seres amazônicos
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O coração de uma floresta guarda mistérios que nenhum ser humano jamais seria capaz de imaginar. Longe da luz das cidades e do barulho dos carros, lendas sobre os mais diversos assuntos divertem e assustam os moradores desse mundo selvagem. Quais são os mistérios que cercam uma floresta intocada? Isso você descobre na antologia Seres Amazônicos.TRANSCRIPT
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autora, poderá ser reproduzida ou
transmitida sejam quais forem os
meios empregados: eletrônicos,
mecânicos, fotográcos, gravação
ou quaisquer outros. Esta é uma obra
ctícia, qualquer semelhança com
pessoas reais vivas ou mortas é mera
coincidência.
Arte da capa
Czech Xie
Diagramação
Jean Thallis
Organização
Maurício Coelho
Revisão
Bruno Eleres e autores
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SUMÁRIO
Suindara – Ed Rastum, 5
A Vingança da Sereia – Amauri Chicarelli, 17
O Grito veio da Floresta – Bruno Eleres, 23
O Bravo Pirarucu – Raphael Miguel, 32
O Criador de Lendas – Jhon Mark,39
A Face do Boto – Patrick Santos, 46
O Fogo de Angatu – Wilson Faws, 54
A Proposta – Santiago Castro, 62
A Pedra Verde das Icamiabas – J. L. Costa, 67
Guardiões – Francélia Pereira, 75
No Coração da Selva – Alfredo Alvarenga, 84
Os Dois Deuses e o Senhor da Travessura – V. M. Gonçalves, 91
Um Amor – Endell Menezes, 101
Estrada Inca – Jean Thallis, 103
O Bezerro Rosilho – Ailton Silva Favacho, 107
O Saci – Gustavo Valvasori, 116
O Coronel e o Lobisomem – Ana Rosa de Oliveira, 124
A Fuga do Curupira – Inácio Oliveira, 131
O Tabaco da Caipora – Moisés Diniz,133
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O Porto – Anderson do Couto Candido, 145
A Sereia Sem Canto – Priscila Machado, 152
A Misteriosa Origem dos Filhos D’água – JBAlves, 160
A Magia da Floresta – Sirius, 168
Saci da Floresta – Fred Sá Teles, 180
Runolfo e o Encantamento da Cobra Ajuritana – Márcio Fernandes
Conceição, 188
Matita Maria – Hileane Barbosa Silva, 194
O Mapinguari – Edweine Loureiro, 200
Criatura – Maurício Coelho, 205
Minibiográas, 210
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SUINDARA
Ed Rastun
Ela corre pela mata. Por um caminho conhecido. Tão logo perto
do riacho, vê um garoto brincando à beira d´água. Ele joga pedras
na água e ela aproxima-se sorrateiramente. O garoto aparenta ter
cinco anos, a cabeça sem cabelos e sem roupas, como se um dos
garotos da vizinhança. Aparenta estar bem feliz. Mas ela não se
lembra de tê-lo visto por essas partes da Mata. Ela estende a mão
esquerda para tocar o seu ombro e ele vira-se velozmente. Não há
olhos, mas sim vermes que passeiam entre os buracos de sua face e
devoram a carne podre e fétida. Ela cai sentada no chão. Com pavor
e amedrontada. Logo estaremos juntos, ele diz, poderemos jogar
pedras pra sempre no igarapé. As águas se tornam um caldeirão
onde vários corpos pútridos jorram pus e sangue... A cada palavra
daquele menino, sangue cai de sua boca... Ela fecha os olhos...
***
Renque, renque...
O barulho perturbador e costumeiro do punho na rede
deslizando na escápula velha, cravada na viga da humilde casa
encravada na Mata. É a primeira coisa que Suindara ouve ao
acordar daquele terrível sonho.
Ela abre os olhos, a primeira imagem que reconhece é a
gura do pai fazendo café. A fumaça do fogão a lenha e o cheiro
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do café silvestre, isso tudo ao som daquele assovio de todas as
manhãs. Uma canção com notas tristes, e intervalos menores de
uma escala que soa dor e perda.
Mas essa era a canção de todas as manhãs. Já não seincomodava mais com isso.
– A sua benção, pai?! – ela diz.
– Deus te abençoe, minha lha! – responde o homem.
Mesmo sem notar o susto que o pai levou, com o
repentino pedido de bênçãos, continua a observar Anselmo...
Que amassa folhas e raízes para fazer o remédio que toma
para as dores estomacais matutinas. O velho cheiro cítrico das
cascas de laranja secas, que o pai toma para soltar os intestinos,
juntamente com aroma do café, a trazem de volta ao mundo,
como se tivesse ido para um lugar que não queria lembrar.
Após escovar os dentes, a menina senta-se à mesa, toma
o café com o pão do dia anterior que estava em um protetor
abobadado, feito de tecido mosqueteiro, que já estava tão
encardido que nem sabia direito a cor verdadeira. Ela termina o
café, sai para começar a limpeza pelo terreiro da casa.
Anselmo bebe o chá feito com as folhas secas, agora
arruma e tira o mofo das ervas, que estão penduradas perto
da janela onde ca o jirau de louças. Tão logo a menina varre
o espaço ao redor da casa, ao longe aparece alguém, que traz
outro apoiado pelo ombro.
Suindara se afasta, pálida e fria. Anselmo, da janela em
que estava, avista as duas guras que se aproximam. Ao sair
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da casa, pela porta em que sua lha havia saído, os dois recém-
chegados vão cambaleantes ao pé da porta.
– Seu Anselmo, ajude meu irmão, ele está doente. Está
com dor faz dois dias, não come e só bebe água! Exclama um dosvisitantes.
– Calma, menino Antônio. Me ajude a levantar e colocar
ele na mesa da cozinha.
Os olhos de Anselmo encontram com os de Suindara,
que está perto da goiabeira com a vassoura de palha na mão. Ela
aperta o cabo da vassoura com força. Ele sabe que, por mais que
se esforce, aquele rapaz iria morrer e só poderia lhe dar algo para
aliviar a dor...
Ele entra.
Ela sai, em direção ao igarapé.
A manhã segue, como de costume. Algumas pessoas
aparecem para pedir ajuda a Anselmo. Com exceção do primeiro
visitante, Suindara não tem aquela estranha sensação e continua
a arrumar a casa.
Enche o pote; lava a louça; espera o pai retornar da feira;
prepara parte do almoço e asseia-se para ir à escola.
– Sua benção, pai?!
– Deus lhe abençoe, minha lha!
Ela segue o caminho em uma velha bicicleta, que fora de
sua mãe. Pedala pela Mata por alguns quilômetros, até encontrar
Pedro, seu único amigo dentro da escola.
Ele não se assusta com a presença de Suindara, como
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fazem as outras crianças. As piadas que fazem sobre seu pai
ser um feiticeiro ou com sua estranha aparência não parecem
incomodar Pedro, cujo qual possuía a mesma idade da garota.
Alguns, que tiveram ajuda do seu pai, nada falam, porémnão a defendem.
Ela é aplicada. Possui boas notas, mas sente que escola
é um desperdício de tempo. Suas lições não fazem sentido, não
ca à vontade naquele lugar.
***
Ela vê alguém se afogar. Um braço que segura alguém debaixo
d´água. Não consegue ver quem segura, mas é ela quem está sob
a água. Sente o líquido invadindo a boca. Descendo pela garganta.
Enchendo o peito. Aos poucos a água desce e se encontra com aquela
que volta dos pulmões. Sente a raiva de quem enforca. Contorce o
corpo. Sente o peso do outro corpo, que a prende submersa. Não.
Não. Nããão...
Suindara acorda com o balanço infalso da velha cadeira.
A professora se aproxima assustada. Todos na sala estão
assustados. Alguns riem. Ela olha ao redor. Suas mãos estão
suadas. A professora toca em suas costas, pergunta se passa
bem.
– Desculpa, professora, tive um sonho, mas já passou!
Mas nunca passa.
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Seus sonhos são sempre sobre algo, alguém, e nunca
são coisas boas. Ela nunca sabe com quem ou onde. Dessa vez
foi uma das piores. Sonhar que está sendo morta afogada não é
uma das melhores experiências oníricas. E Suindara se perde empensamentos durante o restante das aulas.
A tarde se esvai.
Ela retorna junto com Pedro pelo mesmo caminho,
porém, ele não se arrisca a perguntar o que tinha acontecido. Ela
percebe certa desconança na expressão do garoto.
Despedem-se e ela continua seu caminho solitário.
Ao chegar ao desvio para o terreno de sua família, ela
decide ir caminhando a pé empurrando a bicicleta. Retira as
sandálias para sentir o chão que tanto gosta. A brisa que balança
as folhas e o cheiro de mata combina com o brilho do sol das seis,
que se põe por entre os galhos das árvores. Dois lhotes de cutias
passam brincando com algum fruto que encontraram e disputam
animados o achado. Ela sorri com aquilo. Pensa que poderia ter
ido com sua mãe, mas ela sempre pensou que deveria ser terrível
car entre tanta gente na cidade. Os jornais que a escola recebia
eram marcados por mortes, assassinatos e, estranhamente,
mulheres seminuas. Aquilo a deixava confusa... Logo esqueceu
de tudo, quando sentiu o cheiro das jacas, entrelaçados com o
das mangas e da terra úmida que a chuva deixou por ali. Então
pensou: nada é melhor do que estar em casa.
***
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Arf! Arf! Arf!
Anselmo corre desesperado pela Mata.
Ele está cansado, mas tenta acelerar o passo. Se joga na
água e caminha por entre as pequenas vitórias-régias presas àencosta.
Suindara está lá! Como se só estivesse aproveitando a
água fria ou utuando em líquido amniótico no ventre de sua
mãe. Lábios roxos. Olhos virados. Expressão serena.
Morta.
Anselmo carrega o corpo de sua lha pelo caminho
iluminado pelos raios do anoitecer, que atravessam os galhos das
árvores da velha Mata. A água pinga no chão e marca o caminho
fúnebre por onde ele segue. O sal da lágrima solitária que escorre
pelo seu rosto cai sobre o rosto de Suindara...
Anselmo senta porta da casa amola seu punhal. A carne
crescida em seu olho esquerdo latejava como nunca.
Ele parte em direção à cozinha, vai até um velho baú,
perto da janela e apanha uma mortalha, que havia sido costurada
por um antepassado. Não lembra mais o motivo e nem porque
nunca foi usada. Ele caminha até onde descansa o corpo de
Suindara. Envolve a lha com cuidado com a mortalha, então,
entoa a canção que a lha sempre o ouvia cantarolar todas as
manhãs.
Menina da pele branca
Onde mandei buscar a sua cor
Só me cou o seu amor. O seu amor.
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Menina encanta sua pele branca
Onde mandei fazer sua dor
Só me deixou com essa dor. Com essa dor.
Ele termina. Cobre o corpo de Suindara com folhas secas,embaixo da mangueira plantada quando soube da gravidez de
sua mulher. A árvore tinha a idade da menina. E lá ela estava,
coberta com as folhas mortas da árvore idílica.
Anselmo tira o aço moldado. Beija a lâmina e arranca
os olhos da menina. Tenta aparar o sangue que escorre pela
mortalha. E canta.
Minha menina, levo seus olhos.
Pra trazer o brilho te dou o meu amor.
O meu amor, leva essa dor...
Ele rasga um pedaço da mortalha que cobre o corpo de
Suindara e enrola os olhos e acomoda, com cuidado, na bolsa
feita de folha de palmeira, que trazia pendurada. Em seguida,
recolhe o punhal na bainha de couro cru, e esconde-o na parte de
trás do cós de sua velha calça.
E inicia a caminhada, tendo como companhia somente
pensamentos confusos.
Eu nunca pensei ter que entrar aqui. Nem sei aonde esse
caminho vai levar. Mas, eu não posso deixar ela ir assim. Só sobrou
ela, não tenho nada mais para deixar nessa vida. Meus pecados,
meus lhos, não posso deixar tudo acabar assim. Aquela velha,
vai ter, enm, o que sempre quis. Depois de tanto tempo, agora
entrarei aqui e não poderei voltar atrás...
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Anselmo parte em direção à Mata. Os primeiros passos
eram como se conhecesse, até ali, muito bem o caminho. A cada
metro parecia conhecê-lo menos. Os raios de sol passavam cada
vez com mais diculdade por entre a copa das árvores. Jacaranda copaia, de tamanho quase sem m, indo
para além das outras também frondosas árvores. Anacardium
giganteum¹, ali ao pé da gigantesca árvore colheu alguns frutos
recém-caídos. Seguiu sua viagem por entre árvores, a cada passo
o sol diminuía seu brilho. O vento frio, como um canto horrendo
de pássaros desconhecidos, começara a ser ouvido; então soube
que estava perto do m de sua exaustiva caminhada. Encostou-se
sobre uma árvore morta e comeu alguns cajus enquanto tentava
respirar o ar pesado da Mata,
Levantou meio tonto, por conta do efeito fermentado
do caju, ao longe avistou a gruta. Prendeu respiração que ainda
possuía. Os últimos passos, antes de entrar na horrenda boca,
que lhe chamava, foram os piores.
O efeito do caju deixava o corpo mais pesado, a cada
passo. Era assustador o barulho da revoada de pássaros, que
estavam invisíveis para Anselmo. Apoiou-se na entrada arfando
e entrou.
Seus pés tocam o que parecia ser um pequeno corredor,
que parte de algum lugar. Ele acende a lamparina, que imaginou
não precisar, pois, quando partira não imaginou ir tão longe.
Acende-a com diculdade, a luz que emana é uma chama
¹Conhecida como Cajuaçu. (Nota do Autor)
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plasmática que dança sobre o pavio embebido em querosene.
Anselmo se assusta com aquela luz, entende que, agora, não está
mais em um mundo que segue as nossas regras. Segue o curso
da água que sai debaixo da pedra da batente da entrada. Seuspassos ecoam pelo caminho por uns metros, até que não sente
mais a corrente de ar da entrada. A luz de lamparina se torna
amarela. E água toma a cor de sangue pútrido. O cheiro deixa
Anselmo atordoado, ele corre e aos tropeços e cai, tomando
aquele líquido viscoso e pestilento. Ele vomita na escuridão. A
lamparina boia na água, estranhamente, ainda acesa. Levanta e
com diculdade e empurra-se para fora da pequena e sangrada
vala. Cai com uma tosse de engasgo. Do eco de sua tosse, ouve
um choro de criança como resposta. Anselmo se assustou e
empunha a lamparina para tentar ver ao redor. Toca o bolso para
ter certeza que os olhos da menina ainda jazem lá.
Ao redor vê um buraco na parede. Engole em seco e um
arrepio lhe sobe à costa. E decide subir uma coluna pedregosa.
Ali estaria o caminho para a toca da velha? Pensou com receio.
Entrou no buraco e seguiu por um túnel, e a cada passo,
cortes sangravam em seus pés, braços, mãos, costas. De súbito
cai rolando por uma ladeira. Esbarra em algo que não olha de
início.
A dor é insuportável. Ao se levantar vê com horrendo
esplendor as colunas de uma civilização que viveu ali, colunas
que, na verdade, eram vasos mortuários com desenhos de
estranha aparência. Anselmo assusta-se com aquilo e imagina de
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que tamanho eram aqueles que foram ali enterrados.
Gigantes, era o que sua mãe dizia sobre os antigos
moradores da sombria Mata. Caminhou por um tempo incontável.
Sabia que dali não sairia mais com vida. Os ferimentos de seuspés faziam com que cambaleasse pelo corredor do mortuário e
apesar de receoso escorava-se nas gigantes tumbas.
Ao nal do corredor, avista um pórtico coberto com
galhos e musgo. Por um instante, pensa em sua lha e em seu
lho jamais nascido, e então adentra a escuridão depois da
passagem. Quase uma queda no abismo escondido. Equilibra-
se com diculdade, mesmo com a dor dos cortes. Encontra um
galho espinhoso e apoia o corpo machucado e cansado. Arrasta-
se até a batente dando a volta em direção à outra entrada. A
cada passo, o grito horrendo do fundo do abismo quase arranca
o resto de sua sanidade.
Ouve seu pai, sua mulher, seu lho, sua lha, a si mesmo.
Cai, para a escuridão à sua frente, desmaiado.
Ao acordar, ouve o estalar de lenha e sente o cheiro acre
de sangue fervente. Leva as mãos ao bolso, não encontrando
nada. Tenta olhar ao redor. Vê a carcaça de alguns animais
recém-abatidos, o sangue ainda a pingar em cuias marrons. Aves
rasgadas ao meio. Cabeças de bois empaladas, com vermes que
lutam pelo restante de carne.
Ao terminar a visão horripilante, sente o toque gélido de
alguém que lhe levanta pelos cabelos, e lhe solta uma baforada
de algo que parece ser tabaco.
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A visão embaça e só enxerga a ponta do vestido velho e
fétido, que sai na direção oposta.
– Então você, enm, veio! – Uma risada, arranhada, enche
seus ouvidos de desespero.
– Mãe! Ela se foi...
– Sim eu sei, fui eu que a levei e posso trazê-la de volta.
Porém, seu verme, depende só de você.
Anselmo levanta-se, vê os olhos de Suindara nas mãos
cadavéricas de Matinta.
– Você tem o mesmo dom do fraco do teu pai. Por culpa
dele minha maldição se cumpriu e quei presa aqui até que
alguém viesse e trouxesse os olhos de sua cria. Claro que tive
que fazer as coisas acontecerem.
Uma risada, seguida de uma cusparada de algo que
acendeu ainda mais a chama em que fervia o caldeirão no meio
da sala.
– Sim, eu aceito. Traga ela de volta. E eu co com você
até que sua penitência acabe. - O tom da gargalhada amaldiçoada
que deu tirou as últimas forças de Anselmo, que cai desfalecido
aos pés da Matinta.
A velha levanta e empurra o corpo do lho para o canto.
Arremessa os olhos da neta no caldeirão, depois apanhou um
pouco do sangue de Anselmo em um punhal e lança sobre a lenha
em brasa. Uma explosão de cinzas e faísca toma a sala. Depois,
apenas a escuridão da oresta.
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Algo se move debaixo da terra, no lugar onde Anselmo
escondeu o corpo de sua amada lha. Empurra o véu da mortalha.
Um grito horrendo é ouvido a quilômetros dali e até mesmo os
ditos corajosos se arrepiam de horror.Esse grito que marcou aquela fatídica noite, pode ser
ouvido ainda hoje por todos aqueles que temem e entendem
nossa única certeza enquanto seres mortais.
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A VINGANÇA DA SEREIA
Amauri Chicarelli
Quando acordou, sentiu-se acariciada pelas águas que
massageavam seu corpo. Olhou para os lados e se assustou com
a enorme quantidade de peixes de todos os tamanhos e formas
que a rodeavam, mas não sentiu medo. De alguma maneira
inexplicável ela sabia que os animais aquáticos estavam ali para
protegê-la. Sua cabeça ainda dava voltas, e as tentativas de se
lembrar do que aconteceu horas antes eram inúteis. Apenas
fragmentos minúsculos de vozes e do farfalhar das folhas
passando rapidamente sob as nuvens brancas persistiam em
sua mente. Mas pouco a pouco percebeu que podia entender a
linguagem muda dos seres do rio que não falavam, mas podiam
transmitir seus pensamentos. Então os peixes lhe contaram
como ela foi salva do afogamento.
Yara era a lha do cacique e a moça mais bonita de
toda a tribo. Mas longe de trazer alegria, a beleza lhe trouxe
contrariedades. Era hostilizada pelas outras moças da tribo,
ao mesmo tempo em que era disputada pelos índios em lutas
mortais. Desde cedo teve consciência de sua beleza e por isso
fugia do convívio tribal, preferindo car à beira do rio sobre uma
rocha enquanto apreciava seu reexo nas águas e cantava para
os peixes. Também jogava sementes e pequenas bolinhas feitas
com farinha de mandioca que distribuía prodigamente aos seres
do rio que considerava amigos.
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O pajé Juína, homem invejoso e cheio de rancor, insistira
com o cacique desde o nascimento de Yara para que formasse uma
aliança consigo, uma vez que o chefe da tribo já estava em idade
avançada e só tinha aquela lha, pois os lhos foram mortos nasguerras. Com sua morte, o marido da recém-nascida se tornaria
o senhor da aldeia. Queria que a menina fosse prometida a um
de seus nove lhos, Cauré, que na época tinha três anos. Mas o
cacique Acauã não via o feiticeiro com bons olhos e, contrariando
os costumes imemoriais de seu povo, disse a Juína que sua lha
escolheria o próprio marido. Desde esse dia o ódio passou a
envenenar o sangue do pajé. Sentiu-se humilhado por Acauã e
jurou vingança. Se a menina não pertencesse a seu lho, não
seria dada a mais ninguém.
Quanto mais orescia a beleza de Yara, mais a ira de
Juína envenenava o seu ser. Sorrateiramente, passou a incutir
o ódio e a inveja entre as jovens da aldeia, que passaram a
persegui-la. Quando Yara completou quinze anos sua beleza
resplandecia na oresta. Mesmo as feras da mata não a atacavam
e os pássaros ariscos não fugiam à aproximação. Pousavam nos
seus ombros aninhando-se em seus cabelos e faziam serenatas
como prova de amor. Enquanto isso os jovens índios faziam de
tudo para conquistar a lha do cacique. Debatiam-se nos jogos
com demonstrações de força, exibiam os animais caçados ou
pescados, como troféus diante da princesa indígena. Mas Yara
não gostava dessas manifestações de orgulho e arrogância. Ela
alimentava-se de raízes e frutas, não comia carne ou peixes e
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considerava a caça e a pesca uma maldade contra a vida.
Naquele tempo, depois de uma tempestade de granizo
que castigou a região durante dias e destruiu as plantações de
mandioca – alimento básico dos índios – o sol voltou a brilharcom uma intensidade nunca vista antes. Os animais morriam
de calor e os peixes fugiam para as águas profundas onde a
temperatura era menor. Assim em poucas semanas a fome
ameaçava não só aquela tribo, mas também as aldeias vizinhas,
amigas e inimigas. Foi então que Juína começou seus rituais de
magia dirigindo-se aos espíritos do sol, da lua e das estrelas,
mas tudo em vão. O sol não diminuía seu calor e nas poucas
vezes que chovia, as gotas queimavam a pele dos homens, de
tão quente que eram. Todos temiam o m do mundo, mas aí um
velho centenário que vivia afastado da aldeia lembrou-se de uma
antiga tradição já esquecida por todos, pela qual era dada ao pajé
a responsabilidade de acalmar os deuses e caso não conseguisse,
deveria ser sacricado.
Os indígenas cada vez mais desesperados exigiam de
Juína a solução do problema ou o auto-sacrifício. Ao car sabendo
que queriam ressuscitar um costume abandonado há dezenas de
anos, o pajé soube também que precisava agir depressa antes
que dessem cabo de sua vida. E então o inesperado aconteceu.
No meio de uma tarde escaldante, o sol eclipsou-se e a escuridão
parecia cobrir toda a terra. Homens e mulheres prostravam-
se diante dos totens como sinal de humildade, desespero e
reverência. Depois de algum tempo o feiticeiro ergueu a lança e
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gritou aos céus que lhes devolvessem o astro. Como por magia a
lua começou a se afastar lentamente da frente do disco solar e a
luz retornou em pouco tempo. Os índios ajoelharam-se perante
Juína, que naquele momento encontrou a forma de sua vingançacontra Yara e seu pai.
Mostrou aos índios que a caça morria por estar
desgostosa pelo asco que a lha do cacique demonstrava por
ela. Que os peixes fugiam por não se sentirem bem perto de
uma terra onde a lha do chefe desprezava sua carne, enquanto
a chuva quente era para limpar o mundo da ingratidão daquela
alma. Sim. Até o sol estava zangado e lhe dissera que voltaria a se
esconder em breve e para sempre, caso aquela moça não fosse
sacricada. Deveria ter seu corpo entregue ao rio em uma canoa
em chamas para que a fumaça subisse aos céus e acalmasse a ira
dos espíritos dos astros.
O poder do Cacique era apenas sobre as leis e
os costumes da tribo. O pajé tinha tanta autoridade quanto ele
quando se tratava dos espíritos, e o desespero dos indígenas
era facilmente manipulado. Acauã bem que tentou impedir o
sacrifício da única lha que lhe restou, mas a turba atiçada pelo
pajé não lhe dava ouvidos. Yara foi amarrada e conduzida sobre
um tablado de galhos até a margem do rio que levaria seu corpo.
A caminhada não foi muito longa, e deitada de costas ela entrevia
as nuvens brancas que pairavam silenciosas além da copa das
árvores. Colocaram-na no centro de uma grande canoa que foi
incendiada e em seguida solta no rio. Ela não emitiu um grito,
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um soluço sequer. Mesmo com sua simplicidade pôde entender
o que estava acontecendo. Há muito tempo havia percebido as
maquinações do pajé contra si, mas agora era o m. Nada mais
podia ser feito.A canoa seguia o curso das águas soltando rolos de
fumaça em direção ao céu. Foi quando um terrível vendaval,
seguido de uma tempestade, apagou o fogo e fez a embarcação
virar, levando o corpo da princesa indígena para o fundo do rio,
onde foi reconhecida pelos peixes.
A notícia se espalhou telepaticamente pelas profundezas
e o corpo foi cercado por cardumes de todas as espécies, que
lamentavam a sorte daquela que cantava para eles e os alimentava
com carinho. Então o rei do rio, um enorme tucunaré foi chamado,
pois era o único que poderia salvá-la. O grande peixe ordenou
que um cardume de piranhas roesse os cipós que prendiam o
corpo da menina e em menos de um minuto Yara estava livre.
Mas a vida se fora. Suas pernas foram queimadas e não poderiam
ser refeitas. Então o tucunaré rei, que possuía poderes mágicos,
reconstituiu a parte destruída pelo fogo, dando-lhe a forma de
peixe, pois não poderia fazer diferente sob as águas. Então ele
assoprou em sua boca o fôlego da vida e Yara acordou.
Quando nalmente a princesa recobrou todas as
lembranças, contrariamente à sua natureza bondosa, foi invadida
pela ira. Agradeceu aos peixes e ao rio que se tornou seu novo
lar, e jurou vingança contra os homens.
A partir de então Yara passou a atrair os pescadores
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com seu lindo canto. Extasiados, eles se deixavam conduzir até
o fundo do rio, de onde jamais retornavam. Às vezes, a princesa
deixava um ou outro escapar e retornar a terra, como uma
mensagem viva. Esses poucos que se salvavam cavam loucose eram levados ao pajé, que realizava toda sorte de feitiços para
trazê-los à razão.
Mas ela não fez isso com todos os homens. Quando foi
ressuscitada pelo tucunaré-rei, Yara recebeu o dom da telepatia
e assim podia explorar a mente e julgar o coração dos homens.
Também ouvia as conversas dos pescadores e dessa maneira
cou sabendo da morte iminente do pai. Queria vê-lo antes que
ele partisse e ao aproximar-se da margem do rio percebeu que
quanto mais avançava em direção a terra seu corpo ia assumindo
a forma anterior. Já totalmente humana foi ao encontro do
pai que se afastara da aldeia para morrer sozinho conforme os
costumes de então. Despediu-se de Acauã e retornou ao rio.
O primeiro a encontrar a morte foi o arrogante Cauré e
depois, um por um os lhos do pajé foram atraídos pelo canto
da sereia e devorados pelas piranhas e outros peixes carnívoros.
Em algumas noites de luar, Yara ainda sai do rio e se senta na
antiga pedra de onde, no passado, cantava aos peixes. Nesses
momentos os animais se aproximam e passam horas ouvindo os
cantos da sereia. Mas os homens a temem. Nenhum pescador,
mesmo os que têm o coração puro, se arrisca a soltar sua canoa
no rio sem antes entupir os ouvidos com cera de abelha para não
ouvir o canto da mãe d’água.
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O GRITO VEIO DA FLORESTA
Bruno Eleres
– Como descrito anteriormente, a cavidade abdominalnão apresenta segregação total da cabeça, pois não apresenta
cintura peitoral bem denida. Segundo protocolo para peixes e
anfíbios, uma incisão na superfície ventral do corpo está sendo
realizada, de 10 centímetros abaixo do olho hipertroado na
porção central da cabeça, até o início aparente da cintura pélvica.
Apesar do cheiro pestilento que infestava a sala, Diana
não parecia incomodada. Anos de prática na taxidermia tornaram
seu estômago forte ao apodrecimento de animais. O celular no
bolso do jaleco gravava as informações, que ditava com clareza,
para que pudesse transcrever no m do dia. Sua mão segurava
rme o bisturi, que se movia com facilidade sobre o ventre
da criatura gigantesca depositada sobre o balcão central do
laboratório.
– A incisão, aparentemente, não era necessária. O
possível exemplar de Megatheriidae apresenta uma deformidade
que não é similar a nenhuma que conheço, na qual uma fenda se
estende da cabeça até o nal da porção mediana do abdômen.
Com auxílio de pinças, afastei uma estrutura similar a lábios da
fenda. É possível visualizar estruturas similares a dentes por
toda a extensão da “boca”, como passarei a chamar daqui em
diante. Os dentes são largos e apresentam em torno de cinco
centímetros de comprimento.
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Com as luvas e as pinças, Diana descobria cada pedaço
do ser que havia sido abatido no Parque Nacional de Kamuatá,
na fronteira entre Acre e Amazonas, a alguns quilômetros de
onde estava, a Estação Cientíca Miltes Cavalcante. Em geral, aEstação Cientíca cava vazia, recebendo ocasionais visitas de
pesquisadores do INPA e do Museu Paraense Emílio Goeldi que
faziam amostragens no entorno.
Para a felicidade da Dra. Diana Souza, ela era a única
pesquisadora no dia. Era meados de novembro, quando a
maior parte de seus colegas estavam orientando alunos de pós-
graduação e ministrando, exaustivamente, aulas. Iria aproveitar
bem a solidão. Queria pesquisar o máximo que pudesse do animal
antes que os outros pesquisadores começassem a aparecer e
ocupar os outros balcões e salas.
Não era nem que gostasse da solidão, mas sim que
uma descoberta daquelas proporções não era para ser dividida.
Poderia ganhar um nome em cima daquele animal.
Por volta do meio-dia, a fome começou a lhe incomodar.
Ela terminou de fazer anotações sobre o trato digestivo e sobre
o posicionamento dos outros órgãos da cavidade abdominal da
criatura, e se afastou da bancada. Livrou-se das luvas e pausou a
gravação. Cinco horas seguidas de áudio. Depois do almoço, tinha
que passar o arquivo para o computador, senão não teria espaço
na memória do celular para continuar o trabalho. Aproveitaria
para pegar a máquina fotográca e fazer imagens dos órgãos
internos.
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Passou rapidamente pelo banheiro e lavou as mãos antes
do almoço. Sua cabeça estava enuviada com tantas informações
conitantes. Vinda de Santa Catarina há três anos, Diana ainda
não sabia muito da cultura local, e nem era muito chegada àslendas e mitos brasileiros. Crescera assistindo aos lmes de
ação norte-americanos e lendo autores de qualquer outro lugar,
menos os daqui. Assim, pouco sabia das histórias que passavam
de avô para neto. Sabia mesmo era de lobisomens, vampiros e
monstros do lago. Nem associou o que estava em sua mesa com
qualquer causo ribeirinho, e sim às antigas preguiças-gigantes.
À sua mente, informações logenéticas e suposições
sobre a ecologia do clado surgiam em turbilhão. Aos poucos,
interligava as peças. Era, de fato, uma descoberta imensa. Talvez
a grande descoberta da sua vida cientíca.
Imaginando-se recebendo prêmios e dando conferências,
chegou à cozinha sem nem pensar no caminho, já acostumada
com o trajeto que zera com tanta frequência nos últimos anos.
João Pedro, o cozinheiro, havia servido o almoço no horário certo,
como de costume, e os outros funcionários – dois seguranças e
dois funcionários da limpeza – já estavam com os pratos quase
vazios.
– Desculpem o atraso, gente. Estava um pouco ocupada
lá em cima.
– É, abrindo bicho, né? – perguntou Silmara, que
trabalhava na segurança do Centro. – A gente tá sentindo o
cheiro o dia todo. O bicho que tu tá mexendo fede, viu?
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– Fede? Nem percebi! – riu-se Diana.
Diana sentou-se à mesa, e logo os funcionários do centro
se despediram e se levantaram. Descera tarde. Normalmente,
as pessoas dali almoçavam cedo e dormiam um pouco naquelehorário – embora os seguranças se revezassem na sesta. João
chegou em seguida e se sentou à frente de Diana. Ela não se sentia
tão confortável com ele – quieto demais, achava. Cumprimentou-o
e eles comeram em silêncio, acompanhados apenas pelo som da
televisão, que soltava continuamente a opinião sobre os crimes
na capital do estado através da verborragia enérgica, e supercial,
de um homem corpulento.
Eles comiam lentamente, cada um imerso em seu próprio
multiverso. Diana, embora olhasse para a televisão, estava
realmente focada nas ideias que pipocavam. Tinha que voltar
ao Parque Nacional. Talvez existissem outros daqueles bichos
lá, uma população inteira. Talvez pudesse até observá-los. E se
imaginou a própria Dian Fossey, lutando pela defesa do habitat
do animal que todos supuseram estar extinto, e protagonizando
um documentário sobre o comportamento da espécie no Animal
Planet.
De tão absorta nos próprios pensamentos, demorou
alguns segundos até reparar que Pedro estava de pé. Observou-o
por alguns segundos.
– O que houve?
Ele levou o indicador à boca, pedindo silêncio. Ela se
levantou devagar e tentou escutar o mesmo que ele. Sempre
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achou estranho como é mais difícil reparar num som que você
está buscando do que encontrá-lo sem querer – como diabos ela
deveria saber o que procurar?
Depois de um tempo quieta, ouviu. Era um grito humano.Mas parecia cheio de raiva e, teve a impressão de que, a cada
segundo, o som se tornava mais alto. Talvez fosse alguém se
encaminhando para o Centro, já que não existia muita coisa ao
redor. Olhou para Pedro e o nervosismo começou a tomar seu
corpo.
– O que é isso?
Ele não respondeu e, juntos, ouviram os gritos se
aproximarem cada vez mais de onde estavam. Mais e mais, até
que ouviram Silmara e Tico falando alto na entrada da Estação.
Suas vozes se misturavam ao grito estridente e, de repente,
ouviram o grito de Tico e sua voz desaparecer. Silmara chamou o
nome do amigo algumas vezes, mas logo sua voz foi substituída
por tiros.
Diana não sabia o que fazer. Por um segundo, pensou
que tudo caria bem depois dos tiros, mas logo os tiros cessaram,
mas o grito enfurecido continuou. Agora o som ecoava pelas
paredes do Centro, e ela tinha a indescritível sensação de que
seja lá o que fosse, estava ali dentro com eles.
– Vô’ pegar a arma do Tico. Te esconde em algum lugar.
Pedro saiu correndo pela porta de trás e ela imaginou que
ele iria dar a volta no Centro, para encontrar as armas largadas
na entrada. Ainda paralisada, ouviu novos gritos se mesclando
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com o berro da criatura e, nalmente, veio à sua cabeça. Era A
criatura. Anal, não precisou ir ao Parque para encontrar um
novo exemplar.
Num átimo de segundo, seus movimentos voltaram.Tinha que capturá-la. Estava sem nenhum mateiro, que é quem
normalmente faz as capturas para os pesquisadores, mas ela sabia
manejar uma arma, e tinha algumas no laboratório. Encontrar um
esconderijo uma ova. Ia sedar a criatura e depois pensaria no que
fazer. Não queria mais um espécime tão raro morto.
Correu para o laboratório, que estava, para a sua sorte,
na direção oposta do animal. Abriu a porta da sala e sentiu o
cheiro pútrido enchendo suas narinas. Sentiu ânsia de vomitar,
mas logo se controlou. Pegou uma máscara em cima do balcão e
se equipou enquanto chegava até os armários laterais.
– Onde estava? Onde estava? – perguntava-se alto,
o nervosismo crescente à medida que os urros de fora da sala
cavam mais intensos.
Abriu o primeiro armário e encontrou uma pilha de caixas
de luvas. Merda, merda. As vozes dos companheiros haviam
sumido. O segundo armário tinha vários potes com amostras
de fezes de mamíferos. Merda, literalmente merda. O urro
animalesco vinha do corredor que estava. Encontrou a chave do
terceiro armário com diculdade e a encaixou na fechadura, mas
ele não abria de jeito nenhum. Diana puxava com toda a força
que tinha, mas nada acontecia.
Um baque forte se fez ouvir na porta. Ela puxou ainda
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mais, frustrada e completamente aterrorizada. O segundo baque
fez a porta ser arrancada da parede e cair. A criatura entrou.
Diana a encarou com um misto improvável de sentimentos.
Havia medo, com toda a certeza, mas também havia admiração.A criatura era magníca. Tinha quase dois metros de altura e o
pelo lhe cobria toda a superfície do corpo. Um único olho saltava
através da pelugem e uma boca imensa se abria do olho até o
nal do que poderia ser a barriga.
Mas sua admiração foi pulverizada. Ao ver a criatura-
gêmea sobre a mesa, o animal emitiu um som agudo, como se
lamentasse a morte do outro. Diana sentiu os ouvidos doerem
por causa do som, mas não os protegeu, e sim tentou girar a
chave novamente, o desespero assumindo controle do seu corpo.
A criatura a olhou e andou em sua direção, jogando para longe
todos os equipamentos no caminho. Fez-se um click e a porta se
abriu, revelando que, por trás de tanta diculdade, havia apenas
algumas lupas e balanças. Diana gritou de raiva e se afastou o
quanto pôde, de costas.
O animal estava a menos de cinco metros e ela sentia
o cheiro inefável atravessando a máscara, deixando-a zonza.
Quando sentiu que a criatura poderia esticar os braços e agarrá-
la, ouviu mais tiros. João estava parado à porta e atirava com um
revólver. O bicho se virou e avançou em João, que continuou
atirando.
Diana não parou para respirar de alívio. Lançou-se
para o armário do lado. Tinha que encontrar a arma. Procurou,
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desesperadamente, a chave no molho que tinha em mãos. Por
um segundo, olhou para o lado e viu a criatura cara-a-cara com
João. Abriu a porta com facilidade e, como divina providência, lá
estava a carabina.Puxou a caixa e montou a arma com pressa. Quando
engatilhou a carabina de pressão, João foi jogado para a parede.
Olhou rapidamente na direção e viu o sangue escorrendo pelo
braço do cozinheiro. De volta para a carabina, colocou os dardos
anestésicos e se levantou. Apoiou a coronha no peito e mirou.
Respirou fundo. Fazia muito tempo que não atirava. Apertou o
gatilho com lentidão, até que o tiro a surpreendeu, acertando o
animal em cheio com o dardo.
No entanto, a criatura não parou. Virou-se para Diana
e foi em sua direção. Ela atirou uma segunda vez, e então uma
terceira, até que nalmente ele pareceu car mais lento. Balançou
sua cabeçorra pouco discernível, como se quisesse afastar o sono
que lhe acometia. Diana abaixou um pouco a arma, acreditando
que logo ele cairia. Mas, nem bem ela fez o movimento, a vida
voltou aos olhos do animal e em um único salto ele alcançou
a mesa central. Sem esforço, levantou o cadáver que Diana
estudava e correu da sala.
Diana cou estática. Pensou em correr atrás do
megaterídeo e atirar mais dardos nele, mas seus olhos
encontraram o pobre João que voltara para lhe procurar. Colocou
a arma sobre a bancada e foi até ele. Observava os ferimentos
no corpo do homem enquanto ligava para o 192 da cidade mais
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próxima. Ele murmurava alguma coisa incompreensível, e ela se
aproximou para ouvir melhor:
– Ma... Mapin... guari...
O grito assustadoramente humano do Mapinguari faziafundo à voz de João, e aquietava todas as outras criaturas da
Amazônia.
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O BRAVO PIRARUCU
Raphael Miguel
Verdadeiramente, um feito para se comemorar
exaustivamente. Dias e dias de festa não seriam sucientes para
enaltecer aquela que se tornou a maior de todas as vitórias do
povo guerreiro que defendia as margens do Rio Iça.
Por anos, os Uaiás travaram uma guerra contra
os invasores, aqueles diabos brancos que viviam tentando
escravizar seus homens e utilizar suas mulheres como objeto de
mero prazer carnal. Por muito tempo, os Uaiás permaneceram
rmes, guardando a última resistência indígena ao ataque feroz
dos estrangeiros.
Conhecedores da região, andavam por entre a mata com
maestria, utilizavam o rio a seu favor e lutavam com a audácia
de bravos guerreiros abençoados por Tupã. Os diabos brancos
e suas armas de fogo não eram páreos para aquele povo da
oresta.
Agora, com a derrota dos estrangeiros, era o momento
de comemorar o feito. O Rio Iça estava livre da dominação branca.
Tambores soavam e todos dançavam ao redor das fogueiras.
Comiam, bebiam, se divertiam. Era momento de confraternização
e agradecimento aos deuses.
No entanto, havia alguém que não se sentia satisfeito
para comemorar com os demais.
Em pé, com os braços cruzados, carrancudo e sisudo,
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Pirarucu observava, de longe, a festança de seu povo. O maior
guerreiro da tribo estava descontente.
Como o mais bravo dos Uaiás, Pirarucu liderou os outros
durante o ataque certeiro aos brancos. Com sua habilidade deguerra, esmagou com brutalidade a horda dos demônios que
insistiam em adentrar a mata e ameaçar o rio que tanto amavam.
Os invasores tiveram o que mereciam durante o conito, mas o
castigo terminou com a rendição dos mesmos.
Sabendo que iriam perder aquela disputa e que não iriam
sobreviver à fúria de Pirarucu e seus comandados, os últimos
brancos vivos ergueram as mãos aos céus em sinal de rendição.
No entanto, aquele gesto de rendição somente fez com
que o destemido guerreiro de cabelos lisos, negros e compridos
casse ainda mais furioso. Não eram poucas as histórias
macabras que se contavam a respeito daqueles forasteiros. Pelo
que diziam, os brancos eram terríveis e Pirarucu estava disposto
a vingar com sangue cada uma das desgraças provocadas pelos
demônios ao povo da oresta.
Nas mãos do jovem, os estrangeiros teriam um m certo
e brutal.
Não foi o que aconteceu. Observando o nítido sinal de
rendição dos brancos, Pindarô, chefe da tribo e pai de Pirarucu
ordenou o m do massacre. Os sobreviventes daquela chacina
iriam se tornar prisioneiros dos Uaiás e não sofreriam quaisquer
represálias durante o cárcere, tudo para honrar aos deuses.
Para Pirarucu, o pai sempre se mostrou muito mole de
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coração, sem a rispidez necessária aos líderes. Aquele ato de
benevolência do chefe em nada representava a fúria sentida
pelos indígenas após tanto tempo de terror.
Por este motivo, Pirarucu observava à distância a farrados companheiros. O guerreiro ainda estava sujo, impregnado
com o cheiro da batalha e banhado em sangue branco. Era sua
maneira de mostrar a todos que a guerra não havia acabado. Não
para ele.
As comemorações avançavam a noite e o rapaz
permanecia no mesmo lugar, guardando o mesmo semblante
carregado que trazia desde o nal da luta. Aborrecido e entediado,
negava-se a participar das festividades, embora convidado por
diversas garotas a tomar parte em alguma dança.
O jovem, sempre bravo, sempre furioso, planejava algo
para distrair sua mente. Mais do que isso, planejava algo para
corrigir aquele que parecia ter sido um grande engano do pai.
Não havendo mais o que fazer ali, no centro da algazarra,
Pirarucu procurou colocar em prática o plano que fomentou a
noite inteira em sua mente.
Próximo à mata densa, já no limite do território da
tribo, Pindarô havia mandado construir uma espécie de cárcere
improvisado para aprisionar os mais novos “membros” da
comunidade, os diabos brancos. Com ódio no coração, Pirarucu
avistou a construção rudimentar feita com galhos grossos e
amarrados com cipós. Dois companheiros deveriam fazer a
guarda do local, deveriam cruzar suas lanças no ar e manter os
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curiosos à distância.
Mas Pirarucu não era um reles curioso. Era o terceiro
homem mais importante daquela tribo, atrás apenas do chefe e
do Pajé. Assim que avistaram a gura do guerreiro, os guardiõeso saudaram em uma espécie de reverência e descruzaram as
lanças. Talvez entendendo o que se sucederia ali, deixaram o
guerreiro a sós com os prisioneiros.
O sangue de Pirarucu ferveu ao se aproximar dos
forasteiros. Estes falavam algo em uma língua desconhecida
e beijavam um ornamento em forma de cruz que traziam ao
pescoço. Ao verem a gura transtornada do índio, demonstraram
um medo genuíno.
Os brancos estavam certos em temerem Pirarucu.
O bravo apanhou as brasas incandescentes de uma fogueira
próxima e arremessou para dentro da cela onde estavam os
aprisionados. Como se o fogo correspondesse à ira do guerreiro,
começou a se alastrar rapidamente. O índio parecia se divertir
com os gritos de dor e angústia proferidos pelos inimigos.
Rapidamente, o resto da tribo correu até ali e logo
entenderam o que se sucedeu. Alguns tentaram apagar as
chamas, mas o esforço foi em vão. A carne dos forasteiros foi
tostada até os ossos, em um comportamento incomum das
chamas, como se estas reetissem os desejos de Pirarucu com a
mesma intensidade.
Para Pindarô, a atitude do lho era injusticável e
inadmissível. Os inimigos haviam se rendido durante a batalha e,
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agora, eram seus prisioneiros. Não cabia a Pirarucu sentenciá-los
à morte de forma tão brutal.
Certamente, a desgraça recairia sobre os Uiaiás. Os
deuses não se contentariam com a execução sumária daqueleshomens e Pirarucu seria o responsável pela desolação que a tribo
enfrentaria.
Mas, não era justo que toda a tribo pagasse pela atitude
irresponsável de um único guerreiro. Pensando nisso, o Pajé
aconselhou a Pindarô que exilasse o lho, como forma de evitar
o castigo dos deuses. Foi o que o chefe decidiu.
Pirarucu encarou a decisão do pai em tom de deboche e
se vangloriou pela vitória alcançada contra aqueles que chamava
de diabos brancos. Enfurecido, blasfemou contra todos os deuses
indígenas e assegurou que não precisava da intervenção divina,
nem do apoio dos Uiaiás para sobreviver. Irritado, deixou a tribo
levando um colar que o acompanhava desde menino com dentes
de onça pendurados, duas lanças, um arco e algumas echas.
Sequer se despediu do pai ou de algum outro companheiro.
O bravo índio trilhou um caminho solitário ao longo do
Iça. Ali, Pirarucu se sentia em casa.
Os anos que sucederam o exílio do bravo guerreiro
demonstraram que, talvez, Pirarucu estivesse certo em não
precisar do apoio dos outros. Entre os Uiaiás cresciam boatos
de que o lho de Pindarô se transformou em uma espécie de
guardião da oresta e protetor do Iça.
Contudo, Tupã, o poderoso deus dos deuses, tramava
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uma vingança contra o índio de coração perverso. As blasfêmias
de Pirarucu não cariam impunes. Planejando o revés
contra Pirarucu, Tupã convocou Pólo e Iururaruaçu para que
controlassem uma severa torrente contra o rapaz.A tempestade que se anunciava no horizonte preocupou
o guerreiro. Aquelas nuvens negras eram o prelúdio de algo
apavorante. Mas, Pirarucu, embora estivesse com medo, não
demonstrava tal sentimento. Aquela seria apenas mais uma
tormenta da oresta, algo até comum na região.
No entanto, não era uma simples tempestade. Sem
mais avisos, a chuva chegou. Os fortes ventos cortavam a pele
rígida de Pirarucu e parecia que iriam derrubar todas as árvores
da oresta. A água pingava doída do céu e as nuvens negras
emitiam os mais sonoros trovões. Os relâmpagos, intensos e
azuis, iluminavam toda a oresta e Pirarucu testemunhava olhos
vermelhos lhe observando da mata densa.
Apavorado, o bravo guerreiro percebeu que iria morrer
ali. Parecia que os raios caíam do céu em sua direção. Sem ter
escapatória e temendo pela sua vida, correu até as margens do
Iça. Era ali que se sentia seguro. Pensou em mergulhar no rio e
esperar até a tormenta passar, mas não teve tempo de executar
seu plano de salvação. Antes que pudesse mergulhar para a
sobrevida, foi atingido no peito por um raio azul brilhante. O
corpo sem vida e eletrocutado de Pirarucu foi atirado ao fundo
do rio Iça pela violência com que recebeu o impacto.
Porém, muitos se recusaram a acreditar no m trágico
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daquele índio temperamental. Entre os mais velhos dos Uiaiás,
conta-se que Tupã, apesar de sua ira, admitiu que Pirarucu era
um bom guardião do Iça e da oresta, portanto, decidiu dar uma
nova oportunidade ao guerreiro. Pirarucu havia se transformadoem um perigoso peixe gigante e escuro como sua alma, passando
a aterrorizar quem ousasse violar as águas e a oresta até os dias
atuais.
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O CRIADOR DE LENDAS
Jhon Mark
Mais de quatro meses se passaram e o trepidar crônico
ainda assolava o corpo de Fausto. Ele não saberia armar se este
sintoma era devido ao súbito momento do susto ou se era pelo
medo gerado posteriormente.
Fausto Clorius era um homem bem sucedido em meados
do século XX. Morava em uma mansão em meio a uma densa
oresta localizada a noroeste do Amazonas. Não tinha nenhum
familiar vivo, e, portanto vivia sozinho com seus inúmeros
empregados que realizavam todas as tarefas de casa. Alguns
cabelos brancos ousavam eclodir de sua cabeça, mas ainda
sentia-se como um jovem, excluindo a manifestação tremulante
em seus ossos: os Seres da Floresta são os responsáveis por ter
causado isso em Fausto. São criaturas infernais que resolveram
de uma hora pra outra rondar a ilustre moradia do ex-advogado.
Finalmente, o ritual de paz e concentração foi nalizado
e, com um cuidado clínico, Fausto abasteceu sua xícara com um
denso café preto. Segurando-a com as duas mãos, caminhou
até a rede no corredor externo de entrada de sua mansão e
impulsionou a mesma em um leve balançar. Ele visualizava a
densa oresta através do véu fumegante que subia de sua xícara
quando um chiado excruciante reverberou o solo que equilibrava
toda a estrutura da casa. Fausto derramou o café pelo próprio
corpo, mas não sentiu a queimadura, pois estava concentrado
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em manter-se de pé e correr para dentro de sua casa. Com
agilidade, ele se prostrou sobre as inúmeras janelas acionando
as travas de fechamento. Segundos depois o chiado retrocedeu
e duas janelas foram despedaçadas. Ele percebeu que a criaturaaplainava a volta da mansão, com suas imensas asas escamosas.
Por m, a criatura pairou em frente à entrada e jorrou uma lufada
de fogo sobre a porta de entrada, o que a fez se despedaçar em
milhões de pedaços ígneos.
Foi assim que a investida terminou. Fausto se escondeu
no porão, mas quando o silêncio voltou a dominar, ele reuniu seus
empregados e solicitou que a frente da casa fosse reconstruída
e reforçada. Os subordinados aparentavam puro desespero.
Contudo, antes mesmo do alvorecer, uma nova porta fora
colocada e Fausto se preparava para ir à cidade em sua suntuosa
carruagem.
Ele se sentou desajeitado na parte interna da carruagem
enquanto um de seus empregados instigavam os cavalos sobre a
trilha acidentada. Na cidade, com a presença de outros humanos,
Fausto sentiu certo alívio. Em frente à única faculdade da cidade,
ele desceu e seguiu em direção a sua sala de aula. Depositou uma
mala de couro preta sobre a mesa enquanto cumprimentava
cada um de seus alunos com seu sorriso desajeitado. Vez ou
outra ele perdia o foco e aos poucos os jovens alunos iniciavam
um falatório paralelo, entretanto, Fausto não executou nenhum
grito de ordem.
O horário do almoço chegou e os alunos deixaram a sala
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com sorrisos nos olhos quando uma professora na casa dos trinta
anos avançou em direção ao professor.
– Não tenho palavras para lhe agradecer – Fausto
respondeu com seu costumeiro meio sorriso.Por m, ela deixou um envelope branco sobre a mesa
dele se retirou. Depois de uma ronda com os olhos à sala vazia,
ele o depositou dentro do bolso e seguiu de volta a carruagem.
A trilha acidentada lhe deixava cada vez mais tenso. Buscou o
envelope no bolso e o abriu: um rolo de dinheiro caiu sobre o
piso, mas logo foi devolvido ao bolso. Havia também um papel
que dizia: O meu lho nalmente apresentou melhoras. Obedece-
me como nunca.
De repente, a carruagem freia com violência. Fausto
abriu a porta e quando desceu ao solo, avistou aquela gura
estranha, humanoide, de corpo esquelético e esverdeado, com
cabelos feitos galhos e olhos completamente negros: os Seres da
Floresta. Havia quatro meses desde a primeira vez que os vira e
desde então, jamais dormiu em paz.
– Saia da Floresta e a Floresta lhe poupará – chiou a
criatura e desapareceu entre as árvores. Por que eles não o
queriam mais na oresta? Ele nunca desmatou, não executava
queimadas e muito menos cultuava contra deuses ou a favor de
seres malignos. Sem mais demora, voltou à carruagem e ordenou
que seu espantado subordinado prosseguisse com o caminho.
Ao chegar à sua mansão, ele correu ao porão. Acendeu
um belo lampião e avançou sobre o extenso cômodo. Logo no
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início, ele parou sobre uma detalhada máscara: um rosto de
crocodilo entalhado. Havia também uma capa com o mesmo
couro esverdeado e logo acima uma placa que dizia: Cuca. Sem
hesitar, ele depositou o dinheiro que a professora havia lhe dadopor ter assustado o lho dela com o medonho personagem. De
início, aquela ideia poderia parecer grotesca, mas era efetiva.
Pouco mais a frente, havia vários quadros de lagos com
um homem prostrado a beira. O título deste era O Boto. Fausto
foi um exímio advogado que ajudou muitos homens a se livrarem
de amantes. Ele criou a lenda de que um homem bem-apessoado
atraia as mulheres à beira de um lago, lhes tirava a virgindade
e depois fugia sobre a água, após tornar-se um boto. Com essa
singela e nada criativa história, ele conseguia transformar as
jovens vítimas de maridos-a-procura-de-aventuras em prostitutas
que foram seduzidas por um homem-peixe.
Finalmente ele chegou a um suntuoso armário e ao abrir
uma pesada porta, uma mangueira grossa encapada com algo
que parecia escamas caiu sobre seus pés.
– Onde você escondeu meu machado, Boitatá? –
perguntou com raiva, à sua mais nova criação amejante. Os
olhos desproporcionais era nada mais nada menos do que o
reservatório de combustível da serpente inanimada.
Finalmente, o rico, entediado e solitário, encontrou seu
machado e uma tocha e correu ao estábulo. Montado no seu
cavalo mais veloz, ele adentrou sobre a oresta, certo de que só
pararia no seu destino ou se fosse interceptado com ferocidade.
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Contudo, a breve viagem ocorreu sem qualquer pormenor e
quando se aproximou da casa do seu único amigo, na divisa com
a cidade, ele desceu do cavalo e socou a porta com pressa.
Um jovem rapaz de pele escura abriu a porta após algunssegundos e ao ver o visitante, forçou um sorriso ao mesmo tempo
em que tragava seu cachimbo como se fosse uma chupeta.
– Meu amigo Saulo, como vai? – saudou Fausto inquieto.
Como não houve resposta, ele continuou – Posso entrar? – disse
empurrando a porta e quase levando o amigo ao chão, pois o
mesmo não possuía a perna direita.
Saulo Cícero, era, há alguns anos atrás, o melhor amigo
de Fausto. Juntos eles prestavam serviços diferenciados à
população da cidade, tais como: provocações a terceiros, sustos
homéricos, iniciação de caos. Tudo o que há no porão de Fausto,
é ideia de ambos. Tudo começou com uma brincadeira, onde Saci
(como era conhecido Saulo) dizia que seu gorro tinha poderes
mágicos. E como a simples população começou acreditar,
criaram um poderoso comércio do medo. Porém, em uma das
travessuras bem remuneradas, Saulo foi atacado por uma cobra,
e como estava longe da cidade, de um antídoto, a única forma de
manter a vida era amputando sua perna. Depois deste acidente,
a sociedade de ambos foi rompida e somente Fausto continuou
com o negócio.
Entretanto, como atualmente o próprio Fausto estava
sendo a vítima de diversas investidas folclóricas, decidiu pedir a
ajuda do amigo para acabar de vez com os Seres da Floresta.
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– De jeito nenhum eu irei aceitar suas ideias... – Saulo
parou de falar assim que Fausto depositou um grande canudo de
dinheiro sobre a mesa.
Saulo aceitou!Planejaram até o anoitecer como que avançariam contra
os seres da oresta. Com a ajuda de duas velhas muletas, Saulo o
seguiu em meio às titânicas árvores. As tochas criavam desenhos
bruxuleantes no chão, o medo deixava o ar mais denso. O tempo
passou até que nalmente o chiado do lagarto voador bambeou
a perna de ambos. Os seres da Floresta o cercaram. O machado
foi usado para repelir o grupo, mas não surtiu efeito. Sem mais
opções, Fausto chutou uma das muletas do amigo, levando-o
ao chão. Com o hesito dos seres esverdeados, ele correu em
disparada, deixando Saulo à morte.
Desesperado e ainda com diculdades para respirar,
Fausto montou em seu cavalo e voltou correndo a mansão. Com
os olhos desfocados, ele fez uma pequena trouxa de roupas e
outra com alimentos não perecíveis. Ao sair para a noite aberta,
seu coração espremeu ao olhar para a oresta obscura e cheia
de mistérios. Finalmente ele alinhou a cela do cavalo para partir
quando ouviu dois de seus empregados falando em cochichos e
apontando para as árvores:
– O que está acontecendo? – perguntou Fausto.
– Os... Os seres da...
– O que é que tem? – cuspiu com pressa e raiva.
– Eles vieram até nós – houve uma pausa. – Eles disseram
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que para se tornar um deles, deve-se queimar em fogueira de
carvalho, a maior riqueza que possui.
Aquelas palavras abriram os olhos de Fausto. Ele deixaria
tudo para trás? Não teria como fugir com suas economias, masnão as deixaria para ninguém. Então, ele foi ao porão e trouxe
para fora dois enormes baús de madeira. Encaminhou-os ao
celeiro. Minutos depois ele trouxe um quadrúpede feito de aço
e borracha em cima de uma prancha com rodas. O animal não
possuía cabeça. Com tudo dentro do celeiro, ele mirou o pescoço
da mula ctícia sobre uma torre de feno e acionou uma pequena
alavanca, no qual fez jorrar uma língua de fogo.
Por um momento ele observou as chamas consumirem
o local e quando concluiu que seria necessário sair, percebeu que
o celeiro estava trancado.
Do lado de fora estavam os subordinados de Fausto,
ao lado dos seres da Floresta que aos poucos retiravam suas
detalhadas fantasias. Sorriam. Congratulavam. Pois, acabaram
de vencê-lo.
A princípio Fausto era o grande mestre, o Criador de
Lendas, e jamais será esquecido. Porém, ele foi descoberto.
Outros humanos ainda mais ambiciosos decidiram se apoderar
de tudo o que ele conseguiu. Deu-se início, então, a uma nova
era de lendas e mitos, entretanto, o mesmo vilão que sempre
assombrou a Floresta, ainda permanece vivo. E o nome dele é:
Ganância.
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A FACE DO BOTO
Patrick Santos
A história que será contada aqui relata um caso de
sumiço de uma linda rapariga do interior do estado do Pará. O
alvo principal do sequestrador, que se aproveitava da singela
inocência das garotas que sempre se engraçavam por rapazes
vindos da capital do estado e sonhavam em se casar, eram
meninas entre quatorze e dezesseis anos. O homem, que de fato
era um notório galanteador, sempre andava com camisa, calça e
chapéu cor de rosa. Era possuidor de uma admirável persuasão e
nunca desistia de suas presas.
Sua chegada à cidade foi um grande alvoroço e tomou
conta de Altamira, no Pará. Todos queriam saber quem era
aquele simpático cavalheiro que havia alugado uma soberba casa
no centro da cidade. Poucas pessoas viram o homem naquele
primeiro dia. As pessoas que o viram, disseram para outras que
ele era de uma estatura bastante elevada, de nariz empinado,
vestes de um típico cavalheiro, cabelos bem cuidado e bastante
charmoso. As moças se agitaram bastante na cidade. Na casa
da madama Lucinéia, que tinha nada mais nada menos que sete
lhas, sendo duas casadas, só se falavam no digníssimo homem
de vestes cor de rosa.
– Que nobre cavalheiro! – disse uma delas.
– Bom; bem sabes, honrada mãe, que, como eu, sendo
a mais velha das daqui presentes, visto que as outras velhas já se
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casaram, é a mim a quem deves indicar o nobre cavalheiro. Seria
muita injustiça se você desse aval para estas crianças que ainda
nem lavam suas vestes íntimas – disse Maria Jandira, a lha mais
velha de dona Lucinéia.
***
A mãe das meninas pedia calma naquele instante, porém
em debalde. Escusado é dizer como foi à noite daquelas meninas
visto que todas dormiam no mesmo quarto imenso.
– Você é muito oferecida, Maria Jandira – disse uma das
irmãs num atribulado momento de altercação no apagar das
luzes, após o sino da meia noite ter tocado.
– Eu o vi primeiro. Então quem longe dele – redarguiu a
moça, severamente.
– Você, apesar de ser a mais velha das daqui presentes,
se comporta como uma criança, Maria – disse a mais nova.
–Égua! Não me aporrinhem – berrou Maria Jandira em
um possesso de ira.
– Isso é verdade – disse outra, entrando na discussão. –
Deveríamos esperar ele escolher quem quer e não se jogar assim
em cima assim como uma mundana.
– É isso mesmo! – disse as outras, agravando ainda mais
a confusão.
– Tenho certeza absoluta de que ele não é nenhum papa-
anjo. O que ele procura é uma mulher de verdade, como eu –
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disse Maria, altivamente e com desdém.
Todas se acudiram zombando da cara de Maria Jandira.
– Você se acha uma mulher feita já, né, Maria Jandira.
Você só tem dezesseis anos, um ano a mais que eu. Você não émelhor que ninguém só porque é mais velha. E têm mais, esses
homens da cidade gostam de raparigas de treze e quinze anos,
também, então vá tirando o cavalinho da chuva se você pensa
que é a última cocada do deserto e que é melhor que a gente.
Maria Jandira bocejou, dando a entender nitidamente
que já estava fatigada daquela discussão, e disse:
– Tudo bem, tudo bem. Então vamos esperar ele decidir
quem ele realmente quer. Que vença a melhor.
– Que vença a melhor – disse as outras em uníssono.
***
– Mamãe, por favor, leve-me para conhecer o nobre
cavalheiro, por favor, mamãe – disse Maria Jandira, toda faceira,
após suas irmãs dormirem e se dirigir até o atelier de sua mãe que
sempre costurava até tarde da noite.
Sua mãe tirou os óculos da têmpora, pôs em cima de sua
escrivaninha, e disse:
– Ora, lha; não me é de convir isto. Sabes muito bem
que não temos homem na família. Não posso ir até a casa de um
senhor, ao qual nem conheço, e pedir permissão para lhe saudar.
Isso soa imoral.
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– Mas somos da família Carmo, mamãe; e este sobrenome
é bastante relevante.
– Sim, Maria Jandira, pode ter certeza disto. Mas você
está ciente de que a nossa riqueza está entrando em escassez.Nós não pertencemos mais à alta sociedade. Seu pai Jurandir só
nos deixou dívidas e mais dívidas.
– Evite-me a lembrar disto, mamãe, por favor – disse
Maria Jandira, com asco.
– Escute, não se reprima, Maria Jandira. Haverá outros
meios de você se apresentar a este homem.
Maria Jandira já ia subindo às escadas, bastante
cabisbaixa, quando a mãe falou:
– Ah! – disse de súbito, após lhe vir uma condescendente
reminiscência. – A festa junina da nossa cidade não é neste nal
de semana? Será uma ótima oportunidade de você o conhecer,
não é verdade?! O que você acha?
– Sim, mamãe. Havia esquecido a festa junina – disse a
jovem num eriçamento de pelos.
Aquela ideia amenizou os anseios da moça que subiu as
escadas e voltou para o seu quarto, cantarolando uma canção
quase inaudível e sem nenhuma vontade de dormir.
Maria Jandira era uma jovem dama que sempre sonhara
em se casar e, que sempre em sua janela, cogitava seus possíveis
maridos. Adorava um bom baile e uma boa festa de São João.
Adorava também as comidas típicas, como: mingau de milho,
canjica, bolo de macaxeira, pamonha, bolo de fubá, dentre outras
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deliciosas guloseimas.
Era conhecida como a namoradeira da cidade. De
fato, a menina era demasiado linda. Possuía um lindo cabelo
encaracolado que cobria toda a sua face vermelha como a cordo jambo. Todos os homens da cidade já lhe haviam pedido em
casamento, porém a moça negava ao pedido de todos.
– Minha lha é jovem demais para se casar! – dizia a sua
mãe quando homens vividos vinham até a casa desta pedindo a
lha em casamento.
No entanto, nesta pequena vila de Altamira, morava um
jovem que jamais havia se declarado à moça, por ser demasiado
tímido. Suas declarações eram apenas feitas através de cartinhas
escritas por sua irmã que não apoiava aquela paixão inútil do
irmão, como a própria falava. Sua irmã conhecia muito bem Maria
Jandira. Ela jamais daria uma chance ao jovem, por ser um rústico
do campo que nem sequer sabia ler e escrever. Mas o homem
não desistia e, através de pequenos alcoviteiros, enviava as
cartas que nunca eram correspondidas. Seu nome era Francisco,
mais conhecido como Chico da Carroça. Este daria até a sua vida
pela linda Maria Jandira.
Enm o dia 24 de junho chegara, e com ela uma grande
festa atraindo pessoas de todos os estados do Brasil. No
entanto, esta festa cou marcada pelo o horripilante desfecho
que sucedera.
No aglomerado de pessoas que dançavam e curtiam
as músicas de São João, Maria Jandira enxergou um lindo
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jovem que apreciava uma fogueira que estava montada bem
no centro da festa. De súbito Maria Jandira se encantou pelo o
rapaz, vestido de rosa, que possuía um chapéu da mesma cor. O
homem, instintivamente, percebeu que estava sendo encaradopor alguém. Diretamente seus olhos se dirigiram para a Maria
Jandira que se assustou com o repente do rapaz. Aquele olhar
atirou várias echas no coração da jovem que, submissa ao amor,
se entregava imensamente. O homem, então, fez-lhe um breve
aceno e este foi bem correspondido, pois a moça utuava na
direção do rapaz.
– Você aceita uma dança? – perguntou o homem.
Maria Jandira prontamente assentiu.
O homem dançava divinamente e tinha um cheiro
bastante agradável como ores de um igarapé. Aquele agradável
odor se emanava por toda a festa e atraia olhares de todos os
cantos da festa. As irmãs de Maria Jandira caram enciumadas e
não pouparam ofensas banais a irmã.
Dançaram por longos instantes e logo se afastaram da
multidão.
– Você quer ir para um lugar mais calmo, minha deusa do
mar? – perguntou ele.
– Sim – disse ela.
Porém os dois não sabiam que estavam sendo
perseguido pelo o jovem Chico da Carroça. Este os seguia.
Um ciúme inaudito tomou conta do jovem Chico da
carroça. O Homem, que segurava a mão da moça, e que dizia
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que suas riquezas provinham do mar, era um príncipe perto do
humilde e rústico Chico da carroça.
Maria Jandira e o estranho desbravavam matas e a moça
sentia-se arrependida de ter se afastado da multidão. O homema levava na direção de um rio que se localiza ao norte da cidade.
– O que será que ele quer comigo? – monologou a moça.
– Que se dane! Vou até o m com isso.
Cruzaram vários caminhos nunca transitados. A mata
virgem soltava o seu odor ao serem pisoteadas. A escuridão era
às vezes importunada por vagalumes que vagueavam por ali.
A paixão de Maria oscilou por uns instantes, mas assim
que eles chegaram nalmente ao ermo rio, o homem deu um
longo beijo que lhe tirou todo o receio de lhe seguir. Maria
Jandira, por conselhos de sua mãe e do povo supersticioso, por
diversas vezes havia tentado tirar o chapéu do moço, mas este
sempre lhe repelia.
Durante o longo beijo do casal, Chico da carroça
surgiu e teve uma reação que nem o próprio esperava. Gritou,
desesperadamente:
– Você nem conhece ele, Maria!
Maria Jandira olhou para Chico, e disse com desalinho:
– E eu, te conheço?
– Como assim, Maria?! Eu que sempre capinei o terreno
de seu falecido pai. Éramos até amigos.
– Pois não o conheço. Agora suma daqui!
– Mas, Maria...
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– Égua, moleque. Cai fora daqui! – disse Maria Jandira,
impetuosamente.
Chico da Carroça se sentiu humilhado pela moça. Então
decidiu ir embora; porém uma intuição terrível lhe incitava avoltar.
Ao se aproximar novamente do rio, Chico da carroça
vislumbrou uma cena funestíssima:
O estranho homem cor de rosa começou a sofrer uma
mutação horrenda que Chico da carroça denominou como
demoníaca. As vestes do homem foram todas rasgadas e seu
corpo foi possuindo uma massa lisa e pastosa. Sua cabeça cou
do formato de um boto e seus membros viraram barbatanas.
Maria Jandira gritou desesperadamente, porém tarde demais,
pois o abominável animal mergulhou para o fundo do rio levando
a consigo para de lá nunca mais voltar.
Chico da carroça bem que tentou correr para salvar a
sua amada, mergulhando no rio. Mas os dois haviam realmente
sumido.
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O FOGO DE ANGATU
Wilson Faws
O operador de câmera fazia os últimos ajustes,
enquanto Mariana tomava um gole d’água. Tratores trabalhavam
derrubando árvores não muito longe.
– Pronta, Mari?
– Estou sempre pronta, Marcos.
– Gravando em 3... 2... 1.
– Bom dia. Aqui é Mariana Lin, falando da cidade de
Angatu, sul do Amapá, onde está em fase inicial a construção da
maior usina hidrelétrica do país desde Belo Monte. Em Macapá,
porém, os protestos aumentam a cada dia. Mais de 200 pessoas,
entre índios, moradores e ONGs voltadas ao meio ambiente,
estão acampadas em frente ao Palácio do Setentrião. A revolta
se deve a um artigo que circulou nas redes sociais que prevê a
devastação pela usina de uma área orestal dez vezes maior do
que o anunciado. O Ministro de Meio Ambiente, por outro lado,
desmentiu esses boatos...
Um forte barulho pegou-os de surpresa. Um condutor
desceu irritado de seu trator.
– Parece que surgiu um problema por aqui, vamos
conversar agora com um trabalhador da obra – fez sinal para
Marcos acompanhá-la. – Senhor, estamos em rede nacional,
poderia, por favor, nos explicar o que está havendo?
– Já é o quinto essa semana! O motor dessas porcarias
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esquenta sem motivo! A gente paga os nossos impostos, tem
família pra alimentar, trabalha 16 horas por dia, mas desse jeito
não dá, a gente não tem nem instrumento pra fazer o nosso
trabalho!Agradeceu o condutor e se voltou para a câmera.
– Aparentemente, não é o primeiro trator com problemas
essa semana. O que não está claro é se os veículos não foram
projetados para aguentar esse trabalho, ou se houve sabotagem
por parte dos manifestantes, que já ameaçaram impedir a
construção da usina a todo custo. Voltaremos em breve com
mais informações.
Marcos desligou a câmera, e caminhou com a repórter.
Antes de chegarem à caminhonete, Mariana foi surpreendida por
uma luz no meio das árvores que ofuscou sua visão. Parou para
tomar outro gole d’água.
– É muito fácil pegarmos insolação nesse lugar. Vamos
passar no centro para tomar um café da manhã decente, e depois
voltamos pra rodovia. Temos horário marcado com o Ministro na
capital.
– Sabotagem por parte dos manifestantes?
– Já sei o que você vai dizer. Não tem nada a ver com a
minha mãe.
– Você acabou de acusá-los sem motivo!
O tom de voz da repórter aumentou.
– É porque é sempre a mesma coisa, Marcos. Quando
o país começa nalmente a andar pra frente, aparecem pessoas
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querendo criar problemas. Minha mãe veio pro Brasil por causa
dessa usina e deu a vida por ela!
Sem perceber, Mariana começou a gritar.
– Seria muito melhor se as pessoas usassem a cabeçapara dar um jeito de minimizar esses impactos, ao invés de car
fazendo ameaças e revoltas! Isso nunca muda nada, só gera
violência, e pessoas acabam morrendo!
Marcos a interrompeu com um abraço. Os olhos da
repórter estavam em lágrimas.
– Calma, amiga... Você já está fazendo o seu melhor.
Mariana soltou o amigo e secou os olhos.
– Ministro.
– Ministro – respondeu Marcos, entendendo o recado.
***
Meia hora depois de terem partido em direção ao centro
urbano de Angatu, a caminhonete parou no meio da estrada.
Marcos foi o primeiro a sentir o cheiro.
– Mari, desce do carro!
Ambos desceram em meio ao odor de queimado.
Olharam em volta. Apenas árvores e mato nos dois lados da
estrada. Procuraram algum sinal de celular, mas logo desistiram.
– Não tem como os manifestantes terem feito isso –
disse Mariana, decepcionada. – Não há ninguém por aqui.
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– Você precisa de um psicólogo, amiga. Vou checar a
caminhonete.
Marcos abriu a tampa dianteira do veículo, e após
dispersar a fumaça, percebeu que parte do motor havia derretidoe o radiador estava completamente seco. Viu algumas coisas
queimadas, e tentou tirar outras do lugar, mas já não importava
mais.
– Essa tralha não vai pra lugar nenhum, vamos ter que
voltar a pé pra construção... Mari?
Ela havia desaparecido.
***
Minutos atrás, Mariana vira novamente uma luz passar
no meio das árvores, rápida como um relâmpago. Sua vista cou
marcada com um risco laranja quando fechou os olhos, e só por
isso não pensou estar alucinando. Não poderia ser coincidência.
Viu Marcos ocupado com a caminhonete. Ele a recriminaria pelo
que estava prestes a fazer, então decidiu não falar nada. Pegou
uma pequena câmera de mão emprestada e entrou na oresta
atrás do responsável pela sabotagem.
Perto de onde vira a luz, Mariana encontrou um rastro,
uma trilha de folhas e galhos queimados que, por algum milagre,
não causaram um enorme incêndio na oresta. Seguiu-a,
passando por pequenas elevações seguidas de declives, e só
depois de algum tempo notou que os sons dos animais haviam
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cessado. Ligou a câmera e caminhou mais devagar, enquanto
tentava justicar para si mesma o risco que corria.
Subiu mais uma elevação, e se viu em uma clareira. Ao
redor, um conjunto de árvores em tom avermelhado formavamuma espécie de muro. Eram retorcidas e seus galhos continuavam
umas nas outras, como se fossem um único ser vivo. Mariana
começou a lmar, e só quando deu uma volta completa percebeu
que o local por onde entrara também estava coberto pelas
árvores. Não teve tempo de se desesperar, pois sentiu um calor
intenso em suas costas.
Ao se virar, a impressão que Mariana teve foi a de estar
cara a cara com uma enorme fogueira. As chamas preenchiam
toda a sua vista, e do meio delas, dois grandes olhos a encaravam.
As chamas se afastaram, e Mariana reconheceu um formato
esguio. O ser se assemelhava a uma cobra de fogo, maior que
qualquer outro réptil vivo. Seu corpo era grosso como as maiores
árvores que vira por ali, e as escamas de sua pele dourada se
pareciam com novos olhos espelhados pelo corpo. O corpo mal
cabia no espaço da clareira, e a altura de seu rosto passava a de
Mariana.
A repórter só teve reação quando sentiu sua mão
queimar. Gritou de susto. A câmera caiu na grama e derreteu,
virando uma pasta negra. Encarou a cobra majestosa e tomou
coragem para iniciar um diálogo.
– Quem é você? Por que me trouxe até aqui?
A criatura não respondeu, mas seu corpo explodiu em
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chamas ainda mais altas. Mariana reparou que o fogo entrava em
contato com as árvores ao redor, mas não as queimava. Viu então
as chamas se virarem em sua direção. Afastou-se, com medo, até
chegar ao limite da clareira, de onde não tinha mais escapatória.– Pare! Por que você está fazendo isso? Socorro!
Foi atingida. Abriu os olhos. Ainda estava viva, e só havia
fogo à sua volta. Céu e chão eram feitos de chamas. Olhou para
o lado e viu uma mesa de escritório, perdida no meio do fogaréu.
Sentado à mesa, reconheceu o ministro responsável pela usina.
No outro lado, em pé, uma senhora de feições orientais e muito
irritadas. Ao ver sua mãe ainda viva falando com o ministro,
Mariana soube estar presenciando a visão de um passado
distante.
– É um absurdo! Como você foi capaz de permitir que
ocultassem todas essas informações? Não foi pra isso que eu vim
pra cá!
– Sra. Lin, eu sei que você está nervosa, mas me deixe
explicar...
– Explicar o quê? Como se explica isso? Você vai extinguir
espécies inteiras, ribeirinhos carão sem ter onde morar! É um
crime! Você não se importa com a nação, nem com o meio
ambiente!
– Se quiser deixar o projeto, que à vontade! Você não é
desse país, Sra. Lin, e não sabe como as coisas são feitas por aqui.
– Vou deixar sim o projeto, mas não somente isso. Vou dizer
pra todo mundo o que você está fazendo. Vai ouvir notícias minhas.
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Mariana viu-a se virar para ir embora, e então ouviu um
estrondo. Sua mãe caiu para frente, sem vida. O ministro guardou
a arma, e discou um número no ramal. Logo, dois seguranças
apareceram, sem se importarem com o corpo estirado em suafrente.
– Tirem ela daqui. Provoquem um tumulto com os
manifestantes, e façam parecer que foi culpa deles.
Os homens carregaram o corpo, enquanto Mariana se
via de volta à clareira, agora vazia. Ficou em choque por algum
tempo, com calafrios e o corpo inteiro tremendo, enquanto
digeria o que acabara de acontecer.
***
Marcos viu a repórter sair do meio do matagal.
– Mari! Onde você estava? Consegui sinal e chamei um
guincho, vai dar tempo de falarmos com o Ministro!
– Não vamos falar com o ministro.
– E talvez a gente ainda consiga comer um lanche antes...
Espera... O que você falou?
***
Três horas mais tarde, o táxi parou a uma quadra do
Palácio do Setentrião.
– Você não acredita, não é?
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61
– Olha, Mari... É difícil aceitar assim a parte da cobra
apocalíptica. Mas eu acredito no que houve com sua mãe. Pode ter
sido uma memória reprimida, e o sol pode ter feito você ver coisas.
– É o suciente. Obrigada, Marcos.
Desceram do veículo. Mas ao invés de se dirigirem à entrada
do palácio, foram em direção ao acampamento dos manifestantes.
Após um burburinho entre os mesmos, um homem forte, rosto
fechado, vestido de maneira casual e com traços levemente indígenas
parou no caminho de Mariana e esperou que ela se aproximasse.
– Boa tarde. Meu nome é Mariana Lin. Você é o líder desse
pessoal?
– Esse pessoal existiria sem mim, mas sim, estou
representando o movimento. Quem é você, jornalista? Se veio para
nos esculachar, como todos os outros, já peço agora que não perca
seu tempo.
– De maneira nenhuma, não é por isso que estou aqui.
Gostaria de expor a opinião e os argumentos dos manifestantes em
rede nacional, para ajudar vocês a combater os absurdos que estão
cometendo aqui. Você aceitaria ser entrevistado?
O homem de rosto fechado sorriu. Marcos começou a
montar os aparelhos. Mariana não sabia se essa entrevista poderia ser
exibida, nem em que problemas estaria se metendo, considerando
o nível de corrupção envolvida. Mas sabia que faria o país car
sabendo daquilo, de uma forma ou de outra. E assim poderia dizer
que honrou, enm, a memória e o trabalho de sua mãe.
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A PROPOSTA
Santiago Castro
A conversa já se arrastava por horas. De um lado,
Valter Dogmus, que tinha uma proposta de trabalho ao médico
Luiz Vergueiro. Valter estava doente, e tinha convicção de que
morreria logo. Queria contratar o médico não para si, mas para a
esposa, Janice. Havia dois problemas na questão: primeiro, Luiz
morava na Amazônia, e não tinha interesse de mudar para Porto
Alegre, onde estavam. O segundo, por mais que Valter oferecesse
um salário muito acima do mercado, não cava claro porque uma
jovem mulher e sem nenhuma doença aparente precisava de um
médico a pajeando.
Eram dois homens de personalidade forte. Luiz era
alguém notável, até os 12 anos analfabeto, índio da tribo dos
Kambebas, na alta Amazônia. Uma vez alfabetizado, prosseguiu
nos estudos até se tornar um dos poucos índios no Brasil que
concluiu o estudo superior. Depois de formado, frequentava
aldeias, não apenas cuidando da saúde, mas também defendendo
que a educação era o melhor caminho para a liberdade e
crescimento dos índios.
Já Valter era um empresário bem sucedido, envolto em
mistérios e semirrecluso em sua grande casa. Não tinha lhos,
mas tinha uma bela esposa, bem mais jovem do que ele. Entrou
em contato com Luiz, marcando um encontro em Porto Alegre e
pagando todas as despesas. Luiz, a princípio, cou curioso: que
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proposta não poderia ser feita por telefone? Que especialidade
poderia ele ter que outros médicos do sul não tivessem? Mas
precisava de uma folga, e viu com bons olhos uma visita paga
a uma cidade que não conhecia. Quanto a proposta, não tinhailusões. A distância era muito longa para justicar o investimento,
pois médicos, com certeza, não deviam faltar numa capital como
Porto Alegre.
Mas Valter queria contratar Luiz e dinheiro não seria
problema. Ofereceu três vezes o que ganharia um médico de
ponta em qualquer hospital do mundo. A proposta era absurda
em todos os sentidos: Luiz deveria se mudar não apenas para
Porto Alegre, mas para a casa do empresário. Sua única obrigação
seria com Janice, se ela precisasse. E pelo incômodo relativo à
mudança ainda teria um bônus em dinheiro, além do salário.
Luiz achou a proposta um tanto absurda, mas em seguida
cou intrigado. Pediu uma conversa franca, sabia que não era
um dos mais classicados médicos do país. Sentia que havia algo
de estranho na história, ilícito talvez, e não estava disposto a ir
para a cadeia por qualquer valor que fosse. Valter o olhou por
uns segundos, e mudou o tom da conversa. Acendeu um cigarro,
bebeu um gole de café e disse:
– O senhor não foi selecionado apenas por ser médico,
embora isso seja um plus, denitivamente. Foi escolhido por um
artigo seu que li no qual o senhor menciona ser um crente nos
antigos mitos amazonenses. Reli diversas vezes, e considero um
dos melhores já escritos.
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Luiz não entendeu a menção: tinha escrito esse artigo
para uma revista obscura, onde dizia, entre outras coisas, que
a falta de instrução é o motivo de tantas superstições pelos
índios. Para provar, narrava um fato acontecido ainda quandocriança, quando um tio seu entrou no rio e morreu afogado. A
tribo culpou seres sobrenaturais, quando o mais provável era
que seu tio estava alcoolizado e morreu por acidente. Há tempos
não tocava no assunto, pois muitos diziam que havia uma grande
ambiguidade no artigo. Luiz mencionava ter visto uma mulher ao
longe, que de braços abertos chamava o tio. Mas não dizia ser
fruto da imaginação de uma criança ou uma visão sobrenatural.
Há muito se esquecera do artigo, até ser desenterrado por Valter.
– O senhor me faz viajar mais de 3.000 km e cita um
artigo que já me trouxe dissabores. Veja bem, sou um médico,
há muito abandonei a ignorância que tinha antes de estudar.
Não tenho interesse numa mudança, e não vejo o que poderia
fazer de diferente que qualquer outro médico aqui mesmo de
sua cidade não pudesse fazer. Agradeço-lhe o convite, mas devo
recusar. Agora, se me dá licença...
– O senhor nunca se perguntou se ela realmente existe?
– Ela quem? – pela primeira vez Luiz sentiu que talvez a
viagem tivesse sido um erro.
– Não importa. Antes de o senhor partir, deixe eu lhe
mostrar uma coisa. Não queria chegar a esse ponto, achei que
poderíamos acertar isso com mais facilidade. Quero sua opinião
sobre um assunto e lhe deixo em paz. O senhor se importa?
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– Opinião sobre o que? – estava visivelmente irritado e
queria sair logo dali.
Valter saiu em silêncio, o que fez Luiz car ainda mais
incomodado. Começou a pensar que o homem era mentalmentedesequilibrado, e pensou se devia temer pela própria segurança.
Além disso, a mulher era provavelmente mimada por um rico
marido acostumado a comprar tudo. Mesmo que aceitasse
a oferta não se imaginava trabalhando para alguém assim.
Depositou a xícara de café numa mesinha quando percebeu que
Valter tinha voltado. E não estava sozinho.
– Senhor Luiz, lhe apresento Janice, minha esposa.
Luiz cou intimidado pela bela mulher que entrou.
Estendeu a mão, gesto que ela não revidou. Era morena, cabelos
compridos, realmente bela, mas não simpática. Aliás, não sorriu
nem disse coisa alguma. Valter quebrou o silêncio.
– Senhor Luiz, eu a conheci há 45 anos, quando fazia
uma pescaria no Rio Xingu. Ela podia ter me afogado, mas por
algum motivo me pediu pra cuidar dela. E eu venho fazendo isso
desde então.
Luiz não ouviu o que ele disse. Estava fascinado por
aquela mulher. Percebeu que seus longos cabelos se mexiam,
como se fossem pequenas serpentes. Valter o cutucou no peito.
– O senhor não sabe, mas já a conheceu. E ela se lembra
do senhor.
Luiz acordou do transe e num ímpeto quis sair. Ambos
estavam um pouco a sua frente, entre a porta, e se deteve
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pensando como faria para passar por eles.
– Essa é a Iara, embora atualmente prera ser chamada
de Janice. Ela quer que o senhor cuide dela, e seu conhecimento
como médico e índio pode lhe ajudar a ser melhor do eu.Um misto de confusão e surpresa o atingiu, e tentou
sair correndo, mas um empurrão brusco de Valter o jogou
contra a cadeira. Luiz instintivamente pegou um peso de papel
na escrivaninha e se preparou para se defender, quando a
mulher começou a cantar. Primeiro, o peso lhe caiu das mãos,
e lentamente uma sensação de torpor e bem-estar foi tomando
conta do seu corpo. Valter chorava, embriagado pelos efeitos
de tantos anos ouvindo a Iara cantar. E Luiz, que já não sentia
mais nada, lembrou-se daquela música ouvida quando era uma
criança, e agora sua única vontade era car ali e nunca mais partir.
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A PEDRA VERDE DAS ICAMIABAS
J. L. Costa
Eram brancas e altas, tinham longos cabelos trançados e enrolados
na cabeça, eram muito robustas e estavam nuas, com as partes
íntimas cobertas, lutando tanto quanto dez índios homens.
Frei Gaspar de Carvajal, séc. XVI
— Nikola Tesla e Percy Fawcett? Isso não faz sentido,
Belchior.
— Estamos em 1954, Noah. E, pasme: negócios ainda
são negócios. Agora reme.
Cortavam caminho pelas jaçanãs que, em época de
polinização, banhavam o Rio Nhamundá com suas ores cor-de-
rosa. Belchior empunhava — e mirava o vazio ora ou outra — seu
Winchester 44, herança de família. Noah se agarrava aos remos.
Da oresta que, sombria, se apresentava a eles nas margens do
rio, podia-se ouvir o canto do uirapuru e o cheiro adocicado das
frutas tropicais, mas, das amazonas, nem sinal.
— Preciso de uma arma também — disse Noah.
— Não. Você precisa remar — disse Belchior. — E se
apresse. Não queremos estar tão vulneráveis nesse barco ao
anoitecer. Temos de chegar logo ao nosso destino. Sua alma está
segura em minhas mãos, Noah. Sou seu guia e seu guarda-costas.
— É isso o que me preocupa. Você nunca disparou um
rie. Na verdade, não me lembro de você ter pegado em armas
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alguma vez na vida.
— Enquanto você estava ertando com as francesas
em Paris (com a velha desculpa do gosto pelo estudo), eu cuidei
de fazer algo mais útil. Participei de alguns clubes de caça que opapai me indicou. Se quer saber, em Minas Gerais, há um retrato
meu em algum deles. Participei de uma competição de tiro e,
bem, não fui tão mal. Recebi um prêmio por distinção inesperada.
Aquilo, de alguma forma, não havia acalmado os ares de
Noah. Talvez os igapós ao seu redor o intimidassem o bastante
para que seu organismo evitasse sair do estado de alerta. Bruto,
com raiva, forçou os remos contra as águas escuras do Rio
Nhamundá e acelerou a canoa. Cravou os olhos em Belchior —
ele parecia estar prestes a matar algo ou alguém escondido nas
folhagens que margeavam o rio.
— Belchior?
Ele baixou a arma.
— Diga, Noah.
— Você não é o guia. E você sabe disso.
— Talvez. Mas Colombo também tinha uma bússola.
Eram jovens, ainda idealistas, um mais que o outro. Era
provável que, se assim não fossem, não estariam ali. Na verdade,
para Noah, não deveriam estar. Belchior ao menos tinha barba,
botas de couro melhores que as suas e um rie. E Noah? Talvez
pudesse dizer a si mesmo que dispunha de dois perigosos e
mortíferos remos de uma canoa roubada — mas ocialmente
emprestada de um velho ranzinza do porto. Tudo isso para quê?
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Para seguir os sonhos malucos de seu irmão, o primogênito, o
experiente, o responsável... e o mais burro. Ganância tinha limite.
E, quando você passa a acreditar numa bússola mágica, bem, o
limite já foi ultrapassado há séculos.— Posso dar mais uma olhada?
— Você precisa remar. Reme, irmão. Reme.
Noah largou os remos. A canoa parou.
— Belchior — disse Noah, em tom grave. — Se vou
morrer por algo estúpido, eu exijo saber pelo menos mais
detalhes dessa estupidez.
— Primeiro, você não vai morrer. E, segundo, as
amazonas não são estúpidas, Noah. As francesas podem até ser.
Mas não as guerreiras amazonas de Heródoto. Você sabia que o
próprio Hércules já enfrentou uma delas?
— Você fala de seres imaginários como se fossem
mesmo reais.
Belchior riu.
— Noah, se você não acreditasse nisso tanto quanto eu,
por que estaria aqui comigo, navegando num dos rios obscuros
das narrações de Carvajal sobre sua odisseia, no meio de uma
oresta tropical, em busca de um tesouro hipotético de uma
civilização ainda mais hipotética?
— Eu não sei — foi tudo o que Noah conseguiu responder.
— Ora, pois! Então reme.
— Eu quero ver a bússola. E a pedra também.
— Você sabe que os dois só trabalham em conjunto.
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— Mostre-os logo de uma vez!
— Tudo bem, tudo bem. Não há razões para gritar.
Aliás, é melhor que não grite mesmo — sua voz cou ainda mais
sarcástica. — Não sabemos se ainda existem índios nessa região.E muito menos se são canibais.
— Não sei como papai aguenta você...
Belchior, então, largou a arma no casco da canoa. De um
dos bolsos, pegou o que parecia ser uma bússola comum, mas
sem a típica agulha magnética. Depois, de seu pescoço, tirou um
colar com uma pequena pedra verde e irregular como pingente.
Em seguida, estendeu suas mãos na direção de seu irmão.
— Noah, Noah... — disse ele, recuando — Estou de olho
em você. Há um motivo muito claro que para eu que com isso
e com a arma de vovô. Você é o único aqui que poderia colocar
tudo a perder. Se, por acaso, você enlouquecer e jogar nosso
único mapa nesse rio, vou fazer questão de te ensinar a nadar. E
no meio de jacarés.
— Muito engraçado, Belchior. Muito engraçado. — E,
pondo enm as mãos na pedra e na bússola, continuou: — Agora
me conte, que relação Nikola Tesla, um físico sérvio-americano,
tinha com Percy Fawcett, um explorador britânico louco que foi
morto por índios?
Belchior coçou a barba.
— A mesma, irmão, que esse misterioso Fawcett tinha
com a Rainha Vitória. Ou com o MI6, o serviço secreto inglês. Eu já
te disse. Esse louco não era tão louco assim. Tinha bons contatos
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e muita coragem. Sim, tudo bem, ele teve o azar de não ser tão
bem recebido pela tribo dos kalapalos, mas o que realmente
importa é o que ele foi fazer em Mato Grosso.
— El Dorado.— Sim, ele era queria encontrar a mitológica Cidade de
Ouro. E, como sabemos, ele tinha quem patrocinasse essa busca.
Mas, ao contrário do que se pensa, ele não era tão intuitivo.
— Ele tinha um mapa.
— O mesmo que você segura agora.
Anoitecia. De tão calmas que estavam, as águas pareciam
um espelho, reetindo a espessa ora ao redor. Mergulhada no
Rio Nhamundá, a oresta espelhada parecia tão real quando a
original.
— Ele, Fawcett — prosseguiu Belchior —, descobriu a
pedra-chave ao acaso, numa de suas expedições seguindo o Rio
Negro, na Amazônia.
— Não consigo acreditar que ele encontrou, por sorte,
o esqueleto de um aventureiro espanhol caolho do século XVI.
— Você não precisa acreditar. O fato é que isso
aconteceu. Mas, bem, ele não encontrou o esqueleto de Francisco
de Orellana. Só o crânio, na verdade. Lá estava, na cavidade do
olho esquerdo, um muiraquitã real, feito por uma das icamiabas,
como caram conhecidas as amazonas na América do Sul. Aquele
idiota do Orellana escondia uma chave extradimensional no olho
e nunca se deu conta. Deve ter guardado como troféu, depois
que enfrentou as echas das icamiabas numa de suas incursões.
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Noah agora olhava para a minúscula pedra verde que
segurava.
— E o que você faz para isso funcionar?
— Você me chamaria de bruxo se soubesse. Ou, nomínimo, permaneceria cético.
— Belchior, você me trouxe até aqui e narrou uma
história digna de Monteiro Lobato. Já está na hora de revelar
seus segredos. Ou está com medo de comprovar sua insanidade?
A noite, enm, havia chegado. As jaçanãs, estrelas da
água, davam lugar às do céu.
Belchior suspirou.
— Erga o muiraquitã sobre a bússola — e, nas primeiras
palavras, já sentiu o semblante fechado do irmão mais novo. —
É um sistema eletromagnético, Noah. Aparentemente, Tesla de
fato já estudava portais para outras dimensões. Percy Fawcett
foi um instrumento perfeito.
— Estamos na Amazônia. Por que Fawcett foi para o
Mato Grosso?
— Pelo que pesquisei, esses portais são como ranhuras
xas no tecido da realidade, fendas dimensionais, mas que se
abrem aleatoriamente pelo globo. É um conceito muito abstrato,
mas real. Há quase uma década atrás, em 1945, a própria marinha
norte-americana perdeu cinco aviões numa dessas fendas, numa
região que vem sendo denominada de Triângulo das Bermudas.
Antes, com Fawcett, o muiraquitã apontava para o Mato Grosso.
Agora, conosco, nos guiou para cá. E, antes que pergunte, é
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óbvio que a bússola não foi dada a mim pelo próprio Tesla. Ah! E
foi adquirida legalmente, mas num comércio restrito.
— Papai disse que você anda mexendo com ocultismo.
É verdade?— Erga o muiraquitã, Noah! As guerreiras amazonas
estão prestes a nos revelar nada menos que El Dorado e toda a
riqueza e glória do mundo, e você ca aí, brincando de Sherlock
Holmes. Aliás, sabia que Fawcett era amigo de Conan Doyle?
Por alguma razão, Noah não se mexeu.
— Noah? — disse Belchior, sem resposta. — Se não vai
usar a bússola, devolva.
— Não.
Por perto, um peixe parecia ter saltado. Na copa das
árvores, pequenos olhos agravam uma inquietude na harmonia
da oresta. Vagalumes, aqui e ali, surgiam e sumiam na escuridão.
— Noah — Belchior estava ofegante —, não brinque
comigo.
Abaixou-se, devagar. Empunhava novamente o
Winchester 44.
— Vai me matar? — disse Noah.
— É apenas um incentivo. Uma brincadeira também. Erga
o muiraquitã sobre a bússola e veja que estou lúcido e falando a
verdade. Amanhã, estaremos rindo disso tudo, Noah, mas ricos.
— E se não funcionar?
— Faça o que eu disse! — sua arma já estava apontada
para o rosto de Noah.
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Estava quase tão claro quanto o dia. A lua e as constelações
iluminavam os rostos dos dois irmãos. Noah estava tenso. Ergueu o
colar e o posicionou acima da bússola de Belchior. Nada aconteceu.
Belchior estava pálido.— O que você fez, Noah? Isso... Isso deveria se mover!
Devolva-me.
— Vamos para casa, Belchior.
— Cale-se! Ninguém vai voltar até eu ver diamantes
jorrando de uma cachoeira!
A arma continuava apontada para Noah. Ele estendeu o
braço. Segurava o colar. O muiraquitã prestes a afundar na oresta
espelhada do Rio Nhamundá.
— Não se atreva a fazer isso, Noah!
Dedos se abriram. Um estrondo irrompeu o silêncio da
noite.
Um corpo caiu. Uma pedra afundou.
Belchior saltou nas águas. Mergulhou, cada vez mais
fundo. Devia salvar o muiraquitã. Estava sem ar, tonto, mas tinha
de tentar! Braçadas mais largas, olhar mais atento nas águas turvas
do rio.
De repente, algo ofuscou ainda mais sua visão.
Via, quase podia tocar, pirâmides inteiras de ouro. Ruas
ladrilhadas com rubis. Ocas decoradas com jade. Ao seu redor,
mulheres nuas nadavam. Apontavam para uma cachoeira.
De diamantes.
Mas isso Belchior não conseguiu ver.
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GUARDIÕES
Francélia Pereira
Um vento forte levanta as folhas caídas na oresta e faz
com que as copas das árvores dancem freneticamente. Um grupo
de homens corre entre a vegetação, eles estão desesperados,
gritando... O pânico parece mortal, eles sentem que o medo seria
suciente para fazer seus corações pararem, mas a adrenalina
liberada por seus corpos os impede de cair no chão, e eles
correm, correm, correm... Eliminando, sem perceber, todos os
obstáculos que aparecem; e quando algum deles cai, é pisoteado
pelo grupo ensandecido. E o vento sopra, cada vez mais forte...
Eles não imaginavam o que estava para acontecer quando saíram
da fazenda, na manhã daquele dia.
O motor do velho caminhão começa a roncar, os homens
já estão acomodados na carroceria, todos armados. Quando o
veículo começa a partir, um homem chega correndo, com seu
rie nas costas; os colegas o ajudam a subir e o motorista acelera
no chão de terra vermelha, úmida.
— Diacho, homi. Ocê tá sempre atrasado. Uma hora o
Coroné te manda embora...
— Disculpa, Zé!
— Num sei o quê minha irmã viu nocê, Rudrigo.
José, o Zé, era um homem de aproximadamente
quarenta anos, era capataz na fazenda de Henrique, chamado
de Coronel por seus funcionários, há quase vinte anos; a pedido
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da irmã conseguiu o emprego para o cunhado, o Rodrigo, que
era bem jovem e havia se casado recentemente. Grande parte
da população daquela região era de descendentes de indígenas
tradicionais, que tinham se perdido de suas raízes ancestraishá algumas gerações. Agora eram vistos como “brancos”,
denominação utilizada para diferenciar as pessoas que não
viviam de acordo com as tradições da terra.
O caminhão segue por uma estrada precária, após pouco
mais de uma hora, ele entra em um caminho aberto no mato e
para na entrada da Floresta. O motorista e os caronas abrem as
portas; os homens da carroceria começam a descer aos saltos.
Quando saltam do veículo, suas botas esmagam a vegetação
rasteira que se mistura com a terra molhada. Uma chuva na cai.
— Ei, vamos... Não temos o dia todo. — O líder do
grupo diz em tom ameaçador. Era o Geraldo, um dos homens de
conança do Coronel.
Os homens entram na oresta e seguem andando de
vagar, sempre atentos, como se estivessem perto de acuar um
animal feroz. Parecia uma caçada... E era.
De repente, algumas folhas se mexem. Geraldo pede
silêncio. Um dos homens fala baixo perto do ouvido dele.
— Eles já sabem que estamos aqui... Vamos embora...
Geraldo olha para o homem com uma expressão
ameaçadora, então continua seguindo em frente, bem de vagar
e, sem olhar para trás, faz sinal para que todos o sigam.
Os homens caminham apreensivos, Rodrigo é um dos
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com os cabelos deles. Enquanto o grupo segue em frente, o
homem olha para trás e não acredita no que vê. Instintivamente
ele começa a correr desesperado. Ele empurra os homens à sua
frente, querendo passagem. Quando esbarra em um deles éjogado no chão.
— Tá maluco, homi!
— Vamos morrer...
— Que morrer o quê...
Outro homem olha para trás.
— Virge! A muié tava certa, o demônio ixiste mermo...
Todos olham para o que estava se aproximando. Era
algo sobrenatural. Um redemoinho enorme dentro da oresta,
mas que não atingia a vegetação. Parecia um fantasma girando
e girando, mas somente um vento moderado era sentido pela
Natureza ao redor dele. Raios começaram a faiscar e dois olhos
ameaçadores puderam ser vistos por trás dos ventos ferozes.
Os homens gritam e começam a fugir desesperados. Geraldo
segue à frente, e quando olha para trás pode ver o redemoinho
engolindo um dos homens e cuspindo para todos os cantos seus
pedaços dilacerados. O terror quase congela suas pernas.
O furacão se divide, e parece direcionar os homens
para o mesmo lugar. O grupo se junta novamente, e o furacão
desaparece. Os homens se aproximam, ofegantes, aterrorizados.
Sentem-se como presas acuadas, perto de receber o golpe nal.
Então as copas das árvores começam a dançar novamente e as
folhas no chão começam a se levantar.
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— Ele tá voltando... Ele tá voltando! — Um homem diz
enquanto chora.
A intensidade do vento começa a aumentar, os homens
começam a correr novamente, mas agora o pânico que tomavaconta de seus corpos era muito maior. O furacão parecia estar se
divertindo com o desespero daqueles homens.
Eles então saem atropelando tudo que encontram
pelo caminho, se machucam em galhos, espinhos e quem se
desequilibra acaba morrendo pisoteado pelo grupo. O furacão
não aparece, aquele vento soprando aos seus ouvidos já era
suciente para congelar seus corações. Medo, o mais intenso
medo era o que todos sentiam. Nada da valentia e coragem de
antes, nada das certezas que carregavam restou. Suas armas
de nada mais valiam. Estavam sós, sem proteção, sem força;
estavam totalmente a mercê da Natureza e de seus mistérios.
Aqueles homens puderam sentir da forma mais dramática
possível a inutilidade de suas existências. E eles continuavam
correndo, enquanto a oresta ia escurecendo.
Após horas correndo sem parar, sem pensar, o efeito
da adrenalina passa e os homens não conseguem mais seguir
em frente. Um por um, eles vão caindo, exaustos, no chão da
oresta. Eles se arrastam para carem mais próximos uns dos
outros.
— Era só o vento...
Um deles diz, totalmente cansado e ofegante. Os
homens começam a rir.
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— Era só o vento...
Outro homem repete e as gargalhadas aumentam.
Quando param de rir, começam a chorar.
— Não vamos sobreviver... — Um homem diz chorando.Geraldo não diz nada. Está em estado de choque. Os
homens estão quase adormecendo, extremamente fracos; era
como se a oresta houvesse roubado toda a energia vital de seus
corpos. Então um homem sai de trás da vegetação. Era um homem
bem alto, forte, de pele vermelha; seus cabelos eram negros e
compridos. Seu corpo estava coberto por pinturas corporais. Ele
usava um amuleto no pescoço. Era um homem jovem, muito belo,
parecia uma divindade. Ele começa a caminhar entre os homens,
observando-os. Os homens não o temem. O jovem para no meio
daqueles homens deitados, inertes no chão. Ele então solta uma
gargalhada sinistra.
— Vocês são uma piada. Me diverti muito assistindo
vocês fugirem assustados pela oresta.
Ele se aproxima de Geraldo, se abaixa e diz ironicamente.
— O mocinho tem medo de ventinho...
O jovem diz e sopra a testa de Geraldo, ele morre
instantaneamente. O terror volta a tomar conta dos homens. O
jovem se levanta.
— Não se preocupem, não farei o mesmo com vocês.
Ah! A propósito, sou Kambaí².
²Segundo Olívio Jekupé, autor de O Saci Verdadeiro, o Saci original se chama Kambaí, emguarani, e Jaci Pererê, em tupi. No mito original ele é um garoto indígena. (Nota da Autora)
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82
Ele olha para um dos homens.
— Pelo visto, vocês nunca ouviram falar de mim; talvez
me conheçam pelo nome Saci que, como podem ver, não me
representa.Kambaí continua andando entre os homens enquanto
fala.
— Então vocês gostam de derrubar árvores e queimar
aldeias, certo?
Kambaí olha para três homens.
— Certo?
— Não, senhor!
Os homens respondem desesperados.
— Hum... Se não gostam, então por que fazem essas
coisas?
Ninguém responde.
— Sem resposta... Como já imaginava!
Kambaí olha mais uma vez para os homens.
— Vocês estão muito fracos, cansados, extremamente
assustados... — Kambaí diz com um sorriso sarcástico. — Decidi
que vou deixá-los viver. — Kambaí segue andando enquanto
fala. — Durmam... Ao amanhecer se sentirão melhor!
Kambaí desaparece no breu da oresta. Os homens
adormecem.
Bem longe dali, o pajé da aldeia incendiada sai de
seu transe. Os homens já haviam preparado a clareira para
construírem uma nova aldeia.
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— Obrigado, pajé!
O cacique agradece pela proteção que receberam. O
pajé sorri.
— Sempre podemos recorrer aos Guardiões da Floresta.Na manhã seguinte, um grupo de madeireiros encontra
o que restou dos corpos dos funcionários de Henrique. Haviam
servido de alimento para os animais noturnos.
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NO CORAÇÃO DA SELVA
Alfredo Alvarenga
Nas profundezas da oresta Amazônica ainda existem
recantos ocultos até os dias de hoje, com segredos envoltos
em uma bruma de mistérios. Tribos indígenas desconhecidas,
animais não catalogados, lendas e mitos que permanecem vivos
em meio à mata. Alguns; porém, ignoram os avisos e se arriscam
perambulando por terras de segredos antigos, onde o folclore é
vivo e pulsante.
Martim era justamente um destes que desaavam os
alertas. Estudante de Biologia, fora com colegas, do Sudeste, para
uma trilha ecológica, na Amazônia, com o objetivo de acampar,
na oresta, e desbravar os segredos da selva, em uma área ainda
intocada pela civilização. Os habitantes, da cidade mais próxima,
na qual haviam se hospedado, conheciam a região, e advertiram
o grupo, sobre o local em que iriam se aventurar. Pois, com suas
superstições e crendices populares, viam aquelas matas como
assombradas; todavia, os jovens estudantes se recusaram a crer
em causos folclóricos; anal, apesar de ecologistas, eram futuros
cientistas, com mentes céticas e que só acreditavam no que
pudessem ver, medir e estudar.
Após algumas horas de caminhada, no entanto, Martim,
que não era acostumado a exercícios físicos, cou para trás do
grupo. Seguiu pela trilha até que não mais conseguiu localizar
nenhum dos companheiros de estudos, e se descobriu perdido
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em meio à selva. Chamou pelos outros, mas não obteve resposta,
seu celular não tinha sinal e não sabia por onde seguir, pois não
havia uma trilha clara em meio às árvores. Assim, não havia
alternativa, a não ser embrenhar-se no seio da oresta, gritando,em vão, pelos amigos. A selva que tanto sonhara era um inferno
verde.
Era pouco mais de meio-dia, encontrava-se sozinho
em meio à mata, ouvindo o zumbido dos mosquitos que lhe
devoravam vivo... O calor era quase pungente e a sede castigava.
Tinha por companhia apenas o canto das aves durante sua jornada.
O povoado mais próximo cava há quilômetros, precisava achar
uma fonte de água e um caminho de volta. O desespero já se fazia
presente, quando um som, de súbito, chamou sua atenção. Era o
som de água corrente, uindo em algum lugar à frente. Caminhou,
naquela direção, com a alma enchendo-se de esperança, e seus
olhos foram presenteados com a esplêndida visão de um lago de
águas cristalinas, que era alimentado por uma queda d’água que
vertia por entre rochas. Algumas ores tropicais pontilhavam às
margens do lago com uma miríade de cores vibrantes.
Esqueceu-se de seus temores e se despiu. Correu até as
águas; detendo-se, porém, na margem, ao ouvir o belo som de
risos femininos. Tomado por certo pudor, voltou, apanhou sua
bermuda e a vestiu, novamente. Perguntou assustado:
– Tem alguém aqui?
Tudo voltou ao silêncio. Hesitante, decidiu mergulhar
sem tirar as roupas. Sentiu o frescor que a água continha inebriá-
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lo de alegria. Então, novamente, ouviu o mesmo riso delicado.
Martim olhou ao redor sobressaltado e viu escondida atrás
de uma árvore nas margens opostas, uma bela jovem de pele
morena.– Olá, moça! Tudo bem? Eu te assustei? – Estava
envergonhado, temendo ter sido apanhado nu, segundos antes,
pela desconhecida.
Ela apenas sorriu tímida, correndo para trás de outra
árvore. Martim, feliz, com aquela presença, que podia lhe conduzir
de volta à cidade, deu a volta, no lago e se aproximou da garota.
Viu, então, que se tratava de uma bela índia. Não imaginava
que houvesse uma aldeia por ali. A gura que se escondia por
entre as árvores era quase divina, tamanho o esplendor de suas
formas, como as índias dos contos românticos, como a Iracema,
de José de Alencar, ou talvez até mais bela... Nua, magra e com
a tez morena avermelhada, e corpo formoso, feições delicadas;
mas, ao mesmo tempo, madura, um nariz perfeito e com olhos
negros profundos e misteriosos... E um lindo sorriso em uma
boca, talvez também doce como o mel... Os cabelos negros e
lisos desciam até a cintura, tendo uma franja à frente dos olhos.
O paulista nunca imaginou encontrar uma índia de
tamanha beleza. Já vira muito descendente de índios, mas todos
vestidos com roupas modernas e indistinguíveis de qualquer
outro brasileiro. Mas esta a sua frente era diferente. Estava nua,
como uma “Vênus” tropical, com o corpo pintado em tons de
vermelho e negro, usando adornos de penas, como uma índia do
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século XVI deveria parecer, quando vista por olhos europeus pela
primeira vez.
– Você é uma índia? Você fala o português? – Apesar da
doçura da garota a sua frente, havia em Martim o receio de queela não estivesse sozinha. Lembra-se de histórias sobre tribos
que não tinham ainda contato com a civilização e outros grupos
de índios hostis, embora julgasse que seria impossível haver
tribos selvagens tão próximas de uma cidade.
Ela apenas sorriu à sua pergunta, de modo meigo. Estava
visivelmente curiosa a cerca do estranho e, mesmo escondida, ela
o tava atentamente e com visível estranhamento e admiração.
– Como é seu nome, menina? – Insistia em se comunicar.
– Tem quantos anos? Você está sozinha?
Ela nada respondia, apenas ria e olhava atenta e
curiosamente para Martim, jovem branco queimado de sol,
mestiço de italiano com espanhol. Era como se a pequena não
entendesse o que ele lhe dizia, como se o idioma português lhe
fosse desconhecido. Martim começava a acreditar que, apesar
de impossível e paradoxal, aquela garota índia poderia pertencer
a alguma tribo isolada e nômade, que deu sorte de nunca ter tido
contato com a civilização.
– Eu vou te machucar, garota... Eu vou te matar, agora! –
disse sorrindo e calmo, para conrmar sua teoria... E estava certo,
pois a índia apenas sorriu feliz, em resposta a sua falsa ameaça,
ou seja, ela não compreendera suas palavras.
Ele se aproximou, agora, com curiosidade cientíca,
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sorrindo amigavelmente, quando ela saiu de trás da árvore,
cando a sua frente, com toda a sua esplêndida beleza. O jovem
não teve reação diante de tal situação; apenas a tou e sorriu. A
índia retribuiu o sorriso como uma or que se abre perante o solda manhã, olhando profundamente para os olhos do paulista e
posicionando sua face mais próxima da do rapaz... E beijando-
lhe na boca de maneira meiga e carinhosa, selando os lábios com
amor. Saiu correndo, então, após o ósculo, escondendo-se atrás
de outra árvore, tomada de vergonha.
Sem entender o porquê do beijo e se recordando de algo
que ouvira sobre os índios desconhecerem o hábito europeu
do beijo, o estudante cou atônito. Voltou-se para a direção da
bela índia de longos cabelos negros, sentindo algo estranho no
coração. Caminhou para perto da índia, e esta correu até outra
árvore, ainda sorridente. O riso dela era fantástico e lindo como
o canto das aves.
– E, agora, o que você faz Martim – pensou em voz alta,
mantendo o sorriso amigável, e tentando processar tudo o que
ocorria.
A bela índia, então, parou de sorrir, e começou a cantar,
com uma voz doce, esplêndida e magistral. Cantava, à capela,
cantigas indígenas, e caminhava por entre as árvores, tando
furtivamente o estranho homem, seduzindo-o com sua bela
voz, e com a doçura de sua beleza primitiva e aparentemente
inocente.
Martim se sentia atraído pela bela índia, inebriado
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perante tal beleza, seguindo-a em sua caminhada ao redor do
lago. Aquela voz, naquela bela e jovem mulher, era a melhor
cena que ele já tivera em vida. Os olhos negros e profundos
seduziriam qualquer alma neste mundo. Naquele instante, achouentender as impressões que os primeiros portugueses tiveram a
se defrontarem com as primeiras mulheres do novo mundo.
A índia, mais uma vez, aproximou-se do paulista, beijando-
lhe a face e, em seguida, nos lábios, sempre prosseguindo com
a canção... Dançando ao redor de Martim... Mas, agora, também
lhe abraçando, para em seguida correr, e continuar a cantar. Os
pássaros silenciavam ao canto da bela índia. A natureza se calava
para ouvir suas melodias. Martim estava embriagado por aquela
voz e por aquele rosto, hipnotizado por aquele canto. Sentia a
paixão pulsando pela garota indígena.
Ela, mais uma vez, aproximava-se de Martim e, agora,
beijando-lhe ardentemente na boca, um beijo visivelmente
apaixonado. Em seguida ao beijo, mergulhou no lago, onde,
ainda cantando, nadou e se banhou nas águas frescas do olho
d’água. Seus cabelos molhados desciam por seu corpo, e seu
canto agora, convidava o forasteiro a se banhar nas águas.
Martim adentrou a lagoa. Estranho... Pensou ter visto
um grande peixe junto à índia, mas não deu atenção ao fato,
pois estava apaixonado por aquela joia das selvas. Um amor
repentino, relâmpago que lhe turvava toda a razão, como nunca
lhe ocorrera antes. A garota, com sua voz melodiosa, então,
dirigiu-lhe as palavras, pela primeira vez, de forma lenta, em
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uma frase da qual Martim nada entendeu, apesar de amar tê-las
ouvido.
– Landê abá sui ocara açu, rokéra Yara. Iguaçu icó nde
oca... Iguaçu icó nde igaçaba...³A índia nadou até perto do paulista e o envolveu a terno
abraço. Enfeitiçado por tamanha tanta beleza, Martim, também
abriu os seus braços para a bela mulher. Os lábios ardentes da
selvagem lhe entregaram outro ósculo de amor, fazendo-o lhe
faltar o ar, seus braços femininos o agarraram com mais força, e
ela o puxou para dentro da água. Sem reação, atordoado diante
do amor, Martim deixou-se ser puxado, para o profundo lago,
no qual aquela ninfa das águas mergulhava, levando consigo
um curioso forasteiro. Agora, nos braços da senhora das águas,
Martim encontrou a Amazônia que, no fundo, sempre sonhava
conhecer. Com seus mistérios vivos a serem revelados...
Das profundezas daquele olho d’água, saía apenas uma
bela cantiga que, de longe, atraia, inconscientemente, os homens
para nos braços de Yara morrer.
³Você homem da aldeia grande, dormirá com Yara. A lagoa será tua casa... A lagoaserá teu túmulo. (Nota do Autor)
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OS DOIS DEUSES E O SENHOR DA TRAVESSURA
V. M. Gonçalves
Sob a luz difusa do entardecer, Shkuí nasceu de um broto
deformado que inchou até arrebentar para fora do caule. Nasceu
já inteiro, mas pequeno, capaz de andar e de fazer tudo que um
trique4 saltador adulto podia fazer, embora ainda não pudesse
causar tanto estrago. Saltou do chão e começou a se lamber para
lavar de si a gosma do broto que o havia incubado.
Era menor que um ratão-do-banhado ainda, mas cresceria
mais até o m da noite. Tinha um corpo extremamente delgado,
de membros compridos, com cotovelos e joelhos que pareciam
nós de madeira. Sua pele tinha a textura de carvão vegetal, cinza,
negra, branca ou marrom, dependendo da região, quebradiça,
ressecada e farelenta. Nascido de um broto beijado pelo fogo,
como todos os triques saltadores, não possuía umbigo nem
órgãos genitais. Seu rosto era uma coisa plana, sem nariz nem
orelhas, com buracos assimétricos onde deveriam haver olhos e
uma boca sem lábios. O topo da cabeça era como uma panela.
Através das quatro aberturas aparecia o fogo em seu interior,
ainda tímido.
O fogo que dá a vida é o fogo que destrói. O fogo
guiava seu instinto, o desejo que todo trique saltador sentia de
4O termo trique é uma referência ao “Saci-Trique”, termo obscuro associado a uma dasformas do personagem conhecido como Saci Pererê. Também pode ser interpretadocomo uma referência ao termo inglês trickster, utilizado por teóricos das religiões paraser referir a divindades matreiras, como o nórdico Loki e a grega Eris. (Nota do Autor)
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viver intensamente por um breve período de tempo, queimar e
destruir: como fogo. Empolgado, ele se empertigou.
— Shkuí ! Esse é meu nome, não é, Pai do Carvão? Shkuí!
Posso ver porque me trouxe a este mundo. É tudo tão verde, tãoazul e tão, tããão tedioso!
Shkuí gargalhou e disparou pelo campo a uma velocidade
estonteante. À medida que saltava seu corpo ganhava estatura
e seu fogo interior aumentava. Logo, as labaredas saltavam
para fora de seus olhos, de sua bocarra e de sua cabeça oca. As
chamas saíam dele como uma cabeleira sinistra ou um longo
gorro incandescente.
Sua gargalhada estridente perfurou a noite jovem.
Por onde ele passava, a desgraça vinha logo atrás: incêndios
repentinos, ovos trocados nos ninhos, macacos enroscados nos
cipós. Um jaguar, que saltava para atacar um preá, viu passar o
clarão nefasto; quando caiu e mordeu, quase quebrou os caninos:
o trique substituíra sua presa por uma pedra do mesmo tamanho
e da mesma cor.
— Trique! Trique! — O grito ecoava pelo dossel verde da
mata. Eram as araras, que tudo viam, soando o alarme: — Trique
de fogo à solta!
O Moleque acordou desesperado.
— Maldição — praguejou ele. — Maldição!
O Senhor das Feras, que também era conhecido como
Moleque, havia sido homem um dia. No passado, pertencera ao povo
da Mata Nova. Mas o passado era passado. Quando foi possuído
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pela loucura dos espíritos, condenou-se ao cárcere das árvores, a
guardar as vidas que ali residiam de forças externas. Ali tornou-se
rei, e os animais eram seus súditos. Ali tornou-se deus da Terra.
Seu inimigo mais frequente era o Rei Água, um xamã quecontrolava os espíritos aquáticos e atormentava as pessoas da
região. Além deste rival, confrontava caçadores inescrupulosos
que matavam fêmeas prenhes e animais muito jovens ou que
matavam animas para retirar apenas uma parte, deixando a
carcaça às moscas.
Àquela altura, os caçadores do Ermo já eram mais
cautelosos e o Rei Água evitava chamar atenção para si, ofendendo
abertamente seu rival da Terra. Assim, se havia inimigos capazes
de infernizar o domínio do Moleque com frequência alarmante,
eram os triques. Eles apareciam toda primavera, ninguém sabia
como ou porque, e era muito difícil controlá-los. Felizmente, eles
morriam rápido: os mais longevos duravam três ou quatro dias
antes de queimarem completamente de dentro para fora; quase
sempre duravam bem menos.
Mas, ao longo de sua curta existência, um trique podia
causar muitos danos.
O Senhor das Feras assobiou e sua montaria veio até
ele: era um grande porco-do-mato de patas curtas e grossas,
coberto com uma pelagem áspera e cinzenta. O rei fazia jus
ao apelido, Moleque. Como seus ancestrais da Mata Nova, era
um homem extremamente baixo, um tanto rechonchudo, de
cabelos ruivos e eriçados, sobrancelhas fartas e pele castanha,
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coberta de manchas claras e escuras nas costas, no rosto e no
peito. Através da magia que emanava da loucura dos espíritos,
porém, seus traços se mantinham eternamente jovens e seus
pés eram deformados, com os calcanhares virados para a frente,de modo que produzia rastros confusos para qualquer inimigo
quando caminhava na oresta.
— Siga o cheiro de carvão, amigo — disse o Moleque,
saltando sobre o porco-do-mato.
— Sim, senhor! — roncou a montaria de guerra.
***
O Rei Água não era movido pelos mesmos princípios
que o Rei Terra. Ele vinha à tona quando o desejo fazia seu
corpo arder, desejo por humanas. Assim como o Moleque, ele
foi humano um dia, um curandeiro poderoso, cuja fraqueza era
a luxúria. Fartos de suas aventuras com esposas de outros, os
homens de sua aldeia o perseguiram até o rio e o amaldiçoaram.
O curandeiro usou seu poder para misturar-se aos seres da água,
enfeitiçou-os e tornou-se seu novo rei, o deus da Água.
Assumindo a forma de um boto-vermelho para viajar
pelos rios, ele emergia como um homem de grande beleza, de
pele rosada e sardenta, reluzente como a lua, usando sua beleza
exótica para seduzir as mortais. Já eram conhecidas muitas
histórias envolvendo a gura nefasta, e lho-do-boto era um
apelido comum para crianças cujo pai era desconhecido.
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O Vermelho emergira porque sabia que era uma época de
celebrações no Ermo, época de fartura de frutas e de fabricação
de vinhos, e porque era noite de lua cheia. Parou na primeira
aldeia que viu e se aprumou. Em meio à alegria das danças, dasautas e da bebedeira, conseguiu atrair uma jovem para longe da
aldeia com seu canto enigmático.
Ela viu o vulto entre as casas: um homem musculoso,
de corpo brilhante e olhos esverdeados. Seguiu-o para fora do
perímetro das casas. Ele era lindo, como os lhos da Lua, cultuada
no Ermo, a Deusa Pálida com olhos de água. Já bêbada e envolta
nos ânimos dos festejos em honra da fertilidade da Terra, a moça
se abandonou nos braços fortes e rosados do estranho.
— Você é uma estrela? — perguntou ela, abobalhada.
— Sim, sou lho da Lua — disse ele, rasgando a faixa
que segurava a tanga dela no lugar. — Percebe?
— Sim... — murmurou ela, arquejando enquanto ele
posicionava a mão entre suas pernas. — Você brilha e é tão...
quente...
O Vermelho sorriu maliciosamente e começou a acariciar
as coxas da moça. Então, um estrondo e um ruído líquido, seguido
por uma risada, interromperam seu momento de sedução.
— Aaaaargh! — gritou a jovem, quando um uxo gelado,
amarelo e aromático caiu do céu, derramando-se sobre ambos.
O ruído seguinte foi produzido pela imensa botija que
caiu no chão e se partiu. Alguém derramara uma ânfora inteira
de vinho de abacaxi fresco nos dois. Desperta do transe sedutor
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e acreditando que era tudo uma broma diabólica, a moça correu
para a aldeia.
— O Boto! — gritou, enquanto corria. — O Boto tentou
abusar de mim! O Rei Água, furioso, partiu no encalço do miserável
intrometido, o desgraçado com a ânfora de vinho. Estava certo
de que aquela fora uma travessura do velho inimigo, o Moleque,
o Rei Terra, o Senhor das Feras. O deformado sempre tenta manter
essa gente afastada de mim..., pensou ele. Pois bem, acha que isso
foi engraçado? Espere até ver o que farei com você, Pé-Virado!
Ele mergulhou no regato mais próximo, transformou-se
e partiu para a desforra. Mas ele estava no encalço do inimigo
errado e foi na direção errada. A festa foi interrompida e os
homens da aldeia fechavam suas lhas e esposas dentro das
cabanas, cientes de presença do Vermelho, enquanto Shkuí
transmutava-se em colunas rodopiantes de fumaça, entrando
pelas aberturas nos telhados, assustando crianças e adultos.
Se ele tocava em alguma vasilha ou cesto, estragava
o alimento que havia ali. Se um pedaço de carne pendurado
no teto para secar esbarrasse em seu corpo, transformava-
se imediatamente em madeira, pedra ou uma pilha de insetos.
Bastou que alguns patos domésticos topassem com ele no centro
da aldeia para que as penas soltassem de seus corpos.
O trique era cada vez mais poderoso. As vítimas humanas
começavam a parecer tediosas. O “Boto”, este era uma vítima
digna de sua atenção.
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— Lama! Bolotas! Para que me ocupar de peixinhos,
quando posso pescar algo maior?
Os aldeões cantaram louvores quando o ser de fogo
rodopiou para longe dali. A mãe da jovem que dera o alarme seexaltou.
— Menina, você não sabe a diferença entre o Boto e um
trique saltador! — ralhou a idosa. — E eu sou a curandeira da
aldeia! Tem ideia da vergonha que você me faz passar?
***
A montaria do Moleque era forte, mas não se comparava
à velocidade que o Vermelho podia adquirir em sua forma
aquática e certamente parecia patética se comparada a Shkuí,
deslocando-se aos saltos e redemoinhos. Avançando na direção
errada, o Vermelho saltou para fora da água. Meia noite já havia se
passado. O Rei Água tentou usar sua sensibilidade para detectar
algo de diferente no ar, mas nada retornava à sua percepção.
Mas havia outra celebração ali perto. Música. Bebida.
Mulheres. Maldição!
O Vermelho era incapaz de resistir a seus próprios
instintos. Repetiu a estratégia de sempre, puxando a moça que
mais facilmente conseguiu atrair para fora da aldeia, encantando-a
com seu brilho, suas palavras doces e sua promessa.
— Você me ama mesmo, homem-estrela? — perguntou,
com a respiração pesada, beijando os músculos rijos e cintilantes
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do peito e abdômen do Vermelho. A pele dele era adocicada e
pulsava, quase como se transmitisse uma eletricidade suave
a seus lábios; quanto mais beijava, mais queria senti-lo. — Me
levará para viver na sua cabana, no Céu Noturno?— Sim, minha querida, só você é digna — disse ele,
acariciando seus longos cabelos negros, enquanto ela se abaixava
e aninhava o membro viril intumescido entre seus lábios.
O Vermelho estava distraído com a deliciosa carícia,
os sentidos fechados para o mundo. A jovem se concentrava
em desfrutar de seu homem-estrela. Não notaram a sorrateira
aproximação do estranho. Acharam que o calor do entorno vinha
de seus corpos. O trique gritou ao ouvido da moça:
— Você não devia por isso na boca! Não sabe por onde
andou!
A moça empalideceu. O susto foi tamanho que agiu por
reexo, fechando as mandíbulas. O Vermelho gritou; a moça
também, assim que sua boca relaxou.
— Não pareça tão surpreso — disse Shkuí para o
Vermelho. — Você sabia que cedo ou tarde isso ia acabar
acontecendo!
Desapareceu novamente, em um redemoinho
fumegante. A moça a olhou penalizada para o Rei Água, encolhido
no capim e chorando de dor.
— Me desculpe... — gaguejou. — Eu me assustei. Dói
muito?
Em resposta, o Senhor da Água apenas balbuciou:
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— Ervas... Unguento... Curativo... Rápido!
***
Ao contrário do Vermelho, o Moleque era respeitado noErmo, não temido. Os aldeões indicaram para ele o sentido que
o trique havia tomado. Logo, sua montaria captou o cheiro de
carvão. Dois terços de noite já haviam corrido. Freou bruscamente
seu avanço ao dar de cara com uma imagem desagradável.
— Mas o que...
O Vermelho jazia parado no meio da clareira.
Estranhamente, não estava nu como de costume, mas cobria-se
com uma tanga improvisada com um tecido do tipo usado pelas
mulheres do Ermo.
— Eu estava te esperando, Pé-Virado. Sei que tivemos
nossas diferenças no passado, mas claramente nenhum de nós
consegue dar conta deste diabrete. Precisamos nos unir para
conter a ameaça.
O Moleque estranhou a atitude altruísta do rival. Mas
tempos desesperados exigem medidas desesperadas. O rival o
deixava enojado, mas ele não podia deixar aquele ser maligno
circular por seu domínio por mais tempo.
— Está bem. De fato, ele é um feitiço de fogo e de vento,
então será mais fácil contê-lo com encantamentos de água e
terra combinados. Mas depois disso...
— Depois disso voltamos a nos odiar como sempre —
completou o Vermelho.
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100
***
Correram como se perseguissem a luz difusa do alvorecerque diluía o azul escuro. O sol estava muito perto de sobrepujar o
Céu Noturno. O odor de fumaça cada vez mais forte entregava a
presença do inimigo. Cercaram-no em uma clareira. Era imenso,
mais etéreo do que físico àquela altura. Pedaços de sua pele
caíam. Uma perna inteira se desprendeu do corpo e se esfarelou
no chão.
— Bolotas e pererecas — resmungou. Sua voz já não
era mais estridente, mas rouca e profunda como uma voz de um
velho. — Isso é bem inconveniente!
Na mão direita do Moleque se materializou uma longa
folha verde de gume aado, sua arma, e ele impulsionou sua
montaria para arremeter. O Vermelho convocou seu cetro branco,
pronto para impulsioná-lo contra a cabeça quebradiça daquele
ser. Pedaços continuavam a cair à medida que ele se expandia.
Então, com o nascer do sol e a brisa da manhã, Shkuí
gargalhou pela última vez e se desmanchou em uma pilha
colossal de cinzas. Os dois heróis arremeteram contra o nada,
mergulhando de cabeça no monte de borralho. Uma suave
sugestão de voz foi ouvida entre os cantos dos sabiás:
— Peguei vocês de novo!
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UM AMOR
Endell Menezes
Em algum lugar entre o Rio Xingu e Amazonas, a aldeia
tupi-guarani resplandecia a cada anoitecer. Assim que a noite caía,
os índios se recolhiam em suas ocas, pois os perigos e segredos da
mata assustam até seus moradores mais íntimos. Mas não para
Tainã, uma jovem dos cabelos negros e olhos da cor do caroço
de açaí, cujo nome signica astro celeste, estrela. Ao desabar
da noite, Tainã aventurava-se oresta adentro, e após horas de
caminhada na escuridão, ouvia pandemônios, mas sua coragem
audaciosa e sua determinação insana a mantinham no caminho.
A fadiga era notável. Após horas chegou ao Lago Aninga, (Lago
do arrepio, em tupi). Sentada em um tronco de árvore caída,
Tainã encarou a Lua e enquanto alisava seus sedosos cabelos
com as mãos.
– Teu esplendor me encanta – falava para a Lua.
– Todas as noites fujo da aldeia, enfrento as caiporas,
igarapés e Jaguaruna onça preta, em busca do teu abraço, por
que me ignoras? Me deixa falando por horas. Não me achas bela?
– dizia, cerrando os olhos.
Um amor platônico, uma pureza incólume, uma
ingenuidade letífera, um olhar abatido e um sentimento
devotado. E por horas Tainã enamorava a Lua. O cansaço fazia
seu corpo pender para o lado, fazendo sua cabeça baixar e seus
olhos tarem o lago. O reexo da Lua na água cintilava nos seus
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olhos e, incrédula, sorria.
– Ô minha amada, viestes ao meu encontro – falou,
levantando do tronco.
Andava em direção ao Lago, os pés tocaram a águagelada, o limiar foi subindo até não ser mais possível ver Tainã. A
Lua observava o que acontecia e sentiu-se honrada em ser amada
por uma jovem tão bela e pura, com um brilho intenso reavivou a
alma de Tainã, tornando-a uma imensa or no lago, e disse:
– Tainã, agora és Upã, a or mais bela dos rios, terá o
aroma mais doce das águas; abrirás em dois dias, no primeiro será
rosa para lembrar a beleza feminina, e no segundo abrirás branca
para lembrar-se de teu amor por mim, afundarás no lago para
reviver teus momentos, e depois subirás em forma de coração
até te tornares a estrela das águas, a Vitória Régia.
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ESTRADA INCA
Jean Thallis
O grupo tupi-guarani seguia marcha com o pescoçoenlaçado um ao outro numa la indiana de cinco homens,
guiados por quatro tracantes incas, dois à frente e dois atrás.
Agora estavam na estrada que os levariam ao império, até o
anoitecer chegariam no primeiro entreposto, os cinco cativos se
juntariam a mais outros e somente quando necessário a caravana
partiria, quando se encontrassem com os outros companheiros e
indígenas capturados.
A distância seria vencida rapidamente sob a estrada
pavimentada e os homens incas se sentiam mais seguros porque
aquela rota era evitada com temor por todos indígenas daquela
região, que cada vez mais travavam confrontos sanguinolentos,
quase sempre terminando como escravos na distante terra rica
estrangeira, construída pelos deuses ainda que fossem eles a
talhar as pedras.
O último da la andava trôpego de tristeza, as vezes a
umidade dos olhos o fazia tropeçar e sempre que deixava a corda
tesa por estar distante do próximo índio preso ao elo, recebia
estocadas de cabos de lanças para pô-lo em movimento. Chorava
com muita angústia lembrando do lho assassinado brutalmente
com o crânio aberto ao meio e de sua mulher sendo estuprada no
centro da aldeia por três homens, nenhuma daqueles que agora
os escoltavam, mas sentia um nojo igual por aqueles incas, pois
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também estavam na matança. Teria vomitado ao lembrar de sua
impotência enquanto era feito cativo e sua mulher implorava
por socorro, mas não havia mais nada no seu estômago para ser
despejado.Recebeu outra estocada enquanto os dois incas
conversavam e riam numa língua muito diferente da sua, pensou
que estivessem rindo dele ou de sua mulher, pois lembrava
também que aqueles dois riam de longe no momento que a
violência sexual acontecia e só não a estupraram com os outros
porque fora morta e tiveram que se contentar com outra.
Sentiu ódio ao imaginar, rezou baixinho para que o
Curupira aparecesse, eles sabiam dos perigos do povo Inca
e deixara sua lhinha ser oferecida ser oferecida ao curupira
pelo chefe da tribo, pois dizia que ele viria ajudá-los, por ser
uma criatura amante da natureza e daqueles que convivem em
harmonia com ela. Mas ele não apareceu e aquela aldeia caiu em
sangue e chamas. O deus níveo de fortes músculos e alta estatura
não veio, nem sua cabeleira escarlate apareceu entre as árvores,
nem seus olhos opacos e brancos como leite surgiram para olhar
a chacina, pois no momento deveria estar se deliciando com a
sua lhinha de três anos, usando sua genitália para feri-la e matá-
la, a degolando e bebendo seu sangue, como costuma fazer.
Sentiu mais tristeza ainda pelo sacrifício ter sido em vão e ódio
pelo Curupira não ter protegido seu povo.
E o Curupira estava mesmo brincando com sua
indiazinha de pele escura no momento que a aldeia era atacada,
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a molestando enquanto a mãe dela era estuprada, degolando a
criança no momento que a mulher também morria e as malocas
ardiam em chamas. Após matá-la, a escalpelou com uma lâmina e
começou por comer o pequenino fígado, escuro e bem vermelhode sangue, mastigou com deleite sentindo o gosto férrico do
órgão, depois tirou os letes mais suculentos de carne e os
comeu lambendo os dedos.
Enterrou o resto da criança para que as sobras
transformassem-se no manjar pútrido que adora comer e neste
momento os cativos eram feitos escravos escoltados pelos incas,
mas aquela escolta era a última sobrevivente e não sabiam, na
verdade o curupira zera jus ao sacrifício e salvara vinte e três
homens da escravidão matando dezesseis incas.
O sorriso dos dentes de ouro surgiu por detrás dos dois
tracantes incas, antes que i ar mefítico que exalava do corpo
chegassem àquelas narinas, então o mais distraído recebeu a
lâmina na garganta primeiro num movimento rápido de mãos que
surgiram de baixo para cima, uma cortando e outra segurando a
boca. Jogou o corpo trêmulo do lado e o segundo, ao se virar
procurando o cheiro de carniça, recebeu a lâmina abaixo do
maxilar, entrou varando o palato e cando no cérebro, retirou a
lâmina no momento que o bando olhava alarmado o deus albino
brilhando em escarlate, nu com um sorriso d’ouro brilhando na
boca, os olhos leitosos como uma criatura vinda do submundo!
Os dois outros incas paralisaram de terror, a lenda era
verdadeira e estava à frente deles, mas mal viraram para correr
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e um deles caiu com a lança arremessada pelo Curupira, que
quebrou a coluna varando o peito do inca.
Outra lança foi pega, do segundo cadáver, o curupira
fez que a arremessaria no momento que todos os tupi-guaraniscaíam de joelhos idolatrando seu deus, até mesmo aquele
índio que havia sentido ódio por ter sido abandonado, mas não
arremessou a lança, fez um semblante medonho, seus olhos se
tornaram negros e gritou na mente do inca que corria:
– Corra! E diga ao deus Inca que seu império está
condenado! Ele ruíra é mergulhará em cinzas de destruição. Diga
que a cor de sua desgraça será branca!
O inca tentou tapar os ouvidos, mas a voz martelou até o
nal, quase desmaiou e não ousou olhar para trás correndo para
o seu interposto.
Soltou os homens aprisionados e eles saíram da estrada
rapidamente, sem mesmo olhar par ao deus que reverenciavam.
Naquele momento, hesitara matar o último inimigo daquela
expedição, porque sentira um arrepio gélido, na sua mente
se formava a visão de três grandes barcos e homens brancos
chegando distante dali na sua oresta de mata atlântica, então
correu o mais rápido que pôde até o litoral, seus pés invertidos
deixando pegadas falsas na terra vermelha. Daquele dia em
diante, seus olhos sempre foram negros como ônix.
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O BEZERRO ROSILHO
Ailton Silva Favacho
– Teimosia de moleque... Olha que eu avisei, mas já se foi
o tempo que velho era respeitado. Agora tá aí, desse jeito...
Deixou-o lá, recomendou-lhe os cuidados à irmã mais
nova, também sua neta, e ordenou que desse, de vez em quando,
somente uma xícara com chá, embora, já há quatro dias, estivesse
acamado e cada vez pior. O pai, para a pesca. A mãe, em Belém,
procurando saúde, que a pajelança não trouxera. Ficaria lá o
teimoso, sob a guarda da menina e do tempo, o tempo que a
colheita da mandioca não mais podia esperar.
A velha apanhou o remo, no canto da casa, perto da
lamparina, deixado na madrugada passada, e pegou o paneiro
e o terçado. A maré enchia, economizando seu braço. O remo
orquestrava Ave-marias e Pais-nossos, recitados à Mãe d’Água e
aos senhores da oresta. Tudo tinha dono, e era regra lhes pedir
permissão de uso, mesmo para tomar o banho de enchente. O
dente de jacaré-açu, no pescoço. Quem facilitava acabava morto
ou ruim da cabeça na lua cheia. Surucucu, jararaca, mãe de saúva,
coral...
– Ê, cumadre! Vumbora, que a bicha já qué repontá!
– Já vô, cumadre. Só vô pegá um tabaco e a lata com a
boia, que hoje é só à boca da noite.
Não tardaram. Roça longe, o sol alto. A procura de mato
para o chá do doente roubara-lhe umas horas. Às margens, o
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canto da guariba trazia à mente o choro do moleque. Um choro
morno, febril. Por que teimara? Ouvira, e muito, falarem no
que acontecera com o Velho Miranda, vaqueiro do Dr. Hendira,
da Fazenda Pacoval. A noite o subtraiu, tomado de cachaça, e,até hoje, aparece na beira do Lago da Embaúba, no período da
apartação. Dizem morar no lago, e não sozinho. Coragem muita
de quem vai lá. Teimosia...
– A senhora sabe se o Seu Anori tá aqui em São José,
cumadre?
– Olhe, faz dias que não vejo ele passá no igarapé. Acho
que não. Sempre via no rumo das mutambeiras, despescando o
curral.
O choro da guariba tornara-se agouro, maltratava
a mulher, mergulhada em maus pensamentos externados à
companheira, mas um jacaré que devorava uma capivara na
ribanceira interrompeu a conversa, roubando-lhes a atenção.
Se fossem machos, o arpão ia cantar naquele lombo largo, e a
comida estaria garantida para quase um mês. E o remo amiudava
o caminho para o mandiocal, cuja produção encomendara uma
tacacazeira do Ver-o-Peso, que também mandava tucupi e
tapioca para fora. O barco que transportaria búfalos da Pacoval
conduziria a colheita. Se perdessem a oportunidade, bastante
suor jogariam fora.
O lençol, mais uma vez, ensopara. Por ser julho, sol
de rachar? Estaria com malária? A menina enchia água no poço
para lavar o outro que ele usara na noite passada. E cuidava de
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reparar o doente, que cismara de querer mergulhar no igarapé e
correr para a mata, em devaneio. Teve de pregar as janelas e de
fazer-se sentinela para guarnecer a porta. Só se afastava quando
ele dormia, contudo logo voltava para escutar as mesuras quefalava, ininteligíveis, exceto a promessa de que não demoraria.
Outra noite se anunciava. As mandiocas deslizavam
sobre a água alaranjada pelo ocaso. A velha, calada, invocava
Seu Anori. Tinha nome, descendente, quiçá, dos Anoerás, no
tempo de Marinatambal. Até gente grande o procurava, vinha
a ele. Se quisesse... Do mato não saía, pois, se o zesse, talvez
perdesse muito de sua força. Mas, naqueles dias, lá não estava,
e o moleque, em delírio, ardia em febre. Não seria caso para
médico?!
Chegaram, já tarde, as duas, vigiadas pela lua, e a neta
à avó tudo contou. Pelo relato, a mulher sabia tratar-se de
encantaria. Tudo por desobediência. E nada do Anori. Subir o
rio, tirar feitiços, fazer trabalhos. Bem novo, começou no ofício,
herdado do pai. Ensinava banhos de mato, infusões de cascas
e benzia crianças com quebranto de olho gordo, de gente com
fome. Mas o que rendeu fama foi ter colocado de pé a lha de
um governador. Nem São Paulo, nem Europa lhe deram conta.
Porcaria pesada, encomendada de gente forte.
Por lá, dele souberam através de um dos serviçais. Fora
para Belém tentar a sorte, e tudo o que conseguiu, sem estudos,
foi a ocupação de zelador. Chamava-se Tibúrcio, e mencionara,
em certa ocasião, o nome do primo, o pajé Anori, a uma das
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empregadas, depois de ver tantas tentativas sem sucesso, não
obstante contando com grandes nomes da medicina do estado
e do país. Sem saída, ao mato recorreram, e não deu outra. A
moça, que talvez morresse em poucos dias, reagiu, resistiu. Onome de Anori ecoou longe.
Saberia do suplício do moleque o pajé e estaria
protelando o regresso com o intuito de chegar só no dia do
enterro? Os caruanas não o teriam avisado? Certamente que
tinha muito aguçado o dom da vidência e poderia estar a par
de tudo. Anal, sempre previa infortúnios e avisara dona Ninica
acerca do afogamento do lho, caso o rapaz fosse ao Lago da
Embaúba. Por isso, recomendou-lhe impedi-lo de ir lá, mas ela
ignorou, e se consumou o óbito, sendo o corpo encontrado no
meio do campo, velado pelas estrelas.
Talvez estivesse fazendo de seu atraso a vingança. O
pirralho o irritava, caçoando-lhe das velhas roupas e da boca,
sem dentes. Não raras as vezes, ao pai se queixava quanto ao
comportamento do menino, o qual, apesar de levar uns bons
tapas, reincidia. Era moleque péssimo, dizia o vilarejo. Não
respeitava as horas santas, violava os ninhos de passarinho,
judiava de tudo quanto era bicho, alvo de sua baladeira de precisa
mira. Merecia morrer, então?
Estava, cada vez mais, enlouquecido. Não deveria ter ido
o lago, mas o bezerro búfalo rosilho o emundiou. Búfalo era o
único bicho que a ele agradava. Ótimo vaqueiro em miniatura, e
até veterinário. Cuidava bem, mesmo de bicheiras. O sonho era
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ganhar um novilho, de aniversário, para tratar a vida inteira, nadar
com ele no igarapé. Mas não o tinha. Além da falta de dinheiro,
a reprovação do pai. Um dos braços fora quebrado pelo coice de
uma búfala. Não cismou de mexer com a bicha parida?Como não tinha o dele, pegava, por empréstimo,
os alheios. Bom que não judiava, como a maioria dos outros
moleques. Fazia o batismo, para um nome só dele, contudo
estabelecia com eles amores sazonais. Búfalo e moleque
preferem a amplidão do innito, para correr, para nadar, sem
destino. Chorava por eles, sofria demais. Quando soube da vaca
da Pacoval, que parira um boizinho rosilho, saiu de si. Via-se no
lombo e, na memória, já ordenava que o animal parasse para que
pudesse juntar uma porção de tucumãs.
Sonhou com ele. Iria ao encontro, mesmo que longe
casse o Lago da Embaúba, perto do qual nascera o bufalozinho.
Era distante, mas o pequeno conhecia as redondezas. Tinha doze
anos e, desde os cinco, o pai o levava para a tiração do peixe dos
lagos, só para não o deixar e depois se irritar com as queixas.
Nascera traquina. Um susto de trovão afetou a mãe, que deu a
luz aos oito meses. A parteira avisou que poderia nascer com
problemas, e não demorou a mostrá-los.
Não escondeu o desejo de ir ao encontro daquele
animal, e todos a quem mencionara a intenção reprovaram-na,
com muitos argumentos macabros. Era o lago visagento, onde
se encantara o Miranda, quando resolveu seguir a Mãe de Fogo.
Falavam a ele suas verdades, enfatizadas pelo temor existente,
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não necessariamente para amedrontarem o atrevido. Anal,
mesmo que o tentassem, seria inútil. Era impetuoso, a ponto de
ter quebrado a imagem de São Sebastião no congá do Anori - ao
qual criança alguma ousava se aproximar - num dia em que a avófora tomar um passe. Astuto que era, arquitetou tudo.
Todos os anos, no dia de São Pedro, tinha fogueira,
mingau e ladainha na casa de Seu Dico, cujo convite se estendia à
vizinhança, a qual não recusava a animação nem a fartura. Pituca,
a lha mais velha era uma moça encantadora, apegada às artes,
que caprichosamente coordenava o trabalho de ornamentação
de um terreiro que absorvia sua beleza, atraindo e satisfazendo
a todos. Havia quem fosse para o festejo; outros, para gastarem
olhares à genial e bela artista. Muitos galanteios em vão a um
coração já laçado.
Aquela seria a noite perfeita. E foi. A irmã, com cólicas,
desde cedo, dissera que não iria, fato aceito pelo pai e pela
avó, porém só jamais caria. Medo de boto. Restava-lhes, pois,
convencer o moleque a car, em companhia. Ensaiaram um
discurso, sabendo estar ele assanhado para ir, em virtude de ser
o campeão no pau de sebo. Parecia estar sempre acompanhado.
Todos os anos, ganhava a disputa e tinha de estar lá à noite para
receber o trocado.
Poderiam até estranhar a falta de contestação, contudo
não queriam mesmo dele a ida. Acharam normal. A promessa de
ir à Pacoval explicava a passividade. Cuidaram de tudo a partir do
amanhecer. E, logo cedo da noite, a velha fez a janta para que os
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dois dormissem bem, não sonhassem com defunto, como diziam.
Tomados os cuidados, saíram, animados, após trancarem toda a
casa e pedirem para não demorarem a se deitar. Caso tivessem
cado por outra razão, brincariam de adivinha, no entanto elasentia dor e adormeceu.
Notado isso, não perdeu tempo o moleque. Pegou um
pilão, magro que nem ele, colocou embrulhado na rede e pulou
a janela, encostando-a, sem esquecer o boné e a baladeira. Era
destemido, valente, e saiu, atravessando a mata, rumo ao campo.
A guariba o chamou, insistentemente, sem sucesso. A lua no céu
facilitava-lhe a façanha. Os fogos de artifício da festa de Pituca
o tranquilizavam, pois só eram soltos na hora em que dançava
a quadrilha, contagiando e capturando a todos. Quem pensaria
nele, dormindo? Não havia quem o parasse. Ao rosilho tão breve
chegaria.
Para evitar se perder, seguia a trilha desenhada pelos
caminhões e tratores que faziam o transporte de peixe e de
jacaré ao porto de embarque das geleiras. No caminho, muitos
búfalos, bezerros... Fosse outro momento, qualquer um ser-lhe-
ia ideal, embora a certeza da posterior perda. Mas queria aquele,
diferente, bonitinho, e a ele rumava, sem temer horrendos e
estridentes assovios de Matinta, o bote das cobras. Não era só.
Enm, chegou! O lago, um imenso espelho. Não muito
distante, o bezerro, aos olhos do Miranda. Todavia, tudo parecia
apenas estar-se cumprindo e, num galope, quiçá em socorro a
algum vaqueiro desconsolado, desfez-se o cavalo na innita
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campina como água na estiagem atroz dos campos marajoaras.
O moleque custou naquilo acreditar. Embora ciente de que, um
dia, pudesse até perdê-lo, estava maravilhado pelo encontro,
tão sonhado. Aproximou-se logo. E não é que o bicho, em geral,muito arredio, já lhe abanava o rabo?
Selava-se ali mais um de seus grandes amores, e já
corriam, lado a lado, como se, há tempo, fossem um do outro
conhecido. Circundavam o lago e, vez ou outra, o bichinho deitava-
se para receber um afago de “seu dono”, quando, subitamente,
um cantar de galo, seguido de um forte silvo, deixou o animal
bastante agitado, a correr em disparada, submergindo nas águas
prateadas. O menino, acostumado aos igarapés, mergulhou
incansavelmente, intentando achá-lo, mas vão foi o excessivo
esforço. Tomado por intensa melancolia, retornou à casa da avó
e já acordou acometido de uma estranha e fortíssima febre, que
o deixou na situação em que se encontrava.
A espera pelo Anori tornou-se inútil. E talvez bem
alegre estaria o pajé. O moleque, aproveitando-se de um
descuido de todos, desapareceu, e, quando lhe perceberam a
ausência, recorreram a São José, com o intuito de reencontrá-lo.
Procuraram-no nas matas, nos igarapés, nos campos e, terminado
o primeiro dia de buscas, restava-lhes só aguardar que o corpo
boiasse ou que os urubus o localizassem.
Anos passaram-se e o moleque, até hoje, é visto, por
quem pode, no lombo do bezerro rosilho, em companhia do
Velho Miranda, em seu cavalo, sempre a ajudar vaqueiros na
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busca de reses perdidas pela imensidão do Marajó, desde que
lhes deem uma garrafa de cachaça. Tornara-se vivente do Lago
da Embaúba, laçado naqueles mergulhos, assim como fora, por
um grande amor, o coração de Pituca.
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O SACI
Gustavo Valvasori
Maurício não gostava de ninguém. Não importava qual
fosse a cor, sexo, religião ou simpatia da pessoa, ele simplesmente
não gostava de gente. Era lho único e aprendeu desde cedo
a respeitar o silêncio e a conviver apenas com seus próprios
pensamentos. Quando chegou a hora de frequentar a escola,
descobriu que o resto do mundo era movimentado e barulhento
demais, e que as experiências medíocres que seus colegas e
professores tinham para compartilhar não lhe interessavam nem
um pouco. Se afastou o máximo possível de todos até o dia da
formatura no colegial e logo em seguida, abandonou os estudos.
Aos dezessete anos de idade, cansado de ouvir seu pai
chamá-lo de vagabundo e das cobranças de sua mãe (que não era
vidente, mas parecia convencida de poder prever a vida do rapaz
pelos próximos vinte anos) a respeito de seu futuro, decidiu que
era hora de sair de casa.
Gastou os últimos trocados de que dispunha – parte do
dinheiro que havia ganho de sua avó no natal – em uma viagem
de ônibus para um município próximo, e ao chegar se deitou no
banco da praça de uma pequena igreja para descansar.
Na manhã seguinte, folheando o jornal que tinha lhe
servido de coberta durante a noite, encontrou uma oferta de
emprego que lhe pareceu interessante.
Um fazendeiro das redondezas oferecia o cargo de
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caseiro para alguém disposto a tomar conta de sua propriedade.
Oferecia casa, comida e um simbólico salário mensal em troca
da realização de tarefas diárias como aguar as plantas, varrer
quintais e tratar de animais.Maurício apresentou-se para o serviço e, ao anoitecer,
já estava empregado e dormindo tranquilamente em uma cama
dura como pedra no interior de uma precária habitação de
madeira, construída nos fundos da casa principal da fazenda. A
cabana era humilde mas possuía tudo que ele poderia precisar:
frutas, grãos e verduras para se alimentar, um lugar quente e
fresco para dormir, e o abençoado silêncio que apenas a completa
ausência de seres humanos poderia lhe proporcionar.
O que não signicava que ele não se sentisse entediado
de vez em quando.
Maurício não se importava muito com a TV não
sintonizar nenhum canal, anal existia falatório em excesso na
programação, mas o fato de que a biblioteca mais próxima cava
a quase duzentos quilômetros de distância o aborrecia.
Certo dia, ele foi ao supermercado da cidade comprar
laticínios e decidiu adquirir também uma garrafa de vodka barata,
pensando que ela talvez pudesse ajudá-lo a combater o tédio.
O álcool inebriou seus sentidos e alegrou seu espírito. E assim
centenas de garrafas dos mais variados tamanhos, logotipos
e conteúdos seguiram o rastro da inocente e despretensiosa
primeira compra.
Muitas semanas transcorreram desta forma, com o rapaz
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alternando seu tempo entre desbravar a natureza ou a bebida,
até o dia uma garrafa de Velho Barreiro lhe trouxe algo diferente.
Maurício estava a poucos goles de liquidar a bebida,
deitado na grama com as costas apoiadas na parede lateral deseu pequeno casebre, observando com interesse um jovem
passarinho que pulava na grama sem conseguir levantar voo,
quando notou um jovem mulato, que vestia roupas amarrotadas
e um boné do MST com a aba virada para trás caminhando em
sua direção.
– Boa tarde – o estranho lhe disse.
– Boa tarde – Maurício respondeu. – Em que posso ajudá-
lo? – perguntou.
– Estava caminhando pela estrada, quando notei o brilho
do sol reetido na sua garrafa. Vi que estava sozinho e achei que
talvez você pudesse precisar de ajuda para terminar a bebida.
– E de onde foi que tirou essa ideia?
– Um passarinho me contou.
– Passarinhos são fofoqueiros e barulhentos demais.
Esqueceram de te contar que você chegaria tarde demais para
me ajudar – Maurício armou, balançando a garrafa vazia para o
estranho. – Qual é o seu nome?
– Pode me chamar de Pereira – o homem respondeu.
– Bom, não é todo dia que eu recebo visitas. Vou ver se
tenho algo pra gente.
Algumas horas depois, a dupla já havia secado uma garrafa
de conhaque Presidente e quatro latas quentes de cerveja.
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Maurício simpatizou rapidamente com o desconhecido.
Ele não falava muito. Não fazia perguntas. Nem comentários
estúpidos a respeito de como o dia estava quente ou de como
o céu estava azul. Simplesmente cava por perto, de maneiraconfortável e silenciosa.
Ao entardecer, Pereira confessou a seu novo amigo que
precisava de um lugar para passar a noite. E Maurício ofereceu a
ele um colchão velho e rasgado que tinha sobrando na cabana,
lhe dizendo que poderia dormir no chão da cozinha se quisesse.
A estadia que inicialmente seria de apenas um único dia,
acabou por prolongar–se durante semanas, e Pereira começou a
auxiliar Maurício em suas tarefas diárias. Ele cuidou das plantações,
alimentou e vacinou os animais, consertou equipamentos, varreu
a casa e lavou a louça. Além disso, trabalhou duro para domesticar
Gengiva, um dos cavalos da fazenda.
O enorme corcel amarronzado tinha um temperamento
difícil, mas Pereira rapidamente adquiriu grande afeto pelo
animal.
Maurício até chegou a considerar a ideia de apresentar
seu novo ajudante para o proprietário, mas, estranhamente,
sempre que o fazendeiro visitava o terreno Pereira desaparecia.
Apesar de desconar desse comportamento, Maurício preferiu
assumir que o amigo precisava tanto de um lugar para car que
receava do que fossem dizer ao vê-lo ali sem prévia autorização e
deixou o assunto de lado.
Após meses convivendo dessa forma, teve início o
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período de férias escolares e o proprietário trouxe a mulher e
suas duas lhas pequenas, para que passassem um tempo na
fazenda.
Ao amanhecer do terceiro dia da estadia da família nocampo, Maurício acordou assustado ao ouvir gritos vindos da
casa principal. Segundo o barulho, uma das lhas do proprietário,
que tinha apenas seis anos de idade, fora atropelada por um dos
cavalos.
Maurício se apressou na direção da confusão e, ao
chegar, viu o dono da fazenda colocando a garota machucada
e o resto de sua família no carro para que pudessem acelerar
imediatamente para o hospital mais próximo.
– Por que deixou um dos cavalos soltos? – o homem
cuspiu a pergunta, com lágrimas e ódio no rosto.
– Não deixei... – Maurício respondeu, assombrado pela
imagem da garotinha ensanguentada à sua frente. – O cavalo
talvez tenha fugido do celeiro.
– Eu quero esse monstro morto! Agora!
– Certo.
– Vi ele correr para trás dos chiqueiros.
– Tudo bem – o capataz respondeu. – Vou encontrá-lo.
Assim que o automóvel do fazendeiro deixou a
propriedade, Maurício saiu em busca do cavalo portando uma
velha espingarda nas mãos.
Ao avistá-lo mastigando um punhado de grama nas
proximidades de uma velha gueira, o homem apoiou a arma no
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braço esquerdo e preparou sua mira. Estava prestes a puxar o
gatilho, quando foi subitamente interrompido:
– Não faça isso – interveio Pereira, colocando-se na
frente da arma. – Por favor.– São ordens do patrão. Se eu não obedecer, vou perder
meu emprego.
– Não foi culpa dele.
– E de quem foi então?
– Minha. Eu saí dar uma volta com ele durante a
madrugada. Minha prótese caiu, perdi o equilíbrio quando
estávamos perto do lago e acho que o machuquei sem querer,
fazendo com que ele saísse correndo sem direção – disse o
negro, levantando a barra de sua calça jeans e revelando que
utilizava uma prótese de plástico no lugar onde supostamente
cava sua perna esquerda. – Uma das garotas estava brincando
na varanda, e o Gengiva a acertou com um coice ao correr de
volta para o celeiro. Eu assisti à cena de longe, mas não consegui
acompanhá-lo.
– Seu maluco! Se eu soubesse dessa sua perna, nunca
teria deixado que chegasse perto dos cavalos.
– Sinto muito. A prótese caiu sem querer. Isso nunca
aconteceu antes.
– Saia daqui.
– O quê?
– Quero você fora da fazenda.
– Eu não tenho pra onde ir.
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– Não me interessa.
– Eu vou embora, mas só se você me prometer que não
vai fazer nada com o Gengiva.
– Não posso prometer nada.– Então não vou embora.
– Vai sim – disse Maurício, empurrando o homem para
fora de sua mira.
– Não – disse Pereira, ncando seus pés com força na
terra.
Amizades são como gelo. A princípio, parecem muito
rmes e sólidas, mas qualquer pequeno deslize pode fazer com
que tudo se desfaça rapidamente em centenas de pedaços.
Socos, cabeçadas e pontapés voaram para todas
as direções. Olhos roxos, dentes quebrados, arranhões e
machucados marcaram carne e destruíram em segundos o que
antes era apreço e camaradagem.
Poucos minutos depois da luta começar, uma
tempestade começou a formar-se acima deles e o vento castigou
seus olhos com terra e folhas secas, enquanto trocavam sopapos
enfurecidamente. Parecia que a batalha jamais terminaria. Mas
Maurício avistou uma garrafa de aguardente jogada no chão e
empurrou a briga na direção dela até conseguir alcançá-la.
Ele chocou a garrafa contra o chão, partindo-o ao
meio, e a segurando pelo gargalo, atingiu o pescoço do negro,
degolando-o como eles costumavam fazer quando havia frangos
para o jantar.
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Pereira engasgou-se com seu próprio sangue e deu
adeus ao mundo dos vivos fazendo um gesto obsceno com as
mãos.
Maurício arrastou o corpo do antigo amigo até o fossoda fazenda, atirou-o ali dentro e, depois de abater o cavalo, fez o
mesmo com o que restava de seu estoque de bebidas. Ele sabia
que, depois de tudo o que havia acontecido, uma recordação de
Pereira o esperaria dentro de cada nova garrafa.
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O CORONEL E O LOBISOMEM
Ana Rosa de Oliveira
Era sempre do mesmo jeito – primeiro o chamado, ou
coisa parecida, depois uivos e mais uivos, um coral sinistro. Até já
estávamos acostumados com aquela agonia uma ou duas vezes
ao mês.
De vez em quando um caçador ou pescador chegava à
cidade narrando histórias estranhas.
Do caçador não duvidavam muito, quanto ao pescador,
este ninguém levava em conta, tinha fama de exagerado.
Certa vez Gerbásio, um dos poderosos da região, chegou
à cidade após muito tempo enado na oresta.
Segundo contou na divisa entre suas terras e a do
Compadre Cássio, encontrou sinais de um animal que bem
poderia ser o causador de seus problemas. Seguiu os rastros do
bicho, só que antes do riacho perdeu a pista, mas mesmo assim
continuou procurando.
Os animais estavam desaparecendo e os encontrava
próximo ao rio das cobras, mortos e com a cabeça arrancada.
Achava muito estranho aquele tipo de coisa, gente não era, senão
levaria o animal depois de abatido. Bicho, que bicho poderia ser?
Fora a cabeça não faltava nenhuma outra parte, o restante do
corpo permanecia intacto.
Depois de muito investigar, nada tinha conseguido, e
agora estava chamando todos os criadores para uma caçada. Era
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bom todo mundo se preocupar, hoje era ele, amanhã poderia
ser qualquer um. E mais, dizia exaltado , quem garante que essa
criatura de uma hora para outra não vai resolver sair por aí,
arrancando a cabeça das pessoas...
Assim, a notícia se espalhou e os interessados se
juntaram ao coronel Gerbásio para a tal aventura.
Veio gente de toda parte, até mesmo das cidades vizinhas,
pois a notícia era de que havia um lobisomem colecionador de
cabeças de animais.
O coronel estava até dispensando voluntários e para não
deixar ninguém de fora combinou dois grupos e no dia marcado
a tropa se reuniu nas terras do coronel. Mas ninguém sabia ao
certo o que estavam procurando.
Alguém anal já havia se deparado com um lobisomem?
Ninguém. Todos conheciam de ouvir falar, uns achavam que era
semelhante a um cachorro, outros achavam que fosse igual a um
lobo e havia ainda os que pensavam que se parecesse com os
humanos, só que com um pouco mais de pelo, unhas grandes
e dentes enormes. Seria fácil reconhecê-lo caso o avistassem. E
com esse retrato falado na mente, saíram em busca da criatura.
A tropa atravessou rios e orestas, seguiu morro acima
e morro abaixo e quando estavam por desistir de tão exaustos,
avistaram uma casinha em meio à mata fechada. Um homem
jovem e muito alto, quase um gigante, recebeu-os à porta.
Coronel Gerbásio se apresentou como líder do grupo e
expôs a situação que estavam enfrentando em sua região.
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Jota Caolho, o dono da casa, foi logo dizendo:
– Por aqui num tem este tipo de problema não. Até
porque nem tenho criação, fora umas poucas galinhas, que de
noite boto tudo dentro de casa. Dentro de casa é modo de dizer,pro que como podem ver o quintal é praticamente outro cômodo.
– “Ceis” aceitam um cafezinho? Se quiserem posar aí
no quintal, num tem problema, as galinha cam de fora, e se
“argúem” quiser pode “inté” armar as rede ou “intão” ca todo
mundo aqui dentro... “Cum” jeitinho cabe... Assim ninguém pega
a “friage” da noite.
Todos concordaram que seria melhor dormir ali aquela
noite, descansar e depois seguir adiante. A comida apesar de
farta não era das melhores. Carne de frango e algumas raízes
cozidas e poucos grãos de arroz. O dono da casa se desculpou,
dizendo que há tempos não ia até a cidade.
Alguns, com uma desculpa qualquer, comeram da
própria comida que haviam trazido, não provaram nem mesmo a
carne que todos disseram estar gostosa.
Depois de prosearem um pouco, o cansaço e mais a
comida fez com que todos fossem ajeitar um canto para dormir.
O coronel, entretanto, não parecia estar à vontade. Achava que
Jota Caolho tinha alguma coisa esquisita. Como se não bastasse
aquele cheiro de coisa podre que saía de sua pessoa, havia um
olhar, profundo, que encarava a pessoa com quem estivesse
conversando com tanta insistência que chegava a incomodar.
Por ele, não teriam permanecido ali, mas fora voto
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vencido e resolveu car atento durante a noite. Ficou do lado de
dentro junto com mais meia dúzia do grupo e o dono da casa.
Todos caram surpresos com sua escolha, pois contavam com
ele do lado de fora.Horas depois, quando já havia decorrido tempo
suciente para que todos estivessem dormindo, o dono da casa
se levantou devagarzinho e cuidadosamente chegou até a porta.
O barulho da tramela e o ranger da fechadura seriam sucientes
para acordar qualquer um, mas aqueles ali precisariam que o
barulho fosse mesmo muito grande para acordá-los. Assim, ele
atravessou por entre as redes e saiu em direção ao mato.
Gerbásio o acompanhou a uma distância segura para
não ser percebido e o viu crescer em tamanho à medida que se
afastava.
De repente, desapareceu, e só então se deu conta de que
havia se afastado bastante da casa onde estava. Receoso, não
viu mais o Jota Caolho; estava sozinho e se algo lhe acontecesse
ninguém saberia. Um arrepio lhe percorreu a espinha e, resolveu
voltar; não queria admitir, mas estava morrendo de medo.
A lua cheia estava linda no céu escuro. Parecia zombar
dele, logo ele, tão destemido! Graças a Deus que não havia
guerra em nosso país, pensava enquanto procurava o caminho
de volta. Passou a mão na cintura, a arma estava lá; primeiro
atirava, depois ia ver o que era. Já estava farto daquela caçada.
De repente um cão enorme e peludo apareceu no meio
da trilha. Parecia estar esperando por ele. O coronel levou a
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mão à cintura e puxou o revolver. Não conseguiu atirar, o olhar
xo do cão pareceu hipnotizá-lo, não conseguia se mexer e
os pensamentos também não eram coerentes. Aquele olhar
penetrante... Era igual ao do Jota...– Meu Deus do céu! – gritou em voz alta. – Jota Caolho!
Não pode ser...
Ao ouvir seu nome o cachorro estremeceu e saiu em
desabalada carreira. E o coronel também desandou a correr em
sentido contrário. Quando se deu conta estava chegado à casa
de onde saíra horas antes.
Não quis entrar. Teve medo, e se o Jota não estivesse lá
dentro? Preferiu car na dúvida. Resolveu não acordar ninguém,
cou por ali esperando o dia amanhecer. Acabou cochilando.
Acordou sobressaltado quando um dos homens tocou em seu
ombro e perguntou o que ele fazia ali, se tivesse dito que caria
do lado de fora teriam armado uma rede para ele.
O cheiro de café se espalhou pelo quintal e logo o dono
da casa apareceu para convidar todos a entrarem. Tinha ovos
fritos e tapioca que desta vez todos comeram.
Quase não conversaram durante o café. O coronel
não queria puxar assunto e o dono da casa parecia um pouco
ausente. Devia saber que foi reconhecido durante a noite. O
coronel não queria contar para ninguém das suas suspeitas, mas
achava prudente saírem dali o mais rápido possível, e no caminho
contaria aos companheiros o que tinha acontecido durante a
noite.
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Deixou que todos terminassem o café e saiu para
arrumar os cavalos e foi juntando as coisas espalhadas junto às
redes. Nisso, alguma coisa chamou sua atenção no fundo do
quintal. Havia um monte enorme coberto com uma manta decouro velho. O cheiro desagradável que saía dali se parecia com
aquele do Jota Caolho.
Olhou em direção a porta da casa, os outros continuavam
lá dentro, entretidos com o café. Curioso levantou o pedaço de
couro e estarrecido vericou uma enorme quantidade de cabeças
amontoadas cuidadosamente. Não teve coragem de contá-las,
apenas viu que eram muitas e de animais diferentes – cachorro,
gato, galinha, e tinha muitas cabeças de vacas. Algumas pareciam
humanas... – Soltou bruscamente o couro que escondia aquela
macabra coleção.
Teve vontade de sair correndo, mas não podia deixar
que o medo o dominasse. Deveria voltar e agir naturalmente,
pois os outros estavam ali por sua causa, e alguns nem eram
seus conhecidos, mas atenderam seu chamado e durante aquela
viagem se tornaram amigos.
Em vez de sair correndo voltou para o cômodo onde
alguns ainda tomavam o café. Quando abriu a porta, todos o
olharam assombrados e imediatamente taparam o nariz.
– Coronel, que cheiro horrível é este e que cabeça é esta
enganchada em seu pé?
Gerbásio olhou os próprios pés e se deparou com
a cabeça de um cachorro esfarelando-se presa no cadarço
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da botina. Não viu o olhar malévolo que Jota lhe dirigiu, saiu
correndo em direção à porta de saída da casa. Soltou um grito
medonho e nunca mais foi visto.
Os companheiros não compreenderam o que haviaacontecido. Saíram apressados atrás do coronel, e nem
agradeceram a hospitalidade e a gentileza com que foram
recebidos. Não conseguiram alcançá-lo e depois de muito
procurar, voltaram primeiro para a cidade na esperança de que
o coronel e eles tivessem se desencontrado durante a volta. Mas
depois de muito tempo desistiram de esperar por ele e voltaram
para suas casas.
Depois de algumas semanas o coronel apareceu, mas
já não é o mesmo. Não conta mais história, nem sai para caçar.
Aliás, depois daquele, dia nunca mais caçou. Quase não sai de
sua fazenda. Dizem os mais íntimos que ele cou amalucado,
conversa sozinho e às vezes aponta o dedo para alguém e ca
dizendo:
– Cuidado com a cabeça do seu cachorro e com a sua
também. O lobisomem pode vir buscar!
Os lobos continuam uivando em noites de lua cheia
como sempre zeram ao longo dos tempos, mas as cabeças dos
animais já não desaparecem mais naquela região e aquela história
passou a fazer parte do imaginário popular.
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A FUGA DO CURUPIRA
Inácio Oliveira
Ele, baixo, um metro e trinta, cabelos avermelhados,levemente envelhecido; caminha cuidadosamente pela encosta
do rio. Seus pés virados para trás deixam marcas de quem está
voltando, mas ele sabe que seu caminho é sem volta. A oresta
deixou de existir rio acima de onde ele viera e torna-se cada vez
mais esparsa por onde ele avança. Aqui as terras se elevam,
ele faz um grande esforço para escalar o barranco e seguir em
frente. Parece cansado e triste, tem a expressão abandonada
de um anão de jardim. Suas mãos pequenas e rudes afastam
da sua vista os ramos que pendem das altas árvores; ele mira
vagarosamente a imensidão que se alterna entre verde e cinza,
clareira e oresta. Um cão late, distante, muito distante. Ele não
gosta de cães, esse animal indigno que serve aos homens. Sabe
que os homens estão próximos, é possível sentir o cheiro e ouvir
o barulho das máquinas ao longe.
Desde quando a oresta começou a ser destruída, ele
migra rio abaixo, a oeste. Vaga errante e sozinho, exilado do seu
próprio mundo. Não sabe aonde vai. Assusta-o a perspectiva
das cidades: os homens e as suas máquinas, fábricas, prédios e
automóveis. Às vezes ele para – saudades de sua casa – e olha
para trás como para o m do mundo.
Já chegou a uma parte da oresta onde antes nunca fora,
sente-se confuso fora de seus domínios. Teme cair em alguma
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armadilha que os caçadores prepararam. Não sabe quando sua
peregrinação terá que acabar, mas sabe que este agora é o seu
destino: seguir e seguir. Nunca esteve tão sozinho, os deuses
todos mortos, as lendas e as profecias já não fazem mais sentido,ele mesmo já não faz mais sentido.
O rio está resumido a um lete d’água que corre sobre
as pedras. Ele se ajoelha e com as mãos feito concha sorve um
pouco d’água que lhe refrigera o corpo, dando-lhe uma sensação
de alívio. Olha para os lados e um estranho verão entristece a
paisagem.
A tarde declina. Ele caminha em direção à planície que
é um vasto campo de arroz, quem olhasse veria qualquer coisa
como um espantalho ou um anão perdido no arrozal. Vivera
muitos anos para saber que não deve caminhar assim pelo
descampado ainda à luz do dia. Apressa-se e entra novamente
na oresta.
Vai anoitecer. Há uma leve inquietação que cessa assim
que o sol escurece. Ele se agasalha junto ao tronco de uma
árvore a tempo de ver as primeiras estrelas. Faz-se um completo
silêncio, é possível apenas ouvir um som inarticulado que vem
do seu peito. Em noites como esta ele costumava sonhar sonhos
antigos. Agora vive inquieto, perdera a paz que tinha. Seu
coração está pequeno, incomoda-se ao mais leve ruído das frutas
que caem sobre as folhas secas no chão.
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O TABACO DA CAIPORA
Moisés Diniz
Uma homenagem ao meu velho pai que, aos 74 anos, antes de
morrer, continuava com o seu quinquagenário vício de mascar
tabaco bruto, herança do seu inestimável tempo de vida heroica
na oresta. Por longos anos, como um monge de mãos profanas,
ocupava os galhos de tantas árvores à espera da caça. Uma rede
rústica, a embalar o bravo sonho de meu avô que viera de Riacho
do Sangue, no sertão nordestino, uma espingarda teimosa, tanto
quanto meu velho pai, e quatro dedos de tabaco bruto para mascar,
acalmar a Caipora e aquecer a madrugada.
Um velho seringueiro, que tive a honra de tornar-me amigo de
seus cabelos brancos, contou-me uma bela estória de um encontro
noturno seu com a Caipora. Para ele - e ai daquele que risse de suas
palavras (!) - não é estória, foi história!
***
Um cansaço titânico dominava o meu corpo, era como se
eu tivesse caminhado do Ceará ao Acre. O balde de leite já estava
vazio. Uma “péla” de borracha repousava, acanhada, no fundo
do defumador. Se aquele amontoado de leite defumado fosse
dono de um grama de sensibilidade, como uma dama teimosa,
teria me confessado:
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– Bastião, tu estás a queimar a minha pele!
Fiz de conta que não ouvi. As últimas colunas de fumaça
do defumador perdiam-se por entre os galhos de um frondoso e
triste pau-d’arco. Luzia, com os seus olhos acuados, enrolava umporronca. Na última brasa, meio morta como a minha saudade,
acendi aquele velho companheiro. Traguei! Suspirei! Comecei a
reetir! Aquela péla, de vinte e poucos quilos, fruto de meia noite
e meio dia de trabalho, não daria, sequer, para comprar um par
de sapatos para reverenciar o meu santo padroeiro.
Meia dezena de meninos pálidos, em algazarra,
seguiram-me até o porto onde, feito um sapo coaxando, eu lavei
o meu corpo. Sentado sobre uma tábua, no barranco, contemplei
meus lhos brincando com a água. Minhas mãos calejadas e toda
a minha luta, como uma mancha de vergonha, não davam para
comprar outros brinquedos. Eles contentavam-se com a água
gélida do rio! Ali, inconsolável, prostrei-me a dissecar a alma dos
meus lhos. Cinco, nove e treze anos. Eram tantas as idades! Não
sabiam, sequer, tatear uma única letra do alfabeto. Rústicos,
dentes apodrecidos, eram verdadeiros discípulos da minha
utopia, voltar, um dia, à bela terra de meus pais. Discípulos,
também, da minha agonia, não seriam doutores, continuariam
minha obra invisível e a minha canseira, cortar a pele pródiga das
árvores!
Os pirilampos e a sua algazarra luminosa! Uma coã, qual
notícia da morte de um irmão, rasga o seu canto desanado e
triste. Meu cachorro, solidário, lambe as feridas enfezadas,
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construídas nos cipoais, de minhas pernas impacientes. Luzia
prepara a boia. Os meninos beliscam-se, riem e recebem uma
advertência por suplantar a voz do radinho de pilha. Este, feito
um doente terminal a pedir água, conta o que se passa na cidade.Uma voz bonita, deformada pela velhice das pilhas do rádio,
anuncia uma festa na casa do delegado, o aniversário do padre,
a viagem do intendente, a gravidez da esposa do juiz e a festa do
padroeiro. Fiquei triste no meu abandono!
Nesse momento, os olhos pálidos de Luzia se cruzam
com os meus. Desnecessária se fez a palavra. Minha castigada
esposa se ressentia daquela vida malvada, enquanto, na cidade,
toda aquela gente divertia-se à custa do meu suor. E nem um
convite de aniversário chegou à minha colocação. Coitado! Estava
tendo início mais um delírio. O que os doutores conversariam
comigo na festa? Se até o mutá, quando ouvia meus enfezos e
minhas agonias, cava calado feito uma mula! Engoli um bocado
de pirão, a colher irritou-se com os meus dentes pubos(!), um
pedaço de carne de cotia e lavei a boca com a água do rio. Queria
engasgar aquela convulsão que cortava a minha alma. Mais um
porronca e busquei o caminho da rede. Vi que Luzia debruçava-se
sobre o girau e, sem dizer-me, lavava os pratos e a sua tristeza.
A rede balança como a vida dos deserdados. Os meninos
espremem-se no outro in-cômodo. Luzia está a trocar o vestido!
Pelo menos as pernas brosas de Luzia, meu Deus - blasfemei (!)
- afogam meus desejos impublicáveis! Único prazer que não me
roubaram os coronéis do ouro elástico. Destruíram, todavia, os
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seus encantos! Luzia despe-se! Coloca-o sobre um velho banco no
canto do quarto! Uma toalha maltratada por quatro anos envolve
o seu corpo castigado. Ouço quando Luzia, feito uma jaçanã
arredia, chama Irene, minha lha do meio, para acompanhá-laaté o porto. Luzia, depois de duas horas da fuga do sol, quando a
noite protege dos abelhudos, vai tomar o seu banho.
Acendo mais um porronca. O meu pequeno Francisco
tosse no outro quarto. Uma infecção pulmonar mal tratada ou
o acre odor do tabaco? Luzia, apesar dos seios ácidos e a pele
transgredida, retorna com o cheiro do rio. Meu corpo afugenta
a ruçara insistente e o cansaço do balde e do sacutelo. Luzia
acomoda-se, dengosa, dentro da rede. O sangue desenvolto
da digestão, conectado à pele quente de Luzia, apressa-se, em
romaria, pelo meu corpo.
Um ritual biológico, mesmo no cérebro de um pária como
eu, vai dominando meu corpo encharcado de Caipora. Minhas
preces roucas e minhas macumbas sombrias escondem-se no
neurônio mais enferrujado do meu chassi cerebral. Como se eu
fosse um peixe Crossopterígeo das águas do Devoniano, preciso
coordenar meu olfato para sentir o cheiro do rio no corpo de Luzia,
concentrar minha audição primitiva para ouvir os seus gemidos
pálidos – se ela geme alto, a corrente de ar intromete-se, levando-
os, pelas brechas da paxiúba – e equilibrar-me na rede, como um
quelônio no balseiro. A visão não serve p’ra mim! Preciso regular
a temperatura do meu corpo – megatons de oxigênio invadem as
minhas veias – e controlar a circulação do meu sangue revolto.
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Cento e cinquenta milhões de anos se passaram – e
eu apalpando Luzia (!)– para que me tornasse um réptil dentro
de uma rede impertinente. O Complexo-R, como se eu fosse
um réptil, um dinossauro, aguça meu estado de agressão.Estou enando minhas unhas na carne nua de Luzia. A sinfonia
noturna das vozes da mata vai reduzindo os seus bemóis.
Feito um mamífero noturno do Carbonífero, sequestro o meu
sistema límbico para utilizar na sucção teimosa dos seios de
Luzia. Sessenta milhões de anos de pura paixão, feito um símio
braquiador – lembrei-me do guariba da janta de ontem à noite(!)
– para que eu percebesse todo o corpo de Luzia. Fiquei em dívida
com o meu cerebelo, por fazer-me notar que os meus braços e
as minhas pernas estavam grudadas nos braços e nas pernas de
Luzia. Um orgasmo vulcânico esparramou-se sobre as pernas
maltratadas de Luzia!
Fumando um porronca, como se estivesse degustando
o néctar dos deuses, percebo que os meus cérebros primitivos
adormecem. Meu neocórtex, como um fantasma biológico,
leva-me de volta à vida. Forçando a articulação dos músculos
da minha laringe, ele ajuda-me a dizer, baixinho: te amo, Luzia!
E, compadecendo-me dos meus bruguelos, lembro que tenho
a encher de leite de seringa – bem mais frio que o leite que
deliciou Luzia – um balde e umas tigelas. A madrugada, maldita,
castigando o meu corpo, empurra-me, gélido, para a oresta!
O vento da madrugada é um vulcão de gelo maltratando
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o meu corpo. Os galhos da envireira estão pálidos. Se eu tivesse
mais de um cobertor - o meu está roto e esburacado(!) – cobriria
a pele fria dos galhos. Eles sustentam a minha rede e a minha
agonia. Luzia, coitada, cou numa rede sem cobertor! Vozesroucas rondam a espera. Minha velha espingarda está como uma
menina no encontro com o amante. Quer dividir o seu fogo com
os enigmas da oresta e fazer estancar o sangue da primeira caça
que aparecer sob a “espera”. Já cuspi algumas dezenas de vezes!
Um novo naco de tabaco bruto está sendo mastigado por meus
dentes pubos.
Insistentes, vozes roucas rondam a “espera”. Um calafrio
percorre o meu corpo. Meus tímpanos desativados sentem que
algo sinistro navega nas correntes de ar. Como a notícia da morte
do meu caçula, ouço uma voz:
– Bastião, me dá um pouco do teu tabaco!
O calafrio que atinge o meu corpo esmaga o meu
raciocínio tacanho e as batidas do meu coração. Trêmula, a luz da
minha lanterna tateia a geograa da “espera”. As vozes da mata
silenciam! Bacuraus e saracuras amedrontados! Nada sob a luz
dos meus olhos! Confesso-me a mim mesmo:
– Acho que dormi e tive um pesadelo!
A sinfonia triste da oresta vai reabrindo em lá menor.
É como se uma jaçanã, teimosa – parafraseando Paulo Diniz –
dissesse:
– E agora, José?
Confesso que a minha valentia de nordestino foi tragada
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por aquela voz assombrosa! Estou há dezenas de quilômetros
da morada mais próxima, a minha choupana. Meu cérebro me
reanima:
– Deve ser um caçador perdido de outra colocação.O silêncio volta a sentar-se no trono da mata. Aito,
mastigo o terceiro naco de tabaco. O tapir não aparece para
degustar a birindiba, a maçã da oresta. Naquela noite assombrosa
- parece-me - a anta pariu na alcova selvagem. Talvez, assim, haja
explicação para a ausência do macho na “espera”. Mesmo com
fome, o tapir está protegendo a cria. Estes pensamentos vão
consumindo o tempo da madrugada e desviando meus neurônios
daquela voz pavorosa.
– Bastião, por Deus, me dá um pouco do teu tabaco!
A mesma voz e o mesmo pavor! Um calafrio percorre
o meu corpo, desmaio. Olho ao derredor, com as unhas fustigo
a minha carne. Estou acordado sobre a “espera”. Tateio a rede,
não encontro o meu tabaco. Agora, aquela voz assombrosa
ganha um acorde humano:
– Não tenha medo, olhe para mim, Bastião!
Lentamente, como se mil ampolas anestesiassem o meu
corpo, dirijo meus olhos na direção daquela voz impertinente.
Perplexo, desconexo e amedrontado, vejo uma imagem
formar-se sob a luz dos meus olhos. Tênues raios da madrugada
inltram-se por entre os galhos e os cipoais. O silêncio da mata
agride meus tímpanos. Como uma mancha de sangue a formar-
se sobre a folhagem, vislumbro a gura de uma mulher. Sua voz,
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estranhamente - no meu imaginário de duas décadas, era um
ente maligno - é mansa, meio febril:
– Sou eu, Bastião, a mãe da mata, a Caipora!
Sobre uma raiz, tragando um porronca, está sentadaa Caipora. Sua pele é negra como uma noite de inverno. Um
pedaço de estopa cobre o seu corpo. Não tenho como detalhar
o seu perl! Quando, após tragar, ela expira a fumaça, percebo
que os seus dentes estão enegrecidos e pubos. Pernas, ventre
e seios cobertos! Seus cabelos, negros e abundantes, mais
se assemelham a um cipoal após a tempestade. É muito feia a
Caipora!
– Bastião, abandona o teu preconceito!
Sinto que a sua voz funciona como um poderoso ópio.
Desaparecem os calafrios. Uma paz inominável invade a minha
alma. A Caipora, novamente, exclama:
– Desce de tua rede, Bastião, vem conhecer a Caipora!
Lentamente, vou desfazendo a subida nos galhos da
envireira. Meu sistema interno de alavancas não permite que,
simultaneamente, eu desça da árvore e contemple a Caipora.
Com os pés no chão, giro meu corpo em direção à Caipora. Um
susto! De pé, a Caipora não tem mais a estopa sobre o corpo!
Sobre o meu, um novo tipo de calafrio. Seus cabelos entaniçados
permanecem. Dentes pubos e enegrecidos. Todavia, algo
espetacular encanta os meus olhos. Pernas torneadas e sedutoras.
Um ventre fumegando desejo - como se a Caipora tivesse uma
dezena e meia de anos - faz-me lembrar do ventre paquiderme de
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Luzia! A minha assombração aumenta quando a minha atenção
concentra-se nos seios da Caipora! Rijos, dourados, mais parecem
dois corações a pulsar! Meu êxtase aumenta na voz da Caipora:
– Abraça-me, Bastião, ajuda-me a destruir o meuenfurecido desejo!
Transtornado, aproximo-me daquele corpo que mistura
beleza, embrutecimento, compaixão e desejo. Dentes, cabelos e
unhas, sujos e enegrecidos. Neles reside o seu embrutecimento e
a minha compaixão! Ventre, pernas e seios, encantadores. Neles
estão a sua beleza selvagem e o meu desejo humano! Uma carga
elétrica percorre o meu corpo. Diabos, ela veio através dos meus
gânglios! Meu cérebro, maldito, está a comandar o meu corpo!
Sua voz é quase um consolo:
– O que foi, Bastião, que desânimo é esse?
Uma mulher inconsolável e um cérebro de Homo habilis.
Sinto que um novo ritual biológico comanda o meu corpo. É
como se eu estivesse habitando cavernas - há dois milhões de
anos - e manuseando as primeiras ferramentas. Meu neocórtex,
poderoso e indevassável, comanda e reelabora as minhas reações.
Aprendi com os galhos das embaúbas, meu neocórtex carrega as
marcas humanas. Lembro-me, nesse instante, da minha Luzia! Os
primeiros raios do sol sobre o nosso casebre trazem, para Luzia,
os primeiros rasgos de preocupação. Minha compaixão cresce na
direção do meu casebre. À pergunta da Caipora, resmungo:
– Estou preocupado com Luzia!
Retorno no tempo uns sessenta milhões de anos. Como
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um primata braquiador, estou a treinar a percepção dos meus
braços e das minhas pernas entre os galhos. Flagro-me apalpando
os braços e as pernas da Caipora. Faltam sessenta milhões de
anos para nascer o meu neocórtex. A minha palavra, por entre osmúsculos da laringe, e a minha reexão, inexistentes, nascerão
pelo manuseio de ferramentas. Meu álibi é forte, delicio minhas
mãos e meus neurônios na carne negra da Caipora. Ela respira o
meu ar carbonizado! Como dois dementes, cada um, lentamente,
vai sentindo o corpo do outro. Como é bom grudar o meu corpo
no corpo da Caipora!
Duzentos milhões de anos recuaram na pré-história,
enquanto meus dedos pesquisam o corpo da Caipora. Estou no
carbonífero e o meu sistema límbico faz comportar-me como um
mamífero. Na placenta, por nove meses, mais setecentas luas na
sucção das mamas da fêmea, quei viciado. Nos seios malditos da
Caipora, acaricio um e enterro no outro os meus dentes pubos.
Naquela histeria surda, vou reconstruindo as minhas catacumbas
e a minha história. Não percebemos quando estamos sobre as
raízes, as folhas pobres ou enrolados na minha rede. O prazer é
sem rédeas e bestial.
Fios de sangue sobre a pele negra da Caipora. Sou um
réptil, um dinossauro. Minhas unhas indomáveis estão cravadas
na carne selvagem da Caipora. Minha agressão anfíbia controla os
meus desejos! Meu olfato primitivo sente o cheiro forte da mata
e da Caipora. Ouço os seus gemidos. Equilibro-me sobre as raízes
para não deixar o meu corpo desgrudar-se do corpo da Caipora.
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Cem por cento do meu corpo e da minha alma estão dentro dela.
Meu chassi neural controla o meu sangue e a minha temperatura.
Grunhidos ininteligíveis brotam de nossas gargantas em fogo!
Minhas veias explodirão! Meu corpo é um vendaval! Meu sanguevulcanizado! Um líquido morno e impaciente invade o ventre
revolto da Caipora!
Sobre o colo negro da Caipora eu descanso da minha
guerra. Combati preconceitos sobre o corpo humano. Desgastei
meus instrumentos bélicos sobre uma carne selvagem e sem
nome. Uma paz incontrolável domina os meus neurônios. Mais
pareço um “leso” contemplando um mundo estranho. Como se
não quisesse, a Caipora exclama:
– Bastião, vou contar-te a minha história!
Assombrado, perguntei:
– Que história tens, Caipora, além daquela de viver
perambulando, triste, pelas matas?
– Eu, Bastião, não vivi sempre nas matas. Como vês, eu
já fui uma bela mulher. No sertão deixei meus amigos e parentes
para acompanhar meu amante.
– E quem foi teu amante, Caipora? – perguntei.
– Um jovem guerreiro nordestino que, para não morrer
no sertão, convenceu-me a perseguir, na Amazônia, o sonho
de enriquecer sobre o mutá. Partimos em direção a estas belas
matas. Durante três anos dividimos um casebre de paxiúba
e palha de jarina. Comíamos do que nos ofertava a oresta.
Bebíamos das águas puras dos riachos e fazíamos amor sob o
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silêncio da sapopema.
– Por que, então, estás aqui, Caipora? – duvidei.
– Um dia apareceu, na colocação, um jovem que mais
parecia um guerreiro celestial. Meu marido estava na estrada-de-seringa. Aquele jovem encantou os meus olhos com a sua bela
roupa, a sua linguagem e o seu perfume. Entreguei-me a ele como
uma menina de seringal. Quando degustava a última ejaculação,
ouvi os latidos dos cães.
– O que tem a ver a Caipora com latidos de cães?
– Meu marido apareceu no terreiro, com a sua espingarda,
como se fosse uma cascavel. O jovem guerreiro, como uma cotia,
recebeu no seu peito um tiro de doze. Por entre as bananeiras
persegui o refúgio da oresta. Como um porco-do-mato, há uma
dezena de anos, vivo comendo raízes e frutos.
– Caipora, eu te darei novo lar. Para ti construirei um
casebre, longe do meu, e, uma vez por semana, te visitarei.
Raios teimosos do sol atingiram o meu rosto. Apalpei
minha companheira. Apenas, uma espingarda fria.
– Diabos! Por uma noite estivera sob as garras tétricas
de um pesadelo.
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O PORTO
Anderson do Couto Candido
E o parecer dos gafanhotos era semelhante ao de cavalos
aparelhados para a guerra; e sobre suas cabeças havia umas coroas
semelhantes a ouro; e os seus rostos eram como rostos de homens.
(Apocalipse 9:7)
E foi lhe concedido que desse espírito à imagem da besta, para que
também a imagem da besta falasse, a zesse que fossem mortos
todos os que não adorassem a imagem da besta.
(Apocalipse 13:15)
Porto de Rio Grande (Rio Grande do Sul)
O frio calava os sentidos. A neblina a tudo possuía. A
brisa marinha trazia a umidade como se fossem levas de ondas
vagarosas, mas persistentes. Os barcos e os navios atracados
pareciam esqueletos atados às suas tumbas. Silêncio. Os trapiches
estavam emudecidos. Não se distinguia nada a dez metros de
distância. As cábreas estavam estáticas, como um monumento
vivo naquela ermidão de sons, esperando o dia seguinte para
içar mercadorias aos gulosos porões mercantes com destinos
variados.
Na vigia, somente o aposentado Ovídio de quando
em quando passava no pátio entre barris, caixotes, tratores,
máquinas, gruas e sujeiras movidas a óleo e graxa. A maior parte
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cava no alto da torre, junto ao auxiliar Clóvis, que se deliciava
do frio com uma garrafa de cachaça 51. Bebia para entreter-se
e apagar lembranças amargas e pesarosas que lhe batia em
cheio no crânio. O parricídio que cometera, quando adolescente,sempre martelava sua consciência, mesmo tendo o álibi de
ter cometido em autodefesa. Os abusos do pai, a violência e a
torpeza dele extravasada, levara-o a um único e sutil disparo de
uma .45 quando fora atingido por uma navalhada que lhe cortara
a orelha, em mais um rompante do pai. Viu quando sua cabeça
foi estourada e miolos, sangue, carne e cabelos foram cuspidos
para o alto, xando-se no teto e na parede, na imagem de Nossa
Senhora da Aparecida – dando-lhe um tom mais dramático – e
escorrendo lentamente pela parede abaixo formando uma mini-
poça. Pacientemente, chamara a polícia. A vizinhança provara
aos policiais e à justiça, que as crianças eram alvos frequentes do
desvario alcoólico do genitor.
Estando juntos na cabina de comando, trocavam prosas
e álcool. Apesar de estarem bem agasalhados e protegidos pela
vidraça, o frio era cortante. Histórias corriam de um lábio ao
outro.
– Pois estou lhe dizendo, Clóvis. Já vi muita coisa nesta
vida. Coisas que te fariam arrepiar seu cabelo do saco! Seu
estrume! Já vi até o demônio! Já vi o Cavalo-de-Três Pés até!
– Que história é essa, bah!
– É o raio de animal assombroso que aparece nas
estradas desertas à noite. Ele corre dando coices e voando.
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Não tem cabeça, mas tem asa. E quem pisar em seus rastros,
será imensamente infeliz. E olhe que vi e me aconteceu uma
infelicidade danada. Perdi em três anos minha mulher, minha
lha, minha casa, minha prossão, tudo de mais precioso que umhomem pode querer.
Começou a chorar convulsivamente. Clóvis, que igual ao
amigo, já estava meio alto se compadeceu e lhe abraçou, mesmo
sabendo da desgraça que o amigo sofrera, era um danado de
mentiroso. A garrafa estava vazia, mas debaixo da mesinha,
escondida numa caixa de lâmpadas, um frasco com rum foi
sacado. Beberam mais um pouco. Esvaziaram. Conversaram,
beberam. Riram, choraram, gargalharam. Duas horas da manhã.
Esvaziaram também suas bexigas lá do alto, adicionando mais
umidade ao pátio. Clóvis resolve descer a m de preparar um
chimarrão. Tropegamente desce os perigosos degraus de aço.
Já no nal, desequilibra-se e cai. Olha mediante e uma névoa,
caliginosa – densa e escura – surge diante de seus olhos. Não
divisa nada. Aos poucos a névoa dissipa-se. E ele vê uma forma
animal materializar-se. Um cavalo? Uma égua? Um boi? Pisca os
olhos e a imagem esvai-se. Segue adiante, prepara a bebida e
volta ao posto. Não fala sobre o ocorrido com Ovídio.
Três horas da manhã. Um zéro sopra forte do mar. O
silente porto parece sumir na neblina. Mais forte, mais escura. Os
amigos ouvem sons no pátio. Despertam e descem as escadas,
com lanternas acesas e armas em punho. Vacilam nas próprias
pernas. O álcool sai rapidamente de suas almas quando avistam a
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imagem que Clóvis vira. Agora mais perfeita, mais próxima, mais...
real! Olham-se. O nevoeiro baixa e encobre tudo novamente.
Clóvis diz que já tinha visto aquilo, mas não falou por achar o
amigo que estava bêbado e vendo coisas.– Chê! O que era aquilo, Ovídio?
– Não sei não. Mas não vamos car aqui parados. Vamos
vasculhar. Parece um cavalo perdido no pátio. Deve ser de algum
circo ou parque que fugiu daqui dos armazéns.
Percorreram silos, becos, barcos e nada.
– Sabe, Clóvis. Lá em Lagoa Vermelha, onde nasci, tinha
o boato ou lenda, da Mula-Sem-Cabeça. Parecido com o Cavalo-
de-Três Pés. Ela galopa a noite assombrando, dando coices e
soltando chispas de fogo pelas narinas e pela boca. Às vezes
soluça feita criatura humana. Dizem que para evitá-la, de um
possível ataque, tem que esconder as unhas e os dentes.
– Oh, Ovídio! Como é mula-sem-cabeça, se você acabou
de dizer que solta fogo pelas narinas e boca, eh? Bah, tchê!
Barbaridade! Conta outra!
– Ô seu ignorante, é um modo de contar, é a lenda. Às
vezes ela aparece com cabeça e aí ela solta estas fumaças todas.
Outras vezes, deve aparecer mesmo sem cabeça, e ela cou mais
conhecida assim, pois devia assustar bastante, viu seu grosseirão.
Vê logo que tu não tens cultura mesmo.
Um soluço cortou a madrugada e os ouvidos dos
gaúchos. Agora outro e mais outro. Em seguida um leve tropel;
depois um galope varou o pátio sul e arrancou em direção ao
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norte onde se encontravam. Preparam suas armas. O medo lhes
fazia de reféns. O frio dissipara-se de seus membros. Estavam
alerta. Podia-se, ver o álcool evaporar-se rapidamente de
seus corpos, tão amedrontados quanto seus hospedeiros. Aslanternas direcionaram para o barulho. As lanternas também.
A cavalgada estava próxima, mas a névoa impedia a visão. Mais
soluços. Agora um relinchar medonho, apavorante, intrigante.
As armas apontaram o desconhecido. Raízes se zeram nos
seus pés. O pânico chegara, mas o aprisionava no sólido asfalto.
Faíscas saltaram no meio da neblina. Cada vez mais perto, mais
terricante. Ovídio saiu do seu torpor.
– Clóvis, meu velho. Acho que bebemos muito. Estamos
vendo coisa. Estamos ouvindo coisa. Eu posso jurar pela minha
mãe mortinha que é um diabo de Mula. É a Mula-Sem-Cabeça que
te falei. Só pode ser praga do Criador. Meu Deus, homem ela vai
nos atacar!
Eis que surge na névoa o animal mais incrível que os
contos gaúchos podem proporcionar. Era uma hedionda mula.
Com as nuances da neblina, parecia ora, com cabeça, ora sem. O
próprio diabo parecia ser a cabeçorra. Olhos vermelhos infestados
de ódio. Patas que se assemelhavam a porretes potentes. Uma
crina, vistosa, úmida e brilhante cobria-lhe o corpanzil. Quando
surgia sem a cabeça, um fundo negro sem m divisava no esbelto
pescoço. Chamas ardentes, iluminando a escuridão do porto e as
faces espantadas dos gaúchos ali presentes, era a personicação
do mito, da lenda. Enquanto Ovídio admirava a aparição, Clóvis
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disparou a arma várias vezes, praguejando, destemido, resoluto.
A névoa encobriu o quadrúpede. Em instantes estava ela agora
na face de Clóvis. E ele viu o inferno de perto. Viu a tremenda
fossa que era o pescoço da besta. Um sopro lhe cobriu a cabeça.Uma massa incandescente ardeu no porto lançando
gritos lancinantes na triste noite do Rio Grande, enquanto a
cidade dormitava. Os bons anjos faziam a guarda daquelas casas,
camas, e mulheres, velhos e crianças e alguns homens também.
Mas ali no porto, qualquer vestígio de divindade parecia ter se
esquecido dos nossos amigos.
Clóvis jazia carbonizado no longo pátio. Ovídio corria sem
parar com a mula em seu encalço. Preces não faziam efeito, nem
uma alma boa surgiu para, afastar a aberração que o perseguia.
Já exausto, tendo descarregado sua arma na criatura que pouco
ou nada afetara, já desfalecendo, lembrou-se do caso, do seu
caso contado em Lagoa Vermelha. Estacou. Virou. Fixou o olhar
na criatura que chegava. Com toda a força de seu pensamento,
para conter o pânico, abriu bem a boca mostrando todos os seus
imperfeitos dentes e esticando as mãos esperou o animal. Fechou
os olhos. Abriu. E lá estava, bem na sua frente, o horrendo animal
assombroso. Virou sua cabeçorra, que se transformara em uma
fossa tal como um canhão apontado para o alvo. Ele era o alvo.
Em segundos fechou a boca e enluvou as mãos, escondendo as
unhas compridas e sujas. O silêncio pairou. O animal estacou,
virou-se, e saiu trotando neblina afora até o pátio sul. Parou,
virou, deu um relincho gutural e empinou feito o cavalo Silver do
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Zorro no horizonte. A neblina tornou a varrer o pátio. Sumiu.
No dia seguinte, Ovídio foi preso acusado de matar o
colega de trabalho, após discutirem, e lhe tacou fogo com uma
garrafa de álcool. Ovídio contestou o fato. Acabou preso e emseguida transferido para um sanatório, onde até hoje, tenta
convencer os médicos, enfermeiras, amigos e parentes e os
próprios doentes, da sua versão.
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A SEREIA SEM CANTO
Priscila Machado
Cassandra é meu nome. Não Iara. As pessoas, em geral,
têm o péssimo hábito de pensar que todas nós somos Iaras. Há
muitas sereias na região Norte do Brasil. Nossos antepassados
eram índias que, por um motivo ou outro, acabaram sendo
transformadas em “rainhas das águas”. Diz a lenda que amávamos
contemplar nosso próprio reexo no rio, pentear os longos
cabelos e seduzir os transeuntes... Na verdade, nunca fomos
exatamente assim. Hoje tudo mudou e precisamos proteger
nossa espécie. Temos um eciente sistema de camuagem e
procuramos controlar o que acontece nos rios, para proteger a
fauna e a ora dos humanos nojentos. Aqui no Rio Solimões os
sapos são nosso sistema de vigilância da superfície. Eles estão
por toda parte, cobrem toda a extensão das margens e coaxam
alto o suciente para alertar quando há perigo. Ir à superfície é
um acontecimento raro e essencialmente perigoso no século XXI.
***
Splash!!! Splash!!! Splash!!!
Cassandra acordou assustada com o barulho
ensurdecedor. Era seu despertador, o Lino, um peixinho miúdo
que prestava serviços como esse em troca de proteção. Anal,
ela é - mais ou menos - o que nós humanos chamaríamos de
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policial. Comeu algumas algas e partiu direto para a Estação de
Controle.
— Bom dia, Cassy. Temos um problema na Área III. Vá
checar.— Bom dia, Capitã. Sim, senhora.
Cassy?! Miranda era a autoridade maior da Estação e
sabia que Cassandra odiava apelidos. Por isso mesmo não se
cansava de inventar um milhão deles. O dia já começava mal. Para
piorar, o problema na Área III era uma briga de enguias elétricas,
conhecidas aqui pelo nome “poraquê”. Uma gostava do marido
da outra, algo assim. Ninguém merece. Depois de muitos choques
e xingamentos, o escândalo foi contido. Cassandra voltou ao seu
posto com algumas queimaduras leves. Aquilo era quase pior
que conter protesto de jacarés-de-papo-amarelo.
Miranda veio nadando em sua direção. O que
vai ser dessa vez? Cassandrinha? Cassilda? Empanado-de-peixe?
Baleia verde?
— Cassandra, temos uma emergência.
Epa, Cassandra?! A coisa é séria. O rosto no de Miranda
se retorceu, como se ela tivesse comido algo amargo. Finalmente,
disse:
— É uma missão na superfície.
— Na superfície? E você quer que eu vá? Não acho que
eu seja muito qualicada...
— Não tenho escolha. Você sabe que estamos com
décit de sereias por aqui.
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É claro que ela sabia. Anal, sua espécie está em extinção.
— Ok. O que devo levar?
***
Em alguns minutos Cassandra estava nadando habilmente
em direção ao sol, seguindo as coordenadas que Miranda havia
lhe dado. Xingava baixinho quando tucunarés desajeitados
esbarravam em sua calda verde-limão. Chegou rápido. Analisou o
ambiente ao redor e logo escutou os berros de um animal. Era um
pato selvagem, que agonizava perto da margem e estava quase
se afogando. Ela o curou com suas habilidades medicinais (pode
chamar de magia, se quiser) e descobriu o motivo do sufoco: um
papel de bala preso na goela. Malditos humanos imundos!
— Malditos huma... ZAP!
Antes que completasse sua maldição, foi agarrada por
uma rede metálica. Desnorteada, se debatia em vão, quando viu um
homem sair das sombras de uma gigantesca mangueira. Estúpida!
Ela devia ter pedido para as libélulas vericarem atrás das árvores.
Começou então a cantar, mas de todas as sereias, ela era a que
possuía menos habilidade para esse tipo de coisa. Olhou dentro
dos olhos castanhos de seu captor, e foi a última coisa que viu.
— Hora de dormir, Iara.
Ele lançou um dardo tranquilizante em seu braço, e
imediatamente o dia se desmanchou em uma escuridão líquida,
intensa e cheia de pesadelos.
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***
Cassandra acordou com o cheiro forte de fumo, como
se partículas sólidas entrassem em seu nariz. Dezenas de dentesamarelados saltavam da boca de um homem, que sorria para ela.
Só então percebeu onde estava. Na superfície! Dentro de um
aquário apertado, que não cabia seu corpo todo, num casebre
provavelmente no meio do nada.
— Olá, belezura! Meu nome é Almir, qual é o seu? Ah,
não diga, deixe-me adivinhar, você deve ser a Iara, não é mesmo?!
— Riu-se o homem.
Almir se parecia muito com um javali. Até mesmo seus
dentes se curvavam para fora da boca, formando algo parecido
com presas. Tinha alguns apos de cabelo e uma barba tosca,
além de uma espingarda e um cachimbo, que Cassandra pensou
já ter visto em algum lugar.
— Vou na cozinha, a senhorita está com fome? Aceita
um peixinho frito? – Riu novamente.
Sem conter a felicidade, o captor cuspia piadas infantis
e insultos que ele parecia achar muito engraçados e inteligentes,
já que gargalhava até quase perder o fôlego. Cassandra estava
assustada, mas como “policial” treinada, olhava ao redor para
achar uma saída. Foi então que percebeu um objeto curioso
sobre a estante de madeira, perto da janela aberta...
Seu estômago embrulhou, e ela desejou mais do que
nunca estar em casa. Chocada, seus olhos iam da estante para
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Almir e se lembrou de onde conhecia o cachimbo que agora
pendia daquela boca fétida. Era o cachimbo do Saci Pererê, que
completava o ambiente macabro junto com o objeto na estante
de madeira: um par de pés bem incomum, virados para trás. Eramos pés do Curupira. Amputados e exibidos como troféus.
***
Cassandra é sereia desde que consegue se lembrar.
Às vezes sonha consigo mesma bem pequena, em uma família
humana, mas os sonhos acabam virando pesadelos habitados
por guerra, ódio e poluição. Seu rancor pela espécie que destrói
diariamente o próprio planeta é visível. No entanto, quando as
sereias estão em ambientes hostis (na superfície, fora d’água),
a cauda se transforma temporariamente em pernas e então elas
podem se passar por humanas. Este sempre foi o medo secreto
de Cassandra, criar pernas e se tornar idêntica àqueles que ela
tanto despreza.
***
O captor voltou da cozinha com uma lata de cerveja e
um machado, e Cassandra sabia que era o seu m. Teria a cauda
decepada, empalhada e exibida na estante. Fechou os olhos e
tentou pensar em coisas boas. Ou seja, tentou pensar que não
estava presa por um humano que logo iria extinguir de vez ela
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e todas as suas irmãs de calda. Veio o primeiro golpe. Ela não
sentiu nada. Devia estar em choque, ou algo assim.
Crec! Abriu os olhos no exato momento em que milhares
de cacos de vidro se espalhavam pelo chão, tilintando. Almirerrou o primeiro golpe e acabou quebrando o aquário.
— Que sorte hem, Iara? Eu não devia ter bebido essa
cerveja. Mas não se preocupe, não errarei o próximo.
— Pare! — gritou Cassandra. — Tenho um último pedido
a fazer.
— Claro, queridinha, o que eu não faria por uma sereia
indefesa e à beira da morte?
— Quero experimentar uma cerveja.
— Nada mal para um último desejo, hã? – Divertiu-se à
custa da sereia.
Quando Almir virou as costas e foi em direção à
geladeira, Cassandra já via dez dedos despontarem de sua
barbatana cintilante. Silenciosamente pulou a janela que dava
para a oresta e correu em meio aos vagalumes, que voavam
tranquilos, espalhando pela noite suas luzinhas bruxuleantes.
Ouviu passos pesados e descontínuos. Subiu desajeitadamente
em um pé de jambo.
— Cassandra, é você?
Com os olhos embaçados pelo breu da escuridão, ela viu
um vulto de capuz. Com uma perna só.
— Saci, me ajude!
— É para isso que estou aqui. Vi quando você foi
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capturada, mas não pude fazer nada, o cara-de-javali estava
armado.
— Quem é ele? E como ele sabe quem somos nós?
— Almir é um pesquisador e assassino. Colecionaprovas da nossa existência. Quer nos revelar ao mundo e ganhar
prestígio e fama, pra variar.
— Que droga! Precisamos recuperar os pés do curupira
e seu cachimbo!
— É o que venho tentando fazer, mas o humano não
desgruda da cabana.
— Nem se uma sereia com pernas aparecer na sua porta?
***
— UMA CERVEJA? PELO AMOR DE DEUS, ALMIR!! E
COMO RAIOS ESSA SEREIA ESCAPOU?
Almir estava furioso, gritando e quebrando todos os
copos da cozinha, quando ouviu alguém bater na porta.
— Mas que merda é essa? Quem é?
Girou a maçaneta bufando. Na sua frente estava uma
jovem de cabelos longos. Enraivecido e vermelho como urucum,
saiu correndo atrás de Cassandra. Parou quando sentiu uma dor
aguda em sua perna direita.
— AAAAAI! O que você fez, sua bruxinha?
Saci saiu detrás de uma moita, segurando um arco.
— Gostou da echada, javali?
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Almir estava prestes a soltar um palavrão, então viu o
céu ser iluminado por labaredas e cou mudo. Sua cabana estava
em chamas. Todos os seus artigos, fotos e provas cientícas
da existência dos seres mágicos eram lambidos e consumidos
pelo fogo. Só restou nele o ódio. A certeza de que sua vida fora
desperdiçada. Sacou do coldre escondido sua pistola 38 e mirou no
peito de Saci, que gargalhava admirando as chamas criadas por ele.
QUÁÁÁK!!!
No mesmo instante, um bando de patos selvagens saiu da
escuridão e atacou Almir, bicando todo o seu corpo e cortando sua
pele. Saci desapareceu na oresta e Cassandra correu para o rio,
rindo da mãe natureza e agradecendo a ela.
Almir foi resgatado por um helicóptero dois dias depois.
Não conseguia se mover, tinha perdido muito sangue. Jurava para
Deus e o mundo que tinha sido atacado por patos.
— E patos sabem atirar echas, meu lho? — perguntava
Geneci, mãe de Almir.
— Lógico que não, mãe, já te disse, a echa foi o Saci
Pererê!!
***
Cassandra foi promovida a capitã, o que deixou Miranda
nos nervos. O Curupira ganhou próteses, mas agora tem os pés
normais. Saci não fez outro cachimbo, decidiu largar o vício. Almir
agora vive em Manaus, no Hospício Santa Iara.
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A MISTERIOSA ORIGEM DOS FILHOS D’ÁGUA
JBAlves
Em muitas dessas histórias existe sempre a presença de
guras diferentes e encantadoras que às vezes são confundidas
com os elementos da natureza.
Observamos muitas vezes que as lendas nos contam de
belas mulheres feitas do vento sul, que com suas vestes utuam
silenciosas pelas campinas do mundo, outras vezes, podemos
escutar histórias de seres feitos de fogo, que de tão belos tiveram
seus amantes queimados num abraço.
Nesse momento, vamos conhecer a história de um grupo
de seres formados pelo elemento água, domínio do mitológico e
poderoso Posídon5, que se misturou ao barro dos descendentes
de Adão e que veio habitar os lagos e rios do Brasil.
Conta-se que na época que os homens ainda estavam
aprendendo como era vasto o mundo o belo rio Achelouse6
se apaixonou por uma ideia, uma musa inspiradora chamada
Terpsícore7 em um baile local promovido pela corte das altas
fadas. E foi dessa paixão que nasceu um grupo de criaturas
conhecidas como Sirénios8.
5 Deus do mar e dos terremotos, em tempos longínquos associado a cavalos. Porta um
tridente e desloca-se, sobre ondas, em uma carruagem puxada por cavalos marinhos.Filho de Crono e Reia, irmão de Zeus, Hades, Hera, Héstia e Deméter. Em Roma,associado a Netuno. (Todas as notas deste conto são do Organizador) 6 Achelouse ou Aqueloo: rio oeste da Grécia. 7 Uma das nove musas, Terpsícore é a musa da dança. 8 Outro nome para sereias.
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Como o pai, eles eram belos como as águas, mas
perigosos como o afogamento. E como sua mãe, eram lindos
e podiam inspirar as pessoas com sua voz e dança. Quando
podiam, cantavam para o mar e para as montanhas. E cantavamcom tanta doçura que os animais se distraíam e por vezes sofriam
acidentes estranhos. Podemos citar alguns exemplos de sua
inuência quando observamos algumas aves que se chocam com
as árvores, os lêmingues que correm em direção ao mar ou os
seres humanos que colidem seus navios quando passam muito
perto de sua música.
Como muitos acidentes aconteceram, os seres humanos
começaram a espalhar boatos de que eles eram criaturas
malécas, mas a verdade é que nós nunca conseguimos escutar
tudo o que a música deles signicava.
Dizem que apenas o herói Odisseu9 conseguiu escutar
toda uma canção porque se amarrou ao mastro de seu navio,
para poder ouvi-la sem ser distraído. E que foi deste dia em
diante que ele denitivamente se apaixonou pelo mar e por sua
maravilhosa canção.
No início, os Sirénios não tinham corpo, eram como as
águas do rio que formavam seu pai. Mas com o tempo, enquanto
observavam os seres humanos que começavam a habitar a costa
eles começaram a sentir a necessidade da mudança. Foi na Grécia
Antiga, quando alguns deles propuseram ao mar uma troca. Eles
dariam parte de sua voz para poderem vestir corpos físicos.9 O mais inteligente e astuto dos guerreiros gregos que participaram da Guerra de Troia; foi dele,aliás, a ideia do Cavalo. Em Roma, identicado como Ulisses.
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E foi assim que surgiu o grupo conhecido como Sereias
e Tritões, criaturas parte humano e parte peixe que vivem nas
profundezas do mar. E é por isso que quando você escuta o mar,
bem no fundo do barulho das ondas, você também escuta a vozque os Sirénios deixaram como parte de sua barganha.
E antes que pensem, essas criaturas também não podiam
ser consideradas más ou mesquinhas. Elas continuavam sendo
como o mar, misteriosos para os curiosos e traiçoeiros para os
desavisados.
E sua maior arma não era sua música, mas o seu silêncio,
pois quando se calavam é que eles poderiam retornar por breves
momentos à sua condição original, invocando assim todo o poder
das águas contra seus opressores.
Mas essa ainda é apenas parte da origem das Iaras que
na realidade descendem de uma bela sereia chamada Ligeia10,
que tinha como pai um velho tritão casado com uma bela sereia
do mar do norte.
Quando Ligeia aprendeu a andar como um ser humano,
ela decidiu viver parte de seu tempo próximo de uma casa à beira
do rio para assim conhecer mais de perto aqueles atrapalhados e
nervosos seres humanos. E embora fosse uma criatura do outro
mundo, acabou se apaixonando por um belo e incauto jovem de
nome Orfeu11, que por lá vivia.
10 Sereia filha deus-rio Aqueloo e da musa Terpsícore ou filha de Aqueloo com Estérope.11Lendário citaredo de Trácia, que teria descido ao mundo subterrâneo para encontrar a alma da falecidaesposa, Eurídice, e retornado. Uma série de crenças (orfismo) e um culto de mistérios, ditos “de Orfeu”,emergiram no século VI a.C. Diversos escritos atribuídos a ele circularam durante a Antiguidade; asteogonias e hinos são coletivamente conhecidos por “poemas órficos”.
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A união foi breve, pois seus encontros eram cheios de
diculdades uma vez que ela sempre tinha de voltar para as
águas para descansar e car com sua família enquanto ele tinha
uma vida seca, porém agitada em terra.O maior tempo que eles passaram juntos foi durante
cinco anos e isso só aconteceu depois de muitos pedidos dele.
Ligeia só concordou em viver um tempo em terra rme porque
Orfeu aceitou uma condição muito especial. Ele não poderia
cantar para nenhuma outra pessoa sem que ela estivesse
presente e o autorizasse.
Por que isso? Porque Orfeu havia aprendido a cantar
com a voz das águas e somente isso ajudava Ligeia a car em
terra rme, além disso, ele sempre deveria respeitar os mistérios
do outro reino, honrando agora aquela que seria sua esposa.
No entanto Orfeu, além de jovem e incauto, também
sofria dos males de ser homem. Ele era orgulhoso e sentia dentro
de si uma vontade imensa de impressionar as pessoas à sua volta.
Foi assim que um dia ele acabou cedendo ao desejo e
cantou para as pessoas de uma vila próxima justamente no dia
em que Ligeia não estava com ele.
E assim, o encanto se desfez, e Ligeia perdeu toda a
conança nas palavras de seu marido. E mesmo grávida de Orfeu
ela desapareceu nas profundezas do Oceano.
Ela estava desapontada com o mundo temporário e
ao mesmo tempo rígido dos seres humanos. Sendo assim, ela
resolveu se afastar o mais longe possível das águas onde sempre
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nadou visando permanecer mais próxima da natureza e longe da
humanidade que estava se expandindo como formigas por todo
o lado.
Ela queria se afastar de todos os dilemas e de todo osofrimento dos homens, de seus anseios, seus sonhos, suas
necessidades, sua impotência diante do universo, suas desilusões,
seu anseio por amor e sua falta de sentido. E foi assim que Ligeia
começou sua viagem.
Orfeu, no caso, continuou procurando por aventuras, e
em uma delas inclusive usou das canções que havia aprendido
para ajudar outros heróis. E anos depois, sua voz, que era linda
para os padrões humanos conquistou o coração de uma bela
jovem chamada Eurídice que bem no dia de seu casamento,
infelizmente, distraiu-se por causa de um Fauno e acabou
morrendo devido à picada de uma serpente.
Mas para Ligeia isso pouco importava. Havia decidido
viver longe dos humanos e por um tempo nadou na direção oposta
da casa dos Sirénios indo habitar as profundezas escuras de um
grande rio chamado Amazonas, bem no centro do continente sul
americano.
E foi assim, nas águas tropicais de outro continente, que
as duas lhas da sereia Ligeia e do humano Orfeu nasceram. E
desta união elas herdaram a beleza sobrenatural e os dotes da
música da mãe, mas também o sangue humano teimoso, revolto
e propenso a gostar de aventuras.
Enquanto na Europa os humanos se espalhavam e
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destruíam toda a magia antiga do mundo, Ligeia criava suas lhas
com calma e sabedoria. E as duas, seguindo os passos da mãe,
passaram também a acompanhar e ajudar alguns humanos que
viviam em seus domínios.Com o tempo, inclusive, elas também se enamoraram
com alguns dos maiores guerreiros índios que conseguiam
atravessar o Amazonas a nado e, destes encontros, os netos de
Ligeia nasceram.
Seus descendentes se espalharam pelas águas enquanto
o nome Ligeia se diluiu e foi sumindo pouco a pouco. Hoje, ela é
mais conhecida como a Mãe-d’água, a linda sereia que vive no rio
Amazonas e que agora tem uma bela pele morena queimada de
sol, profundos olhos castanhos e cabelos negros e longos.
Sua descendência cou conhecida pelos índios Tupi que
deram as netas o nome de y-îara, que signica senhora das águas
e aos netos o nome de ïpupi’ara, que signica monstro marinho.
Isso aconteceu porque as lhas e netas da Mãe-d’água
normalmente se mostravam como peixes ou belas mulheres.
Enquanto os netos adoravam atormentar os indígenas adotando
a forma de monstros deformados.
Isso mudou quando alguns mercadores vindos da
Europa começaram a fazer negócios com os indígenas. Entre
eles existiam alguns caçadores de lendas, guerreiros treinados
em usar ferro frio como arma ideal contra os seres místicos.
Isso aconteceu em 1564 na praia de São Vicente, em São
Paulo, local da primeira vila brasileira. Um Ipupiara decidiu tomar
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a forma de uma criatura de aparência repulsiva com mais de três
metros para assustar uma bela índia chamada Irecê que acabou
fugindo apavorada até a vila. Lá, o capitão Baltasar Ferreira cou
sabendo do ocorrido e logo se pronticou a enfrentar o monstro.
O capitão matou o Ipupiara a golpes de espada e voltou
para contar para todas as pessoas como era bestial, faminta,
repugnante e de ferocidade primitiva a criatura.
Deste dia em diante, indignados tanto pela morte do irmão
quanto pela descrição que o capitão zera, todos os Ipupiaras
decidiram não mais adotar a forma de monstros, e seguindo a tática
de suas irmãs, só saiam das águas com a aparência de belos homens
que usavam as roupas mais belas e caras da época.
Assim, eles apareciam nas festas de forma tão elegante
que encantavam e seduziam todas as mulheres. Eles dançavam a
noite toda com as mais jovens e mais bonitas da festa e, quando
podiam, saíam com elas para passear pela madrugada.
E é essa a origem das Iaras e dos Botos que hoje habitam
as águas brasileiras. Belas criaturas feitas de água e música, que
ocasionalmente abanam a cauda fazendo-a brilhar ao sol e acabam
encantando algum mortal que se encontra na praia.
E é sempre por causa desse encontro que muitos acidentes
acabam acontecendo, pois alguns humanos simplesmente
os seguem para debaixo da água, esquecendo-se de que não
sobrevivem muito tempo sem oxigênio.
Aqueles que não se afogam, quando voltam trazem nos
olhos o brilho de outros reinos, pois avistaram o limiar de um
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universo quase incompreensível à mente humana.
E é assim, depois de terem se deparado com esse reino
submerso, que muitos poetas e músicos, dramaturgos, visionários
ou místicos surgiram enquanto tentavam descrever sua experiência.
Mas e hoje?, você pode se perguntar, agora que os seres
humanos se espalharam e estamos presentes em todo o lugar?
Será que a Mãe-d’água continua vivendo no fundo do Amazonas?
Será que você pode encontrar seus lhos espalhados por todo o
canto? Eu acredito que sim! Mas é preciso que você preste bastante
atenção aos sinais à sua volta.
Antigamente, por exemplo, você podia identicá-los por
causa do forte odor de peixe e do hálito de maresia. No entanto,
um bom banho e uma bala de menta ou pasta de dente acabam
acobertando isso. Mas existem outros sinais a serem considerados.
Primeiro todos eles têm uma bela voz. Segundo, todos, sem
exceção, têm a mania de paquerar. E terceiro, todos eles precisam
car em contato com uma grande quantidade de água.
Pensando nisso, talvez seja um boto aquele belo moço
cantando no fundo da lanchonete à beira-mar, ou talvez seja uma
Iara aquela linda professora de natação que todo jovem aluno se
apaixona.
Sei que todos eles trazem dentro de si um pouco do mar,
e de vez em quando eles voltam para casa para poder visitar a sua
mãe e, quem sabe, uma vez mais, respirar novamente o ar daquele
misterioso, perigoso e sedutor mundo da Mãe-d’água.
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A MAGIA DA FLORESTA
Sirius
Taisha pegou uma corda e amarrou a vassoura nas
costas. Levava os quatro objetos que protegeriam-na e seus
amigos no local consagrado à Matinta-Perera: uma tesoura, uma
chave, um rosário bento e uma vassoura virgem. O ritual exige
que a chave seja enterrada e a tesoura ncada em cima do local.
O rosário precisa ser enrolado na parte superior da tesoura. A
vassoura virgem é para limpar o local depois do ritual.
Taisha era uma jovem bruxa, mas até a bruxas temiam
encontrar Boiuna, a cobra grande, na oresta. Ela estava
acompanhando seu amigo Rafael, o menino que queria conhecer
os seres sobrenaturais da Amazônia; Leleio, um duende amigo,
era o guia e procurava a velha trilha que conduzia ao domínio da
Matinta-Perera. Fazia tempo que a trilha não era usada e o mato
havia crescido, cobrindo-a. Leleio, com uma machadinha na mão,
ia abrindo caminho. À medida que o grupo avançava adentrando
na mata, a vegetação se tornava mais e mais espessa. Rafael
reconheceu altas seringueiras, árvores de guaraná, castanha-
do-pará, timbó, sumaúma, cipós, plantas parasitas e belíssimas
orquídeas, além de outras árvores, plantas e ores que via pela
primeira vez em sua vida.
Rafael tinha muito interesse em temas ecológicos,
gostava de ler e pesquisar na Internet sobre plantas, pedras
e animais. Viu que os ramos e folhas do lugar estavam com os
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ápices voltados para o chão, Rafael sabia o porquê disso, sabia
que a umidade e as chuvas faziam com que a mata da Amazônia
estivesse adaptada a excesso de água. Por isso parecia que folhas
e ramos olhavam o chão, para gotejar.Leleio ouviu um som agudo, parou e olhou para os lados,
depois continuou devagar, atento a qualquer ruído. Outra vez o
mesmo som, sibilante. Deteve o passo, colocou sua mão direita
sobre a orelha em forma de concha para fazer acústica e ouvir
sons longínquos. Rafael olhou-o em silêncio. Leleio esquadrinhou
a mata, suas pupilas estavam dilatadas e os ouvidos atentos.
Taisha o olhou e desamarrou sua vassoura, queria estar preparada,
caso precisasse usá-la. Leleio ouvia alguma coisa que Taisha não
percebia. A capacidade auditiva dos duendes é bem conhecida
pelas bruxas. Com suas orelhas grandes e uma sensibilidade
auditiva invejável, escutam ultrassom sem nenhum esforço.
– Ouviram?
– Não... o quê, Leleio? – indagou Rafael
– Por aqui tem cobras, vamos voltar e abrir outra trilha,
paralela a esta. Temo que estejamos entrando nos domínio de
Boiuna.
Taisha fez uma pausa, realmente há algo estranho neste
lugar, acrescentou olhando a sua volta com desconança. Mordeu
o lábio inferior, como sempre fazia quando estava preocupada.
Voltaram sobre seus próprios passos. Leleio na frente,
depois Rafael e por último, Taisha. Leleio tinha a machadinha na
mão e cortava a mata que impedia a caminhada, mas sua atitude
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havia mudado. Andava devagar, mexia a cabeça para os lados
tentando olhar tudo a seu redor: folhas de árvores, lianas, cipós,
ores, pássaros. Nada que indicasse perigo. Estava nervoso e seu
enorme nariz cou avermelhado, como o nariz de umbêbado. Seu nariz estava quase todo vermelho e seu olfato mais
aguçado do que nunca, sentiu cheiro de mercúrio. Ele sabia o que
isso signicava, Boiuna estava próxima.
– Vamos sair deste lugar – murmurou Leleio – o mais
rápido que pudermos.
Duendes podem car invisíveis, mas não para os olhos
astrais de Boiuna. Duendes podem transportar-se com o poder
do pensamento, mas Leleio não queria abandonar seus amigos.
Leleio estava nervoso e os duendes quando cam
nervosos perdem a concentração facilmente e seus poderes
diminuem, por isso sempre levam amuletos nas roupas, os
amuletos os ajudam em momentos de grande tensão.
– Rafael, todo mundo escutou falar de Boiuna – disse
Taisha.
O único desejo de Leleio era afastar-se do lugar, mas não
podia fazer movimentos bruscos, por isso seu andar era lento e
cuidadoso. Sentia a presença da cobra, não conseguia vê-la, mas
sabia que ela estava observando-os.
Ouviu um sibilar muito próximo e deteve o passo.
Seus olhos depararam com um movimento entre as folhas.
Algo ameaçava entre os ramos da seringueira. Fixou o olhar,
nada... Era só o vento. Virou-se de repente e, atrás dele só viu
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árvores, na maioria de seringueiras, salsaparrilha, ipecacuanha,
louro-inhamuí. Deu alguns passos e parou, levantou a cabeça
e olhou para cima no momento em que uma enorme cobra
negra de contornos dourados pulou do ramo de uma árvore deipecacuanha sobre Taisha, derrubando-a.
Pega de surpresa e sem tempo para reagir Taisha caiu de
bruços com os braços estendidos. Ao cair soltou a vassoura que
levava na mão. A vassoura tentou se manter em pé, conseguiu
por alguns segundos, depois balançou e caiu pesadamente no
chão, como se fosse um pedaço de ferro.
A enorme cobra se enrolou no pescoço branco da bruxa.
Os olhos escuros de Boiuna eram ameaçadores, tinham brilho
de ouro e cor de vinho tinto, e o poder de amedrontar qualquer
inimigo. Esses olhos recolhiam o ódio que os seres – animais,
humanos e mágicos – emanavam.
O rosto de Taisha cou muito pálido, mas lutava com
coragem. Suas mãos socavam e empurravam insistentemente o
corpo da cobra, mas não tinha forças sucientes para livrar-se
dela. Desesperada esticou o braço direito para pegar a vassoura.
A cobra, com um movimento rápido, enrolou as mãos de Taisha
com sua cauda poderosa.
Rafael pulou, pegou a vassoura e tentou acertar a
cabeça da cobra. A cauda da cobra soltou as mãos de Taisha e se
enroscou nos tornozelos de Rafael. Ele caiu no chão machucando
um pouco o ombro esquerdo, mas não soltou a vassoura.
O duende deu um salto colossal e cou ao lado de Taisha.
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– Boiuna! – gritou aproximando-se mais dela. – Boiuna!
– voltou a gritar.
A cobra levantou a cabeça e levou-a para frente em
direção ao duende. A cabeça da cobra cou muito perto de seurosto e Leleio tentou não olhar diretamente para os olhos violetas
e brilhantes dela. Levantou as mãos em direção aos olhos da
cobra, suas mãos seguravam o poderoso talismã Latornincum.
Leleio exibiu o amuleto para a cobra e o amuleto brilhou. Os
olhos violetas da cobra soltaram faíscas. Leleio caiu para trás,
mas continuou com as mãos levantadas apontando o talismã
Latornincum para Boiuna. Os olhos da cobra soltaram um último
raio de luz escuro e se esfarelaram rapidamente, sua cabeça se
desfez no ar, e imediatamente, seu corpo desapareceu.
Por alguns minutos os três caram imóveis, em silêncio.
– Por isso você não escutava – disse Leleio, levantando-
se – parecia uma cobra comum, mas na realidade era uma cobra
que morava no mundo astral.
– Você está bem, Taisha? – perguntou Rafael, ajudando-a
a se levantar. A cobra não te mordeu, não é?
– Boiuna não morde bruxas, Rafael – disse Leleio.
– Boiuna se enrola nos pescoço e suga toda a energia
vital das bruxas – falou Taisha sentando-se na raiz de uma árvore.
Ela não tinha energia para permanecer de pé. Seu corpo parecia
pesado, seus olhos queriam se fechar e as pernas haviam-se
tornado muito pesadas.
– Estou cansada, estou cansada – repetiu Taisha.
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Taisha, por ser do clã das bruxas devia realizar o ritual.
Ela enterrou a chave, ncou a tesoura na terra e sobre ela colocou
um rosário. A coruja que permanecia em um ramo da árvore
desceu ao chão e cou observando Taisha.– Matinta-Perera! – gritou Taisha. Ao escutar o seu nome,
Matinta perdeu sua forma de ave e se apresentou como ela era:
uma velha bruxa.
– O que desejas, bruxinha? – riu-se a velha. – Você ainda
nem aprendeu a fazer os feitiços mais importantes e já está me
incomodando?
– Peço desculpas – disse Taisha com voz meiga. – Eu não
queria incomodar... Precisamos de sua ajuda. As sombras estão
saindo de controle. As sombras deixaram a sua dimensão e estão
atacando as bruxas e em pouco tempo também atacarão os
humanos. Os homens não sabem, mas estão em perigo.
– Acenda já o fogo, Rafael! – ordenou o Duende.
Rafael acendeu o fogo, e todos viram as chamas mudando
de cor: amarelo, dourado, laranja, vermelho, roxo... roxo... roxo...
e por m, pretas. Línguas de fogo pretas realizavam uma dança
antiga, tenebrosa, mágica. Afastavam-se lentamente do centro.
– Chega! – ordenou Taisha preocupada com Rafael.
Nesse momento perceberam a presença de Marcus, o
grande. Assim era como ele se fazia chamar.
– Prazer em conhecê-la, Matinta-Perera – disse Marcus
inclinando a cabeça diante da bruxa. – Eu sou Marcos, o Grande.
Eu sou alquimista, hipnólogo, teatrólogo, mágico, sensitivo,
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tarólogo, quiromante, escritor, ator, diretor de teatro, artista
plástico, escultor, dançarino, poeta, astrólogo, cabalista,
ventríloquo, malabarista, orador de prestígio e respeitado
titiritero.– Como chegou até aqui? – perguntou Rafael.
– Pensei que precisariam de ajuda. Faz horas que estou
seguindo vocês.
De repente, Rafael olhou a sua direita e percebeu os
movimentos do fogo. As sombras dançavam entre as chamas.
– Fogo! Fogo preto! – gritou Marcus, retrocedendo uns
passos e apontando o fogo com mão nervosa. – Vamos correr!
Correr!
Rafael não sabia a que se referia Marcus. O fogo estava
preto e daí? De repente viu sombras compridas e nas. Sombras
movendo-se. Contorcendo-se. Nervosas. Agitadas.
As sombras saíam das chamas. Pulavam do fogo em
todas as direções. Eram sombras pequenas, mas sombras de
forma humana. Tinham cabeça com olhos vermelhos brilhantes
e dentes grandes, aados e ameaçadores.
Taisha pegou sua vassoura e conseguiu bater na cabeça
de uma que caiu no chão, mas voltou a se levantar imediatamente.
O sol apareceu entre nuvens escuras. As sombras
esticaram os braços para receber um raio de luz do sol.
Imediatamente cresceram de tamanho.
Uma sombra pulou sobre a vassoura. Era muito pesada
e a vassoura caiu. O Duende também foi atacado por várias
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sombras. Elas amarraram as mãos do duende para que não
pudesse usar amuletos, pois no mundo sobrenatural todos
sabem que o poder das fadas está na varinha mágica e o poder
dos Duendes nos amuletos.Marcus e Rafael tentaram correr. Uma das sombras deu
um pulo magistral e cou na frente deles, encarando-os. Era de
um preto opaco. Tinta preta. Os pés na terra, o corpo dobrado
para frente, os braços longos, esticados. Os olhos vermelhos
como brasas. Rafael se virou. Atrás dele havia várias sombras,
com dentes enormes e olhos cintilantes.
Deu um chute numa das sombras que se aproximava. A
sombra recebeu o impacto e voou pelos ares, caindo ao pé de
uma árvore. Rafael viu que pareciam papéis, mas eram seres
físicos. Tinham pouca espessura. Só dava para vê-las de frente,
quase não apareciam de lado.
– Elas têm altura e largura, mas não têm profundidade.
– Claro! São sombras – gritou Marcus enquanto socava
o queixo de uma, que resistiu a vários golpes até cair. Outras se
aproximavam ameaçadoras. Marcus pegou um ramo de árvore e
começou a bater nelas. Uma sombra que parecia um ser humano
gigantesco, de quase três metros de altura, pulou rapidamente,
cando atrás de Marcus. Estendeu seus braços e pegou Marcus
pela roupa, deixando-o no ar, sem forma de se defender. Marcus
tentou lhe acertar um golpe, mas a sombra riu e o arremessou
contra uma árvore, como se arremessa uma bola de boliche
contra os pinos. Marcus levou as mãos para as costas e esfregou.
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Sentia dor nas costas. Tentou se incorporar, mas a sombra
colocou as mãos nas próprias pernas, tirou um o de sombra,
como uma corda negra e o amarrou com força.
Rafael também estava em perigo. Três sombras menoreso ameaçavam, mas o menino, de 13 anos era forte. Chutou uma,
socou outra, mordeu o braço da terceira sombra. Voltou a chutar
a primeira. A terceira vez que tentou chutar a sombra, esta pegou
seu pé no ar e o puxou. Rafael caiu. As outras sombras pegaram
seus braços imobilizando-o. Então o amarraram com cordas e o
empurraram junto a Marcus. Taisha não havia tido melhor sorte.
Estava no chão sendo amarrada junto com sua vassoura.
– Taisha, faça um feitiço. Grite palavras mágicas. Faça
alguma coi... – gritou Rafael. Uma sombra disparou um cone de
sombra sobre sua boca e ele não conseguiu terminar a frase.
– Eu não sei – murmurou Taisha – eu nunca me interessei
por feitiços contra sombras, minha tia tentou me ensinar, mas eu
ngi que estava doente.
– Ajude-nos, por favor, Matinta-Perera! – gritou Taisha.
Nesse momento, Matinta-Perera, que havia permanecido
quieta e silenciosa, levantou os braços e os agitou violentamente.
Um relâmpago clareou o céu.
CAAAABBBRRRRRRUUUMMM! Escutou-se muito perto.
As sombras olharam para cima no mesmo instante. Por
um momento caram imobilizadas. Olhavam o céu e seus corpos
balançavam, desestabilizados. Rafael percebeu que o branco do
olho das sombras cou enorme. Elas tinham medo, mais do que
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medo: estavam em pânico.
Matinta-Perera novamente agitou os braços.
Um raio iluminou o lugar. Ouviu-se um novo cabrummm.
Alguns segundos depois as sombras corriam desesperadas, comouma manada de búfalos perseguida por um leão. Rafael olhava
a reação das sombras. Taisha dava gargalhadas estridentes. Uma
chuva forte começou a cair.
As sombras corriam para buscar as árvores maiores,
tentavam se esconder entre as árvores e embaixo dos ramos.
Uma gota grossa caiu sobre a cabeça de uma delas, cortando-a
em dois, nem uma cimitarra12 poderia ser tão eciente. Uma das
metades da sombra recebeu outra gota de água e voltou a cortar-
se ao meio. Outra, e outra, ia se dividindo, até desaparecer.
Marcus chutou a sombra que estava escondida embaixo de
um ramo grande de árvore para não se molhar. Todas estavam
sendo atingidas pela chuva. O Duende, Rafael, Marcus e Taisha
levantaram um pouco os braços para que as gotas de chuva
tocassem as cordas. Mal a água tocou as cordas, elas caíram no
chão e se dividiram até não sobrar nada.
Taisha, já livre, estendeu os braços para o céu. A água
da chuva molhava os cabelos, o rosto, as mãos. Um sorriso
desenhado no rosto demonstrava sua satisfação. Aproximou-
se de Matinta-Perera e desceu a cabeça em sinal de humildade.
Agradeceu à chuva. O Duende, Rafael e Marcus também
12 Espada de lâmina curva mais larga na extremidade livre, com gume no lado convexo, usado porcertos povos orientais, como árabes, turcos, persas. (Nota do Organizador)
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agradeceram. A vassoura de Taisha curvou-se diante de Matinta-
Perera, em sinal de reverência.
O feitiço lançado sobre o mundo havia sido quebrado.
As sombras haviam desaparecido. Marcus abriu sua mochila edeu tabaco e cachaça para Matinta-Perera. Ela soltou uma forte
gargalhada e se afastou do local dizendo:
– Só ajudei porque Taisha é uma bruxa. Foi ela quem me
chamou.
– O mundo das bruxas é apaixonante – disse Marcos
– Eu sou alquimista, hipnólogo, teatrólogo, mágico, sensitivo,
tarólogo, quiromante, escritor, ator, diretor de teatro, artista
plástico, escultor, dançarino, poeta, astrólogo, cabalista,
ventríloquo, malabarista, orador de prestígio e respeitado
titiritero. Pena que eu não sou um bruxo.
– Uma pena, sim – armou Rafael. Sorte que temos a
Taisha.
– Devemos voltar – disse o Duende. – Boiuna parece ter
voltado ao mundo astral, mas nunca se sabe. Essa cobra pode
atacar novamente.
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SACI DA FLORESTA
Fred Sá Teles
– Um bom guerreiro se faz com coragem. A mente faz
um guerreiro. Um bom guerreiro se faz com atenção. Os olhos
fazem o guerreiro. Um bom guerreiro se faz com garra. O coração
faz um guerreiro.
Este é a graduação do garoto de apenas dezessete anos
para o nível mais alto da arte da capoeira. Filho de pai indígena
e mãe negra, Saci traz consigo uma trança única em seu cabelo
negro que vem da sua nuca até o centro de suas costas. Olhos
profundos e negros numa feição de quem está sempre a pedir
consolo e ajuda. Todavia, era o melhor entre os outros, além do
seu mestre. Com a vitória na batalha se tornaria o mestre mais
jovem já formado no quilombo Estrela do Norte. Seu mestre
o incentivava, no entanto, não tornava a vida do garoto fácil.
Mesmo com todos os seus dizeres sobre como se comporta um
verdadeiro guerreiro, um verdadeiro capoeirista aplicava-lhe os
mais complexos golpes. Mestre Lua avança, dando uma meia lua
pra cima de Saci. Saci se assusta e cai.
– Dessa forma jamais será mestre. Somente será um
aluninho. É dessa forma que luta um Estrela do Norte? – pergunta
alto para os outros mestres e alunos sentados que fecham o
círculo.
– Perdão – diz Saci, humildemente.
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– Perdão não conserta costelas, menino – responde
mestre Lua.
Até agora mestre Lua havia sido o mais jovem a
conquistar o título de mestre, aos seus dezoito anos. Não forafácil para ele, não deixaria ser fácil para ninguém. Agora, mais de
cinquenta anos depois, continuava a ser o melhor capoeirista do
todo o norte do Brasil. Há muito tempo o reconhecimento era
justo. Nem o branco de suas imensas tranças no cabelo e em sua
barba ameaçava sua fama. Talvez Saci ameaçasse. Avançando
contra o garoto, aproxima um chute em direção à vértebra de
Saci, freando o pé bem próximo ao corpo de Saci ainda caído.
– Levanta daí.
O mestre se afasta. Saci se levanta. Mestre e Saci
novamente começam a gingar. Saci ataca com uma “meia-lua
de frente”, o Mestre se esquiva com um “au sem as mãos”,
contratacando em seguida com a “chibata” contra Saci. Saci é
atingido na perna direita e cai imediatamente. O Mestre dá as
costas.
– Levanta agora.
Saci continua caído, leva as mãos até sua perna.
– Eu não consigo – lamenta Saci.
– Saia da roda. Deixe algum guerreiro de verdade se
tornar mestre.
Saci se arrasta como pode para fora do centro da roda.
Se afasta um pouco de todos, encostando-se numa árvore. O
toque de berimbau continua, outra luta começa no centro da
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– Não olhe minhas pernas. Minhas pernas são minhas
pernas.
– Suas pernas estão quebradas.
Depois de estar nesse diálogo consigo mesmo, sua mentese tornou escura como agora era a selva. O cabelo trançado de
Saci se espalha pelo chão lentamente se tornando vermelho.
Desde a raiz até a ponta dos os.
– Agora você tem uma missão.
Após ter seu cabelo avermelhado, Saci leva as mãos
à sua perna doente e começa a gritar, se retorcendo. Uma luz
clareia tudo em volta. Tal luz se espalha, clareando boa parte da
oresta. De cima os pássaros noturnos que sobrevoam a mata
viram o clarão verde sob as folhas das copas das árvores e as
luzes em linha que se espalhavam, como o desenho das veias de
um corpo, ao mesmo tempo que um longo trovão brada no céu.
Saci para de gritar, respirando fundo. Muito ofegante.
Abre bem os olhos. Ao fundo do olho esquerdo de Saci chamas se
acendem, no olho direito o sol nasce. São Exú, o mais humano dos
orixás, senhor do princípio e da transformação e Tupã, divindade
que rege a força da natureza que ascendem ao corpo do garoto.
Sendo lho de mãe africana e pai indígena, seu corpo é capaz
de abrigar os dois deuses sem conito. Consegue se levantar,
mesmo que não conseguisse sentir sua perna direita. Deu três
passos lentos para frente, outros seis rápidos e logo começou a
correr tão rápido que fazia as folhas novas se desprenderem dos
seus galhos e se perderem no ar.
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Dias após, ouve-se falar de uma criança sempre a lavar
o rosto num ponto alto do rio Amazonas. De acordo com o
que se fala, é uma criança negra, magra, de cabelos vermelhos
enrolados numa única trança, despido de qualquer roupa. Algunsdizem que o rapaz tinha uma única perna, outros dizem que o
menino tinha as duas. O que não podem saber é que seu rosto
está sempre sujo de lágrimas, causa de estar sempre lavando os
seus olhos nas águas do rio. Sente falta da sua mãe, sente falta
do seu pai, do seu lugar, seu povo. Só que agora tem uma missão.
Saci tinha duas pernas. Uma de carne, sua perna
esquerda natural com que nascera. Outra mecânica, com metal
trazido por Tupã, fundido por Exú. Vez ou outra, o menino tirava
a sua perna mecânica para aliviar a dor que ainda sentia em seu
corpo. Respirava fundo e logo voltava a correr pela oresta,
pelos campos e fazendas dos homens brancos da região. Como
missão recebida, deveria dar corpo aos espíritos de semideuses
e mortos que pairavam nesse plano, impedidos de atravessarem
para o outro lado. Tinham eles muitas lamentações, deixando
assim suas almas pesadas demais para elevarem.
Nessa época, os cavalos dos senhores mestres de
escravos debandaram dos seus pastos, corriam livres ou sem
destino. Alguns corriam em círculo sem saberem para onde
ir, outros se atiravam de penhascos ou se afogavam no rio,
sendo encontrados dias depois com seus pelos enrolados,
avermelhados. Almas tão pesarosas às vezes querem apenas
desistir, não querem outra chance. Saci agora dava uma nova
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vida a quem era ignorado pelos céus e até mesmo pelo inferno.
Os rejeitados eram reencarnados no corpo dos cavalos assim que
Saci trançasse suas crinas, corando-as bem vermelhas, tornando-
os corpo aberto para os mortos aprisionados em seus própriosespíritos errantes pelo solo da Terra.
Deveriam os semideuses e outras almas, terminarem
suas questões pessoais que impediam-nos de galgar um lugar no
paraíso. Na verdade, poucos aproveitavam bem essa nova porta
que se abria, o que já era suciente para os deuses, já que esses
eram os mais valiosos. Saci libertou mais de mil e quinhentos
pesarosos espíritos, deixando os senhores de engenho
desesperados. Os homens brancos foram obrigados a andarem
a pé, sem terem montaria. Houve também centenas de corpos
mortos de cavalos espalhados por toda a oresta Amazônica.
Ninguém o vira em ação. Era tão lépido, tão sagaz e veloz. Assim
como um raio, só que sem trazer trovões.
Somente era visto por alguns no mesmo ponto do
rio, com as mãos sobre o rosto, lamentando sua própria vida,
sem saber quando seria livre de verdade. Ninguém ousou
falar com ele. Era uma gura medonha, com cabeça vermelho
sangue, ora com uma única perna, ora com uma perna de metal
enado em seu corpo. Aquela nova perna articial lhe garantia
se movimentar como quisesse, tão veloz como desejasse, sem
deixar pistas. Poderia correr em círculos em volta de si mesmo
gerando um furacão, só que nunca quisera. Gostava mesmo de
correr em linha reta. Em mais um de seus ns de tarde trocando a
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água salgada de suas lágrimas, pela doce do rio, pode ouvir uma
voz que lhe trazia recordações.
– Você ainda pode ser o melhor, só que antes disso terá
que derrotar numa luta até a morte. Anal, enquanto eu estivervivo tentarei te derrubar – era o mestre Lua. Por dias o esperou ali,
tendo a certeza de que essa nova lenda era seu antigo discípulo.
Saci ponderou muito sobre o dever de responder e o fez:
– Sempre desejei entender. Achei que o caminho fosse
o amor.
Mestre arma a base, ginga lentamente.
– O amor apenas serve para suscitar o ódio. Ame a si,
ame a capoeira, me odeie, me mate. Encontre seu caminho.
– Não preciso, mestre. Eu já encontrei meu lugar.
Saci sai em disparada.
O mestre fora o último dos negros a ter visto o garoto.
Apenas mais um humano o veria. A disparada de Saci o levou
a uma fazenda distante. Correu sobre as águas do Amazonas,
queimou o pé no sertão, não se cansou enquanto derramava
todas as lágrimas que podia. Em poucas horas encontrou o que
interessava, em pleno sudeste brasileiro. O melhor sangue-puro
inglês que achou que poderia encontrar. Um poderoso cavalo
negro, imponente, maravilhoso. Ao lado do animal, retirou de si
a prótese metálica e se pôs a trançar a crina do bicho.
Sentiu ser invadido pelo olhar curioso de alguém. Da
mesma forma, virou sua cabeça para a vidraça da janela da casa
próxima e enviou um sorriso à criança que lhe olhava. Fora esse
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o primeiro e único sorriso de Saci desde a sua última luta com o
mestre Lua. Visto que poderia sorrir, gargalhou e ouviu o mais
alto dos trovões. Montou no cavalo de crina trançada e vermelha,
cavalgando em direção à mata. Um raio certeiro e fugaz veioem sua direção. Nesse momento nada sobrou do corpo de Saci.
Somente o puro-sangue continuou a correr. E corria mais rápido,
era agora mais veloz. Amante das ondas do mar, Saci em seu
novo corpo vagou por todo o litoral brasileiro sem dores, em seu
novo corpo.
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RUNOLFO E O ENCANTAMENTO DA COBRA AJURITANA
Márcio Fernandes Conceição
Das várias histórias que eu, o encantador de lendas ouvi, existe
uma que aconteceu na região de Itapiranga, cidade do Amazonas.
Minha mãe me contou e logo eu comprovaria que tudo era
verdade.
***
A chuva, o raio, o vento, o trovão, o dia que parecia noite
e as águas barrentas do rio, agitadas, batiam no chão da casa de
palata ameaçando entrar pelas frestas do assoalho. No meio do
rio, uma sombra com olhos gigantes e fulminantes observava a
casa de madeira com telhado de palha.
No meio da tempestade de um típico tempo chuvoso
de inverno Amazônico, o choro de uma criança maltratada, que
acabara de receber um tabefe no rosto, se ouvia misturado ao
barulho da forte chuva. Assim era Runolfo, criança de dois anos
maltratado e rejeitado por sua mãe Maria.
– Cala boca, sua peste! Cala boca! Filho da m… Fica
quieto, senão eu te jogo no Igarapé! Toma!
Assim, o castigo continuava como outras tantas vezes,
desde que, o pai de Runolfo havia saído e largado Maria por uma
rapariga lá das bandas da Vila de São Pedro. O castigo, naquele
dia, era por ele, brincando, ter quebrado um objeto. As pancadas
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continuavam e passaram dos limites até deixarem o corpo da
pobre criança marcado pelo pedaço de madeira que a mãe usava
para as torturas quase que diárias.
Um irmão de Maria, no dia anterior, havia lhe advertidopelos maus tratos que ela dava ao menino, dizendo:
– Maria, tu continua a bater assim neste curumim?
Ajuritana ainda vai vim pegá-lo e aí tu vai se arrepender e chorar
pelo teu lho!
Maria rindo disse a seu irmão:
– Ajuritana? Olha, João o lho é meu e eu trato do jeito
que quero! E tu não tens nada a ver com isso! Ajuritana que venha
e leve esse moleque que só sabe tirar minha paciência! E outra, tu
sabes que essas histórias de bêbados não me fazem medo algum!
A chuva parou, o tempo clareou e as águas do Igarapé
que haviam invadido tudo e passavam por baixo da casa, foram
se acalmando. O garoto choramingando foi para uma área
descampada, tipo de quintal suspenso, onde Maria cultivava
algumas hortaliças em tempos de cheias. Então, o vento mudou
e as águas de violentas caram serenas, a oresta parecia que
havia parado, emudecida. Som, somente os das gotas de água
que caiam das árvores.
Runolfo ainda chorando, soluçava, quando do meio
da canarana surgiu uma enorme cobra escura com pintas
avermelhadas e traços verdes, seus olhos brilhavam como fogo,
trazendo o sorriso da morte.
A cobra grande passou despercebida, chegou até onde
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estava o curumim e se transformou em uma linda índia. O garoto
sorriu e ela tomou o menino nos braços.
Quando Maria viu, gritou desesperada:
– Quem és tu? Solta meu lho! – Correu para pegar umaespingarda que pertencia a seu marido.
Ajuritana mergulhou nas profundezas do igarapé e
voltando já em forma de cobra, enfrentou Maria dizendo:
– Ele não é mais seu! Curumim agora é do rio, é da
Natureza! Se você quiser, vai ter que lutar por ele ou irei torná-lo
uma linda cobra encantada e protetora de um rio! – Dizendo isso,
mergulhou para não voltar mais.
Dona Maria chorou amargamente, lamentando tudo o
que tinha feito com seu lho. O tio de Runolfo falou:
– Não te disse o que iria acontecer? E tu fez pouco caso
de mim, agora, o único jeito é chamar seu Zózimo, ele dirá o que
fazer.
Assim, o tio pegou a Canoa e foi atrás de Sr. Zózimo lá
para as bandas da cidade. Sr. Zozimo era curandeiro e ajudava as
pessoas com suas benzeduras. Suas rezas eram muito famosas
em toda a região. Ele foi encontrado e levado às pressas para
casa de Maria. Chegando lá, acendeu uma vela e começou a
rezar. Em uma espécie de ritual, entrou em transe e começou a
conversar com um espírito. Quando voltou estava suado e disse
bastante cansado:
– O curumim foi levado por Ajuritana e está na cidade
dos encantados. Está bem, está dormindo e sendo guardado por
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um grande peixe.
Maria disse chorando:
– E tem jeito de eu trazer meu menino?
– Bem, no terceiro dia tu deixas a sua porta aberta, elevoltará te chamando. Nas duas primeiras vezes tu não responde e
deixe que ele se aproxime de tua rede, quando na terceira vez ele
chamar mamãe e estiver ao teu alcance, ele já estará de corpo e
alma e, assim, a senhora o segura com força e não solta, dizendo:
Ajuritana, cuidarei bem do meu lho, deixa ele!
Passaram-se os três dias preditos por Senhor Zózimo
e quando chegou meia-noite, um temporal com relâmpagos e
trovões dava aspecto apavorante na noite. Uma forte ventania
pairava sobre o casebre de madeira, quando de repente um
rápido silêncio se fez, e em pequenos passos Runolfo veio.
Chamou a primeira vez:
– Mamãe!
Dona Maria nada respondeu, mas seu coração começou
a car aito.
A chuva e o relâmpago retornaram, por trás do menino
se via as costas brilhantes da cobra grande. Dona Maria não ousou
responder, só que na segunda vez um forte trovão se ouviu e
Maria se desesperou. A mãe apavorada se levantou gritando:
– Meu lho!
E depois disso, Runolfo rapidamente foi retirado por
Ajuritana que voltou para as águas. No outro dia, Zózimo retornou
à casa da de Mãe de Runolfo e disse:
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porém, como cou muito grande não pôde mais se mover. Em suas
costas surgiu uma grande extensão de terra, uma ilha bem no meio
do rio.
***
Quando era criança tive a oportunidade de ver a dita ilha.
Estava lá, gigantesca. Perguntei se podia ir até lá, mas meu primo
disse que quem ia naquela ilha, não voltava mais. Há alguns anos
atrás, voltei a Itapiranga. Aquela grande ilha havia desaparecido.
Disseram que certa noite houve um grande e demorado
estrondo, e pela manhã tudo havia sumido. Alguns antigos falaram
que foi Runolfo que acordou e mudou de lugar, indo para a parte
mais profunda do rio, ou para a cidade dos encantados, onde
nenhum homem que foi conseguiu voltar, além, do encantador de
lendas.
Assim, essa história percorre o tempo e o imaginário do
povo de Itapiranga, uns já se esqueceram. Os antigos aos poucos se
vão para os braços de Deus, e é por isso, que quero fazer com que
outros a conheçam. Runolfo continua na cidade dos encantados.
Logo depois que recebi meus poderes e consegui ir naquela cidade,
conversei com ele e ele contou que sente muita saudade da mãe,
mas que não teve oportunidade de voltar a vê-la. Contei que ela
não existia mais e ele disse que o amor de lho pela mãe jamais
desaparece e que se foi tirado dela, foi uma lição da oresta pelos
maus tratos, palavrões e torturas físicas a que era submetido.
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MATITA MARIA
Hileane Barbosa Silva
Ela o amava tanto, tanto mesmo. Pena que não era
batizado.
O que diria sua mãe quando soubesse que sua linda e
jovem lha Maria Cecília estava enroscada com um caboclo de
fora e que era ainda por cima um vaqueiro?! Essa mesma raça
que vive montada no cavalo, de pasto em pasto, atrás de gado.
Sua menina caria em casa, sempre na expectativa do retorno do
marido. Quanto tempo ele permaneceria longe do lar? Quanto
tempo se passaria até Maria Cecília perceber o quanto aquele
casamento seria a pior decisão da sua vida?
Pobre Maria Cecília que chorou por três dias e três noites
a o quando ela descobriu. Pobre João Pedro, que carregaria um
coração ferido pelo resto dos seus dias. Pobre mãe da moça, que
via sua lha sofrer por amor e não podia lhe revelar o verdadeiro
motivo da sua decisão. Ah, sim, havia algo mais nessa história.
Não era porque o ofício do rapaz que lhe incomodava. Ele podia
muito bem sossegar o facho com qualquer outra prossão
naquela cidadezinha do interior do Maranhão. Trabalho era o que
não faltava e ele estava disposto a fazer de tudo para permanecer
junto à amada. Além disso, ser vaqueiro é ter uma prossão digna
como qualquer outra. Um pouco mais difícil, mas honrada.
– Por que não me fala, mãe?
Maria Cecília andava de um lado para o outro. O chambre
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arrastando-se pelo chão de barro batido e às vezes sob seus pés
descuidados. A casa era simples, não tinham banheiro, o telhado
era forrado com palhas, as paredes foram erguidas com pau-a-
pique. Mas a mata atrás dela era de encher os olhos, o enormerochedo de pedra se erguia coberto do verde da mata. A natureza
era orgulhosa ali. O verde dos olhos de Maria Cecília competiam
com a vermelhidão de seu rosto choroso.
A mãe, uma mulher cansada, limitou-se a olhar a sua
menina ainda tão jovenzinha. A maldição só a acometeria no dia
seguinte, no aniversário de quinze de anos. Só aí Maria saberia
da sua sina.
– Mãe, me fala! – e ela gritava com uma voz esganiçada
de quem tinha seus pedacinhos de sonhos sendo cortados.
Doloroso
– Teu coração se curará ligeiro desse amor, minha
pequena. Não me peça explicação ainda. Amanhã eu te falo.
– Amanhã eu estarei morta com essa agonia! Quero
João. Quero casar com ele. Você é má, mãe, muito má! Será que
a senhora é tão infeliz a ponto de querer que tua lha tenha o
mesmo destino? Não amava o papai? Não sabe o que é sentir isso?
A mãe apertou os lábios. Ela não ia chorar, não devia...
É claro que ela amava o marido. Coitado, foi só mais uma pobre
vítima. A mulher ainda se lembra do sangue dele escorrendo
pelos seus dedos, caindo e sujando esse mesmo chão de barro
que pisavam. Não foi de propósito. Ela queria gritar.
– Amanhã eu te falo.
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E então se recolheu para a sua rede.
Era somente as duas naquele pequeno casebre junto a
uma serra, um lugar perto do nada, no meio de lugar nenhum.
Mãe e lha viviam isoladas de tudo e de todos; e o resto domundo as via como criaturas estranhas, cercada de mitos. Ora,
mas só eram duas mulheres indefesas, alguém de fora diria. Os
mais velhos da região garantiam que não. Mesmo as crianças
sabiam que chegar perto daquelas terras era encrenca.
Maria pulou a cerca que impedia das ovelhas que
criavam fugissem. Passava da meia-noite, noite essa que tinha
um clima denso, frio, quase delicioso para a menina que fugia. A
mata parecia querer abraçá-la como mais uma de suas criaturas.
Tão mágico. Tudo tão maravilhoso. E ela ria como a criança
que carregava em seu coração. A lua iluminava o seu caminho,
ainda assim, foi inevitável que a barra do seu chambre rasgasse
diante de um galho mais atrevido. Bem, ela tinha outras roupas
guardadas na trouxa improvisada que carregava sob o braço
direito.
João Pedro lhe esperava ansioso. O cheiro do couro e
do cavalo impregnava sua pele quando ele a abraçou. O casal se
beijou numa pressa desmedida, a saudade transbordava.
– Vamos? – ele pergunta estendendo lhe a mão.
Maria monta em seu cavalo. A lua pareceu ainda mais
clara. Um grito serpenteou entre as árvores até chegar aos
ouvidos dos dois.
– Minha mãe deve ter acordado!
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Mas que grito mais alucinado era aquele? Parecia mais
uma louca. Sua doce mãe estaria perdendo a sanidade?
João Pedro partiu com o cavalo e o amor segurando a
sua cintura. Ela apertava tanto que ele já nem conseguia respirardireito. Sentia pena dela. Devia estar morrendo de tristeza por ter
que deixar a mãe. Ah, as escolhas que a vida nos faz tomar. Mas
agora era sua vez de cuidar de Maria. Amava-a, muito mesmo.
E quebraria o nariz do próximo infeliz que dissesse que aquilo
era só uma loucura momentânea, que logo iria passar e ele se
perceberia acordando ao lado de alguém de quem já não sentia
o mesmo que antes.
Ele chamou por seu nome quase sem fôlego.
– Folga um pouquinho só, meu anjo.
Ela folgou.
Logo à frente, um rio rugia perigoso com suas águas
furiosas. Precisavam descer. Ele iria a pé, puxando os arreios do
cavalo com Maria montada. João fez o primeiro movimento, mas
Maria não queria largá-lo.
– Maria? Por favor, me solta.
– Seu pescoço é tão cheiroso, meu amor.
Ele riu. Só mesmo ela pra fazer graças em um momento
como aquele.
– Me deixa descer, meu amor – pediu pacientemente.
– Agora não. Eu quero cheirar mais um pouco.
– Maria...
– Não! Não! Não! – disse rosnando como um cachorro
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– Foge mais não, minha pequena. Quer car com ele? Eu
deixo. Mas você não pode deixar sobrar nenhum pedaço. Faz mal
desperdiçar carne tão boa.
Maria sorriu. Estava mesmo com fome.Quem morava perto daquela mata, não dormiu bem
naquela madrugada. Os gritos assustavam qualquer um, mesmo
baixos e distantes. Ninguém também fez nada. Se fosse alguém
precisando de ajuda, estava a sua própria sorte.
Na semana seguinte ainda tinha quem não conseguisse
dormir. Seu Mazé foi um. Como tinha que acordar todo dia às
cinco em ponto, estava cansado e bastante irritado. Foi quando
dois vaqueiros bateram palmas em seu portão. Eles perguntavam
por um jovem chamado João Pedro que tinha ido buscar a
namorada e nunca mais voltou.
– Pode é voltar por cima do rastro, desse daí vocês não
acham nem mais os ossos!
Os homens se entreolharam sem entender. Mazé fez o
favor de explicar.
– Naquela casa ninguém vai. Quem foi, garante que não
tem mais coragem de voltar. Dizem que lá mora uma matita-
pereira e sua lha que não deve ser muito diferente da mãe. Uma
bruxa viciada em fumo, diabo encarnado. Ela ainda carrega um
monte de morte nas costas, principalmente de crianças e bebês
não batizados.
– Mas se quiserem arriscar... – o velho deu de ombros e
voltou para dentro da casa.
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O MAPINGUARI13
Edweine Loureiro
– E então: conseguiu fazer contato com o médico da
FUNAI14? – perguntou Sebastião, que trazia uma capivara nas
costas, ao parceiro de caçada, Almir.
– Diacho, Tião! Onde foi que tu arranjaste isso, ô homi?
– Ué! Com os índios? Com quem mais? Você sabe que,
desde ontem, com essa tremedeira que não para, não consigo
nem pegar uma colher direito… quanto mais uma espingarda.
Mas e aí, falou com o diacho do médico?
– Falei, sim, mas ele está na capital. Amanhã à tarde, no
entanto, o mesmo helicóptero que vem para nos buscar também
irá trazê-lo para pernoitar: segundo me disse a secretária da
FUNAI, ele tem de vir de qualquer jeito para atender os ticunas15.
E Tião, aliviado:
– Menos mal. – E reacendendo o toco de cigarro que
trazia na boca: – Até que vai ser bom passar mais uma noite
aqui, entre os ticunas. Adoro as histórias de terror daquele velho
maluco, o Pajé, sobre o… – como é mesmo o nome do bicho que
ele diz que anda por aqui?
13 Uma criatura carnívora, com mais de dois metros de altura e coberta de um longo pelo vermelho,que vive na Floresta Amazônica. Muito semelhante ao “Pé-grande” americano. (Todas as
notas deste conto são do autor)14 A Fundação Nacional do Índio (FUNAI): o órgão indigenista ocial do Estado brasileiro, vinculadoao Ministério da Justiça e estabelecido em 1967.15 Povos ameríndios que habitam, atualmente, a fronteira entre o Brasil e o Peru e o TrapézioAmazônico, na Colômbia. Formam uma sociedade de mais de cinquenta mil indivíduos, sendo omais numeroso povo indígena da Amazônia brasileira.
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– Que gritos foram esses, Tião?
– Gritos? Que gritos, Almir? Você deve é de estar sonhando,
homem! Volta a dormir que é melhor.
Mas, nisto, o mesmo curumim que os havia auxiliado com a
capivara adentrou a oca, ferido:
– Me ajudem, por fav…
E expirou ali mesmo, diante dos olhares aterrorizados dos
caçadores. Almir, então, pegando as duas carabinas, falou para o
outro, que parecia petricado:
– Rápido, Tião. Vamos embora, homem! Ou acaso quer
morrer?
E Tião, como que despertando de um coma, seguiu o
companheiro. Fora da tenda, somente encontrariam a escuridão. E
os gritos, cada vez mais fortes, desnorteá-los-iam ainda mais.
***
Desesperados, e sem a luz do sol para guiá-los, os dois
caçadores nem perceberam que, por alguns minutos, haviam
corrido em círculos.
Até que Almir deu-se conta de uma trilha aberta na mata e
pela qual poderiam escapar. E, fazendo sinal para Tião, gritou:
– Por aqui! Vamos nos esconder na mata até amanhecer!
Foi quando Tião se negou a acompanhá-lo:
– Mas logo a mata? E se o Mapinguari estiver justamente
aí dentro?
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E o amigo, impacientando-se, puxou-lhe pelo braço:
– Agora você acredita em Mapinguari, não é, seu linguarudo
dos infernos? Então, se quiser viver, faça o que estou dizendo: corra!
Corra como jamais correu na vida! E não olhe pra trás!
***
Tião, porém, olhou. E o que viu foi um cenário dantesco:
pernas e braços mutilados, espalhados ao longo da trilha. O odor
de carne e sangue podres parecia impregnar toda a mata. E, para
piorar, um ser monstruoso, com as mesmas características descritas
pelo pajé, vinha na direção da dupla. Foi quando, novamente
atônito, Tião começou a diminuir a velocidade. Até ser, outra vez,
puxado por Almir.
– Que diabos está fazendo, homem de Deus? Já disse: quer
morrer?
Mas não: morrer, decididamente, não estava nos planos
de Tião. De tal modo que acelerou, e, agora, sem questionar o
outro. Aliás, correu conforme Almir havia lhe orientando: sem olhar
para trás e como nunca havia corrido em toda a vida. A ponto de
ultrapassar o amigo, que, dessa vez, gritou:
– Espere aí, hômi! Não me deixe pra trás…
Quando Almir nalmente conseguiu alcançar o
companheiro, este já batia na porta de um casebre – a única
habitação naquelas imediações.
E, como ninguém atendeu, não lhes restou outra
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alternativa senão arrombar a porta. E foi o que zeram. Melhor,
porém, seria que não o tivessem feito. Pois o que testemunharam
foi nada menos que o Horror: na cama, abraçados, os corpos de
uma mulher e uma criança. Ambos tinham os rostos descarnadose, ao que parecia, haviam sido atacados pelo mesmo animal –
ou coisa semelhante – que a dupla avistara, minutos antes,
devorando a tribo dos ticunas.
Foi quando Tião, ouvindo um grunhido, voltou o olhar
em direção à entrada. Mas, infelizmente, era tarde: pois já o
Mapinguari cravava os dentes na jugular de Almir, que tombava
ali mesmo, debatendo-se.
E, logo em seguida, foi a vez de o bicho saltar sobre Tião,
enquanto este ainda tentava, com as mãos trêmulas, engatilhar
a carabina.
***
– Wait a minute, Mister Lima! Como o senhor
saber desse história com tanta detalhe? – indagou, espantado,
o aventureiro inglês, que havia parado para descansar, naquela
noite de lua cheia, no casebre do eremita José Lima – antigo pajé
ticuna –, nos arredores de Tabatinga .
O velho José, porém, já em estágio de
transformação – as presas, as garras e os pelos vermelhos
crescendo –, não mais escutava o visitante.
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A CRIATURA
Maurício Coelho
O reexo da lua prateada no rio deixava a oresta como
se fosse uma entidade viva e mística. Tudo estava parado, nem
o sapo-boi se atrevia a coaxar. Um clima comumente estranho.
Um gafanhoto saltou para próximo do Bufo marinus e parecia
zombá-lo. Este, apenas ignorou o inseto e se recolheu para a
água. O barulho de uma árvore caindo ao longe fez as garças se
despertarem e voarem. Em seguida, um longo rugido, como se
fosse um lamento fora ouvido. Uma onça? Ainda era possível ver
uma Panthera onca naquela região, mesmo nos dias de hoje.
A quase dois quilômetros daquele som, uma lâmpada
fosforescente se acendeu em uma minúscula casa de barro.
Se Isidoro pudesse se ver no espelho, notaria o grande rosto
cansado, sonolento e com rugas.
– Não é possível – ele disse, sozinho. – Outra vez? Eu
pensei que esse bicho não ia mais aparecer por aqui.
Isidoro carregava consigo uma memória bastante nítida.
Ele era criança quando escutara o som pela primeira vez. Apesar
de nunca ter ouvido antes, não se assustou e pensou ter sido
simplesmente um trovão. Entretanto, quando olhou para o rosto
do pai, este demonstrou pavor. A testa pingava de suor e os
lábios tremiam.
– O que foi? – o garoto Isidoro pergunta.
O pai leva algum tempo para dizer algo.
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– Conhece esse som? – O pai rebate com outra pergunta.
– Não.
– É o barulho de uma criatura horrenda.
Mesmo pequeno, Isidoro não acreditava em bicho-papão ou em Deus, porém, independente da crença dele, no dia
seguinte só o que as outras crianças comentavam na sala de aula
era o tal barulho do monstro. Parecia que a população toda da
vila acreditava na besta, mesmo sem ninguém ter visto o corpo
ou pegadas do animal. Três anos mais tarde, quando ele largou
os estudos no primeiro ano do Ensino Médio, um velho ribeirinho
chamado Waldenilson Miranda – ele recordava bem o nome –
disse para o povoado que matara a enorme fera e, para mostrar
que era verdade, exibiu para todo mundo parte da pele da
criatura. Era áspero, esverdeado, como se pertencesse a alguma
espécie de réptil. Uma iguana ou jacaré. Mas também continha
pelos duros, tal qual de preguiça ou cutia. Isidoro não acreditou
na história do velho e a amostra podia ter sido facilmente forjada,
mas desde que o velho anunciou a morte da criatura, seu rugido
nunca mais fora ouvido.
Por isso Isidoro se assustou ao ouvir aquele rosnar. Fora
apenas coincidência ou o velho dizia a verdade? E se fosse real,
então era provável que existissem outros seres infernais iguais
àquele.
Ele cou atento. Queria conseguir escutar novamente.
Mesmo sem crer completamente, sua mente ainda fraquejava e
oscilava entre a razão e o sobrenatural. Porém não ouviu mais
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Entretanto agora, o conhecimento de caçador se fazia necessário.
Ele se abaixou e prestou atenção nas árvores, para ver se elas
se balançavam mais do que o normal. Nenhuma mudança sutil.
Aproximou-se delas e tentou enxergar se no tronco delas haviaindícios de animais terem passado por ali, como marca de garras.
Nada.
– Cadê tu? – ele sussurrou.
A oresta estava mais escura. Ele olhou para o céu, uma
nuvem cobria o astro da noite. Estava agora na mata secundária
e nenhum sinal do demônio.
– Mapinguari – bradou Isidoro. – Mapinguari! Aparece!
As pernas de Isidoro chacoalharam e seu cérebro
demorou alguns segundos para enviar a informação de que não
era só seu corpo que tremia, mas sim todo o solo. Isidoro viu
aquele monte se erguer, como se fosse um gigantesco Polifemus.
Assim como o monstro de Homero, esse também possuía um
olho.
– Jesus, Maria e José – balbuciou Isidoro.
O demônio tinha quase três metros de altura. A cabeça
era pequena em relação ao resto do corpo escamoso e volvido
de pelos. O mono-olho era de um vermelho vivo. A boca cava
na vertical, cheia de dentes pontiagudos e uma enorme língua
áspera e suculenta.
Eu deveria ter ido para a cidade quando tive a oportunidade,
pensou Isidoro. Aposto que na cidade nada disso existe.
Ele nem se deu conta que estava chorando. Não havia
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MINIBIOGRAFIAS
Ailton Silva Favacho é marajoara, natural de Soure, PA. Professor, escritor,
poeta, contista, artesão e compositor, publicou, em 2012, o livro Casa de
Barro, pela Editora CPOEMA. Além disso, é autor de 15 músicas reunidas no CD
Obra-prima, Marajó, lançado em 2014, e integra o Clube do Poeta e do Escritor
Marajoara, por meio do qual participou da publicação de quatro antologias
literárias. Contato com o autor: [email protected]
Alfredo Alvarenga nasceu em Sorocaba, SP. É formado em História, escreve
desde os 14 anos. Publicou em 2009 o livro Uivos na Escuridão, com contos de
terror, suspense e tragédia. Além de ter participado de inúmeras coletâneas
literárias na cidade de Sorocaba, SP. Contato com o autor: alfredo.alfredo.
Amauri Chicarelli nasceu no Paraná, mas vive em São Paulo. Estudou um
pouco de Filosoa e depois Direito. É músico e só recentemente começou
a levar a sério a arte de escrever. Publicou o livro A Outra Banda do Rock e
diversos contos em antologias, revistas e concursos literários no Brasil e
em alguns países de língua portuguesa. Está escrevendo um romance que
pretende terminar até o nal do ano de 2015.
Ana Rosa de Oliveira vive em Brasília, DF. É graduada em Geograa com
especialização em Análise Ambiental e Desenvolvimento Sustentável, ambos
pelo UniCeuB. Possui diversos textos publicados em antologias. Contato com
a autora: [email protected] e [email protected]
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Anderson do Couto Candido nasceu em Três Rios, RJ, em 1966. Formou-se
em Geograa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e fez Pós-
Graduação em Administração Escolar, pela Universidade Cândido Mendes,
no Rio de Janeiro. Editou o jornal O Papiro do Projeto de Reciclar Papel Com
Arte, da rede FAETEC – Quintino, RJ, e foi colaborador do Jornal Negócios
de São Gonçalo, também no Rio de Janeiro. Escreve desde os dez anos de
idade, onde já escreveu centenas de poesias, romances, crônicas e contos,
pelos quais recebeu prêmios, diplomas, menções honrosas e selecionadas
para participar em antologias de diversos concursos literários.
Bruno Eleres é formado em biologia e mestre em Ecologia, passou a
adolescência escrevendo em fóruns de RPG. A vontade de escrever os contos
que lhe vinham à cabeça foi alimentada através do contato com seus amigos,
bem como da inspiração por alguns escritores, como Anaïs Nin e Henry Miller.
Mantém o blog un-cafe-a-clichy.blogspot.com
Ed Rastun é o pseudônimo de Edilson Vulcão, professor formado em Ciências
da Religião, interessado em literatura fantástica, cção-cientíca e outras
atividades e expressões artísticas. Administra a página no Facebook Apócritos
de Rastum na qual publica seu material. Contato com o autor: edvulkao@
gmail.com
Edweine Loureiro nasceu em Manaus, AM. É advogado e professor de
Literatura. Possui mais de cem classicações em concursos literários no Brasil,
em Portugal, na Espanha e nos Estados Unidos. É autor dos livros: Sonhador
Sim Senhor! (2000), Clandestinos (2011), Em Curto Espaço (2012) e No Mínimo, o
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Innito (2013) e do ainda inédito Filho da Floresta (e outros poemas), livro este que
recebeu o Terceiro Lugar no Prêmio Literacidade 2015 (Pará). Contato com o autor:
Endell Menezes nasceu em Belém, PA. Ele é graduando de Licenciatura em Ciências
Biológicas, é Multiplicador Solar do Greenpeace Brasil e Delegado do Coletivo
Jovens de Meio Ambiente do Pará. Inspirou-se para escrever no Projeto Vitoria
Régia: do popular ao cientíco, de sua própria autoria. Contato com o autor: endell_
Francélia Pereira é estudante de Letras. Teve seu primeiro romance, Habitantes
do Cosmos: Artemísia, publicado em 2015, pela Editora Buriti. Ela é apaixonada por
Mitologia, Ficção Cientíca e Poesia. Contato com a autora: [email protected]
Fred Sá Teles nasceu em Morro do Chapéu, BA. É escritor, músico e cineasta.
Graduando em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia, publicou artigo cientíco na revista Extensão em Debate, bem como teve
conto selecionado para a coletânea Cartas do pequeno Imperador . Tornará público
em breve suas poesias num ebook denominado Transliteração. Contato com o
autor: [email protected]
Gustavo Valvasori é formado em Direito pelo Instituto Toledo de Ensino (Bauru)
e em Publicidade e Propaganda pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Autor
de e–books de marketing digital, fancs e tirinhas. Mantém os sites asiloarkham.
tumblr.com e entrevistadeemprego.tumblr.com. Contato com o autor: gustavo.
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Hileane Barbosa Silva nasceu em Campo Maior, PI. É apaixonada por histórias.
Ainda não publicou nenhum livro, mas se depender da sua vontade, isso será
bem próximo. Contato com a autora: [email protected]
Inácio Oliveira nasceu em 1989, na cidade de Óbidos, PA e mora em Manaus, AM.
É formado em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Amazonas. Possui
textos publicados na antologia Novos talentos da crônica contemporânea e Novos
talentos da poesia contemporânea (Câmara do Jovem Escritor do Rio de Janeiro,
2006 e 2007), foi selecionado pelo concurso anual do SESC-AM para compor a
antologia de contos no ano de 2008, participou da Antologia Manaus 20 Autores
(Livro de Graça na Praça, 2013). Contato com o autor: [email protected]
JBAlves nasceu em Londrina, PR. Atualmente mora na cidade de São Paulo.
Trabalhou com games de computador por mais de uma década. É formado
em Antropologia, pós-graduado em gestão de projetos e mestrado em
Administração. Escreve Fantasia, Poesia e Ficção Cientíca e já recebeu os
prêmios Editors Choice Award (International Library of Poetry) e o Young
Writers Award (Litteris Publisher). Seus contos já foram publicados em diversas
coletâneas e revistas digitais. Contato com o autor: [email protected]
Jean Thallis é estudante de geograa e escritor do gênero gore, atualmente
escreve seu quarto livro sobre o tema, tendo já lançado o primeiro livro em 2013,
pela Chiado Editora, Lapso Esquizofrênico. Na cção cientíca, ele encontrou
muita de suas inspirações em autores como H.G Wells e Philip K. Dick.
Jhon Mark nasceu em 1989. Em 2013 foi um dos selecionados do concurso
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Poetize 2013 e participou da Antologia Amores Impossíveis, organizada pela
escritora Lycia Barros. Atualmente, escreve o primeiro livro da Saga O Vértice: O
Olhar de Caronte; no qual, é publicado um capítulo semanalmente no Wattpad.
Contato com o autor: [email protected]
J. L. Costa (José Lucas dos Santos Costa) nasceu em Vitória de Santo Antão, PE,
em 1996. Cursa Engenharia Civil na Universidade de Pernambuco (UPE). Nas horas
vagas, alterna-se entre Kaa, integrais e Douglas Adams. Contato com o autor:
Márcio Fernandes Conceição nasceu em Itacoatiara, AM. Ele é Servidor público
estadual da SEDUC-AM, vive em Manaus desde 2011. Acadêmico de Letras Língua e
Literatura Portuguesa – UFAM. Contato com o autor: marcioppfernandes@gmail.
com
Maurício Coelho é o organizador desta antologia. Nasceu em Belém, PA, em 1992.
Graduado em Licenciatura em Ciências Biológicas, publicou a tradução de The
Nursery Alice (A Cuidadosa Alice), de Lewis Carroll. Publicou também um poema
na antologia Concurso Novos Poetas 2014, além de um conto na coletânea Horas
Sombrias. Também publicou uma antologia solo de histórias chamada Fogo Fátuo.
Contato com o autor: [email protected]
Moisés Diniz é neto de nordestinos de Riacho do Sangue, CE, e índios ashaninkas
das margens do Rio Amônia, em Cruzeiro do Sul, AC. É formado em Pedagogia pela
Universidade Federal do Acre. Membro da Academia Acreana de Letras e membro
da Academia Acreana de Letras. Contato com o autor: [email protected]
Patrick Santos nasceu em Belém, Pará. É professor de artes visuais, e sempre se
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interessou pela arte amazônica. Escreve desde a adolescência e sua principal
inuência é o escritor, paraoara, Walcyr Monteiro, bem como Antonio Juraci
Siqueira. Contato com o autor: [email protected]
Priscila Machado escreve desde os oito anos e é estudante de publicidade e
mora em Goiânia, GO. Ama folclore irlandês, chá, livros, pessoas e palavras.
Está escrevendo seu primeiro livro e desengavetando contos empoeirados.
Contato com a autora: [email protected] Portfólio: behance.net/
primachado
Raphael Miguel nasceu em 1987 em Botucatu, SP. Tem a escrita como hobby
e já participou de diversas antologias, dentre elas: Além das Cruzadas (Editora
Andross); Modus Operandi (Editora Illuminare); Poesia Sem Fronteiras (Editora
Celeiro); Coletânea Aurora (Editora Celeiro). Possui diversos projetos literários
em andamento e um livro pronto aguardando publicação. Contato com o
autor: [email protected]
Santiago Castro é gaúcho e colorado. Descobriu nas histórias em quadrinhos
e na obra de Monteiro Lobato o gosto pela leitura. E escrever tem sido mais
uma etapa nessa incrível jornada. Contato com o autor: santiagocastro@
outlook.com
Sirius é o pseudônimo de Isabel Furini. Ela é escritora, educadora e poeta.
Foi premiada em concursos de poesia e de contos no Brasil e na Espanha.
Publicou 30 livros, entre eles: O Livro do Escritor (Curitiba: Instituto Memória,
2009); Eu quero ser escritor – a crônica (Curitiba: Instituto Memória, 2012); Os
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corvos de Van Gogh, poemas, (Virtual Books, 2012); além de orientar a Ocina
Como Escrever Livros. Contato com a autora: [email protected]
V. M. Gonçalves nasceu em Ponta Grossa, PR. Graduado em Artes Visuais
pela Universidade Estadual de Ponta Grossa e mestre em Comunicação e
Linguagens pela Universade Tuiuti do Paraná. Apaixonado por folclore e
culturas antigas, especialmente as Pré-Colombianas, dedica seu tempo livre à
criação de universos fantásticos feitos de ideias e tinta. Em 2014 publicou seu