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1 Departamento de Teologia Antropologia Teológica/2017 - Professor: Geraldo De Mori SJ Transição Articulação sistemática da AT à luz de algumas teses sobre o Ser humano A reflexão feita até o momento nos permite de traçar um esboço de organização sistemática da antropologia teológica. É necessário voltar à articulação fundamental da relação entre antropologia e cristologia. Propomos um parágrafo sintético, que é ao mesmo tempo metodológico e de conteúdo: A visão crística do ser humano. Este parágrafo recolhe em uma imagem única o que queremos pensar. O termo “visão” alude ao olhar da fé acerca do chamado e da história do homem a ser em Cristo. O adjetivo “crística” indica que a visão cristã da vida é pensada à luz de Cristo. Jesus é o primeiro e o último da história da humanidade. O genitivo “do ser humano” tem um valor universal: a visão cristã é voltada a cada humano e a todos os humanos. Afirma que “ser em Cristo” (com a força da expressão paulina) e “permanecer nele” (como sugere João) é o destino da humanidade na história do mundo, na dramática do pecado e da redenção. A visão cristã não trata simplesmente das afirmações sobre o ser humano, o corpo, a alma, a criação, o destino da vida, mas busca uma forma própria, dá uma visão sintética sobre a existência. Própria porque a existência humana no mundo é o espaço do cuidado amoroso de Deus, colocado na reviravolta ardente do destino filial de Jesus e se alimenta continuamente no sopro transformador do Espírito de Cristo. Esta é a visão crística do ser humano, que está no centro do saber da fé, da qual a teologia busca dar uma compreensão crítica. Neste quadro, os temas clássicos da antropologia (criação, liberdade criada, homem-mulher, pecado original, graça, realização escatológica da liberdade), disseminados em tratados distintos e correlatos da teologia da dupla ordem, podem encontrar um ponto de vista sintético que busque configurar o saber cristão do homem. A antropologia teológica se compreende, portanto, à luz de Jesus Cristo, enquanto Ele é a revelação e a autocomunicação de Deus ao homem, e deverá entrelaçar-se com a sacramentaria e a eclesiologia, porque não são redutíveis simplesmente a funções da antropologia. A antropologia que deriva do gesto pascal de Jesus é a gramática que, mediante os sacramentos, constitui o povo de Deus a caminho do reino. De fato, este é o fim da aliança e da revelação: a comunhão dos santos. A articulação da antropologia teológica deve mostrar a relação entre o objeto material (a antropologia cristã) e o objeto formal (a antropologia teológica) do curso. A antropologia cristã é a visão de fé sobre o homem no mundo chamado à conformação com Cristo. Como visão, ela resulta de muitos elementos da experiência cristã, alguns explícitos, outros implícitos na vida do discípulo e da Igreja, de ontem e de hoje. A experiência precede a reflexão, ainda que seja uma experiência que contenha de modo sintético a concepção do próprio ser crente do cristão. A antropologia teológica é a compreensão crítica e argumentada da antropologia cristã, que é necessária para a figura

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Departamento de Teologia

Antropologia Teológica/2017 - Professor: Geraldo De Mori SJ

Transição

Articulação sistemática da AT à luz de algumas teses sobre o Ser humano

A reflexão feita até o momento nos permite de traçar um esboço de organização

sistemática da antropologia teológica. É necessário voltar à articulação fundamental da

relação entre antropologia e cristologia. Propomos um parágrafo sintético, que é ao

mesmo tempo metodológico e de conteúdo: A visão crística do ser humano. Este

parágrafo recolhe em uma imagem única o que queremos pensar. O termo “visão” alude

ao olhar da fé acerca do chamado e da história do homem a ser em Cristo. O adjetivo

“crística” indica que a visão cristã da vida é pensada à luz de Cristo. Jesus é o primeiro

e o último da história da humanidade. O genitivo “do ser humano” tem um valor

universal: a visão cristã é voltada a cada humano e a todos os humanos. Afirma que “ser

em Cristo” (com a força da expressão paulina) e “permanecer nele” (como sugere João)

é o destino da humanidade na história do mundo, na dramática do pecado e da redenção.

A visão cristã não trata simplesmente das afirmações sobre o ser humano, o corpo, a

alma, a criação, o destino da vida, mas busca uma forma própria, dá uma visão sintética

sobre a existência. Própria porque a existência humana no mundo é o espaço do cuidado

amoroso de Deus, colocado na reviravolta ardente do destino filial de Jesus e se

alimenta continuamente no sopro transformador do Espírito de Cristo. Esta é a visão

crística do ser humano, que está no centro do saber da fé, da qual a teologia busca dar

uma compreensão crítica.

Neste quadro, os temas clássicos da antropologia (criação, liberdade criada,

homem-mulher, pecado original, graça, realização escatológica da liberdade),

disseminados em tratados distintos e correlatos da teologia da dupla ordem, podem

encontrar um ponto de vista sintético que busque configurar o saber cristão do homem.

A antropologia teológica se compreende, portanto, à luz de Jesus Cristo, enquanto Ele é

a revelação e a autocomunicação de Deus ao homem, e deverá entrelaçar-se com a

sacramentaria e a eclesiologia, porque não são redutíveis simplesmente a funções da

antropologia. A antropologia que deriva do gesto pascal de Jesus é a gramática que,

mediante os sacramentos, constitui o povo de Deus a caminho do reino. De fato, este é o

fim da aliança e da revelação: a comunhão dos santos.

A articulação da antropologia teológica deve mostrar a relação entre o objeto

material (a antropologia cristã) e o objeto formal (a antropologia teológica) do curso. A

antropologia cristã é a visão de fé sobre o homem no mundo chamado à conformação

com Cristo. Como visão, ela resulta de muitos elementos da experiência cristã, alguns

explícitos, outros implícitos na vida do discípulo e da Igreja, de ontem e de hoje. A

experiência precede a reflexão, ainda que seja uma experiência que contenha de modo

sintético a concepção do próprio ser crente do cristão. A antropologia teológica é a

compreensão crítica e argumentada da antropologia cristã, que é necessária para a figura

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cristã do homem e para a consciência da Igreja na história. Enquanto compreensão

crítica e argumentada, a antropologia teológica dá razão da estrutura intrínseca da

antropologia cristã. Ela busca um compreender veritativo e eclesial, um serviço para o

anúncio e a celebração, e através disso, a caridade: a vida na aliança, que é a suma do

evangelho, do ser cristão na Igreja. A antropologia teológica deve fazer com que aquilo

que advém na história realize o esplendor da forma crística.

Podemos expressar essa compreensão em cinco teses que articulam a linha de

força da visão crística do ser humano. A antropologia cristã afirma que o ser humano: 1)

é chamado/predestinação a ser e viver em Jesus Cristo. O cristocentrismo da revelação

tem uma valência trinitária, no sentido de que Jesus está no centro da visão cristã da

realidade. Sua centralidade é vista em sua relação filial com o Pai e em sua destinação

universal aos homens, em virtude do Espírito; 2) é a realização de sua liberdade que é

posta intrinsecamente como capacidade de resposta a tal chamado. Se a liberdade criada

é objetivamente chamada a ser conformada a Cristo, então a liberdade do homem deve

ser a possibilidade efetiva de resposta a tal chamado. Nas formas culturais com as quais

o homem antecipa em seu agir, esperar e amar a busca da verdade de si podem ser

percebidas a relação com a predestinação em Cristo; 3) essa liberdade é uma liberdade

corpórea no mundo, na diferença masculino-feminino, chamada à incorporação em

Cristo, no Espírito. A estrutura da liberdade criada, como ser no mundo, na diferença

sexual, é compreendida à luz da incorporação a Cristo como possibilidade de comunhão

e necessidade de determinação. Os temas da criação, liberdade, homem-mulher,

encontram sua atualização na graça da incorporação, que é a conformação filial à vida

de Deus em Cristo, mediante o Espírito de Jesus; 4) é uma liberdade que existe na

dramática da história: o pecado (original) é a perda da conformidade a Cristo. A vida da

liberdade à luz do chamado em Cristo põe em evidência a dinâmica histórica da

liberdade, que é determinada pela rejeição e perda da conformidade a Cristo. O estado

original é visto sob a forma do chamado a ser em Cristo e o pecado é a perda da

conformação a Cristo, na cumplicidade dos humanos com o pecado de Adão; 5) é uma

liberdade que é justificada na dramática histórica: graça, carismas e virtudes exprimem

a recuperação e o cumprimento da liberdade em Cristo. A perda da conformidade a

Cristo não muda o chamado da liberdade a ser em Cristo, mas este chamado se atualiza

então como remissão dos pecados, justificação mediante a fé, retomada da vida filial,

experiência histórica da liberdade dada mediante a virtude e os carismas, para a

realização definitiva e plena da liberdade e da história dos homens em Cristo.

A tese sintética que proposta acima pode ser reformulada assim: a antropologia

teológica indaga o procedimento com o qual o homem acede à verdade de si mesmo,

atualizando na fé a própria liberdade e conformando-a ao sentido do humano presente

na vida de obediência de Jesus ao Pai e da sua dedicação aos homens mediante o

Espírito. Nosso projeto sistemático vai se desdobrar em dois quadros: 1) o ser humano

conformado a Cristo no Espírito (cinco capítulos da segunda parte); 2) Cristo na

dramática do evento humano (dois capítulos da terceira parte). Esta distinção não pode

ser entendida no sentido de que o primeiro momento (identidade cristã) trata da essência

do homem segundo a predestinação, enquanto o segundo (a história cristã) interpreta

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teologicamente a história do ser humano que, chamado à predestinação, a perde com o

pecado, a recupera com a justificação e a desenvolve com a santificação. Nos dois

quadros a relação entre cristologia e antropologia deve ser pensada no entrelaçamento

entre verdade e história, ontologia e vida histórica do ser humano. O primeiro quadro

considera a relação entre Cristo e o homem sob o perfil normativo, no sentido que

delineia a verdade do homem na história, lendo o sentido do humano segundo a

predestinação em Cristo que é a vontade de Deus para o ser humano manifestada na

vida de Jesus. No segundo quadro, a história efetiva dos homens e mulheres é iluminada

teologicamente à luz da verdade, que é a própria autocomunicação de Deus em Cristo.

De forma que a sequência dos eventos histórico-salvíficos (criação, elevação, pecado,

redenção, graça, cumprimento) não atribui um valor teológico à sucessão cronológica,

mas a lê a partir do ponto focal de Jesus Cristo. Os dois quadros mostram o processo no

qual o homem (na diferença masculino-feminino) se torna discípulo de Cristo,

assumindo a figura do crente cristão: um sob o perfil da verdade que se dá há história;

outro sob o perfil da história dramática com a qual acede e retorna à sua verdade.

Segunda Parte: O Ser humano conformado a Cristo no Espírito

I. A Predestinação: verdade da antropologia cristã

Introdução

Neste tópico trataremos do fundamento da antropologia cristã. Nele se põe a

questão da verdade da figura do crente cristão segundo a revelação. A teologia defendeu

o caráter sobrenatural do destino do ser humano, embora, como vimos, o tema do

sobrenatural tenha sido pensado a partir do esquema da antropologia do duplo fim

(natural-sobrenatural). Este esquema queria salvaguardar a gratuidade do chamado

sobrenatural. A denúncia do dualismo, presente em tal esquema, e a falta de referência

critológica, levaram à recuperação do sobrenatural concreto, que é a ordem querida por

Deus, centrada em Jesus Cristo, ou seja, a ordem da predestinação em Cristo. Com isso

se afirma que Deus predestinou gratuitamente e eficazmente todos os seres humanos a

se tornarem filhos no Filho Jesus Cristo, mediante o Espírito. Esta formulação bíblica

do tema da predestinação parece contrastar com sua história milenária, profundamente

marcada por Agostinho e pelas reinterpretações posteriores de seu pensamento.

1. A leitura do tema da predestinação na história da fé

A visão crística do humano levanta a pergunta por sua verdade. Quem é

definitivamente o cristão segundo a revelação? Só se pode responder a ela à luz da

história da fé.

1.1. A predestinação no testemunho bíblico

O tema da predestinação na Bíblia é inserido no quadro da teologia da eleição e

da aliança. A figura neotestementária da nova aliança consiste na unificação de toda a

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humanidade em Jesus Cristo, no sentido da participação de todos na filiação de Deus

própria a Jesus Cristo. Por isso, a criação do ser humano na Bíblia é um momento

interno à aliança. Porém, na história da teologia o tema da predestinação foi interpretado

diversamente, sobretudo em Agostinho. Este, recorrendo a Paulo, elaborou uma

doutrina caracterizada por dois elementos:

1) A referência aos indivíduos, homens e mulheres particulares, eleitos entre

todos os seres humanos, com a exclusão dos outros;

2) O caráter infalível da eleição, no sentido de que nada, nem mesmo a liberdade

pessoal dos eleitos, pode torná-la ineficaz. Esta leitura de Agostinho não percebe que

Paulo pensa sempre a eleição/predestinação a partir do povo e que o chamado singular

tem sempre dimensão universal. A doutrina da eleição/aliança/predestinação, à

diferença de Agostinho, tem sempre um caráter cristológico, histórico e universal. Ela

encontra em Cristo, o eleito do Pai, a qualificação de suas características e não nos

homens e mulheres, e nem mesmo em Deus prescindindo de sua doação no Filho e de

nossa participação na liberdade criada do Espírito. Vejamos alguns elementos do

Primeiro e do Novo Testamento onde isso aparece.

a. Eleição e predestinação no Primeiro Testamento

O AT descreve a relação entre Deus e o povo como eleição/aliança. A eleição é a

gênese e o fundamento da vida do povo eleito, que a interpreta como um ato de

predileção divina. O Dt é que põe no centro de sua teologia o tema da eleição, do qual

emergem o primado da iniciativa de Deus, sua absoluta gratuidade e o conteúdo

amoroso da eleição. A eleição divina supõe sempre um encargo, um dever.

Podemos estabelecer o significado da eleição no AT ao redor de cinco elementos

estruturais: 1) o sujeito: Deus é o sujeito da eleição; 2) o destinatário: o povo. É Israel o

destinatário da eleição; 3) o fim: a pertença a YHWH, o pacto de aliança entre Deus e

seu povo. YHWH separa Israel para que seja santo como ele é santo. A eleição é

separação/privilégio para o eleito, mas em vista da bênção de todos os outros povos; 4)

o motivo: o amor preveniente. O coração da eleição é o amor livre e gratuito de Deus,

preveniente e imotivado. A eleição é sem motivo, fruto da benevolência divina. Nesse

sentido, a eleição é revelação de Deus; 5) tempo da eleição: a eleição não é uma

segurança, pois sempre pode ser rompida pela infidelidade do povo. Depois do exílio,

acentuou-se o tema da universalidade, que culmina na visão de Jerusalém como ponto

de gravitação dos povos, e centro da religião universal. No fim do AT, a eleição não é

mais vista como um privilégio, pois tem função vicária, é um sinal entre os povos da

presença de Deus no interior da história.

b. Eleição e predestinação no Novo Testamento

No NT, os Sinóticos apresentam o tema da eleição referido a Jesus, sendo

ausente a ideia de uma predestinação seletiva. Três linhas aparecem: 1) o uso do

vocabulário da eleição é reduzido e remete a um contexto escatológico, exceto em Lc

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que o aplica a Jesus (Transfiguração: Lc 9,35); 2) a dinâmica da missão de Jesus é

referida primeiramente a Israel e depois se estende aos pagãos; 3) o tema desloca-se no

vocabulário do chamado dos discípulos e da participação na missão de Jesus.

Em João algumas expressões parecem dar a impressão de um

predestinacionismo de marca dualista (Jo 6,37-39. 44. 65; 10,29; 17,2). Porém, o

acolhimento do Verbo na carne é o lugar da eleição/vocação da humanidade, na

dialética entre a missão de Jesus que veio para salvar o mundo (Jo 12,47) e a vinda para

os seus que não o acolheram (Jo 1,11). O tema da hora mostra, porém, o universalismo

pascal de João.

Para Paulo os textos fundamentais são: 1Cor 1,27-29; Rm 8,28-30; Ef 1,3-14;

3,8-12; 1Tes 5,9; 2Tes 2,13). O texto de Ef 1,3-14 é o que resume a perspectiva paulina

de forma ampla e emblemática. Começa com uma eulogia (3), cujo objeto é Deus e sua

intervenção salvífica em favor da comunidade. Apresenta em seguida o desígnio divino

(4-6a) em três momentos:

1º) Eleição pré-temporal e predestinação dos cristãos. À diferença do AT, onde

a eleição tem caráter temporal (Abraão, Êxodo, etc.) aqui é pré-temporal, a eleição em

Cristo. Deus não pensa em nós independentemente de Jesus. O ato de eleição é

apresentado com uma determinação pré-temporal (antes da fundação do mundo). A

seguir é esclarecido o conteúdo da eleição (ser santo e imaculado diante dele). Enfim

vem o sentido da eleição com o verbo predestinar (proorizo: prefigurar, pré-desenhar),

que é especificado como filiação divina em virtude de Cristo. É o momento alto do

hino: o princípio e o fim do mistério cristão: um mundo pensado e querido em Cristo, e

Cristo visto como o coroamento do mundo e da história humana;

2º) O drama (6b-7): a redenção mediante o sangue do Dileto. Tudo por causa da

riqueza da graça;

3º) O mistério (8-10): evoca o projeto/mistério da recapitulação de tudo em

Cristo. O conteúdo do mistério resume o caminho da benevolência:

escolha/predestinação e redenção/reconciliação no mistério da recapitulação de tudo em

Cristo. O sinal (11-13): a comunidade orante entra em cena, para reconhecer o impacto

da bênção divina sobre a Igreja. Esta se torna o sinal real da reconciliação prometida. A

meta (14): horizonte escatológico do término do hino. Referência ao Espírito como

penhor, antecipação real de nossa herança. Meta e convergência de todos os povos e de

todas as coisas.

Os exegetas e teólogos contestam hoje a exegese feita por Agostinho de Ef 1,3-

14. Paulo não afirma a existência de uma categoria particular de eleitos, escolhidos e

excluídos, nem postula a existência de uma graça invencível e absolutamente eficaz

para os eleitos. Ele se limita a afirmar que os predestinados são todos os que receberam

o Evangelho. O ser cristão é para ele sinal de predestinação, o que não significa que

limite a predestinação aos cristãos. Ele tampouco afirma que os cristãos chegarão à

salvação por serem predestinados. Existe sempre a possibilidade de a liberdade rebelar-

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se (2Tm 2,10). A predestinação em Paulo coincide com o mistério de Cristo, que é

escondido às gerações passadas (Cl 1), mas agora foi manifestado aos santos. Este

mistério consiste no plano de Deus de unificar todos os seres humanos em Cristo,

reproduzindo neles a imagem de seu Filho (Rm 8,28-30). Em Paulo o plano de Deus

não é visto como inevitabilidade que se realiza contra a liberdade. Exprime a vontade

gratuita e salvífica de Deus destinada a todos, sendo operante no dom de seu Espírito

que anima a liberdade humana desde dentro.

Podemos, portanto, resumir assim a reflexão bíblica sobre a predestinação: Deus

predestinou com vontade absolutamente gratuita e infalivelmente eficaz todos a se

tornarem seus filhos e filhas no seu Filho amado, Jesus Cristo.

1.2. A predestinação na patrística grega

Os padres gregos não conhecem o problema da predestinação nos termos postos

por Agostinho e o Ocidente. Nos Padres Apostólicos a predestinação coincide com o

chamado à salvação mediante a fé. Os Padres sucessivos têm a mesma posição, em

particular, quando fazem a exegese de Rm 8,28-30. Trata-se de uma exegese com os

seguintes pontos comuns:

1) A intenção geral do Apóstolo é a de oferecer um motivo de esperança a todos

os que amam a Deus, em concreto, a todos os cristãos;

2) Referindo-se a eles, Paulo não se refere imediatamente à salvação eterna, mas

à justificação e à glorificação que resultam da conformidade à imagem do Filho de Deus

já atual nesta vida;

3) Paulo afirma que esta economia, pela qual é dada a glorificação aos que

amam a Deus, é prevista por Deus.

Os Padres gregos preferiam, no entanto, falar de pré-ciência e não de

predestinação. Segundo João Damasceno, Deus não predetermina todas as coisas. Ele

pré-conhece, mas não predetermina as coisas que dependem de nós. Ele não quer o mal

e não necessita da virtude. Ele predetermina segundo sua pré-ciência as coisas que não

dependem de nós.

1.3. A doutrina de Agostinho sobre a predestinação

A teologia de Agostinho sofreu uma evolução, tendo passado de uma posição

próxima da dos monges da Gália, segundo a qual a distinção dos humanos em salvos e

reprovados se opera não por uma pré-determinação divina, mas por uma escolha

humana, a uma perspectiva diversa, segundo a qual a existência das duas categorias

depende da decisão de Deus. A doutrina agostiniana parte da condição humana depois

do pecado original, que reduz a humanidade à condição de massa pertitionis. A

predestinação consiste no ato divino de liberar alguns desta massa. Ela é determinada

pela misericórdia divina e exclui qualquer eventual mérito. Ela é gratuita. Por outro

lado, ninguém pode opor-se ao atuar do ato liberador de Deus. O que ele quer,

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inevitavelmente acontece. Por isso, a predestinação é infalivelmente eficaz. O plano

divino que liberta alguns da massa damnationis tem sua lógica, pois põe em evidência a

justiça de Deus que pune o pecador, e sua misericórdia, que é gratuita. Deus não poderia

querer a salvação de todos, porque então todos se salvariam. Nesse caso, teríamos um

plano divino que não põe em evidência uma de suas propriedades, a justiça. Daí a

necessidade de que nem todos sejam predestinados. Estes constituem um número

determinado, porque quanto mais raro o dom, mais reluz sua gratuidade.

Agostinho funda a gratuidade da salvação fazendo-a reluzir com relação ao

pecado. À doutrina bíblica da graça ele substitui como fundamento da antropologia

sobrenatural a doutrina do pecado original. Para entender melhor toda essa

problemática, é preciso conhecer a controvérsia pelagiana e semipelagiana.

a. Mudança cultural

À diferença dos gregos, que se interessavam pela ideia, pelo cosmo como um

conjunto harmônico e unitário, os latinos se punham problemas ligados à conduta

concreta da existência e à estruturação sócio-política da coletividade. Enquanto os

gregos se interessavam pela imagem ideal do ser humano, os latinos se concentraram no

indivíduo concreto, na disposição de sua vontade, em sua responsabilidade, culpa e

recompensa. A teologia ocidental será por isso marcada por aspectos mais jurídicos. Por

isso, o cristianismo será uma religião do direito divino, como atualização de uma nova

relação jurídica com Deus.

Enquanto para os gregos a redenção era vista como o problema do modo como a

natureza humana pode ser libertada de sua indiferença, obscuridade e confusão, para ser

restabelecida no dinamismo originário da mímesis e atingir seu verdadeiro fim, a

divinização, a concepção latina se apega ao problema da sanatio da relação jurídica

entre Deus e o ser humano. Trata-se do restabelecimento da ordem jurídica destruída

pela culpa humana. Daí o acento no singular, na liberdade e na responsabilidade. O

resultado é que a teologia latina vai numa direção oposta à grega: a liberdade pessoal

não é mais vista no interior de um processo cósmico que plasma o singular, mas a partir

do singular. É ele que é conduzido à salvação, com a ajuda da graça, entendida como

uma força especial comunicada por Cristo, que libera do pecado e leva o indivíduo a

alcançar seu fim.

Se para os gregos a graça é vista de modo teológico e compreende todos os

eventos salvíficos, para os latinos, e seu ponto de partida antropológico, a graça é algo

acrescentado ao indivíduo livre e autônomo. No Ocidente a graça tenderá por isso a se

tornar uma realidade antropológica, uma realidade para o homem e no homem. Para

além do confronto Pelágio-Agostinho, é preciso perceber a transição do contexto

cultural. Pelágio repropõe na Igreja latina o acento Oriental, mas sua reflexão deparou-

se com um contexto distinto, que a tornava ambígua. Agostinho reflete à luz da tradição

latina e sua experiência pessoal o inclina a ser o máximo intérprete desta sensibilidade.

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b. Controvérsia pelagiana

Pelágio, monge irlandês e diretor espiritual, viveu em Roma entre 380/400. É o

período do fim do paganismo e do ingresso em massa dos membros do império romano

na Igreja. A comunidade cristã conhece então um grande laxismo. Pelágio lutou contra

o relaxamento e as conversões oportunistas. Em 410, diante das tropas de Alarico, foge

para a África, onde permanece por um período. Depois vai a Jerusalém, onde é acolhido

pelos bispos palestinos.

Pelágio apelava à liberdade para reagir contra o maniqueísmo e por um intento

ascético. Entre seus discípulos destacava-se Celestius, que fez do grupo de Pelágio um

partido teológico, traçando as consequências de sua doutrina. Agostinho, no princípio,

às voltas com a controvérsia donatista, não se envolveu no debate provocado por

Celétius. O que desencadeou a controvérsia foi a questão do batismo das crianças, que

Celestius afirmava não ter valor de remissão de pecados, pois elas eram inocentes. Em

411 é convocado um sínodo, em Cartago, e em 415, outro, em Dióspolis. O primeiro

condenou as proposições de Celestius, e o segundo inocentou Pelágio. Com essa

decisão, a Igreja da África se sentiu atacada e convocou outro sínodo, que ocorreu em

Milevo (416) e renovou a condenação de Celestius e Pelágio. Esses recorrem a Roma,

que os excomunga, embora com a morte do papa, tal decisão não tenha tido efeito. Seu

sucessor, Zózimo, hesita diante da excomunhão. A Igreja africana reage e se reúne em

Cartago (418) num concílio, promulgando três cânones sobre o pecado original e seis

sobre a graça. O papa escreve então uma carta onde retoma esses cânones (Tractoria).

Agostinho participou deste concílio, iniciando todo um debate escriturístico com as

obras de Pelágio. Juliano de Eclana, discípulo de Pelágio, entra também na controvérsia

e rejeita os cânones. Escreve contra Agostinho, que responde com outra obra. Pelágio

reafirma sua ortodoxia e refugia-se no Egito. Celestius retorna a Roma após a morte do

papa e depois vai a Bizâncio, onde estava Juliano de Eclana, e é acolhido por Nestório.

c. Doutrina pelagiana

Pelágio preocupou-se com o influxo do dualismo maniqueísta e sua intenção

profunda foi a de garantir a bondade da criação e, consequentemente, a liberdade natural

do homem. Ele era animado por um intento ascético-espiritual. Diante do laxismo

reinante fazia apelo à liberdade do indivíduo para realizar a vida cristã em sua

totalidade. Ao querer isentar Deus de todo o mal, inclusive o moral, ele sublinhou a

responsabilidade da liberdade na culpa e a possibilidade de realizar o bem. Sua

linguagem, bíblica e moralizante, e a noção de graça segundo a compreensão grega, que

compreendia todos os dons de Deus (criação, lei, redenção) pode levar à conclusão que

o pelagianismo herético é restrito a Celestius e a Julianao de Eclana.

Pelágio sustentava que a liberdade humana, em sua inclinação ao bem e no modo

como se exprimia, e a natureza, no seu ser imagem de Deus, são a forma fundamental

da graça. Para elucidar a relação entre graça e liberdade, ele distinguia em nosso agir

três aspectos: a possibilidade, o querer, a ação. A possibilidade de fazer o bem vem de

Deus; o querer e a ação, ou seja, o uso desta possibilidade e sua efetivação, são

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próprios do ser humano. A graça propriamente se refere ao primeiro aspecto, enquanto

os outros, embora provenham da graça em sua raiz, pertencem ao operar humano.

Portanto, a graça não é vista como determinação interior da vontade, mas como ajuda

externa. O caráter externo e exemplar da graça é recuperado mesmo depois do pecado

adâmico. Se em razão disso as faculdades naturais do ser humano são comprometidas,

Deus vem em ajuda com os eventos salvíficos, a Lei, os profetas e, sobretudo, Jesus

Cristo, com a exemplaridade de seu ensinamento, de sua doutrina e de sua promessa,

para vivificar a liberdade bloqueada pelo pecado e conduzir pedagogicamente o pecador

à salvação.

Portanto, para Pelágio, a humanidade conserva a liberdade e a faculdade de

comportar-se retamente, de evitar o pecado. Ela não é vista em sua autonomia, mas no

processo de salvação. A partir disso, se entende a tese da impecantia, segundo a qual o

ser humano pode, se quiser, fazer o bem e chegar à salvação sem nenhuma ajuda,

porque esse é um poder inalienável de sua liberdade e a Escritura oferece exemplos

desta possibilidade. Daí deriva sua inaceitabilidade das teorias que negavam o livre

arbítrio e das doutrinas de um pecado original hereditário, bom como a da

invencibilidade da concupiscência. Os pelagianos partiam do pressuposto que Deus

conservava, mesmo depois do pecado de Adão, a natureza humana como imago Dei.

d. O pensamento de Agostinho

O pensamento de Agostinho sobre a graça é fruto do confronto com o

pelagianismo, embora o bispo de Hipona seja herdeiro da patrística grega no que se

refere ao tema da inabitação/divinização. O que determinou sua interpretação: a leitura

personalista da Bíblia, em particular dos escritos paulinos e joaninos; o acento no

primado divino; a formação neo-platônica, que interpreta cada ato moralmente bom na

linha da participação na bondade divina; a tradição latina precedente, com forte acento

no pecado e na debilidade humana. Outros fatores: situação histórica; a experiência de

convertido, com a dolorosa concepção do mal e da fraqueza humana; a experiência

sacerdotal como pastor no contato com homens e mulheres pecadores e necessitados da

graça divina; a polêmica antidonatista sobre os sacramentos; a controvérsia pelagiana.

Vamos apresentar dois aspectos da teologia agostiniana da graça: 1) a absoluta

necessidade da graça, com o corolário da natureza; 2) a gratuidade e eficácia da graça,

com a questão da predestinação.

A afirmação da absoluta necessidade da graça possui dois pressupostos: 1) o da

perspectiva neoplatônica de Deus, pensado como Sumo Bem, do qual os bens

particulares são participação; 2) o do pecado original como distanciamento do Bem, que

provoca uma escravidão do desejo (concupiscência), embora o ser humano conserve o

livre arbítrio. A consequência disso: a graça produz em nós não só tudo o que é de bem,

mas ajuda ainda a evitar o mal.

A razão da absoluta necessidade da graça é clara para o estado atual da

humanidade decaída, mas problemática para a situação originária de Adão. Intervém aí

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a distinção entre auxilium quo e auxilium sine quo non. A necessidade da graça é

anterior ao pecado, enquanto se refere à finitude da criatura enquanto tal. De fato, a

ajuda dada a Adão antes do pecado, ou seja, o auxilium sine quo non, era necessária

enquanto dava a pura possibilidade de fazer o bem. Mas a graça é necessária, sobretudo,

depois do pecado, porque os seres humanos possuem uma vontade ferida pelo mal. É

necessário então o auxilium quo, que não dá só a possibilidade do bem, mas a efetiva

realização, que conduz à vida eterna. Daí deriva o aprofundamento da natureza da graça,

considerada, sobretudo, em vista do agir moral, como amor do Bem. A graça é a

delectatio victrix dada por Jesus, que deve ultrapassar a concupiscência, que é a

delectatio produzida na humanidade pelo pecado de Adão.

Essa consideração psicológica da graça requer a definição da relação graça-

liberdade. A afirmação da absoluta necessidade da graça põe a exigência de salvar o

espaço da liberdade. A exigência de atribuir à graça a exclusividade da obra da salvação

para manter seu caráter gratuito, e a afirmação do pecado original como corrupção da

capacidade do agir moral do homem, podem nos fazer pensar que Agostinho não

valorize a liberdade. Ele distingue a liberdade do livre arbítrio, a primeira vista como

determinação para se fazer o Bem, e segundo como capacidade de escolha entre o bem e

o mal. A graça produz em nós uma libertação que é a liberdade mesma.

A afirmação da absoluta gratuidade e eficácia da graça deriva deste modo do

entendimento da liberdade no interior do dom de Deus. Concretamente, é o tema da

distribuição da graça ou predestinação que Agostinho indagará na obra na qual trata a

questão do semipelagianismo. Como de fato a liberdade deriva radicalmente da graça,

surge a alternativa:

1) Se a graça é invencível atração, se Deus a desse a todos, todos se salvariam;

2) Mantendo o pressuposto, se de fato parece que nem todos se salvam, deve-se

concluir que Deus não dá do mesmo modo a graça a todos.

Agostinho sustenta a infalível eficácia da graça. Se ela fosse dada a todos, diz

ele, então todos se salvariam. O bispo de Hipona não pôde, porém, chegar a essa

solução porque sua reflexão queria também dar conta da teodiceia (a justiça de Deus).

Só lhe restava então restringir a universalidade da distribuição da graça, ou seja, a

predestinação. Não se pode, porém, fazer uma leitura rígida de Agostinho como o

fizeram os agostinianismos posteriores, que parecem suprimir a liberdade naqueles que

são predestinados. Agostinho, quanto a ele, diz que Deus opera na liberdade humana

aquilo que ela deve querer. Para salvar o livre arbítrio, ele afirma que Deus age sem

tolher a liberdade, que é ela mesma somente quando se dispõe ao bem. Em base a este

conceito de liberdade, a invencível eficácia da graça não se opõe à liberdade, mas a leva

a realizar-se, no sentido de que a orienta, liberando-a do mal. Na ótica da transcendência

da ação de Deus e da dependência da liberdade humana, o critério em base do qual Deus

decide não pode depender do sujeito humano, em cada determinação, nem da previsão

de seu comportamento, mas é absolutamente originário. O critério a partir do qual Deus

age e decide pertence a seu mistério, não é de nosso domínio, pertence à sua liberdade.

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A intervenção do Magistério no âmbito da controvérsia pelagiana deu-se no

concílio de Cartago (418), aprovado na Tractoria e na compilação que ulteriormente aa

Igreja romana fez desse texto no documento conhecido como De gratia Dei indiculus.

A diferença entre Pelágio e Agostinho se situa no diverso modo de entenderem o

processo salvífico em relação com a liberdade humana. Pelágio, movendo-se na linha da

teologia oriental, entende a ação de Deus atuando na história e nas mediações salvíficas

em referência à liberdade que conserva sempre a capacidade do bem, ou seja, de aderir

ao processo pedagógico de Deus ou de rejeitá-lo. O acento posto no ser humano e em

sua liberdade leva a pensar a função de Deus como uma ajuda externa dada ao

indivíduo, que pode conseguir por si a salvação. Na ausência do pressuposto oriental,

esse modo de entender a graça a torna algo extrínseco. Por isso, Agostinho considera o

pensamento de Pelágio insuficiente, uma vez que o bispo de Hipona parte do singular,

do sentido de sua responsabilidade e de sua culpa.

No contexto latino, as expressões pelagianas soam moralistas e voluntaristas. O

conjunto do pensamento de Agostinho o leva a pensar a ação da graça como algo

interior (o amor de Deus, o ES), ou seja, um dom imediato de Deus. A história da

salvação permanece importante, mas ela é posta em relação com o sujeito, com seu

conhecer e querer. Por isso, a graça é entendida como dilectio e charitas, interior ao

querer humano, que é compreendido no interior da graça: não é possível pensar a

liberdade de escolha previamente e externamente à ação da graça, mas esta se identifica

com a decisão livre que se deixa atualizar pela ação divina.

O concílio de Cartago é entendido como a conclusão da crise pelagiana. Ele

promulgou, como dissemos, três cânones sobre o pecado original e a necessidade do

batismo das crianças. Os seis cânones sobre a graça estabelecem a natureza da mesma

segundo a fé católica: 1) ela é um necessário adiutorium e não somente a pura remissão

dos pecados (DS 225); 2) não é só comunicação do bem fazer (DS 226); 3) não é só

ajuda para fazermos aquilo que podemos fazer sozinhos (DS 227). Os últimos três

cânones (DS 228-230) retomam a tese da impecância dos pelagianos e a necessidade da

graça, com um apelo ao Evangelho, à oração e aos santos. O texto do cartaginense foi

recebido por toda a tradição da Igreja, tanto oriental quanto ocidental, como o

documento conclusivo da controvérsia. O Dei gratia indiculus, representa a compilação,

no ambiente romano, entre 435-442, da compreensão da graça, feita por Próspero de

Aquitânia. Mantém a necessidade absoluta da graça (DS 239-242) e afirma o livre

arbítrio, que não é sufocado pelo pecado, mas só enfraquecido (DS 248).

e. A controvérsia semi-pelagiana

Trata-se de um prolongamento, sem necessária continuidade, da controvérsia

pelagiana. A historiografia póstridentina fala de semipelagianismo, mas na verdade não

tem relação com os pelagianos. Em sua primeira fase ela implica Agostinho. Floro, em

426, manda do mosteiro de Hadrumeto, no sul da África pró-consular, a cópia da carta

de Agostinho sobre a necessidade da graça enviada ao Padre Sixto (futuro Sixto III), em

419, que havia suscitado a reação dos monges do mosteiro. Agostinho responde com o

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De gratia et libero arbítrio (426) e o De corretione et gratia (427). Os outros textos

relacionados a esta controvérsia são de 429-430: o De praedestinazione sanctorum e o

De dono perseverantiae, ambos dirigidos aos monges da Aquitânia e de Marselha. São

esses textos que propriamente falando levam à doutrina da predestinação.

À luz desses textos alguns seguidores de Agostinho negam o livre arbítrio e a

vontade salvífica universal, sustentando a predestinação ao mal. Outros professam um

agostianismo moderado, como Fulgêncio de Ruspe e Cesário de Arles, o que levou ao

consenso do Concílio de Orange, em 529 (DS 371-395).

O que é considerado como semipelagianismo é exposto por Fausto de Riez, no

De gratia et libero arbítrio, que afirma uma sinergia entre graça e liberdade, mesmo no

pecador. Sobretudo no ato de preparação à justificação se deve falar de uma iniciativa

da liberdade à qual Deus acorda a ajuda de sua graça. Trata-se não do initium fidei e do

pius credulitatis affectus da teologia moderna, que trata dos atos preparatórios à fé. A

oposição à doutrina agostiniana se caracteriza por três aspectos: a rejeição em aceitar a

concepção restritiva da predestinação, que limita a vontade salvífica universal; a

rejeição da teoria da graça invencível; uma atenuação da necessidade da graça para o

início da salvação. Para o initium fidei, os semipelagianos pensavam que na ordem do

pensamento e do desejo, a obra humana precede a concessão da graça, ainda que depois,

para agir, fosse necessária a graça. Da mesma forma, a perseverança é ligada à fé e à

oração, que são obras humanas.

O concílio de Orange reuniu, através de Cesário de Arles, 40 bispos na

consagração da basílica de Orange e produziu 8 cânones e 17 sentenças, aprovadas por

Bonifácio II. No decreto são retomados os pontos fundamentais da concepção

agostiniana: 1) a necessidade da graça, seja no estado de decadência (DS 377-378), seja

no estado de natureza íntegra (DS 389), seja para reparar o livre arbítrio (DS 383), para

transformar o homem (DS 385), para conferir a justiça cristã (DS 391). A graça é vista

como necessária em todo o processo preparatório (DS 376-378), em particular para a

vontade de salvar-se (DS 374), pela oração que impetra a salvação (DS 373), para o

initium fidei e o pius credulitatis affectus (DS 375). A necessidade da graça é também

afirmada em vista da perseverança: para pensar e agir retamente (DS 379), para

perseverar (DS 380), para manter a promessa do bem (DS 381), para cada obra boa (DS

390). O concílio afirma a vontade salvífica universal e nega a predestinação ao mal (DS

397).

A partir do séc. V, o agostinismo foi se implantando na consciência eclesial

ocidental, seja um agostinismo moderado, seja um agostinismo predestinacionista,

como é o caso de Isidoro de Sevilha: “a predestinação é dupla, ou seja, dos eleitos ao

Reino e dos réprobos à morte. Ambas têm por juízo divino, que faz tender os eleitos

sempre para as coisas espirituais, enquanto abandona os réprobos, permitindo que se

deleitem sempre nas coisas ínfimas e exteriores”. Não se afirma ainda a predestinação à

danação, mas a perspectiva já é a de uma predestinação vista como juízo divino

simétrico com relação à humanidade decaída.

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Dois séculos depois, no período carolíngio, explode uma controvérsia sobre a

predestinação, que contrapõe Godescalco a Rabano Mauro e Hincmar de Reims.

Godescalco, monge vacante, em 829 pensa poder extrair a afirmação da dupla

predestinação de Agostinho: “penso e reconheço diante de Deus e de seus santos que a

predestinação é dupla: para os eleitos, à paz, para os réprobos, à morte, pois Deus,

imutável antes da criação do mundo, predestinou imutavelmente à vida eterna todos os

eleitos por meio da graça gratuita e, sem exceção, todos os réprobos que no dia do

juízo serão condenados por suas ações, o mesmo Deus imutável os predestinou com

justo juízo imutavelmente a uma morte eterna”. Esta formulação rígida da predestinação

foi condenada por Rabano e Hincmar no concílio de Quiercy em 853 (DS 621-624),

que, em 4 cânones afirma a vontade salvífica universal e exclui a predestinação à

danação. Essa condenação de Godescalco não acabou com a controvérsia, o que levou o

imperador Lotário a convocar o concílio de Valence, em 855, que confirmou a fórmula

de Isidoro de Sevilha da dupla predestinação, sem os exageros de Godescalco.

2. A predestinação nos debates teológicos posteriores

A leitura que fizemos mostra que o intento de assegurar a gratuidade e a eficácia

da predestinação pôs em questão sua universalidade. As duas primeiras características

levantaram a questão: a predestinação comporta que todos efetivamente se salvem? A

resposta positiva a esta questão parece ir contra certas afirmações das Escrituras que

afirmam a possibilidade da perdição. A teologia medieval e a moderna farão do tema da

predestinação o lugar de grandes debates e conflitos entre posições teológicas díspares.

2.1. A reflexão sobre a predestinação na teologia medieval

A teologia da Idade Média será levada, por um lado, a pensar a doutrina da

predestinação a partir de uma antropologia das faculdades, que vê no intelecto ou na

vontade divina o motivo formal da predestinação e, por outro, no que diz respeito ao

alcance da salvação sobrenatural, ela a entenderá à luz da relação entre meio e fim. Com

tais pressupostos ela articula o decreto divino com a ordem do devir histórico-salvífico.

Pedro Lombardo foi o primeiro a fornecer o material para esse tipo de reflexão.

Ele define a predestinação como “praedestinatio Dei propriae est praescientia et

praeparatio beneficiorum Dei”. Não existe ainda nele uma distinção analítica entre

vontade e intelecto divino. A predestinação é um ato do intelecto prático, na linha da

tradição agostiniana. Ela designa “em Deus o ato do intelecto sucessivo à pré-ciência e à

eleição, que busca e estabelece os meios da graça adequados ao fim prefixado na

escolha”.

Esta compreensão da predestinação como ato do intelecto prático determina a

reflexão seguinte. As diferenças introduzidas dependem da diversidade da antropologia

das faculdades. Assim, em Alexandre de Hales, a predestinação ainda pertence ao saber

prático, ligado ao querer e causa do agir divino, mas, enquanto em Pedro Lombardo ela

é o ato da disposição divina, no qual saber e vontade coincidem, em Alexandre tal saber

prático entra no jogo da liberdade humana, de modo que se distingue da vontade divina,

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antecedente ao saber do uso que o homem fará da graça, e vontade sucessiva a tal saber.

Inicia-se assim a distinção analítica dos momentos do decreto divino e de seu

desdobrar-se histórico, onde a graça como saber prático de Deus entra na dialética com

a liberdade, distinguindo entre eleição à graça presente e a predestinação, que parece

indicar o processo que conduz à glória. A predestinação se torna praeordinatio gloriae.

São dados os termos da reflexão da grande escolástica de Alberto, Tomás e Boaventura.

Inicia-se a atitude analítica da antropologia das faculdades no interior da compreensão

do saber prático: vontade, saber e potência intervêm segundo sua especificidade.

Para Alberto Magno, a predestinação diz respeito ao agir de Deus em vista da

salvação humana, em coerência com o propósito salvífico divino. Para Tomás, a

predestinação é o conjunto da intenção salvífica para com alguém, o que supõe a

presciência que este será salvo e a preparação à graça (histórica). Introduz-se a

prioridade do fim e a predestinação é um ato do intelecto divino, que indica à vontade

seu fim. Na Suma, Tomás põe o tema da predestinação no âmbito da providência divina,

como algo que diz respeito ao plano do intelecto divino, que prescreve o ordenamento

ao fim. A predestinação se torna um projeto de ordenamento da criatura ao fim

sobrenatural. Ficam então intrinsecamente conexos: ordenamento ao fim, intenção

divina e atualização histórica.

É a linha franciscana que acentua a participação do querer no ato da

predestinação, atribuindo à vontade a função principal e abrindo espaço ao Doctor Sutil.

De fato, Duns Escoto coloca a predestinação como ato da vontade. Com ele surge a

ruptura da unidade do saber prático, porque a predestinação é vista como um ato da pura

vontade divina. Muda a estrutura finalística da vontade divina, porque enquanto em

Tomás o projeto de ordenamento ao fim da glória constitui uma unidade originária, com

os meios dispostos da graça, em Escoto se alenta a ligação dos meios ao fim. Abre-se o

caminho ao nominalismo, que registrará posturas diferentes no interior da acentuação da

predestinação como ato da vontade divina.

Ockham parece contestar o modo escotista de entender o ato da vontade divina.

O fim querido por Deus na predestinação o é somente em conseqüência dos meios da

graça justificante que dispõe à glória. Em Ockham pré-ciência, eleição e predestinação

se identificam com a essência mesma de Deus, enquanto ele põe diferença só entre

efeitos criaturais. Sua posição o leva captar a vontade divina como absolutamente

arbitrária, o que dá início ao voluntarismo no decreto divino da predestinação. A esta

postura reage Biel, que conjuga a predestinação com a doutrina da justificação, e critica

a separação entre mérito e disposição à predestinação eterna. Sem esse fundo otimista

não se pode entender Lutero, que reage contra Biel, nem Calvino, que pensa a

predestinação no jogo entre a soberana glória de Deus e a responsabilidade humana.

2.2. As leituras modernas da doutrina da predestinação

A doutrina da predestinação estará presente tanto em debates teológicos

importantes da época moderna, tanto na teologia protestante, com a leitura calvinista,

quanto na católica, sobretudo nas controvérsias De auxiliis e jansenista.

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a. Elementos constitutivos da predestinação em Calvino

Calvino desenvolve, nos cap. XXI-XXIV da Instituição da religião cristã, sua

concepção da predestinação. Sua primeira constatação é a da variedade de situações na

proclamação e na recepção da mensagem do Evangelho: ele não é pregado igualmente a

todos e onde é pregado não é acolhido igualmente por todos. Segundo o reformador,

nesta diversidade aparece um segredo admirável do julgamento de Deus, pois sem

dúvidas ela não o agrada. É preciso afirmar a predestinação, diz ele, pois “esta doutrina

não só é útil, mas doce e saborosa pelos frutos que produz”. Calvino diz isso porque a

doutrina da predestinação põe em evidência o sola gratia de Lutero: “nunca seremos

claramente persuadidos, como é necessário, que a fonte de nossa salvação é a

misericórdia gratuita de Deus, enquanto sua eleição eterna não nos seja clara, porque ela

nos esclarece pela comparação da graça de Deus”. A utilidade desta doutrina é que ela

glorifica a Deus e nos chama à humildade, nos lembrando que não podemos nada por

nossas obras. Não se pode querer penetrar no segredo de Deus, como o fazem os

curiosos, mas tampouco se deve ficar inquieto em dizer as coisas. Segundo Calvino:

“chamamos predestinação o conselho eterno de Deus, pelo qual ele determinou o que

queria fazer de cada ser humano, pois ele não cria os homens e mulheres em condição

parecida, mas ordena uns à vida eterna e outros à danação eterna. Segundo o fim para o

qual foi criado o ser humano, dizemos que ele é predestinado à morte ou à vida”.

Calvino distingue três formas de predestinação ou de eleição inscritas na

perspectiva da história da salvação: 1) a eleição do povo de Israel no seio das nações; 2)

a eleição de alguns e o repúdio de outros no seio deste mesmo povo; 3) a eleição e a

reprovação de pessoas particulares, inscritas na nova aliança e que por isso ultrapassam

as formas precedentes em clareza e certeza. Esta eleição é fundada em sua misericórdia,

que não olha nenhuma dignidade humana, enquanto a reprovação dos outros se deve ao

justo e equitável julgamento de Deus, levando em consideração o pecado dos homens.

Com essa base, Calvino passa, nos capítulos seguintes de sua obra a desenvolver

os argumentos bíblicos da predestinação, rejeitando as objeções contra a mesma e

formulando suas implicações teológicas. Ele reforça a dualidade fundamental da eleição

e da reprovação, da salvação de uns e da perdição de outros. Segundo o reformador, esta

dualidade não contradiz a vocação universal. A proclamação do Evangelho a todos é

colocada sob o signo de diferenças extremas do ponto de vista do que ocorre com os

destinatários. Para uns, ela se torna vocação eficaz, confirmando e certificando a eleição

dada gratuitamente por Deus. Esta confirmação dá aos eleitos a força e a coragem da

perseverança. Nos outros, a proclamação obscurece, endurece e cega, afastando de

Deus. Assim, os que estavam destinados à salvação são graciosamente salvos, e os

réprobos atraem a justa perdição. Não sabemos, porém, quem pertence ou não ao

número dos predestinados. Por isso, devemos desejar a salvação de todos, agindo para

com todos de forma a corrigir seus eventuais erros, para que não pereçam.

O corolário antropológico da predestinação é a contestação de toda contribuição

do ser humano à sua salvação. Isso põe o problema da liberdade, tratada por Lutero na

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obra Do servo arbítrio (1525), em resposta à obra De libero arbítrio, de Erasmo, onde o

filósofo humanista defendia uma harmoniosa cooperação entre a graça divina e o livre

arbítrio humano. Os reformadores excluíam esta posição, que leva o ser humano a crer

ter adquirido a salvação por suas próprias forças, meios e obras. Para Lutero, a vontade

humana se escravizou a si mesma e não pode fazer nada do que quer e deixar de fazer o

que não quer. A libertação só pode vir do exterior, pela irrupção da graça divina.

Questões levantadas pela reflexão de Calvino e que permanecem abertas:

1. Eternidade e temporalidade: a predestinação é um decreto eterno, fixado de

antemão, que faz com que os seres humanos sejam criados segundo seu destino ulterior.

Este aspecto eterno, que transpõe a questão para fora do tempo concreto da relação entre

Deus e os homens, tende a transformar a predestinação num determinismo. O problema

do pecado só intervém a título secundário na questão da salvação e da perdição. Daí a

interrogação se a predestinação pode ter um estatuto supra-lapsário (decidida antes do

pecado), ou se ela deve ser de estatuto infra-lapsário (depois do pecado);

2. A dupla predestinação: na formulação de Calvino se prepara o que será

chamado de dupla predestinação: eleição de uns por misericórdia e reprovação de outros

por justiça. A pergunta que surge, porém, é: por que Deus escolhe uns e reprova outros?

3. Como entender esse Deus da dupla predestinação? Que concepção essa

imagem veicula dele? Podem-se unir a misericórdia e a justiça num mesmo Deus?

b) Outras leituras da doutrina da predestinação entre os reformadores

No final do séc. XVI ocorreu no seio do protestantismo a contestação arminiana

à concepção calvinista da predestinação. Arminius, 1560-1609, não aceita a tese da

dupla predestinação e opõe a ela a universalidade da proclamação. O movimento

desencadeado por ele foi condenado, tendo-se optado por uma solução infra-lapsária da

doutrina da predestinação. A oposição continuou na Escola de Saumur (séc. XVII), que

propõe a posição média de uma universalidade virtual da graça, que não exclui a eleição

particular para a realização concreta da salvação.

No período iluminista essa discussão continuou sem, no entanto, se renovar em

profundidade. No séc. XIX, com Schleiermacher, haverá uma mudança substancial.

Segundo ele, os seres humanos entram na comunhão do reino de Deus e da redenção de

maneira desigual. Esta desigualdade é, porém, provisória. É impensável pensar que a

humanidade seja definitivamente cindida em duas partes. É a eleição da comunidade

que reunirá progressivamente toda a humanidade.

c. Interpretações da doutrina da predestinação na teologia católica moderna

No seio da teologia católica, a doutrina da predestinação chega ao início da

modernidade marcada pela tradição agostiniano-tomista. No séc. XVI, a escola

molinista (jesuítica) introduz uma alternativa a esta tradição, suscitando a controvérsia

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De auxiliis, que opôs jesuítas e dominicanos. No século posterior, os jansenistas serão

os protagonistas da controvérsia, opondo-se também ao molinismo da teologia jesuíta.

- Controvérsia De auxiliis

A perspectiva agostiniano-tomista, definida como predestinação ante praevista

merita, parte da consideração histórico-salvífica da humanidade sob o signo do pecado

(massa perditionis). Afirma que Deus – in acto primo – quer a salvação de todos com

vontade antecedente e incondicionada, mediante a graça suficiente (nesse sentido,

exclui, como Calvino, a reprovação positiva ante praevista merita). Sucessivamente,

partindo da consideração da humanidade pecadora – in acto secundo – Deus escolhe

alguns para a salvação sobrenatural, manifestando com eles sua misericórdia, enquanto

aos não escolhidos, manifesta sua justiça (reprobatio negativa), a qual se tornará

reprovação positiva só post praevista demerita. O critério da escolha não é indicado,

mas pertence à vontade santa e adorável de Deus, diante da qual o homem deve inclinar-

se com temor e buscar compreender nos sinais da própria vida (pessoal e social). A

execução deste plano leva Deus a dar aos eleitos a graça necessária à salvação, enquanto

aos outros não se diz que lhes será negada a graça. O prêmio e o castigo decorrem da

correspondência dos eleitos e da rejeição dos réprobos, prevista na disposição divina.

A intenção positiva da solução agostiniano-tomista é a de afirmar a absoluta

transcendência e prioridade da escolha divina, a qual precede toda consideração do

homem e de seu comportamento. Nesse sentido, favorece uma postura teocêntrica,

religiosa, de total entrega aos decretos divinos. O limite desta postura é o fato de se

passar sem uma reflexão aprofundada do ato primeiro ao segundo, ou seja, a vontade

divina, de universal torna-se particular por nenhuma outra razão que o querer de Deus.

A liberdade é guiada de modo infalível, o que mostra uma visão instrumental da mesma.

A solução molinista define a predestinação como post praevista merita,

divergindo da precedente num ponto fundamental. É uma solução que nasce com o

intento de se apreciar melhor a resposta humana. Para a escola jesuíta, o elemento

decisivo á a previsão dos méritos. A solução parece surgir de modo linear: parte de

Deus que quer a salvação de todos com vontade antecedente e incondicional. Deus

decide dar a todos sem distinção a graça necessária para a participação na vida divina.

Depende da vontade humana corresponder a Deus. Se a resposta é positiva, se atualiza a

salvação sobrenatural, se é negativa, o pecador é levado à perdição. Para responder à

crítica agostiniana, que diz que esta posição leva a perder a gratuidade da predestinação,

os molinistas afirmam que Deus, mediante a ciência média, prevê infalivelmente

(futurível) a correspondência dos que se salvam e a não correspondência dos que não se

salvam. É baseado nesta previsão da correspondência dos que se salvam que ele decide

dar-lhes a graça eficaz da salvação, e aos que não se salvam ele decide não dar-lhes tal

graça.

O intento positivo desta solução, que queria remediar a insuficiência da posição

agostiniano-tomista, valorizando melhor a contribuição da liberdade humana, em

realidade compromete, no plano teológico, a gratuidade da predestinação (Deus escolhe

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em base a méritos previstos) e no plano filosófico, nega o primado do agir divino (Deus

deve prever os méritos para decidir-se).

Na base das duas posições há um defeito comum. Indagando sobre o mistério da

vontade divina, se acaba por imaginá-la segundo uma abordagem que parte de uma

diversa antropologia das faculdades (conhecimento e vontade) que é projetada em Deus.

Para os molinistas, Deus primeiro conhece os méritos, e depois predestina (sua vontade

seria dependente de seu conhecimento). Para os agostiniano-tomistas, Deus primeiro

predestina e depois conhece os méritos (seu conhecimento depende de sua vontade). O

defeito comum está em considerar vontade e conhecimento como sucessivos, pondo o

problema da prioridade ou no conhecimento ou na vontade de Deus. Este

antropomorfismo, que provém da antropologia subjacente às duas orientações, mostra a

insuficiência de ambas e justifica a interminável controvérsia De auxiliis.

- O desdobramento da controvérsia De auxiliis

A controvérsia (1582-1607) iniciou-se com o debate sobre a liberdade de Cristo,

ocorrido em Valladolid em 1582. Esse debate revelou uma diversa concepção da

liberdade, elaborada em contraposição à compreensão protestante e já sensível à visão

moderna, onde a liberdade é o poder de determinação do sujeito, liberdade de escolha.

Os tomistas de Salamanca reagiram contra esta nova visão, fazendo valer a posição

agostiniano-tomista, segundo a qual o homem é determinado pela graça. O momento

crucial surge, porém, com a publicação do livro de Luis de Molina, que contém os

principais fundamentos de sua posição: a afirmação da liberdade humana; o concurso

simultâneo da vontade divina e da liberdade humana; a teoria da ciência média. A ele se

contrapôs Domingo Bañez, op, que sustentava a idéia dos decretos predeterminantes.

A doutrina de Molina foi acolhida por Lessio e pelos jesuítas holandeses que se

empenhavam no combate ao calvinismo nos Países Baixos. A Lessio se contrapôs a

faculdade de Lovaina, de tendência agostiniana, que o censurou em 1587. Belarmino e

Suárez tampouco aceitam a postura de Lessio. O recurso dos bispos ao Papa fará com

que este, após longos anos de controvérsia, imponha silêncio aos contendores.

A controvérsia propriamente dita começou em 1597, com a Congregationes de

auxiliis, convocada por Clemente VIII, e teve os seguintes momentos: 11 sessões do 2

de janeiro ao 3 de março de 1598, numa comissão de 8 consultores, sem jesuítas e

dominicanos, concluiu com a condenação do livro de Molina e a censura de 89 de suas

proposições. O Papa pediu que a questão fosse reexaminada. Isso se fez com o aumento

da comissão. Esta confirmou a decisão precedente. Molina apresentou sua defesa ao

Papa, e este fez confrontarem-se jesuítas e dominicanos de fevereiro de 1599 a maio de

maio de 1600. A discussão não chegou a uma solução de consenso. O Papa pediu de

novo o juízo da comissão, que reduziu para 42 e depois para 20 as proposições

condenadas. As proposições foram discutidas em separado por jesuítas e dominicanos e

depois em debate público em 37 sessões de janeiro a julho de 1601. As proposições

foram censuradas. O Papa hesitou, porém, em condenar Molina, renova a comissão e

continua o debate. De março de 1602 a janeiro de 1605, são feitas 68 sessões. Com a

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morte do Papa, em 1605, seu sucessor, Paulo V, continua com mais 9 sessões entre

setembro de 1605 e fevereiro de 1606. Ainda há hesitações. Em 1607 o Papa manda

todos para casa e proíbe a ambas as partes de se censurarem reciprocamente. Em 1613 o

Geral dos jesuítas, Cláudio Aquaviva, põe termo à dissensão proibindo os jesuítas de

defenderem a posição de Lessio. Esta posição tornou-se, porém, a opinião prevalecente

entre os jesuítas, e em meados do séc. XVII, sua doutrina oficial.

- O predestinacionismo jansenista

A controvérsia jansenista teve como ponto de partida a obra Augustinus, de

Cornelius Jansenius (1585-1638), professor de Bíblia em Lovaina e Bispo de Ypres.

Nesta obra ele propõe uma síntese da doutrina agostiniana sobre a salvação e a graça,

visando à doutrina molinista ensinada pelos jesuítas, depois que o Papa havia proibido a

discussão da mesma. A obra de Jansenius foi censurada em 1642-43. A repercussão da

censura chegou à França através de um amigo de Jansenius, Jean de Vergier de

Hauranne, o Abade de Saint-Cyran (1581-1643), que tinha feito do mosteiro de Port

Royal um foco de irradiação de suas idéias. Um de seus discípulos, Antoine Arnauld

(1612-1694), tomou a defesa do Augustinus. As teses jansenistas foram defendidas na

Faculdade de Paris, provocando muitas reações, o que levou a Santa Sé a condená-las

como heréticas (1653). As teses condenadas foram: a) o homem não pode opor-se à

graça, pois ela é irresistível; 2) é impossível observar os mandamentos de Deus sem a

ajuda da graça; 3) Cristo não morreu por todos. Arnauld continuou discutindo as

questões levantadas, o que fez com que fosse proibido de ensinar na Faculdade de Paris

junto com outros teólogos (1565). Esta decisão provocou a contra-ofensiva de Pascal,

que deslocou, com as Cartas Provinciais, o debate para o plano moral. Condenações

mútuas entre port-royalistas e jesuítas continuaram no decorrer do séc. XVII,

provocando novas condenações no início do séc. XVIII (1713): 101 proposições da

Constituição Unigenitus, contra as reflexões morais de Pasquier Quesnel; 1717:

Pastoralis officii, junto com a intervenção do poder político.

- A Doutrina de Jansênius sobre a graça-predestinação

Jansenius entende a graça de Cristo (auxilium quo) como graça eficaz, à qual a

vontade humana não pode resistir. Essa graça é infalível e necessitante. Ela domina o

livre arbítrio, que só permanece como tal porque não está submisso a nenhuma coação.

A graça concedida a Adão inocente (auxilium sine quo non) estava submetida à decisão

de sua liberdade. Jansenius a chamou de graça suficiente. Esta graça não se torna mais

efetiva depois do pecado de Adão e é inútil, pois a vontade perdeu sua liberdade e faz

necessariamente o que é mau. Deus predestina por isso somente alguns homens e

mulheres. A predestinação à glória tem como contrapartida a predestinação à danação.

2.3. Releituras contemporâneas da doutrina da predestinação

Na raiz do falso dilema entre ante e post praevista merita está um defeito ainda

mais radical. A predestinação é definida pondo objetivamente uma alternativa entre

Deus, que salva, e os homens, que efetivamente se salvam. Este dilema é insolúvel

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porque a resposta só pode oscilar entre Deus, que decide o critério da discriminação, e o

homem, cuja resposta decide de sua salvação. Na mesma contraposição aparece a

alternativa tipicamente moderna entre Deus e homem, razão e fé, e se antecipa uma

visão extrinsecista entre graça e liberdade. Para sair desta oposição é preciso voltar ao

sentido da revelação, que apresenta a predestinação como referida a Jesus Cristo. A

predestinação é de fato a predestinação de Jesus Cristo e, consequentemente, dos seres

humanos nele. O que Deus planeja e de fato decide, o desígnio de sua vontade, é o

mistério de Jesus Cristo e dos seres humanos em Jesus Cristo. Duas tentativas surgiram

nessa direção, uma oriunda da teologia católica e outra da teologia protestante.

a. Leitura católica

Na teologia católica, depois de Scheeben, deve assinalar-se L. Billot (1846-

1931). Este teólogo jesuíta explicou a predestinação e suas características referindo-se a

um fim que transcende a ordem dos salvos, que ele indicava como fim misterioso,

livremente querido por Deus, no qual aparece a escolha de Deus e as diversas ordens de

salvação possíveis. A tentativa de Billot busca, por um lado, manter em tensão a

prioridade e independência absoluta de Deus no conhecer e no querer e, por outro, a

liberdade dos futuros predestinados, exatamente as duas instâncias que intervieram na

controvérsia De auxiliis. Billot intui, porém, que a vontade de predestinação é a de uma

ordem na qual Deus escolhe o fim e os meios que conduzem infalivelmente à salvação,

predispondo as condições pelas quais alguns se salvam e outros não. A gratuidade da

ordem salvífica e a prioridade da predestinação divina são garantidas simultaneamente

com o espaço para a liberdade contingente.

Billot elabora num esquema ontológico a idéia da ordem salvífica centrada na

predestinação de Cristo e dos homens nele, sem o enriquecimento da renovação bíblica.

Não consegue por isso indicar a concreta efetivação do evento pascal. A teologia

católica posterior recupera o cristocentrismo da revelação e da ordem da salvação,

vendo a especulação de Billot muito distante da concretude da história salutis. Henri

Bouillard e Urs von Balthasar vão se confrontar com a perspectiva barthiana, que pensa

a doutrina da eleição a partir do nome de Jesus Cristo, renovando profundamente a

compreensão católica. Isso será retomado na manual Mysterium Salutis, por M. Lohrer.

b. Leitura protestante

Na vertente protestante, Karl Barth é de particular importância para a releitura da

doutrina da predestinação. Ele faz uma crítica à tradição reformada, sobretudo à teologia

calvinista da predestinação, concentrando-se na predestinação que é Jesus Cristo. À

tradição Barth critica o caráter abstrato e simétrico da predestinação e sua perspectiva

individualista, centrada na relação entre o Deus que escolhe e o singular que é

escolhido. A primeira crítica contesta o caráter sistemático da doutrina, enquanto

configura um paralelismo entre eleição e reprovação, como duas espécies de um

conceito geral de predestinação. A predestinação aparece como um sistema simétrico,

neutro, que busca estabelecer um impossível equilíbrio entre justiça e misericórdia em

Deus. A segunda crítica mostra a perspectiva individualista da eleição, onde a escolha

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divina é pensada como um decreto divino absoluto em ordem à salvação ou à

reprovação do singular, que prescinde do lugar efetivo da escolha divina revelado no

evento Jesus Cristo.

Essas críticas levarão Barth a pôr no início e no centro da dogmática a doutrina

da predestinação em Jesus Cristo: “a doutrina da eleição contém e exprime a suma do

Evangelho, que de fato é bom anúncio, notícia maravilhosa e plenamente salutar: desde

toda a eternidade, Deus decidiu ser Deus como vimos e de nenhum outro modo. Ele se

voltou para o homem e esta e sua maneira de ser Deus”. “Jesus Cristo é aquele que

elege e o homem eleito”, ou seja, “ele é ao mesmo tempo sujeito e objeto da eleição na

unidade de sua pessoa”. “É o nome de Jesus Cristo que deve ser o centro no qual

convergem as duas linhas da verdade que deve ser reconhecida: o Deus que elege e o

homem eleito”. “Deus, como sujeito da eleição, se determina em Jesus e o faz

determinando-se, seja como o Deus que elege, seja como o homem eleito. Cristo é

sujeito da eleição mediante um ato de perfeita obediência do Filho, que se torna por sua

vez eleição dos homens nele”. Para Barth, portanto, a predestinação é Jesus Cristo. Na

predestinação, que é Cristo, Deus se apropria mesmo da rejeição do ser humano com

todas as consequências. Em Jesus, eleição e reprovação não estão no mesmo plano,

porque o rosto de Deus é para o homem univocamente beatificante e vivificante em

Jesus Cristo, enquanto reserva a si a rejeição, a morte e a danação.

Barth assume uma teologia da representação que tem no evento da cruz a

dissolução da dialética entre eleição e reprovação. Jesus se torna o reprovado, porque

em Cristo se concede graciosamente ao homem só eleição de graça. Daí derivam as

duas linhas de desenvolvimento de sua doutrina: a da eleição e rejeição da comunidade

e a da eleição-reprovação do singular. A comunidade eleita não é outra que o

testemunho da eleição de graça em Jesus Cristo, na dialética entre eleição e rejeição que

conota a relação Israel-Igreja. A eleição do singular é a conditio sine qua non, mas não a

ratio praedestinationis: o homem predestinado é aquele que recebe graça e perdão. O

homem recebe de Deus a graça sem ou contra seu mérito, enquanto Cristo assume a

humanidade negativa do homem e se torna o réprobo no nosso lugar.

Brunner acusou a doutrina da predestinação de Barth de uma inclinação

apocatástica. Segundo ele, a ênfase cristológica leva a uma sistematicidade tão forte que

torna o Cristo o sujeito da eleição e não consegue articular corretamente sua relação

com o Pai e conosco no evento do Espírito. Sua doutrina o leva também a absorver

dialeticamente o evento do pecado, gerando a impressão de que a rejeição e a

infidelidade são suprimidas em Cristo, pois o que é objeto de rejeição é o pecado e não

o pecador.

3. Para se pensar teologicamente a doutrina da predestinação

O texto de Ef 1,3-6; 3,9-10 mostra-nos o ponto focal para a verdade da altíssima

vocação à qual é chamado o ser humano e o mundo: “Porque Deus fez conhecer o

mistério de sua vontade, segundo a qual em sua benevolência tinha pré-estabelecido

para realizá-lo na plenitude do tempo: o desígnio de recapitular em Cristo todas as

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coisas, as do céu e as da terra” (Ef 1,9-10; Cl 1,15. 17-18). Por isso, podemos formular a

tese: o critério e a forma que institui a predestinação é Jesus Cristo e não pode ser outro

a não ser ele. O critério não indica uma decisão eterna de Deus, que encontraria em

Cristo uma mecânica de concretização. A perspectiva da singularidade absoluta de Jesus

Cristo ajuda a entender o critério da divina decisão, na qual o ser humano é pensado e

querido na vida da liberdade de Jesus de Nazaré. Este critério absoluto se mostra na

forma histórica, com a qual a liberdade filial de Jesus se atualizou na plenitude da

dedicação-obediência ao Pai, mas tal história institui a forma veritativa do critério.

Este é o sentido da predestinação: podermos dizer que ela é a predestinação de

Jesus Cristo e que ela é Jesus Cristo. A partir daí temos que retomar o que a tradição foi

explicitando: 1) a predestinação é gratuita porque é dom de Jesus Cristo e que é Jesus

Cristo enquanto tal a realização de nossa liberdade. É gratuita (sobrenatural) porque

supera de direito toda exigência da parte humana; 2) a predestinação é infalivelmente

eficaz enquanto se atualiza em Cristo, e em Cristo não pode vir menos. O sentido do

“não pode” não indica uma necessidade extrínseca à vida de Jesus, mas a verdade da

história de Jesus, como vida filial plenamente correspondente ao Pai; 3) a predestinação

é universal porque não existe nenhuma outra ordem a não ser a que foi instituída em

Cristo. A universalidade da predestinação não é universal só sob um perfil de oferta a

todos os seres humanos, mas enquanto em Cristo encontra sua forma veritativa. Por

isso, a predestinação, em sentido cristológico, não significa que alguém não possa se

perder, no sentido de perder sua destinação. Ela deixa tal possibilidade aberta.

A conclusão à qual chegamos mostra que a predestinação é a ordem histórica

querida por Deus, que se realiza em Cristo. Por isso, a realidade da predestinação em

Cristo não é incompatível com a possibilidade da danação-perdição. A participação dos

homens na predestinação de Cristo e em Cristo se instaura na base da liberdade pessoal

de cada um. Mas não é em base à resposta do homem ou a uma imperscrutável vontade

divina, que é indicado o critério e é realizada a eficácia universal da predestinação: essa

acontece na vida singular de Jesus e no nosso deixar-nos conformar graciosamente a ela.

Isso leva a não apresentar uma concepção determinística da infalível eficácia da vontade

de Deus que salva os predestinados mesmo contra sua vontade. Isso nos distancia

também da leitura pelagiana, que concebe a salvação como recompensa à bondade

moral do homem, porque em cada caso não se realizou ainda a realização sobrenatural

em Cristo.

É necessária uma mediação antropológica da predestinação em Cristo para se

compreender como se realiza a predestinação dos homens em Cristo. Esta requer que se

pense a destinação da humanidade em Cristo. Uma antropologia da destinação pode

constituir o passo antropológico para pensar-se a predestinação dos homens em Cristo.

Seu acento escatológico deve evitar o perigo oposto ao que foi apresentado. À pré-

destinação da vontade divina que precede logicamente e ontologicamente a história da

liberdade seguiria uma destinação da liberdade à verdade escatológica que reside no

futuro. Os passos desse percurso, que é feito a partir da cristologia, podem ser os

seguintes: 1) uma breve fenomenologia das várias figuras do destino, que implica a

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figura transcendente (teologal) da destinação como pré-doação; 2) a predestinação como

chamado dos seres humanos em Cristo, o que significa que o ser humano é um ser de

destinação; 3) se a predestinação é o chamado do ser humano em Cristo, então este pode

e deve reelaborar a figura do destino; 4) se a predestinação é o chamado dos seres

humanos em Cristo, então a liberdade, que é chamada à destinação, pode e deve auto-

determinar-se diante de seu futuro entendido como pré-doação.