem. De fato, ele é um feitiço de fogo e de vento,

então será mais fácil contê-lo com encantamentos de água e

terra combinados. Mas depois disso...

— Depois disso voltamos a nos odiar como sempre —

completou o Vermelho.

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***

Correram como se perseguissem a luz difusa do alvorecerque diluía o azul escuro. O sol estava muito perto de sobrepujar o

Céu Noturno. O odor de fumaça cada vez mais forte entregava a

presença do inimigo. Cercaram-no em uma clareira. Era imenso,

mais etéreo do que físico àquela altura. Pedaços de sua pele

caíam. Uma perna inteira se desprendeu do corpo e se esfarelou

no chão.

— Bolotas e pererecas — resmungou. Sua voz já não

era mais estridente, mas rouca e profunda como uma voz de um

velho. — Isso é bem inconveniente!

Na mão direita do Moleque se materializou uma longa

folha verde de gume aado, sua arma, e ele impulsionou sua

montaria para arremeter. O Vermelho convocou seu cetro branco,

pronto para impulsioná-lo contra a cabeça quebradiça daquele

ser. Pedaços continuavam a cair à medida que ele se expandia.

Então, com o nascer do sol e a brisa da manhã, Shkuí

gargalhou pela última vez e se desmanchou em uma pilha

colossal de cinzas. Os dois heróis arremeteram contra o nada,

mergulhando de cabeça no monte de borralho. Uma suave

sugestão de voz foi ouvida entre os cantos dos sabiás:

— Peguei vocês de novo!

 

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UM AMOR

Endell Menezes

Em algum lugar entre o Rio Xingu e Amazonas, a aldeia

tupi-guarani resplandecia a cada anoitecer. Assim que a noite caía,

os índios se recolhiam em suas ocas, pois os perigos e segredos da

mata assustam até seus moradores mais íntimos. Mas não para

Tainã, uma jovem dos cabelos negros e olhos da cor do caroço

de açaí, cujo nome signica astro celeste, estrela. Ao desabar

da noite, Tainã aventurava-se oresta adentro, e após horas de

caminhada na escuridão, ouvia pandemônios, mas sua coragem

audaciosa e sua determinação insana a mantinham no caminho.

A fadiga era notável. Após horas chegou ao Lago Aninga, (Lago

do arrepio, em tupi). Sentada em um tronco de árvore caída,

Tainã encarou a Lua e enquanto alisava seus sedosos cabelos

com as mãos.

– Teu esplendor me encanta – falava para a Lua.

– Todas as noites fujo da aldeia, enfrento as caiporas,

igarapés e Jaguaruna onça preta, em busca do teu abraço, por

que me ignoras? Me deixa falando por horas. Não me achas bela?

– dizia, cerrando os olhos.

Um amor platônico, uma pureza incólume, uma

ingenuidade letífera, um olhar abatido e um sentimento

devotado. E por horas Tainã enamorava a Lua. O cansaço fazia

seu corpo pender para o lado, fazendo sua cabeça baixar e seus

olhos tarem o lago. O reexo da Lua na água cintilava nos seus

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olhos e, incrédula, sorria.

– Ô minha amada, viestes ao meu encontro – falou,

levantando do tronco.

Andava em direção ao Lago, os pés tocaram a águagelada, o limiar foi subindo até não ser mais possível ver Tainã. A

Lua observava o que acontecia e sentiu-se honrada em ser amada

por uma jovem tão bela e pura, com um brilho intenso reavivou a

alma de Tainã, tornando-a uma imensa or no lago, e disse:

– Tainã, agora és Upã, a or mais bela dos rios, terá o

aroma mais doce das águas; abrirás em dois dias, no primeiro será

rosa para lembrar a beleza feminina, e no segundo abrirás branca

para lembrar-se de teu amor por mim, afundarás no lago para

reviver teus momentos, e depois subirás em forma de coração

até te tornares a estrela das águas, a Vitória Régia.

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ESTRADA INCA

Jean Thallis

O grupo tupi-guarani seguia marcha com o pescoçoenlaçado um ao outro numa la indiana de cinco homens,

guiados por quatro tracantes incas, dois à frente e dois atrás.

Agora estavam na estrada que os levariam ao império, até o

anoitecer chegariam no primeiro entreposto, os cinco cativos se

juntariam a mais outros e somente quando necessário a caravana

partiria, quando se encontrassem com os outros companheiros e

indígenas capturados.

A distância seria vencida rapidamente sob a estrada

pavimentada e os homens incas se sentiam mais seguros porque

aquela rota era evitada com temor por todos indígenas daquela

região, que cada vez mais travavam confrontos sanguinolentos,

quase sempre terminando como escravos na distante terra rica

estrangeira, construída pelos deuses ainda que fossem eles a

talhar as pedras.

O último da la andava trôpego de tristeza, as vezes a

umidade dos olhos o fazia tropeçar e sempre que deixava a corda

tesa por estar distante do próximo índio preso ao elo, recebia

estocadas de cabos de lanças para pô-lo em movimento. Chorava

com muita angústia lembrando do lho assassinado brutalmente

com o crânio aberto ao meio e de sua mulher sendo estuprada no

centro da aldeia por três homens, nenhuma daqueles que agora

os escoltavam, mas sentia um nojo igual por aqueles incas, pois

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também estavam na matança. Teria vomitado ao lembrar de sua

impotência enquanto era feito cativo e sua mulher implorava

por socorro, mas não havia mais nada no seu estômago para ser

despejado.Recebeu outra estocada enquanto os dois incas

conversavam e riam numa língua muito diferente da sua, pensou

que estivessem rindo dele ou de sua mulher, pois lembrava

também que aqueles dois riam de longe no momento que a

violência sexual acontecia e só não a estupraram com os outros

porque fora morta e tiveram que se contentar com outra.

Sentiu ódio ao imaginar, rezou baixinho para que o

Curupira aparecesse, eles sabiam dos perigos do povo Inca

e deixara sua lhinha ser oferecida ser oferecida ao curupira

pelo chefe da tribo, pois dizia que ele viria ajudá-los, por ser

uma criatura amante da natureza e daqueles que convivem em

harmonia com ela. Mas ele não apareceu e aquela aldeia caiu em

sangue e chamas. O deus níveo de fortes músculos e alta estatura

não veio, nem sua cabeleira escarlate apareceu entre as árvores,

nem seus olhos opacos e brancos como leite surgiram para olhar

a chacina, pois no momento deveria estar se deliciando com a

sua lhinha de três anos, usando sua genitália para feri-la e matá-

la, a degolando e bebendo seu sangue, como costuma fazer.

Sentiu mais tristeza ainda pelo sacrifício ter sido em vão e ódio

pelo Curupira não ter protegido seu povo.

E o Curupira estava mesmo brincando com sua

indiazinha de pele escura no momento que a aldeia era atacada,

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a molestando enquanto a mãe dela era estuprada, degolando a

criança no momento que a mulher também morria e as malocas

ardiam em chamas. Após matá-la, a escalpelou com uma lâmina e

começou por comer o pequenino fígado, escuro e bem vermelhode sangue, mastigou com deleite sentindo o gosto férrico do

órgão, depois tirou os letes mais suculentos de carne e os

comeu lambendo os dedos.

Enterrou o resto da criança para que as sobras

transformassem-se no manjar pútrido que adora comer e neste

momento os cativos eram feitos escravos escoltados pelos incas,

mas aquela escolta era a última sobrevivente e não sabiam, na

verdade o curupira zera jus ao sacrifício e salvara vinte e três

homens da escravidão matando dezesseis incas.

O sorriso dos dentes de ouro surgiu por detrás dos dois

tracantes incas, antes que i ar mefítico que exalava do corpo

chegassem àquelas narinas, então o mais distraído recebeu a

lâmina na garganta primeiro num movimento rápido de mãos que

surgiram de baixo para cima, uma cortando e outra segurando a

boca. Jogou o corpo trêmulo do lado e o segundo, ao se virar

procurando o cheiro de carniça, recebeu a lâmina abaixo do

maxilar, entrou varando o palato e cando no cérebro, retirou a

lâmina no momento que o bando olhava alarmado o deus albino

brilhando em escarlate, nu com um sorriso d’ouro brilhando na

boca, os olhos leitosos como uma criatura vinda do submundo!

Os dois outros incas paralisaram de terror, a lenda era

verdadeira e estava à frente deles, mas mal viraram para correr

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e um deles caiu com a lança arremessada pelo Curupira, que

quebrou a coluna varando o peito do inca.

Outra lança foi pega, do segundo cadáver, o curupira

fez que a arremessaria no momento que todos os tupi-guaraniscaíam de joelhos idolatrando seu deus, até mesmo aquele

índio que havia sentido ódio por ter sido abandonado, mas não

arremessou a lança, fez um semblante medonho, seus olhos se

tornaram negros e gritou na mente do inca que corria:

– Corra! E diga ao deus Inca que seu império está

condenado! Ele ruíra é mergulhará em cinzas de destruição. Diga

que a cor de sua desgraça será branca!

O inca tentou tapar os ouvidos, mas a voz martelou até o

nal, quase desmaiou e não ousou olhar para trás correndo para

o seu interposto.

Soltou os homens aprisionados e eles saíram da estrada

rapidamente, sem mesmo olhar par ao deus que reverenciavam.

Naquele momento, hesitara matar o último inimigo daquela

expedição, porque sentira um arrepio gélido, na sua mente

se formava a visão de três grandes barcos e homens brancos

chegando distante dali na sua oresta de mata atlântica, então

correu o mais rápido que pôde até o litoral, seus pés invertidos

deixando pegadas falsas na terra vermelha. Daquele dia em

diante, seus olhos sempre foram negros como ônix.

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O BEZERRO ROSILHO

Ailton Silva Favacho

– Teimosia de moleque... Olha que eu avisei, mas já se foi

o tempo que velho era respeitado. Agora tá aí, desse jeito...

Deixou-o lá, recomendou-lhe os cuidados à irmã mais

nova, também sua neta, e ordenou que desse, de vez em quando,

somente uma xícara com chá, embora, já há quatro dias, estivesse

acamado e cada vez pior. O pai, para a pesca. A mãe, em Belém,

procurando saúde, que a pajelança não trouxera. Ficaria lá o

teimoso, sob a guarda da menina e do tempo, o tempo que a

colheita da mandioca não mais podia esperar.

A velha apanhou o remo, no canto da casa, perto da

lamparina, deixado na madrugada passada, e pegou o paneiro

e o terçado. A maré enchia, economizando seu braço. O remo

orquestrava Ave-marias e Pais-nossos, recitados à Mãe d’Água e

aos senhores da oresta. Tudo tinha dono, e era regra lhes pedir

permissão de uso, mesmo para tomar o banho de enchente. O

dente de jacaré-açu, no pescoço. Quem facilitava acabava morto

ou ruim da cabeça na lua cheia. Surucucu, jararaca, mãe de saúva,

coral...

– Ê, cumadre! Vumbora, que a bicha já qué repontá!

– Já vô, cumadre. Só vô pegá um tabaco e a lata com a

boia, que hoje é só à boca da noite.

Não tardaram. Roça longe, o sol alto. A procura de mato

para o chá do doente roubara-lhe umas horas. Às margens, o

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canto da guariba trazia à mente o choro do moleque. Um choro

morno, febril. Por que teimara? Ouvira, e muito, falarem no

que acontecera com o Velho Miranda, vaqueiro do Dr. Hendira,

da Fazenda Pacoval. A noite o subtraiu, tomado de cachaça, e,até hoje, aparece na beira do Lago da Embaúba, no período da

apartação. Dizem morar no lago, e não sozinho. Coragem muita

de quem vai lá. Teimosia...

– A senhora sabe se o Seu Anori tá aqui em São José,

cumadre?

– Olhe, faz dias que não vejo ele passá no igarapé. Acho

que não. Sempre via no rumo das mutambeiras, despescando o

curral.

O choro da guariba tornara-se agouro, maltratava

a mulher, mergulhada em maus pensamentos externados à

companheira, mas um jacaré que devorava uma capivara na

ribanceira interrompeu a conversa, roubando-lhes a atenção.

Se fossem machos, o arpão ia cantar naquele lombo largo, e a

comida estaria garantida para quase um mês. E o remo amiudava

o caminho para o mandiocal, cuja produção encomendara uma

tacacazeira do Ver-o-Peso, que também mandava tucupi e

tapioca para fora. O barco que transportaria búfalos da Pacoval

conduziria a colheita. Se perdessem a oportunidade, bastante

suor jogariam fora.

O lençol, mais uma vez, ensopara. Por ser julho, sol

de rachar? Estaria com malária? A menina enchia água no poço

para lavar o outro que ele usara na noite passada. E cuidava de

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reparar o doente, que cismara de querer mergulhar no igarapé e

correr para a mata, em devaneio. Teve de pregar as janelas e de

fazer-se sentinela para guarnecer a porta. Só se afastava quando

ele dormia, contudo logo voltava para escutar as mesuras quefalava, ininteligíveis, exceto a promessa de que não demoraria.

Outra noite se anunciava. As mandiocas deslizavam

sobre a água alaranjada pelo ocaso. A velha, calada, invocava

Seu Anori. Tinha nome, descendente, quiçá, dos Anoerás, no

tempo de Marinatambal. Até gente grande o procurava, vinha

a ele. Se quisesse... Do mato não saía, pois, se o zesse, talvez

perdesse muito de sua força. Mas, naqueles dias, lá não estava,

e o moleque, em delírio, ardia em febre. Não seria caso para

médico?!

Chegaram, já tarde, as duas, vigiadas pela lua, e a neta

à avó tudo contou. Pelo relato, a mulher sabia tratar-se de

encantaria. Tudo por desobediência. E nada do Anori. Subir o

rio, tirar feitiços, fazer trabalhos. Bem novo, começou no ofício,

herdado do pai. Ensinava banhos de mato, infusões de cascas

e benzia crianças com quebranto de olho gordo, de gente com

fome. Mas o que rendeu fama foi ter colocado de pé a lha de

um governador. Nem São Paulo, nem Europa lhe deram conta.

Porcaria pesada, encomendada de gente forte.

Por lá, dele souberam através de um dos serviçais. Fora

para Belém tentar a sorte, e tudo o que conseguiu, sem estudos,

foi a ocupação de zelador. Chamava-se Tibúrcio, e mencionara,

em certa ocasião, o nome do primo, o pajé Anori, a uma das

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empregadas, depois de ver tantas tentativas sem sucesso, não

obstante contando com grandes nomes da medicina do estado

e do país. Sem saída, ao mato recorreram, e não deu outra. A

moça, que talvez morresse em poucos dias, reagiu, resistiu. Onome de Anori ecoou longe.

Saberia do suplício do moleque o pajé e estaria

protelando o regresso com o intuito de chegar só no dia do

enterro? Os caruanas não o teriam avisado? Certamente que

tinha muito aguçado o dom da vidência e poderia estar a par

de tudo. Anal, sempre previa infortúnios e avisara dona Ninica

acerca do afogamento do lho, caso o rapaz fosse ao Lago da

Embaúba. Por isso, recomendou-lhe impedi-lo de ir lá, mas ela

ignorou, e se consumou o óbito, sendo o corpo encontrado no

meio do campo, velado pelas estrelas.

Talvez estivesse fazendo de seu atraso a vingança. O

pirralho o irritava, caçoando-lhe das velhas roupas e da boca,

sem dentes. Não raras as vezes, ao pai se queixava quanto ao

comportamento do menino, o qual, apesar de levar uns bons

tapas, reincidia. Era moleque péssimo, dizia o vilarejo. Não

respeitava as horas santas, violava os ninhos de passarinho,

judiava de tudo quanto era bicho, alvo de sua baladeira de precisa

mira. Merecia morrer, então?

Estava, cada vez mais, enlouquecido. Não deveria ter ido

o lago, mas o bezerro búfalo rosilho o emundiou. Búfalo era o

único bicho que a ele agradava. Ótimo vaqueiro em miniatura, e

até veterinário. Cuidava bem, mesmo de bicheiras. O sonho era

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ganhar um novilho, de aniversário, para tratar a vida inteira, nadar

com ele no igarapé. Mas não o tinha. Além da falta de dinheiro,

a reprovação do pai. Um dos braços fora quebrado pelo coice de

uma búfala. Não cismou de mexer com a bicha parida?Como não tinha o dele, pegava, por empréstimo,

os alheios. Bom que não judiava, como a maioria dos outros

moleques. Fazia o batismo, para um nome só dele, contudo

estabelecia com eles amores sazonais. Búfalo e moleque

preferem a amplidão do innito, para correr, para nadar, sem

destino. Chorava por eles, sofria demais. Quando soube da vaca

da Pacoval, que parira um boizinho rosilho, saiu de si. Via-se no

lombo e, na memória, já ordenava que o animal parasse para que

pudesse juntar uma porção de tucumãs.

Sonhou com ele. Iria ao encontro, mesmo que longe

casse o Lago da Embaúba, perto do qual nascera o bufalozinho.

Era distante, mas o pequeno conhecia as redondezas. Tinha doze

anos e, desde os cinco, o pai o levava para a tiração do peixe dos

lagos, só para não o deixar e depois se irritar com as queixas.

Nascera traquina. Um susto de trovão afetou a mãe, que deu a

luz aos oito meses. A parteira avisou que poderia nascer com

problemas, e não demorou a mostrá-los.

Não escondeu o desejo de ir ao encontro daquele

animal, e todos a quem mencionara a intenção reprovaram-na,

com muitos argumentos macabros. Era o lago visagento, onde

se encantara o Miranda, quando resolveu seguir a Mãe de Fogo.

Falavam a ele suas verdades, enfatizadas pelo temor existente,

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não necessariamente para amedrontarem o atrevido. Anal,

mesmo que o tentassem, seria inútil. Era impetuoso, a ponto de

ter quebrado a imagem de São Sebastião no congá do Anori - ao

qual criança alguma ousava se aproximar - num dia em que a avófora tomar um passe. Astuto que era, arquitetou tudo.

Todos os anos, no dia de São Pedro, tinha fogueira,

mingau e ladainha na casa de Seu Dico, cujo convite se estendia à

vizinhança, a qual não recusava a animação nem a fartura. Pituca,

a lha mais velha era uma moça encantadora, apegada às artes,

que caprichosamente coordenava o trabalho de ornamentação

de um terreiro que absorvia sua beleza, atraindo e satisfazendo

a todos. Havia quem fosse para o festejo; outros, para gastarem

olhares à genial e bela artista. Muitos galanteios em vão a um

coração já laçado.

Aquela seria a noite perfeita. E foi. A irmã, com cólicas,

desde cedo, dissera que não iria, fato aceito pelo pai e pela

avó, porém só jamais caria. Medo de boto. Restava-lhes, pois,

convencer o moleque a car, em companhia. Ensaiaram um

discurso, sabendo estar ele assanhado para ir, em virtude de ser

o campeão no pau de sebo. Parecia estar sempre acompanhado.

Todos os anos, ganhava a disputa e tinha de estar lá à noite para

receber o trocado.

Poderiam até estranhar a falta de contestação, contudo

não queriam mesmo dele a ida. Acharam normal. A promessa de

ir à Pacoval explicava a passividade. Cuidaram de tudo a partir do

amanhecer. E, logo cedo da noite, a velha fez a janta para que os

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dois dormissem bem, não sonhassem com defunto, como diziam.

Tomados os cuidados, saíram, animados, após trancarem toda a

casa e pedirem para não demorarem a se deitar. Caso tivessem

cado por outra razão, brincariam de adivinha, no entanto elasentia dor e adormeceu.

Notado isso, não perdeu tempo o moleque. Pegou um

pilão, magro que nem ele, colocou embrulhado na rede e pulou

a janela, encostando-a, sem esquecer o boné e a baladeira. Era

destemido, valente, e saiu, atravessando a mata, rumo ao campo.

A guariba o chamou, insistentemente, sem sucesso. A lua no céu

facilitava-lhe a façanha. Os fogos de artifício da festa de Pituca

o tranquilizavam, pois só eram soltos na hora em que dançava

a quadrilha, contagiando e capturando a todos. Quem pensaria

nele, dormindo? Não havia quem o parasse. Ao rosilho tão breve

chegaria.

Para evitar se perder, seguia a trilha desenhada pelos

caminhões e tratores que faziam o transporte de peixe e de

jacaré ao porto de embarque das geleiras. No caminho, muitos

búfalos, bezerros... Fosse outro momento, qualquer um ser-lhe-

ia ideal, embora a certeza da posterior perda. Mas queria aquele,

diferente, bonitinho, e a ele rumava, sem temer horrendos e

estridentes assovios de Matinta, o bote das cobras. Não era só.

Enm, chegou! O lago, um imenso espelho. Não muito

distante, o bezerro, aos olhos do Miranda. Todavia, tudo parecia

apenas estar-se cumprindo e, num galope, quiçá em socorro a

algum vaqueiro desconsolado, desfez-se o cavalo na innita

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campina como água na estiagem atroz dos campos marajoaras.

O moleque custou naquilo acreditar. Embora ciente de que, um

dia, pudesse até perdê-lo, estava maravilhado pelo encontro,

tão sonhado. Aproximou-se logo. E não é que o bicho, em geral,muito arredio, já lhe abanava o rabo?

Selava-se ali mais um de seus grandes amores, e já

corriam, lado a lado, como se, há tempo, fossem um do outro

conhecido. Circundavam o lago e, vez ou outra, o bichinho deitava-

se para receber um afago de “seu dono”, quando, subitamente,

um cantar de galo, seguido de um forte silvo, deixou o animal

bastante agitado, a correr em disparada, submergindo nas águas

prateadas. O menino, acostumado aos igarapés, mergulhou

incansavelmente, intentando achá-lo, mas vão foi o excessivo

esforço. Tomado por intensa melancolia, retornou à casa da avó

e já acordou acometido de uma estranha e fortíssima febre, que

o deixou na situação em que se encontrava.

A espera pelo Anori tornou-se inútil. E talvez bem

alegre estaria o pajé. O moleque, aproveitando-se de um

descuido de todos, desapareceu, e, quando lhe perceberam a

ausência, recorreram a São José, com o intuito de reencontrá-lo.

Procuraram-no nas matas, nos igarapés, nos campos e, terminado

o primeiro dia de buscas, restava-lhes só aguardar que o corpo

boiasse ou que os urubus o localizassem.

Anos passaram-se e o moleque, até hoje, é visto, por

quem pode, no lombo do bezerro rosilho, em companhia do

Velho Miranda, em seu cavalo, sempre a ajudar vaqueiros na

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busca de reses perdidas pela imensidão do Marajó, desde que

lhes deem uma garrafa de cachaça. Tornara-se vivente do Lago

da Embaúba, laçado naqueles mergulhos, assim como fora, por

um grande amor, o coração de Pituca.

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O SACI

Gustavo Valvasori

Maurício não gostava de ninguém. Não importava qual

fosse a cor, sexo, religião ou simpatia da pessoa, ele simplesmente

não gostava de gente. Era lho único e aprendeu desde cedo

a respeitar o silêncio e a conviver apenas com seus próprios

pensamentos. Quando chegou a hora de frequentar a escola,

descobriu que o resto do mundo era movimentado e barulhento

demais, e que as experiências medíocres que seus colegas e

professores tinham para compartilhar não lhe interessavam nem

um pouco. Se afastou o máximo possível de todos até o dia da

formatura no colegial e logo em seguida, abandonou os estudos.

Aos dezessete anos de idade, cansado de ouvir seu pai

chamá-lo de vagabundo e das cobranças de sua mãe (que não era

vidente, mas parecia convencida de poder prever a vida do rapaz

pelos próximos vinte anos) a respeito de seu futuro, decidiu que

era hora de sair de casa.

Gastou os últimos trocados de que dispunha – parte do

dinheiro que havia ganho de sua avó no natal – em uma viagem

de ônibus para um município próximo, e ao chegar se deitou no

banco da praça de uma pequena igreja para descansar.

Na manhã seguinte, folheando o jornal que tinha lhe

servido de coberta durante a noite, encontrou uma oferta de

emprego que lhe pareceu interessante.

Um fazendeiro das redondezas oferecia o cargo de

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caseiro para alguém disposto a tomar conta de sua propriedade.

Oferecia casa, comida e um simbólico salário mensal em troca

da realização de tarefas diárias como aguar as plantas, varrer

quintais e tratar de animais.Maurício apresentou-se para o serviço e, ao anoitecer,

já estava empregado e dormindo tranquilamente em uma cama

dura como pedra no interior de uma precária habitação de

madeira, construída nos fundos da casa principal da fazenda. A

cabana era humilde mas possuía tudo que ele poderia precisar:

frutas, grãos e verduras para se alimentar, um lugar quente e

fresco para dormir, e o abençoado silêncio que apenas a completa

ausência de seres humanos poderia lhe proporcionar.

O que não signicava que ele não se sentisse entediado

de vez em quando.

Maurício não se importava muito com a TV não

sintonizar nenhum canal, anal existia falatório em excesso na

programação, mas o fato de que a biblioteca mais próxima cava

a quase duzentos quilômetros de distância o aborrecia.

Certo dia, ele foi ao supermercado da cidade comprar

laticínios e decidiu adquirir também uma garrafa de vodka barata,

pensando que ela talvez pudesse ajudá-lo a combater o tédio.

O álcool inebriou seus sentidos e alegrou seu espírito. E assim

centenas de garrafas dos mais variados tamanhos, logotipos

e conteúdos seguiram o rastro da inocente e despretensiosa

primeira compra.

Muitas semanas transcorreram desta forma, com o rapaz

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alternando seu tempo entre desbravar a natureza ou a bebida,

até o dia uma garrafa de Velho Barreiro lhe trouxe algo diferente.

Maurício estava a poucos goles de liquidar a bebida,

deitado na grama com as costas apoiadas na parede lateral deseu pequeno casebre, observando com interesse um jovem

passarinho que pulava na grama sem conseguir levantar voo,

quando notou um jovem mulato, que vestia roupas amarrotadas

e um boné do MST com a aba virada para trás caminhando em

sua direção.

– Boa tarde – o estranho lhe disse.

– Boa tarde – Maurício respondeu. – Em que posso ajudá-

lo? – perguntou.

– Estava caminhando pela estrada, quando notei o brilho

do sol reetido na sua garrafa. Vi que estava sozinho e achei que

talvez você pudesse precisar de ajuda para terminar a bebida.

– E de onde foi que tirou essa ideia?

– Um passarinho me contou.

– Passarinhos são fofoqueiros e barulhentos demais.

Esqueceram de te contar que você chegaria tarde demais para

me ajudar – Maurício armou, balançando a garrafa vazia para o

estranho. – Qual é o seu nome?

– Pode me chamar de Pereira – o homem respondeu.

– Bom, não é todo dia que eu recebo visitas. Vou ver se

tenho algo pra gente.

Algumas horas depois, a dupla já havia secado uma garrafa

de conhaque Presidente e quatro latas quentes de cerveja.

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Maurício simpatizou rapidamente com o desconhecido.

Ele não falava muito. Não fazia perguntas. Nem comentários

estúpidos a respeito de como o dia estava quente ou de como

o céu estava azul. Simplesmente cava por perto, de maneiraconfortável e silenciosa.

Ao entardecer, Pereira confessou a seu novo amigo que

precisava de um lugar para passar a noite. E Maurício ofereceu a

ele um colchão velho e rasgado que tinha sobrando na cabana,

lhe dizendo que poderia dormir no chão da cozinha se quisesse.

A estadia que inicialmente seria de apenas um único dia,

acabou por prolongar–se durante semanas, e Pereira começou a

auxiliar Maurício em suas tarefas diárias. Ele cuidou das plantações,

alimentou e vacinou os animais, consertou equipamentos, varreu

a casa e lavou a louça. Além disso, trabalhou duro para domesticar

Gengiva, um dos cavalos da fazenda.

O enorme corcel amarronzado tinha um temperamento

difícil, mas Pereira rapidamente adquiriu grande afeto pelo

animal.

Maurício até chegou a considerar a ideia de apresentar

seu novo ajudante para o proprietário, mas, estranhamente,

sempre que o fazendeiro visitava o terreno Pereira desaparecia.

Apesar de desconar desse comportamento, Maurício preferiu

assumir que o amigo precisava tanto de um lugar para car que

receava do que fossem dizer ao vê-lo ali sem prévia autorização e

deixou o assunto de lado.

Após meses convivendo dessa forma, teve início o

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período de férias escolares e o proprietário trouxe a mulher e

suas duas lhas pequenas, para que passassem um tempo na

fazenda.

Ao amanhecer do terceiro dia da estadia da família nocampo, Maurício acordou assustado ao ouvir gritos vindos da

casa principal. Segundo o barulho, uma das lhas do proprietário,

que tinha apenas seis anos de idade, fora atropelada por um dos

cavalos.

Maurício se apressou na direção da confusão e, ao

chegar, viu o dono da fazenda colocando a garota machucada

e o resto de sua família no carro para que pudessem acelerar

imediatamente para o hospital mais próximo.

– Por que deixou um dos cavalos soltos? – o homem

cuspiu a pergunta, com lágrimas e ódio no rosto.

– Não deixei... – Maurício respondeu, assombrado pela

imagem da garotinha ensanguentada à sua frente. – O cavalo

talvez tenha fugido do celeiro.

– Eu quero esse monstro morto! Agora!

– Certo.

– Vi ele correr para trás dos chiqueiros.

– Tudo bem – o capataz respondeu. – Vou encontrá-lo.

Assim que o automóvel do fazendeiro deixou a

propriedade, Maurício saiu em busca do cavalo portando uma

velha espingarda nas mãos.

Ao avistá-lo mastigando um punhado de grama nas

proximidades de uma velha gueira, o homem apoiou a arma no

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braço esquerdo e preparou sua mira. Estava prestes a puxar o

gatilho, quando foi subitamente interrompido:

– Não faça isso – interveio Pereira, colocando-se na

frente da arma. – Por favor.– São ordens do patrão. Se eu não obedecer, vou perder

meu emprego.

– Não foi culpa dele.

– E de quem foi então?

– Minha. Eu saí dar uma volta com ele durante a

madrugada. Minha prótese caiu, perdi o equilíbrio quando

estávamos perto do lago e acho que o machuquei sem querer,

fazendo com que ele saísse correndo sem direção – disse o

negro, levantando a barra de sua calça jeans e revelando que

utilizava uma prótese de plástico no lugar onde supostamente

cava sua perna esquerda. – Uma das garotas estava brincando

na varanda, e o Gengiva a acertou com um coice ao correr de

volta para o celeiro. Eu assisti à cena de longe, mas não consegui

acompanhá-lo.

– Seu maluco! Se eu soubesse dessa sua perna, nunca

teria deixado que chegasse perto dos cavalos.

– Sinto muito. A prótese caiu sem querer. Isso nunca

aconteceu antes.

– Saia daqui.

– O quê?

– Quero você fora da fazenda.

– Eu não tenho pra onde ir.

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– Não me interessa.

– Eu vou embora, mas só se você me prometer que não

vai fazer nada com o Gengiva.

– Não posso prometer nada.– Então não vou embora.

– Vai sim – disse Maurício, empurrando o homem para

fora de sua mira.

– Não – disse Pereira, ncando seus pés com força na

terra.

Amizades são como gelo. A princípio, parecem muito

rmes e sólidas, mas qualquer pequeno deslize pode fazer com

que tudo se desfaça rapidamente em centenas de pedaços.

Socos, cabeçadas e pontapés voaram para todas

as direções. Olhos roxos, dentes quebrados, arranhões e

machucados marcaram carne e destruíram em segundos o que

antes era apreço e camaradagem.

Poucos minutos depois da luta começar, uma

tempestade começou a formar-se acima deles e o vento castigou

seus olhos com terra e folhas secas, enquanto trocavam sopapos

enfurecidamente. Parecia que a batalha jamais terminaria. Mas

Maurício avistou uma garrafa de aguardente jogada no chão e

empurrou a briga na direção dela até conseguir alcançá-la.

Ele chocou a garrafa contra o chão, partindo-o ao

meio, e a segurando pelo gargalo, atingiu o pescoço do negro,

degolando-o como eles costumavam fazer quando havia frangos

para o jantar.

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Pereira engasgou-se com seu próprio sangue e deu

adeus ao mundo dos vivos fazendo um gesto obsceno com as

mãos.

Maurício arrastou o corpo do antigo amigo até o fossoda fazenda, atirou-o ali dentro e, depois de abater o cavalo, fez o

mesmo com o que restava de seu estoque de bebidas. Ele sabia

que, depois de tudo o que havia acontecido, uma recordação de

Pereira o esperaria dentro de cada nova garrafa.

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O CORONEL E O LOBISOMEM

Ana Rosa de Oliveira

Era sempre do mesmo jeito – primeiro o chamado, ou

coisa parecida, depois uivos e mais uivos, um coral sinistro. Até já

estávamos acostumados com aquela agonia uma ou duas vezes

ao mês.

De vez em quando um caçador ou pescador chegava à

cidade narrando histórias estranhas.

Do caçador não duvidavam muito, quanto ao pescador,

este ninguém levava em conta, tinha fama de exagerado.

Certa vez Gerbásio, um dos poderosos da região, chegou

à cidade após muito tempo enado na oresta.

Segundo contou na divisa entre suas terras e a do

Compadre Cássio, encontrou sinais de um animal que bem

poderia ser o causador de seus problemas. Seguiu os rastros do

bicho, só que antes do riacho perdeu a pista, mas mesmo assim

continuou procurando.

Os animais estavam desaparecendo e os encontrava

próximo ao rio das cobras, mortos e com a cabeça arrancada.

Achava muito estranho aquele tipo de coisa, gente não era, senão

levaria o animal depois de abatido. Bicho, que bicho poderia ser?

Fora a cabeça não faltava nenhuma outra parte, o restante do

corpo permanecia intacto.

Depois de muito investigar, nada tinha conseguido, e

agora estava chamando todos os criadores para uma caçada. Era

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bom todo mundo se preocupar, hoje era ele, amanhã poderia

ser qualquer um. E mais, dizia exaltado , quem garante que essa

criatura de uma hora para outra não vai resolver sair por aí,

arrancando a cabeça das pessoas...

Assim, a notícia se espalhou e os interessados se

juntaram ao coronel Gerbásio para a tal aventura.

Veio gente de toda parte, até mesmo das cidades vizinhas,

pois a notícia era de que havia um lobisomem colecionador de

cabeças de animais.

O coronel estava até dispensando voluntários e para não

deixar ninguém de fora combinou dois grupos e no dia marcado

a tropa se reuniu nas terras do coronel. Mas ninguém sabia ao

certo o que estavam procurando.

Alguém anal já havia se deparado com um lobisomem?

Ninguém. Todos conheciam de ouvir falar, uns achavam que era

semelhante a um cachorro, outros achavam que fosse igual a um

lobo e havia ainda os que pensavam que se parecesse com os

humanos, só que com um pouco mais de pelo, unhas grandes

e dentes enormes. Seria fácil reconhecê-lo caso o avistassem. E

com esse retrato falado na mente, saíram em busca da criatura.

A tropa atravessou rios e orestas, seguiu morro acima

e morro abaixo e quando estavam por desistir de tão exaustos,

avistaram uma casinha em meio à mata fechada. Um homem

jovem e muito alto, quase um gigante, recebeu-os à porta.

Coronel Gerbásio se apresentou como líder do grupo e

expôs a situação que estavam enfrentando em sua região.

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Jota Caolho, o dono da casa, foi logo dizendo:

– Por aqui num tem este tipo de problema não. Até

porque nem tenho criação, fora umas poucas galinhas, que de

noite boto tudo dentro de casa. Dentro de casa é modo de dizer,pro que como podem ver o quintal é praticamente outro cômodo.

– “Ceis” aceitam um cafezinho? Se quiserem posar aí

no quintal, num tem problema, as galinha cam de fora, e se

“argúem” quiser pode “inté” armar as rede ou “intão” ca todo

mundo aqui dentro... “Cum” jeitinho cabe... Assim ninguém pega

a “friage” da noite.

Todos concordaram que seria melhor dormir ali aquela

noite, descansar e depois seguir adiante. A comida apesar de

farta não era das melhores. Carne de frango e algumas raízes

cozidas e poucos grãos de arroz. O dono da casa se desculpou,

dizendo que há tempos não ia até a cidade.

Alguns, com uma desculpa qualquer, comeram da

própria comida que haviam trazido, não provaram nem mesmo a

carne que todos disseram estar gostosa.

Depois de prosearem um pouco, o cansaço e mais a

comida fez com que todos fossem ajeitar um canto para dormir.

O coronel, entretanto, não parecia estar à vontade. Achava que

Jota Caolho tinha alguma coisa esquisita. Como se não bastasse

aquele cheiro de coisa podre que saía de sua pessoa, havia um

olhar, profundo, que encarava a pessoa com quem estivesse

conversando com tanta insistência que chegava a incomodar.

Por ele, não teriam permanecido ali, mas fora voto

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vencido e resolveu car atento durante a noite. Ficou do lado de

dentro junto com mais meia dúzia do grupo e o dono da casa.

Todos caram surpresos com sua escolha, pois contavam com

ele do lado de fora.Horas depois, quando já havia decorrido tempo

suciente para que todos estivessem dormindo, o dono da casa

se levantou devagarzinho e cuidadosamente chegou até a porta.

O barulho da tramela e o ranger da fechadura seriam sucientes

para acordar qualquer um, mas aqueles ali precisariam que o

barulho fosse mesmo muito grande para acordá-los. Assim, ele

atravessou por entre as redes e saiu em direção ao mato.

Gerbásio o acompanhou a uma distância segura para

não ser percebido e o viu crescer em tamanho à medida que se

afastava.

De repente, desapareceu, e só então se deu conta de que

havia se afastado bastante da casa onde estava. Receoso, não

viu mais o Jota Caolho; estava sozinho e se algo lhe acontecesse

ninguém saberia. Um arrepio lhe percorreu a espinha e, resolveu

voltar; não queria admitir, mas estava morrendo de medo.

A lua cheia estava linda no céu escuro. Parecia zombar

dele, logo ele, tão destemido! Graças a Deus que não havia

guerra em nosso país, pensava enquanto procurava o caminho

de volta. Passou a mão na cintura, a arma estava lá; primeiro

atirava, depois ia ver o que era. Já estava farto daquela caçada.

De repente um cão enorme e peludo apareceu no meio

da trilha. Parecia estar esperando por ele. O coronel levou a

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mão à cintura e puxou o revolver. Não conseguiu atirar, o olhar

xo do cão pareceu hipnotizá-lo, não conseguia se mexer e

os pensamentos também não eram coerentes. Aquele olhar

penetrante... Era igual ao do Jota...– Meu Deus do céu! – gritou em voz alta. – Jota Caolho!

Não pode ser...

Ao ouvir seu nome o cachorro estremeceu e saiu em

desabalada carreira. E o coronel também desandou a correr em

sentido contrário. Quando se deu conta estava chegado à casa

de onde saíra horas antes.

Não quis entrar. Teve medo, e se o Jota não estivesse lá

dentro? Preferiu car na dúvida. Resolveu não acordar ninguém,

cou por ali esperando o dia amanhecer. Acabou cochilando.

Acordou sobressaltado quando um dos homens tocou em seu

ombro e perguntou o que ele fazia ali, se tivesse dito que caria

do lado de fora teriam armado uma rede para ele.

O cheiro de café se espalhou pelo quintal e logo o dono

da casa apareceu para convidar todos a entrarem. Tinha ovos

fritos e tapioca que desta vez todos comeram.

Quase não conversaram durante o café. O coronel

não queria puxar assunto e o dono da casa parecia um pouco

ausente. Devia saber que foi reconhecido durante a noite. O

coronel não queria contar para ninguém das suas suspeitas, mas

achava prudente saírem dali o mais rápido possível, e no caminho

contaria aos companheiros o que tinha acontecido durante a

noite.

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Deixou que todos terminassem o café e saiu para

arrumar os cavalos e foi juntando as coisas espalhadas junto às

redes. Nisso, alguma coisa chamou sua atenção no fundo do

quintal. Havia um monte enorme coberto com uma manta decouro velho. O cheiro desagradável que saía dali se parecia com

aquele do Jota Caolho.

Olhou em direção a porta da casa, os outros continuavam

lá dentro, entretidos com o café. Curioso levantou o pedaço de

couro e estarrecido vericou uma enorme quantidade de cabeças

amontoadas cuidadosamente. Não teve coragem de contá-las,

apenas viu que eram muitas e de animais diferentes – cachorro,

gato, galinha, e tinha muitas cabeças de vacas. Algumas pareciam

humanas... – Soltou bruscamente o couro que escondia aquela

macabra coleção.

Teve vontade de sair correndo, mas não podia deixar

que o medo o dominasse. Deveria voltar e agir naturalmente,

pois os outros estavam ali por sua causa, e alguns nem eram

seus conhecidos, mas atenderam seu chamado e durante aquela

viagem se tornaram amigos.

Em vez de sair correndo voltou para o cômodo onde

alguns ainda tomavam o café. Quando abriu a porta, todos o

olharam assombrados e imediatamente taparam o nariz.

– Coronel, que cheiro horrível é este e que cabeça é esta

enganchada em seu pé?

Gerbásio olhou os próprios pés e se deparou com

a cabeça de um cachorro esfarelando-se presa no cadarço

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da botina. Não viu o olhar malévolo que Jota lhe dirigiu, saiu

correndo em direção à porta de saída da casa. Soltou um grito

medonho e nunca mais foi visto.

Os companheiros não compreenderam o que haviaacontecido. Saíram apressados atrás do coronel, e nem

agradeceram a hospitalidade e a gentileza com que foram

recebidos. Não conseguiram alcançá-lo e depois de muito

procurar, voltaram primeiro para a cidade na esperança de que

o coronel e eles tivessem se desencontrado durante a volta. Mas

depois de muito tempo desistiram de esperar por ele e voltaram

para suas casas.

Depois de algumas semanas o coronel apareceu, mas

já não é o mesmo. Não conta mais história, nem sai para caçar.

Aliás, depois daquele, dia nunca mais caçou. Quase não sai de

sua fazenda. Dizem os mais íntimos que ele cou amalucado,

conversa sozinho e às vezes aponta o dedo para alguém e ca

dizendo:

– Cuidado com a cabeça do seu cachorro e com a sua

também. O lobisomem pode vir buscar!

Os lobos continuam uivando em noites de lua cheia

como sempre zeram ao longo dos tempos, mas as cabeças dos

animais já não desaparecem mais naquela região e aquela história

passou a fazer parte do imaginário popular.

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A FUGA DO CURUPIRA

Inácio Oliveira

Ele, baixo, um metro e trinta, cabelos avermelhados,levemente envelhecido; caminha cuidadosamente pela encosta

do rio. Seus pés virados para trás deixam marcas de quem está

voltando, mas ele sabe que seu caminho é sem volta. A oresta

deixou de existir rio acima de onde ele viera e torna-se cada vez

mais esparsa por onde ele avança. Aqui as terras se elevam,

ele faz um grande esforço para escalar o barranco e seguir em

frente. Parece cansado e triste, tem a expressão abandonada

de um anão de jardim. Suas mãos pequenas e rudes afastam

da sua vista os ramos que pendem das altas árvores; ele mira

vagarosamente a imensidão que se alterna entre verde e cinza,

clareira e oresta. Um cão late, distante, muito distante. Ele não

gosta de cães, esse animal indigno que serve aos homens. Sabe

que os homens estão próximos, é possível sentir o cheiro e ouvir

o barulho das máquinas ao longe.

Desde quando a oresta começou a ser destruída, ele

migra rio abaixo, a oeste. Vaga errante e sozinho, exilado do seu

próprio mundo. Não sabe aonde vai. Assusta-o a perspectiva

das cidades: os homens e as suas máquinas, fábricas, prédios e

automóveis. Às vezes ele para – saudades de sua casa – e olha

para trás como para o m do mundo.

Já chegou a uma parte da oresta onde antes nunca fora,

sente-se confuso fora de seus domínios. Teme cair em alguma

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armadilha que os caçadores prepararam. Não sabe quando sua

peregrinação terá que acabar, mas sabe que este agora é o seu

destino: seguir e seguir. Nunca esteve tão sozinho, os deuses

todos mortos, as lendas e as profecias já não fazem mais sentido,ele mesmo já não faz mais sentido.

O rio está resumido a um lete d’água que corre sobre

as pedras. Ele se ajoelha e com as mãos feito concha sorve um

pouco d’água que lhe refrigera o corpo, dando-lhe uma sensação

de alívio. Olha para os lados e um estranho verão entristece a

paisagem.

A tarde declina. Ele caminha em direção à planície que

é um vasto campo de arroz, quem olhasse veria qualquer coisa

como um espantalho ou um anão perdido no arrozal. Vivera

muitos anos para saber que não deve caminhar assim pelo

descampado ainda à luz do dia. Apressa-se e entra novamente

na oresta.

Vai anoitecer. Há uma leve inquietação que cessa assim

que o sol escurece. Ele se agasalha junto ao tronco de uma

árvore a tempo de ver as primeiras estrelas. Faz-se um completo

silêncio, é possível apenas ouvir um som inarticulado que vem

do seu peito. Em noites como esta ele costumava sonhar sonhos

antigos. Agora vive inquieto, perdera a paz que tinha. Seu

coração está pequeno, incomoda-se ao mais leve ruído das frutas

que caem sobre as folhas secas no chão.

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O TABACO DA CAIPORA

Moisés Diniz

Uma homenagem ao meu velho pai que, aos 74 anos, antes de

morrer, continuava com o seu quinquagenário vício de mascar

tabaco bruto, herança do seu inestimável tempo de vida heroica

na oresta. Por longos anos, como um monge de mãos profanas,

ocupava os galhos de tantas árvores à espera da caça. Uma rede

rústica, a embalar o bravo sonho de meu avô que viera de Riacho

do Sangue, no sertão nordestino, uma espingarda teimosa, tanto

quanto meu velho pai, e quatro dedos de tabaco bruto para mascar,

acalmar a Caipora e aquecer a madrugada.

Um velho seringueiro, que tive a honra de tornar-me amigo de

seus cabelos brancos, contou-me uma bela estória de um encontro

noturno seu com a Caipora. Para ele - e ai daquele que risse de suas

palavras (!) - não é estória, foi história!

***

Um cansaço titânico dominava o meu corpo, era como se

eu tivesse caminhado do Ceará ao Acre. O balde de leite já estava

vazio. Uma “péla” de borracha repousava, acanhada, no fundo

do defumador. Se aquele amontoado de leite defumado fosse

dono de um grama de sensibilidade, como uma dama teimosa,

teria me confessado:

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– Bastião, tu estás a queimar a minha pele!

Fiz de conta que não ouvi. As últimas colunas de fumaça

do defumador perdiam-se por entre os galhos de um frondoso e

triste pau-d’arco. Luzia, com os seus olhos acuados, enrolava umporronca. Na última brasa, meio morta como a minha saudade,

acendi aquele velho companheiro. Traguei! Suspirei! Comecei a

reetir! Aquela péla, de vinte e poucos quilos, fruto de meia noite

e meio dia de trabalho, não daria, sequer, para comprar um par

de sapatos para reverenciar o meu santo padroeiro.

Meia dezena de meninos pálidos, em algazarra,

seguiram-me até o porto onde, feito um sapo coaxando, eu lavei

o meu corpo. Sentado sobre uma tábua, no barranco, contemplei

meus lhos brincando com a água. Minhas mãos calejadas e toda

a minha luta, como uma mancha de vergonha, não davam para

comprar outros brinquedos. Eles contentavam-se com a água

gélida do rio! Ali, inconsolável, prostrei-me a dissecar a alma dos

meus lhos. Cinco, nove e treze anos. Eram tantas as idades! Não

sabiam, sequer, tatear uma única letra do alfabeto. Rústicos,

dentes apodrecidos, eram verdadeiros discípulos da minha

utopia, voltar, um dia, à bela terra de meus pais. Discípulos,

também, da minha agonia, não seriam doutores, continuariam

minha obra invisível e a minha canseira, cortar a pele pródiga das

árvores!

Os pirilampos e a sua algazarra luminosa! Uma coã, qual

notícia da morte de um irmão, rasga o seu canto desanado e

triste. Meu cachorro, solidário, lambe as feridas enfezadas,

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construídas nos cipoais, de minhas pernas impacientes. Luzia

prepara a boia. Os meninos beliscam-se, riem e recebem uma

advertência por suplantar a voz do radinho de pilha. Este, feito

um doente terminal a pedir água, conta o que se passa na cidade.Uma voz bonita, deformada pela velhice das pilhas do rádio,

anuncia uma festa na casa do delegado, o aniversário do padre,

a viagem do intendente, a gravidez da esposa do juiz e a festa do

padroeiro. Fiquei triste no meu abandono!

Nesse momento, os olhos pálidos de Luzia se cruzam

com os meus. Desnecessária se fez a palavra. Minha castigada

esposa se ressentia daquela vida malvada, enquanto, na cidade,

toda aquela gente divertia-se à custa do meu suor. E nem um

convite de aniversário chegou à minha colocação. Coitado! Estava

tendo início mais um delírio. O que os doutores conversariam

comigo na festa? Se até o mutá, quando ouvia meus enfezos e

minhas agonias, cava calado feito uma mula! Engoli um bocado

de pirão, a colher irritou-se com os meus dentes pubos(!), um

pedaço de carne de cotia e lavei a boca com a água do rio. Queria

engasgar aquela convulsão que cortava a minha alma. Mais um

porronca e busquei o caminho da rede. Vi que Luzia debruçava-se

sobre o girau e, sem dizer-me, lavava os pratos e a sua tristeza.

A rede balança como a vida dos deserdados. Os meninos

espremem-se no outro in-cômodo. Luzia está a trocar o vestido!

Pelo menos as pernas brosas de Luzia, meu Deus - blasfemei (!)

- afogam meus desejos impublicáveis! Único prazer que não me

roubaram os coronéis do ouro elástico. Destruíram, todavia, os

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seus encantos! Luzia despe-se! Coloca-o sobre um velho banco no

canto do quarto! Uma toalha maltratada por quatro anos envolve

o seu corpo castigado. Ouço quando Luzia, feito uma jaçanã

arredia, chama Irene, minha lha do meio, para acompanhá-laaté o porto. Luzia, depois de duas horas da fuga do sol, quando a

noite protege dos abelhudos, vai tomar o seu banho.

Acendo mais um porronca. O meu pequeno Francisco

tosse no outro quarto. Uma infecção pulmonar mal tratada ou

o acre odor do tabaco? Luzia, apesar dos seios ácidos e a pele

transgredida, retorna com o cheiro do rio. Meu corpo afugenta

a ruçara insistente e o cansaço do balde e do sacutelo. Luzia

acomoda-se, dengosa, dentro da rede. O sangue desenvolto

da digestão, conectado à pele quente de Luzia, apressa-se, em

romaria, pelo meu corpo.

Um ritual biológico, mesmo no cérebro de um pária como

eu, vai dominando meu corpo encharcado de Caipora. Minhas

preces roucas e minhas macumbas sombrias escondem-se no

neurônio mais enferrujado do meu chassi cerebral. Como se eu

fosse um peixe Crossopterígeo das águas do Devoniano, preciso

coordenar meu olfato para sentir o cheiro do rio no corpo de Luzia,

concentrar minha audição primitiva para ouvir os seus gemidos

pálidos – se ela geme alto, a corrente de ar intromete-se, levando-

os, pelas brechas da paxiúba – e equilibrar-me na rede, como um

quelônio no balseiro. A visão não serve p’ra mim! Preciso regular

a temperatura do meu corpo – megatons de oxigênio invadem as

minhas veias – e controlar a circulação do meu sangue revolto.

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Cento e cinquenta milhões de anos se passaram – e

eu apalpando Luzia (!)– para que me tornasse um réptil dentro

de uma rede impertinente. O Complexo-R, como se eu fosse

um réptil, um dinossauro, aguça meu estado de agressão.Estou enando minhas unhas na carne nua de Luzia. A sinfonia

noturna das vozes da mata vai reduzindo os seus bemóis.

Feito um mamífero noturno do Carbonífero, sequestro o meu

sistema límbico para utilizar na sucção teimosa dos seios de

Luzia. Sessenta milhões de anos de pura paixão, feito um símio

braquiador – lembrei-me do guariba da janta de ontem à noite(!)

– para que eu percebesse todo o corpo de Luzia. Fiquei em dívida

com o meu cerebelo, por fazer-me notar que os meus braços e

as minhas pernas estavam grudadas nos braços e nas pernas de

Luzia. Um orgasmo vulcânico esparramou-se sobre as pernas

maltratadas de Luzia!

Fumando um porronca, como se estivesse degustando

o néctar dos deuses, percebo que os meus cérebros primitivos

adormecem. Meu neocórtex, como um fantasma biológico,

leva-me de volta à vida. Forçando a articulação dos músculos

da minha laringe, ele ajuda-me a dizer, baixinho: te amo, Luzia!

E, compadecendo-me dos meus bruguelos, lembro que tenho

a encher de leite de seringa – bem mais frio que o leite que

deliciou Luzia – um balde e umas tigelas. A madrugada, maldita,

castigando o meu corpo, empurra-me, gélido, para a oresta!

O vento da madrugada é um vulcão de gelo maltratando

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o meu corpo. Os galhos da envireira estão pálidos. Se eu tivesse

mais de um cobertor - o meu está roto e esburacado(!) – cobriria

a pele fria dos galhos. Eles sustentam a minha rede e a minha

agonia. Luzia, coitada, cou numa rede sem cobertor! Vozesroucas rondam a espera. Minha velha espingarda está como uma

menina no encontro com o amante. Quer dividir o seu fogo com

os enigmas da oresta e fazer estancar o sangue da primeira caça

que aparecer sob a “espera”. Já cuspi algumas dezenas de vezes!

Um novo naco de tabaco bruto está sendo mastigado por meus

dentes pubos.

Insistentes, vozes roucas rondam a “espera”. Um calafrio

percorre o meu corpo. Meus tímpanos desativados sentem que

algo sinistro navega nas correntes de ar. Como a notícia da morte

do meu caçula, ouço uma voz:

– Bastião, me dá um pouco do teu tabaco!

O calafrio que atinge o meu corpo esmaga o meu

raciocínio tacanho e as batidas do meu coração. Trêmula, a luz da

minha lanterna tateia a geograa da “espera”. As vozes da mata

silenciam! Bacuraus e saracuras amedrontados! Nada sob a luz

dos meus olhos! Confesso-me a mim mesmo:

– Acho que dormi e tive um pesadelo!

A sinfonia triste da oresta vai reabrindo em lá menor.

É como se uma jaçanã, teimosa – parafraseando Paulo Diniz –

dissesse:

– E agora, José?

Confesso que a minha valentia de nordestino foi tragada

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por aquela voz assombrosa! Estou há dezenas de quilômetros

da morada mais próxima, a minha choupana. Meu cérebro me

reanima:

– Deve ser um caçador perdido de outra colocação.O silêncio volta a sentar-se no trono da mata. Aito,

mastigo o terceiro naco de tabaco. O tapir não aparece para

degustar a birindiba, a maçã da oresta. Naquela noite assombrosa

- parece-me - a anta pariu na alcova selvagem. Talvez, assim, haja

explicação para a ausência do macho na “espera”. Mesmo com

fome, o tapir está protegendo a cria. Estes pensamentos vão

consumindo o tempo da madrugada e desviando meus neurônios

daquela voz pavorosa.

– Bastião, por Deus, me dá um pouco do teu tabaco!

A mesma voz e o mesmo pavor! Um calafrio percorre

o meu corpo, desmaio. Olho ao derredor, com as unhas fustigo

a minha carne. Estou acordado sobre a “espera”. Tateio a rede,

não encontro o meu tabaco. Agora, aquela voz assombrosa

ganha um acorde humano:

– Não tenha medo, olhe para mim, Bastião!

Lentamente, como se mil ampolas anestesiassem o meu

corpo, dirijo meus olhos na direção daquela voz impertinente.

Perplexo, desconexo e amedrontado, vejo uma imagem

formar-se sob a luz dos meus olhos. Tênues raios da madrugada

inltram-se por entre os galhos e os cipoais. O silêncio da mata

agride meus tímpanos. Como uma mancha de sangue a formar-

se sobre a folhagem, vislumbro a gura de uma mulher. Sua voz,

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estranhamente - no meu imaginário de duas décadas, era um

ente maligno - é mansa, meio febril:

– Sou eu, Bastião, a mãe da mata, a Caipora!

Sobre uma raiz, tragando um porronca, está sentadaa Caipora. Sua pele é negra como uma noite de inverno. Um

pedaço de estopa cobre o seu corpo. Não tenho como detalhar

o seu perl! Quando, após tragar, ela expira a fumaça, percebo

que os seus dentes estão enegrecidos e pubos. Pernas, ventre

e seios cobertos! Seus cabelos, negros e abundantes, mais

se assemelham a um cipoal após a tempestade. É muito feia a

Caipora!

– Bastião, abandona o teu preconceito!

Sinto que a sua voz funciona como um poderoso ópio.

Desaparecem os calafrios. Uma paz inominável invade a minha

alma. A Caipora, novamente, exclama:

– Desce de tua rede, Bastião, vem conhecer a Caipora!

Lentamente, vou desfazendo a subida nos galhos da

envireira. Meu sistema interno de alavancas não permite que,

simultaneamente, eu desça da árvore e contemple a Caipora.

Com os pés no chão, giro meu corpo em direção à Caipora. Um

susto! De pé, a Caipora não tem mais a estopa sobre o corpo!

Sobre o meu, um novo tipo de calafrio. Seus cabelos entaniçados

permanecem. Dentes pubos e enegrecidos. Todavia, algo

espetacular encanta os meus olhos. Pernas torneadas e sedutoras.

Um ventre fumegando desejo - como se a Caipora tivesse uma

dezena e meia de anos - faz-me lembrar do ventre paquiderme de

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Luzia! A minha assombração aumenta quando a minha atenção

concentra-se nos seios da Caipora! Rijos, dourados, mais parecem

dois corações a pulsar! Meu êxtase aumenta na voz da Caipora:

– Abraça-me, Bastião, ajuda-me a destruir o meuenfurecido desejo!

Transtornado, aproximo-me daquele corpo que mistura

beleza, embrutecimento, compaixão e desejo. Dentes, cabelos e

unhas, sujos e enegrecidos. Neles reside o seu embrutecimento e

a minha compaixão! Ventre, pernas e seios, encantadores. Neles

estão a sua beleza selvagem e o meu desejo humano! Uma carga

elétrica percorre o meu corpo. Diabos, ela veio através dos meus

gânglios! Meu cérebro, maldito, está a comandar o meu corpo!

Sua voz é quase um consolo:

– O que foi, Bastião, que desânimo é esse?

Uma mulher inconsolável e um cérebro de Homo habilis.

Sinto que um novo ritual biológico comanda o meu corpo. É

como se eu estivesse habitando cavernas - há dois milhões de

anos - e manuseando as primeiras ferramentas. Meu neocórtex,

poderoso e indevassável, comanda e reelabora as minhas reações.

Aprendi com os galhos das embaúbas, meu neocórtex carrega as

marcas humanas. Lembro-me, nesse instante, da minha Luzia! Os

primeiros raios do sol sobre o nosso casebre trazem, para Luzia,

os primeiros rasgos de preocupação. Minha compaixão cresce na

direção do meu casebre. À pergunta da Caipora, resmungo:

– Estou preocupado com Luzia!

Retorno no tempo uns sessenta milhões de anos. Como

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um primata braquiador, estou a treinar a percepção dos meus

braços e das minhas pernas entre os galhos. Flagro-me apalpando

os braços e as pernas da Caipora. Faltam sessenta milhões de

anos para nascer o meu neocórtex. A minha palavra, por entre osmúsculos da laringe, e a minha reexão, inexistentes, nascerão

pelo manuseio de ferramentas. Meu álibi é forte, delicio minhas

mãos e meus neurônios na carne negra da Caipora. Ela respira o

meu ar carbonizado! Como dois dementes, cada um, lentamente,

vai sentindo o corpo do outro. Como é bom grudar o meu corpo

no corpo da Caipora!

Duzentos milhões de anos recuaram na pré-história,

enquanto meus dedos pesquisam o corpo da Caipora. Estou no

carbonífero e o meu sistema límbico faz comportar-me como um

mamífero. Na placenta, por nove meses, mais setecentas luas na

sucção das mamas da fêmea, quei viciado. Nos seios malditos da

Caipora, acaricio um e enterro no outro os meus dentes pubos.

Naquela histeria surda, vou reconstruindo as minhas catacumbas

e a minha história. Não percebemos quando estamos sobre as

raízes, as folhas pobres ou enrolados na minha rede. O prazer é

sem rédeas e bestial.

Fios de sangue sobre a pele negra da Caipora. Sou um

réptil, um dinossauro. Minhas unhas indomáveis estão cravadas

na carne selvagem da Caipora. Minha agressão anfíbia controla os

meus desejos! Meu olfato primitivo sente o cheiro forte da mata

e da Caipora. Ouço os seus gemidos. Equilibro-me sobre as raízes

para não deixar o meu corpo desgrudar-se do corpo da Caipora.

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Cem por cento do meu corpo e da minha alma estão dentro dela.

Meu chassi neural controla o meu sangue e a minha temperatura.

Grunhidos ininteligíveis brotam de nossas gargantas em fogo!

Minhas veias explodirão! Meu corpo é um vendaval! Meu sanguevulcanizado! Um líquido morno e impaciente invade o ventre

revolto da Caipora!

Sobre o colo negro da Caipora eu descanso da minha

guerra. Combati preconceitos sobre o corpo humano. Desgastei

meus instrumentos bélicos sobre uma carne selvagem e sem

nome. Uma paz incontrolável domina os meus neurônios. Mais

pareço um “leso” contemplando um mundo estranho. Como se

não quisesse, a Caipora exclama:

– Bastião, vou contar-te a minha história!

Assombrado, perguntei:

– Que história tens, Caipora, além daquela de viver

perambulando, triste, pelas matas?

– Eu, Bastião, não vivi sempre nas matas. Como vês, eu

já fui uma bela mulher. No sertão deixei meus amigos e parentes

para acompanhar meu amante.

– E quem foi teu amante, Caipora? – perguntei.

– Um jovem guerreiro nordestino que, para não morrer

no sertão, convenceu-me a perseguir, na Amazônia, o sonho

de enriquecer sobre o mutá. Partimos em direção a estas belas

matas. Durante três anos dividimos um casebre de paxiúba

e palha de jarina. Comíamos do que nos ofertava a oresta.

Bebíamos das águas puras dos riachos e fazíamos amor sob o

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silêncio da sapopema.

– Por que, então, estás aqui, Caipora? – duvidei.

– Um dia apareceu, na colocação, um jovem que mais

parecia um guerreiro celestial. Meu marido estava na estrada-de-seringa. Aquele jovem encantou os meus olhos com a sua bela

roupa, a sua linguagem e o seu perfume. Entreguei-me a ele como

uma menina de seringal. Quando degustava a última ejaculação,

ouvi os latidos dos cães.

– O que tem a ver a Caipora com latidos de cães?

– Meu marido apareceu no terreiro, com a sua espingarda,

como se fosse uma cascavel. O jovem guerreiro, como uma cotia,

recebeu no seu peito um tiro de doze. Por entre as bananeiras

persegui o refúgio da oresta. Como um porco-do-mato, há uma

dezena de anos, vivo comendo raízes e frutos.

– Caipora, eu te darei novo lar. Para ti construirei um

casebre, longe do meu, e, uma vez por semana, te visitarei.

Raios teimosos do sol atingiram o meu rosto. Apalpei

minha companheira. Apenas, uma espingarda fria.

– Diabos! Por uma noite estivera sob as garras tétricas

de um pesadelo.

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O PORTO

Anderson do Couto Candido

E o parecer dos gafanhotos era semelhante ao de cavalos

aparelhados para a guerra; e sobre suas cabeças havia umas coroas

semelhantes a ouro; e os seus rostos eram como rostos de homens.

(Apocalipse 9:7)

E foi lhe concedido que desse espírito à imagem da besta, para que

também a imagem da besta falasse, a zesse que fossem mortos

todos os que não adorassem a imagem da besta.

(Apocalipse 13:15)

Porto de Rio Grande (Rio Grande do Sul)

O frio calava os sentidos. A neblina a tudo possuía. A

brisa marinha trazia a umidade como se fossem levas de ondas

vagarosas, mas persistentes. Os barcos e os navios atracados

pareciam esqueletos atados às suas tumbas. Silêncio. Os trapiches

estavam emudecidos. Não se distinguia nada a dez metros de

distância. As cábreas estavam estáticas, como um monumento

vivo naquela ermidão de sons, esperando o dia seguinte para

içar mercadorias aos gulosos porões mercantes com destinos

variados.

Na vigia, somente o aposentado Ovídio de quando

em quando passava no pátio entre barris, caixotes, tratores,

máquinas, gruas e sujeiras movidas a óleo e graxa. A maior parte

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cava no alto da torre, junto ao auxiliar Clóvis, que se deliciava

do frio com uma garrafa de cachaça 51. Bebia para entreter-se

e apagar lembranças amargas e pesarosas que lhe batia em

cheio no crânio. O parricídio que cometera, quando adolescente,sempre martelava sua consciência, mesmo tendo o álibi de

ter cometido em autodefesa. Os abusos do pai, a violência e a

torpeza dele extravasada, levara-o a um único e sutil disparo de

uma .45 quando fora atingido por uma navalhada que lhe cortara

a orelha, em mais um rompante do pai. Viu quando sua cabeça

foi estourada e miolos, sangue, carne e cabelos foram cuspidos

para o alto, xando-se no teto e na parede, na imagem de Nossa

Senhora da Aparecida – dando-lhe um tom mais dramático – e

escorrendo lentamente pela parede abaixo formando uma mini-

poça. Pacientemente, chamara a polícia. A vizinhança provara

aos policiais e à justiça, que as crianças eram alvos frequentes do

desvario alcoólico do genitor.

Estando juntos na cabina de comando, trocavam prosas

e álcool. Apesar de estarem bem agasalhados e protegidos pela

vidraça, o frio era cortante. Histórias corriam de um lábio ao

outro.

– Pois estou lhe dizendo, Clóvis. Já vi muita coisa nesta

vida. Coisas que te fariam arrepiar seu cabelo do saco! Seu

estrume! Já vi até o demônio! Já vi o Cavalo-de-Três Pés até!

– Que história é essa, bah!

– É o raio de animal assombroso que aparece nas

estradas desertas à noite. Ele corre dando coices e voando.

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Não tem cabeça, mas tem asa. E quem pisar em seus rastros,

será imensamente infeliz. E olhe que vi e me aconteceu uma

infelicidade danada. Perdi em três anos minha mulher, minha

lha, minha casa, minha prossão, tudo de mais precioso que umhomem pode querer.

Começou a chorar convulsivamente. Clóvis, que igual ao

amigo, já estava meio alto se compadeceu e lhe abraçou, mesmo

sabendo da desgraça que o amigo sofrera, era um danado de

mentiroso. A garrafa estava vazia, mas debaixo da mesinha,

escondida numa caixa de lâmpadas, um frasco com rum foi

sacado. Beberam mais um pouco. Esvaziaram. Conversaram,

beberam. Riram, choraram, gargalharam. Duas horas da manhã.

Esvaziaram também suas bexigas lá do alto, adicionando mais

umidade ao pátio. Clóvis resolve descer a m de preparar um

chimarrão. Tropegamente desce os perigosos degraus de aço.

Já no nal, desequilibra-se e cai. Olha mediante e uma névoa,

caliginosa – densa e escura – surge diante de seus olhos. Não

divisa nada. Aos poucos a névoa dissipa-se. E ele vê uma forma

animal materializar-se. Um cavalo? Uma égua? Um boi? Pisca os

olhos e a imagem esvai-se. Segue adiante, prepara a bebida e

volta ao posto. Não fala sobre o ocorrido com Ovídio.

Três horas da manhã. Um zéro sopra forte do mar. O

silente porto parece sumir na neblina. Mais forte, mais escura. Os

amigos ouvem sons no pátio. Despertam e descem as escadas,

com lanternas acesas e armas em punho. Vacilam nas próprias

pernas. O álcool sai rapidamente de suas almas quando avistam a

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imagem que Clóvis vira. Agora mais perfeita, mais próxima, mais...

real! Olham-se. O nevoeiro baixa e encobre tudo novamente.

Clóvis diz que já tinha visto aquilo, mas não falou por achar o

amigo que estava bêbado e vendo coisas.– Chê! O que era aquilo, Ovídio?

– Não sei não. Mas não vamos car aqui parados. Vamos

vasculhar. Parece um cavalo perdido no pátio. Deve ser de algum

circo ou parque que fugiu daqui dos armazéns.

Percorreram silos, becos, barcos e nada.

– Sabe, Clóvis. Lá em Lagoa Vermelha, onde nasci, tinha

o boato ou lenda, da Mula-Sem-Cabeça. Parecido com o Cavalo-

de-Três Pés. Ela galopa a noite assombrando, dando coices e

soltando chispas de fogo pelas narinas e pela boca. Às vezes

soluça feita criatura humana. Dizem que para evitá-la, de um

possível ataque, tem que esconder as unhas e os dentes.

– Oh, Ovídio! Como é mula-sem-cabeça, se você acabou

de dizer que solta fogo pelas narinas e boca, eh? Bah, tchê!

Barbaridade! Conta outra!

– Ô seu ignorante, é um modo de contar, é a lenda. Às

vezes ela aparece com cabeça e aí ela solta estas fumaças todas.

Outras vezes, deve aparecer mesmo sem cabeça, e ela cou mais

conhecida assim, pois devia assustar bastante, viu seu grosseirão.

Vê logo que tu não tens cultura mesmo.

Um soluço cortou a madrugada e os ouvidos dos

gaúchos. Agora outro e mais outro. Em seguida um leve tropel;

depois um galope varou o pátio sul e arrancou em direção ao

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norte onde se encontravam. Preparam suas armas. O medo lhes

fazia de reféns. O frio dissipara-se de seus membros. Estavam

alerta. Podia-se, ver o álcool evaporar-se rapidamente de

seus corpos, tão amedrontados quanto seus hospedeiros. Aslanternas direcionaram para o barulho. As lanternas também.

A cavalgada estava próxima, mas a névoa impedia a visão. Mais

soluços. Agora um relinchar medonho, apavorante, intrigante.

As armas apontaram o desconhecido. Raízes se zeram nos

seus pés. O pânico chegara, mas o aprisionava no sólido asfalto.

Faíscas saltaram no meio da neblina. Cada vez mais perto, mais

terricante. Ovídio saiu do seu torpor.

– Clóvis, meu velho. Acho que bebemos muito. Estamos

vendo coisa. Estamos ouvindo coisa. Eu posso jurar pela minha

mãe mortinha que é um diabo de Mula. É a Mula-Sem-Cabeça que

te falei. Só pode ser praga do Criador. Meu Deus, homem ela vai

nos atacar!

Eis que surge na névoa o animal mais incrível que os

contos gaúchos podem proporcionar. Era uma hedionda mula.

Com as nuances da neblina, parecia ora, com cabeça, ora sem. O

próprio diabo parecia ser a cabeçorra. Olhos vermelhos infestados

de ódio. Patas que se assemelhavam a porretes potentes. Uma

crina, vistosa, úmida e brilhante cobria-lhe o corpanzil. Quando

surgia sem a cabeça, um fundo negro sem m divisava no esbelto

pescoço. Chamas ardentes, iluminando a escuridão do porto e as

faces espantadas dos gaúchos ali presentes, era a personicação

do mito, da lenda. Enquanto Ovídio admirava a aparição, Clóvis

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disparou a arma várias vezes, praguejando, destemido, resoluto.

A névoa encobriu o quadrúpede. Em instantes estava ela agora

na face de Clóvis. E ele viu o inferno de perto. Viu a tremenda

fossa que era o pescoço da besta. Um sopro lhe cobriu a cabeça.Uma massa incandescente ardeu no porto lançando

gritos lancinantes na triste noite do Rio Grande, enquanto a

cidade dormitava. Os bons anjos faziam a guarda daquelas casas,

camas, e mulheres, velhos e crianças e alguns homens também.

Mas ali no porto, qualquer vestígio de divindade parecia ter se

esquecido dos nossos amigos.

Clóvis jazia carbonizado no longo pátio. Ovídio corria sem

parar com a mula em seu encalço. Preces não faziam efeito, nem

uma alma boa surgiu para, afastar a aberração que o perseguia.

Já exausto, tendo descarregado sua arma na criatura que pouco

ou nada afetara, já desfalecendo, lembrou-se do caso, do seu

caso contado em Lagoa Vermelha. Estacou. Virou. Fixou o olhar

na criatura que chegava. Com toda a força de seu pensamento,

para conter o pânico, abriu bem a boca mostrando todos os seus

imperfeitos dentes e esticando as mãos esperou o animal. Fechou

os olhos. Abriu. E lá estava, bem na sua frente, o horrendo animal

assombroso. Virou sua cabeçorra, que se transformara em uma

fossa tal como um canhão apontado para o alvo. Ele era o alvo.

Em segundos fechou a boca e enluvou as mãos, escondendo as

unhas compridas e sujas. O silêncio pairou. O animal estacou,

virou-se, e saiu trotando neblina afora até o pátio sul. Parou,

virou, deu um relincho gutural e empinou feito o cavalo Silver do

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Zorro no horizonte. A neblina tornou a varrer o pátio. Sumiu.

No dia seguinte, Ovídio foi preso acusado de matar o

colega de trabalho, após discutirem, e lhe tacou fogo com uma

garrafa de álcool. Ovídio contestou o fato. Acabou preso e emseguida transferido para um sanatório, onde até hoje, tenta

convencer os médicos, enfermeiras, amigos e parentes e os

próprios doentes, da sua versão.

 

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A SEREIA SEM CANTO

Priscila Machado

Cassandra é meu nome. Não Iara. As pessoas, em geral,

têm o péssimo hábito de pensar que todas nós somos Iaras. Há

muitas sereias na região Norte do Brasil. Nossos antepassados

eram índias que, por um motivo ou outro, acabaram sendo

transformadas em “rainhas das águas”. Diz a lenda que amávamos

contemplar nosso próprio reexo no rio, pentear os longos

cabelos e seduzir os transeuntes... Na verdade, nunca fomos

exatamente assim. Hoje tudo mudou e precisamos proteger

nossa espécie. Temos um eciente sistema de camuagem e

procuramos controlar o que acontece nos rios, para proteger a

fauna e a ora dos humanos nojentos. Aqui no Rio Solimões os

sapos são nosso sistema de vigilância da superfície. Eles estão

por toda parte, cobrem toda a extensão das margens e coaxam

alto o suciente para alertar quando há perigo. Ir à superfície é

um acontecimento raro e essencialmente perigoso no século XXI.

 

***

Splash!!! Splash!!! Splash!!!

Cassandra acordou assustada com o barulho

ensurdecedor. Era seu despertador, o Lino, um peixinho miúdo

que prestava serviços como esse em troca de proteção. Anal,

ela é - mais ou menos - o que nós humanos chamaríamos de

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policial. Comeu algumas algas e partiu direto para a Estação de

Controle.

— Bom dia, Cassy. Temos um problema na Área III. Vá

checar.— Bom dia, Capitã. Sim, senhora.

Cassy?! Miranda era a autoridade maior da Estação e

sabia que Cassandra odiava apelidos. Por isso mesmo não se

cansava de inventar um milhão deles. O dia já começava mal. Para

piorar, o problema na Área III era uma briga de enguias elétricas,

conhecidas aqui pelo nome “poraquê”. Uma gostava do marido

da outra, algo assim. Ninguém merece. Depois de muitos choques

e xingamentos, o escândalo foi contido. Cassandra voltou ao seu

posto com algumas queimaduras leves. Aquilo era quase pior

que conter protesto de jacarés-de-papo-amarelo.

Miranda veio nadando em sua direção. O que

vai ser dessa vez? Cassandrinha? Cassilda? Empanado-de-peixe?

Baleia verde?

  — Cassandra, temos uma emergência.

Epa, Cassandra?! A coisa é séria. O rosto no de Miranda

se retorceu, como se ela tivesse comido algo amargo. Finalmente,

disse:

— É uma missão na superfície.

— Na superfície? E você quer que eu vá? Não acho que

eu seja muito qualicada...

— Não tenho escolha. Você sabe que estamos com

décit de sereias por aqui.

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É claro que ela sabia. Anal, sua espécie está em extinção.

— Ok. O que devo levar?

***

Em alguns minutos Cassandra estava nadando habilmente

em direção ao sol, seguindo as coordenadas que Miranda havia

lhe dado. Xingava baixinho quando tucunarés desajeitados

esbarravam em sua calda verde-limão. Chegou rápido. Analisou o

ambiente ao redor e logo escutou os berros de um animal. Era um

pato selvagem, que agonizava perto da margem e estava quase

se afogando. Ela o curou com suas habilidades medicinais (pode

chamar de magia, se quiser) e descobriu o motivo do sufoco: um

papel de bala preso na goela. Malditos humanos imundos!

— Malditos huma... ZAP!

Antes que completasse sua maldição, foi agarrada por

uma rede metálica. Desnorteada, se debatia em vão, quando viu um

homem sair das sombras de uma gigantesca mangueira. Estúpida!

Ela devia ter pedido para as libélulas vericarem atrás das árvores.

Começou então a cantar, mas de todas as sereias, ela era a que

possuía menos habilidade para esse tipo de coisa. Olhou dentro

dos olhos castanhos de seu captor, e foi a última coisa que viu.

— Hora de dormir, Iara.

Ele lançou um dardo tranquilizante em seu braço, e

imediatamente o dia se desmanchou em uma escuridão líquida,

intensa e cheia de pesadelos.

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***

Cassandra acordou com o cheiro forte de fumo, como

se partículas sólidas entrassem em seu nariz. Dezenas de dentesamarelados saltavam da boca de um homem, que sorria para ela.

Só então percebeu onde estava. Na superfície! Dentro de um

aquário apertado, que não cabia seu corpo todo, num casebre

provavelmente no meio do nada.

— Olá, belezura! Meu nome é Almir, qual é o seu? Ah,

não diga, deixe-me adivinhar, você deve ser a Iara, não é mesmo?!

— Riu-se o homem.

Almir se parecia muito com um javali. Até mesmo seus

dentes se curvavam para fora da boca, formando algo parecido

com presas. Tinha alguns apos de cabelo e uma barba tosca,

além de uma espingarda e um cachimbo, que Cassandra pensou

já ter visto em algum lugar.

— Vou na cozinha, a senhorita está com fome? Aceita

um peixinho frito? – Riu novamente.

Sem conter a felicidade, o captor cuspia piadas infantis

e insultos que ele parecia achar muito engraçados e inteligentes,

já que gargalhava até quase perder o fôlego. Cassandra estava

assustada, mas como “policial” treinada, olhava ao redor para

achar uma saída. Foi então que percebeu um objeto curioso

sobre a estante de madeira, perto da janela aberta...

Seu estômago embrulhou, e ela desejou mais do que

nunca estar em casa. Chocada, seus olhos iam da estante para

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Almir e se lembrou de onde conhecia o cachimbo que agora

pendia daquela boca fétida. Era o cachimbo do Saci Pererê, que

completava o ambiente macabro junto com o objeto na estante

de madeira: um par de pés bem incomum, virados para trás. Eramos pés do Curupira. Amputados e exibidos como troféus.

***

Cassandra é sereia desde que consegue se lembrar.

Às vezes sonha consigo mesma bem pequena, em uma família

humana, mas os sonhos acabam virando pesadelos habitados

por guerra, ódio e poluição. Seu rancor pela espécie que destrói

diariamente o próprio planeta é visível. No entanto, quando as

sereias estão em ambientes hostis (na superfície, fora d’água),

a cauda se transforma temporariamente em pernas e então elas

podem se passar por humanas. Este sempre foi o medo secreto

de Cassandra, criar pernas e se tornar idêntica àqueles que ela

tanto despreza.

***

O captor voltou da cozinha com uma lata de cerveja e

um machado, e Cassandra sabia que era o seu m. Teria a cauda

decepada, empalhada e exibida na estante. Fechou os olhos e

tentou pensar em coisas boas. Ou seja, tentou pensar que não

estava presa por um humano que logo iria extinguir de vez ela

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e todas as suas irmãs de calda. Veio o primeiro golpe. Ela não

sentiu nada. Devia estar em choque, ou algo assim.

Crec! Abriu os olhos no exato momento em que milhares

de cacos de vidro se espalhavam pelo chão, tilintando. Almirerrou o primeiro golpe e acabou quebrando o aquário.

— Que sorte hem, Iara? Eu não devia ter bebido essa

cerveja. Mas não se preocupe, não errarei o próximo.

— Pare! — gritou Cassandra. — Tenho um último pedido

a fazer.

— Claro, queridinha, o que eu não faria por uma sereia

indefesa e à beira da morte?

— Quero experimentar uma cerveja.

— Nada mal para um último desejo, hã? – Divertiu-se à

custa da sereia.

Quando Almir virou as costas e foi em direção à

geladeira, Cassandra já via dez dedos despontarem de sua

barbatana cintilante. Silenciosamente pulou a janela que dava

para a oresta e correu em meio aos vagalumes, que voavam

tranquilos, espalhando pela noite suas luzinhas bruxuleantes.

Ouviu passos pesados e descontínuos. Subiu desajeitadamente

em um pé de jambo.

— Cassandra, é você?

Com os olhos embaçados pelo breu da escuridão, ela viu

um vulto de capuz. Com uma perna só.

— Saci, me ajude!

— É para isso que estou aqui. Vi quando você foi

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capturada, mas não pude fazer nada, o cara-de-javali estava

armado.

— Quem é ele? E como ele sabe quem somos nós?

— Almir é um pesquisador e assassino. Colecionaprovas da nossa existência. Quer nos revelar ao mundo e ganhar

prestígio e fama, pra variar.

— Que droga! Precisamos recuperar os pés do curupira

e seu cachimbo!

— É o que venho tentando fazer, mas o humano não

desgruda da cabana.

— Nem se uma sereia com pernas aparecer na sua porta?

 

***

— UMA CERVEJA? PELO AMOR DE DEUS, ALMIR!! E

COMO RAIOS ESSA SEREIA ESCAPOU?

Almir estava furioso, gritando e quebrando todos os

copos da cozinha, quando ouviu alguém bater na porta.

— Mas que merda é essa? Quem é?

Girou a maçaneta bufando. Na sua frente estava uma

jovem de cabelos longos. Enraivecido e vermelho como urucum,

saiu correndo atrás de Cassandra. Parou quando sentiu uma dor

aguda em sua perna direita.

— AAAAAI! O que você fez, sua bruxinha?

Saci saiu detrás de uma moita, segurando um arco.

— Gostou da echada, javali?

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Almir estava prestes a soltar um palavrão, então viu o

céu ser iluminado por labaredas e cou mudo. Sua cabana estava

em chamas. Todos os seus artigos, fotos e provas cientícas

da existência dos seres mágicos eram lambidos e consumidos

pelo fogo. Só restou nele o ódio. A certeza de que sua vida fora

desperdiçada. Sacou do coldre escondido sua pistola 38 e mirou no

peito de Saci, que gargalhava admirando as chamas criadas por ele.

QUÁÁÁK!!!

No mesmo instante, um bando de patos selvagens saiu da

escuridão e atacou Almir, bicando todo o seu corpo e cortando sua

pele. Saci desapareceu na oresta e Cassandra correu para o rio,

rindo da mãe natureza e agradecendo a ela.

Almir foi resgatado por um helicóptero dois dias depois.

Não conseguia se mover, tinha perdido muito sangue. Jurava para

Deus e o mundo que tinha sido atacado por patos.

— E patos sabem atirar echas, meu lho? — perguntava

Geneci, mãe de Almir.

— Lógico que não, mãe, já te disse, a echa foi o Saci

Pererê!!

***

Cassandra foi promovida a capitã, o que deixou Miranda

nos nervos. O Curupira ganhou próteses, mas agora tem os pés

normais. Saci não fez outro cachimbo, decidiu largar o vício. Almir

agora vive em Manaus, no Hospício Santa Iara.

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A MISTERIOSA ORIGEM DOS FILHOS D’ÁGUA

JBAlves

Em muitas dessas histórias existe sempre a presença de

guras diferentes e encantadoras que às vezes são confundidas

com os elementos da natureza.

Observamos muitas vezes que as lendas nos contam de

belas mulheres feitas do vento sul, que com suas vestes utuam

silenciosas pelas campinas do mundo, outras vezes, podemos

escutar histórias de seres feitos de fogo, que de tão belos tiveram

seus amantes queimados num abraço.

Nesse momento, vamos conhecer a história de um grupo

de seres formados pelo elemento água, domínio do mitológico e

poderoso Posídon5, que se misturou ao barro dos descendentes

de Adão e que veio habitar os lagos e rios do Brasil.

Conta-se que na época que os homens ainda estavam

aprendendo como era vasto o mundo o belo rio Achelouse6 

se apaixonou por uma ideia, uma musa inspiradora chamada

Terpsícore7  em um baile local promovido pela corte das altas

fadas. E foi dessa paixão que nasceu um grupo de criaturas

conhecidas como Sirénios8.

5 Deus do mar e dos terremotos, em tempos longínquos associado a cavalos. Porta um

tridente e desloca-se, sobre ondas, em uma carruagem puxada por cavalos marinhos.Filho de Crono e Reia, irmão de Zeus, Hades, Hera, Héstia e Deméter. Em Roma,associado a Netuno. (Todas as notas deste conto são do Organizador) 6 Achelouse ou Aqueloo: rio oeste da Grécia. 7 Uma das nove musas, Terpsícore é a musa da dança. 8 Outro nome para sereias.

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Como o pai, eles eram belos como as águas, mas

perigosos como o afogamento. E como sua mãe, eram lindos

e podiam inspirar as pessoas com sua voz e dança. Quando

podiam, cantavam para o mar e para as montanhas. E cantavamcom tanta doçura que os animais se distraíam e por vezes sofriam

acidentes estranhos. Podemos citar alguns exemplos de sua

inuência quando observamos algumas aves que se chocam com

as árvores, os lêmingues que correm em direção ao mar ou os

seres humanos que colidem seus navios quando passam muito

perto de sua música.

Como muitos acidentes aconteceram, os seres humanos

começaram a espalhar boatos de que eles eram criaturas

malécas, mas a verdade é que nós nunca conseguimos escutar

tudo o que a música deles signicava.

Dizem que apenas o herói Odisseu9 conseguiu escutar

toda uma canção porque se amarrou ao mastro de seu navio,

para poder ouvi-la sem ser distraído. E que foi deste dia em

diante que ele denitivamente se apaixonou pelo mar e por sua

maravilhosa canção.

No início, os Sirénios não tinham corpo, eram como as

águas do rio que formavam seu pai. Mas com o tempo, enquanto

observavam os seres humanos que começavam a habitar a costa

eles começaram a sentir a necessidade da mudança. Foi na Grécia

Antiga, quando alguns deles propuseram ao mar uma troca. Eles

dariam parte de sua voz para poderem vestir corpos físicos.9 O mais inteligente e astuto dos guerreiros gregos que participaram da Guerra de Troia; foi dele,aliás, a ideia do Cavalo. Em Roma, identicado como Ulisses.

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E foi assim que surgiu o grupo conhecido como Sereias

e Tritões, criaturas parte humano e parte peixe que vivem nas

profundezas do mar. E é por isso que quando você escuta o mar,

bem no fundo do barulho das ondas, você também escuta a vozque os Sirénios deixaram como parte de sua barganha.

E antes que pensem, essas criaturas também não podiam

ser consideradas más ou mesquinhas. Elas continuavam sendo

como o mar, misteriosos para os curiosos e traiçoeiros para os

desavisados.

E sua maior arma não era sua música, mas o seu silêncio,

pois quando se calavam é que eles poderiam retornar por breves

momentos à sua condição original, invocando assim todo o poder

das águas contra seus opressores.

Mas essa ainda é apenas parte da origem das Iaras que

na realidade descendem de uma bela sereia chamada Ligeia10,

que tinha como pai um velho tritão casado com uma bela sereia

do mar do norte.

Quando Ligeia aprendeu a andar como um ser humano,

ela decidiu viver parte de seu tempo próximo de uma casa à beira

do rio para assim conhecer mais de perto aqueles atrapalhados e

nervosos seres humanos. E embora fosse uma criatura do outro

mundo, acabou se apaixonando por um belo e incauto jovem de

nome Orfeu11, que por lá vivia.

10 Sereia filha deus-rio Aqueloo e da musa Terpsícore ou filha de Aqueloo com Estérope.11Lendário citaredo de Trácia, que teria descido ao mundo subterrâneo para encontrar a alma da falecidaesposa, Eurídice, e retornado. Uma série de crenças (orfismo) e um culto de mistérios, ditos “de Orfeu”,emergiram no século VI a.C. Diversos escritos atribuídos a ele circularam durante a Antiguidade; asteogonias e hinos são coletivamente conhecidos por “poemas órficos”.

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A união foi breve, pois seus encontros eram cheios de

diculdades uma vez que ela sempre tinha de voltar para as

águas para descansar e car com sua família enquanto ele tinha

uma vida seca, porém agitada em terra.O maior tempo que eles passaram juntos foi durante

cinco anos e isso só aconteceu depois de muitos pedidos dele.

Ligeia só concordou em viver um tempo em terra rme porque

Orfeu aceitou uma condição muito especial. Ele não poderia

cantar para nenhuma outra pessoa sem que ela estivesse

presente e o autorizasse.

Por que isso? Porque Orfeu havia aprendido a cantar

com a voz das águas e somente isso ajudava Ligeia a car em

terra rme, além disso, ele sempre deveria respeitar os mistérios

do outro reino, honrando agora aquela que seria sua esposa.

No entanto Orfeu, além de jovem e incauto, também

sofria dos males de ser homem. Ele era orgulhoso e sentia dentro

de si uma vontade imensa de impressionar as pessoas à sua volta.

Foi assim que um dia ele acabou cedendo ao desejo e

cantou para as pessoas de uma vila próxima justamente no dia

em que Ligeia não estava com ele.

E assim, o encanto se desfez, e Ligeia perdeu toda a

conança nas palavras de seu marido. E mesmo grávida de Orfeu

ela desapareceu nas profundezas do Oceano.

Ela estava desapontada com o mundo temporário e

ao mesmo tempo rígido dos seres humanos. Sendo assim, ela

resolveu se afastar o mais longe possível das águas onde sempre

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nadou visando permanecer mais próxima da natureza e longe da

humanidade que estava se expandindo como formigas por todo

o lado.

Ela queria se afastar de todos os dilemas e de todo osofrimento dos homens, de seus anseios, seus sonhos, suas

necessidades, sua impotência diante do universo, suas desilusões,

seu anseio por amor e sua falta de sentido. E foi assim que Ligeia

começou sua viagem.

Orfeu, no caso, continuou procurando por aventuras, e

em uma delas inclusive usou das canções que havia aprendido

para ajudar outros heróis. E anos depois, sua voz, que era linda

para os padrões humanos conquistou o coração de uma bela

jovem chamada Eurídice que bem no dia de seu casamento,

infelizmente, distraiu-se por causa de um Fauno e acabou

morrendo devido à picada de uma serpente.

Mas para Ligeia isso pouco importava. Havia decidido

viver longe dos humanos e por um tempo nadou na direção oposta

da casa dos Sirénios indo habitar as profundezas escuras de um

grande rio chamado Amazonas, bem no centro do continente sul

americano.

E foi assim, nas águas tropicais de outro continente, que

as duas lhas da sereia Ligeia e do humano Orfeu nasceram. E

desta união elas herdaram a beleza sobrenatural e os dotes da

música da mãe, mas também o sangue humano teimoso, revolto

e propenso a gostar de aventuras.

Enquanto na Europa os humanos se espalhavam e

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destruíam toda a magia antiga do mundo, Ligeia criava suas lhas

com calma e sabedoria. E as duas, seguindo os passos da mãe,

passaram também a acompanhar e ajudar alguns humanos que

viviam em seus domínios.Com o tempo, inclusive, elas também se enamoraram

com alguns dos maiores guerreiros índios que conseguiam

atravessar o Amazonas a nado e, destes encontros, os netos de

Ligeia nasceram.

Seus descendentes se espalharam pelas águas enquanto

o nome Ligeia se diluiu e foi sumindo pouco a pouco. Hoje, ela é

mais conhecida como a Mãe-d’água, a linda sereia que vive no rio

Amazonas e que agora tem uma bela pele morena queimada de

sol, profundos olhos castanhos e cabelos negros e longos.

Sua descendência cou conhecida pelos índios Tupi que

deram as netas o nome de y-îara, que signica senhora das águas

e aos netos o nome de ïpupi’ara, que signica monstro marinho.

Isso aconteceu porque as lhas e netas da Mãe-d’água

normalmente se mostravam como peixes ou belas mulheres.

Enquanto os netos adoravam atormentar os indígenas adotando

a forma de monstros deformados.

Isso mudou quando alguns mercadores vindos da

Europa começaram a fazer negócios com os indígenas. Entre

eles existiam alguns caçadores de lendas, guerreiros treinados

em usar ferro frio como arma ideal contra os seres místicos.

Isso aconteceu em 1564 na praia de São Vicente, em São

Paulo, local da primeira vila brasileira. Um Ipupiara decidiu tomar

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a forma de uma criatura de aparência repulsiva com mais de três

metros para assustar uma bela índia chamada Irecê que acabou

fugindo apavorada até a vila. Lá, o capitão Baltasar Ferreira cou

sabendo do ocorrido e logo se pronticou a enfrentar o monstro.

O capitão matou o Ipupiara a golpes de espada e voltou

para contar para todas as pessoas como era bestial, faminta,

repugnante e de ferocidade primitiva a criatura.

Deste dia em diante, indignados tanto pela morte do irmão

quanto pela descrição que o capitão zera, todos os Ipupiaras

decidiram não mais adotar a forma de monstros, e seguindo a tática

de suas irmãs, só saiam das águas com a aparência de belos homens

que usavam as roupas mais belas e caras da época.

Assim, eles apareciam nas festas de forma tão elegante

que encantavam e seduziam todas as mulheres. Eles dançavam a

noite toda com as mais jovens e mais bonitas da festa e, quando

podiam, saíam com elas para passear pela madrugada.

E é essa a origem das Iaras e dos Botos que hoje habitam

as águas brasileiras. Belas criaturas feitas de água e música, que

ocasionalmente abanam a cauda fazendo-a brilhar ao sol e acabam

encantando algum mortal que se encontra na praia.

E é sempre por causa desse encontro que muitos acidentes

acabam acontecendo, pois alguns humanos simplesmente

os seguem para debaixo da água, esquecendo-se de que não

sobrevivem muito tempo sem oxigênio.

Aqueles que não se afogam, quando voltam trazem nos

olhos o brilho de outros reinos, pois avistaram o limiar de um

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universo quase incompreensível à mente humana.

E é assim, depois de terem se deparado com esse reino

submerso, que muitos poetas e músicos, dramaturgos, visionários

ou místicos surgiram enquanto tentavam descrever sua experiência.

Mas e hoje?, você pode se perguntar, agora que os seres

humanos se espalharam e estamos presentes em todo o lugar?

Será que a Mãe-d’água continua vivendo no fundo do Amazonas?

Será que você pode encontrar seus lhos espalhados por todo o

canto? Eu acredito que sim! Mas é preciso que você preste bastante

atenção aos sinais à sua volta.

Antigamente, por exemplo, você podia identicá-los por

causa do forte odor de peixe e do hálito de maresia. No entanto,

um bom banho e uma bala de menta ou pasta de dente acabam

acobertando isso. Mas existem outros sinais a serem considerados.

Primeiro todos eles têm uma bela voz. Segundo, todos, sem

exceção, têm a mania de paquerar. E terceiro, todos eles precisam

car em contato com uma grande quantidade de água.

Pensando nisso, talvez seja um boto aquele belo moço

cantando no fundo da lanchonete à beira-mar, ou talvez seja uma

Iara aquela linda professora de natação que todo jovem aluno se

apaixona.

Sei que todos eles trazem dentro de si um pouco do mar,

e de vez em quando eles voltam para casa para poder visitar a sua

mãe e, quem sabe, uma vez mais, respirar novamente o ar daquele

misterioso, perigoso e sedutor mundo da Mãe-d’água.

 

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A MAGIA DA FLORESTA

Sirius

Taisha pegou uma corda e amarrou a vassoura nas

costas. Levava os quatro objetos que protegeriam-na e seus

amigos no local consagrado à Matinta-Perera: uma tesoura, uma

chave, um rosário bento e uma vassoura virgem. O ritual exige

que a chave seja enterrada e a tesoura ncada em cima do local.

O rosário precisa ser enrolado na parte superior da tesoura. A

vassoura virgem é para limpar o local depois do ritual.

Taisha era uma jovem bruxa, mas até a bruxas temiam

encontrar Boiuna, a cobra grande, na oresta. Ela estava

acompanhando seu amigo Rafael, o menino que queria conhecer

os seres sobrenaturais da Amazônia; Leleio, um duende amigo,

era o guia e procurava a velha trilha que conduzia ao domínio da

Matinta-Perera. Fazia tempo que a trilha não era usada e o mato

havia crescido, cobrindo-a. Leleio, com uma machadinha na mão,

ia abrindo caminho. À medida que o grupo avançava adentrando

na mata, a vegetação se tornava mais e mais espessa. Rafael

reconheceu altas seringueiras, árvores de guaraná, castanha-

do-pará, timbó, sumaúma, cipós, plantas parasitas e belíssimas

orquídeas, além de outras árvores, plantas e ores que via pela

primeira vez em sua vida.

Rafael tinha muito interesse em temas ecológicos,

gostava de ler e pesquisar na Internet sobre plantas, pedras

e animais. Viu que os ramos e folhas do lugar estavam com os

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ápices voltados para o chão, Rafael sabia o porquê disso, sabia

que a umidade e as chuvas faziam com que a mata da Amazônia

estivesse adaptada a excesso de água. Por isso parecia que folhas

e ramos olhavam o chão, para gotejar.Leleio ouviu um som agudo, parou e olhou para os lados,

depois continuou devagar, atento a qualquer ruído. Outra vez o

mesmo som, sibilante. Deteve o passo, colocou sua mão direita

sobre a orelha em forma de concha para fazer acústica e ouvir

sons longínquos. Rafael olhou-o em silêncio. Leleio esquadrinhou

a mata, suas pupilas estavam dilatadas e os ouvidos atentos.

Taisha o olhou e desamarrou sua vassoura, queria estar preparada,

caso precisasse usá-la. Leleio ouvia alguma coisa que Taisha não

percebia. A capacidade auditiva dos duendes é bem conhecida

pelas bruxas. Com suas orelhas grandes e uma sensibilidade

auditiva invejável, escutam ultrassom sem nenhum esforço.

– Ouviram?

– Não... o quê, Leleio? – indagou Rafael

– Por aqui tem cobras, vamos voltar e abrir outra trilha,

paralela a esta. Temo que estejamos entrando nos domínio de

Boiuna.

Taisha fez uma pausa, realmente há algo estranho neste

lugar, acrescentou olhando a sua volta com desconança. Mordeu

o lábio inferior, como sempre fazia quando estava preocupada.

Voltaram sobre seus próprios passos. Leleio na frente,

depois Rafael e por último, Taisha. Leleio tinha a machadinha na

mão e cortava a mata que impedia a caminhada, mas sua atitude

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havia mudado. Andava devagar, mexia a cabeça para os lados

tentando olhar tudo a seu redor: folhas de árvores, lianas, cipós,

ores, pássaros. Nada que indicasse perigo. Estava nervoso e seu

enorme nariz cou avermelhado, como o nariz de umbêbado. Seu nariz estava quase todo vermelho e seu olfato mais

aguçado do que nunca, sentiu cheiro de mercúrio. Ele sabia o que

isso signicava, Boiuna estava próxima.

– Vamos sair deste lugar – murmurou Leleio – o mais

rápido que pudermos.

Duendes podem car invisíveis, mas não para os olhos

astrais de Boiuna. Duendes podem transportar-se com o poder

do pensamento, mas Leleio não queria abandonar seus amigos.

Leleio estava nervoso e os duendes quando cam

nervosos perdem a concentração facilmente e seus poderes

diminuem, por isso sempre levam amuletos nas roupas, os

amuletos os ajudam em momentos de grande tensão.

– Rafael, todo mundo escutou falar de Boiuna – disse

Taisha.

O único desejo de Leleio era afastar-se do lugar, mas não

podia fazer movimentos bruscos, por isso seu andar era lento e

cuidadoso. Sentia a presença da cobra, não conseguia vê-la, mas

sabia que ela estava observando-os.

Ouviu um sibilar muito próximo e deteve o passo.

Seus olhos depararam com um movimento entre as folhas.

Algo ameaçava entre os ramos da seringueira. Fixou o olhar,

nada... Era só o vento. Virou-se de repente e, atrás dele só viu

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árvores, na maioria de seringueiras, salsaparrilha, ipecacuanha,

louro-inhamuí. Deu alguns passos e parou, levantou a cabeça

e olhou para cima no momento em que uma enorme cobra

negra de contornos dourados pulou do ramo de uma árvore deipecacuanha sobre Taisha, derrubando-a.

Pega de surpresa e sem tempo para reagir Taisha caiu de

bruços com os braços estendidos. Ao cair soltou a vassoura que

levava na mão. A vassoura tentou se manter em pé, conseguiu

por alguns segundos, depois balançou e caiu pesadamente no

chão, como se fosse um pedaço de ferro.

 A enorme cobra se enrolou no pescoço branco da bruxa.

Os olhos escuros de Boiuna eram ameaçadores, tinham brilho

de ouro e cor de vinho tinto, e o poder de amedrontar qualquer

inimigo. Esses olhos recolhiam o ódio que os seres – animais,

humanos e mágicos – emanavam.

O rosto de Taisha cou muito pálido, mas lutava com

coragem. Suas mãos socavam e empurravam insistentemente o

corpo da cobra, mas não tinha forças sucientes para livrar-se

dela. Desesperada esticou o braço direito para pegar a vassoura.

A cobra, com um movimento rápido, enrolou as mãos de Taisha

com sua cauda poderosa.

Rafael pulou, pegou a vassoura e tentou acertar a

cabeça da cobra. A cauda da cobra soltou as mãos de Taisha e se

enroscou nos tornozelos de Rafael. Ele caiu no chão machucando

um pouco o ombro esquerdo, mas não soltou a vassoura.

O duende deu um salto colossal e cou ao lado de Taisha.

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– Boiuna! – gritou aproximando-se mais dela. – Boiuna!

– voltou a gritar.

A cobra levantou a cabeça e levou-a para frente em

direção ao duende. A cabeça da cobra cou muito perto de seurosto e Leleio tentou não olhar diretamente para os olhos violetas

e brilhantes dela. Levantou as mãos em direção aos olhos da

cobra, suas mãos seguravam o poderoso talismã Latornincum.

Leleio exibiu o amuleto para a cobra e o amuleto brilhou. Os

olhos violetas da cobra soltaram faíscas. Leleio caiu para trás,

mas continuou com as mãos levantadas apontando o talismã

Latornincum para Boiuna. Os olhos da cobra soltaram um último

raio de luz escuro e se esfarelaram rapidamente, sua cabeça se

desfez no ar, e imediatamente, seu corpo desapareceu.

Por alguns minutos os três caram imóveis, em silêncio.

– Por isso você não escutava – disse Leleio, levantando-

se – parecia uma cobra comum, mas na realidade era uma cobra

que morava no mundo astral.

– Você está bem, Taisha? – perguntou Rafael, ajudando-a

a se levantar. A cobra não te mordeu, não é?

– Boiuna não morde bruxas, Rafael – disse Leleio.

– Boiuna se enrola nos pescoço e suga toda a energia

vital das bruxas – falou Taisha sentando-se na raiz de uma árvore.

Ela não tinha energia para permanecer de pé. Seu corpo parecia

pesado, seus olhos queriam se fechar e as pernas haviam-se

tornado muito pesadas.

– Estou cansada, estou cansada – repetiu Taisha.

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Taisha, por ser do clã das bruxas devia realizar o ritual.

Ela enterrou a chave, ncou a tesoura na terra e sobre ela colocou

um rosário. A coruja que permanecia em um ramo da árvore

desceu ao chão e cou observando Taisha.– Matinta-Perera! – gritou Taisha. Ao escutar o seu nome,

Matinta perdeu sua forma de ave e se apresentou como ela era:

uma velha bruxa.

– O que desejas, bruxinha? – riu-se a velha. – Você ainda

nem aprendeu a fazer os feitiços mais importantes e já está me

incomodando?

– Peço desculpas – disse Taisha com voz meiga. – Eu não

queria incomodar... Precisamos de sua ajuda. As sombras estão

saindo de controle. As sombras deixaram a sua dimensão e estão

atacando as bruxas e em pouco tempo também atacarão os

humanos. Os homens não sabem, mas estão em perigo.

– Acenda já o fogo, Rafael! – ordenou o Duende.

Rafael acendeu o fogo, e todos viram as chamas mudando

de cor: amarelo, dourado, laranja, vermelho, roxo... roxo... roxo...

e por m, pretas. Línguas de fogo pretas realizavam uma dança

antiga, tenebrosa, mágica. Afastavam-se lentamente do centro.

– Chega! – ordenou Taisha preocupada com Rafael.

Nesse momento perceberam a presença de Marcus, o

grande. Assim era como ele se fazia chamar.

– Prazer em conhecê-la, Matinta-Perera – disse Marcus

inclinando a cabeça diante da bruxa. – Eu sou Marcos, o Grande.

Eu sou alquimista, hipnólogo, teatrólogo, mágico, sensitivo,

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tarólogo, quiromante, escritor, ator, diretor de teatro, artista

plástico, escultor, dançarino, poeta, astrólogo, cabalista,

ventríloquo, malabarista, orador de prestígio e respeitado

titiritero.– Como chegou até aqui? – perguntou Rafael.

– Pensei que precisariam de ajuda. Faz horas que estou

seguindo vocês.

De repente, Rafael olhou a sua direita e percebeu os

movimentos do fogo. As sombras dançavam entre as chamas.

– Fogo! Fogo preto! – gritou Marcus, retrocedendo uns

passos e apontando o fogo com mão nervosa. – Vamos correr!

Correr!

Rafael não sabia a que se referia Marcus. O fogo estava

preto e daí? De repente viu sombras compridas e nas. Sombras

movendo-se. Contorcendo-se. Nervosas. Agitadas.

As sombras saíam das chamas. Pulavam do fogo em

todas as direções. Eram sombras pequenas, mas sombras de

forma humana. Tinham cabeça com olhos vermelhos brilhantes

e dentes grandes, aados e ameaçadores.

Taisha pegou sua vassoura e conseguiu bater na cabeça

de uma que caiu no chão, mas voltou a se levantar imediatamente.

O sol apareceu entre nuvens escuras. As sombras

esticaram os braços para receber um raio de luz do sol.

Imediatamente cresceram de tamanho.

Uma sombra pulou sobre a vassoura. Era muito pesada

e a vassoura caiu. O Duende também foi atacado por várias

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sombras. Elas amarraram as mãos do duende para que não

pudesse usar amuletos, pois no mundo sobrenatural todos

sabem que o poder das fadas está na varinha mágica e o poder

dos Duendes nos amuletos.Marcus e Rafael tentaram correr. Uma das sombras deu

um pulo magistral e cou na frente deles, encarando-os. Era de

um preto opaco. Tinta preta. Os pés na terra, o corpo dobrado

para frente, os braços longos, esticados. Os olhos vermelhos

como brasas. Rafael se virou. Atrás dele havia várias sombras,

com dentes enormes e olhos cintilantes.

Deu um chute numa das sombras que se aproximava. A

sombra recebeu o impacto e voou pelos ares, caindo ao pé de

uma árvore. Rafael viu que pareciam papéis, mas eram seres

físicos. Tinham pouca espessura. Só dava para vê-las de frente,

quase não apareciam de lado.

– Elas têm altura e largura, mas não têm profundidade.

– Claro! São sombras – gritou Marcus enquanto socava

o queixo de uma, que resistiu a vários golpes até cair. Outras se

aproximavam ameaçadoras. Marcus pegou um ramo de árvore e

começou a bater nelas. Uma sombra que parecia um ser humano

gigantesco, de quase três metros de altura, pulou rapidamente,

cando atrás de Marcus. Estendeu seus braços e pegou Marcus

pela roupa, deixando-o no ar, sem forma de se defender. Marcus

tentou lhe acertar um golpe, mas a sombra riu e o arremessou

contra uma árvore, como se arremessa uma bola de boliche

contra os pinos. Marcus levou as mãos para as costas e esfregou.

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Sentia dor nas costas. Tentou se incorporar, mas a sombra

colocou as mãos nas próprias pernas, tirou um o de sombra,

como uma corda negra e o amarrou com força.

Rafael também estava em perigo. Três sombras menoreso ameaçavam, mas o menino, de 13 anos era forte. Chutou uma,

socou outra, mordeu o braço da terceira sombra. Voltou a chutar

a primeira. A terceira vez que tentou chutar a sombra, esta pegou

seu pé no ar e o puxou. Rafael caiu. As outras sombras pegaram

seus braços imobilizando-o. Então o amarraram com cordas e o

empurraram junto a Marcus. Taisha não havia tido melhor sorte.

Estava no chão sendo amarrada junto com sua vassoura.

– Taisha, faça um feitiço. Grite palavras mágicas. Faça

alguma coi... – gritou Rafael. Uma sombra disparou um cone de

sombra sobre sua boca e ele não conseguiu terminar a frase.

– Eu não sei – murmurou Taisha – eu nunca me interessei

por feitiços contra sombras, minha tia tentou me ensinar, mas eu

ngi que estava doente.

– Ajude-nos, por favor, Matinta-Perera! – gritou Taisha.

Nesse momento, Matinta-Perera, que havia permanecido

quieta e silenciosa, levantou os braços e os agitou violentamente.

Um relâmpago clareou o céu.

CAAAABBBRRRRRRUUUMMM!  Escutou-se muito perto.

As sombras olharam para cima no mesmo instante. Por

um momento caram imobilizadas. Olhavam o céu e seus corpos

balançavam, desestabilizados. Rafael percebeu que o branco do

olho das sombras cou enorme. Elas tinham medo, mais do que

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medo: estavam em pânico.

Matinta-Perera novamente agitou os braços.

Um raio iluminou o lugar. Ouviu-se um novo cabrummm.

Alguns segundos depois as sombras corriam desesperadas, comouma manada de búfalos perseguida por um leão. Rafael olhava

a reação das sombras. Taisha dava gargalhadas estridentes. Uma

chuva forte começou a cair.

As sombras corriam para buscar as árvores maiores,

tentavam se esconder entre as árvores e embaixo dos ramos.

Uma gota grossa caiu sobre a cabeça de uma delas, cortando-a

em dois, nem uma cimitarra12 poderia ser tão eciente. Uma das

metades da sombra recebeu outra gota de água e voltou a cortar-

se ao meio. Outra, e outra, ia se dividindo, até desaparecer.

Marcus chutou a sombra que estava escondida embaixo de

um ramo grande de árvore para não se molhar. Todas estavam

sendo atingidas pela chuva. O Duende, Rafael, Marcus e Taisha

levantaram um pouco os braços para que as gotas de chuva

tocassem as cordas. Mal a água tocou as cordas, elas caíram no

chão e se dividiram até não sobrar nada.

Taisha, já livre, estendeu os braços para o céu. A água

da chuva molhava os cabelos, o rosto, as mãos. Um sorriso

desenhado no rosto demonstrava sua satisfação. Aproximou-

se de Matinta-Perera e desceu a cabeça em sinal de humildade.

Agradeceu à chuva. O Duende, Rafael e Marcus também

12 Espada de lâmina curva mais larga na extremidade livre, com gume no lado convexo, usado porcertos povos orientais, como árabes, turcos, persas. (Nota do Organizador)

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agradeceram. A vassoura de Taisha curvou-se diante de Matinta-

Perera, em sinal de reverência.

O feitiço lançado sobre o mundo havia sido quebrado.

As sombras haviam desaparecido. Marcus abriu sua mochila edeu tabaco e cachaça para Matinta-Perera. Ela soltou uma forte

gargalhada e se afastou do local dizendo:

– Só ajudei porque Taisha é uma bruxa. Foi ela quem me

chamou.

– O mundo das bruxas é apaixonante – disse Marcos

– Eu sou alquimista, hipnólogo, teatrólogo, mágico, sensitivo,

tarólogo, quiromante, escritor, ator, diretor de teatro, artista

plástico, escultor, dançarino, poeta, astrólogo, cabalista,

ventríloquo, malabarista, orador de prestígio e respeitado

titiritero. Pena que eu não sou um bruxo.

– Uma pena, sim – armou Rafael. Sorte que temos a

Taisha.

– Devemos voltar – disse o Duende. – Boiuna parece ter

voltado ao mundo astral, mas nunca se sabe. Essa cobra pode

atacar novamente.

 

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SACI DA FLORESTA

Fred Sá Teles

 – Um bom guerreiro se faz com coragem. A mente faz

um guerreiro. Um bom guerreiro se faz com atenção. Os olhos

fazem o guerreiro. Um bom guerreiro se faz com garra. O coração

faz um guerreiro.

Este é a graduação do garoto de apenas dezessete anos

para o nível mais alto da arte da capoeira. Filho de pai indígena

e mãe negra, Saci traz consigo uma trança única em seu cabelo

negro que vem da sua nuca até o centro de suas costas. Olhos

profundos e negros numa feição de quem está sempre a pedir

consolo e ajuda. Todavia, era o melhor entre os outros, além do

seu mestre. Com a vitória na batalha se tornaria o mestre mais

jovem já formado no quilombo Estrela do Norte. Seu mestre

o incentivava, no entanto, não tornava a vida do garoto fácil.

Mesmo com todos os seus dizeres sobre como se comporta um

verdadeiro guerreiro, um verdadeiro capoeirista aplicava-lhe os

mais complexos golpes. Mestre Lua avança, dando uma meia lua

pra cima de Saci. Saci se assusta e cai.

– Dessa forma jamais será mestre. Somente será um

aluninho. É dessa forma que luta um Estrela do Norte? – pergunta

alto para os outros mestres e alunos sentados que fecham o

círculo.

– Perdão – diz Saci, humildemente.

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– Perdão não conserta costelas, menino – responde

mestre Lua.

Até agora mestre Lua havia sido o mais jovem a

conquistar o título de mestre, aos seus dezoito anos. Não forafácil para ele, não deixaria ser fácil para ninguém. Agora, mais de

cinquenta anos depois, continuava a ser o melhor capoeirista do

todo o norte do Brasil. Há muito tempo o reconhecimento era

justo. Nem o branco de suas imensas tranças no cabelo e em sua

barba ameaçava sua fama. Talvez Saci ameaçasse. Avançando

contra o garoto, aproxima um chute em direção à vértebra de

Saci, freando o pé bem próximo ao corpo de Saci ainda caído.

– Levanta daí.

O mestre se afasta. Saci se levanta. Mestre e Saci

novamente começam a gingar. Saci ataca com uma “meia-lua

de frente”, o Mestre se esquiva com um “au sem as mãos”,

contratacando em seguida com a “chibata” contra Saci. Saci é

atingido na perna direita e cai imediatamente. O Mestre dá as

costas.

– Levanta agora.

Saci continua caído, leva as mãos até sua perna.

– Eu não consigo – lamenta Saci.

– Saia da roda. Deixe algum guerreiro de verdade se

tornar mestre.

Saci se arrasta como pode para fora do centro da roda.

Se afasta um pouco de todos, encostando-se numa árvore. O

toque de berimbau continua, outra luta começa no centro da

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– Não olhe minhas pernas. Minhas pernas são minhas

pernas.

– Suas pernas estão quebradas.

Depois de estar nesse diálogo consigo mesmo, sua mentese tornou escura como agora era a selva. O cabelo trançado de

Saci se espalha pelo chão lentamente se tornando vermelho.

Desde a raiz até a ponta dos os.

– Agora você tem uma missão.

Após ter seu cabelo avermelhado, Saci leva as mãos

à sua perna doente e começa a gritar, se retorcendo. Uma luz

clareia tudo em volta. Tal luz se espalha, clareando boa parte da

oresta. De cima os pássaros noturnos que sobrevoam a mata

viram o clarão verde sob as folhas das copas das árvores e as

luzes em linha que se espalhavam, como o desenho das veias de

um corpo, ao mesmo tempo que um longo trovão brada no céu.

Saci para de gritar, respirando fundo. Muito ofegante.

Abre bem os olhos. Ao fundo do olho esquerdo de Saci chamas se

acendem, no olho direito o sol nasce. São Exú, o mais humano dos

orixás, senhor do princípio e da transformação e Tupã, divindade

que rege a força da natureza que ascendem ao corpo do garoto.

Sendo lho de mãe africana e pai indígena, seu corpo é capaz

de abrigar os dois deuses sem conito. Consegue se levantar,

mesmo que não conseguisse sentir sua perna direita. Deu três

passos lentos para frente, outros seis rápidos e logo começou a

correr tão rápido que fazia as folhas novas se desprenderem dos

seus galhos e se perderem no ar.

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Dias após, ouve-se falar de uma criança sempre a lavar

o rosto num ponto alto do rio Amazonas. De acordo com o

que se fala, é uma criança negra, magra, de cabelos vermelhos

enrolados numa única trança, despido de qualquer roupa. Algunsdizem que o rapaz tinha uma única perna, outros dizem que o

menino tinha as duas. O que não podem saber é que seu rosto

está sempre sujo de lágrimas, causa de estar sempre lavando os

seus olhos nas águas do rio. Sente falta da sua mãe, sente falta

do seu pai, do seu lugar, seu povo. Só que agora tem uma missão.

Saci tinha duas pernas. Uma de carne, sua perna

esquerda natural com que nascera. Outra mecânica, com metal

trazido por Tupã, fundido por Exú. Vez ou outra, o menino tirava

a sua perna mecânica para aliviar a dor que ainda sentia em seu

corpo. Respirava fundo e logo voltava a correr pela oresta,

pelos campos e fazendas dos homens brancos da região. Como

missão recebida, deveria dar corpo aos espíritos de semideuses

e mortos que pairavam nesse plano, impedidos de atravessarem

para o outro lado. Tinham eles muitas lamentações, deixando

assim suas almas pesadas demais para elevarem.

Nessa época, os cavalos dos senhores mestres de

escravos debandaram dos seus pastos, corriam livres ou sem

destino. Alguns corriam em círculo sem saberem para onde

ir, outros se atiravam de penhascos ou se afogavam no rio,

sendo encontrados dias depois com seus pelos enrolados,

avermelhados. Almas tão pesarosas às vezes querem apenas

desistir, não querem outra chance. Saci agora dava uma nova

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vida a quem era ignorado pelos céus e até mesmo pelo inferno.

Os rejeitados eram reencarnados no corpo dos cavalos assim que

Saci trançasse suas crinas, corando-as bem vermelhas, tornando-

os corpo aberto para os mortos aprisionados em seus própriosespíritos errantes pelo solo da Terra.

Deveriam os semideuses e outras almas, terminarem

suas questões pessoais que impediam-nos de galgar um lugar no

paraíso. Na verdade, poucos aproveitavam bem essa nova porta

que se abria, o que já era suciente para os deuses, já que esses

eram os mais valiosos. Saci libertou mais de mil e quinhentos

pesarosos espíritos, deixando os senhores de engenho

desesperados. Os homens brancos foram obrigados a andarem

a pé, sem terem montaria. Houve também centenas de corpos

mortos de cavalos espalhados por toda a oresta Amazônica.

Ninguém o vira em ação. Era tão lépido, tão sagaz e veloz. Assim

como um raio, só que sem trazer trovões.

Somente era visto por alguns no mesmo ponto do

rio, com as mãos sobre o rosto, lamentando sua própria vida,

sem saber quando seria livre de verdade. Ninguém ousou

falar com ele. Era uma gura medonha, com cabeça vermelho

sangue, ora com uma única perna, ora com uma perna de metal

enado em seu corpo. Aquela nova perna articial lhe garantia

se movimentar como quisesse, tão veloz como desejasse, sem

deixar pistas. Poderia correr em círculos em volta de si mesmo

gerando um furacão, só que nunca quisera. Gostava mesmo de

correr em linha reta. Em mais um de seus ns de tarde trocando a

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água salgada de suas lágrimas, pela doce do rio, pode ouvir uma

voz que lhe trazia recordações.

– Você ainda pode ser o melhor, só que antes disso terá

que derrotar numa luta até a morte. Anal, enquanto eu estivervivo tentarei te derrubar – era o mestre Lua. Por dias o esperou ali,

tendo a certeza de que essa nova lenda era seu antigo discípulo.

Saci ponderou muito sobre o dever de responder e o fez:

– Sempre desejei entender. Achei que o caminho fosse

o amor.

Mestre arma a base, ginga lentamente.

– O amor apenas serve para suscitar o ódio. Ame a si,

ame a capoeira, me odeie, me mate. Encontre seu caminho.

– Não preciso, mestre. Eu já encontrei meu lugar.

Saci sai em disparada.

O mestre fora o último dos negros a ter visto o garoto.

Apenas mais um humano o veria. A disparada de Saci o levou

a uma fazenda distante. Correu sobre as águas do Amazonas,

queimou o pé no sertão, não se cansou enquanto derramava

todas as lágrimas que podia. Em poucas horas encontrou o que

interessava, em pleno sudeste brasileiro. O melhor sangue-puro

inglês que achou que poderia encontrar. Um poderoso cavalo

negro, imponente, maravilhoso. Ao lado do animal, retirou de si

a prótese metálica e se pôs a trançar a crina do bicho.

Sentiu ser invadido pelo olhar curioso de alguém. Da

mesma forma, virou sua cabeça para a vidraça da janela da casa

próxima e enviou um sorriso à criança que lhe olhava. Fora esse

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o primeiro e único sorriso de Saci desde a sua última luta com o

mestre Lua. Visto que poderia sorrir, gargalhou e ouviu o mais

alto dos trovões. Montou no cavalo de crina trançada e vermelha,

cavalgando em direção à mata. Um raio certeiro e fugaz veioem sua direção. Nesse momento nada sobrou do corpo de Saci.

Somente o puro-sangue continuou a correr. E corria mais rápido,

era agora mais veloz. Amante das ondas do mar, Saci em seu

novo corpo vagou por todo o litoral brasileiro sem dores, em seu

novo corpo.

 

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RUNOLFO E O ENCANTAMENTO DA COBRA AJURITANA

Márcio Fernandes Conceição

Das várias histórias que eu, o encantador de lendas ouvi, existe

uma que aconteceu na região de Itapiranga, cidade do Amazonas.

Minha mãe me contou e logo eu comprovaria que tudo era

verdade.

***

A chuva, o raio, o vento, o trovão, o dia que parecia noite

e as águas barrentas do rio, agitadas, batiam no chão da casa de

palata ameaçando entrar pelas frestas do assoalho. No meio do

rio, uma sombra com olhos gigantes e fulminantes observava a

casa de madeira com telhado de palha.

No meio da tempestade de um típico tempo chuvoso

de inverno Amazônico, o choro de uma criança maltratada, que

acabara de receber um tabefe no rosto, se ouvia misturado ao

barulho da forte chuva. Assim era Runolfo, criança de dois anos

maltratado e rejeitado por sua mãe Maria.

– Cala boca, sua peste! Cala boca! Filho da m… Fica

quieto, senão eu te jogo no Igarapé! Toma!

Assim, o castigo continuava como outras tantas vezes,

desde que, o pai de Runolfo havia saído e largado Maria por uma

rapariga lá das bandas da Vila de São Pedro. O castigo, naquele

dia, era por ele, brincando, ter quebrado um objeto. As pancadas

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continuavam e passaram dos limites até deixarem o corpo da

pobre criança marcado pelo pedaço de madeira que a mãe usava

para as torturas quase que diárias.

Um irmão de Maria, no dia anterior, havia lhe advertidopelos maus tratos que ela dava ao menino, dizendo:

  – Maria, tu continua a bater assim neste curumim?

Ajuritana ainda vai vim pegá-lo e aí tu vai se arrepender e chorar

pelo teu lho!

Maria rindo disse a seu irmão:

– Ajuritana? Olha, João o lho é meu e eu trato do jeito

que quero! E tu não tens nada a ver com isso! Ajuritana que venha

e leve esse moleque que só sabe tirar minha paciência! E outra, tu

sabes que essas histórias de bêbados não me fazem medo algum!

A chuva parou, o tempo clareou e as águas do Igarapé

que haviam invadido tudo e passavam por baixo da casa, foram

se acalmando. O garoto choramingando foi para uma área

descampada, tipo de quintal suspenso, onde Maria cultivava

algumas hortaliças em tempos de cheias. Então, o vento mudou

e as águas de violentas caram serenas, a oresta parecia que

havia parado, emudecida. Som, somente os das gotas de água

que caiam das árvores.

Runolfo ainda chorando, soluçava, quando do meio

da canarana surgiu uma enorme cobra escura com pintas

avermelhadas e traços verdes, seus olhos brilhavam como fogo,

trazendo o sorriso da morte.

A cobra grande passou despercebida, chegou até onde

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estava o curumim e se transformou em uma linda índia. O garoto

sorriu e ela tomou o menino nos braços.

Quando Maria viu, gritou desesperada:

 – Quem és tu? Solta meu lho! – Correu para pegar umaespingarda que pertencia a seu marido.

Ajuritana mergulhou nas profundezas do igarapé e

voltando já em forma de cobra, enfrentou Maria dizendo:

  – Ele não é mais seu! Curumim agora é do rio, é da

Natureza! Se você quiser, vai ter que lutar por ele ou irei torná-lo

uma linda cobra encantada e protetora de um rio! – Dizendo isso,

mergulhou para não voltar mais.

Dona Maria chorou amargamente, lamentando tudo o

que tinha feito com seu lho. O tio de Runolfo falou:

– Não te disse o que iria acontecer? E tu fez pouco caso

de mim, agora, o único jeito é chamar seu Zózimo, ele dirá o que

fazer.

Assim, o tio pegou a Canoa e foi atrás de Sr. Zózimo lá

para as bandas da cidade. Sr. Zozimo era curandeiro e ajudava as

pessoas com suas benzeduras. Suas rezas eram muito famosas

em toda a região. Ele foi encontrado e levado às pressas para

casa de Maria. Chegando lá, acendeu uma vela e começou a

rezar. Em uma espécie de ritual, entrou em transe e começou a

conversar com um espírito. Quando voltou estava suado e disse

bastante cansado:

– O curumim foi levado por Ajuritana e está na cidade

dos encantados. Está bem, está dormindo e sendo guardado por

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um grande peixe.

Maria disse chorando:

– E tem jeito de eu trazer meu menino?

– Bem, no terceiro dia tu deixas a sua porta aberta, elevoltará te chamando. Nas duas primeiras vezes tu não responde e

deixe que ele se aproxime de tua rede, quando na terceira vez ele

chamar mamãe e estiver ao teu alcance, ele já estará de corpo e

alma e, assim, a senhora o segura com força e não solta, dizendo:

 Ajuritana, cuidarei bem do meu lho, deixa ele!

Passaram-se os três dias preditos por Senhor Zózimo

e quando chegou meia-noite, um temporal com relâmpagos e

trovões dava aspecto apavorante na noite. Uma forte ventania

pairava sobre o casebre de madeira, quando de repente um

rápido silêncio se fez, e em pequenos passos Runolfo veio.

Chamou a primeira vez:

– Mamãe!

Dona Maria nada respondeu, mas seu coração começou

a car aito.

A chuva e o relâmpago retornaram, por trás do menino

se via as costas brilhantes da cobra grande. Dona Maria não ousou

responder, só que na segunda vez um forte trovão se ouviu e

Maria se desesperou. A mãe apavorada se levantou gritando:

 – Meu lho!

E depois disso, Runolfo rapidamente foi retirado por

Ajuritana que voltou para as águas. No outro dia, Zózimo retornou

à casa da de Mãe de Runolfo e disse:

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porém, como cou muito grande não pôde mais se mover. Em suas

costas surgiu uma grande extensão de terra, uma ilha bem no meio

do rio.

***

Quando era criança tive a oportunidade de ver a dita ilha.

Estava lá, gigantesca. Perguntei se podia ir até lá, mas meu primo

disse que quem ia naquela ilha, não voltava mais. Há alguns anos

atrás, voltei a Itapiranga. Aquela grande ilha havia desaparecido.

Disseram que certa noite houve um grande e demorado

estrondo, e pela manhã tudo havia sumido. Alguns antigos falaram

que foi Runolfo que acordou e mudou de lugar, indo para a parte

mais profunda do rio, ou para a cidade dos encantados, onde

nenhum homem que foi conseguiu voltar, além, do encantador de

lendas.

Assim, essa história percorre o tempo e o imaginário do

povo de Itapiranga, uns já se esqueceram. Os antigos aos poucos se

vão para os braços de Deus, e é por isso, que quero fazer com que

outros a conheçam. Runolfo continua na cidade dos encantados.

Logo depois que recebi meus poderes e consegui ir naquela cidade,

conversei com ele e ele contou que sente muita saudade da mãe,

mas que não teve oportunidade de voltar a vê-la. Contei que ela

não existia mais e ele disse que o amor de lho pela mãe jamais

desaparece e que se foi tirado dela, foi uma lição da oresta pelos

maus tratos, palavrões e torturas físicas a que era submetido.

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MATITA MARIA

Hileane Barbosa Silva

Ela o amava tanto, tanto mesmo. Pena que não era

batizado.

O que diria sua mãe quando soubesse que sua linda e

jovem lha Maria Cecília estava enroscada com um caboclo de

fora e que era ainda por cima um vaqueiro?! Essa mesma raça

que vive montada no cavalo, de pasto em pasto, atrás de gado.

Sua menina caria em casa, sempre na expectativa do retorno do

marido. Quanto tempo ele permaneceria longe do lar? Quanto

tempo se passaria até Maria Cecília perceber o quanto aquele

casamento seria a pior decisão da sua vida?

 Pobre Maria Cecília que chorou por três dias e três noites

a o quando ela descobriu. Pobre João Pedro, que carregaria um

coração ferido pelo resto dos seus dias. Pobre mãe da moça, que

via sua lha sofrer por amor e não podia lhe revelar o verdadeiro

motivo da sua decisão. Ah, sim, havia algo mais nessa história.

Não era porque o ofício do rapaz que lhe incomodava. Ele podia

muito bem sossegar o facho com qualquer outra prossão

naquela cidadezinha do interior do Maranhão. Trabalho era o que

não faltava e ele estava disposto a fazer de tudo para permanecer

junto à amada. Além disso, ser vaqueiro é ter uma prossão digna

como qualquer outra. Um pouco mais difícil, mas honrada.

– Por que não me fala, mãe?

Maria Cecília andava de um lado para o outro. O chambre

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arrastando-se pelo chão de barro batido e às vezes sob seus pés

descuidados. A casa era simples, não tinham banheiro, o telhado

era forrado com palhas, as paredes foram erguidas com pau-a-

pique. Mas a mata atrás dela era de encher os olhos, o enormerochedo de pedra se erguia coberto do verde da mata. A natureza

era orgulhosa ali. O verde dos olhos de Maria Cecília competiam

com a vermelhidão de seu rosto choroso.

A mãe, uma mulher cansada, limitou-se a olhar a sua

menina ainda tão jovenzinha. A maldição só a acometeria no dia

seguinte, no aniversário de quinze de anos. Só aí Maria saberia

da sua sina.

– Mãe, me fala! – e ela gritava com uma voz esganiçada

de quem tinha seus pedacinhos de sonhos sendo cortados.

Doloroso

– Teu coração se curará ligeiro desse amor, minha

pequena. Não me peça explicação ainda. Amanhã eu te falo.

– Amanhã eu estarei morta com essa agonia! Quero

João. Quero casar com ele. Você é má, mãe, muito má! Será que

a senhora é tão infeliz a ponto de querer que tua lha tenha o

mesmo destino? Não amava o papai? Não sabe o que é sentir isso?

A mãe apertou os lábios. Ela não ia chorar, não devia...

É claro que ela amava o marido. Coitado, foi só mais uma pobre

vítima. A mulher ainda se lembra do sangue dele escorrendo

pelos seus dedos, caindo e sujando esse mesmo chão de barro

que pisavam. Não foi de propósito. Ela queria gritar.

– Amanhã eu te falo.

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E então se recolheu para a sua rede.

Era somente as duas naquele pequeno casebre junto a

uma serra, um lugar perto do nada, no meio de lugar nenhum.

Mãe e lha viviam isoladas de tudo e de todos; e o resto domundo as via como criaturas estranhas, cercada de mitos. Ora,

mas só eram duas mulheres indefesas, alguém de fora diria. Os

mais velhos da região garantiam que não. Mesmo as crianças

sabiam que chegar perto daquelas terras era encrenca.

Maria pulou a cerca que impedia das ovelhas que

criavam fugissem. Passava da meia-noite, noite essa que tinha

um clima denso, frio, quase delicioso para a menina que fugia. A

mata parecia querer abraçá-la como mais uma de suas criaturas.

Tão mágico. Tudo tão maravilhoso. E ela ria como a criança

que carregava em seu coração. A lua iluminava o seu caminho,

ainda assim, foi inevitável que a barra do seu chambre rasgasse

diante de um galho mais atrevido. Bem, ela tinha outras roupas

guardadas na trouxa improvisada que carregava sob o braço

direito.

João Pedro lhe esperava ansioso. O cheiro do couro e

do cavalo impregnava sua pele quando ele a abraçou. O casal se

beijou numa pressa desmedida, a saudade transbordava.

– Vamos? – ele pergunta estendendo lhe a mão.

Maria monta em seu cavalo. A lua pareceu ainda mais

clara. Um grito serpenteou entre as árvores até chegar aos

ouvidos dos dois.

– Minha mãe deve ter acordado!

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Mas que grito mais alucinado era aquele? Parecia mais

uma louca. Sua doce mãe estaria perdendo a sanidade?

João Pedro partiu com o cavalo e o amor segurando a

sua cintura. Ela apertava tanto que ele já nem conseguia respirardireito. Sentia pena dela. Devia estar morrendo de tristeza por ter

que deixar a mãe. Ah, as escolhas que a vida nos faz tomar. Mas

agora era sua vez de cuidar de Maria. Amava-a, muito mesmo.

E quebraria o nariz do próximo infeliz que dissesse que aquilo

era só uma loucura momentânea, que logo iria passar e ele se

perceberia acordando ao lado de alguém de quem já não sentia

o mesmo que antes.

Ele chamou por seu nome quase sem fôlego.

– Folga um pouquinho só, meu anjo.

Ela folgou.

Logo à frente, um rio rugia perigoso com suas águas

furiosas. Precisavam descer. Ele iria a pé, puxando os arreios do

cavalo com Maria montada. João fez o primeiro movimento, mas

Maria não queria largá-lo.

– Maria? Por favor, me solta.

– Seu pescoço é tão cheiroso, meu amor.

Ele riu. Só mesmo ela pra fazer graças em um momento

como aquele.

– Me deixa descer, meu amor – pediu pacientemente.

– Agora não. Eu quero cheirar mais um pouco.

– Maria...

– Não! Não! Não! – disse rosnando como um cachorro

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– Foge mais não, minha pequena. Quer car com ele? Eu

deixo. Mas você não pode deixar sobrar nenhum pedaço. Faz mal

desperdiçar carne tão boa.

Maria sorriu. Estava mesmo com fome.Quem morava perto daquela mata, não dormiu bem

naquela madrugada. Os gritos assustavam qualquer um, mesmo

baixos e distantes. Ninguém também fez nada. Se fosse alguém

precisando de ajuda, estava a sua própria sorte.

Na semana seguinte ainda tinha quem não conseguisse

dormir. Seu Mazé foi um. Como tinha que acordar todo dia às

cinco em ponto, estava cansado e bastante irritado. Foi quando

dois vaqueiros bateram palmas em seu portão. Eles perguntavam

por um jovem chamado João Pedro que tinha ido buscar a

namorada e nunca mais voltou.

– Pode é voltar por cima do rastro, desse daí vocês não

acham nem mais os ossos!

Os homens se entreolharam sem entender. Mazé fez o

favor de explicar.

– Naquela casa ninguém vai. Quem foi, garante que não

tem mais coragem de voltar. Dizem que lá mora uma matita-

pereira e sua lha que não deve ser muito diferente da mãe. Uma

bruxa viciada em fumo, diabo encarnado. Ela ainda carrega um

monte de morte nas costas, principalmente de crianças e bebês

não batizados.

– Mas se quiserem arriscar... – o velho deu de ombros e

voltou para dentro da casa.

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O MAPINGUARI13 

Edweine Loureiro

– E então: conseguiu fazer contato com o médico da

FUNAI14? – perguntou Sebastião, que trazia uma capivara nas

costas, ao parceiro de caçada, Almir.

– Diacho, Tião! Onde foi que tu arranjaste isso, ô homi?

– Ué! Com os índios? Com quem mais? Você sabe que,

desde ontem, com essa tremedeira que não para, não consigo

nem pegar uma colher direito… quanto mais uma espingarda.

Mas e aí, falou com o diacho do médico?

– Falei, sim, mas ele está na capital. Amanhã à tarde, no

entanto, o mesmo helicóptero que vem para nos buscar também

irá trazê-lo para pernoitar: segundo me disse a secretária da

FUNAI, ele tem de vir de qualquer jeito para atender os ticunas15.

E Tião, aliviado:

– Menos mal. – E reacendendo o toco de cigarro que

trazia na boca: – Até que vai ser bom passar mais uma noite

aqui, entre os ticunas. Adoro as histórias de terror daquele velho

maluco, o Pajé, sobre o… – como é mesmo o nome do bicho que

ele diz que anda por aqui?

13 Uma criatura carnívora, com mais de dois metros de altura e coberta de um longo pelo vermelho,que vive na Floresta Amazônica. Muito semelhante ao “Pé-grande” americano. (Todas as

notas deste conto são do autor)14 A Fundação Nacional do Índio (FUNAI): o órgão indigenista ocial do Estado brasileiro, vinculadoao Ministério da Justiça e estabelecido em 1967.15 Povos ameríndios que habitam, atualmente, a fronteira entre o Brasil e o Peru e o TrapézioAmazônico, na Colômbia. Formam uma sociedade de mais de cinquenta mil indivíduos, sendo omais numeroso povo indígena da Amazônia brasileira.

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– Que gritos foram esses, Tião?

– Gritos? Que gritos, Almir? Você deve é de estar sonhando,

homem! Volta a dormir que é melhor.

Mas, nisto, o mesmo curumim que os havia auxiliado com a

capivara adentrou a oca, ferido:

– Me ajudem, por fav…

E expirou ali mesmo, diante dos olhares aterrorizados dos

caçadores. Almir, então, pegando as duas carabinas, falou para o

outro, que parecia petricado:

– Rápido, Tião. Vamos embora, homem! Ou acaso quer

morrer?

E Tião, como que despertando de um coma, seguiu o

companheiro. Fora da tenda, somente encontrariam a escuridão. E

os gritos, cada vez mais fortes, desnorteá-los-iam ainda mais.

***

Desesperados, e sem a luz do sol para guiá-los, os dois

caçadores nem perceberam que, por alguns minutos, haviam

corrido em círculos.

Até que Almir deu-se conta de uma trilha aberta na mata e

pela qual poderiam escapar. E, fazendo sinal para Tião, gritou:

– Por aqui! Vamos nos esconder na mata até amanhecer!

Foi quando Tião se negou a acompanhá-lo:

– Mas logo a mata? E se o Mapinguari estiver justamente

aí dentro?

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E o amigo, impacientando-se, puxou-lhe pelo braço:

– Agora você acredita em Mapinguari, não é, seu linguarudo

dos infernos? Então, se quiser viver, faça o que estou dizendo: corra!

Corra como jamais correu na vida! E não olhe pra trás!

***

Tião, porém, olhou. E o que viu foi um cenário dantesco:

pernas e braços mutilados, espalhados ao longo da trilha. O odor

de carne e sangue podres parecia impregnar toda a mata. E, para

piorar, um ser monstruoso, com as mesmas características descritas

pelo pajé, vinha na direção da dupla. Foi quando, novamente

atônito, Tião começou a diminuir a velocidade. Até ser, outra vez,

puxado por Almir.

– Que diabos está fazendo, homem de Deus? Já disse: quer

morrer?

Mas não: morrer, decididamente, não estava nos planos

de Tião. De tal modo que acelerou, e, agora, sem questionar o

outro. Aliás, correu conforme Almir havia lhe orientando: sem olhar

para trás e como nunca havia corrido em toda a vida. A ponto de

ultrapassar o amigo, que, dessa vez, gritou:

– Espere aí, hômi! Não me deixe pra trás…

Quando Almir nalmente conseguiu alcançar o 

companheiro, este já batia na porta de um casebre – a única

habitação naquelas imediações.

E, como ninguém atendeu, não lhes restou outra

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alternativa senão arrombar a porta. E foi o que zeram. Melhor,

porém, seria que não o tivessem feito. Pois o que testemunharam

foi nada menos que o Horror: na cama, abraçados, os corpos de

uma mulher e uma criança. Ambos tinham os rostos descarnadose, ao que parecia, haviam sido atacados pelo mesmo animal –

ou coisa semelhante – que a dupla avistara, minutos antes,

devorando a tribo dos ticunas.

Foi quando Tião, ouvindo um grunhido, voltou o olhar

em direção à entrada. Mas, infelizmente, era tarde: pois já o

Mapinguari cravava os dentes na jugular de Almir, que tombava

ali mesmo, debatendo-se.

E, logo em seguida, foi a vez de o bicho saltar sobre Tião,

enquanto este ainda tentava, com as mãos trêmulas, engatilhar

a carabina.

***

  – Wait a minute, Mister Lima! Como o senhor

saber desse história com tanta detalhe? – indagou, espantado,

o aventureiro inglês, que havia parado para descansar, naquela

noite de lua cheia, no casebre do eremita José Lima – antigo pajé

ticuna –, nos arredores de Tabatinga .

  O velho José, porém, já em estágio de

transformação – as presas, as garras e os pelos vermelhos

crescendo –, não mais escutava o visitante.

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A CRIATURA

Maurício Coelho

O reexo da lua prateada no rio deixava a oresta como

se fosse uma entidade viva e mística. Tudo estava parado, nem

o sapo-boi se atrevia a coaxar. Um clima comumente estranho.

Um gafanhoto saltou para próximo do Bufo marinus e parecia

zombá-lo. Este, apenas ignorou o inseto e se recolheu para a

água. O barulho de uma árvore caindo ao longe fez as garças se

despertarem e voarem. Em seguida, um longo rugido, como se

fosse um lamento fora ouvido. Uma onça? Ainda era possível ver

uma Panthera onca naquela região, mesmo nos dias de hoje.

A quase dois quilômetros daquele som, uma lâmpada

fosforescente se acendeu em uma minúscula casa de barro.

Se Isidoro pudesse se ver no espelho, notaria o grande rosto

cansado, sonolento e com rugas.

– Não é possível – ele disse, sozinho. – Outra vez? Eu

pensei que esse bicho não ia mais aparecer por aqui.

Isidoro carregava consigo uma memória bastante nítida.

Ele era criança quando escutara o som pela primeira vez. Apesar

de nunca ter ouvido antes, não se assustou e pensou ter sido

simplesmente um trovão. Entretanto, quando olhou para o rosto

do pai, este demonstrou pavor. A testa pingava de suor e os

lábios tremiam.

– O que foi? – o garoto Isidoro pergunta.

O pai leva algum tempo para dizer algo.

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– Conhece esse som? – O pai rebate com outra pergunta.

– Não.

– É o barulho de uma criatura horrenda.

Mesmo pequeno, Isidoro não acreditava em bicho-papão ou em Deus, porém, independente da crença dele, no dia

seguinte só o que as outras crianças comentavam na sala de aula

era o tal barulho do monstro. Parecia que a população toda da

vila acreditava na besta, mesmo sem ninguém ter visto o corpo

ou pegadas do animal. Três anos mais tarde, quando ele largou

os estudos no primeiro ano do Ensino Médio, um velho ribeirinho

chamado Waldenilson Miranda – ele recordava bem o nome –

disse para o povoado que matara a enorme fera e, para mostrar

que era verdade, exibiu para todo mundo parte da pele da

criatura. Era áspero, esverdeado, como se pertencesse a alguma

espécie de réptil. Uma iguana ou jacaré. Mas também continha

pelos duros, tal qual de preguiça ou cutia. Isidoro não acreditou

na história do velho e a amostra podia ter sido facilmente forjada,

mas desde que o velho anunciou a morte da criatura, seu rugido

nunca mais fora ouvido.

Por isso Isidoro se assustou ao ouvir aquele rosnar. Fora

apenas coincidência ou o velho dizia a verdade? E se fosse real,

então era provável que existissem outros seres infernais iguais

àquele.

Ele cou atento. Queria conseguir escutar novamente.

Mesmo sem crer completamente, sua mente ainda fraquejava e

oscilava entre a razão e o sobrenatural. Porém não ouviu mais

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Entretanto agora, o conhecimento de caçador se fazia necessário.

Ele se abaixou e prestou atenção nas árvores, para ver se elas

se balançavam mais do que o normal. Nenhuma mudança sutil.

Aproximou-se delas e tentou enxergar se no tronco delas haviaindícios de animais terem passado por ali, como marca de garras.

Nada.

– Cadê tu? – ele sussurrou.

A oresta estava mais escura. Ele olhou para o céu, uma

nuvem cobria o astro da noite. Estava agora na mata secundária

e nenhum sinal do demônio.

– Mapinguari – bradou Isidoro. – Mapinguari! Aparece!

As pernas de Isidoro chacoalharam e seu cérebro

demorou alguns segundos para enviar a informação de que não

era só seu corpo que tremia, mas sim todo o solo. Isidoro viu

aquele monte se erguer, como se fosse um gigantesco Polifemus.

Assim como o monstro de Homero, esse também possuía um

olho.

– Jesus, Maria e José – balbuciou Isidoro.

O demônio tinha quase três metros de altura. A cabeça

era pequena em relação ao resto do corpo escamoso e volvido

de pelos. O mono-olho era de um vermelho vivo. A boca cava

na vertical, cheia de dentes pontiagudos e uma enorme língua

áspera e suculenta.

Eu deveria ter ido para a cidade quando tive a oportunidade,

pensou Isidoro. Aposto que na cidade nada disso existe.

Ele nem se deu conta que estava chorando. Não havia

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MINIBIOGRAFIAS

Ailton Silva Favacho é marajoara, natural de Soure, PA. Professor, escritor,

poeta, contista, artesão e compositor, publicou, em 2012, o livro Casa de

Barro, pela Editora CPOEMA. Além disso, é autor de 15 músicas reunidas no CD

Obra-prima, Marajó, lançado em 2014, e integra o Clube do Poeta e do Escritor

Marajoara, por meio do qual participou da publicação de quatro antologias

literárias. Contato com o autor: [email protected]

Alfredo Alvarenga nasceu em Sorocaba, SP. É formado em História, escreve

desde os 14 anos. Publicou em 2009 o livro Uivos na Escuridão, com contos de

terror, suspense e tragédia. Além de ter participado de inúmeras coletâneas

literárias na cidade de Sorocaba, SP. Contato com o autor: alfredo.alfredo.

[email protected]

Amauri Chicarelli  nasceu no Paraná, mas vive em São Paulo. Estudou um

pouco de Filosoa e depois Direito. É músico e só recentemente começou

a levar a sério a arte de escrever. Publicou o livro  A Outra Banda do Rock e

diversos contos em antologias, revistas e concursos literários no Brasil e

em alguns países de língua portuguesa. Está escrevendo um romance que

pretende terminar até o nal do ano de 2015.

Ana Rosa de Oliveira  vive em Brasília, DF. É graduada em Geograa com

especialização em Análise Ambiental e Desenvolvimento Sustentável, ambos

pelo UniCeuB. Possui diversos textos publicados em antologias. Contato com

a autora: [email protected] e [email protected]

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Anderson do Couto Candido nasceu em Três Rios, RJ, em 1966. Formou-se

em Geograa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e fez Pós-

Graduação em Administração Escolar, pela Universidade Cândido Mendes,

no Rio de Janeiro. Editou o jornal O Papiro do Projeto de Reciclar Papel Com

 Arte, da rede FAETEC – Quintino, RJ, e foi colaborador do Jornal Negócios

de São Gonçalo, também no Rio de Janeiro. Escreve desde os dez anos de

idade, onde já escreveu centenas de poesias, romances, crônicas e contos,

pelos quais recebeu prêmios, diplomas, menções honrosas e selecionadas

para participar em antologias de diversos concursos literários.

Bruno Eleres  é formado em biologia e mestre em Ecologia, passou a

adolescência escrevendo em fóruns de RPG. A vontade de escrever os contos

que lhe vinham à cabeça foi alimentada através do contato com seus amigos,

bem como da inspiração por alguns escritores, como Anaïs Nin e Henry Miller.

Mantém o blog un-cafe-a-clichy.blogspot.com

Ed Rastun é o pseudônimo de Edilson Vulcão, professor formado em Ciências

da Religião, interessado em literatura fantástica, cção-cientíca e outras

atividades e expressões artísticas. Administra a página no Facebook Apócritos

de Rastum na qual publica seu material. Contato com o autor: edvulkao@

gmail.com

Edweine Loureiro  nasceu em Manaus, AM. É advogado e professor de

Literatura. Possui mais de cem classicações em concursos literários no Brasil,

em Portugal, na Espanha e nos Estados Unidos. É autor dos livros: Sonhador

Sim Senhor! (2000), Clandestinos (2011), Em Curto Espaço (2012) e No Mínimo, o

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Innito (2013) e do ainda inédito Filho da Floresta (e outros poemas), livro este que

recebeu o Terceiro Lugar no Prêmio Literacidade 2015 (Pará). Contato com o autor:

[email protected]

Endell Menezes nasceu em Belém, PA. Ele é graduando de Licenciatura em Ciências

Biológicas, é Multiplicador Solar do Greenpeace Brasil e Delegado do Coletivo

Jovens de Meio Ambiente do Pará. Inspirou-se para escrever no Projeto Vitoria

Régia: do popular ao cientíco, de sua própria autoria. Contato com o autor: endell_

[email protected]

Francélia Pereira  é estudante de Letras. Teve seu primeiro romance, Habitantes

do Cosmos: Artemísia, publicado em 2015, pela Editora Buriti. Ela é apaixonada por

Mitologia, Ficção Cientíca e Poesia. Contato com a autora: [email protected]

Fred Sá Teles nasceu em Morro do Chapéu, BA. É escritor, músico e cineasta.

Graduando em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal do Recôncavo da

Bahia, publicou artigo cientíco na revista Extensão em Debate, bem como teve

conto selecionado para a coletânea Cartas do pequeno Imperador . Tornará público

em breve suas poesias num ebook denominado Transliteração. Contato com o

autor: [email protected]

Gustavo Valvasori é formado em Direito pelo Instituto Toledo de Ensino (Bauru)

e em Publicidade e Propaganda pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Autor

de e–books de marketing digital, fancs e tirinhas. Mantém os sites asiloarkham.

tumblr.com e entrevistadeemprego.tumblr.com. Contato com o autor: gustavo.

[email protected]

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Hileane Barbosa Silva nasceu em Campo Maior, PI. É apaixonada por histórias.

Ainda não publicou nenhum livro, mas se depender da sua vontade, isso será

bem próximo. Contato com a autora: [email protected]

Inácio Oliveira nasceu em 1989, na cidade de Óbidos, PA e mora em Manaus, AM.

É formado em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Amazonas. Possui

textos publicados na antologia Novos talentos da crônica contemporânea e Novos

talentos da poesia contemporânea (Câmara do Jovem Escritor do Rio de Janeiro,

2006 e 2007), foi selecionado pelo concurso anual do SESC-AM para compor a

antologia de contos no ano de 2008, participou da Antologia Manaus 20 Autores 

(Livro de Graça na Praça, 2013). Contato com o autor: [email protected]

JBAlves nasceu em Londrina, PR. Atualmente mora na cidade de São Paulo.

Trabalhou com games de computador por mais de uma década. É formado

em Antropologia, pós-graduado em gestão de projetos e mestrado em

Administração. Escreve Fantasia, Poesia e Ficção Cientíca e já recebeu os

prêmios Editors Choice Award  (International Library of Poetry) e o Young

Writers Award (Litteris Publisher). Seus contos já foram publicados em diversas

coletâneas e revistas digitais. Contato com o autor: [email protected]

Jean Thallis  é estudante de geograa e escritor do gênero gore, atualmente

escreve seu quarto livro sobre o tema, tendo já lançado o primeiro livro em 2013,

pela Chiado Editora,  Lapso Esquizofrênico. Na cção cientíca, ele encontrou

muita de suas inspirações em autores como H.G Wells e Philip K. Dick.

Jhon Mark  nasceu em 1989. Em 2013 foi um dos selecionados do concurso

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Poetize 2013 e participou da  Antologia Amores Impossíveis,  organizada pela

escritora Lycia Barros. Atualmente, escreve o primeiro livro da Saga O Vértice: O

Olhar de Caronte; no qual, é publicado um capítulo semanalmente no Wattpad.

Contato com o autor: [email protected]

J. L. Costa  (José Lucas dos Santos Costa) nasceu em Vitória de Santo Antão, PE,

em 1996. Cursa Engenharia Civil na Universidade de Pernambuco (UPE). Nas horas

vagas, alterna-se entre Kaa, integrais e Douglas Adams. Contato com o autor:

[email protected]

Márcio Fernandes Conceição nasceu em Itacoatiara, AM. Ele é Servidor público

estadual da SEDUC-AM, vive em Manaus desde 2011. Acadêmico de Letras Língua e

Literatura Portuguesa – UFAM. Contato com o autor: marcioppfernandes@gmail.

com

Maurício Coelho é o organizador desta antologia. Nasceu em Belém, PA, em 1992.

Graduado em Licenciatura em Ciências Biológicas, publicou a tradução de The

Nursery Alice  (A Cuidadosa Alice), de Lewis Carroll. Publicou também um poema

na antologia Concurso Novos Poetas  2014, além de um conto na coletânea Horas

Sombrias. Também publicou uma antologia solo de histórias chamada Fogo Fátuo.

Contato com o autor: [email protected]

Moisés Diniz é neto de nordestinos de Riacho do Sangue, CE, e índios ashaninkas

das margens do Rio Amônia, em Cruzeiro do Sul, AC. É formado em Pedagogia pela

Universidade Federal do Acre. Membro da Academia Acreana de Letras e membro

da Academia Acreana de Letras. Contato com o autor: [email protected]

Patrick Santos nasceu em Belém, Pará. É professor de artes visuais, e sempre se

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interessou pela arte amazônica. Escreve desde a adolescência e sua principal

inuência é o escritor, paraoara, Walcyr Monteiro, bem como Antonio Juraci

Siqueira. Contato com o autor: [email protected]

Priscila Machado escreve desde os oito anos e é estudante de publicidade e

mora em Goiânia, GO. Ama folclore irlandês, chá, livros, pessoas e palavras.

Está escrevendo seu primeiro livro e desengavetando contos empoeirados.

Contato com a autora: [email protected] Portfólio: behance.net/

primachado

Raphael Miguel nasceu em 1987 em Botucatu, SP. Tem a escrita como hobby

e já participou de diversas antologias, dentre elas: Além das Cruzadas (Editora

Andross); Modus Operandi (Editora Illuminare); Poesia Sem Fronteiras (Editora

Celeiro); Coletânea Aurora (Editora Celeiro). Possui diversos projetos literários

em andamento e um livro pronto aguardando publicação. Contato com o

autor: [email protected]

Santiago Castro é gaúcho e colorado. Descobriu nas histórias em quadrinhos

e na obra de Monteiro Lobato o gosto pela leitura. E escrever tem sido mais

uma etapa nessa incrível jornada. Contato com o autor: santiagocastro@

outlook.com

Sirius  é o pseudônimo de Isabel Furini. Ela é escritora, educadora e poeta.

Foi premiada em concursos de poesia e de contos no Brasil e na Espanha.

Publicou 30 livros, entre eles: O Livro do Escritor (Curitiba: Instituto Memória,

2009); Eu quero ser escritor – a crônica (Curitiba: Instituto Memória, 2012); Os

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corvos de Van Gogh, poemas, (Virtual Books, 2012); além de orientar a Ocina

Como Escrever Livros. Contato com a autora: [email protected]

V. M. Gonçalves  nasceu em Ponta Grossa, PR. Graduado em Artes Visuais

pela Universidade Estadual de Ponta Grossa e mestre em Comunicação e

Linguagens pela Universade Tuiuti do Paraná. Apaixonado por folclore e

culturas antigas, especialmente as Pré-Colombianas, dedica seu tempo livre à

criação de universos fantásticos feitos de ideias e tinta. Em 2014 publicou seu