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FAJE – FACULDADE JESUÍTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA JOSÉ RAIMUNDO RODRIGUES JESUS, CARNE DE DEUS! ESTUDO TEOLÓGICO-EXEGÉTICO A PARTIR DE Jo 1,14a Dissertação de Mestrado Orientador: Prof. Dr. Johan Konings SJ BELO HORIZONTE 2006

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FAJE – FACULDADE JESUÍTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA

JOSÉ RAIMUNDO RODRIGUES

JESUS, CARNE DE DEUS!

ESTUDO TEOLÓGICO-EXEGÉTICO A PARTIR DE Jo 1,14a

Dissertação de Mestrado

Orientador: Prof. Dr. Johan Konings SJ

BELO HORIZONTE

2006

AGRADECIMENTO

À Congregação do Verbo Divino e à Arquidiocese de Mariana pelo incentivo ao estudo.

Ao Prof. Dr. Johan Konings pelo estímulo ao longo da pesquisa.

Aos amigos pelo apoio, cuidado, humanização que me ofertaram neste tempo.

Aos que professam “Jesus-carne”, acreditam no humano e assumem a história como momento

único e privilegiado de adesão ao Pai.

2

RESUMO

Esta dissertação tem como objeto de estudo o vocábulo “carne” aplicado à pessoa

de Jesus no Prólogo joanino. Partindo da interpretação dada ao termo por Ireneu de Lião,

Agostinho de Hipona, Tomás de Aquino e Karl Rahner, é formulado o status questionis. As

perspectivas judaica e paulina são analisadas, respectivamente, como pressuposto e elemento

comparativo para uma definição do vocábulo em Jo 1,14a. Ao afirmar “a Palavra se fez

carne” (Jo 1,14a) João propõe que a existência mortal de Jesus é elemento essencial para a

manifestação da glória/amor do Pai (cristologia do envio). O estudo de outras ocorrências de

“carne” na obra de João (Evangelho e Cartas) ressalta o valor dado à humanidade de Jesus.

Por fim, são apresentadas algumas incidências de “Jesus-carne” na eclesiologia, nos diálogos

ecumênico e inter-religioso, na relação com o mundo moderno. O presente estudo teológico-

exegético visa, portanto, elucidar um dos aspectos, “carne”, da profissão de fé da encarnação.

Palavras-chaves

Carne, Evangelho segundo João, humano, encarnação, cristologia (do envio).

RÉSUMÉ  

Cette dissertation a pour objet l’étude du vocable “chair” appliqué à la personne

de Jésus dans le Prologue johannique. C’est à partir de l’interprétation donnée à ce terme par

Irénée de Lyon, Augustin d’Hippone, Thomas d’Aquin et Karl Rahner qu’est formulé le

status questionis. Les perspectives judaïque et paulinienne sont respectivement analysées

3

comme présupposés et éléments de comparaison pour la définition de ce vocable dans Jean

1,14a. En affirmant que “le Verbe s’est fait chair” (Jn 1,14a), Jean propose que l’existence

mortelle de Jésus est un élément essentiel pour la manifestation de la gloire/amour du Père

(christologie de l’envoi). L’étude d’autres occurrences de “chair” dans l’oeuvre de Jean

(Évangile et lettres) fait ressortir la valeur donnée à l’humanité de Jésus. Finalement sont

présentées quelques incidences de « Jésus-chair » dans l’ecclésiologie, dans les dialogues

oecuméniques et inter-religieux , dans la relation avec le monde moderne. Cette étude

théologique et exégétique vise donc à élucider un des aspects « chair » de la profession de foi

de l’incarnation.

 

Mots-clés

Chair, Évangile selon St Jean, humain, incarnation, christologie (de l’envoi).

4

SUMÁRIO

AGRADECIMENTO................................................................................................................2

RÉSUMÉ...................................................................................................................................3

LISTA DE ABREVIATURAS.................................................................................................8

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................10

CAPÍTULO I: STATUS QUAESTIONIS..............................................................................14

1 – O conceito de “carne” em Ireneu de Lião...................................................................15

1.1 – Ireneu e a Gnose.......................................................................................................15

1.2 – Ireneu e a salvação na “carne”: encarnação para a comunhão com Deus...............16

Cur Deus homo?...........................................................................................................17

1.3 – A leitura de Jo 1,14a por Ireneu...............................................................................19

2 – Agostinho de Hipona e o desafio da “carne” aplicado ao Verbo..............................23

2.1 – O mistério da encarnação na leitura agostiniana do Evangelho segundo João........24

2.2 – Ser humano: imagem de Deus.................................................................................26

2.3 – O Verbo preexistente...............................................................................................30

2.4 – Jo 1,14a e o conceito de “carne”..............................................................................31

3 – Santo Tomás: “carne e espírito” unidos indissociavelmente....................................32

3.1 – A encarnação e o conceito de “carne” na III Parte da Suma Teológica..................33

3.1.1 – Conveniência e justificativa para Deus vir na “carne”.....................................343.1.2 – O problema da união hipostática.......................................................................373.1.3 – O conceito de pessoa humana e sua incidência na “carne” do Cristo...............383.1.4 – O termo “carne” associado ao v. 14a do Prólogo Joanino................................40

3.2 – A “carne” de Cristo no Comentário sobre o Evangelho de João............................41

5

4 – Karl Rahner e o Portador Absoluto de Salvação vindo na “carne”.........................43

4.1 – O ser humano: um misterioso ouvinte da palavra....................................................44

4.2 – Cristologia existencial e encarnação a partir da leitura de Jo 1,14a........................47

Conclusão.............................................................................................................................53

CAPÍTULO II: “JESUS-CARNE” EM Jo 1,14a.................................................................55

1 – O termo “carne” no Antigo Testamento.....................................................................56

1.1 – rf'B' ........................................................................................................................57

1.1.1 – Sentido genérico de rf'B'..................................................................................571.1.2 – rf'B' – “carne animal” para alimentação.........................................................571.1.3 – rf'B' – “carne” do ser humano..........................................................................581.1.4 – rf'B'-lK' (kol- bāśār) – “toda carne”................................................................601.1.5 – rf'B' – relação de parentesco............................................................................611.1.6 – rf'B' – fragilidade e condição mortal do humano............................................62

1.2 – raev. (sheēr)..........................................................................................................63

1.3 – rf'B' e raev. na interpretação da LXX.................................................................64

1.4 – Conclusões...............................................................................................................67

2 – Carne no Corpus Paulinum.........................................................................................68

2.1 – Sa,rx no sentido neutro ou estrito.........................................................................69

2.2 – Sa,rx como parentesco ou relações de raça/etnia...................................................69

2.3 – Sa,rx como indicativo da totalidade do ser humano, aplicada a Jesus Cristo........70

2.4 – Sa,rx como antagonista de pneu/ma...................................................................72

2.5 – Conclusões...............................................................................................................73

3 – “Carne” no Evangelho segundo João..........................................................................74

3.1 – Um Evangelho para decisão na fé............................................................................74

3.2 – Significado de sa,rx em Jo 1,14a...........................................................................76

3.2.1 – O contexto amplo..............................................................................................763.2.2 – O contexto imediato de sa,rx em Jo 1,14........................................................773.2.3 – Definição de sa,rx...........................................................................................79

3.3 – Sa,rx em outras passagens joaninas.......................................................................82

3.3.1 – “Jesus-carne” para a vida do mundo – Jo 6,51-56............................................823.3.2 – O termo sa,rx não aplicado à pessoa de Jesus.................................................86

3.3.2.1 – Os que não nasceram do desejo da carne – Jo 1,13...................................863.3.2.2 – Nascimento na carne e nascimento no Espírito – Jo 3,6............................873.3.2.3 – A “carne” para nada serve – Jo 6,63..........................................................883.3.2.4 – O julgamento segundo a “carne” – Jo 8,15................................................893.3.2.5 – O poder sobre toda “carne” – Jo 17,2........................................................89

6

3.4 – Uma possível leitura “sarcológica” do Evangelho de João: sa,rx como paradoxo90

3.4.1 – Jesus e a mulher samaritana – Jo 4,1-30...........................................................923.4.2 – Jesus e o debate sobre a filiação de Abraão – Jo 8,39-47.................................933.4.3 – Jesus e a cura do cego de nascença – Jo 9,1-41................................................943.4.4 – Jesus acusado de blasfêmia – Jo 10,22-39........................................................963.4.5 – Jesus, o sinal de Lázaro e a reação do Sinédrio – Jo 11....................................963.4.6 – Jesus diante de Pilatos – Jo 19,1-16..................................................................97

3.5 – A cristologia do envio e o termo sa,rx...................................................................98

3.6 – O Jesus histórico em João......................................................................................101

3.7 – Conclusões acerca do termo sa,rx em João.........................................................103

4 – “Carne” nos outros escritos joaninos........................................................................105

4.1 – Concupiscência da “carne” – 1Jo 2,16...................................................................105

4.2 – Jesus Cristo na “carne” – 1Jo 4,2...........................................................................106

4.3 – Jesus Cristo vindo na “carne” – 2Jo 7....................................................................107

Conclusão...........................................................................................................................108

CAPÍTULO III: INCIDÊNCIAS DA LEITURA DE “JESUS-CARNE” (Jo 1,14a)......112

1 – “Jesus-carne”: verdade cristã e incógnita eclesial...................................................113

1.1 – A redescoberta do “Jesus-carne”...........................................................................114

1.2 – O abismo entre as formulações teológicas e a vida eclesial..................................117

2 – “Jesus-carne”: possibilidade do diálogo ecumênico e inter-religioso?...................120

2.1 – O horizonte do diálogo ecumênico........................................................................120

2.2 – O horizonte do diálogo inter-religioso...................................................................123

3 – “Jesus-carne”: uma referência humana para a modernidade................................127

3.1 – O horizonte da razão e da cultura moderna...........................................................127

3.2 – O princípio da solidariedade..................................................................................131

Conclusão...........................................................................................................................135

CONCLUSÃO.......................................................................................................................138

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................. 142a) Instrumentos................................................................................................................142

b) Básica .........................................................................................................................142

c) Complementar.............................................................................................................146

7

LISTA DE ABREVIATURAS

AH IRENEU DE LIÃO. Contra as heresias. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1995.

AT Antigo Testamento

cap. capítulo

cf. confira

CESJ TOMÁS DE AQUINO. Commentaire sur l’évangile de Saint Jean. Paris : Cerf,

1998.

DCT LACOSTE, Jean-Yves (dir.). Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo: Loyola,

2004.

DGNT RUSCONI, Carlo. Dicionário do Grego do Novo Testamento. São Paulo: Paulus,

2003.

DITAT HARRIS, R. Laird et al. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo

Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998.

DITNT COENEN, Lothar et al. Dicionário Internacional de Teologia do Novo

Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2000. v. I.

DT AUGUSTIN, Saint. De Trinitate: la Trinité. Paris: Desclée de Brouwe, 1955.

v. 1-2.

DV Dei Verbum

DZ Denzinger. El magisterio de la Iglesia: manual de los símbolos, definiciones y

declaraciones de la Iglesia en materia de fe y costumbres. Barcelona: Herder,

1961.

ed. edição

8

et al. et alii

GS Gaudium et Spes

ibid. ibidem

LXX Septuaginta – “Setenta”

NT Novo Testamento

op.cit. opus citatum

p. página

TDNT FRIEDRICH, Gerhard et al. Theological Dictionary of the New Testament.

Michigan: WMB, 1982. v. VII.

TEB Bíblia Tradução Ecumênica. Versão integral.

Trat. AUGUSTÍN, San. Tratados sobre el evangelio de San Juan (1-35). Madrid:

Editorial Católica, 1955.

ST I TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2001. I, v. I (q. 1-43).

ST III TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2002. III, v. VIII

(q. 1-59).

UR Unitatis Redintegratio

v., vv. versículo, versículos

9

INTRODUÇÃO

O cristianismo professa com o Evangelho segundo João que o “o Logos se fez

carne” (Jo 1,14a). A fé em “Jesus-carne”, confessada pela comunidade joanina, é repetida há

séculos, porém nem sempre realmente assimilada pelas comunidades cristãs. Esta dissertação

tem por objeto de pesquisa o vocábulo “carne” na sua aplicação direta à pessoa de Jesus no

Prólogo joanino, procurando contribuir para uma melhor compreensão do seu significado e

ressonância para os cristãos.

O debate acerca da encarnação tem sido questionado nos últimos tempos pela

cultura moderna e pelo diálogo inter-religioso, sendo assim de grande relevância refletir sobre

o “Jesus-carne”. O cristianismo não pode ter uma falsa segurança de ser o detentor universal

da verdade, esperando que suas palavras sejam aceitas em todos os âmbitos. O caminho do

diálogo surge naturalmente como exigência que, se não respondida, descuida daquilo que é o

propósito do Evangelho, ou seja, a comunicação do amor de Deus e do seu desejo salvífico

em relação à humanidade. Portanto, é necessário, hoje, mais que em outras épocas, explicitar

o que os cristãos querem dizer ao afirmar que “o Logos se fez carne”.

Com a finalidade de se aproximar do que tem sido a reflexão em torno do termo

“carne” foram tomadas quatro leituras que formam o status questionis desta dissertação. A

pergunta que se faz diz respeito ao significado que foi dado ao vocábulo, particularmente, mas

também à sua associação com a pessoa do Filho de Deus e as conseqüências daí nascidas para

a compreensão do humano. A leitura de Ireneu traz à tona uma realidade conflitiva que exigia

respostas claras e com fundamentação teológica a fim de sanar as seqüelas que surgiam com

as heresias. Que relevância Ireneu dá ao termo “carne” na sua interpretação de Jo 1,14a?

Parece ser ele um autêntico defensor da realidade humana de Jesus, “carne”, diante das

proposições gnósticas.

10

Dentre as diversas leituras patrísticas, Agostinho foi escolhido como segunda

palavra acerca do “Jesus-carne”. Os Tratados sobre o Evangelho de São João são lidos no

desejo de haurir deles a reflexão agostiniana sobre o “homem-Deus” que veio até à

humanidade para recuperar-lhe a visão. Que concepção do humano subjaz na interpretação

que Agostinho faz do Quarto Evangelho? Em que sentido a leitura do Bispo de Hipona pode

ajudar para a percepção do “Jesus-carne”? Agostinho parece marcado por um pessimismo

diante do humano que é fruto do seu desejo de salvaguardar o mistério da graça salvífica de

Deus. Esse aparente pessimismo, sem dúvida, está refletido no seu modo de falar sobre

“Jesus-carne”.

Uma terceira leitura é feita a partir de Tomás de Aquino. Os dados apresentados

têm a finalidade de trazer à baila a recuperação do humano, embora ainda numa compreensão

bastante teórica e, marcadamente, metafísica. No Doutor Angélico foi buscado o rigor da

afirmação teológica sobre a encarnação e seu posicionamento em relação à vida terrena de

Jesus. Ao afirmar a unidade indissociável da alma ao corpo, estaria Tomás já avançando para

uma otimização do humano?

Para finalizar o primeiro capítulo é apresentado parcialmente o pensamento de

Rahner sobre a encarnação. Não se tem a pretensão de abarcar toda a sua densidade teológica,

mas sim visibilizar o humano Jesus como o revelador do Pai. A antropologia rahneriana,

essencialmente marcada pela graça, é muito próxima do pensamento dos Padres Gregos e

atualiza a valorização da condição humana tal como ela é, apresentando-a como forma

escolhida por Deus para se comunicar com os seus filhos e filhas. Sem dúvida, há grande

semelhança entre o pensamento de Rahner e aquilo que João procurou dizer no v. 14a do seu

Prólogo.

O segundo capítulo é uma reflexão bíblica em torno do vocábulo “carne”. O ponto

de partida é o significado veterotestamentário do termo, pois parece que João é grande

devedor do AT. A concepção judaica dá a impressão de que o humano encontra-se numa

esfera totalmente distinta da divina e tem como característico o fato de ser mortal, terreno.

Para o AT, rf'B' (bāśār) é a afirmação da contingência e finitude humanas. “Carne” seria

ainda a definição do ser humano na sua totalidade de existência terrena. Parecem quase que

evidentes as implicações disso na afirmação de João. Há também no segundo capítulo uma

breve reflexão sobre raev.. (sheēr), outro termo designativo de “carne”, e uma abordagem

das traduções dos dois termos hebraicos pela LXX.

11

A título de comparação, é apresentado o pensamento de Paulo sobre a “carne”. É

comum ao imaginário religioso cristão uma rejeição ao “carnal” supostamente fundamentada

no pensamento paulino. Seria ela possível? É legítima tal atitude? Ao que tudo indica, há no

Apóstolo uma continuidade do pensamento hebraico e o que ele condena não é a “carne” em

si, mas sim a pretensão humana de colocar-se como independente de Deus e, até mesmo,

resistente a Ele. Quando Paulo usa sa,rx (sárx) aplicado a Jesus deseja demonstrar a

totalidade da existência daquele que redime a humanidade.

Após as duas abordagens, judaica e paulina, como traçar o significado de “carne”

em Jo 1,14a? João estaria apenas afirmando o nascimento de Jesus ou estaria indicando algo

mais com esse vocábulo? Como dito, João demonstra total fidelidade ao pensamento hebraico

e se posiciona como um teólogo que afirma a existência terrena de Jesus na sua totalidade, ou

seja, não somente o nascimento, mas todo o seu agir até a morte na cruz. Essa condição

humana, mortal, é para João dado de fé professado comunitariamente e indissociável do Jesus

glorioso. No que concerne ao pensamento joanino, a reflexão aqui apresentada busca somente

elucidar o termo “carne”, não investigando, portanto acerca do “Logos” nem da pré-existência

e glorificação de Jesus.

O Evangelho de João já foi duramente criticado como tradutor de uma cristologia

descendente onde o humano não teria relevância. O estudo ora apresentado propõe que em

João o “Jesus-carne” é evidente a ponto de se tornar dado mais que aceito pela comunidade. A

dificuldade parece estar num outro ponto, a saber, o reconhecer que Deus se revela

plenamente neste humano. Um dado novo aqui sugerido é de que em João, mais que uma

cristologia descendente ou ascendente, há uma cristologia do envio que dá o verdadeiro

significado do “Jesus-carne” para a comunidade cristã. Além das ocorrências de “carne” no

evangelho de João e de seu possível paralelo “humano”, é explicitado também como o termo

é compreendido nas Epístolas joaninas.

Como toda teologia tem por fim servir para o crescimento, amadurecimento e

vivência da fé, o último capítulo tem como preocupação central apresentar algumas

incidências da pesquisa sobre o “Jesus-carne”. A incidência intra-eclesial aponta para a

redescoberta do “Jesus-carne” e o desafio de se transpor para a vivência da fé a formulação e

reflexão teológicas. A segunda incidência está relacionada com a necessidade de um diálogo

mais claro e corajoso com outros cristãos e com as outras religiões. Tais diálogos

encontrariam em “Jesus-carne” alguma contribuição? A última incidência toca na necessidade

de uma aproximação da afirmação cristã acerca da humanidade de Jesus com a cultura e

12

pensamento modernos. “Jesus-carne” poderia ser apresentado como uma referência humana

para a modernidade?

Em síntese, o conteúdo desta dissertação pode ser apresentado em três grandes

questões: a) como alguns teólogos interpretaram o termo “carne” aplicado a Jesus no Prólogo

joanino? b) qual o significado do vocábulo nas Escrituras e, particularmente, em Jo 1,14a?

c) quais as conseqüências da interpretação do “Jesus-carne” para o momento atual?

Por fim, há um desejo de que, ao final da leitura deste texto, a aproximação com o

“Jesus-carne” possibilite um resgate da pessoa humana como condição escolhida por Deus

para a sua melhor e mais autêntica comunicação de amor. O v. 14a do Prólogo desperta para o

mistério já abordado por muitos, mas que sempre será novo e exigirá novas interpretações. No

“Jesus-carne” joanino está presente a surpreendente ação de Deus que coloca no mais alto

lugar aquela condição considerada pela maioria das pessoas como humilhante e negativa.

Enquanto muitos buscam Deus nas alturas, ele busca o humano no terreno de cada dia. Ele

ensina que para alcançar a divindade é preciso assumir a humanidade como dom e busca de

realização à luz de seu Filho. Contra todo cristianismo superficial que rejeita a humanidade de

Jesus ou que a professa apenas formalmente, levanta-se a reflexão sobre o “Jesus-carne”

enquanto afirmação de que só se é cristão à medida que se assume como legítima a sua

condição humana.

13

CAPÍTULO I: STATUS QUAESTIONIS

O presente capítulo almeja oferecer uma posição acerca das interpretações já

dadas ao termo “carne” no v. 14a do Prólogo de João. Sendo tal versículo chave para toda a

reflexão sobre a encarnação, procura-se, então, perceber como as elaborações teológicas

dialogaram com ele e quais as suas conseqüências para a compreensão da pessoa humana e da

cristologia. Dentre as infindáveis possibilidades, optou-se por uma representatividade.

Num primeiro olhar, procura-se determinar como Ireneu de Lião – representante

de uma incipiente teologia sistemática de cunho bíblico, que é caracterizada por um apreço ao

mistagógico – leu o termo “carne” aplicado à pessoa de Jesus. Uma leitura inicial de sua obra

Contra as heresias permitiu entrever seu posicionamento, e procura-se aqui revelar um

aspecto um tanto esquecido da antropologia patrística acerca do Verbo na “carne”.

Na leitura de Agostinho, especificamente seus Tratados sobre o Evangelho de

João, manifesta-se uma definição do humano e da “carne” de Jesus bastante difundida que,

vencendo séculos, tem-se acomodado sub-repticiamente no universo mental cristão ocidental.

Aclara-se em Agostinho um complexo dilema sobre a desvalorização da carne humana.

Após as duas leituras patrísticas, faz-se uma incursão no pensamento de Tomás de

Aquino, procurando, na sua teologia da encarnação, desentranhar sua visão e compreensão da

densidade humana do Verbo de Deus. Duas referências orientaram a pesquisa nesse autor: sua

obra mais sistemática, que é a Suma Teológica, especificamente a Parte III, e seu Comentário

sobre o Evangelho de São João.

Por fim, com o objetivo de aproximação com uma representação da teologia mais

hodierna, coloca-se a reflexão do termo “carne” a partir da teologia transcendental de Karl

Rahner. Talvez, já adiantando uma conclusão final, será esta a mais próxima daquilo que João

procurou afirmar de forma concisa no Prólogo.

14

Acreditamos que, partindo dessas quatro leituras, temos então uma noção do

status quaestionis da leitura/interpretação do termo “carne”, especificamente na sua relação

com a pessoa de Jesus, na menção feita ao mesmo no v. 14a do Prólogo. Outras leituras

poderiam ser apresentadas, mas nessa escolha existem referências bastante significativas no

que diz respeito ao período histórico, à visão de Deus, à forma de elaboração teológica.

Ireneu, Agostinho, Tomás e Rahner, quatro palavras sobre o mesmo mistério que se encerrou

como “carne” humana. No mosaico das compreensões do termo “carne”, há um movimento

crescente que convida o humano a dar-se conta de si e de sua “carne” como mistério querido

por Deus.

1 – O conceito de “carne” em Ireneu de Lião

1.1 – Ireneu e a Gnose

Ireneu (+140-202) destaca-se como um defensor da fé cristã diante do perigo da

“falsa gnose”. A presente reflexão versa sobre a obra Adversus Haereses1, que tem como

subtítulo “denúncia e refutação da falsa gnose”. Os gnósticos propunham um conhecimento

perfeito, alcançável apenas por revelação e privilégio de um grupo de iniciados. A explicação

do mundo dada pela Gnose tinha pretensões de totalidade e baseava-se num princípio dualista,

apresentando uma oposição entre o mundo do bem e o mundo do mal. Para os gnósticos,

nesse contexto mundano era necessário salvar o espírito, pois o que importava era a dimensão

espiritual. Essa compreensão do homem espiritual, por sua vez, repercutia na interpretação da

pessoa, atuação e significado da pessoa de Jesus Cristo:

O ser humano é somente um campo de batalha transcendente entre o bem e o mal, e Cristo um salvador celeste, vindo de repente a este mundo sem se comprometer com ele, e representando essencialmente o papel de revelador da gnose2.

Entre esse posicionamento de base docetista (Cristo: Deus em aparência humana)

e seu extremo oposto, postura adocionista (Jesus: simples homem tomado pelo Verbo eterno),

Ireneu procura oferecer respostas da mais alta qualidade teológica, com o objetivo de

explicitar os erros de seus adversários. As heresias cristológicas exigiam uma reflexão que

1 Cf. FANTINO, Jacques. Ireneu de Lião. In: DCT, p. 918. – Escrito em grego, o texto só subsiste completo numa versão latina do séc. IV. Do texto grego há somente fragmentos, principalmente do livro I. Existem ainda fragmentos em armênio e siríaco, uma tradução armênia dos livros IV e V. 2 LIÉBAERT, J. Os Padres da Igreja (séculos I-IV). São Paulo: Loyola, 2000, p. 61.

15

tocava nos pontos fundamentais de toda a formulação doutrinal cristã. Ireneu não se esquiva

de tal tarefa; antes procura, na fidelidade à Tradição, repassar as verdades cristãs. E o fará a

partir de uma perspectiva inusitada.

Para Ireneu, a questão do conhecimento proposta pela Gnose merece uma

resposta, e esta se encontra na chamada Verdadeira Gnose que é caracterizada pelos seguintes

elementos: o ensinamento dos apóstolos; a Igreja una, apóstólica, católica; a sucessão

ininterrupta dos bispos à frente das diferentes igrejas locais; uma conservação verdadeira das

Escrituras (integral, leitura honesta, explicação correta) e a precedência do ágape sobre todos

os outros dons3.

1.2 – Ireneu e a salvação na “carne”: encarnação para a comunhão com Deus

Em Adversus Haereses fica evidente que, para Ireneu, a salvação foi oferecida já

no ato criador de Deus, que tem em vistas a encarnação do Verbo. Se os gnósticos

prescindiam da “carne”, humanidade de Cristo, será ela, em Ireneu, o conceito-chave de sua

soteriologia que se encontra coerentemente no panorama teológico da unidade entre Deus e a

criação. Segundo Ireneu, salvação vincula-se com criação e, acidentalmente, com pecado.

González Faus argumenta que, para Ireneu, pecado e perdão fazem parte de um

momento posterior que ameaçou manchar a visibilidade da salvação. Essa ação de Deus só

pode dar-se na “carne”, e o mistério da encarnação demonstra o desejo divino de elevar a si

suas criaturas4. Nas palavras do próprio Ireneu: “Glória de Deus é o homem que vive e a vida

do homem consiste na visão de Deus”5.

Em “Jesus-carne” acontece a grande comunicação de Deus. A “carne” não é

apenas um elemento do humano, podendo ser depreciada. Ela é aquilo que realmente

distingue o humano na sua relação com Deus e na sua posição no plano salvífico. A salvação

só se dá na “carne” e não na sua negação.

3 Cf. ROUSSEAU, A. In: IRÉNÉE DE LYON. Contre les hérésies: Livre IV. Paris: Cerf, 1965. p. 273. – Para Rousseau, estes elementos são o arcabouço, a referência de Ireneu para a refutação da falsa gnose. Segundo Rousseau, há uma identificação da verdadeira gnose com a Igreja e a doutrina por ela proposta: “Pode-se dizer que, para Ireneu, três tratados maiores constituem a fisionomia do ‘discípulo espiritual verdadeiro’: fé em Deus todo poderoso Criador de todas as coisas – adesão ao Filho de Deus e ao mistério de sua encarnação redentora – conhecimento do Espírito de Deus na Igreja e no desenvolvimento concreto da vida dela. Tríplice conexão: da criação ao Pai; da redenção ao Filho; da vida eclesial ao Espírito.” 4 Cf. GONZÁLEZ FAUS, J. I. Carne de Dios, significado salvador de la Encarnación em la teologia de San Ireneo. Barcelona: Herder, 1969. p. 26.5 AH, IV 20,7.

16

Cur Deus homo?

Se o pecado não é razão primeira da encarnação, a resposta de Ireneu à questão cur

Deus homo?6 será marcada por uma valorização do ser humano concreto e de seu universo,

bem como por uma valorização do lugar do humano no plano divino e, de modo específico,

do papel da humanidade de Jesus na salvação7.

A diversidade de argumentos usados por Ireneu contra os hereges ganha coesão no

princípio da comunhão da humanidade com Deus. Como visto acima, o ser humano é criado

para Deus e para viver. No livro IV de Adversus Haereses, Ireneu menciona o ato criador de

Deus, que destina o mundo ao gênero humano, e recorda que Deus permanecia desconhecido.

Então, afirma o papel do Verbo encarnado como aquele que conduz ao verdadeiro

conhecimento8.

Há um só Deus que por sua palavra e sabedoria fez e harmonizou todas as coisas. É ele o Criador, é ele que destinou este mundo ao gênero humano. Pela sua grandeza é desconhecido por todos os seres criados por ele; pelo seu amor, contudo, é conhecido, desde sempre, por aquele por quem criou todas as coisas, e este é o seu Verbo, nosso Senhor Jesus Cristo, que nos últimos tempos se fez homem entre os homens, para unir o fim ao princípio, isto é, o homem a Deus9.

Em outra passagem, comentando os versículos 6 e 7 do Salmo 82 (“Eu disse: todos

vós sois deuses e filhos do Altíssimo; mas, como homens morrereis”), afirma Ireneu: “Este é

o motivo pelo qual o Verbo de Deus se fez homem e o Filho de Deus, Filho do homem: para

que o homem, unindo-se ao Verbo de Deus e recebendo assim a adoção, se tornasse filho de

Deus”10. Mais uma vez fica explícita a idéia de comunhão realizada pela mediação do Verbo e

também a referência à imortalidade concedida em Cristo aos que progredirem na fé.

O ser humano é o destinatário do amor/salvação de Deus. Importante notar que,

em Ireneu, a salvação, já dada, não é passivamente recebida pela humanidade. Ao movimento

de descida do Verbo e sua associação à “carne” corresponde um progresso humano que

6 Cf. ORBE, A. Antropología de San Ireneo. Madrid: Editorial Católica, 1969, p. 501-502. – A. ORBE, ao tratar da antropologia de Ireneu, comenta a questão do motivo da encarnação, na sua possível relação com o pecado, da seguinte maneira: “Ocorra ou não a transgressão, a economia de Gn 1,26 anuncia a mesma fundamental história da salvação: igual distância entre o primeiro e o segundo Adão; igual intervalo entre a encarnação do Filho e a consumação final; a mesma relação entre a matéria e o espírito, entre a carne e a visão do Pai, entre o criado e o ingênito. Nada muda no essencial, já que persevera o barro de origem (Gn 2,7) e o paradigma (= imagem e semelhança divinas) a que Deus lhe destina.” [o grifo é do autor]. 7 Cf. LIÉBAERT, op.cit., p. 66.8 – Para Ireneu o tema do conhecimento faz-se extremamente necessário, posto que será a objeção explícita a todo pensamento gnóstico de iniciação e revelação. Em Cristo o conhecimento de Deus é acessível à humanidade e não apenas a alguns humanos espirituais.9 AH, IV 20,4.10AH, III 19,1.

17

culmina com o tornar-se imagem e semelhança de Deus11. “[...] enquanto o Primogênito, isto

é, o Verbo desce na criatura e a assume, por sua vez a criatura se apossa do Verbo e sobe até

Deus, ultrapassando os anjos e tornando-se imagem e semelhança de Deus”12. Como se

percebe, a salvação é uma divinização13 do humano. Segundo Orbe, Ireneu propõe que o

humano será elevado ao pleno conhecimento/participação em Deus:

O homem, que não nasceu filho natural de Deus, como o Verbo, foi destinado à sua filiação adotiva. De Deus é o fazer, e do homem o ser feito. Deixando-se fazer, o homem se torna por obediência filho de Deus. As duas etapas – de barro a homem, e de homem a Deus – se cumprem debaixo do sinal da obediência14.

A criatura não pode salvar-se por si mesma, mas é associando-se, conformando-se

e incorporando-se ao Verbo que ela alcança a meta de sua existência. Salvação é, pois, a

realização do fim último do humano: conhecer a Deus, estar em Deus. “Não teríamos

absolutamente podido aprender os mistérios de Deus se o nosso Mestre, permanecendo

Verbo, não se tivesse feito homem”15. O ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus,

na visibilidade do Verbo feito “carne”, reconhece em si a imagem de Deus que lhe foi

plasmada. O próprio Adão foi criado à imagem do Verbo16. É vendo o Mestre que a

humanidade pode imitar suas ações e praticar suas palavras. E é isso que assegura a

comunhão17. A contemplação de Deus conduz a criatura a reconhecer e amar seu Criador18.

Existe em Ireneu uma visão otimista do ser humano, isto é: criatura, que não goza

dos atributos divinos, mas que é convidada a participar dessa divindade. Sendo assim, o ser

humano como tal, que já é criado à imagem e semelhança de Deus, é convidado a ver-se no

Cristo. González Faus aponta que a comunhão da humanidade com Deus é prolongamento da

encarnação e só pode ser pensada a partir desse mistério, movimento divino que atinge todas

11 Cf. ORBE, op.cit., p. 519-520. – Seguindo a corrente de São Justino, Teófilo Antioqueno, Melitão e outros, Ireneu rejeita a visão platônica sobre o ser humano e acentua o valor da corporeidade. O barro é o substrato material utilizado por Deus, enquanto que a forma que ele concede ao ser humano explicita o duplo sentido de sua existência. Ireneu distingue “imagem e semelhança”: forma externa é a imagem de Deus; forma interna é a semelhança divina. 12 AH, V 36,3. – Importa lembrar que, ao fazer-se “carne”, o Verbo não assume o pecado, já que este não é constitutivo do humano.13 Cf. SESBOÜÉ, Bernard. Jésus-Christ l´unique médiateur, essai sur la rédemption et le salut. Paris: Desclée, 1988. v. I, p. 135s; 204s. – Nessa obra, Sesboüé procura apresentar as diversas categorias utilizadas pela teologia para abordar o tema da salvação. Ireneu é apresentado como um teólogo cuja reflexão deu bases para as categorias soteriológicas de Divinização e Iluminação.14 ORBE, op.cit., p. 523.15 AH, V 1,1.16 Cf. AH, V 16,2.17 Cf. AH, V 1,1.18 Cf. AH, IV 12,2.

18

as pessoas19. O objetivo da encarnação não é destruir o humano, mas levá-lo ao pleno

cumprimento dentro do desejo de Deus.

Chega-se, assim, à questão que aqui interessa mais particularmente: qual visão

Ireneu elabora acerca do ser humano e qual a ressonância dela na interpretação do termo

“carne” mencionado em Jo 1,14a?

1.3 – A leitura de Jo 1,14a por Ireneu

Ireneu faz inúmeras referências ao Prólogo joanino. “E o Verbo se fez carne”

(Jo 1,14a) é também muito mencionado, porém, explicitamente como citação das Escrituras,

aparece apenas quatro vezes: a) AH, I 8,5: a menção do v. 14a está numa reprodução do

pensamento dos hereges que antecede a crítica que Ireneu fará dessa distorção da fé;

b) AH, III 11,2: ao refletir sobre o evangelho de João, Ireneu fala do “Verbo que se fez carne”,

mas que existe desde sempre e que por esse mesmo Verbo é que todas as coisas foram feitas;

em 11,3, Ireneu critica os hereges que não acreditam no “Verbo feito carne” e pensam o

Cristo do alto, sem “carne” e impassível; c) AH, III 16,8: ao tratar da identificação de Jesus

com o Cristo, menciona o v. 14, ligando-o a 1Jo 4,2; d) AH, V 18,2: ao tratar da economia

humana da Trindade, afirma que Jesus é o mediador perfeito “vindo na carne”.

Coerente com a antropologia de Ireneu, o termo “carne” significa a existência

humana como tal. O ser humano não é perfeito nem imperfeito; é ser finito, posto que é

criatura, porém chamado à imortalidade num progressivo conhecimento de Deus. A “carne” é,

portanto, para Ireneu, o elemento característico do humano, que se não assumido pelo Filho

de Deus não permite ao próprio Deus alcançar seu objetivo.

Recordando que a pessoa humana foi barro modelado por Deus, que deixou o

artista agir em sua matéria, Ireneu propõe que a “carne” é apta para as ações de Deus. Embora

fraca, no sentido de sua fragilidade/finitude – aqui sem nenhuma conotação de tendência ao

pecado – a “carne” pode participar do projeto de Deus: “[...], a carne se encontrará capaz de

receber e conter o poder de Deus como no princípio recebeu a sua arte”20.

A condição humana, carnal por assim dizer, é a condição de possibilidade do mais:

Como a carne é capaz de corrupção assim o é de incorrupção; como é capaz de morte o é também de vida. Estas coisas se excluem mutuamente e não

19 Cf. GONZÁLEZ FAUS, op.cit., p. 42.20 AH, V 3,2.

19

ficam juntas no mesmo indivíduo, mas uma afasta a outra, e onde há uma não há outra. Por isso, se a morte, apoderando-se do homem, afasta-lhe a vida e faz dele morto, com maior razão a vida, apoderando-se do homem, afasta-lhe a morte e o restituirá vivo a Deus21.

Na concepção de Ireneu, o ser humano, animal racional ou ser psíquico pelo sopro

de vida, torna-se espiritual pela obra do Espírito vivificante que não mais abandona o ser

humano, desde que este abandone o mal e converta-se ao bem22. O Espírito pode modificar a

fraqueza/finitude da “carne”, auxiliando-a a alcançar seu destino. Há uma ressonância ética da

salvação com implicação antropológica.

Outro dado importante sobre o humano, o constituído de “carne”, é a insistência de

Ireneu acerca da bondade de Deus que queria comunicar-se com a humanidade e torná-la a

depositária de seus benefícios. O olhar de Deus sobre sua criatura é desde sempre e para

sempre marcado pela gratuidade e pelo único e exclusivo interesse divino de tornar a pessoa

humana participante de sua glória23.

Qual seria o significado do termo “carne” na compreensão de Ireneu? Há uma

série de argumentos ao longo da obra para garantir que o Cristo não veio numa aparência de

“carne”, mas que realmente assumiu a “carne humana”. González Faus, ao analisar o esquema

Verbo-carne em Ireneu, propõe que:

O termo ‘caro’ alude no esquema Verbum-caro ao ‘afora’ extratrinitário: não existe outra possibilidade de doação do Espírito ao homem a não ser através de uma carne (que não seja só carne naturalmente, mas seja verdadeiramente carne): uma criatura que fosse puramente espiritual [...] é incapaz de salvar o homem24.

“Carne” é, portanto, elemento essencial para a compreensão da comunhão de Deus

com a humanidade. O efeito da encarnação revela o que é a condição da “carne”, o

corruptível, o mortal. E é, em Jesus, Deus encarnado, que a humanidade tem acesso à

incorruptibilidade e à imortalidade. Tais atributos jamais seriam alcançados pela humanidade

a não ser pela encarnação. Diz Ireneu:

E como poderíamos realizar esta união sem que antes a incorrupção e a imortalidade se tornassem o que somos, a fim de que o corruptível fosse absorvido pela incorrupção e o mortal pela imortalidade, e deste modo pudéssemos receber a adoção de filhos?25

21 AH, V 12,1.22 Cf. AH, V 12,2.23 Cf. AH, IV 14,1-3.24 GONZÁLEZ FAUS, op.cit., p. 197 [grifo do autor].25 AH, III 19,1.

20

Em outro momento, afirma Ireneu: “[...] devia tornar-se quem devia ser salvo,

para não ser o Salvador de nada”26. E no prefácio do Livro IV, Ireneu define o que considera

como ser humano: “O homem é composto de alma e de corpo, uma carne formada à imagem

de Deus e modelada pelas suas mãos”27.

A identidade humana em momento algum é violentada pela encarnação. “Carne”,

para Ireneu, é o ser humano na sua fragilidade em processo de conhecimento de Deus. O fato

de ser criatura não torna a pessoa humana algo fechado e já definido. Distinta do Criador,

mesmo tendo feito a experiência do pecado, ela é marcada por um movimento em direção a

Deus. Experiência esta que Deus permitiu por magnanimidade do seu desígnio. Ireneu

apresenta a necessidade de se ter clara a distinção entre o ser criatura diante do Criador e a

busca por assemelhar-se à pessoa do Filho. Assim o diz:

Aquele que possui, sem orgulhosa jactância, o verdadeiro conceito da criatura e do Criador, que é Deus, superior a todos em potência, que a todos dá a existência, e permanece no seu amor, submetido e agradecido, receberá dele glória maior e progredirá até se tornar semelhante àquele que por ele morreu. Com efeito, ele veio ao mundo na semelhança da carne do pecado para condenar o pecado, e, condenado, expulsá-lo da carne, e, por outro lado, chamar o homem a tornar-se semelhante a ele na imitação de Deus, para elevá-lo ao reino do Pai, e torná-lo capaz de ver a Deus e conhecer o Pai. Pois ele é o Verbo de Deus, que habitou no homem e se fez Filho do homem para habituar o homem a conhecer Deus e habituar Deus a habitar no homem, segundo o beneplácito do Pai28.

É necessário notar que, segundo essa passagem, a “carne” permanece valorizada e

é conservada no mistério da redenção. Ireneu, no Livro V, apresentará a ressurreição de Cristo

e a “ressurreição da carne”; “carne humana” ressuscitada pelo poder de Deus29. O Cristo

expulsa o pecado da “carne”, mas a preserva, restaurando nela a imagem modelada na criação

e convidando a uma associação de vida na graça do Espírito30. Além disso, Ireneu afirma que

Deus também se habitua à “carne”. É um movimento de iluminação do humano e interação do

divino. Fica evidente mais uma vez a imagem positiva da humanidade, enquanto “carne”, que

é assumida pelo Verbo.

26 AH, III 22,3.27 AH, IV Pr.,4. IRENEU DE LIÃO. Contra as heresias. São Paulo: Paulus, 1995. p. 367. – Helcion Ribeiro, ao comentar essa passagem, recorda que há dificuldades na compreensão do texto por se ter perdido o original. Existem divergências nas traduções latina e armena. A forma como foi citado é da tradução armena, que, segundo A. Orbe, condiz mais com o pensamento de Ireneu ao usar a expressão “uma carne formada e modelada...” em vez de “formado o homem à sua imagem e...”. Ainda segundo Ribeiro, a versão armena evita a dicotomia de alma e corpo. O humano é uma “carne” formada de alma e corpo. Tal afirmação tem conseqüências no nível ético posto que a “carne” é parte integrante do humano e que este não existe sem ela.28 AH, III 20,2.29 Cf. AH, V 7,1. – Ireneu comenta os textos de Rm 8,11 e 1Cor 15,42.36. A “carne”, condição mortal do humano, será resgatada justamente porque foi assumida pelo Verbo, tendo tornado-se “carne” de Deus. 30 Cf. AH, IV 38. – É o Espírito que conduz o homem à perfeição da comunhão com o Pai.

21

Outra questão que pode ser levantada diz respeito à preexistência do Verbo.

Ireneu, em toda a sua obra, afirma que o Verbo existe desde todo o sempre e é uma das mãos

do Pai31. Por ele as coisas foram criadas e, por ele, serão levadas a bom termo. Para ele, o

v. 14a do Prólogo acaba sendo uma prova da verdadeira encarnação. É o argumento

escriturístico para refutar os hereges. Note-se como ele apresenta essa questão do Logos que

se encarna:

Demonstrado até à evidência que o Verbo existia desde o princípio junto de Deus, que por sua obra foram feitas todas as coisas, que sempre esteve presente ao gênero humano e que justamente ele, nestes últimos tempos, segundo a hora estabelecida pelo Pai, se uniu à obra de suas mãos, feito homem passível, está refutada toda afirmação contrária dos que dizem: se nasceu nestes últimos tempos, houve um tempo em que o Cristo não existia32.

A visibilidade do Cristo na “carne” já é caminho para a glória do humano, que é a

visão de Deus. A encarnação é o tornar possível o encontro do Criador com a criatura,

encontro este dado em “Jesus-carne”. Nele, a luz de Deus brilha e se irradia de tal maneira

que pode iluminar e recuperar a visão da humanidade cegada pela falha, que não mais se

enxergava na sua dignidade criatural. “Os homens, portanto, verão a Deus para viver,

tornando-se imortais por tal visão e alcançando a Deus”33.

Em síntese, é possível dizer que, para Ireneu, o fazer-se “carne” é o assumir por

completo a humanidade, compreendida como originalmente marcada pela graça de ser

imagem e semelhança de Deus. O “Jesus-carne” é o ser humano na plenitude do progresso a

que todos são chamados na relação de comunhão com Deus. A condição do ser mortal é a

ligação com o primeiro Adão formado do barro, insuflado pelo sopro divino. Jesus, novo

Adão, é a aquele que modelou no barro o primeiro e agora volta a tocar a humanidade. Jesus é

o artesão também feito barro que anuncia um Deus que jamais desistiu de se comunicar com

as suas criaturas. Como bem o afirma Ireneu numa síntese daquilo que é o agir do Cristo:

A mão de Deus que nos modelou no princípio e agora nos modela no seio materno, esta mesma mão nos últimos tempos, nos procurou quando perdidos, reencontrou a ovelha desgarrada, carregou-a aos ombros e com alegria a reintegrou no rebanho da vida34.

31 Cf. AH, IV 20,1.32 AH, III 18,1.33 AH, IV 20,6.34 AH, V 15, 2. – Ireneu faz um comentário sobre a cura do cego de nascença (Jo 9,1-41) em que a ação do Cristo de fazer barro com a saliva (v.6) é apresentada como a manifestação pública da mão de Deus que modelou a humanidade. A leitura do episódio do cego de nascença se vincula ao texto da criação do humano a partir do barro (Gn 2,7).

22

Os dados apresentados acerca do pensamento de Ireneu são suficientes para uma

proposição otimista do ser humano e integrada na relação de comunhão/comunicação com

Deus. A teologia da divinização do humano, bem própria dos Padres Gregos, não foi

suficientemente assimilada pela antropologia teológica do Ocidente cristão, assinalando mais

uma outra visão e interpretação do termo “carne” mencionado em Jo 1,14a. Essa outra leitura

do versículo em questão, bastante diferente da de Ireneu, é o que agora se propõe à análise.

2 – Agostinho de Hipona e o desafio da “carne” aplicado ao Verbo

Agostinho (354-431) deixou um grandioso comentário ao Evangelho segundo

João. A presente reflexão versa sobre o conceito “carne” nesta obra de Agostinho. Não se

trata de uma obra de exegese nem tampouco um tratado teológico; são suas homilias

dominicais guardadas, em parte, graças ao esforço de taquígrafos35. O gênero da obra é o dos

sermões que tinham por objetivo refutar os pensamentos hereges tão disseminados entre o

povo e apresentar com solidez os princípios da fé. Embora não seja formalmente um tratado

teológico, nesse escrito encontram-se inúmeras referências aos temas mais caros a Agostinho,

como Trindade, graça, encarnação, salvação.

Durante o período36 em que apresentou ao seu paroquiado as reflexões sobre cada

versículo de João, Agostinho procurou tratar com o máximo de clareza a doutrina sobre o

Filho de Deus, principalmente pelas interpelações suscitadas pelo donatismo, arianismo,

maniqueísmo. O auditório de Hipona, certamente heterogêneo, marcado por essas influências

heréticas e outras superstições, foi convidado e incentivado por Agostinho a conhecer as

verdades do evangelho que, segundo ele, nasceu do peito do Mestre e foi assimilado pelo

Discípulo Amado. Agostinho afirma que João nos transmitiu apenas a palavra e que é

necessário usar agora a intelecção e ir ao encontro do próprio Jesus 37.

35 Cf. PRIETO, Teófilo. Introduccion. In: Trat., p. 34.36 Cf. Ibid., p. 4-9. – Há pelo menos três opiniões sobre o período em que Agostinho proferiu seus Tratados sobre o Quarto Evangelho. Marie Comeau determina que os Tratados foram pregados no começo de 416, estendo-se por aproximadamente dois anos. P. Zarb divide os tratados em duas séries. A primeira, compreendendo os tratados de 1 a 54, teria se dado no ano de 413; já a segunda (55-124) teria sido ditada, não pregada, em 418. Dom Huyben, Dom De Bruyne e Mons. Bardy partilham dessa opinião e ainda subdividem a segunda parte em três blocos. Le Landais, após apresentação de consideráveis argumentos, propõe os anos 414-415. Como os sermões não foram datados, não é de todo possível definir quando foi escrito e, além disso, é preciso recordar que após o trabalho dos taquígrafos, certamente houve alguma complementação ao texto. 37 Cf. Trat. I, 7.

23

Por ser uma obra da maturidade de Agostinho, reflete muito do cristão que se

dedicou a meditar a palavra de Deus e que se reconhece agora desejoso por partilhar o sabor

experimentado. Agostinho parece buscar uma plena comunhão com o autor do evangelho,

procurando ser fiel às suas palavras e desentranhando delas toda a riqueza que seria oferecida

ao seu povo. Sabe das dificuldades de seu público, mas insiste na necessidade de adentrar ao

manancial do evangelho que não pode ser saboreado com o espírito carnal38. Logo de

imediato entende-se que Agostinho irá propor um caminho de purificação do espírito para

acessar à divindade transcendente.

A leitura contínua do texto de Agostinho permite entrever como há uma constante

afirmação da grandeza e transcendência do Verbo que se fez “carne”. João ofereceu a

Agostinho material essencial e oportuno para o seu trabalho de pastor. Ao tratar do Verbo

eterno que se fez “carne”, Agostinho encontra em João elementos suficientes para distinguir

entre a divindade e a humanidade do Verbo. Tal distinção pode ainda ser associada com as

diferenças entre aqueles que afirmavam apenas a divindade e os que afirmavam a humanidade

do Verbo39. Agostinho firmará a doutrina da unidade do divino e do humano no Verbo

encarnado.

2.1 – O mistério da encarnação na leitura agostiniana do Evangelho segundo João

Duas passagens são chaves para entender o que Agostinho pensa sobre a

encarnação. Muito embora não sejam perícopes expressas sobre tal temática, de acordo com

uma exegese moderna, elas são lidas por Agostinho como princípios de interpretação do

mistério do Verbo vindo na “carne”. A primeira é sua interpretação de Jo 14,6a: “Eu sou o

Caminho, a Verdade e a Vida”. A segunda é a leitura da cura do cego de nascença (Jo 9).

Esses dois textos se complementarão no discurso de Agostinho.

O Bispo de Hipona, ao comentar Jo 3,22-30, o encontro de Jesus com João

Batista, constrói todo o seu argumento sobre Jo 14,6a:

Se vais em busca da verdade, segue o caminho, já que o caminho mesmo é a verdade. Ele é o término aonde vais e por onde vais. Não vás por uma coisa a outra distinta; não vás a Cristo por uma coisa distinta dele; vás a Cristo por Cristo mesmo. Como por Cristo a Cristo? Por Cristo homem a Cristo Deus, pelo Verbo feito carne ao Verbo que no princípio era Deus em Deus [...]40.

38 Cf. Trat. I, 1.39 Cf. PRIETO, op. cit., p. 45.40 Trat. XIII, 4.

24

Agostinho compreende a afirmação joanina (Jo 14,6a) como alusão ao mistério da

encarnação. O Cristo homem é quem pode conduzir ao Cristo Deus, que por sua vez introduz

o ser humano no mistério trinitário. Se Jesus é o caminho e esse caminho vai

progressivamente e pedagogicamente instruindo os que o acolhem na fé, é necessário

abandonar todo e qualquer pensamento que difira da verdade. Toda a leitura de João será feita

com essa lente de compreensão. É imprescindível buscar a verdade e é o próprio Jesus, a

Verdade, quem conduz ao Pai. Não há outro caminho.

Afirmar que Jesus é o caminho é assegurar a doutrina e, num argumento bastante

condensado, afirmar a incongruência dos hereges. Jesus é a visibilidade de Deus. Para

Agostinho, o Deus transcendente não poderia jamais ser visto ou ouvido. Por quê? Por causa

do pecado. A visão da substância de Deus, visão direta dos atributos divinos, está reservada

para a vida eterna, não sendo possível alcançá-la nesta terra41. A incomunicabilidade de Deus

não se deve a Ele, mas à estirpe de Adão manchada pela queda. Em Cristo, pelo mistério da

encarnação, a revelação é atualizada. O fazer-se “carne” é tornar possível o encontro da

criatura com o Criador por meio de Jesus, que é o caminho.

Se o mistério da encarnação constitui-se, pela humildade do Cristo, no caminho a

ser trilhado pela humanidade, o Cristo glorioso é a própria Verdade e Vida almejadas por essa

mesma humanidade. Num díptico: “Cristo homem é o Caminho, e Cristo Deus, a Verdade e a

Vida”42.

O segundo texto de Agostinho que resume o sentido da encarnação diz assim:

Nós somos agora iluminados, se é que temos o colírio da fé. Precedeu, pois a mistura de sua saliva com a terra com a qual havia de ungir os olhos do que nasceu cego. Nós nascemos de Adão cegos também e temos necessidade de que Cristo nos ilumine. Fez uma mistura de saliva e terra: o Verbo se fez carne e habitou entre nós. Misturou sua saliva com a terra43.

Nessa passagem, comentando Jo 9,6, o pensamento de Agostinho se articula a

partir da idéia de que o ser humano é pó. Adão foi feito do pó da terra, seu pecado afastou-o

de Deus e somente pela graça da humilhação do Cristo o ser humano poderá recuperar sua

visão. O tema da cegueira foi muito usado por Agostinho para mostrar que o pecado afastara a

humanidade de Deus, porém Deus não se afastou dela. A luz permanece a brilhar e nada pode

41 Cf. HARDY, R. P. Actualité de la Révélation Divine – Une étude dés “Tractatus in Iohannis euangelium” de Saint Augustin. Paris: Beauchesne, 1974. p. 119.42 PRIETO, op.cit., p. 51.43 Trat. XXXIV, 9.

25

ofuscá-la, “porém os corações néscios não têm capacidade para ver esta luz; os oprime e

impede que a vejam o peso de seus pecados”44.

Assim, pois, pode-se tocar nos motivos da encarnação. Agostinho responde a essa

questão de forma envolvente: “É que foi tanto o que me amou que, para fazer-me imortal,

quis nascer ele mesmo por mim numa vida mortal”45. O Verbo encarnado é colírio que vem

em socorro da humanidade cega. É ele, somente ele, quem pode curar os olhos da

humanidade. Usa daquilo que foi a causa da cegueira, ou seja, o pó da terra, a condição de

servidão às paixões. Agostinho faz um belo axioma acerca dessa imagem: “O pó fez perder a

visão e o pó a devolverá. A carne foi a causa da tua cegueira e a carne é que vai fazê-la

desaparecer”46.

Em A Trindade, Agostinho diz também qual o sentido da encarnação, acentuando

novamente a condição pecadora da humanidade:

E a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a apreenderam (Jo 1,5). As trevas são as mentes dos homens insensatos, cegadas pelas más concupiscências e pela infidelidade. Foi para as curar e sarar que o Verbo pelo qual tudo foi feito, se fez carne e habitou entre nós (Jo1,14). Pois nossa iluminação é uma participação no Verbo, isto é, àquela vida que é a luz dos homens. A imundície de nossos pecados tornava-nos menos idôneos ou totalmente inábeis a essa participação. Devíamos, portanto, ser purificados47.

Cristo, homem-Deus, é o médico que vem das alturas para curar a humanidade48.

Ele é o mediador entre Deus e a humanidade. Nos motivos que Agostinho apresenta há

sempre a recordação do pecado, a situação de enfermidade e a necessidade de cura e, implícita

ou explicitamente, a menção ao Pai, ou seja, o retorno à pátria49.

2.2 – Ser humano: imagem de Deus

A antropologgia cristã é profundamente marcada pela referência a Gn 1,26-27.

Sendo o ser humano aquele que ocupa lugar privilegiado na obra da criação, sua existência é

considerada de forma particular em relação às outras criaturas. Ele não é mais uma das obras

de Deus, mas sim a obra que dá significado às outras que o precederam. A teologia patrística

deu muita atenção ao fato de que o humano é a criatura central no plano da criação. Agostinho

44 Trat. I, 19.45 Trat. II, 15.46 Trat. II, 16.47 DT, IV 2,4.48 Cf. Trat. III, 3.49 Cf. Trat. II, 3.

dá continuidade ao pensamento sobre a Imago Dei e leva para lugar central de sua reflexão o

tema do humano.

Já que o humano foi criado à imagem e semelhança de Deus é necessário que, na

sua condição de criatura, ele se volte sobre si mesmo e, na busca da interioridade, descubra-se

como lugar privilegiado não só da presença de si mesmo, mas também da presença de Deus

que nele se dá50. Quanto mais o ser humano se conhece mais poderá conhecer a Deus, pois a

imagem do Criador está gravada em seu interior e lhe permite existir e participar em Deus. Ao

afastar-se de si mesma, a pessoa humana afasta-se também de Deus51.

Devido ao diálogo com o mundo grego, Agostinho leva para a antropologia cristã

a compreensão do ser humano como um composto de corpo e alma52. “Corpo e alma são duas

realidades distintas: uma externa, a outra interna, são também duas realidades diversas entre

si, enquanto desempenham funções distintas. O homem não é só um ou o outro”53. Para o

Bispo de Hipona, não foi segundo a forma corpórea que a pessoa foi criada à imagem e

semelhança de Deus, mas sim segundo a sua alma racional54; portanto, a parte mais nobre do

humano encontra-se na alma racional (mens55). É por ela que a pessoa conhece ou pode

conhecer seu Criador, descobrir que é imagem de Deus56.

De acordo com o pensamento de Agostinho, por ser imagem de Deus, o humano é

o ser que foi criado pela verdade mesma, sem necessitar de mediação de criatura alguma,

gozando do benefício de uma relação direta com o Criador. Esse composto de corpo e alma, o

humano, ao experimentar o pecado passa também a experimentar o corpo como um peso para

a sua alma57. Agostinho vê no pecado original o nascimento de todo o mal da humanidade,

trazendo como conseqüência a morte58. Por sua vez, a situação de pecado da pessoa humana

exige o nascimento de um salvador também nascido nessa humanidade.

Agostinho parece não conseguir ver o ser humano separado da idéia de pecado.

Por mais que anuncie a graça de Deus agindo no mundo e sua misericórdia que, longe de

punir justamente o humano, manifesta-lhe amor gratuitamente59, até isso aponta para a

50 Cf. PIERETTI, Antonio. Doctrina antropológica agustiniana. In: OROZ RETA, José et al. El pensamiento de San Agustín para el hombre de hoy: la filosofía agustiniana. Valencia: EDICEP, 1998. v. 1, p. 356.51 Cf. DT, XV 2,2.52 Cf. DT, XV 7,11.53 PIERETTI, op.cit., 365.54 Cf. DT, XII 7,12.55 Cf. DT, XV 7,11.56 Cf. DT, XIV 14,20.57 Cf. DT, XV 24,44b.58 Cf. DT, XIII 12,16.59 Cf. Trat. III, 8.

fraqueza e pobreza humanas. Discutindo sobre por que não existem pessoas que cumpram a

Lei, Agostinho afirma:

É que o homem nasce com o gérmen do pecado e da morte. Nascido de Adão, arrasta consigo todo o que ali recebeu. Caiu o primeiro homem, e todos os nascidos herdaram dele a concupiscência da carne. Era necessário, pois que nascesse outro homem que não trouxesse consigo esta herança: um homem e outro homem, homem que nos dá a morte e homem que nos leva a vida60.

Para que a salvação acontecesse, era imprescindível um salvador homem. Jesus

Cristo é esse salvador, e Agostinho logo pondera que, como tal, não nasce com a marca do

pecado, ainda que revestido de uma “carne mortal”61. O Verbo, por quem tudo foi feito,

assume a condição mortal, faz isso como remédio para uma humanidade que não deseja ser

curada62 e que ama as coisas criadas e não o Criador. O pecado faz parte da condição de vida

do ser humano. Segundo Ladaria, o pensamento de Agostinho articula uma íntima ligação

entre pecado e salvação. Para que esta seja universal, é necessário que também aquele o seja,

daí sua associação de todos os seres humanos às origens de Adão63.

Hardy mostra que, no pensamento de Agostinho, o pecado coloca o homem numa

situação carnal na qual seu espírito fica aprisionado:

Escravo das realidades sensíveis pelo amor de si, o homem não retoma a vida por seus próprios meios. Seu pecado não é somente momentâneo, mas é a condição de toda a sua vida. Sua vida tornou-se uma enfermidade, e essa enfermidade arraigada sempre mais no tempo numa situação de cegueira e de surdez para um Deus que vem a ele e a ele se endereça64.

A visão negativa do humano, contaminado pelo pecado, faz com que Agostinho

afirme que toda a criação reconhece seu Criador; entretanto, o ser humano, que é imagem e

semelhança de Deus65, amando o mundo revela desconhecer o Criador e exterioriza o mal

trazido pelo pecado. Agostinho comenta o v. 10c do Prólogo joanino da seguinte forma:

Quando se diz, pois, que o mundo não o conheceu, se entende aqueles que amam o mundo, aqueles que habitam nele com o coração. É mau o mundo porque são maus os que vivem nele, como é má a casa não por seus muros, senão pelos que nela vivem66.

60 Trat. III, 3.61 Cf. Ibid. 62 Cf. Trat. III, 14.63 LADARIA, L. F. Antropología teológica. Madrid: UPCM; Roma: Università Gregoriana Editrice, 1983. p. 225-226.64 HARDY, op.cit., p. 111.65 Cf. Trat. III, 4. – Agostinho estabelece nesse artigo a diferença entre o ser humano e o animal. O humano carrega em si a imagem de Deus. Onde está essa imagem? Agostinho a compreende como estando na alma humana. 66 Trat. III, 5.

Depreende-se daí uma postura de certa desconfiança diante do humano67. O

mundo, obra do Criador, é bom; porém os homens que nele vivem e foram manchados pela

culpa original são maus. No entanto, Agostinho não pode ser simplistamente classificado

como elaborador de uma antropologia de cunho pessimista68. Ele está às voltas com

problemas muito concretos que o fazem acentuar um aspecto em detrimento de outro. Se, por

um lado, Agostinho quer afirmar a divindade de Cristo, contrapondo-se aos arianos; por outro,

afirma a necessidade de uma conversão humana, contrapondo-se ao pensamento de Pelágio69.

Para Agostinho, o humano é criatura chamada à conversão e à conformação com

Deus. O primado da graça é que realizará na pessoa humana o convite à perfeição e

possibilitará o pleno exercício da liberdade70. O ser humano, tão viciado às coisas sensíveis,

diante do Cristo é interpelado a dar uma resposta de fé. Segundo Hardy, o Cristo, em toda a

sua existência, ou seja, por palavras e atos, é reflexo do papel revelador e pedagógico da

encarnação e, ao mesmo tempo, uma interpelação:

Cada movimento do Cristo é ‘uma verdadeira palavra’: ele é uma interpelação para o homem, um convite a recolher-se na fé de maneira a atender através dos sinais até à realidade. Uma palavra sonora acorda a alma; ela suscita a atividade da alma. Por sua humanidade, provoca o homem no seu embotamento material para suscitar a resposta da fé. Em suma, tornando-se homem, o Verbo torna-se na sua humanidade, uma palavra interpelante71.

Sendo assim, o Verbo encarnado é que irá inaugurar a nova humanidade e

possibilitará a adoção dos redimidos por Deus. A preocupação em mostrar a grandeza do

Verbo exige de Agostinho falar da pureza de Maria, situação prévia que assegura a total

diferença do Deus feito homem em relação à humanidade.

Todos viemos daquela semente de que fala Adão com soluços e gemidos: Eu fui concebido na iniqüidade e em pecado minha mãe me alimentou em seu ventre. Cordeiro, pois é somente aquele que não veio nessas condições. Não foi concebido na iniqüidade, já que não foi concebido por obra de mortal, nem o alimentou na iniqüidade sua mãe quando o teve em seu ventre, porque virgem o concebeu e virgem o deu à luz. O concebeu pela fé e pela fé o criou. Eis aqui, pois, o Cordeiro de Deus. Não há nele a semente de Adão.

67 Cf. Trat. XIV, 6: “Agora examina a natureza do humano: nasce e cresce e aprende o que todos os homens aprendem. Que sabe ele que é da terra, senão terra? Fala do que é humano e só isto entende e saboreia; e, como carnal que é, carnalmente julga e carnalmente pensa; isso é todo o humano”.68 Cf. LADARIA, L. F. Introdução à antropologia teológica. São Paulo: Loyola, 1998. p. 110.69 Cf. VANNIER, Marie-Anne. Pelagianismo. In: DCT. p. 1376-1377. – Também sobre o mesmo assunto: LADARIA, L. F. Teología del pecado original y de la gracia . Madrid: Editorial Católica, 1993. p. 86-91. – Pelágio propugna em suas obras a liberdade humana e a participação na graça do Criador. Assim, por suas próprias forças, o ser humano pode tornar-se verdadeira imagem de Deus. A graça original seria a característica do humano e não o pecado original. Essa auto-suficiência do humano, apresentada por Pelágio, é que provoca a reação agostiniana. Tal reação do Bispo de Hipona ainda é marcada pelo desejo de defender a universalidade da redenção em Cristo. 70 Cf. VANNIER, Marie-Anne. Agostinho de Hipona. In: DCT, p. 70-71.71 HARDY, op. cit., p. 129.

Toma de Adão a carne, não o pecado. Só este, que não toma de nossa massa o pecado, e é quem tira nossos pecados72.

Jesus é um homem que oculta a sua divindade73. Será na sua fraqueza humana e

ocultando sua divindade que o Cristo experimentará a morte. Para Agostinho, a cruz tem um

significado de sacrifício redentor74. E será por ela que toda a humanidade poderá ter acesso ao

Pai. A cruz é necessária para a redenção do gênero humano, pois nela morre pelos pecadores

aquele que não tinha motivos para experimentar a morte, pois fora concebido sem pecado75.

Mas em sua morte se dá a vida76.

Hardy argumenta que, para Agostinho, não é a morte de Cristo que cura a

humanidade, mas aquele que morre por essa humanidade. O crucificado é aquele que cura77.

Este crucificado não surge somente no momento da paixão, mas lhe é anterior. Portanto não é

somente o crucificado que porta a salvação, mas sim o Cristo na sua existência total.

Imprescindível, então, para tal, a encarnação.

2.3 – O Verbo preexistente

Não se tocou até agora na questão da preexistência. Para Agostinho, a

interpretação do v. 14a do Prólogo é a prova de que o Deus, que habitava nas alturas e que era

inacessível comunica-se agora com a humanidade e a conduz à perfeição. Toda a sua teologia

sobre o esquema Verbo-carne se baseará na idéia de que no Verbo se encontra a perfeição a

que o humano é chamado78. No Deus-homem a humanidade encontra/vê sua enfermidade e,

também, seu destino.

Agostinho toca no problema que a encarnação suscitara e que deu margens ao

surgimento das heresias cristológicas79: como se deu a união entre o humano e o divino? Para

ele, o Verbo que habita junto do Pai desde todo o sempre e que com o Pai tudo criou adentra

na humanidade pela força do Espírito80. Não se deixará guiar pela sua natureza humana, mas

esta será guiada por ele, pois o Verbo é, a um só tempo, Filho de Deus e Filho do homem.

72 Trat. IV, 10 [grifo do autor].73 Cf. Trat. II, 5.74 Cf. Trat. III, 4.75 Cf. Trat. III, 13.76 Cf. Trat. XII, 11; Trat. III, 3.77 Cf. HARDY, op.cit., p.115-116. 78 Cf. Trat. XXIII, 6.79 As heresias cristológicas tomavam uma parte da verdade de fé, mas prescindiam de outra que a ela estava unida. É essa acentuação de uma polaridade da verdade que desvia do sentido original. A justa medida na interpretação, aceitação e compreensão da fé ainda permanece um desafio.80 Cf. Trat. XXIII, 12.

O Filho do homem tem alma e tem corpo. O Filho de Deus, que é o Verbo, tem o homem, como a alma tem o corpo. Como a alma com o corpo não há duas pessoas, senão um só homem, assim o Verbo com o homem não faz duas pessoas, senão um só Cristo. Que é o homem? Uma alma racional que tem um corpo. Que é o Cristo? O Verbo de Deus que possui o homem81.

Preocupado com as afirmações arianas acerca do Filho, Agostinho insiste que o

Verbo é eterno e que o Cristo é a visibilidade de Deus82. Enquanto Ário afirmava a condição

de simples criatura para a pessoa de Jesus, Agostinho insiste na sua divindade83. “Cristo não é

nem o Verbo nem a carne simplesmente, senão o Verbo feito carne para viver conosco”84.

2.4 – Jo 1,14a e o conceito de “carne”

No tratado sobre a Trindade, Agostinho explicita como compreende a encarnação,

tendo como argumento de autoridade o referido texto de João. A disputa com os arianos faz

Agostinho precisar o que significa tal versículo:

Afirmo que o próprio Verbo de Deus se fez carne, ou seja, se fez homem, não porém no sentido de que se tenha transformado e mudado no que se fez, mas de tal modo se fez, que nele se encontra não somente o Verbo de Deus e a carne do homem, mas também a alma racional humana; e assim este todo pode-se denominar Deus pela natureza divina e homem pela natureza humana85.

A passagem acima já introduz a questão do significado de “carne” para Agostinho

em sua leitura de Jo 1,14a. “Carne” é sinônimo de humano, natureza humana composta por

alma e corpo. A alma racional é que permite ao ser humano conhecer a Deus. O corpo,

embora parte integrante do homem, é tido como realidade inferior a alma. O esquema Cristo-

Deus e Cristo-homem, que reforça ainda mais a distinção entre alma e corpo, será lembrado

inclusive quando se fala da ressurreição, acentuando que por um a alma é ressuscitada e por

outro, a carne86. É apenas uma distinção formal, pois Agostinho já afirmou que as duas

naturezas estão no Verbo eterno.

“Carne” é também a condição mortal, a finitude. Os nascidos de Adão são mortais

e o Verbo, ao se encarnar, se fez mortal87. Além disso, o tornar-se “carne” é a entrada de Deus

no tempo cronológico. O Deus que tudo fez, o Verbo existente desde o princípio, adentra na

81 Trat. XIX, 16. Cf. DT, I 6,9: “Ora está escrito: Tudo foi feito por ele; portanto, é consubstancial ao Pai. Assim não é somente Deus, mas verdadeiro Deus.”82 Cf. Trat. III, 18.83 Cf. Trat. XXVI, 5.84 Trat. XVIII, 2.85 DT, IV 21,31; II 6,11.86 Cf. Trat. XIX, 16. 87 Cf. Trat. XII, 10-11.

história88. Tendo “vindo na carne”, Cristo se torna para a humanidade um referencial, ou seja,

modelo e exemplo. Novamente encontramos o sentido dado por Agostinho a Jo 14,6. O

Cristo, Verbo eterno feito homem, é o caminho. Seguindo o Cristo, Deus visível, o cristão

poderá ter a visão direta de Deus na eternidade89.

Embora Agostinho tenha uma visão do humano marcada pelo pecado, concebe o

“Jesus-carne” como aquele que veio guiar a humanidade para o que a ela está destinado, a

pátria celeste. “Carne” para Agostinho é a condição mortal e, em Jesus, comunhão de Deus

com aqueles que o desprezaram ao pecar. Como se viu, as disputas com os hereges

influenciaram sobremaneira a obra de Agostinho, fazendo-o concentrar a sua reflexão sobre a

grandeza de Deus em detrimento de qualquer grandeza do humano.

“Jesus-carne”, para Agostinho, é o Caminho que conduz à Verdade e à Vida. Na

interpretação da passagem da Samaritana (Jo 4), Agostinho mostra como Jesus experimenta o

cansaço, a fraqueza humana, não por necessidade, mas por humildade e com o objetivo de

fortalecer a humanidade90. Há uma separação bastante marcada entre a humanidade de Jesus,

assumida humildemente, e a sua divindade. Tal distinção gerou uma desconfiança em relação

à “carne”, ao ser humano, valorizando-se excessivamente o aspecto espiritual, a alma.

3 – Santo Tomás: “carne e espírito” unidos indissociavelmente

Tomás de Aquino (1224-1274) encontra-se num contexto em que, passados os

grandes debates cristológicos, fazia-se necessária uma clara doutrina cristã que, enquanto

ciência, estivesse em condições de dialogar com o mundo. Quis Tomás de Aquino oferecer

uma síntese das verdades da fé aos iniciantes em teologia que se viam às voltas com

numerosas obras cristãs, mas não conseguiam, por si mesmos, elucidar a opinião mais

ortodoxa a ser assumida91.

O esforço de Tomás por fidelidade à Sagrada Escritura, numa leitura literal, e à

Tradição, evitando negar qualquer resposta já dada, faz-se sentir na elaboração da Suma

Teológica. Há um princípio motivador em Tomás, que é a busca do conhecimento que, por

88 Cf. Trat. XXIII, 12. – DT, II 5,9: “O certo é que o próprio Verbo de Deus, que estava junto de Deus e era Deus, isto é, a própria sabedoria de Deus que existia fora do tempo, nesse mesmo tempo, manifestou-se na carne. O certo é que ele devia aparecer na carne, no tempo [...]”.89 Cf. HARDY, op.cit., p. 119.90 Cf. Trat. XV, 6.8.9.91 Cf. RUELLO, F. La Christologie de Thomas d´Aquin. Paris: Beauchesne, 1987. p. 279.

sua índole, quer livrar as pessoas da ignorância. Mais que um estudioso, que se dedicou a dar

cientificidade à elaboração da teologia, Tomás se mostra um místico. Repassa na sua reflexão

todos os mistérios da fé e procura elucidar questões contemporâneas e outras anteriores

resolvidas insatisfatoriamente.

Se Tomás estava livre dos debates e controvérsias promovidos pelas heresias, que

ocuparam o pensamento dos Santos Padres, não estava isento de esclarecer temas e assimilar,

de acordo com os princípios cristãos, as novidades de seu tempo. A influência da filosofia

aristotélica apresentada pelos árabes exigiu uma integração da mesma, pois as simples

condenações já não produziam o mesmo efeito do passado. Tomás de Aquino é, então, aquele

que assume a empreitada de dialogar com a filosofia de Aristóteles92. É mérito de Tomás abrir

o cristianismo ao mundo e às idéias que lhe eram contemporâneas.

Propõe-se, agora, refletir sobre o “Jesus-carne” em duas obras de Tomás de

Aquino: a) Suma Teológica: a partir da sua Terceira Parte, procura-se analisar a interpretação

de Tomás acerca do conceito “carne” em questão; b) Comentário sobre o Evangelho de João:

seguindo os passos exegéticos de Tomás e concentrando-se na sua interpretação do Prólogo,

deseja-se sintetizar os dados sobre a “carne” aplicados ao Verbo.

3.1 – A encarnação e o conceito de “carne” na III Parte da Suma Teológica

Tendo começado sua Suma pelo estudo sobre Deus e as coisas criadas, propõe,

então, o retorno a Deus pela vida nova redimida na pessoa do Verbo encarnado, dedicando a

esse tema toda a Terceira Parte. Claramente influenciado por questões filosóficas, Tomás irá

discutir as relações do mistério da encarnação no contexto de uma teologia marcada por

conceitos como substância, subsistência, natureza, pessoa, conveniência etc.

Para acessar a compreensão de Tomás sobre a encarnação, é preciso perceber sua

cristologia, pois esta dá o sentido de tudo o que ele quis dizer sobre tal mistério. A cristologia

de Tomás é resumida, por ele mesmo, no prólogo da Terceira Parte da Suma Teológica:

Nosso Salvador, o Senhor Jesus Cristo, para salvar seu povo de seus pecados, segundo o testemunho do anjo, mostrou-nos em si mesmo o caminho da verdade, através do qual possamos chegar pela ressurreição à bem-aventurança da vida imortal93.

Muito semelhante à interpretação feita por Agostinho, “Jesus, Caminho, Verdade

92 Cf. BRAGUE, Rémi. Aristotelismo cristão. In: DCT. p. 184.93 ST III, Pro.

e Vida” (cf. Jo 14,6) é a síntese emblemática de Tomás no que tange ao Verbo feito “carne”.

Jesus é, a um só tempo, caminho, pelo qual a humanidade precisa passar para reencontrar o

Criador; e o termo do caminho, pois nele a humanidade reconhece aquilo a que foi chamada

desde a criação94. Percebe-se, pois, uma concatenação de idéias que conduz a uma

compreensão do mistério da encarnação no contexto dessa cristologia. Pela encarnação o

Caminho torna-se acessível à humanidade, e é nela que todo ser humano se reconhece filho na

visão beatífica. O “Jesus-carne”, além de comunicar a Verdade e a Vida, faz com que todo ser

humano possa nele se reconhecer como filho(a) de Deus. “Jesus-carne” é o Caminho por onde

devem passar os que desejam ver a Deus.

Fora do Cristo não haveria possibilidade de encontro com o Pai. Ele, o Cristo, é o

mediador que veio restaurar a comunhão e comunicar à humanidade todos os bens da parte do

Pai; é a Verdade, pois é Aquele que existe desde todo o sempre junto do Pai e que recebeu

deste todo o poder. Dessa forma, quem quiser conhecer toda a verdade – e em Deus jamais

existirá falsidade ou mentira – precisa aderir ao Verbo.

O Verbo encarnado lança o ser humano ao encontro da verdade sobre o divino e

sobre o humano. Ele abre-se para o mistério da divindade e da humanidade, que se revelam

por seu ser na “carne”. Daí pode-se extrair que a encarnação é justificada, de início, pela

elucidação de toda dúvida sobre Deus e sobre a criatura humana. Mas Tomás é ainda mais

explícito no que diz respeito ao objetivo da encarnação, como poderá ser verificado à frente.

Antes, importa perguntar sobre a conveniência da encarnação.

3.1.1 – Conveniência e justificativa para Deus vir na “carne”

A resposta de Tomás ao problema da conveniência da encarnação é marcada por

uma compreensão de Deus bastante legítima e cunhada na tradição neotestamentária: Deus é

amor95. Na sua resposta à pergunta: “Era necessário que o Verbo de Deus se encarnasse para a

restauração do gênero humano?”; Tomás responde que o amor justifica a encarnação e que ela

foi o modo mais conveniente dentre os modos possíveis a Deus.

Tomás aproxima do tema da encarnação a idéia de que a humanidade tem, em si, a

capacidade de conhecer a Deus; por isso, afirma que a encarnação quer despertar uma

resposta de amor no ser humano e que a visibilidade de Deus tornada possível no Verbo feito

“carne”, além de dignificar, é capaz de atrair a humanidade para o conhecimento de Deus: 94 Cf. RUELLO, op.cit., p. 290.95 Cf. ST III, q. 1, a. 2.

[…] deve-se dizer que se encarnando, Deus não diminuiu sua majestade: por conseguinte, não diminui razão da reverência que lhe é devida. Ela cresce com o aumento do conhecimento que dele podemos ter. E ao querer tornar-se nosso próximo encarnando-se, tanto mais nos atraiu para conhecê-lo96.

Para Tomás, o movimento divino provoca no ser humano um desejo de

conhecimento. Na medida em que se conhece Deus, Verdade e Vida, o humano é exortado a

se tornar semelhante a “Jesus-carne”. Ele é o modelo a ser seguido por aqueles que desejam

conhecer a Deus e que têm na pessoa do Filho encarnado a graça da realização de tal anseio.

Tendo recebido da Tradição um conceito já elaborado de encarnação, foi

necessário que Tomás justificasse a encarnação frente às diferentes posições que eram

apresentadas na época. Anselmo de Cantuária, em seu Cur Deus homo?, respondeu à questão

associando a encarnação ao mistério da paixão. O imperativo de uma justiça a ser cumprida

faz com que o motivo para Deus assumir a “carne” humana seja somente o de satisfazer a esse

Deus que foi ofendido97. Ao abordar essa idéia de um Deus ofendido que precisa ser satisfeito,

o Doutor Angélico utilizou a categoria soteriológica da satisfação98, mas segundo Nicolas, a

finalidade da encarnação em Tomás pode ser compreendida como “[...] a exaltação do

universo e a divinização do homem, sua própria ressurreição e exaltação, princípio de tudo,

passam por seu sacrifício redentor e se manifestam como o dom do amor”99. Tomás também

conferiu à encarnação uma característica de extensão trinitária que veio ao encontro da

humanidade:

A encarnação é, para Santo Tomás, ao mesmo tempo, o vértice do mistério de Deus, pois é uma extensão até a criatura do mistério trinitário, e o vértice do mistério do homem, pois é a ascensão deste ao cume absoluto da ordem

96 ST III, q. 1, a. 2. – Ver toda a resposta de Tomás que procura solucionar as seguintes questões: 1) Possibilidade de se restaurar a natureza humana sem a encarnação; 2) A suficiente restauração da natureza humana através da satisfação pelo pecado cometido; 3) A reverência humana em relação a Deus parece ser maior quanto mais distante ele se apresenta ao ser humano. Como de costume nas questões propostas por Tomás, uma primeira questão abre-se em outras que ajudam a compreender o enunciado proposto. 97 Cf. SANTO ANSELMO. Por que Deus se fez homem?. São Paulo: Novo Século, 2003. – Deus, por sua própria divindade, merecia uma satisfação pelas ofensas recebidas. Quanto maior a dignidade e honra do ofendido, maior a satisfação que a ele deve ser dada. A culpa só poderia ser perdoada mendiante a execução de uma sentença que restituísse a honra do ofendido. Assim, o Cristo vem fazer isso em nome da humanidade, já que ela na sua pequenez, diante da grandeza e divindade do agredido, não poderia justamente satisfazê-lo. Em Jesus, Deus e homem, realiza-se a satisfação por todas as culpas da humanidade. Ele representa o ofensor, pois é humano, e está na mesma altura do ofendido. 98 Cf. KESLLER, Hans. Cristologia. In: SCHNEIDER, Theodor (org). Manual de Dogmática. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. v. 1, p. 329-330. – Kesller afirma que Tomás de Aquino utiliza essa categoria soteriológica de Anselmo, mas lhe dá outras nuances. Há uma misericórdia divina que deseja alcançar a humanidade e que é o motor da ação realizada inicialmente pela encarnação do Verbo. Para Tomás, Cristo é o instrumento de Deus que, na sua livre vontade, colabora para que a humanidade seja redimida. O Cristo é o instrumento auto-ativo do amor salvífico de Deus. – Nessa mesma linha de pensamento: SESBOÜÉ, B. Jésus-Christ l´unique médiateur: essai sur la rédemption el le salut. Paris: Desclée. 1988. v. I, p. 347. Sesboüé pondera que “a satisfação em Tomás de Aquino é marcada por uma dupla tensão, entre justiça e amor naquele a que se deve satisfazer, e entre justiça e misericórdia naquele que recebe a satisfação”.99 NICOLAS, M-J. Introdução à Suma Teológica. In: ST I, p. 56.

da criação: a natureza humana transcende-se por essa união e nessa união à Pessoa Divina100.

Embora no pensamento de Tomás houvesse a possibilidade de o Verbo se

encarnar, mesmo que a humanidade não tivesse pecado101; ele concorda com a justificativa do

perdão dos pecados, pois afirma que a condição de “não-pecado” (pre lapsare) da

humanidade é apenas uma hipótese (afinal, existe o pecado!). Porém, na soteriologia

tomasiana, a encarnação não ocorre somente em função de uma reparação, pois há sempre a

idéia de um encaminhamento para Deus. O perdão dos pecados é mais uma expressão da

misericórdia divina que se associa ao itinerário humano.

Se, pois, se afirma a realidade de pecado, a pergunta sobre a ligação da

encarnação com a queda original torna-se inevitável. O Verbo se faz “carne” para redimir a

“carne pecadora” nascida de Adão? E os pecados do tempo presente? Seriam também eles

motivação do assumir a “carne”? Tomás mostra que se pode compreender a encarnação como

remissão dos pecados, tanto os atuais quanto o original102. Assim ele se pronuncia na sua

resposta ao art.4 da Q.1 da III parte:

É certo que Cristo veio a esse mundo não só para apagar o pecado transmitido originalmente aos pósteros, mas também para apagar todos os pecados que depois foram acrescentados. Não que todos efetivamente sejam apagados, em razão da deficiência dos homens que não aderem a Cristo, [...], mas porque ele realizou o que foi suficiente para apagar todos os pecados103.

Não haveria uma contradição no fato de que Deus, sendo bom e justo, tomasse

para si uma “carne” marcada pelo pecado? Segundo Tomás, a natureza humana está enferma e

é esta mesma natureza que o Verbo assume, mostrando assim o poder de Deus que é capaz de

vencer o antigo inimigo pela recuperação da dignidade humana em Cristo. Deus prefere usar a

linhagem ferida pelo pecado104. Tal escolha divina teve também suas conseqüências, pois será

o fato de usar dessa linhagem que ocasionará o sofrimento no Cristo. Ele sofrerá não por ser

culpado, pois a pena da morte é conseqüência do pecado; sofrerá por escolha livre pela

miséria humana105, pois assumiu a “carne” nos seus limites e sofrimentos, ou seja, nas

conseqüências do pecado e não na condição de pecador106.

100 Ibid., p. 55.101 Cf. ST III, q. 1, a. 3.102 Cf. ST III, q.1. a. 3, 4, 5.103 ST III, q. 1, a. 4.104 Cf. ST III, q. 4. a. 6 resp.105 Cf. ST III, q. 14, a. 1 resp. – Ainda nesse artigo, Tomás afirma: “Deve-se dizer que a enfermidade assumida pelo Cristo não impediu o fim da encarnação, mas o ajudou ao máximo, como foi dito. Embora sua divindade ficasse escondida por essas enfermidades, manifestava-se a humanidade, que é o caminho para se chegar à divindade”.106 Cf. ST III, q. 4. a.6.

Tomás apresenta uma idéia bastante peculiar, posto que devedor de Agostinho,

quando afirma que o pecado não faz parte da condição humana e, por isso, o Verbo, ao

encarnar-se, assume tudo o que pertence a essa condição e o fato de não pecar não o torna

inabilitado para a missão que se propõe de satisfação em nome da humanidade. “O pecado

não demonstra a verdade da natureza humana que é causada por Deus e, assim, o pecado a ela

não pertence. Ao contrário, é oposto à natureza e foi introduzido pela ‘semeadura do

demônio’, como diz Damasceno”107. Além de que, segundo Tomás, o Cristo não esteve em

Adão, como os demais, pois esteve nele somente segundo a matéria108.

3.1.2 – O problema da união hipostática

Um problema que ocupará Tomás é o da união hipostática, que é a afirmação

teológica (linguagem conceitual) encimada no v.14a do Prólogo. Como explicar que duas

realidades tão díspares podem unir-se no Cristo? Deus e a humanidade podem unir-se numa

pessoa? Para Tomás, a natureza humana de Cristo (corpo e alma) está plenamente unida ao

Verbo (natureza divina).

O grande contributo de Tomás, no que concerne ao mistério trinitário, foi o de

solucionar a questão deixada por Agostinho acerca da harmonia entre as relações subsistentes

das pessoas divinas e o absoluto e a unidade da divindade. Na concepção tomasiana, em Deus

as relações subsistentes não são acidente, mas sim constitutivas de sua essência109. A definição

de Tomás acerca da pessoa (hipóstase) será de extremo valor para sua compreensão do ser na

“carne” do Cristo.

107 ST III, q. 15, a.1 resp. 108 Cf. ST III, q.15, a. 1. resp. – Neste artigo Tomás responde à questão: “Em Cristo, houve pecado?”. No que concerne à linhagem de Adão, a Escritura afirma que ‘nele todos pecaram’ (Rm 5,12). Diante disso, Tomás afirma que “nós estivemos em Adão, segundo a razão seminal e segundo a substância do corpo” e que o Cristo assume a substância visível da “carne” de modo diferente (concepção virginal).109 Cf. SESBOÜÉ, Bernard. O mistério da Trindade: reflexão especulativa e elaboração da linguagem. O “Filioque”. As relações trinitárias. In: O Deus da salvação (séculos I – VIII). São Paulo: Loyola, 2002. p. 268-272.

A união hipostática, ou movimento descendente de Deus ao encontro da

humanidade e a ela se unindo, eleva a condição humana a um nível superior de existência.

Isso é possível porque em Cristo há uma só hipóstase com duas naturezas. “[...] a pessoa de

Cristo subsiste em duas naturezas. Portanto, embora seja um só subsistente, nele há dois

modos de subsistir. Assim, a pessoa se diz composta, na medida em que, sendo uma só,

subsiste em duas naturezas”110. Há uma preocupação em salvaguardar a imutabilidade do

divino, daí a importância de lembrar que a natureza divina não sofre nenhuma alteração em si,

porém a natureza humana torna-se melhor111. O primeiro dom concedido pela encarnação é o

próprio fato de o Verbo se fazer “carne”.

3.1.3 – O conceito de pessoa humana e sua incidência na “carne” do Cristo

A antropologia tomista também foi elaborada sobre a obra do sexto dia da criação,

porém compreendida a partir da consciência da complexidade humana112. No que diz respeito

à “carne”, como Tomás compreende o ser humano? O ser humano é como o horizonte, onde a

terra e o infinito se encontram. Uma pessoa humana é formada por uma alma racional e um

corpo. Diferentemente da postura agostiniana em que alma e corpo, pela influência platônica,

eram tidos como elementos concorrentes, Tomás afirma a indissociabilidade da alma ao

corpo/carne humana. A alma não é alguma coisa colocada sobre o corpóreo, nem tampouco o

corpóreo é um aprisionamento da alma. Um não existe independente do outro.

Tratando sobre a possibilidade de se chamar a alma de pessoa, responde Tomás:

Deve-se dizer que a alma é parte da espécie humana. Assim, pelo fato de guardar, embora estando separada, a aptidão natural para a união, não se pode chamá-la de substância individual, que é a hipóstase ou substância primeira. [...] Eis por que nem a definição nem o nome de pessoa lhe convém113.

110 ST III, q. 2., a. 4. resp. – Tomás retoma um dos anátemas do Concílio de Éfeso (431). – Cf. DZ 114 e 263: “Se alguém não confessa que o Verbo de Deus Pai se uniu à carne segundo a hipóstase e que Cristo é um com sua própria carne, a saber, que o mesmo é Deus ao mesmo tempo que homem, seja anátema”.111 Cf. ST III, q. 2, a. 6. resp.112 Cf. CHÁVARRI, Eladio. La condición humana en Tomás de Aquino. Salamanca: San Esteban, 1994. p. 118.113 ST I, q. 29, a. 1.

O que constitui a pessoa humana é o fato de ser um corpo/carne, que não subsiste

por si mesmo, e ser uma alma, que, embora sendo ato, só se constitui realidade se vinculada

ao corpo. A alma é, pois, uma substância autônoma. Tomás mantém a prioridade da realidade

espiritual do humano, ou seja, a sua alma racional, que permite ao ser conhecer e encaminhar-

se para a verdade. Por outro lado, na antropologia tomasiana, o corpo não é desvalorizado, já

que está unido à alma.

No caso de Cristo, essa alma racional está ligada ao Verbo eterno, colocando-o em

íntima comunhão com Deus e recebendo dele todo o influxo de sua graça. O Verbo eterno e

preexistente desce à humanidade: “[...] o Verbo de Deus perfeito assumiu como própria a

imperfeição de nossa natureza, segundo o que diz o Evangelho de João: ‘Desci do céu’ (Jo

6,38-51)”114. O Verbo só começa a existir no mundo, enquanto exteriorização, na pessoa de

Cristo.

Enquanto verdadeira pessoa humana, o Cristo experimenta tudo dessa condição,

exceto o que se relaciona ao pecado. Tomás de Aquino dedica as questões 7 a 15 da Parte III

da Suma à natureza humana assumida, explicitando suas perfeições e suas debilidades, tendo

como referência o objetivo da encarnação: conceder a salvação à humanidade. Para Tomás,

em Cristo, existe total unidade entre o ser e o agir. O que é diferente no Cristo, em sua

humanidade, em relação a todos os outros seres humanos, é que, nele, a natureza humana

participa da vontade do agente principal (vontade divina)115. Portanto, o ser está plenamente

em comunhão com o agir.

Quanto à questão dessa natureza de Cristo absolutamente plena, apresentada por

Tomás, Nicolas afirma que:

Quando apresenta a natureza humana de Cristo, dotada já nesta terra da plenitude absoluta, não só da graça, mas do conhecimento, não nos esqueçamos que ela permanece, em tudo, humana e que se trata para ela, portanto para o Filho de Deus nela, de participar no mais alto grau possível da divindade. Para Santo Tomás, a humanidade de Jesus – ao menos quanto à alma – desde sua vida terrestre, estava no vértice da criação, acima dos próprios anjos116.

114 ST III, q. 33, a. 3.115 Cf. RUELLO, op. cit., p. 322.116 NICOLAS, M-J., op.cit., p. 56.

Percebe-se que na solução de Tomás há uma questão sempre delicada: a alma

permanece num nível espiritual sempre mais elevado que o corpo. A humanidade de Jesus,

enquanto corpo e alma, é marcada por esse diferencial da vida do Verbo, Filho de Deus, na

pessoa do Cristo. É esse diferencial que permite ao Cristo conhecer de modo distinto do

restante da humanidade; porém, apesar disso, sua humanidade não perde em semelhança com

a de toda humanidade. É no nível da alma que ele permanece num patamar ainda não atingido

pela humanidade, pois esta não é Deus.

3.1.4 – O termo “carne” associado ao v. 14a do Prólogo Joanino

Cabe agora perceber em Tomás qual é a compreensão do termo “carne”. Em tudo

que já foi mencionado, implícita e explicitamente, há referências a esse termo. “Carne” é

atributo da natureza humana – nunca existindo em Deus – e caracterizada pela mutabilidade –

marca também incompatível com o divino117. A “carne” é constitutiva do humano e o Cristo,

para estar entre a humanidade, precisa dela.

“Carne, pecado e dor” formam uma tríade praticamente inseparável, pois é pela

“carne” que a humanidade transmite o pecado original (idéia da razão seminal). Há muito de

Agostinho nessa compreensão de Tomás. O Doutor Angélico discordará, inclusive, da

possibilidade da imaculada concepção de Maria118. Para ele, é impossível alguém ser

purificado do pecado na concepção, pois não há ali ainda uma alma racional capaz da graça

purificadora. O ser humano, pós-pecado original, é intrinsecamente corrompido. A “carne” de

Cristo é isenta do pecado pelo fato de que em Deus não há imperfeição. Todavia, há também

uma visão do humano como ser que, naturalmente, deseja ver a Deus. Se o pecado

impossibilita essa visão, a graça de Deus vem em auxílio da natureza humana e a torna capaz

para conhecer a Deus, pois esse é o único fim da humanidade.

117 Cf. ST III, q.1, a. 1.118 Cf. ST III, q. 27, a. 2, 2ª obj. e sol.; q. 14, a. 3.

Na questão 16 da Parte III da Suma, em que discute sobre o que convém a Cristo

segundo o ser e o vir-a-ser, Tomás reflete no artigo 6 a proposição “o Filho de Deus se fez

homem”. Retoma a Epístola a Epicteto de Atanásio, em que se afirma que, “ao dizer que o

Verbo se fez carne, é como se dissesse: ‘fez-se homem’”. Novamente ressalta que o fazer-se

homem ocasiona mudança no gênero humano e não em Deus119. Marie Lamy de la Chapelle

assinala que o termo homem, nesse caso, atribuído à pessoa do Cristo, necessita ser pensado

não isoladamente da divindade:

O termo homem, no sentido do que subsiste, conota no caso de Cristo não somente o sentido que ele terá de ser humano: uma alma e um corpo então, mas a divindade sem a qual ele não teria o supósito, pois Deus é este homem120.

A expressão “fez-se homem” poderia incitar ao erro de se afirmar que todo ser

humano é Deus pela encarnação. Diante dessa possibilidade, Tomás de Aquino, seguindo o

pensamento de Damasceno, assevera que: “O Verbo de Deus não assumiu uma natureza

humana universal, mas individual”121. Battista Mondin comenta que, para Tomás, Jo 1,14

significa a ação com a qual a Trindade forma no ventre de Maria uma natureza humana

determinada e a une à pessoa do Verbo122. A novidade que se estabelece é que se pode

concluir que “carne” seria, então, o ser humano determinado, o Cristo no caso, como bem se

assinala na ST III, q.16,10.

3.2 – A “carne” de Cristo no Comentário sobre o Evangelho de João

Mas será no seu Comentário sobre o Evangelho de João que Tomás se deterá

mais explicitamente sobre o termo “carne”. Segundo sua compreensão, o Evangelho de João

teria por finalidade mostrar a divindade do Verbo123. Essa chave-interpretativa marcará toda a

sua leitura dos vv. 1 a 8 do Prólogo.

119 Cf. ST III, q. 16, a. 6. 120 CHAPELLE, M. L. de la. Fils jusque dans la chair: le mystère de l’Incarnation dans la pensée de S. Albert le Grand, Alexandre d’Halés, S. Bonaventure et S. Thomas d’Aquin. Doctor Communis, Cidade do Vaticano, v. 33, n. 2, p. 159, mai/ago. 1980 [grifo do autor].121 ST III, q. 2, a. 2.122 Cf. MONDIN, Battista, Incarnazione. In: Dizionário enciclopédico del pensiero di san Tommaso d’Aquino. Bologna: Studio Domenicano, 1991. p. 317.123 Cf. CESJ (23), p. 65.

Ao tratar do v. 9 é que Tomás toca no tema da humanidade na sua relação com a

luz divina do Verbo que veio a encontrá-la. O ser humano, existindo nesse mundo sensível, é

iluminado pela razão natural e pela verdadeira luz de onde deriva a possibilidade do

conhecimento natural124. É um ser dotado da capacidade de conhecer, e essa capacidade o liga

ao princípio de sua existência, que é Deus. Ainda comentando o mesmo versículo, afirma

Tomás que a inteligência humana provém de uma causa extrínseca, ou seja, de Deus, e que o

ser humano é composto por uma dupla natureza:

124 Cf. CESJ (129), p. 104.

O homem é constituído de uma dupla natureza: corporal, isto é animal ou sensível, e intelectual. Segundo a natureza corporal ou sensível, ele é esclarecido pela luz corporal e sensível, e segundo a alma e a natureza intelectual, ele é esclarecido pela luz intelectual e espiritual125.

É próprio do ser humano ter a natureza corporal e a natureza intelectual ou

espiritual dada pela alma. A natureza corporal se vincula diretamente ao mundo sensível,

enquanto que a intelectual não tem a causa em si mesma nem se vincula diretamente a este

mundo.

Diante da proposição “o mundo não o conheceu” (v. 10c), evoca Tomás o motivo

para o desconhecimento humano acerca de Deus: a falta humana. Esta é definida como um

amor ao mundo de maneira desordenada, sinal da ignorância em relação a Deus126. Dessa

maneira, o Verbo, ao fazer-se “carne”, deu-se a conhecer ao mundo.

Numa elaboração mais formal, Tomás apresenta três motivos para Deus fazer-se

“carne”: 1) a perversidade da natureza humana, que, pela sua própria malícia, teria se

submetido às trevas dos vícios e da ignorância; 2) a insuficiência do testemunho dos profetas,

que, por eles mesmos, não poderiam iluminar o mundo; 3) a deficiência das criaturas,

incapazes de se conduzirem ao conhecimento do Criador127.

Tendo explicado os motivos, ele aborda a finalidade:

Assim o filho de Deus veio ao mundo e, portanto ele estaria no mundo. Na verdade, ele ali estaria pela essência, pelo poder e pela presença, mas ele ali veio assumindo a carne; ele estaria invisível, e veio para ali ser visível128.

Logo, conclui-se que estar na “carne” é tornar-se visível. Neste mundo sensível da

existência, onde o conhecimento humano passa pelo uso dos sentidos, Cristo inaugura a

visibilidade de Deus, e a todos que no Filho acreditarem o Pai concede a graça do Espírito

Santo. Tomás capta esse movimento trinitário na sua interpretação de duas palavras “todos

aqueles” do v. 12129. E o fruto da vinda na “carne” é a adoção filial.

No parágrafo 166, diz Tomás que “o Verbo se fez carne; isso significa que ele

assumiu a carne, e não que o Verbo, ele mesmo, seria carne, ela mesma”130. Essa afirmação de

Tomás se justifica em função da recordação que faz do eutiquismo, heresia monofisista. Além

de assegurar a verdadeira humanidade do Cristo, como na Suma Teológica, Tomás de Aquino,

de forma minuciosa, repassa possíveis erros cristológicos, recorda as heresias e seus autores 125 CESJ (129), p.105.126 Cf. CESJ (138), p.108.127 Cf. CESJ (141), p.109.128 CESJ (144), p.110 [grifo do autor].129 Cf. CESJ (146), p. 111.130 CESJ (166), p.117.

(Êutiques, Ario, Apolinário, Nestório), para numa síntese formular: “O Verbo assumiu uma

carne animada de uma alma racional”131. O “Jesus-carne” é uma alma racional.

Tomás adiciona à conclusão acima mencionada outro elemento. Debate sobre o

porquê João não menciona a alma racional no lugar de “carne”. Justifica o fato de o

evangelista dizer somente que “o Verbo se fez carne” com quatro argumentos: 1) para provar

a verdade da encarnação contra os maniqueus, que não acreditavam na união do Verbo à

carne; 2) para mostrar a grandeza da bondade divina para com a humanidade, ligando-se a ela

por amor; 3) para mostrar a verdade e característica única dessa união no Cristo, assegurando

que Deus se une aos outros homens apenas pela alma; 4) para mostrar que o ser humano foi

restaurado à maneira que convinha o melhor, ou seja, a “carne” enferma é restaurada pela

“carne” do Verbo132.

A preocupação com a questão das duas naturezas e o como se deu tal união na

pessoa do Cristo remete à Suma Teológica e suas questões. “A união do Verbo à “carne” é tal

que Deus é feito homem e o homem é feito Deus; quer dizer que ele é tal que Deus seria

homem”133. Tal união implica uma nova relação entre Deus e o homem nascida do

conhecimento que teve iniciativa em Deus e se concretizou em “Jesus-carne”.

Em síntese, Tomás consegue dar um novo sentido à dimensão carnal do ser

humano ao ligá-la de modo indissociável à alma, que é a sua forma. Rompe-se, assim, com

uma desconfiança em relação ao humano e estabelece-se uma valorização do que é sensível

enquanto instrumento necessário para se chegar a Deus e participar da visão beatífica. O

Cristo, Deus e homem, concede aos humanos a possibilidade de participar da graça divina e,

por uma vida de compromisso com ele, ascender ao Deus que desceu até eles.

4 – Karl Rahner e o Portador Absoluto de Salvação vindo na “carne”

A contribuição de Rahner (1904-1984) para a reflexão acerca da encarnação está

intimamente ligada a conceitos-chaves de sua teologia transcendental. Propomo-nos agora,

tendo-os como dados essenciais, analisar suas implicações na leitura de Jo 1,14a.

Rahner captou em profundidade os apelos do homem moderno em relação à fé,

131 CESJ (168), p.118.132 Cf. CESJ (169), p.118.133 CESJ (170), p.119.

percebendo-os num quadro mais amplo que o meramente eclesial e religioso, abrindo-se para

a antropologia. Isso se deu pela sua percepção do mal-estar em que os cristãos viviam diante

de um mundo onde as ciências evoluíram, onde o mundo em si evoluiu, e as verdades da fé

permaneciam acrisoladas em formulações dogmáticas repetidas, mas incompreendidas.

Jesus, Deus-homem, é, para Rahner, o Portador Absoluto de Salvação. Sendo

assim, compreendeu ser urgente uma investida da teologia no diálogo com outras áreas e a

formulação de uma teologia de cunho ontológico, significando não só uma mudança na

linguagem em relação à teologia de concepções ônticas, mas, acima de tudo, uma variante na

forma de olhar e de dizer a fé no mundo, a partir do humano134.

O itinerário aqui seguido foi o de contemplar a visão rahneriana de ser humano,

basicamente uma primeira leitura de sua antropologia, e de sua cristologia, especificamente

sua interpretação do termo “homem”, compreendido como sinônimo de “carne”, no texto do

Evangelho segundo João.

4.1 – O ser humano: um misterioso ouvinte da palavra

Para Karl Rahner, o ser humano possui um a priori que lhe é característico e que

fundamenta todo o seu ser no mundo. Tal a priori é a possibilidade de conhecimento que

existe em todo ser humano e, na medida em que desenvolve o seu conhecimento do mundo

dado, na sua relação com as coisas, vai constituindo o seu a posteriori. O que torna possível o

conhecimento categorial ou a posteriori é justamente o a priori.

Ao afirmar que a pessoa humana é, a priori, capaz de conhecer, Rahner afirma

também a ligação com o mistério. O humano, nessa perspectiva, constitui-se um mistério

indefinível ou, como diz Rahner, o mistério135. Sempre haverá o que conhecer. O ser humano

conhece e é conhecido, mas permanece carente de conhecimento e de conhecer-se, por isso é

o ser que se indaga. Sempre existirá um mais a que será chamado. Daí que todo ser humano,

ao se indagar sobre as verdades últimas de sua existência, anseia por uma resposta, e somente

no abandonar-se no mistério de si pode encontrar aquele que lhe responde e é a resposta.

Em Ouvinte da Palavra136, Rahner propõe uma filosofia da religião baseada numa

antropologia, tocando no tema da transcendentalidade do conhecimento sem, porém, se

134 Cf. RAHNER, Karl. Teologia e antropologia. São Paulo: Paulinas, 1969. p.162-163.135 Cf. Ibid., p. 83.136 RAHNER, Karl. L’homme a l’écoute du verbe: fondements d’ une philosophie de la religion. Paris: Mame, 1968.

definir teologia. Propõe que uma filosofia cristã não perde sua legitimidade pelo fato de ser

cristã. O filosofar sobre o ser humano e seus anseios já é o encaminhamento para a

constatação da abertura ao mistério e da possibilidade, então, de uma eventual comunicação

de Deus. Ainda circulando no terreno da filosofia, Rahner já afirma que antropologicamente o

ser humano é abertura para o mistério.

O ser humano é um ser de transcendência, na medida em que seu conhecimento

das coisas não se confunde com as coisas em si, mas delas se abstrai e se pergunta pelo seu

próprio ser. O humano se perde no mistério de sua existência e pode-se encontrar nesse

mesmo mistério. O primeiro princípio de uma ontologia geral, para Rahner, é: “A essência do

ser do ente é conhecer e ser conhecido em uma unidade originária, que temos chamado como

o estar consigo, o estado de luminosidade do ser para consigo mesmo como

‘subjetividade’”137.

O ser humano, na contingência e finitude do seu ser, pergunta-se acerca do ser.

Essa pergunta pela quididade, pela essência, o conduz à pergunta sobre Deus. Ele descobre,

pois aí, que o Ser captado no infinito não é só luminosidade, mas também obscuridade. Deus

pode ou não se revelar. Deus é livre para se revelar como também o será o ser humano para

responder-lhe. Não é da natureza do humano o direito a uma revelação, tal pode se dar na

livre ação de Deus.

Se a relação da pessoa humana com Deus é conhecimento, tal não pode ocorrer, a

não ser na liberdade, posto que todo conhecimento não se dá pela posse do outro, mas sim

pelo encontro dialogal com o outro. Deus já se revelou na criação, e o humano, como ser

apetecível, o encontra nas coisas, na medida em que procura perceber o bem que há nelas.

Dessa forma, a pessoa humana já está em contato com o Luminoso. Mas ele, Deus, pode-se

reservar o direito de, na criatividade de seu ser, estabelecer uma outra forma de revelação. E,

para que tal seja possível, é necessário que o humano tenha a possibilidade de acolher essa

possível autocomunicação de Deus.

E se o humano é o ser capaz de ouvir a possível palavra de Deus que a ele pode

ser expressa, ele deve estar sempre atento à eventual palavra divina. “O humano é o ente que

em sua história deve pôr-se a ouvir a revelação histórica de Deus, possivelmente efetuada em

forma de palavra humana”138. A humanidade ouve e pode ouvir a Deus. E se uma palavra de

Deus lhe é dirigida, essa palavra pode encontrar resposta e eco no seu criatural. Nem Deus é

137 RAHNER, L’homme, p. 88.138 Ibid., p. 284-285.

um Absoluto fechado em si, nem o humano um contingente desprovido da capacidade de agir.

A comunicação de Deus ressoa no ser humano como resposta ao seu mistério indecifrável e

convida a uma confiança inabalável naquele que o criou.

O humano, espírito e matéria que é, não é capaz de uma visão

beatífica/supramundana já neste mundo. Portanto, a possível revelação de Deus deve dar-se

no lugar histórico. É nele somente que a humanidade poderá conhecer, pois o conhecimento

humano será a pré-captação do infinito no finito de sua existência. A história é o espaço no

qual a palavra de Deus deve dar-se a conhecer. Tal revelação na história rompe com os

esquemas antagônicos em que Deus, o Absoluto, não se envolve com o mundo. Na história e

na “carne” é que Deus pode se comunicar. Rahner insiste para que se rompa esse antagonismo

entre o celeste e o terrestre e se descubra no mundo a palavra dada por Deus:

Se o homem é um espírito histórico face a um Deus livre, segue-se então, que o homem é aberto a uma realização de sua potência obediencial, que possui necessariamente como espírito, e que a revelação então não deve ser uma krisis do humano, nem o transmundano que não pode fazer-se ‘carne’, mas permanece somente um ‘espinho na carne’; de outra parte, segue-se que o humano deve acolher a revelação livre de Deus como uma graça imprevisível e gratuita, como ‘história’: isso não como antinatural, mas sim como sobrenatural139.

É, na materialidade do seu ser, que o humano pode conhecer o espiritual de sua

essência. Enquanto unidade de matéria e espírito, o humano descobre em si algo de

semelhante a Deus, que permite ao primeiro conhecer o Outro. A posição de Rahner é a de um

conhecimento não a partir de categorias externas ao próprio humano, mas sim a partir deste.

Rompendo com uma tradição teológica que apresentava a graça como algo que

poderia ser ou não dado à humanidade e intrinsecamente ligado à dimensão do pecado,

Rahner, reatando com os primeiros Santos Padres, propõe que toda a história é em si marcada

pela graça, sendo uma realidade permanente do humano, e não um adicional divino que pode

lhe ser acrescentado. A graça é sobrenatural, pois não é algo que o humano adquiriu por suas

próprias forças; ao contrário, é presente gratuito de Deus, que ao criar toda pessoa a constitui

partícipe de seu ser. Essa graça acompanha o ser humano no desenvolver e desenrolar de sua

história, respeitando sempre sua liberdade140.

De acordo com o pensamento de Karl Rahner, todo o humano é marcado por um

existencial sobrenatural. A história humana não concorre com Deus, mas para ele. O ser

139 RAHNER, L’homme, p. 307-308. 140 Cf. RAHNER, Karl. O homem e a graça. São Paulo: Paulinas, 1970. – Esta obra apresenta de forma sucinta o pensamento de Rahner sobre a graça.

humano não é um pecador em sua natureza, em quem se acrescentou a graça; ele é, sim, o

portador de uma graça original que lhe possibilita estar aberto ao seu Criador e a ele, na

liberdade, responder com amor. Liberdade que Deus também respeitou, ao permitir a

desobediência. É a desobediência que, enquanto realidade vivida, mesmo sendo recusa a

Deus, leva o humano a defrontar-se com o destino último de sua existência e das

possibilidades da grandeza de seu ser141. Sendo assim, mesmo passando pelo pecado, a pessoa

humana continua no influxo da graça.

O tema da encarnação é tido, por Rahner, como premente para uma teologia que

queira dialogar com o mundo e a cultura modernos; pois, para ele, parte da estranheza diante

do mistério da encarnação deve-se às formulações metafísicas do enunciado religioso142. Para

uma teologia transcendental, marcada por uma antropologia também assim adjetivada, o lugar

da encarnação é justamente o eixo no qual se articula a consolidação de uma inusitada

experiência de Deus, que é nova, tanto para o humano como para o próprio Deus, que

desejou-se e fez-se humano. Nas palavras de Rahner: “A cristologia é fim e princípio da

antropologia e esta, na sua realização mais radical – a cristologia – é eternamente teologia”143.

4.2 – Cristologia existencial e encarnação a partir da leitura de Jo 1,14a

Tudo o que foi mencionado acerca da antropologia transcendental refere-se

diretamente à interpretação feita por Rahner do mistério da encarnação e, particularmente, de

Jo 1,14a. Chega-se agora ao ponto em que se faz necessário perceber como esse teólogo,

embora não sendo exegeta, aplica à pessoa de Cristo os elementos compreendidos como

característicos do humano.

Rahner lê o v. 14a do Prólogo joanino a partir de uma visão do humano

intensamente agraciado. “O Verbo se faz carne” dessa “carne” da qual é constituída a

humanidade, que vive num existencial sobrenatural. Rahner temia um cristianismo com

feições mitológicas. Sua preocupação, no que diz respeito ao mistério da encarnação, foi a de

141 Cf. RAHNER, Teologia e antropologia, p. 233. – Em hipótese alguma, Rahner faz uma apologia do pecado, mas afirma que essa realidade de recusa a Deus, caminho na direção falsa, não pode ser uma absurdidade. Também o pecado vivido pode ter um elemento positivo e ser considerado como parte autêntica da realização do humano, na medida em que ali se exerce a liberdade e cada ser impregna naquela realidade sua própria marca pessoal. Em outro escrito, Rahner situa a realidade da concupiscência no âmbito da liberdade e termina por afirmar: “Nem no bem, nem no mal, o homem jamais se possui totalmente”. – Outra referência sobre o mesmo tema: RAHNER, O homem e a graça, p. 165.142 Cf. RAHNER, O homem e a graça, p. 88.143 RAHNER, Teologia e antropologia, p. 78.

assegurar que a proposição feita em Calcedônia144, enquanto formulação dogmática, fosse

assimilada como realidade tangível que implica todo o humano num processo de renovação da

compreensão de si mesmo e de Deus.

Como a formulação de Calcedônia, cunhada em parte sobre a base do Prólogo,

pode ser compreendida como mitológica? Para Rahner, a humanidade, marcada pelo

pluralismo e com acentos de secularização, ao ouvir o dogma da encarnação, não capta a

verdade nele apresentada, embora consiga até mesmo repeti-la. Todo o esforço do discurso

teológico esbarra na mentalidade moderna, com uma crítica que não consegue compreender o

afirmado a não ser como um mito. Tal compreensão de Rahner, à primeira vista estranha, fica

bem-elucidada numa comparação apresentada por ele:

Olhemos friamente a situação espiritual tal qual é em nossos dias: um homem de hoje, sem educação cristã, ouve dizer: ‘Jesus é Deus feito homem’; ele rejeitará de saída esta declaração porque, para ele, se refere a um mito, que, a priori, não poderia ser tomado a sério nem discutido; e é também o que fazemos nós quando ouvimos que o Dalai Lama se tem por reencarnação de Buda145.

Num tempo em que os mitos são radicalmente rejeitados, o perigo de uma

afirmação cristológica ser tida como mitológica significa, na prática, a negação da fé. Importa

pois, segundo Rahner, formar uma cristologia que não fale de Deus a partir do alto, mas sim a

partir do humano; uma cristologia antropológica é a única que pode ser validamente aceita,

tanto pelo mundo moderno quanto por uma teologia que com ele queira dialogar e permanecer

fiel aos enunciados do passado.

Na compreensão de Rahner, que facilmente pode-se comprovar, as verdades da fé,

embora perfeitamente colocadas em conceitos ortodoxos, não adentraram ao catecismo do

coração dos cristãos, permanecendo apenas no catecismo impresso146. Muito do que se vive

em matéria de cristianismo revela grande distância em relação às formulações e avanços

teológicos e exegéticos.

144 Cf. WEGER, K-H. Karl Rahner: Uma introdução ao seu pensamento teológico. São Paulo: Loyola, 1981. p. 155. – Recorda Weger que, para Rahner, Calcedônia não pode significar o fim, mas, antes, a reivindicação de um novo começo.145 RAHNER, Teologia e antropologia, p. 33. – Ainda sobre o tema da possível compreensão da fé, pelo homem moderno, como mitologização: WEGER, op. cit., p.155s.146 Cf. Ibid., p. 136-137.

Nesse contexto, há, sem dúvida, uma constatação de certo monofisismo cristão147,

que, de acordo com Rahner, se expressa numa incompreensão da verdade mais plena de

alegria afirmada no Evangelho. A verdade é repetida até mecanicamente, o enunciado é

decorado; no entanto, o seu significado e sua implicação para a pessoa humana nos diversos

contextos em que se encontra não são percebidos. Os cristãos dizem “a Palavra se fez carne”,

porém permanecem numa desconfiança em relação ao humano e a tudo que a ele está

relacionado. Numa reflexão sobre o Natal, pronuncia-se Rahner sobre tal monofisismo:

Deus se fez homem. Ah! Com que facilidade o dizemos, e com que facilidade (ainda depois de termos entrado na exatidão das fórmulas ortodoxas) o entendemos de maneira monofisista ou nestoriana (e não só os ascéticos e os ‘desmitologizados’). Demasiado facilmente concebemos o homem que Deus se fez (Deus é nessa proposição sujeito e não predicado) como uma espécie de disfarce, como uma roupa do ‘bom Deus’, de maneira que Deus, no fundo, permanece sendo Deus, e não se sabe exatamente se ele (e não só seu signo) está realmente aqui, onde nós estamos148 .

O risco de diluir a verdade da fé neotestamentária e transformar o Cristo num

“simulacro de humano” é imenso e perceptível. Já o era no passado e ainda assim permanece.

Rahner entende o conceito “carne” do Prólogo como sinônimo de humano. Afirma que Jesus

é um humano como todas as pessoas que pertencem a essa condição. Ele não se passou por

humano. Ele o foi em totalidade. E o fato de ser humano não diz algo novo apenas em relação

ao humano, mas também, e acima de tudo, sobre Deus. Pelo fato de tornar-se “carne”,

humano, Jesus não deixa sua divindade, mas tão pouco tem sua humanidade meramente como

um acréscimo circunstancial à sua pessoa149.

Jesus é a epifania de Deus que revela o sentido de toda antropologia. Cristo é a

experiência humana levada à plenitude, assumida até as suas últimas conseqüências,

iluminadora de todos os momentos do humano, do seu surgir ao seu findar. Dessa forma, a

cristologia transcendental impulsiona todo ser humano a mirar-se na pessoa do Deus humano

Jesus. Nele todas as dúvidas do humano são dissipadas e o mistério da humanidade abre-se

numa amplidão de plena comunhão com o Mistério.

147 Cf. GONZÁLEZ FAUS, J. I. Acesso a Jesus: ensaio de teologia narrativa. São Paulo: Loyola, 1981, p. 9. – Sobre o tema do “monofisismo recente” interpretado por Rahner, González Faus afirma que: “Karl Rahner disse, em mais de uma ocasião, que nas cabeças de quase todos os cristãos havia uma espécie de ‘monofisismo latente’. Isso significa que a maioria dos cristãos, lá no fundo de seu coração, não chega a conceber Jesus como um homem autêntico. Talvez lhe atribuam um autêntico corpo de humano, mas não uma autêntica psicologia e uma autêntica vida de homem. [...] Pois isso é exatamente monofisismo: crer que Jesus, para ser verdadeiramente Deus, tinha de ser um pouco mais ou um pouco menos homem do que somos nós e, portanto, crer que Deus só pode ser totalmente Deus se o homem for menos homem”.148 RAHNER, Karl. “Sobre la teologia dela celebraccion de la navidad” In: Escritos de Teologia. Madrid: Taurus, 1961. v. III, p. 40. – Também: RAHNER, Teologia e antropologia, p. 80; 123. 149 Cf. RAHNER, Karl. Graça divina em abismos humanos. São Paulo: Herder, 1968. p. 22.

Jesus pode ser colocado como referencial justamente porque é realização plena do

humano e é aquele que comunga com a humanidade por sua entrada na condição histórica,

espaço-temporal. É um como os outros. Sua diferença é a plenitude demonstrada a que todo

cristão vê-se nele convidado. Diferença não no que diz respeito à graça, posto que toda a

humanidade é marcada pela capacidade de ouvir uma possível revelação de Deus em palavra

humana.

A diferença se dá no fato de que o elemento igual entre Jesus e a humanidade, ou

seja, sua condição humana é nele – em Jesus – seu próprio modo de ser e dizer a palavra do

Pai; enquanto que no restante da humanidade é algo que não se pertence a si mesmo150. Numa

síntese de Rahner: “Todos os demais estamos mais longe de Deus, porque sempre pensamos

que nos entendemos sozinhos. Ele, contudo, sabia que somente o Pai conhece seu mistério,

concluindo daí que só ele conhece o Pai”151.

Em Jesus, Deus diz a última palavra sobre si e sobre o humano. Todo ser humano

é marcado pela graça, mas, na pessoa de Jesus, o próprio Deus vem tocar a “carne” da

humanidade de uma vez por todas, de modo irrevogável e irreversível. E fazendo de sua

natureza humana algo que lhe é próprio, torna-se para a humanidade, ele mesmo em si, um

dom, a realização da promessa de salvação. Ele vem ao encontro e, em Jesus, Deus se oferta a

toda humanidade.

Rahner quer evitar também que sua cristologia existencial seja interpretada, no

que se refere ao Cristo pleno, como uma recusa ao humano na sua finitude. Tal interpretação

poderia surgir em função da tradicional colocação do problema da relação entre Deus e o

humano a partir da idéia de distância e proximidade. Cristo é a possibilidade que a

humanidade tem de ouvir Deus na “carne”. Ela é assumida e não pode ser tida como um

estorvo a Deus, mas sim como a condictio sine qua non da comunicação de Deus na história

por uma palavra direta ao humano. Assim diz Rahner:

Cristo é o humano na sua máxima radicalidade, e sua humanidade é a mais autônoma e a mais livre, não apesar mas porque é a humanidade que foi estabelecida ao ser assumida, foi estabelecida como auto-expressão de Deus152.

Comentando o v. 14a do Prólogo, ao referir-se à palavra “homem”, Rahner

considera o que o texto denomina “carne”. Deus escolhe tal condição exatamente porque

corresponde ao seu único e imutável desejo em relação ao ser humano: dar-se a conhecer. Na

150 Cf. RAHNER, Teologia e antropologia, p. 77.151 Ibid., p. 70-71.152 RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 270.

feliz aventura do Deus, desejoso por comunicar-se, a encarnação é o ato maior do amor

comunicador. A encarnação não é uma resposta de Deus ao pecado da humanidade, como se

Deus precisasse encarnar-se porque o humano seria um ensaio que fracassou. Tanto a criação

quanto a encarnação fazem parte de um mesmo desejo divino. São dois momentos ou fases

em que Deus se exterioriza a si mesmo e se mostra naquilo que lhe é diferente153.

A encarnação é o acolhimento, assimilação, da parte de Deus, daquilo que é

próprio da criatura. É Deus infinito entrando nas estreitezas da humanidade. É o tomar a si o

que sempre lhe pertenceu, não como objeto, mas como realidade imprescindível de uma

comunicação em que o ser todo do Cristo é a palavra dita ao humano ouvinte:

O dogma cristão da encarnação deverá, portanto, expressar o seguinte: Cristo é verdadeiramente humano com tudo o que isto comporta, com sua finitude, mundanidade, materialidade e com a sua participação na história deste nosso cosmos na dimensão do espírito e da liberdade, na história que atravessa a porta estreita da morte154.

Essa cristologia a partir de baixo radicaliza o valor da “carne” de Jesus. Ela não é

um adendo assumido; mas reiterando, ela é a realidade irrecusável na qual se opera a

comunicação divina. “Jesus-carne” é o ser humano que experimenta em si o ser aberto a Deus,

ao mesmo tempo, que o comunica pelo todo de seu ser. Essa afirmação faz-se importante,

porque, na abertura de seu ser, o Cristo, como todo ser humano (existencial sobrenatural),

passa constantemente pelo discernir cada ato a partir da referência última, que é a sua absoluta

confiança no Pai. Na pessoa de Jesus, Deus revela-se na e para a dignidade da “carne”:

Este humano é precisamente enquanto humano a auto-expressão de Deus como expressão de si para fora de si, pois Deus expressa-se a si precisamente quando se exterioriza, dá-se a conhecer a si mesmo como Amor, quando esconde a majestade deste Amor e se mostra na ordinariedade do humano155.

Ao tratar da “ressurreição da carne”, Rahner define o conceito de “carne” da

seguinte forma: “Carne significa o homem todo, em sua realidade corpórea”156. Bastante

curioso que, enquanto o ser humano procura negar sua humanidade, buscando

esquizofrenicamente assemelhar-se ao Deus das alturas, o próprio Deus escolhe ser o mais

semelhante a ela, escolhe ser humano, tornar-se humano, desenvolver-se humano numa

história. Rahner finaliza sua reflexão sobre a “ressurreição da carne” dizendo: “O que Deus

153 Cf. RAHNER, Teologia e antropologia, p. 114.154 RAHNER, Curso fundamental da fé, p. 237.155 Ibid., p. 267.156 RAHNER, Teologia e antropologia, p. 146.

criou e foi assumido por Cristo e glorificado com sua morte e ressurreição terá também em

nós sua realização definitiva”157.

Em “Jesus-carne”, a humanidade é colocada no lugar mais excelente. O Verbo

fez-se carne-humano significa, pois, que quando Deus quis revelar-se não-deus, o humano

tornou-se justamente, além de auto-expressão de sua comunicação amorosa, participante do

mistério indecifrável da divindade. É, por assim dizer, a deificação ou divinização do humano.

E se tudo o que Deus faz é eterno, Deus mesmo é humano para todo o sempre. O Deus-amor é

o Deus-homem, que mostra à humanidade que a única forma de se reencontrar é permitindo-

se mergulhar no mistério de seu ser.

“Jesus-carne” é o mediador para a humanidade achegar-se a Deus. O ser do

cristão define-se justamente pelo passar pela humanidade de Jesus, e aceitá-la significa pôr-se

num processo em que tudo está marcado pela presença de Deus. O finito vê-se contemplado

no infinito; o pequeno participando substancialmente do grande. Os dois sujeitos do diálogo

na liberdade, Deus e a humanidade, encontram em “Jesus-carne” o elo eterno de comunicação

do amor. “O fato de que Deus mesmo seja homem é o cume e a causa última da relação de

Deus com sua criação. Nessa relação Deus e a criatura crescem na mesma medida (e não de

maneira inversa)”158.

A conclusão a que se chega é que, na “carne” de Jesus, o ser humano descobre-se

mais do que realmente pensava sobre si. Os limites que se impunham pela condição humana

foram transformados em potencialização de viva esperança contra todo pessimismo sobre o

humano. Numa reflexão sobre o Ano Novo e suas intrínsecas expectativas, convidando os

cristãos a terem em si uma amabilidade de coração, Rahner diz:

O próprio Deus experimentou com um coração assim e nos disse que era possível. A sua experiência é mais decisiva e fidedigna do que a nossa: nós podemos ser melhores do que julgamos. É possível fazer mais do que suspeitamos. Nunca nos engrandecemos demais, se ao próprio Cristo aprouve engrandecer-se em nós. Somos mais do que podemos imaginar159.

Rahner atribui uma extrema positividade em relação à vida humana e uma

esperança inabalável na entrega do ser a Deus. E, com o fato da “carne” ser assumida por

Jesus, tal confiança transforma-se no humano em direito adquirido de nunca querer ser menos

157 Ibid., p. 153.158 RAHNER, Teologia e antropologia, p. 54.159 RAHNER, Graça divina em abismos humanos, p. 27-28.

do que um irmão do Verbo eterno feito carne160. “Deus fez o mundo e o homem melhores do

que ordinariamente pensamos”161.

Para Rahner, a “carne” é elemento essencial que, no bojo do mundo, permite a

comunicação de Deus na história. “Jesus-carne” é o início e a consumação de tudo o que o ser

humano é chamado a ser. Na “carne” de Jesus, a humanidade pode desabafar o seu ser na

certeza de que Deus não é um mero espectador de sua história, mas sim um agente que, na

entrega total de si, aponta para a capacidade humana de amar e no amor realizar-se em sua

vocação transcendental. O destino do humano não é um andar em círculos sobre si mesmo,

mas sim um direcionar-se para aquele que, vencendo a morte, inaugura, de uma vez por todas,

o “novo céu, a nova terra” (cf. Ap 21,1a).

Rahner convida ao silêncio em que Deus pode se manifestar. Silêncio este

marcado pela densidade da abertura do humano, que transcende a si mesmo e escuta o

Criador. Ciente de que o mistério será sempre um convite ao abandonar-se confiantemente no

colo do Pai, Rahner sabe que não tem uma palavra final, mas que tem um convite à

participação naquele que abriu para a humanidade a total comunhão pela “carne”:

Mas, quando a nostalgia da absoluta proximidade de Deus que, incompreensível em si, é a única realidade que tudo faz suportável, põe-se a contemplar onde se personificou tal proximidade, não nos postulados do espírito, mas na carne e nas choupanas da terra, então não se pode encontrar outro lugar que não seja em Jesus de Nazaré. Sobre ele a estrela de Deus se detém. Ele é a única pessoa diante da qual a gente se sente animado para dobrar os joelhos e rezar chorando de alegria: e o Verbo se fez carne e habitou entre nós162.

Conclusão

O caminho percorrido neste capítulo teve por objetivo aproximar algumas

interpretações do conceito “carne”. Para tanto, foram buscadas representações que captassem,

mesmo que parcialmente, o pensamento de uma época, ou melhor, de uma determinada

teologia.

Por um lado, viu-se um Ireneu com as prerrogativas da “carne”, numa visão

explicitamente valorizadora da condição humana; por outro, um Agostinho que, influenciado

160 Cf. Ibid., p. 27.161 RAHNER, Teologia e antropologia, p. 223.162 RAHNER, Teologia e antropologia, p. 83-84 [grifo do autor].

pelo seu contexto, postula uma desconfiança em relação à “carne” – tida como inferior à alma

– embora acredite na plena realização da iluminação do ser humano pelo Verbo encarnado.

Duas visões patrísticas que, longe de serem simplesmente antagônicas, mostram o complexo

da verdade cristã afirmada em Jo 1,14a. Em ambos, o dito versículo foi interpretado, no que

concerne à “carne”, como visibilidade do Deus absoluto, inacessível de outra maneira, senão a

vivida por “Jesus-carne”.

Tomás de Aquino, ao lançar luzes sobre a unidade indissociável de corpo e alma,

matéria e espírito, compreende “carne” como o lugar da visibilidade de Deus e elemento que a

permite, bem como por onde se alcança o acesso a Deus. As formulações de Tomás,

extremamente coerentes com toda a Tradição, permaneceram no nível de uma metafísica, e

deram o devido lugar para a humanidade do Verbo e para a realidade da “carne”. Porém, seu

desejo de realçar a busca da visão beatífica ficou marcado por certa tendência de que somente

a “carne ressuscitada” alcançasse pleno valor.

Rahner, por sua vez, ao inverter o ponto de partida: falar de Deus não a partir dele,

que é o objeto inacessível de estudo da teologia, mas sim a partir de Jesus de Nazaré e da

condição humana como tal; construiu toda uma cristologia ascendente, em que o

conhecimento de Deus só é dado na “carne”. A postura de Rahner, sem ferir em nada o dogma

da encarnação, confere ao “Jesus-carne” a primazia de auto-expressão de Deus ao humano. E,

por ele, o pleno acesso ao Deus Absoluto, não nas alturas, mas na finitude do contingente

eterno do Filho encarnado. A dimensão do mistério afasta toda e qualquer pretensão de

solução e concede ao humano um lugar nunca dito.

Em síntese, a interpretação do conceito de “carne” foi sempre caracterizada por

elementos explícitos ou implícitos de seu período; foi sempre diferenciada, sem ser

automaticamente oposta a outros pensamentos e interpretações. Tal marca assinala o quanto

que a palavra do evangelho consegue com sua polissemia guardar o mistério e fazer saltar aos

olhos uma nova palavra, dada na limitação do humano. Após essas incursões interpretativas,

cabe, agora, analisar o termo “carne” no interior mesmo da Sagrada Escritura, explicitando

como tal conceito é apresentado no judaísmo, no helenismo-cristão e no contexto mesmo do

Evangelho segundo João.

CAPÍTULO II: “JESUS-CARNE” EM Jo 1,14a

Após apresentar o status quaestionis do termo “carne” citado em João,

procuraremos agora estudar como o mesmo é tratado nas Escrituras judaicas e cristãs. Numa

primeira seção, faz-se a análise da palavra “carne” no AT. As expressões hebraicas rf'B'

(bāśār) e raev.. (sheēr) denotam a realidade humana na sua complexidade. A

compreensão dos vocábulos em seu universo de significação tem por finalidade evidenciar

quais seriam, originalmente, os sentidos a eles atribuídos e que podem ter influenciado na

compreensão do termo “carne” em Jo 1,14a. Mostraremos, ainda, como os vocábulos

hebraicos rf'B' e raev.. foram assimilados com grande liberdade no universo grego pela

LXX.

Na segunda parte do capítulo, para depois relevar melhor o sentido joanino,

contemplaremos o vocábulo no Corpus Paulinum. Três tarefas foram realizadas: uma de

minimamente propor como Paulo compreendia o termo sa,rx (sárx); a outra de exemplificar

e refletir sobre duas passagens em que Paulo menciona o termo sa,rx como referência à

pessoa de Jesus; a terceira, uma breve exposição sobre o antagonismo “carne” e “espírito”,

“viver segundo a carne” e “viver segundo o Espírito”.

A terceira parte do capítulo detém-se no v. 14a do Prólogo Joanino e procura

sondar o significado de sa,rx a partir de um estudo do termo em si, da sua significação no

conjunto do v. e na associação com outras ocorrências que se referem a Jesus (Jo 6).

Acreditamos que João compreende a realidade do termo sa,rx de maneira muito próxima do

AT e sem considerações pejorativas. As outras passagens nas quais o vocábulo ocorre e que

não se referem a Jesus também foram analisadas e servem como elemento comparativo.

Na continuidade da pesquisa sobre sa,rx no v. 14a, fizemos uma aproximação do

vocábulo com o termo “humano” mencionado algumas vezes como identificador de Jesus.

Juntamente com essa reflexão, procuramos ressaltar o quanto a leitura simplista que frisa a

humanidade de Jesus a partir de algumas ações (comer, beber, cansar-se, chorar, sofrer etc.)

negligencia o aspecto mais ressaltado no texto, que é o de uma resistência à divindade de

Jesus. João preocupa-se com a questão da humanidade, mas não parece fazer isso por sentir

ameaças da parte dos que pregavam apenas a divindade. Propomos, ainda, nessa terceira

parte, uma análise da teologia do envio em João e da contribuição que a afirmação de Jo

1,14a oferece para a pesquisa do Jesus histórico.

Na última parte deste capítulo, são verificadas as ocorrências do termo “carne” nas

Epístolas de João. Das três menções, duas falam do Cristo. Há de se comprovar nessas duas

menções que o termo “carne” parece ser um elemento fundamental da doutrina a ser

anunciada e confessada pela comunidade cristã. Além de princípio cristológico, o afirmar

“Jesus-carne” explicita uma incidência na ética cristã.

Não tivemos aqui a pretensão de abarcar todas as ocorrências do termo “carne” nas

Escrituras. Não abordamos as menções do termo nos sinópticos, em outras Cartas Católicas

nem no Apocalipse; contudo acreditamos que as passagens analisadas serão suficientes para a

elaboração do significado de “carne” em Jo 1,14a.

1 – O termo “carne” no Antigo Testamento

Nesta primeira seção vamos analisar o termo “carne” no contexto

veterotestamentário, pois há uma grande incidência da compreensão judaica do vocábulo no

pensamento joanino.

No que diz respeito a este momento da pesquisa, pode-se afirmar que o contexto

amplo é todo o AT, enquanto formulação escrita de uma palavra revelada em linguagem

humana, no contexto histórico e comunitário de um povo, ao qual se pode ter acesso parcial

pela leitura da Tanak. Já o contexto imediato é a relação mais próxima do termo analisado no

conjunto que o circunscreve, ou seja, sua densidade semântica e teológica na relação com a

perícope ou versículo em particular em que se localiza.

57

No AT, embora se encontrem somente as expressões rf'B' e raev.., há uma

diversidade de significados para o vocábulo “carne”, alternando sempre suas implicações com

o ser humano e com os animais, portanto usado exclusivamente como referência à criatura,

posto que “carne” não é utilizado para se referir a divindade1.

1.1 – rf'B'

1.1.1 – Sentido genérico de rf'B'

De acordo com Baumgärtel2, a etimologia de rf'B' liga-se a três grupos

lingüísticos, a saber: a) Árabe: basǎr, no seu sentido mais primitivo, significa pele, e, em

sentido amplo, designa o(s) homem(ns), o gênero humano; b) Acádico: bišru significa carne

e sangue; c) Ugarítico: bšr significa carne.

Segundo Oswalt3, há no texto hebraico do AT 273 ocorrências do vocábulo rf'B', sendo que 153 apresentam-se na Torah. Daniel Lys4 complementa essa informação ao

precisar que 270 ocorrências estão em hebraico e as demais em aramaico. Hans Wolff5 ainda

afirma que 104 das 273 ocorrências de rf'B' referem-se a animais.

Enquanto designação de “carne”, ou seja, componente físico, composto de órgãos,

músculos, vísceras etc., rf'B' relaciona-se a dois pólos: o animal e o humano, exprimindo

aquilo que é comum aos dois. O sentido mais restrito do termo abre-se também, como é bem

próprio do vocabulário hebraico, para outras significações, como se verá a seguir.

1.1.2 – rf'B' – “carne animal” para alimentação

Na vinculação ao mundo animal, rf'B' está, quase sempre, relacionado com

alimentação e práticas sacrificais, bem como a questões de pureza ou impureza. Em Ez 4,14,

1 Cf. JÓZEFCZUK, Matias. “Conduzi-vos pelo Espírito” (Gl 5,16): Ética cristã em Gálatas. Belo Horizonte: CES, 1999. Dissertação de Mestrado. p. 32.2 Cf. BAUMGÄRTEL, Friedrich. Flesh in the Old Testament. In: TDNT, p. 105.3 Cf. OSWALT, John N. rf'B'. Bāśār. Carne (r. pele, parente, corpo). In: DITAT, p. 227. 4 Cf. LYS, Daniel. L´arrière-plan et les Connotations vétérotestamentaires de sarx et de soma. Vetus Testamentum, Leiden, v. 36, n. 2, p. 170, abr./jun. 1986 (apud JÓZEFCZUK, op.cit., p. 32).5 Cf. WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola,1975. p. 43.

58

ocorre a expressão lWGPi rf;B., que significa “carne abominável”. O profeta Ezequiel, por

meio de uma ação simbólica, propõe um diálogo com Deus. O contexto (todo o cap. 4 e o 5)

fala do cerco a Jerusalém e do desespero causado pela fome e sede, ocasionando a tomada de

alimentos de forma indiscriminada, contrariando a Lei e perdendo-se a distinção entre sagrado

e profano6. O comer “carne abominável” é, nesse caso, a confirmação da falta de

discernimento do povo, um indício de sua decadência religiosa. Acerca do uso do termo em

Ez 4,14, John Taylor faz o seguinte comentário:

Os dois tipos de carne imunda mencionados no v.14, o animal morto de si mesmo e a carne do animal dilacerado pelas feras, eram proibidos porque o sangue não poderia ter sido drenado corretamente (ver Lv 17,11ss; Dt 12,16). Os regulamentos acham-se em Êxodo 22,31; Lv 22,8 e Dt 14,21. A carne abominável (hebraico: Piggûl) refere-se, em Lv, à carne sacrificada que se tornou imunda por causa de ter sido conservada por três dias sem ser comida (Lv 7,18; 19,7), mas em Is 65,4 é usada em paralelo com a carne de porco, como sendo alguma coisa inerentemente imunda7.

Oposta à “carne abominável”, em Jr 11,15, encontra-se vd<qo-rf;b., “carne

sagrada”, oferecida em sacrifício. O animal oferecido em um “sacrifício de comunhão”8 era

posteriormente consumido; tendo, além do aspecto religioso, uma conotação de banquete com

comida santa. O oferente que retornava ao seu clã, levando parte do sacrifício, propiciava aos

seus familiares e convidados uma participação (comunhão) no que foi oferecido.

Como os animais têm “carne”, o texto hebraico, algumas vezes, refere-se a eles,

como se percebe, simplesmente como “carne”, suprimindo a especificação do animal.

1.1.3 – rf'B' – “carne” do ser humano

No que se refere ao ser humano, o vocábulo é utilizado, por vezes, como sinônimo

de pele ou relacionado a ela. A forma composta Arf'B.-rA[ mencionada em Lv 13,2ss

significa “pele de carne” e o texto retrata o exame para diagnóstico da lepra. Nesse mesmo 6 Cf. ALONSO SCHÖKEL, Luis; SICRE DIAZ, José Luís. Profetas. São Paulo: Paulinas, 1991. v. II, p. 716.7 TAYLOR, John B. Ezequiel. São Paulo: Vida Nova, 1989. p. 78 [grifo do autor]. – Ao associar Ez 4,14 a Is 65,4 (“Que habita entre as sepulturas e passa as noites junto aos lugares secretos; come carne de porco e tem caldo de coisas abomináveis nos seus vasos.”), Taylor demonstra bem o peso que a expressão adquire e como também se vincula aos contatos de judeus com práticas estrangeiras que demonstram a degradação religiosa. 8 Cf. MONLOUBOU, L. O Antigo Testamento à mesa. In: MARCHADOUR, Alain et al. A eucaristia na Bíblia. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1985. p. 12-13. – Monloubou afirma que o “sacrifício de comunhão” tem por característica, além da imolação da vítima, a partilha das partes do sacrifício entre Deus (parte queimada sobre o altar), o sacerdote e o oferente. – Também: VAUX, Roland de. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Teológica, 2003. p. 455-456. Roland de Vaux também comenta esse “sacrifício de comunhão”, mostrando suas variações de forma e matéria, mas sempre tendo como marca o fato de se consumir em família parte do que foi oferecido.

59

capítulo do livro do Levítico, apresenta-se a forma composta yx; rf'B' que pode ser

traduzida como “carne viva”. A prescrição do Lv objetiva, além do diagnóstico da doença,

também determinar a condição de puro ou impuro9. Essa “carne viva” pode ser também

qualificada como uma anomalia que, quando notada, terá suas implicações religiosas. Assim,

o significado do termo ultrapassa o sentido estrito.

Outro aspecto peculiar é que, em algumas situações, as ocorrências de rf'B' estão vinculadas à prática da circuncisão. Em Gn 17,11s, diz-se tol;r>[' rf;B., ou seja, a

“carne da incircuncisão”; esta, quando retirada, permite ao homem expressar sua pertença a

Deus10. O elemento novo aqui é justamente o fato de que a incisão na “carne”, pele, ganha

uma dimensão de relação com Deus, pois é nela que se estabelece uma vinculação ao sagrado.

Também em Lv 12,3, aparece o vocábulo “carne” relacionado à circuncisão. Ainda em

Ez 44,7.9, há uma associação de “incircuncisão da carne” como evidência de “incircuncisão

do coração” (rf'B' lr,[, // ble lr,[,)11; dessa forma, o não ser marcado na “carne” revela

também a distância do ser humano em relação a Deus.

9 Cf. BROWNE, Stanley George. Lepra na Bíblia: estigma e realidade. Viçosa, MG: Ultimato, 2003. p. 24.10 Cf. KIDNER, Derek. Gênesis: introdução e comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1991. p. 121. – Kidner comenta que “a circuncisão mesma era largamente praticada no Oriente Próximo. Os filisteus do oeste eram considerados estranhos por não praticá-la. A característica nova era seu novo significado – assinalar o limiar, não da virilidade (como os árabes modernos), mas da aliança; daí sua precoce ministração (v.12)”.11 Cf. ALONSO SCHÖKEL & SICRE DIAZ, Profetas, v. II, p. 873. – Os autores comentam que a menção a circuncisão em Ez 44,7.9 está intimamente ligada ao exclusivismo moral e religioso do resto de Israel. Ao tratar da incircuncisão, o profeta exclui os estrangeiros e reafirma a identidade de seu povo.

60

Alguns paralelismos de rf'B' com outros membros do corpo ampliam o sentido

primeiro do vocábulo, dando a idéia de completude, de totalidade, de integração. Ilustram

bem esse tipo de ampliação os paralelos de rf'B' com ~c,[, (ossos): Gn 2,2312; Sl 38,4; Jó

2,5; 33,21; Lm 3,4; Pr 14,30. Com esses paralelos o autor bíblico objetiva compreender e

afirmar a totalidade da pessoa. No exemplo abaixo, a totalidade é expressa pelos componentes

“carne” e “ossos” e concorda com a expressão “não existe”, que também marca totalidade.

Além disso, há uma correlação nas causas: “teu furor”// “meu pecado”13.

Ex.: Sl 38,4

yrIf'b.Bi ~tom.-!yae

Não há parte ilesa em minha carne

^m,[.z: ynEP.mi

por causa do teu furor;

ym;c'[]B; ~Alv'-!yaee

nem há paz em meus ossos

ytiaJ''x; ynEP.mi

por causa do meu pecado.

Em determinadas passagens rf'B' significa “cadáver, corpo morto” 14. No episódio

em que se narra a maldição do filisteu Golias contra Davi (1Sm 17,44), o gigante, certo da

vitória, afirma que atirará a “carne” de Davi às aves do céu e às feras do campo. Em 2Rs 9,36,

encontra-se o comentário de Jeú ao receber a notícia de que não foi possível sepultar Jezabel.

Jeú recorda a profecia de Elias sobre Jezabel (1Rs 21,23) e diz “carne” no sentido de cadáver.

12 Cf. ADINOLFI, Marco. L’uomo e la donna in Gen 1-3. In: GENNARO, G. de (cura). L’antropologia bíblica. Napoli: Dehoniane, 1981. p. 108-109. – Em Gn 2,23, segundo Adinolfi, o autor afirma a relação de parentela existente entre Adão e Eva, pois os dois formam uma só carne, ou ainda uma extensão de seu ser. – Também: LOSS, Nicolo M. La dottrina antropológica di Genesi 1-11. In: GENNARO, op.cit., p. 185. Loss interpreta a expressão “uma só carne” de Gn 2,23 como significando “uma só pessoa”. 13 Cf. ALONSO SCHÖKEL, Luís; CARNITI, Cecília. Salmos: salmos 1-72 – Tradução, introdução e comentário. São Paulo: Paulus, 1996. v. I, p. 549-550.14 Cf. VAUX, op.cit., p. 80-86. – Roland de Vaux apresenta, de forma bastante detalhada, os cuidados com o cadáver. Embora o tocar o cadáver fosse ato que tornava a pessoa impura (Lv 21,1-4.11; Nm 6,6; 19,11-16; Ag 2,13), há uma preocupação com o corpo, a carne humana, por assim dizer, que sugere a importância dada à mesma. Como a distinção entre alma e corpo é estranha à mentalidade hebraica, a morte não é compreendida como uma separação desses elementos. O morto é considerado uma “alma morta”; assim, enquanto subsiste parte do corpo, subsiste também parte da alma. O Antigo Testamento considera como pior maldição o deixar um cadáver sem sepultura, permitindo que seja devorado pelos abutres e outros animais (1Rs 14,11; Jr 16,4; 22,19; Ez 29,5). Também considera como castigo o não ser sepultado no túmulo da família (1Rs 13,21-22), o que revela o valor da relação familiar e dos vínculos por ela estabelecidos através da “carne”.

61

1.1.4 – rf'B'-lK' (kol- bāśār) – “toda carne”

São numerosas as citações nas quais a idéia de “toda carne” é utilizada para

significar todo ser vivente, particularmente o humano, e até mesmo a sua totalidade, enquanto

raça ou nação. Nesse sentido, Jr 25,31c apresenta rf'B'-lK' como “todos os homens” ou

“humanidade”. Em Jr 32,27, ocorre outra forma rf'B'-lK' yhel{a,, que, literalmente,

seria o “Deus de toda carne” e que quer significar o “Deus de todos os humanos”.

Em Nm 16,22; 27,16, a idéia da onipotência divina é apresentada com o acréscimo

de mais um termo. Nas duas passagens, encontra-se rf'B'-lk;'. txoWrh' yhel{a/,

“Deus é o Senhor dos espíritos de toda carne”. Reflete-se aqui a idéia do espírito insuflado no

humano. Não há uma dissociação entre “carne” e “espírito”, mas sim a afirmação de que o ser

humano é uma “carne animada”, viva, ser vivente.

Outro significado dado à expressão rf'B'-lK' é o de “população do país”,

“nação”. Em Ez 21,4.9.10, o profeta diz que Deus desembainhou sua espada contra todo

mortal do Sul ao Norte. Os pontos cardeais completam a idéia de conjunto não só geográfico,

mas também étnico e religioso15, reforçando a idéia de totalidade.

Por fim, em Jl 3,1, rf'B'-lK' refere-se à assembléia cultual de Israel16. Numa

possível releitura de Nm 11, o profeta afirma que Deus derramará seu espírito sobre todos. O

teor da perícope é primeiramente o do contexto do próprio Israel como nação eleita, mas há

um sinal de abertura universal pela expressão “toda carne”. Será esse universalismo da

concessão do dom que permitirá à comunidade cristã utilizar o texto de Joel em At 2,17-2117.

Também no Sl 65,3 está presente a idéia de coletividade religiosa aberta à universalidade.

1.1.5 – rf'B' – relação de parentesco

Aparecem também algumas expressões nas quais rf'B' explicita o tipo de relação

de uma pessoa para com outra. Ser “carne da mesma carne” (yrIf'B.mi rf'B'), como se

15 Cf. ALONSO SCHÖKEL & SICRE DIAZ, Profetas, v. II, p. 781.16 Cf. CANIZZO, Antonio. The corporate personality. In: GENNARO, op.cit., p. 601. – Antonio Cannizzo afirma que é comum na Bíblia uma identificação do indivíduo com o grupo, de tal forma que passa a existir uma personalidade corporativa. Não há uma disputa de existência entre o indivíduo e o grupo, pois o primeiro sente-se legitimamente representado e incluído naquele espaço corporativo. O indivíduo e o grupo passam a formar uma só realidade.17 Cf. ALONSO SCHÖKEL & SICRE DIAZ, Profetas, v. II, p. 974-975.

62

encontra em Gn 2,23, estabelece vínculo e serve como elemento de identificação no contexto

do clã. Expressa ainda a idéia de participar da mesma condição, ou seja, ser da “mesma

carne”, da mesma finitude.

Quando o texto hebraico quer reforçar ainda mais um grau de parentesco adiciona

o termo sangue a rf'B'. Assim, os dois elementos asseguram o composto humano, a finitude

e a vitalidade da pessoa como o que é semelhante a outro. É o caso da expressão “do meu

sangue e da minha carne” (yrif'b.W ymic.[;) ou “é nossa carne e nosso sangue”

(Wnref'B. Wnyxia') que podem ser encontradas em: Gn 29,14; 37,27; 2 Sm 5,1;

19,13s; Jz 9,2; 1Cr 11,118. Numa sociedade como a israelita, as genealogias têm papel

fundamental para a identificação da pessoa e sua participação na história do povo. A menção

aos pais, à “carne” e ao “sangue” de origem, seja no sentido imediato, seja na vinculação mais

remota, permite a integração social e a identidade religiosa.

A forma Arf'B. raev. indica um parentesco mais próximo e é usada em Lv

18,6 para a proibição do incesto19. Já em Lv 25,49, ela indica a lei do resgate. Nas duas

ocorrências, a expressão significa parentela. Se a primeira delimita e ordena a vida familiar e

sexual, a segunda ocorrência assegura, pelo menos formalmente, a defesa do parente que se

encontra escravizado.

1.1.6 – rf'B' – fragilidade e condição mortal do humano

Após a incursão pelos diversos e possíveis significados de rf'B', resta proceder à

análise de ocorrências em que significa a condição de impotência do humano, ou seja, sua

criaturalidade finita e perecível. Importa insistir que no pensamento judaico não há cisão entre

o ser da pessoa e seus componentes, nem tampouco entre os próprios componentes. A idéia é

sempre de totalidade.

Para o judaísmo, só Deus é eterno. O humano é visto como carente de domínio até

sobre seu próprio hálito, pois é Deus quem cria a pessoa e lhe concede a cada dia o existir

(Cf. Jó 27,3; Sl 104,29; 139,13). Os autores têm consciência da fragilidade humana e a

18 Por vezes as traduções apresentam “da minha carne e dos meus ossos”.19 Cf. HARRISON, Roland K. Levítico: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1996. p. 171-172. Segundo Harrison, as proibições apresentadas em Lv 18,6ss abordam seis graus de parentesco de consangüinidade (vv. 7.9.10.11.12.13) e oito de afinidade (vv. 8.14.15.16.17.18); determinam, então, que a proximidade de parentesco é um impedimento às relações sexuais.

63

expressam como recordação de que toda vida humana ordena-se para Deus20. Em Is 40,5-721,

encontra-se a comparação da “carne”, ser humano, com a erva que não tem domínio e

segurança sobre si mesma, podendo, a qualquer momento, experimentar o termo de sua vida.

A mesma recordação apresenta-se também no Sl 78,39, que diz que o ser humano,

“o de carne”, não passa de um alento fugaz. Esse v. do Sl 78 encontra paralelos em Ecl 3,19-

21, que afirma que o ser humano ao perder o alento voltará ao pó, e em Gn 6,3, que menciona

que o motivo do alento de Deus não permanecer no ser humano é justamente o fato dessa

criatura ser “carne”22. A ameaça da ira divina na narrativa do dilúvio (Cf. Gn 6,13) demonstra

que essa finitude coloca o humano em condição de igualdade com os animais; porém, ao

humano ainda é possível a conversão.

O fato de ser mortal enquadra o humano entre o nascimento, em que depende do

Criador, e sua morte, em que também é dependente de Deus. Esse arco de vida, que pode ser

estendido ou reduzido, é, no espaço e no tempo, ocasião do humano perceber-se como

limitado e que seu poder jamais pode ser comparado ao de Deus. Em 2Cr 32,8, tratando da

pretensão humana de Senaquerib, o autor hebraico coloca na boca de Ezequias a profissão de

fé no poderio de Deus. Essa confiança em Deus também gera no salmista uma certeza da

impotência humana como se percebe no Sl 56,5c, no qual o termo rf'B' é sinônimo de

mortal: “Que poderia fazer-me um mortal?” (yli rf'B' hf,[]Y:-hm;)).

20 Cf. MARQUES, Valdir. “EIKÓN” em Paulo: investigação teológica e bíblica à luz da LXX. Roma: PUG, 1985. Dissertatio ad Doctoratum. v. 2, p. 638. Diz Marques: “ O gênero humano não é posto no mundo criado sem um ponto de referência: todos os demais gêneros dos seres vivos são criados ‘segundo seus gêneros’ . E o Gênero Humano deve ser criado segundo um gênero. E tal ‘gênero’ não se encontra no mundo criado, mas no Criador. O Gênero Humano portanto é o único gênero terrestre que na sua definição é descrito como semelhante com um ‘gênero’ celeste, isto é, Deus e os seres que consulta”.21 Cf. RIDDERBOS, J. Isaías. São Paulo: Vida Nova, 1995. p. 317. – A propósito de Is 40,5-7 o autor afirma: “O profeta tece considerações a respeito da metáfora da erva, dizendo que a erva se seca e a flor murcha e cai quando sopra sobre elas o hálito do Senhor (cf. Sl 103,16). Esta declaração é uma referência ao vento que é, antropomorficamente, chamado de hálito do Senhor, como algures o trovão é chamado de Sua voz; e o raio, de Sua língua (30,27). Essas figuras pretendem especialmente expressar o poder e a majestade do Deus de Israel em contraste com a fragilidade humana”.22 Cf. ALONSO SCHÖKEL, Luís; CARNITI, Cecília. Salmos: salmos 73-150 – Tradução, introdução e comentário. São Paulo: Paulus, 1998. v. II, p. 1013.

A “carne”, como sinônimo de ser humano, é no Sl 56 afirmação da fraqueza, da

caducidade da criatura23. Em Jr 17,5-13, são enumeradas as ilusórias confianças humanas em

contraposição à confiança no Senhor, que é a característica do profeta. No v. 5: “Assim diz o

Senhor: ‘Maldito seja quem confia num humano e busca apoio na carne, afastando do Senhor

seu coração’”. Há, como se vê, uma constante crítica à pretensão humana de confiar na sua

condição carnal, já que essa é perecível.

Quando o texto hebraico utiliza rf'B', não pretende afirmar oposição a vp<n< ;

pelo contrário, a combinação dos dois permite compreender a totalidade da existência

humana. Aos dois pode-se, ainda, acrescentar ble e x;Wr, formando não um quadrífido,

mas sim uma unidade. Alento ou espírito, coração ou mente, carne ou corpo, necessidade ou

desejo – esse aglomerado distinto apenas didaticamente, mas pensado sempre em perfeita

harmonia e jamais em oposição – é a indicação do ser humano com tudo que lhe é possível 24.

Ao falar rf'B', o autor hebraico afirma o ser humano como tal, a sua existência finita, a sua

condição mortal, o seu ser perecível, sua total distinção e dependência em relação ao Criador.

1.2 – raev. (sheēr)

Segundo Gary Cohen25, tem-se apenas 16 ocorrências dessa expressão no texto

hebraico. Sua etimologia, como em rf'B', aponta para os mesmos grupos lingüísticos: a)

árabe: ta’r = sangue, a vingança de sangue. Nesse caso, estaria mais associada à “carne

sangrenta” distinta da outra mais superficial e próxima à pele; b) acádico: širu = carne; c)

ugarítico: šurt = carne26.

No sentido próprio de “carne”, raev. não é utilizada para designar a “carne”

humana, mas somente a dos animais enquanto alimento (Ex 21,10; Sl 78,20.27). Já como

designação de relação de parentesco, encontra-se raev. em Lv 18,12s; 25,49; permanecendo

o mesmo sentido apresentado no item 1.1.5. Outra forma presente em Lv 21,2 e Nm 27,11 é:

seu parente mais próximo (wyl'ae broQ'h; Araev.).

23 Cf. ALONSO SCHÖKEL & CARNITI, Salmos, v. I, p. 742. 24 Cf. BAUMERT, Norbert. Mulher e homem em Paulo: superação de um mal-entendido. São Paulo: Loyola, 1999. p. 233-240.25 Cf. COHEN, Gary G. raev.. In: DITAT, p. 1508. 26 Cf. BAUMGÄRTEL, op.cit., p. 107.

Da combinação de raev. com coração no Sl 73,26, tem-se ybib'l.W

yriiaev. (minha carne e meu coração), que dá ao vocábulo uma idéia de completude. É

toda a pessoa do orante, todo o seu ser, que proclama Deus como sua única segurança.

Num sentido figurado, pode-se tomar Mq 3,3, em que se diz que o opressor come

a “carne do povo”. Nesse v. a expressão utilizada yMi[; raev. está diretamente ligada à

idéia de descarnar (~t'Amc.[;) apresentada no v. 2. Essa expressão “carne do povo”, além

do sentido figurado, mostra também a situação do grupo ameaçado. O profeta apresenta um

quadro de violência e uma imagem canibalesca da relação do povo com suas lideranças27.

Fica evidente que raev. é uma expressão que, embora designe “carne”, não é

sinônimo de existência humana na sua totalidade e caráter perecível, como é o caso de rf'B'. Embora de menor relevância para a compreensão de “carne” em Jo 1,14a, raev. ajuda a

compreender que a referência ao humano quase sempre passa pela designação de “ser de

carne”.

1.3 – rf'B' e raev. na interpretação da LXX

O pensamento judaico articula-se de forma distinta do grego. Sendo assim, as duas

expressões hebraicas não puderam ser traduzidas para o grego por apenas duas outras

correspondentes. A LXX, enquanto obra de tradução, revela-se uma obra muito parecida ao

Targum, pois combina a tradução com um “comentário”, caracterizado pela interferência no

texto hebraico, pela modificação de termos por outros de sentido distinto do original, por

acréscimos, glosas e omissões28. A helenização dos termos rf'B' e raev. pela LXX

provoca não somente mudanças na leitura como também na eventual interpretação dos seus

significados.

Diversos são os termos utilizados pela LXX na tradução de rf'B'. Baumgärtel

enumera quatro: a) sa,rx (ocorre 145 vezes); b) kre,aj (ocorre 79 vezes); c) sw/ma (ocorre

23 vezes); d) crw,j (ocorre 14 vezes)29. Sendo o vocabulário grego mais elaborado pode-se

27 Cf. ALONSO SCHÖKEL & SICRE DIAZ, Profetas, v. II, p. 1083.28 Cf. TREBOLLE BARRERA, Julio. A Bíblia judaica e a Bíblia cristã: introdução à história da Bíblia. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 521.29 Cf. BAUMGÄRTEL, op.cit., p.108.

ainda encontrar outros vocábulos que substituíram o termo hebraico.

Em Jó 12,10, pode-se perceber a diferença na tradução de rf'B' do texto hebraico

para a LXX:

Texto hebraico:

`vyai-rf;B.-lK' x;Wrw> yx''-lK vp,n< Ady"B. rv<a:Em sua mão está a respiração dos viventes e o espírito de toda carne do homem.

Texto da LXX:Eiv mh. evn ceiri. auvtou/ yuch. pa,ntwn tw/n zw,ntwn kai. pneu/ma panto.j avnqrw,pou. Em sua mão está a alma de todo ser vivo e o espírito de todo homem.

O termo rf'B' foi totalmente absorvido por a;nqrwpoj (pessoa humana), o que

do ponto de vista da antropologia pode ser um agravante, pois parece anular a idéia de

integração da criatura, caracterizada no v. como “espírito de carne”. A formulação grega, ao

substituir o termo “carne”, consegue traduzir, na intenção, a totalidade do humano, mas,

permite também compreender a;nqrwpoj como o humano na sua existência de oposição

entre “espírito” e “carne”.

Um outro exemplo pode ser tomado de Is 58,7 e ilustra bem a alteração de rf'B'. Nesse v. o termo ^r>f'B.mi é traduzido por spe,rmato,j. O termo hebraico abarca a

idéia de parentela, mas também sublinha a fragilidade humana comum a todos. De maneira

diversa, o termo grego, literalmente, diz “semente”, sugerindo quase que somente a idéia de

parentela e de forma bastante imediata (laços de filiação).

Ainda como amostra da tradução grega de rf'B', pode-se tomar Pr 14,30:

“Coração sossegado é vida dos corpos, a inveja é cárie dos ossos”. O texto hebraico utiliza a

expressão ~yrIf'b. yYEx; (vida dos corpos), enquanto a LXX diz prau<qumoj avnh.r kardi,aj (um homem de bom coração)30. O original hebraico afirma que um

“coração sossegado é vida dos corpos”, ou seja, reflete o sentido psicológico da integração,

aquilo que o ser humano sente no seu íntimo tem incidência na sua vida; afirmando, assim, a

unidade do ser contra a fragmentação gerada pela inveja. Um coração sem cobiça é garantia

de vida longa. O texto grego acaba por sugerir mais uma bondade do coração, adjetivando o

substantivo e distanciando-se do sentido de unidade.

30 Cf. BAUMGÄRTEL, op.cit., p.108.

Outro elemento que parece estar subjacente na tradução é o de uma compreensão

do cosmos como construído em duas esferas, a dos “espíritos” e a da “carne”. Embora seja um

dualismo ético, pois ressalta a distinção entre o Criador e as criaturas, acarretará também uma

visão do humano como ser de “espírito” e de “carne”. Um bom exemplo disso encontra-se em

Nm 16,22 (// Nm 27,16). Observe:

Texto hebraico:

rf'B'-lk'l. txoWrh' yhel{a/Deus dos espíritos de toda carne.

Texto da LXX:

qeo.j tw/n pneuma,twn kai. pa,shj sarko,j

Deus dos espíritos e de toda carne.

Para o autor hebraico afirmar que o Senhor é Deus de todos os viventes, usando

para isso as expressões x;Wr e rf'B', não tem por finalidade distinguir entre o que é espírito

e o que é carne; mas sim afirmar a relação que a criatura estabelece com seu Criador, que é o

Senhor de sua existência. Na tradução da LXX, há uma cisão, permitindo interpretar que Deus

é Senhor de um e de outro elemento, mas que os dois existem dissociados.

Quando se usa a distinção entre pneu/ma, sa,rx e sw/ma, característica da

filosofia e cultura helênica, a distância em relação ao universo hebraico é ainda mais

prejudicial, pois nele não há uma palavra específica para designar corpo. Mesmo quando se

fala das diversas partes do corpo, há sempre a idéia de um todo psicofísico. Como fica

evidente, o trabalho de exegese dos LXX resultou, por vezes, em alterações, não sem

conseqüências para a antropologia.

Quanto ao termo raev., as equivalências gregas são: oivkei/oj (ocorre 7

vezes); sa,rx (ocorre 5 vezes); sw/ma (ocorre 4 vezes)31. Apenas dois exemplos de outras

traduções: a) em Ex 21,10, ta. de,onta, que significa “o necessário”, substituiu o

vocábulo hebraico; b) no Sl 78,19, usou-se tra,pezan32, que quer dizer “mesa” quando o

texto hebraico falava de carne e remetia à história de Israel no deserto (Nm 11,5).

31 Cf. BAUMGÄRTEL, op.cit., p.108.32 Cf. ALONSO SCHÖKEL & CARNITI, Salmos, v. II, p. 1010.

1.4 – Conclusões

Com esta breve reflexão sobre o termo “carne” na LXX, concluímos o estudo

proposto sobre o significado do mesmo na perspectiva judaica. Ficou evidente que a

polissemia do vocábulo “carne” permite diversas aplicações, bem como interpretações. É

irrefutável sua relação com a situação de criatura, numa posição de dependência dos “de

carne” em relação a Deus.

O ser humano estabelecido na terra é uma unidade psicofísica, não sendo a

“carne”, em hipótese alguma, considerada uma parte totalmente distinta do ser; ao contrário, o

termo “carne” é usado para designar a existência total da pessoa, o seu ser em toda a

complexidade das possibilidades do agir. A “carne” não é um mal ou um obstáculo para o ser

humano; ela é, antes de tudo, espaço sagrado, que mesmo estando numa situação distinta da

de Deus, serve para se manifestar a fé (circuncisão; pureza das carnes para alimento).

Esse território sagrado, no caso do humano, só existe graças ao “hálito” de Deus.

A idéia de que o ser humano é uma “carne animada” ajuda a compreender a totalidade do seu

ser. Talvez, aqui, nem se possa falar de indissociabilidade de seus elementos, pois o humano

só pode ser compreendido como “carne animada” e, mesmo na sua morte, estará relacionado à

esse pensamento.

“Carne”, no AT, quando aplicada ao ser humano, é a pessoa na sua inteireza,

totalidade; mas também na sua fragilidade, inconstância, mortalidade, naquilo que a iguala

com outras pessoas e, por vezes, até com os animais. É a percepção de que o ser humano é,

por ele mesmo, incapaz de sobreviver e se tornar imortal. Esse aspecto terá grande influência

sobre o pensamento joanino e na afirmação evangélica de Jo 1,14a. No que diz respeito ao

parentesco, a palavra “carne” propõe uma vinculação familiar, extensiva ao conjunto de

membros da mesma consangüinidade e, até, da mesma fé.

Quanto às ocorrências de “carne” na LXX, nota-se certa discrepância nas

traduções que, objetivando aproximar o texto hebraico aos de fala grega, terminam por

dissolver o significado da expressão. Os termos gregos utilizados são muito específicos,

quando, na verdade, o texto hebraico, nas ocorrências de “carne”, é extremamente abrangente

e vinculado freqüentemente ao aspecto religioso. Além disso, a LXX, permite entrever certo

antagonismo entre “carne” e “espírito” que não era presente na Escritura.

Após percorrer esse caminho, abre-se espaço, pois, para uma leitura do termo no

Novo Testamento. Para efeito de comparação, tomamos os escritos paulinos e buscamos

definir “carne” no aspecto mais geral e, especificamente, na aplicação à pessoa de Jesus.

Talvez, a definição de “carne” em Paulo, sirva para banir alguns preconceitos em relação ao

próprio termo e sua interpretação pejorativa supostamente baseada no Apóstolo.

2 – Carne no Corpus Paulinum

Em todo o NT encontram-se 147 ocorrências do vocábulo “carne”, das quais 91 no

Corpus Paulinum33. Paulo levou para o campo teológico um termo do universo antropológico,

tornando-o fundamental para a compreensão de seus escritos34. Dada a complexidade das

ocorrências de sa,rx no Corpus Paulinum, é imprescindível levar sempre em conta o

contexto imediato no qual o termo é utilizado35. Paulo o usa de forma bastante livre, de acordo

com seus destinatários e com o objetivo que deseja alcançar, oscilando entre seu significado

mais estrito e o mais amplo possível36.

Devido ao caráter bastante restrito desta dissertação – analisar o vocábulo sa,rx na sua aplicação a Jesus (Jo 1,14a) –, não é analisado o termo sw/ma37. Embora no contexto

paulino fosse interessante a aproximação dos dois vocábulos, é possível entender o sentido do

primeiro com os dados abaixo apresentados. Como não se pretende estabelecer uma

33 Cf. DUNN, James D.G. A teologia do apóstolo Paulo. São Paulo: Paulus, 2003. p. 93. – Também: SEEBAS, Horst. Carne. In: DITNT. v. 1, p. 277. – JÓZEFCZUK, op.cit., p. 34. Com uma pequena alteração nos dados, Matias Józefczuk afirma 152 ocorrências de sa,rx no NT, especificamente 94 nos escritos paulinos. 34 Cf. DUNN, op.cit., p. 82. – Dunn recorda o perigo de uma conclusão precipitada a partir da constatação de utilização de elementos antropológicos na teologia paulina. Nesse aspecto, menciona Bultmann que aplicou categorias filosóficas modernas na interpretação de Paulo, abrindo veredas para Herbert Braun. Se no mestre Bultmann os elementos antropológicos permitiram afirmar que “toda afirmação sobre Deus é simultaneamente afirmação sobre o homem e vice-versa; podendo concluir, por essa razão e nesse sentido, que a teologia de Paulo é, ao mesmo tempo, antropologia”; no discípulo, elas conduziram ao pensamento de que o elemento essencial do NT é a ‘autocompreensão da fé’. – Também: BAUMERT, op.cit., p. 241. Baumert faz breve alusão a Bultmann como precursor na aplicação de conceitos modernos na interpretação de textos paulinos.35 Cf. THISELTON, Anthony C. Carne. In: DITNT, v.1, p. 281. – JEWETT, R. Paul’s antropological term: a study of their use in conflict settings. Leiden: Brill, 1971. p. 49-166. Jewett estuda o termo sa,rx levando-se em conta o contexto literário, a datação e as questões a que Paulo procurava responder.36 Cf. DUNN, op.cit., p. 93. 37 Acerca do termo sw/ma nas cartas de Paulo: STRIEDER, Inácio R. Die Bewertung der Leiblichkeit in den Hauptbriefen des Apostels Paulus und in seiner kulturwelt. Münster: Wilhelms-Universität, 1975. Inaugural-Dissertation.

comparação entre os sentidos paulino e joanino do termo sw/ma optou-se por concentrar a

reflexão apenas em torno de sa,rx.

2.1 – Sa,rx no sentido neutro ou estrito

Paulo, fariseu por formação (Cf. Fl 3,5; At 22,3), é devedor das concepções do

AT, particularmente, na sua versão grega38. Paulo é um judeu39 e pensa como tal, o que não o

impede de ser extremamente aberto ao universo cultural helenista. Pode-se afirmar, pois, que

Paulo é influenciado pelo judaísmo como também pelo helenismo.

Paulo concebe o termo sa,rx com o mesmo sentido do hebraico rf'B', ou seja, no

seu significado básico de substância carnal comum aos seres humanos e aos animais, portanto

relativa apenas às coisas criadas. Paulo usa o vocábulo como um elemento na percepção da

totalidade do ser humano40. Apenas uma única vez a palavra sa,rx é usada também para

definir a carne dos animais (1Cor 15,39). Para se referir à “carne” dos animais Paulo parece

preferir o termo kre,aj (Rm 14,21; 1Cor 8,13)41. No que se refere ao uso de sa,rx para

designar alimento, não há nenhuma implicação negativa.

2.2 – Sa,rx como parentesco ou relações de raça/etnia

Ainda calcado no sentido hebraico de rf'B', Paulo utiliza sa,rx para designar

laços familiares ou de nacionalidade. Em Rm 1,3, Paulo diz que Cristo descende de Davi

kata. sa,rka (segundo a carne)42, associando a pessoa de Jesus aos patriarcas; mostrando,

assim, a íntima ligação do Messias com a nação e cultura israelitas (Rm 9,5). Como idéia de

parentesco, Paulo reconhece a paternidade de Abraão “segundo a carne” (Rm 4,1) e sua

vinculação com a história do povo eleito. Refere-se a seu povo como o “Israel segundo a

carne” (1Cor 10,18) e coloca-se nessa mesma linhagem (Rm 9,3).

É evidente que, enquanto significação de parentesco, sa,rx não tem nenhum

sentido moral, mas sim religioso, pois no judaísmo os laços consangüíneos perpetuam a vida 38 Cf. MARQUES, op.cit., v. 1, p. 33.39 Cf. MURPHY-O’CONNOR, Jerome. Paulo: biografia crítica. São Paulo: Loyola, 2000. p. 60-63. – Também: ROBINSON, John A.T. El cuerpo: estúdio de teologia paulina. Barcelona: Ariel, 1968. p. 27-28.40 Cf. BAUMERT, op.cit., p. 233.41 Cf. ROBINSON, op.cit., p. 26. – Também a LXX fazia essa opção.42 Cf. FABRIS, Rinaldo. À Igreja de Romanos. In: ______. As Cartas de Paulo. São Paulo: Loyola, 1991. v. 1, p. 135. – Segundo Fabris, Paulo jamais aplica a Cristo a antítese “segundo a carne – segundo espírito” e em nenhum outro texto paulino encontra-se o tema da descendência davídica de Jesus.

de fé. Semelhante ao AT, o termo sa,rx ainda não figura como um termo teológico

propriamente dito; mas já se relaciona com a temática religiosa de pertença ao povo de Deus.

Nas ocorrências acima, sa,rx é apenas uma constatação de filiação no sentido amplo,

pertença e proximidade com a nação. Assim, sa,rx é termo que implica relação de um

humano com outro ou com uma coletividade.

2.3 – Sa,rx como indicativo da totalidade do ser humano, aplicada a Jesus Cristo

Paulo utiliza sa,rx, em algumas passagens, como designativo do ser humano na

sua totalidade (cf. Rm 7,18; Ef 2,15). Interessam aqui, particularmente, duas ocorrências que

dizem respeito à pessoa de Jesus. Elas traduzem com fidelidade a idéia hebraica de rf'B' ao

apresentarem o humano na sua integralidade de ser, existindo na condição mortal.

a) Rm 8,3:

To. ga.r avdu,naton tou/ no,mou evn w-| hvsqe,nei dia. th/j sarko,j(O que era impossível para a lei visto sua debilidade pela carne,

o` qeo.j to.n e`autou/ ui`o.n pe,myaj evn o`moiw,mati sarko.j a`marti,aj Deus, o seu Filho enviado em semelhança da carne do pecado,

kai. peri. a`marti,aj kate,krinen th.n a`marti,an evn th/| sarki,(pelo pecado condenou o pecado na carne;

Na primeira menção a sa,rx, Paulo aponta para a presunção dos que se confiavam

ao poder da lei e não percebiam a sua suposta confiança na força da criatura43. A carne

humana é frágil, perecível44 e, como tal, necessita estar referenciada em Deus e não em

supostos atributos sugeridos pelo cumprimento da lei e, de modo inverso, também não pode

ser a referência para a lei. A lei não tem força contra o pecado, embora pronuncie a

condenação de Deus sobre este, e está inerentemente ligada à situação resultante da queda do

ser humano45.

Na segunda menção, Paulo afirma a vinda do Filho como enviado, resgatando

então a íntima ligação do Cristo com o Pai. O Filho vem na semelhança da carne do pecado46,

43 Cf. DUNN, op.cit., p. 98.44 Cf. ROBINSON, op.cit., p. 28. – O autor afirma que a “fraqueza”, o ser perecível, é qualidade inerente da “carne”.45 Cf. CRANFIELD, C. E. B. Carta aos Romanos. São Paulo: Paulinas, 1992. p. 173.46 Cf. Ibid., p. 172. – Cranfield menciona quatro possibilidades de interpretação do termo “semelhança”: 1) Jesus seria semelhante à carne decaída, porém não idêntico (mas se era justamente a natureza decaída que precisava de redenção, como compreender que o Redentor veio apenas em aparência?); 2) Paulo usou

ou seja, ele assume a condição humana na sua caducidade, na sua fraqueza, porém não

experimenta o pecado, como bem o diz Paulo em 2Cor 5,21. Murphy-O’Connor, após afirmar

a complexidade do termo “carne” no léxico paulino, comenta a expressão “semelhança na

carne do pecado” da seguinte maneira:

Quando Paulo diz que Jesus tinha ‘corpo de carne’, ou que ele era judeu ‘segundo a carne’, simplesmente evoca a dimensão física de sua existência. ‘Carne pecaminosa’, por outro lado, implica claramente julgamento negativo de valor, e a ênfase de Paulo é que, embora partilhando da facticidade da existência humana, Jesus não caiu sob o julgamento de valor ligado àquela existência por causa do pecado humano47.

A terceira menção propõe que o lugar da vitória sobre o pecado é justamente a

“carne”, pois nela o Filho de Deus derrota definitivamente as forças do mal, dá início a uma

nova criação e o humano encontra sua libertação. De acordo com Cranfield, Paulo pensava

que toda a ira de Deus contra o pecado foi colocada sobre a carne de Jesus na cruz48.

Rompendo aquilo que separava a humanidade do Criador, é na pessoa de Jesus Cristo que

todo ser humano pode aproximar-se de Deus. Em Jesus a humanidade está representada.

Paulo demonstra um princípio de solidariedade de Deus com a condição humana, que, revoga

qualquer tentativa de aproximação de Deus por outras forças humanas além daquela que é o

Cristo. Nessa terceira menção, fica nítido que Paulo se refere à “carne” de Jesus como o todo

de sua pessoa. O v. 4 apresenta a oposição entre “viver segundo a carne” e “viver segundo o

Espírito”, a libertação oferecida por Cristo tem por objetivo permitir ao cristão “viver segundo

o Espírito”49.

b) Ef 2,14b:tou/ fragmou/ lu,saj( th.n e;cqran evn th/| sarki. auvtou/(Em sua carne, destruiu o muro de separação: a hostilidade.

Paulo aqui compreende th/| sarki, com o mesmo sentido de rf'B'. Em Jesus,

toda separação existente entre pagãos e judeus é destruída, pois nele se dá a possibilidade de

compreensão de uma nova humanidade. Carne, novamente, é sinônimo da existência total de

“semelhança de” para evitar a impressão de que Cristo realmente pecou por ter-se associado à humanidade; 3) Semelhança como sinônimo de forma; 4) Paulo usa a expressão “semelhança de” para indicar que Cristo não foi transformado em humano, mas que assumiu a natureza humana, permanecendo ainda ele mesmo, ou seja, conservando sua divindade. Jesus assume a mesmíssima natureza humana decaída, porém nunca deixa de ser o Filho de Deus.47 MURPHY-O’CONNOR, Jerome. A antropologia pastoral de Paulo: tornar-se humanos juntos. São Paulo: Paulus, 1994. p. 79.48 Cf. CRANFIELD, op.cit., p. 173.49 Cf. JEWETT, op.cit., p. 148.

Jesus. A fim de mostrar o realismo da nova humanidade, Paulo remete ao “Jesus-carne”, em

quem se deu na história a unificação entre os mundos opostos50.

Conclui-se que, longe de negar a tradição recebida das Escrituras, Paulo conserva,

nos casos acima (Rm 8,3; Ef 2,14b), a idéia de existência total e “carne” não tem nenhuma

conotação pejorativa ou de tendência para o mal. “Carne” é a notação da condição escolhida

por Deus, ou seja, o Filho vir na “condição mortal”, para conduzir a humanidade até a

verdadeira liberdade. Cerfaux, analisando o tema da encarnação de Cristo nos escritos

paulinos considera que Paulo não compreende a encarnação já como um fator salvífico, ela

está ordenada para a morte e ressurreição que têm realmente a função salvífica51. Visão

bastante diferente da leitura que os Padres Gregos fariam sobre o mistério da encarnação!

2.4 – Sa,rx como antagonista de pneu/ma

Paulo contrapõe o termo sa,rx a pneu/ma (Rm 8,9.13//Gl 6,8; Rm8,5//Gl 5,16).

Os paradoxos apresentados por ele permitem entrever o valor do termo “carne” e como o

mesmo vai ganhando contornos teológicos, passando da esfera do significado restrito à

densidade de realidade compreensiva da relação do humano com Deus.

Uma primeira leitura da oposição carne/Espírito pode gerar, de imediato, um

preconceito em relação ao termo “carne”. Durante muito tempo, a pregação cristã de cunho

moralizante interpretou o vocábulo “carne” no Corpus Paulinum como referência à

sexualidade/sede dos prazeres e, por sua vez, a pecado, gerando também um menosprezo ao

corpo e a tudo que era material. Em contrapartida, os ideais espirituais eram realçados e

buscava-se uma ascese que, quase sempre, enfatizava o esforço humano. Ironicamente, essa

pretensa confiança na ascese a fim de vencer os desejos da “carne” acabava por ferir o

pensamento paulino, que criticava o confiar-se nas próprias forças. Esse tipo de ascese, pode-

se dizer, acabava se transformando justamente naquela “carne” tão criticada por Paulo como

orgulho humano.

Parece que Paulo contrapõe “carne” a Espírito para explicitar a limitação da

condição humana e sua incapacidade de, por si só, estabelecer verdadeira relação com Deus.

50 Cf. FABRIS, Rinaldo. Carta aos Efésios. In: As Cartas de Paulo. São Paulo: Loyola, 1992. v. II, p. 164.51 Cf. CERFAUX, Lucien. Cristo na teologia de Paulo. São Paulo: Editora Teológica, 2003. p. 136: “Falta em Paulo a idéia fundamental de que a união do Verbo com a natureza humana constitui para a natureza humana em geral um enriquecimento. Para ele, a encarnação não enriquece a carne que Cristo assume e que continua carne na ordem da eficiência e, portanto, não introduz, na natureza humana, um princípio divino ativo. É a ressurreição que produz a mudança na humanidade”.

Possivelmente o que Paulo estabelece com o dualismo carne/Espírito tem por finalidade

propor uma ética cristã52. Viver de acordo com o Espírito é deixar-se conduzir segundo o

desejo de Deus; daí que toda ação contrária a isso revela resistência ao poder de Deus.

Paulo confronta “carne”, como realidade de apego à força humana, com Espírito,

princípio inaugurador dos novos tempos da salvação. A “carne” em si não é um erro nem um

mal, mas sim o “confiar na carne”53 ou o chamado “orgulho da carne”. Aquele que vive

“segundo a carne” depara-se também com outro dualismo: vida/morte, pois resistir ao Espírito

e seguir os princípios da “carne” é encaminhar-se para a morte54. Paulo não descarta o

significado e valor da “carne”, pois, ao afirmar sua possível destruição pela morte,

inversamente afirma sua real valorização se colocada sob a guia do Espírito.

O Espírito vem em socorro da fragilidade humana para evitar que a “carne”

domine todo o ser humano. Dessa forma, “carne” não teria um sentido negativo?

Aparentemente sim, mas o que Paulo deseja é mostrar que na condição mortal o ser humano

sempre se encontra numa situação de vulnerabilidade. Käsemann fala do humano na

concepção paulina como ser provocável e constantemente provocado55. É na esfera da “carne”

que o humano defronta-se com os apelos que podem conduzi-lo à vida ou à morte.

Dunn afirma que “carne” funciona como um contraponto ao qual Paulo liga outros

termos, sempre partindo da idéia de fragilidade: “É o contínuo da mortalidade humana, a

pessoa caracterizada e condicionada pela fragilidade humana, que dá à sarx seu espectro de

significado e que fornece o elo entre os diferentes usos do termo que Paulo faz”56. O pecado é

que é mal, não a carne! Mas é na esfera dela que o pecado pode agir, daí a oposição kata. sa,rka/kata pneu/ma. Viver segundo a carne é o viver manipulado pelos desejos e

necessidades da carne57. A expressão kata. sa,rka indica a orientação para o transitório,

distinta da expressão evn sarki,, que afirma a condição inevitável do ser humano58.

2.5 – Conclusões

Embora seja necessária uma análise específica em cada ocorrência, é certo que

52 Cf. JÓZEFCZUK, op.cit. – Toda a dissertação versa sobre a proposta de elaboração de uma ética cristã em Gálatas a partir da acolhida do Espírito.53 Cf. SCHWEIZER, Eduard. sa,rx, sarkikovj, sa,rkino,j. In: TDNT, p. 135.54 Cf. DUNN, op.cit., p. 96-97.55 Cf. KÄSEMANN, Ernst. Perspectivas paulinas. São Paulo: Paulinas, 1980. p. 13.56 DUNN, op.cit., p. 98.57 Cf. Ibid., p. 102.58 Cf. Ibid., p. 100.

Paulo não usa “carne”, aplicado ao humano, no sentido pejorativo, mas sim como afirmação

da sua fugacidade. Portanto, o Apóstolo permanece vinculado ao pensamento hebraico e ao

significado dado ao termo no AT; como se afirmou anteriormente, a “carne” não é má, o que

é mal é o confiar na “carne”.

Quando Paulo aplica o termo “carne” à pessoa de Jesus, o faz de maneira bastante

sóbria, insistindo na idéia de solidariedade e igualdade com a raça humana. Demonstra

sempre uma preocupação em afirmar a historicidade do Cristo, sua vinda na “carne”, mas sua

total isenção de contato com o pecado. O fato de não partilhar com a humanidade a situação

de pecado não anula a igualdade dele com a humanidade. Em si mesmo o humano não se

compreende, mas olhando para o humano Jesus, Deus na “carne”, toda pessoa tem a

oportunidade de se conhecer e descobrir que a meta de sua vida está além daquilo que é a

condição carnal59. A antropologia paulina vincula-se, pois, à cristologia e à soteriologia! O ser

humano, criado à imagem e semelhança de Deus, é chamado a buscar a salvação em Jesus,

imagem de Deus que se encarnou e se tornou visível no Cristo ressuscitado60.

Em Paulo, o ser humano torna-se ainda mais caduco à medida que ignora que a

condição “carnal” é chamada a deixar-se aperfeiçoar na ação do Espírito. A “carne” não é

suplantada, mas considerada com relatividade e, em alguns momentos, colocada como

oposição ao Espírito por ser o lugar onde o humano pode ser cooptado pelo pecado. A “carne”

é, pois, o lugar da decisão, do confronto, do embate. É nela que se verifica o quanto o mal

assedia o humano e o coloca sob o perigo da pretensão de poder salvar-se a si mesmo.

3 – “Carne” no Evangelho segundo João

3.1 – Um Evangelho para decisão na fé

O ponto de partida para uma compreensão do termo “carne” em Jo 1,14a encontra-

se no fato de ser o Evangelho de João um texto que objetiva despertar uma decisão diante de

Jesus: aceitá-lo ou rejeitá-lo. Em João, “fé e descrença são as alternativas decisivas da

salvação”61. Marcado por uma série de símbolos e contrastes, o Quarto Evangelho propõe

59 Cf. KAESEMANN, op.cit., p. 39-41. – Também: SCHWEIZER, E. Sa,rx, sarkikovj, sa,rkinoj: the New Testament. In: TDNT, p. 135.60 Cf. MARQUES, op.cit., v. 2, p. 641.61 BLANK, Josef. O evangelho segundo João. Petrópolis: Vozes, 1990. v. 4/1a, p. 56.

sempre ações e palavras de grupos ou pessoas como evidências da acolhida ou não do Messias

Jesus, Filho de Deus vindo na “carne” (cf. 1Jo 4,2).

A comunidade que transmite a fé no Cristo propõe um discernimento aos que nela

já ingressaram ou desejam fazê-lo. Tal discernimento contempla a liberdade humana e a

responsabilidade histórica. Jesus vem na “carne” e é também nela que a humanidade precisa

decidir-se. O confronto com o judaísmo rabínico62, os tempos de perseguição, as constantes

inquietações por parte da chamada “segunda geração dos cristãos”, os conflitos internos,

dentre outros elementos63, permitem compreender todo o processo de elaboração do texto do

Evangelho como um desejo de apresentar quem é Jesus, para que os que nele crerem, em seu

nome, tenham a vida (cf. Jo 20,31).

João quer pregar Jesus de um jeito novo, diferente dos sinóticos, embora servindo-

se do material recebido da tradição64, mas com especial atenção à situação histórica de sua

comunidade65. João anuncia que em Cristo o Reino de Deus já acontece e que a pessoa do

“Jesus-carne” é a evidência dessa novidade. O Reino chega de modo surpreendente. Tuñí

Vancells e Blank concordam que João é marcado por uma ênfase na pessoa de Jesus, uma

cristologia que traz para o presente a escatologia e não permite descuidar da realidade

histórica66.

62 Cf. VITÓRIO, Jaldemir. “Vou preparar-vos um lugar”: leitura e interpretação de Jo 14 na perspectiva da Tradição do êxodo. Rio de Janeiro: PUCRJ, 1995. Tese de doutorado. v. 2, p. 436-433.63 Cf. BROWN, Raymond E. A comunidade do Discípulo Amado. 2 ed. São Paulo: Paulinas, 1983. – A obra versa sobre a experiência eclesial que deu origem ao Quarto Evangelho, procurando salientar as fases de desenvolvimento da mesma e como se deu a elaboração da fé em cada uma delas. – Ainda sobre o tema do ambiente joanino: CALLE, Francisco de la. A Teologia do quarto Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1985. p. 15-18. La Calle relembra cinco hipóteses para explicar o mundo ambiental joanino: “Antigo Testamento, judaísmo pós-bíblico em geral, a literatura sapiencial especialmente, Qumran e, por último, a gnose”. – BLANK, op.cit., p.56. Blank pondera que, no que diz respeito à possível influência gnóstica, as pesquisas não chegaram a concluir se existe em João uma tendência antignóstica ou antidocetista. – Também: MAGGIONI, Bruno. O Evangelho de João. In: FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos. São Paulo: Loyola, 1992. v. II, p. 266-267. Maggioni pondera também que tampouco seria o Evangelho de João uma cristologia de “docetismo ingênuo” como propôs Käsemann.64 Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. El evangelio según San Juan. Barcelona: Herder, 1980. v. I, p. 88s. – O autor faz análise bastante profunda acerca do possível contato de João com a tradição marcana.65 Cf. BLANK, op.cit., p. 37. 66 Cf. BLANK, op.cit., p. 36. – Blank afirma que, diferentemente dos sinóticos, “em João, [...] o centro e o conteúdo da mensagem é o próprio Jesus, sua própria pessoa, e seu significado como revelador e Filho de Deus, como salvador escatológico [...]. Salvação e juízo já acontecem no presente, em relação com a pessoa e a palavra de Jesus”. – Também: TUÑÍ VANCELLS, Josep-O. Imagen actual del cuarto evangelio. Jesús-hombre, revelador de Dios. Sal Terrae, Santander, v. 65, n. 2, p. 103, feb. 1975. Comparando João a Mateus que insiste no anúncio do Reinado de Deus, Vancells diz: “O quarto evangelho não desvia a atenção da pessoa de Jesus, porque nele – muito mais que nos sinóticos e de modo distinto – o reino é Jesus. Nele Jesus não prega o Reino, mas se prega a si mesmo; não o explica com parábolas, mas propõe alegorias sobre o mistério de sua própria pessoa; não fala de receber o reino, mas exorta a que se receba a ele mesmo; não se deve ir ao reino, mas sim ir a Jesus”. Desnecessário insistir que, ao afirmar a centralidade de Jesus, os autores o compreendem como o único revelador do Pai; sendo assim, o Cristo é caminho para o Pai e o seu agir é o agir do Pai na história humana.

João apresenta o Jesus confessado pela comunidade67. O Evangelho não tem por

finalidade ser crônica de episódios ou compor uma biografia, mas permitir que o próprio Jesus

fale e apresente-se através de sua comunidade.

3.2 – Significado de sa,rx em Jo 1,14a

João escreve seu Evangelho em grego, porém seu pensamento e os elementos

utilizados pertencem ao contexto hebraico68. Isso exige que a leitura do texto joanino seja feita

sem um apego excessivo à língua grega. João é capaz de tomar uma palavra do AT ou, até

mesmo, do mundo não-cristão e lhe dar novo significado a partir da ótica cristã69. As

referências veterotestamentárias, diretas ou indiretas, confirmam essa continuidade e não

rompimento com a revelação nas Escrituras judaicas. Também o termo “carne” em João é

marcado por esse bilingüismo.

3.2.1 – O contexto amplo

A palavra “carne” encontra-se no chamado Prólogo (1,1-18). Compreendendo

João, como ele encontra-se hoje e chega às mãos dos leitores (cristãos ou não), tal Prólogo é

dele uma parte inseparável! Não é uma introdução, nem um prefácio literário, nem uma

síntese de todos os temas apresentados no Evangelho70. Tomando-se a pesquisa exegética em

torno do Prólogo joanino, nota-se uma diversidade de classificações quanto ao seu gênero

literário, porém pode-se classificá-lo como um hino71 cristológico, que permite entrever o

essencial da fé professada, ou seja, o mistério de um Deus revelado no ser humano e que,

enquanto hino, só pode ser compreendido no conjunto do Evangelho. Há no Prólogo um

convite e, ao mesmo tempo, um desafio: cantar a ação de Deus que entra na história e

reconhecer que em “Jesus-carne” ele se revela.

67 Cf. TUÑÍ VANCELLS, Josep-O. Jesus y el evangelio em la comunidad juánica: introducción a la lectura cristiana del evangelio de Juan. Salamanca: Sigueme, 1987. p. 176.68 Cf. KONINGS, Johan. Evangelho segundo João: amor e fidelidade. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2005. p. 22.69 Cf. MAGGIONI, op.cit., p. 264. – Também: BLANK, op.cit., p. 40s. 70 Cf. FEUILLET, A. O prólogo do quarto Evangelho: estudo de teologia joânica. São Paulo: Paulinas, 1971. p. 178. – Acerca do caráter literário do Prólogo, Feuillet diz: “O prólogo joânico constitui a ‘introdução’ ao Evangelho, no mesmo sentido em que se emprega a palavra ‘ouverture’ para a linguagem musical”. Segundo esse autor, é o todo do evangelho que dá o real significado ao prólogo e não o contrário.71 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do evangelho segundo João. São Paulo: Loyola, 1996. v. I, p. 40-42. – Chega-se à conclusão que se trata de um hino, mas isso não significa o final da questão; é apenas uma etapa que se abriu para diversas outras interpretações, já que parece impossível refazer a pré-história do Prólogo.

Aceitando-se o Prólogo como um hino de louvor que a comunidade joanina

transmite às futuras gerações de cristãos, preserva-se sua relação com o conjunto do

Evangelho e também sua dimensão comunitária. Além disso, assume-se que não se trata de

um hino com proposta de síntese doutrinária. A comunidade não pretende formular dogmas,

isso não importava para aquele contexto72. Posteriormente, é que se leu no Prólogo abertura

para o dogma de Calcedônia (431)73.

Por fim, ainda vale reafirmar que o Prólogo é parte integrante do texto evangélico,

e João não poderia ter escolhido melhor forma para iniciar sua narrativa sobre a pessoa de

Jesus. Assim, o Prólogo, juntamente com Jo 20,31, funciona também como uma certa

moldura na qual o testemunho de fé da comunidade fica evidente e apresenta-se a finalidade

da compilação do Evangelho.

3.2.2 – O contexto imediato de sa,rx em Jo 1,14

Antes de qualquer definição acerca do termo “carne”, é preciso analisar onde ele

se encontra e como dialoga com os outros elementos do mesmo versículo. Na estrutura do

v. 14 do Prólogo, nota-se uma doxologia cristã74. A comunidade proclama a vinda da Palavra

(Logos) ao mundo e a participação na glória do Filho que passa a habitar na história. O v. 14

pode ser subdividido para evidenciar ainda mais o contexto imediato em que o termo “carne”

é encontrado. Segue-se uma possível estruturação do versículo75:

a Kai. o` lo,goj sa.rx evge,netoE a Palavra se fez carne

b kai. evskh,nwsen evn h`mi/n(e habitou entre nós

C kai. evqeasa,meqa th.n do,xan auvtou/(e nós contemplamos a sua glória

d do,xan w`j monogenou/j para. patro,j(glória do Filho único do Pai,

e plh,rhj ca,ritoj kai. avlhqei,ajacheio de graça e verdade.

72 Cf. BROWN, op.cit., p. 115 [nota].73 Cf. BRUCE, F. F. João. São Paulo: Vida Nova, 2004. p. 45.74 Cf. TUÑÍ VANCELLS, Jesus, p. 87; 93.75 Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de São João: análise lingüística e comentário exegético. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 57-62.

As partes que compõem o v. 14 são apresentadas numa estrutura bastante

ordenada. Parece que a ênfase do versículo encontra-se em “C”, pois o fato de o Logos

habitar no meio da humanidade ainda não é garantia de vida plena para a comunidade; mas o

contemplar a glória já é a manifestação da experiência proposta por aquele que veio na

“carne” (a/b)76. As partes seguintes ao item “C” justificam-se como explicitação da origem da

glória (d) e do que ela vem a ser (e). O termo final remete ao início do versículo pela ligação

que pode ser estabelecida com Logos, pois é ele o que está pleno (adjetivo) de graça e

verdade. A glória da qual a comunidade participa é a glória que veio a este mundo na pessoa,

na “carne” de Jesus. Eis, já aqui, a teologia do envio que servirá como pano de fundo para a

análise do vocábulo “carne”.

No v. 14, os termos “a” e “b” estão ligados pela partícula kai.. O uso dessa

conjunção coordenativa remete ao Logos mencionado no v. 1 como aquele que habita junto de

Deus e participa de sua divindade, chamando agora a atenção para o fato inusitado que será

mencionado77. A menção ao Logos nos vv. 14 e 1 serve também para contrastar o ser eterno

da Palavra com o seu existir temporal78. Podendo-se afirmar, como Potterie, que no v. 14b se

trata de um kai. exegético, pois inicia e convida a compreender o sentido teológico da

encarnação79.

A novidade anunciada não se concentra tanto no fato do Logos vir ao mundo, pois

isso já foi apresentado ao longo do Prólogo, inclusive fazendo-se referência à sua acolhida ou

rejeição (vv. 1-4; 10-12). O Logos não é um estranho a este mundo, ele participou da criação

do mundo e nele sempre esteve presente80. A ênfase está na forma como o Logos agora se

manifesta. Se antes era um Logos supratemporal, agora se tem um adentrar na história

humana81.

O verbo gi,nesqai82 é elemento que determina o tipo de novidade em relação à

comunicação do Logos. O h=n (era) presente nos vv. 1.4.9.10 do Prólogo afirmava a

existência do Logos como algo permanente. O fato de ser e estar permanentemente é

característico da dimensão divina. A contraposição com evge,neto (veio a ser) destaca a

mudança ocorrida no modo de existir do Logos. Como já havia sido usado nos vv. 3 e 10 para

76 Cf. MÜLLER, Ulrich B. A encarnação do Filho de Deus: concepções da encarnação no cristianismo incipiente e os primórdios do docetismo. São Paulo: Loyola, 2004. p. 43.77 Cf. SCHNACKENBURG, op.cit., p. 28278 Cf. BROWN, Raymond E. El Evangelio según Juan. Madrid: Cristiandad, 1979. v. 1, pt. 1, p. 207.79 Cf. POTTERIE, Ignace de la. Studi di cristologia giovannea. 2 ed. Genova: Marietti, 1992. p. 50.80 Cf. CALLE, op.cit, p. 43-45.81 Cf. LÉON-DUFOUR, op.cit., p. 92.82 Cf. SCHNACKENBURG, op.cit., p. 283.

insistir na participação do Logos na criação do mundo, agora evge,neto serve como prova

irrefutável de que o ocorrido com o Logos não é mera aparência ou uma criação nova que

anulasse o seu ser; ao contrário, trata-se de uma mudança radical na forma de se comunicar.

Aquele Logos permanece o mesmo, mas agora se manifesta de forma nova 83. Se as

afirmações dos vv. 1.4.9.10 manifestavam uma existência celeste, totalmente distinta da

terrestre, o evge,neto (v. 14) mostra que o Logos entra realmente na realidade humana84.

3.2.3 – Definição de sa,rx

O evangelista utiliza o vocábulo “carne” (sa.rx) para se referir ao ocorrido com o

Logos. “E o Logos se fez carne” (Jo 1,14a) indica a entrada do Filho no nível da história 85.

Em hipótese alguma, sa.rx, em Jo 1,14a, associa-se com o dualismo “carne-espírito”86. João

pensa sa.rx como rf'B'. Nesse sentido, “carne” é termo mais profundo que meramente

“humano” (a;nqrwpoj). Schnackenburg, tratando sobre o porquê dessa escolha de João,

afirma o seguinte:

O sa.rx que está aqui em forma absoluta não é uma mera paráfrase em lugar de ‘homem’ (como pasa sa.rx 17,2), é um termo que no pensamento joanino expressa o ligado à terra (3,6), o caduco e perecedouro (6,63), algo assim como o típico do modo humano de existir, diferente de todo o divino celestial, do espiritual divino87.

“Carne” é designação da natureza humana na sua totalidade e na sua situação de

fragilidade. O termo se enquadra bem no estilo joanino de apresentar oposições ou contrastes

(trevas-luz; céu-terra). “Carne” funciona como referência à condição finita e perecível do

humano, daquilo que pertence a terra em contraste com o próprio Deus, que é ser eterno e

imperecível88.

O Logos que participou da criação de tudo o que existe é o mesmo que agora se

tornou pessoa humana89. Não é alguém indeterminado, mas sim um homem chamado Jesus;

83 Cf. LÉON-DUFOUR, op.cit., p. 92.84 Cf. SCHNACKENBURG, op.cit., p. 283. – Também: Konings, op.cit., p. 80. – OLIVEIRA, Carlos-Josaphat P. Evangelho da unidade e do amor: texto e doutrina do Evangelho de S. João. São Paulo: Duas Cidades, 1966. p. 38.85 Cf. KONINGS, op.cit., p. 55.86 Cf. BUSSCHE, Henri van den. Jean: commentaire de l’évangile spirituel. Paris : Desclée de Brower, 1967. p. 97.87 SCHNACKENBURG, op.cit., p. 284. 88 Cf. PANIMOLLE, Salvatore Alberto. L’evangelista Giovanni: pensiero e opera letteraria del quarto evangelista. Roma: Borla, [1985 ?]. p. 106.89 Cf. BRUCE, op.cit., p. 45.

nascido num território geográfico bastante circunscrito (Galiléia); num período determinado

da história90; num contexto religioso, a saber o judaico. A presença do Logos supratemporal

no mundo não é negada, mas intensifica-se o sentido de sua presença agora na “carne”,

condição mortal própria de quem vive a história terrena.

Do ponto de vista da história humana, Jo 1,14a marca a destruição de toda barreira

que poderia afastar a humanidade de Deus. Do ponto de vista da história da salvação, na qual

a história humana é um dos momentos, a encarnação é a continuidade do movimento de vida

iniciado pelo Logos presente na criação. É momento ímpar na história da salvação, pois é a

revelação de Deus que tornará possível a participação do humano na glória divina. O “fazer-se

carne” não é ainda o fim da encarnação, o ponto mais alto se encontra na plena comunicação

da glória divina. Léon-Dufour o diz de forma bastante concreta:

Para revelar perfeitamente quem ele é e qual experiência os homens são chamados a viver por ele, o Logos torna-se um homem que fala a nossa língua. Se o Logos (e não Deus, o Pai) toma figura humana, é para fazer com que os homens participem de seu próprio ser e, assim, manifestar o que um homem autêntico é chamado a ser de acordo com o projeto de Deus91.

Ao afirmar o Logos encarnado, João está afirmando que o projeto de Deus tornou-

se realidade patente no meio da humanidade, fez-se realidade humana, onde, de forma

iniludível, cada pessoa será chamada a decidir-se. Conforme Mateos e Barreto, a Jo 1,14a

correspondem, no Evangelho, duas outras expressões: “o Filho do Homem” e “o Filho de

Deus”. Em conjunto, essas expressões condensam aquilo que é o projeto de Deus para o ser

humano, torná-lo participante da plenitude divina92.

Qual a novidade trazida pelo Prólogo? Por certo, a idéia de uma comunicação das

divindades com os seres humanos não era algo estranho ao povo judeu. Afinal, as Escrituras

mencionavam encontros de Deus com seu povo (Gn 18 = visita do Senhor a Abraão;

Gn 28,10-22 = escada de Jacó; Gn 32,23-33 = luta de Deus com Jacó; novela de Tobias). Do

lado dos gregos, a comunicação divina com a humanidade também não seria algo

extraordinário, pois as divindades gregas vinham até a terra na “forma” de pessoas humanas

ou até de animais. Embora se tratasse de um panteão nos céus, havia um contato com os seres

humanos. Inclusive a manipulação destes últimos pelas divindades. Todavia, no helenismo

não se encontra paralelo quanto a Deus fazer-se “carne” nem quanto ao tornar-se “homem”93.

90 Cf. THEISSEN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus histórico: um manual. São Paulo: Loyola, 2002. p. 173.91 LÉON-DUFOUR, op.cit., p. 95. – BLANK, op.cit, p. 116. 92 Cf. MATEOS & BARRETO, op.cit., p. 57.93 Cf. LÉON-DUFOUR, op.cit., p. 94. – Também: SCHNACKENBURG, op.cit., v. I, p. 284-285. – MÜLLER, op.cit., p. 46-47. – DODD, Charles Harold. A interpretação do Quarto Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1977. p. 334-337.

Apesar do que foi mencionado acima, o problema da encarnação colocado sob a

perspectiva judaica é inadmissível. A encarnação de Deus seria algo totalmente impensável94.

O monoteísmo judaico concebia a vinda de um Messias, um enviado de Deus, mas nunca que

o próprio Deus se colocaria como um igual ao ser humano95. Diferente da concepção cristã

que se tem do Messias, já totalmente cunhada em cima da pessoa de Jesus e sob os moldes da

Igreja primitiva, a concepção judaica afirma que:

“Messias” é a versão da palavra judaica maschiah, que significa literalmente “o ungido”. [...] Na tradição judaica, o rei é ungido com óleo como símbolo de sua realeza. Havia algumas variações entre concepções judaicas do Messias, mas a concepção tradicional do maschiah, ou messias, é a de que ele será um rei plenamente humano que vai libertar o povo judeu de sua servidão ou de seus problemas e introduzir uma “era messiânica”, [...] Será o reino de Deus na terra96.

Na compreensão grega, nenhuma divindade vem a terra para salvar os seres

humanos enquanto coletividade. Na concepção judaica do Messias, este não seria nunca um

Filho de Deus, pelo menos não no sentido de participar originalmente de sua divindade, nem

teria o poder para perdoar pecados. A novidade cristã encontra-se no fato de afirmar que o

Logos eterno torna-se o Jesus terreno97. A afirmação pode soar hoje como algo pacífico, mas

no ambiente do Quarto Evangelho era a proclamação de uma nova fé. Não mais o Deus das

alturas, mas sim o Deus nas entranhas do humano.

O extraordinário acontecido na história humana não cabe em conceitos, nem

seriam eles comuns ao pensamento hebraico, exigindo de João uma afirmação da natureza de

Jo 1,14a. “Carne”, portanto, é a condição humana, mortal, oposta a Deus por sua fragilidade e

impotência, a existência terrestre. Em João, dizer que “o Verbo se fez carne” não é constituir

um início da história humana de Jesus aos moldes de Lucas (Lc 1,26-38; 2,1-20), pois o

evangelista não se preocupa com isso. João afirma com o termo “carne” que é o todo da

existência de Jesus que tem valor, o seu sair e voltar ao Pai, sua descida e subida 98. Konings

propõe o mesmo pensamento: “Não só o Natal, mas sobretudo a Sexta-feira Santa é festa da

Encarnação. O presépio e a cruz são da mesma madeira!”99.

A afirmação joanina, ao utilizar o termo “carne” determina que a existência

histórica de Jesus é dado essencial para a fé. A glória que a Palavra veio comunicar só pode

94 Cf. DODD, op.cit., p. 337-338.95 Cf. BROWN, op.cit., p. 48-49.96 FLITTER, Lance. Jesus e eu. In: BRUTEAU, Beatrice (org.). Jesus segundo o judaísmo: rabinos e estudiosos dialogam em nova perspectiva a respeito de um antigo irmão. São Paulo: Paulus, 2003. p. 177.97 Cf. CALLE, op.cit., p. 46.98 Cf. BLANK, op.cit., p. 97.99 KONINGS, op.cit., p. 80.

ser alcançada na humanidade de Jesus e não fora dele. O Deus, que desde o início quis se

comunicar e foi rejeitado pela humanidade, não desiste de levar a bom termo seu desejo. Jesus

é o ato supremo de Deus para encontrar-se com a humanidade. Segundo Müller, comentando

Jo 1,14, “a Igreja cristã enaltece o mistério ao qual tem acesso: que o Logos responde à

vigente rejeição pelos seres humanos com sua dedicação definitiva”100.

Blank mostra que a incidência da afirmação de João toca diretamente a

antropologia, pois em “Jesus-carne” a humanidade é chamada a reconhecer o que

verdadeiramente significa ser humano diante de Deus. Isso tem suas conseqüências imediatas

ao nível histórico, pois enquanto a humanidade não alcançar a proposta de Jesus, a encarnação

permanece incompleta101.

3.3 – Sa,rx em outras passagens joaninas

No contexto do Quarto Evangelho, ainda se encontram outras ocorrências do

termo “carne” que merecem ser analisadas em vista de uma melhor compreensão do mesmo

em Jo 1,14a. Apenas as citadas no “discurso do pão da vida” (Jo 6,51-56) dizem respeito

diretamente a Cristo, porém também as outras ocorrências serão contempladas. Como o

objetivo desta seção é aproximar os significados das ocorrências, não se procederá a uma

exegese formal de cada uma delas, mas procurar-se-á apontar os elementos exegético-

teológicos que se evidenciam e que já pertencem ao patrimônio da teologia bíblica.

3.3.1 – “Jesus-carne” para a vida do mundo – Jo 6,51-56

No cap. 6 do Evangelho segundo João, encontram-se 7 ocorrências de “carne”,

sendo que 6 delas estão referenciadas à idéia de alimento. O contexto do cap. é o da

multiplicação dos pães (Jo 6,1-15), aparentemente interrompido pela narração do milagre de

Jesus caminhando sobre as águas (Jo 6,16-21), que ganha um discurso explicativo no qual o

pão será a “carne” de Jesus (Jo 6,22-59). Segundo Brown, pode-se ver, no discurso de Jesus, o

tema da Eucaristia através de uma teologia sacramental102.

100 MÜLLER, op.cit., p. 44.101 Cf. BLANK, op.cit., p. 116.102 Cf. BROWN, Raymond E. Evangelho de João e Epístolas. São Paulo: Paulinas, 1975. p. 67-68.

De acordo com Léon-Dufour, João parece usar intencionalmente o termo “carne”,

pois poderia ter usado yuch, (“vida” ou “alma”103) ou sw/ma (corpo). A justificativa estaria

no fato de “carne” expressar com mais fidelidade o pensamento semita e ser um melhor

indicativo da condição humana afirmada no termo rf'B'104. O uso de “carne” evoca o Prólogo

(Jo 1,14a). No v. 51 do discurso sobre o pão da vida, Jesus afirma que ele é o pão descido do

céu. O movimento de descida afirmado em relação ao pão é imagem do acontecimento da

encarnação105. O pão enviado do céu é “Jesus-carne”, o enviado do Pai.

O v. 51 lido na perspectiva da encarnação determina que é o todo da vida de Jesus

que será oferecido em sua “carne”. O Logos encarnado torna a humanidade participante de

sua “carne” e o faz pela entrega total de si. Além de ser presença de Deus, o “Jesus-carne”, a

sua existência terrena, é um alimento que propicia a comunhão da humanidade com Deus,

gerando vida no mundo (Jo 6,51)106. Na “carne” de Jesus, o projeto de Deus torna-se explícito

e a comunicação de sua glória, uma realidade histórica. Sendo assim, “Jesus-carne” é o lugar

no qual se encontra Deus.

O v. 52 mostra a oposição dos judeus em relação à afirmação de Jesus. O verbo

utilizado é ma,comai, no imperfeito do indicativo, que significa combater, disputar, litigar,

lutar corpo a corpo. Ilustra que a palavra de Jesus causou transtorno entre o grupo de judeus

que se encontra agora dividido107. Junte-se a isso o fato de, novamente, aparecer uma

resistência dos meios judaicos ao “Jesus-carne”. Afinal, era inconcebível pensar a salvação

como dom que um homem, bastante conhecido em sua origem humana (v. 41), faria de si

mesmo. “Carne”, na boca de Jesus, é a sua realidade humana; se oferecida como alimento, aos

ouvidos dos judeus, é grotescamente mal-entendida. Barreto e Mateos108 vêem nesse v. uma

alusão à prática eucarística da comunidade joanina, incompreendida pelos judeus e, portanto,

motivadora de conflitos.

103 Cf. RUSCONI, Carlo. Yuch,, yuciko,j. In: DGNT, p. 501-502. – O termo yuch, pode ser traduzido como vida, no sentido de existência humana; o termo yuciko,j está relacionado com o que é naturalmente humano, perecível e, até mesmo, oposto a espírito.104 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. São Paulo: Loyola, 1996. v. II, p. 118. – A propósito: AUSEJO, Serafim de. El concepto de “carne” aplicado a Cristo. In: Estudios Bíblicos, Madrid, v. 17, n. 4, p. 414, oct/dic. 1958. Segundo Serafin de Ausejo, haveria mais uma razão para o uso de sárx no lugar de soma: o evangelista procuraria ser fiel à palavra que possivelmente Jesus utilizou em seu discurso, pois esta é mais apropriada no vocabulário hebreu para dizer a totalidade da pessoa e, no caso específico, expressar o próprio de Jesus na sua vida terrestre, na sua entrega e na sua morte. 105 Cf. LÉON-DUFOUR, Ibid., p. 118. – MATEOS & BARRETO, op.cit., p. 318-319. – PACK, Frank. O Evangelho Segundo João. São Paulo: Vida Cristã, 1983. p. 109-110. 106 Cf. MATEOS & BARRETO, op.cit., p. 318.107 Cf. BRUCE, op.cit., p. 143.108 Cf. MATEOS & BARRETO, op.cit., p. 319.

João continua sua homilia sacramental109 e, no v. 53, ao vocábulo “carne” é

adicionado “sangue”. Se, por um lado, a “carne” é sinal da fragilidade; por outro, o sangue110

recorda a presença da alma e, por sua vez, só pertence a Deus. “Carne e sangue” – alimento e

bebida do memorial sacramental – significam a humanidade de Jesus doada até a morte

violenta, referência também à cruz. Os vv. 53-54 formam uma unidade de sentido na qual são

apresentados os efeitos realizados em quem comer e beber “a carne e o sangue” de Jesus: terá

a vida (apresentado negativamente no v. 53 e positivamente no v. 54a); será ressuscitado no

último dia (v. 54); experimentará que “a carne e o sangue” de Jesus são verdadeiras comida e

bebida (v. 55); habitará no Cristo e será habitado por ele (v. 56). Há, ainda, um complemento

no v. 57 no qual se afirma que quem receber Jesus como alimento viverá por ele, da mesma

forma como ele vive pelo Pai.

É necessário destacar que no v. 53 Jesus fala, referindo-se a si mesmo, que “a

carne e o sangue” são do “Filho do Homem”. Se havia qualquer sinal de dúvida no mal-

entendido do v. 52, ele é aqui eliminado. Mais ainda, Jesus afirma que ele não é simplesmente

uma criatura deste mundo, ele é o “Filho do Homem” (Dn 7,13). Esse título, usado em João,

sintetiza a missão de Jesus: ele veio em nome do Pai para ser o doador de vida à humanidade

e torná-la participante de sua vida. Jesus é o promotor da comunhão111.

Os verbos “comer (mastigar)” e “beber”, respectivamente trw,gw e pi,nw,

formam uma unidade em que o que se deseja anunciar é a tomada de posse de um alimento (v.

57); o assumir, o assimilar o ser de Cristo. “Carne e sangue” expressam a realidade sacrifical,

na qual Jesus é comparado ao cordeiro pascal. A participação da humanidade na vida de Jesus

só é possível porque ele veio na “carne”, um humano concreto112. É nítido o duplo acento

joanino no trecho (v. 51-58): Jesus é o humano selado pela força do Espírito; ou seja, Jesus é

a “carne” na sua realidade plena, pois real e conduzida pelo Espírito113. O texto tem uma

característica de discernimento na fé; afinal, quem deseja aceitar Jesus precisa acolher como

sua a realidade da “carne” e do “sangue” oferecidos.

109 Cf. KONINGS, op.cit., p. 163. 110 Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. Vocabulário teológico do Evangelho de São João. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 257. – Segundo os autores, “sangue” é símbolo de vida e, se derramado, sinal de morte violenta. É realidade que pertence somente a Deus e daí a proibição de seu consumo (Gn 9,4; Lv 17,14). No sangue encontra-se a sede da vida. Constata-se, pois, que, juntamente com “carne”, “sangue” equivale a dizer a “totalidade do ser” de Jesus, que deve ser assumida por quem o aceita. 111 Cf. LÉON-DUFOUR, Leitura do Evangelho segundo João, v. II, p. 123.112 Cf. PANIMOLLE, op.cit., p. 108.113 Cf. MATEOS & BARRETO, O Evangelho, p. 319-320.

Schnackenburg faz uma análise histórica de como a exegese interpretou o discurso

do pão, mostrando como os acentos foram colocados diversamente. Parece tratar-se de uma

leitura sacramental. Seria ela possível? João não deixou um relato da instituição da Eucaristia,

porém deixou um complexo discurso sobre a entrega de Jesus como alimento para a

humanidade. Schnackenburg une, de forma harmoniosa, a leitura sacramental com aquela

encarnacionista. Segundo ele, a “carne” e o “sangue” de Jesus, dados na Eucaristia, são um

testemunho da encarnação de Jesus, de sua paixão, de sua ressurreição e exaltação. Dessa

forma, a Eucaristia só pode ser entendida em íntima conexão com o envio do Filho de Deus,

pelo qual a existência “sárkica” de Jesus completa-se pela existência eucarística114.

Por que recordar a questão eucarística numa reflexão sobre o “Jesus-carne”?

Justifica-se porque numa análise somente sacramental de Jo 6 pode permanecer certa aura de

mistério e sacralidade, que tendem a olvidar o sentido da “carne” de Jesus oferecida. O tema

sacramental compreendido a partir da encarnação permite perceber uma presença da

comunidade no Cristo e a dele na comunidade e, para além da comunidade, no agir dos que o

seguem. Tal presença ultrapassa o meramente ritual e é expressão da memória de Cristo, de

sua vida, de seus desejos, de seus ensinamentos. Sendo assim, pode-se dizer que o “fazei isto

em memória de mim” (1 Cor 11,25c), em João, é “quem comer minha carne e beber meu

sangue habitará em mim e eu nele” (v. 56), ou seja, é ter a vida de Jesus em si, estar em

comunhão com ele115. A Eucaristia só é real à medida que se toma a realidade total da pessoa

de Jesus, Deus encarnado na história. O memorial proposto por João é o de na vida assumir o

amor com que Cristo amou a humanidade, tendo assim a vida e a glória dele

permanentemente como resposta pela aceitação de sua mensagem.

Espera-se que com essa análise de Jo 6,51-56 tenha ficado mais evidente que a

realidade da “carne” é o único e legítimo lugar por onde se dá o encontro com Jesus, o

humano verdadeiro e selado no Espírito, que doa plenamente sua vida como alimento para os

que nele têm fé. E que tal alimento, numa leitura sacramental e encarnacionista, é expressão

do desejo do “Jesus-carne” de fazer-se “carne”, realidade histórica, transformadora, nos

membros de sua comunidade.

114 Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. El evangelio Según San Juan. Barcelona: Herder, 1980. v. II, p. 109-113. – Também: BLANK, op.cit., p. 410.115 Cf. KONINGS, op.cit., p. 162.

3.3.2 – O termo sa,rx não aplicado à pessoa de Jesus

3.3.2.1 – Os que não nasceram do desejo da carne – Jo 1,13

O termo “carne” aparece no v. 13 como elemento que completa a estrutura

tripartida do nascimento humano. Por sua vez, esse nascimento humano é colocado como

oposto ou totalmente diferente do nascimento divino que se dá pela acolhida do Logos116.

“Sangue, carne e varão” formam um conjunto que define por completo o nascimento humano,

não podendo ser vistos como separados no v. 13. Os dois elementos iniciais, comumente

encontrados juntos na perspectiva semita, informam que se trata da pessoa; embora o terceiro

dado (varão) pareça destoar da estrutura, assegura outro elemento do nascimento humano, que

é a participação do homem117.

Schnackenburg interpreta o termo “varão” como certa alusão à dimensão sexual

da “carne”: “Os três movimentos que caracterizam este nascimento [humano] destinam-se a

expressar o caráter terrestre do fato: está ligado ao sangue, ao apetite sexual em geral e ao

instinto do varão em particular”118. Essa interpretação encontra certo apoio em Sb 7,1-2,

quando se diz: “Também eu sou homem mortal, igual a todos, filho do primeiro homem

modelado em argila, no ventre materno foi esculpida minha carne; demorei dez meses para

coalhar, massa de sangue, de semente viril e do cúmplice prazer do sono”.

À tríplice fórmula do primeiro nascimento contrapõe-se uma fórmula única do

segundo: (nasceram) de Deus. Segalla ressalta que o nascimento divino inclui: a vontade e a

ação salvífica do Pai, de seu Filho e a ação do Espírito119. A oposição propõe que o

nascimento divino é uma radical separação deste mundo. Nasce-se pelo poder de Deus e não

simplesmente pela vontade ou desejo humanos120. A vida trazida pelo Logos independe do

desejo humano quanto à sua realização, ela é autônoma. O segundo nascimento, o de Deus,

depende somente da acolhida do Logos que o ser humano pode fazer. É um fato sobrenatural,

que permite ao humano participar da filiação divina. A oposição mundo inferior contra mundo

116 Cf. SEGALLA, Giuseppe. Volontà di Dio e dell’uomo in Giovanni. Brescia: Paideia, 1974. p. 254.117 Cf. SCHNACKENBURG, op.cit., v. I, p. 281-282. – Schnackenburg esclarece que alguns Santos Padres, interpretando evgennh,qh, ou seja, o verbo no singular, propunham o v. 13 como alusivo à encarnação do Verbo. Nesse caso, o mencionar “sangue, carne e varão” estaria afirmando a concepção virginal de Jesus. Contudo, a forma no singular não encontra apoio nos códices mais antigos. Além disso, o problema dessa possível alusão à encarnação é justamente antecipar o que é mencionado no v. 14a. E mais, faz com que o texto entre em contradição também com o v. 12. 118 Ibid., p. 281.119 Cf. SEGALLA, op.cit., p. 255-256.120 Cf. NICCACCI, Alviero; BATTAGLIA, Oscar. Comentário ao Evangelho de São João. Petrópolis: Vozes, 1981. p. 40.

superior surge novamente nesta antítese entre o primeiro nascimento (sangue, carne, varão) e

o segundo121.

3.3.2.2 – Nascimento na carne e nascimento no Espírito – Jo 3,6

O quadro pedagógico do diálogo de Jesus com o fariseu Nicodemos (Jo 3,1-21)

também é marcado pelo tema do nascimento. Jesus insiste na necessidade de um novo

nascimento; enquanto Nicodemos está fixado apenas no nascimento humano. Será esse mal-

entendido que propiciará a confirmação do valor do nascimento do alto (v. 3) através da

formulação do v. 6, em que se diz: “O que nasce da carne é carne, o que nasce do Espírito é

espírito”. “Carne” aqui significa a existência humana na sua debilidade, na sua condição

mortal. Nascer do Espírito é ter em si a plenitude da vida trazida pelo Logos encarnado. O que

Jesus propõe é o que ele mesmo já experiencia, pois sendo Deus faz-se humano e recebe a

força do Espírito122.

De um lado, a “carne”, expressão da fragilidade, da precariedade e da imperfeição

humanas; do outro, o Espírito, característica da verdadeira e eterna vida, força de Deus que

aperfeiçoa a obra criada e a conduz à plenitude. Na palavra de Jesus há certo aceno para o

problema do apego à lei, já que por ela havia uma caracterização da pertença ao Senhor, um

sinal feito na “carne”. Além disso, nos vv. 10-11 há uma crítica às dúvidas de Nicodemos,

personificação dos mestres de Israel, aludindo ao desconhecimento e ao possível ensinamento

dos fariseus como algo vivido apenas na “carne”. Bruno Maggioni lê o v. 6 como uma crítica

à impotência do pretenso conhecimento atribuído a Nicodemos: “Nicodemos é o homem

culto, religioso, com uma longa prática de estudo e pesquisa religiosa e moral. Mas tudo isso

– e este o significado último do diálogo – é mera impotência: O que é gerado da carne é

carne (v. 6). Nicodemos não sabe entender”123.

Enfim, pode-se afirmar que a ocorrência de “carne” em Jo 3,6 é marcada pela

contraposição a Espírito, bem como permanece na tradição semita enquanto expressão do ser

humano na sua fragilidade. Trata-se, segundo Bonnard, de um dualismo soteriológico e não

antropológico, pois indica que o ser humano não pode salvar-se por si só124. O aspecto novo 121 Cf. BROWN, El Evangelio, v.1, pt. 1, p. 185.122 Cf. MATEOS & BARRETO, O Evangelho, p. 172-173.123 MAGGIONI, op.cit., p. 310. 124 Cf. BONNARD, P. La chair dans le johannisme, et au-delà. In : Anamnesis – Recherches sur le Nouveau Testament. Gèneve: La concorde, 1980. p. 189. – Também: BROWN, El Evangelio, p. 338. Brown partilha da mesma opinião quando diz: “O contraste entre carne e Espírito não tem a ver com o que o dualismo antropológico grego estabelece entre o corpo e a alma, nem implica uma oposição entre o material e o espiritual,

que o texto apresenta é o fato de que o nascimento no Espírito é que permite ao ser humano,

“carne”, ver e experimentar o reinado de Deus (v. 3b). Ainda, o v. 6, ao mencionar o novo

nascimento em oposição ao de “carne”, remete ao Prólogo (v. 13), o qual, como se viu, trata

dos que nasceram da vontade de Deus e não simplesmente do desejo humano ou da “carne”125.

3.3.2.3 – A “carne” para nada serve – Jo 6,63

Em Jo 6,63 encontra-se: “É o Espírito quem dá a vida, a carne para nada serve”.

Há, portanto, uma contraposição entre “carne” e “Espírito” (// Jo 3,6)126. Jesus faz tal assertiva

em decorrência da manifesta rejeição de alguns discípulos (v.60-62). “Carne” permanece aqui

com o mesmo sentido de debilidade humana, como já foi várias vezes reiterado; porém, na

contraposição a “Espírito”, indica o perigo da “carne” querer se bastar, ser auto-suficiente.

Pensamento este bem próximo ao de Paulo (acima item 2.4) e de Is 40,6b: “Toda carne é erva

e toda sua constância é como a flor dos campos”. A plenitude do ser humano se dá quando ele

acolhe o Espírito Santo, pois é este quem dá a vida ao ser humano e o encaminha no amor,

concedendo-lhe a possibilidade de seguir o Cristo na doação da própria vida127. É no Espírito

de Jesus que o ser humano realmente pode viver128, fazendo sua a forma de agir daquele que

se encarnou.

3.3.2.4 – O julgamento segundo a “carne” – Jo 8,15

O v. aqui em questão está em paralelo com Jo 6,63. Há, implicitamente, uma

oposição entre “carne” e “espírito”. Jesus acusa os fariseus de não enxergarem para além de

sua realidade humana a presença ativa do Espírito. Critica os julgamentos segundo a “carne”,

pois são sempre falhos, limitados, perecíveis; ficam apenas na aparência e não se dão conta da

lógica e do mistério de Deus129. Jesus ainda afirma que quem testemunha em seu favor é o

próprio Pai (vv. 16.18).

pois em João não há uma desconfiança gnóstica ante o material como tal. Carne se refere ao homem tal como nasce neste mundo, um estado em que participa do espiritual e do material, como realça Gn 2,7. O contraste entre carne e Espírito se refere à oposição que há entre o homem mortal (na expressão hebraica, ‘um filho de homem’) e entre o que chegou a ser filho de Deus, entre o homem tal como é e este mesmo homem como Jesus pode fazer que chegue a ser ao dar-lhe o dom do Espírito Santo”. 125 Cf. LÉON-DUFOUR, Leitura do Evangelho segundo João, v. I, p. 225-226.126 Cf. MANNUCCI, Valerio. Giovanni il Vangelo narrante: introduzione all’arte narrativa del quarto Vangelo. Bologna: Dehoniane, 1993. p. 294. 127 Cf. MATEOS & BARRETO, O Evangelho, p. 326-327. 128 Cf. MAGGIONI, op.cit., p. 350-351.129 Cf. MAGGIONI, op.cit., p. 367.

No “julgamento segundo a carne” não há, pois, uma idéia de “carne originalmente

pecaminosa”, mas sim uma nova alusão à resistência das autoridades judaicas em aceitar a

forma surpreendente com que Deus escolheu manifestar-se ao seu povo. E, novamente,

explicita-se a necessidade de se ter o Espírito de Jesus para ver além das aparências, ou seja,

enxergar Deus naquele homem galileu. A conclusão a que o evangelista conduz é a de que os

fariseus não conhecem a verdadeira personalidade de Jesus. Por isso mesmo, o julgamento

que fazem é sempre desprovido de razão, pois superficial. Em outras passagens da Escritura,

encontra-se a expressão “julgar segundo a carne”; logo, julgar segundo o pensamento humano

(1Sm 16,7; Is 11,3; Pr 28,21; Mc 12,14; Mt 22,16; Lc 20,21; Jo 7,24; 2Cor 10,7; Col 3,22).

3.3.2.5 – O poder sobre toda “carne” – Jo 17,2

No contexto da “oração sacerdotal de Jesus” (cap. 17) está a última ocorrência de

“carne” em João. Jesus afirma ter autoridade sobre “toda carne”, expressão hebraica que

significa “todo o povo” ou “toda a humanidade”130, e tem a capacidade de atrair a si todas as

pessoas (Jo 12,32), fazendo isso para conceder-lhes a vida eterna. O v. é elaborado de maneira

a que elementos distintos completem-se numa síntese do mistério salvífico: o Pai deu

autoridade ao Filho sobre toda a humanidade (carne); por sua vez, “Jesus-carne”, tendo

recebido autoridade do Pai, doa aos seus a vida eterna, que contrapõe-se à “carne”, existência

efêmera. Sem a vida que Cristo concede, a “carne” permanece “carne”, porém, em relação aos

que o recebem, ele tem o poder de torná-los filhos de Deus (Jo 1,12)131.

O final do v. 2 é singular ao afirmar que Jesus concederá a vida eterna aos que lhe

foram confiados pelo Pai. Jesus não pretende excluir ninguém, mas expressar a sua

competência salvífica universal. É a forma utilizada por João para referir-se àqueles que

realmente acolhem a proposta de Jesus. Embora a destinação da vida eterna fosse direcionada

a todos, João frisa que parte da humanidade é que a acolheu na pessoa de “Jesus-carne”.

Sendo assim, a liberdade do ser humano é elemento imprescindível para a ação que o Cristo

quer realizar: conceder sua própria vida, a vida divina.

O v. 2 pode ser facilmente associado ao Prólogo, pois indica a realidade de

acolhida (v. 12) ou rejeição (vv. 5.10-11) em relação ao Logos feito “carne”. Na cruz, o Cristo

entregue e elevado oferece, por sua “carne” sacrificada, a vida para toda a humanidade. A

130 Cf. HENDRIKSEN, William. O Evangelho de João. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. p. 754.131 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. São Paulo: Loyola, 1996. v. III, p. 203. – Também: PACK, op.cit., p. 265.

entrega da cruz é mais um elemento no conjunto das entregas que o “Jesus-carne” realizou.

Com relação ao v. 14a do Prólogo, pode-se recordar que o que permitiu a entrega da vida na

cruz e a doação da vida eterna foi justamente o fato de Deus ter se revelado na “carne” e não

em realidades legais ou mágicas. É o fato de ser frágil, perecedouro, crucificável que permitiu

ao Filho de Deus entregar-se por completo. O “Jesus-carne” de João é o protótipo de todo ser

humano plenificado, no qual o projeto de Deus alcança o seu objetivo. Em “Jesus-carne”, o

projeto de Deus é levado a bom termo e toda a sua glória-amor132 é partilhada com a

humanidade.

3.4 – Uma possível leitura “sarcológica” do Evangelho de João: sa,rx como paradoxo

Uma pergunta que pode ser feita diante do Evangelho segundo João é a da

possibilidade de se tomar o termo “carne” como sua chave de leitura. E já que é um evangelho

centrado no Cristo, haveria a possibilidade de uma cristologia “sarcológica”? Tuñí Vancells

comenta que um dos aspectos que dificulta a compreensão cristológica em João é o fato de o

Evangelho ser usado ora para sublinhar a humanidade de Jesus, o Cristo, ora para sublinhar a

sua divindade133. O que se pretende aqui não seria o tomar o vocábulo “carne” como

determinante da humanidade em detrimento da divindade. Mas, talvez, explicitar o que a

comunidade joanina pretendia ao aplicar a palavra “carne” à pessoa de Jesus, utilizando-o

como uma forma de aproximação à mensagem proposta no Evangelho.

Já que o texto de Jo 1,14a não pretende formular nenhuma afirmação dogmática

acerca das naturezas humana e divina de Jesus, tem-se que o evangelho quer dar a conhecer a

pessoa de Jesus como o revelador de Deus. Segue-se ao v. em questão a afirmação de que os

humanos conheceram/viram, participaram de sua glória. Pode-se, pois, traçar uma linha de

compreensão na qual o desafio que a “carne” coloca é justamente o de se entrever nela, ou

seja, na humanidade de Jesus, a glória divina. Bultmann parece ver nessa revelação

justamente um desafio para o conhecimento de Deus, pois o escândalo da “carne” acabou por

cegar aqueles que pensavam ver. Apesar de público, permanece oculto; apesar de revelado,

permanece misterioso. Para Bultmann, a revelação na “carne” não impede a abscondidade de

Deus134.

132 Cf. MATEOS & BARRETO, Vocabulário, p. 116-120.133 Cf. TUÑÍ VANCELLS, Jesus, p. 69-70.134 Cf. BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Teológica, 2004. p. 479.

Tradicionalmente, a afirmação da encarnação é interpretada como elemento

facilitador do encontro da humanidade com Deus. Como dado elaborado da fé e da teologia

cristãs, sem dúvida que não há outra manifestação mais forte de um Deus que desejou se

comunicar às suas criaturas; porém, na interpretação do texto de João e na sua coerência

interna, descobre-se que a “carne” pode ter sido realmente um desafio para os

contemporâneos de Jesus.

As pesquisas em torno do Evangelho segundo João sugeriam ser ele um escrito

antidocetista que ao pregar o Logos vindo na “carne”, estabelecia definitivamente que não

houve em Jesus Cristo apenas uma aparência de humano, mas que realmente foi um ser

humano135. Assim, o hino cristológico do Prólogo teria como claro objetivo combater os

pensamentos heréticos. Todavia, uma leitura atenta do conjunto do Evangelho faz notar que

há constantemente uma referência à humanidade de Jesus. Referência esta que sempre se

vincula ao papel redentor. Por várias vezes, Jesus é chamado de humano; para somente depois

ser reconhecido como Cristo.

Embora, como foi mencionado anteriormente, o termo “carne” não encontre um

equivalente imediato em “humano”, nas passagens que se propõe agora analisar o segundo

termo é justamente um indicativo da “carne” de Jesus, sua condição mortal, e do mal-

entendido que causa o fato de Deus escolher tal forma para se manifestar. Parece, portanto,

que não havia uma dificuldade em se aceitar a humanidade de Jesus, mas sim de se aceitar

que nela deu-se plenamente a revelação de Deus.

Da mesma forma como se interpretou João como o evangelho da humanidade,

houve também quem visse nele sinais claros de docetismo. Käsemann136 repara como em João

há uma série de passagens em que Jesus parece ser apenas Deus que se passa por humano:

antes de se encontrar com Natanael já o havia visto (Jo 1,48); conhece as pessoas por dentro

(Jo 2,24-25); diante da multidão faminta sabe o que fazer, mas pergunta aos discípulos só para

prová-los (Jo, 6,6); sabe que será traído por Judas (Jo 6,64); sabe da morte de Lázaro antes de

chegar a Betânia (Jo 11,14). Considerando o cap. 17 de João, Käsemann propõe que o único

interesse do evangelista é anunciar a glória do Logos preexistente137. Segundo Käsemann,

João reinterpretou a vida de Jesus para significar que realmente Deus andou na terra, sendo

um evangelho marcado por um “docetismo ingênuo”. No evangelho já se apresentaria uma 135 Cf. SCHNACKENBURG, op.cit., v. I, p. 284.136 Cf. KÄSEMANN, Ernst. El Testamiento de Jesus el lugar histórico del Evangelio de Juan. Salamanca: Sígueme, 1983.137 Cf. COTHENET, E. O Evangelho segundo São João. In: Os escritos de São João e a Epístola aos Hebreus. São Paulo: Paulinas, 1988. p. 93.

teologia dogmática, em que a questão da natureza de Jesus é evidenciada, portanto abrindo

caminho para a Patrística138.

Uma leitura imediatista e popular que desejasse falar da humanidade de Jesus,

insistiria nos aspectos físicos mencionados no texto como sede, cansaço, tristeza. Parece que

João vai além disso. Apresenta-se agora alguns textos joaninos em que o termo “humano”

aplicado à pessoa de Jesus permite uma aproximação com o termo “carne”.

3.4.1 – Jesus e a mulher samaritana – Jo 4,1-30

A narrativa do encontro de Jesus com a samaritana é marcada por várias

polissemias, os símbolos se abrem em significados sempre mais profundos. Há no episódio

um Jesus sedento (Jo 4,7). A cena bastante plástica é facilmente imaginável, um galileu com

sede, mas num território inimigo e encontrando-se com uma mulher.

O aspecto da sede é quase irrelevante, ele é apenas o motivo inicial da conversa,

pois, em seguida, Jesus afirma que a mulher é quem deveria lhe pedir água (Jo 4,10). O

contraponto à humanidade de Jesus é dado pela afirmação de que ele é portador de uma fonte

de água, água viva (Jo 4,13s)139. A partir do elemento acima (sede), pouco se pode falar da

humanidade de Jesus, mas há um indicativo mais exemplar.

No v. 29, a mulher samaritana anuncia aos de sua cidade que encontrou um

“humano” que lhe disse tudo o que fizera. O termo “humano” designa aquilo que é a primeira

percepção da Samaritana. “Alguém”, semelhante a ela, um “humano” e não um anjo foi quem

desvelou a sua vida. “Não seria ele o Messias?”140, ela pergunta. A Samaritana não chega com

uma afirmação de fé num Deus encarnado, ela parte da mais pura constatação de que havia

conversado com um “humano”, sem dúvida, especial. Talvez aqui, pode-se falar de uma fé na

humanidade de Jesus que é caminho para a proclamação de sua messianidade. Esse

138 Cf. BROWN, Raymond E. Jésus dans les quatre évangiles : introduction à la christologie du Nouveau Testament. Paris : Cerf, 1996. p. 282-285.139 Cf. PANIMOLLE, op.cit., p. 26.140 Cf. BROWN, A comunidade, p. 46. – Acerca da compreensão messiânica dos samaritanos: Brown tece o seguinte comentário: “É muito improvável que um samaritano crente aclamasse Jesus como o Messias, no sentido davídico, pois toda a teologia samaritana era orientada contra as pretensões da dinastia davídica e de Jerusalém, a cidade de Davi. De fato, o termo ‘Messias’, é de consenso geral, não aparece em escrito samaritano antes do século XVI. Com efeito, os samaritanos esperavam um Taheb (aquele que volta, o restaurador), um mestre e um revelador; e pode ter sido nesse sentido que os samaritanos aceitaram Jesus como o ‘Messias’ – note-se que a samaritana diz em 4,25: ‘Sei que o Messias (que se chama Cristo) está para vir. Quando ele vier, nos anunciará tudo’”. – Também: MAGGIONI, op.cit., p. 317.

permanece o grande desafio cristão, partir da humanidade para reconhecê-lo como Messias.

Há um movimento em que do humano chega-se ao caráter salvífico/redentor.

Comparado com o v. 14a do Prólogo, há quase o mesmo movimento. O Logos

feito carne tornou sua glória visível à humanidade; o “humano” Jesus tornou visível sua glória

à samaritana. A mulher reconhece em “Jesus-carne” o Messias e, por isso, sai e anuncia a fé.

No texto, o acento parece colocado na constatação de que Jesus é uma pessoa humana141 que

revela-se como Messias. Não há nenhum esforço do evangelista para provar a humanidade de

Jesus, mas sim uma insistência de que uma samaritana reconheceu naquele homem o

salvador.

3.4.2 – Jesus e o debate sobre a filiação de Abraão – Jo 8,39-47

Em João, há um movimento de tensão entre a revelação de Deus em “Jesus-carne”

e a incompreensão humana142. No contexto do debate entre Jesus e as autoridades judaicas

sobre o tema da filiação de Abraão, há um indicativo da humanidade colocado nos lábios de

Jesus. Diz o v. 40 “Mas agora procurais matar-me, a mim, ‘humano’ que vos tem dito a

verdade que de Deus tem ouvido; Abraão não fez isto”143. Não se pretende aqui discutir se

Jesus tinha ou não consciência de sua divindade, mas faz-se necessário assinalar o quanto o

texto evangélico insistiu nessa humanidade, a ponto de chegar a proclamá-la como identidade

supostamente dita pelo próprio de Jesus.

Novamente, o aspecto constrangedor é que as autoridades não conseguem ver

nessa humanidade de Jesus a glória que Deus quer revelar. O texto termina com uma

acusação, feita por Jesus, de que as autoridades não o escutam porque elas não são de

Deus (v. 47) e também não são ovelhas de seu rebanho (Jo 10,2-6).

Jesus é o humano que diz a verdade do Pai, justamente porque dela participa

(v. 40; 46). A idéia de participação na vida de Deus está presente durante todo o texto,

141 Cf. TUÑÍ VANCELLS, J.-O. El testimonio del evangelio de Juan: Introducción al estúdio del cuarto evangelio. Salamanca: Sigueme, 1983. p. 109.142 Cf. MAGGIONI, op.cit., p. 315.143 As traduções tendem a suprimir anthropos porque parece ter apenas o valor do pronome indefinido tíj. A citação acima foi feita a partir da tradução de João Ferreira de Almeida que é mais literal. Assim diz o texto grego: “nu/n de. zhtei/te, me avpoktei/nai a;nqrwpon o]j th.n avlh,qeian u`mi/n lela,lhka h]n h;kousa para. tou/ qeou/\ tou/to VAbraa.m ouvk evpoi,hsen”. – BROWN, El Evangelio, v.1, pt. 2, p. 596. De acordo com Brown, o termo “humano” no v. 40 é apenas um semitismo com o significado de “alguém”. Apesar do mencionado acima, achou-se por bem refletir essa passagem pela relação do termo com a questão da humanidade. Tão humano a ponto de ser apenas “alguém”, mais um dentre outros frágeis e impotentes diante das ações de uma religião desvinculada da vida e submissa ao poder romano.

afirmando que a palavra de Jesus deveria ser acolhida como verdade vinda de Deus. Pode-se

concluir que a comunidade joanina tinha como assegurado o valor da humanidade de Jesus e o

proclamava como elemento de sua fé. Não isolado, mas em harmonia com a revelação da

glória divina. Ademais, a imagem apresentada de Jesus é a do humano obediente ao Pai e a

rejeição a este enviado prova que a pretensa filiação a Abraão nada mais significa144.

Adicione-se a tudo isso a ironia presente no texto, pois se Abraão foi sensível e escutou a voz

de Deus (Gn 12,1-9 = busca de uma nova terra; Gn 15,1-6 = promessa de descendência

numerosa; Gn 22,1-19 = sacrifício de Isaac), seus filhos (judeus) deveriam também fazê-lo. A

situação das autoridades judaicas, no texto acima, enquadra-se perfeitamente no v. 11 do

Prólogo.

3.4.3 – Jesus e a cura do cego de nascença – Jo 9,1-41

O episódio da cura do cego de nascença é exemplar, pois internamente há uma

construção do processo de conhecimento vivido pelo cego que culmina com uma profissão de

fé na pessoa de Jesus. Depois da cura, o que fora cego é questionado por seus vizinhos sobre o

como teria recuperado a visão. A resposta dele (v. 11) constata a realidade imediata da pessoa

que o curou. Diz o cego: “O humano, chamado Jesus, fez lodo, e untou-me os olhos, e disse-

me: ‘Vai ao tanque de Siloé, e lava-te’. Então fui, e lavei-me, e vi.” Na primeira parte da

narrativa, não há alusão ao poder de Jesus como sendo o Messias, mas sim uma constatação

da sua existência humana145. Mateos e Barreto comentam Jo 9,11 assim:

A resposta do que fora cego, que volta a enumerar as ações de Jesus (cf. 9,6), evidencia a importância do relato de cura. O curado considera Jesus homem como ele (9,1: um homem; 9,11: este homem). Sabe que se chama Jesus, que no contexto poderia aludir ao seu significado etimológico, “Deus salva”, mas não o conhece. O certo é que, seguindo as suas instruções, obteve a vista146.

A aproximação que Mateos e Barreto fazem das duas menções do termo “homem”

(na verdade, a;nqrwpoj, portanto “humano”) é bastante justa. De acordo com ela, pode-se

concluir que realmente a utilização do vocábulo “humano” indica a condição humana de Jesus

e a identificação com a humanidade. A partir do ponto de vista dos que não crêem em Jesus

como o Messias, ele não passa de mais um ser humano.

No v. 16 os fariseus referem-se a Jesus como “esse homem” e criticam sua não-

observância do sábado. Parece haver certa intenção do evangelista em mostrar que tanto o 144 Cf. LÉON-DUFOUR, Leitura do Evangelho segundo João, v. II, p. 206-207.145 Cf. BROWN, Evangelho de João, p. 85-86.146 MATEOS & BARRETO, O Evangelho, p. 413 [grifo dos autores].

cego como os fariseus apenas percebem a humanidade de Jesus. Porém, diferentemente, o

cego concluirá o processo de conhecimento, afirmando primeiramente que Jesus é um profeta

(v. 17) e, em seguida, proclamando-o como Senhor (v. 36); enquanto os fariseus

permanecerão numa cegueira produzida pelo pecado e pela persistência em não acolher o

Messias no “homem Jesus” (v. 41). É válido ressaltar que o evangelista coloca no passado os

conflitos que sua comunidade tinha com a sinagoga e o judaísmo formativo147.

Outra referência ao título “humano”, aplicado a Jesus, encontra-se no v. 24. Os

fariseus aproximaram-se do curado da cegueira e exigiram dele uma proclamação de fé em

Deus. No pensamento farisaico, somente o Deus Único poderia ser adorado e não admitiam

que Jesus fosse considerado o “Cristo” (v. 22). Os fariseus acusam o “humano” (Jesus) de ser

um pecador (v. 24), ao que o homem curado responde reafirmando a cura (v. 25). É em

“Jesus-carne” que, ironicamente, o cego vê a presença de Deus; enquanto que os que

pretensiosamente dizem enxergar vêem apenas um ser humano. Cristo é o “humano” que

torna o outro mais humano, à medida que este último segue suas orientações e consegue

enxergar a ação de Deus nas ações de “Jesus-carne”.

Mais uma vez, tem-se a impressão de que o evangelista insiste não em afirmar uma

humanidade em oposição a pensamentos docetistas, mas sim como sinal da dificuldade que a

comunidade judaica experimentou diante de uma manifestação divina imprevista e

surpreendente: o Altíssimo revelado no humano. O anacronismo usado para apresentar o

conflito da Igreja com a sinagoga é meio hábil para mostrar que o discípulo precisa escolher

entre o ensinamento da sinagoga ou a fidelidade a Cristo148.

3.4.4 – Jesus acusado de blasfêmia – Jo 10,22-39

O contexto da perícope é o de uma interrogação dos judeus acerca da real

messianidade de Jesus (v. 24). Diante da resposta de Jesus na qual se afirma a sua unidade

com o Pai (v. 30) no agir, os judeus reagem acusando-o de ser apenas um “humano” com

pretensão de Deus (v. 33). A ironia de João joga na fala dos judeus aquilo que é afirmação

cristã, descrevendo quem, na verdade, é Jesus. A dita blasfêmia da fala de Jesus só pode ser

compreendida como tal pela incapacidade de se ver em “Jesus-carne” o mensageiro de Deus.

De modo inverso, o evangelista apresenta Jesus numa réplica em que acusa os judeus de

serem blasfemos por não reconhecerem o que a própria Escritura afirma: “Eu declaro: embora 147 Cf. LÉON-DUFOUR, Leitura do Evangelho segundo João, v. II, p. 236-237.148 Cf. Ibid., p. 238.

sejais deuses e todos filhos do Altíssimo” (Sl 82,6).

Na realidade, o problema apresentado pelo evangelista, no argumento dos judeus,

é o de que o “humano” Jesus faz-se Deus, acusação também presente em Jo 5,18. Os judeus

pensam que Jesus se coloca como Deus. Jesus, o enviado de Deus, porém não afirma ser

Deus, mas sim “Filho de Deus” (Jo 5,19s; 10,36). A expressão “Filho de Deus”, em João,

reveste-se de importância, particularmente nesse caso, por dois motivos: a) por afirmar a

unidade de Jesus com o Pai e o caráter próprio da personalidade de Jesus como enviado;

b) por afirmar que é somente na realidade histórica de Jesus que se tem acesso ao amor de

Deus; ou seja, a vida histórica de Jesus é a atuação do amor existente entre o Filho e o Pai149.

Apesar de Jesus responder, inicialmente buscando o argumento da Escritura e só

posteriormente afirmando sua filiação divina, o v. 32 já tinha afirmado que o seu agir era o

agir do Pai (sinais). Se os judeus viam em Jesus apenas um “humano” que pecou por levar

outros a acreditarem que ele era Deus, os cristãos da comunidade joanina viam em “Jesus-

carne” a única possibilidade de se participar do amor do Pai. No texto, os judeus concentram-

se no discurso, enquanto Jesus aponta para as obras que são a expressão do amor do Pai150.

3.4.5 – Jesus, o sinal de Lázaro e a reação do Sinédrio – Jo 11

Todo o capítulo 11 é uma grande introdução ao mistério da paixão. Nesse

contexto, após a divulgação do sinal realizado por Jesus de revivificar o amigo Lázaro, o

evangelista fala da reunião do Sinédrio que tramará contra Jesus.

Um aspecto da humanidade de Jesus que costuma ser realçado na leitura deste

texto é o da sua tristeza diante da morte do amigo. João, num clima de suspense que segura o

leitor, apresenta um Jesus que chora, que partilha da dor da família enlutada (v. 35). É um

Jesus humano, que sente, que expressa seus sentimentos, que se expõe. Será mesmo? Brown

vê no sinal da ressurreição de Lázaro justamente o oposto, pois, segundo ele, ali se apresenta

uma relativização da humanidade de Jesus. Brown pronuncia-se da seguinte forma:

Ele [Jesus] ama Lázaro mas com um amor estranhamente privado de compaixão humana, porque ele não vai procurá-lo quando ele está doente (11,5-6), e a morte de Lázaro se torna um momento feliz para instruir sobre a fé (11,11-15). A vista da irmã de Lázaro chorando parece irritá-lo (11,33), e

149 Cf. DODD, op.cit., p. 349-350.150 Cf. MATEOS & BARRETO, O Evangelho, p. 454-455.

não está claro se suas lágrimas (11,35) são de tristeza por causa do amigo ou por causa da falta de fé151.

Adicione-se aos elementos de Brown o fato de que nos vv. 41-42 enfatiza-se a

intimidade de Jesus com o Pai. Sua oração é plena de confiança, e o sinal é colocado como

elemento que ajudará a comunidade a crer na missão de Jesus como enviado. A construção

narrativa aponta para a ressurreição de Jesus, que, diferentemente de Lázaro, se libertará das

amarras da morte definitivamente. Novamente, como no texto da Samaritana, o que parecia

ser indício de humanidade de Jesus (tristeza) acaba por ser rechaçado.

O grupo de fariseus reunido, tramando a morte de Jesus, é o retrato da rejeição à

revelação de Deus. Diante dos sinais realizados por Jesus, os fariseus deveriam reconhecê-lo

como o Messias, porém só o vêem como um humano (v. 47). Dentro da perspectiva do duplo

pano de fundo (o tempo de Jesus e o tempo da comunidade), o evangelista apresenta, numa

“profecia pós-evento”, que um dos motivos que levam os judeus a recusar Jesus seria o de

evitar a catástrofe da destruição do santuário e da nação pelo Império Romano (v. 48).

Utilizam o bem-estar nacional como justificativa para a recusa em acolher Jesus. O

movimento messiânico esperado pela ortodoxia judaica contava com um libertador do povo,

não com um agitador, pois era assim que consideravam o movimento de Jesus152. Parece que o

vir na “carne” não facilitou o encontro de Deus com o seu “povo eleito”.

3.4.6 – Jesus diante de Pilatos – Jo 19,1-16

Resta uma menção do termo “humano” na cena de Jesus com Pilatos. Depois de

mandar açoitar Jesus, Pilatos o apresenta simplesmente como “o humano” (v. 5). Há certo

desprezo na palavra de Pilatos153. Tal atitude parece ser uma manobra do evangelista com

duplo propósito: Pilatos constata a humanidade de Jesus e a comunidade de fé a professa

como realização da salvação. Colocada no discurso dos adversários (ironia joanina154), a

afirmação de que Jesus se fez filho de Deus (v. 7), é a proclamação de fé no “homem Jesus”

como enviado e revelador do Pai.

O termo “humano” na boca de Pilatos tem o sentido depreciativo de “acusado”,

com acentuação na sua fraqueza e impossibilidade de fazer o mal. Porém, para o evangelista

151 BROWN, A comunidade, p. 119-120.152 Cf. BUSSCHE, op.cit., p. 353.153 Cf. MÜLLER, op.cit., p. 72.154 Cf. BROWN, Evangelho, p. 16.

evoca o título de “Filho do Homem”, que no Quarto Evangelho exprime o mistério cristão155.

Há, possivelmente, um desejo do evangelista de afirmar a humanidade de Jesus como lugar

único de manifestação do sagrado. Para a comunidade cristã, o dito “Eis o humano” (v. 5) soa

como sinônimo de “o Logos fez-se carne”.

Na pessoa de Jesus, despojado de toda a “realeza do mundo”, vislumbra-se o

verdadeiro ser humano, aquele que é livre para se entregar até o fim num gesto pleno de

amor156. Novamente, o que está em jogo não é uma dificuldade em se aceitar a humanidade de

Jesus. Pelo contrário, ela é um dado plenamente aceito e inequívoco. Como diz Panimolle: “O

Cristo joanino não é um Deus que caminha sobre a terra, mas o Verbo que se fez carne, feito

nosso irmão, em tudo semelhante a nós”157. O que importa não é pregar a humanidade sofrida

do “Jesus-carne”, mas sim o êxito final de sua missão que se dará pela entrega na cruz.

3.5 – A cristologia do envio e o termo sa,rx

Há certo consenso de que é difícil delimitar a cristologia joanina158 devido as

inúmeras possibilidades que o texto permite, desde partir de um título aplicado à pessoa de

Jesus até tomar parte ou todo o Evangelho (atos, palavras, relações, festas, topografia etc.). É

evidente que se encontra em João uma concentração cristológica. Parece que o objetivo do

evangelista era responder à questão “quem é Jesus?”159. Todavia, ele não dá a resposta

imediatamente; pelo contrário, vai elaborando uma rede de sinais, palavras e ações de Jesus

que permitem ao leitor fazer seu próprio caminho de conhecimento cristológico. Tal

pedagogia é totalmente coerente com o propósito do Evangelho de ser um testemunho acerca

de Jesus, que leva à vida oferecida por ele, o Messias160.

A cristologia joanina é, segundo Müller, uma cristologia do envio marcada pelo

esquema do caminho de descida e subida do Redentor, originária do tráfego de mensageiros

no antigo Oriente e adotada para retratar mensageiros religiosos161. Alonso Schökel, tratando

da linguagem nas Escrituras recorda três tipos de mensageiros que eram comuns na

antiguidade: a) o entregador de cartas escritas; b) o que dizia a mensagem em alta voz e tinha

155 Cf. NICCACCI & BATTAGLIA, op. cit., p. 247.156 Cf. MATEOS & BARRETO, O evangelho, p. 755.157 PANIMOLLE, op.cit., p. 114.158 Cf. FERRANDO, M. A. Ver Jesús, un aspecto fundamental de la Cristología del Cuarto Evangelio. Teología y vida, Chile, v.22, n. 3, p. 203, abr./jun. 1982.159 Cf. PANIMOLLE, op.cit., p. 98.160 Cf. KONINGS, op.cit., p. 51.161 Cf. MÜLLER, op.cit., p. 60.

o escrito como sua confirmação; c) o mensageiro categorizado, que recebia o assunto para

expô-lo e desenvolvê-lo segundo as circunstâncias162. “Jesus-carne” é aquele que, não faz a

sua própria vontade nem diz a sua própria palavra, somente faz e anuncia a vontade Pai que o

enviou (Jo 7,16ss; 12,44ss); na condição mortal e no pleno exercício de sua liberdade, ele é

aquele mensageiro categorizado que na história realiza o agir de Deus163. O agir e o ser de

Jesus são condizentes com a incumbência que ele tem de revelar o Pai. “Jesus-carne”, na sua

existência na provisoriedade terrestre, é o mensageiro elevado ao grau máximo, pois ele

mesmo já é a mensagem do Pai.

Essa cristologia do envio não se apega nem ao pensamento de uma cristologia do

alto, da qual se pudesse afirmar que em João só se trata da divindade de Jesus, nem se fixa no

outro extremo, na chamada cristologia de baixo. A cristologia do envio está ordenada em

vistas de uma incumbência que é revelar o Pai e sua glória164. A idéia do envio é retomada

diversas vezes: Jesus foi enviado para salvar (Jo 3,17); não veio por si mesmo, pois procede

daquele que é a Verdade (Jo 7,28s); os que o rejeitam não sabem de onde ele veio nem para

onde ele vai (Jo 8,14); foi o Pai quem o enviou (Jo 8,16.42). Müller define a incumbência de

Jesus, como enviado, da seguinte forma:

A incumbência do único Filho gerado de Deus consiste em transmitir vida divina ao mundo, que não conhece a vida verdadeira. Para isso ele, a quem o Pai enviou do mundo celestial, tem de tornar-se humano. É com isso que inicia a execução de sua tarefa165.

O amor de Deus para com a humanidade é revelado no ato de enviar seu Filho,

pois o “Jesus-carne” joanino é o revelador. Não veio trazer uma outra mensagem a não ser a

de que em sua pessoa e por sua pessoa o ser humano tem acesso a Deus, antes longínquo e

inacessível. A encarnação é um dos momentos do esquema do envio166 e por ela, o “Jesus-

carne” torna-se caminho para o Pai (Jo 14,6). O Cristo joanino é a abertura para o mistério de

Deus. Nas imagens do próprio Evangelho: Jesus é o caminho (Jo 14,6)167, a porta (Jo 10,9), a

162 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L. A Palavra Inspirada. São Paulo: Loyola, 1992. p. 51. – Também: RAD, Gerhard von. Sabiduria en Israel: Proverbios, Job, Eclesiasteés, Eclesiástico, Sabiduría. Madrid: Cristiandad, 1985. p. 30.163 Cf. VITÓRIO, op.cit., p. 439. – O autor valoriza a idéia de movimento, de êxodo, em direção ao Pai. Jesus tem papel fundamental nesse movimento e age em nome daquele que o enviou, não é um mero mediador, mas sim um agente legítimo do Pai.164 Cf. MÜLLER, op.cit., p. 61.165 Ibid., p. 68.166 Cf. MÜLLER, op.cit., p. 67.167 Cf. VITÓRIO, Jaldemir. op.cit., v. 1, p. 124. – Segundo o autor, a metáfora utilizada por Jesus, “caminho”, dá à experiência humana de relação com Deus um dinamismo que supõe ruptura com determinada situação e colocar-se em marcha na direção do objetivo a ser alcançado.

visibilidade do Pai (Jo 14,9)168, é uno com o Pai (Jo 17,22). A pessoa de Jesus é a via para se

chegar à plenitude do próprio Deus169.

O termo “carne” em João situa-se nesse contexto da cristologia do envio. Deus não

se faria conhecer realmente aos humanos senão se fizesse “carne”. Ao romper com todas as

outras imagens de Deus, o Verbo encarnado mostra a face de um Deus até então

desconhecida. Um Deus que para falar aos seus e comunicar-lhes a salvação é capaz de

assumir a condição de fragilidade, própria da humanidade. O Deus onipotente fez-se frágil.

Numa meditação, Von Balthasar diz:

O Verbo veio, pois, ao mundo. A vida eterna tomou o lugar dum coração humano. Resolveu habitar nessa frágil morada e, aí, deixar-se atingir. Logo, a sua morte era coisa assente. Porque a origem da vida é indefesa170.

Em “Jesus-carne”, a condição mortal, é fator determinante para a plena realização

do projeto de Deus de tornar a humanidade participante de sua vida eterna, que é conhecê-lo

(Jo 17,3). Na “carne” de Jesus, a “carne” de cada pessoa, ou seja, sua existência, é

contemplada e convocada ao seu destino último: participar da glória de Deus, o Deus que foi

glorificado pelo agir de “Jesus-carne” (Jo 17,4).

A cruz é, para João, uma exaltação que se insere na missão de Jesus. Importante

recordar como o relato da paixão em João é marcado por um Jesus que tem controle absoluto

sobre a situação, ele é que está decidido a dar a sua vida (Jo 10,11), ele é o grão caído na terra

que produzirá muito fruto (Jo 12,24). A existência na “carne” não é a definitiva, mas é real,

não podendo ser amenizada. Verdadeiramente Jesus toca a realidade humana171. E a morte de

Jesus é passagem, saída do mundo, para retornar Àquele que o enviou. Da mesma forma que

ele veio, ele deve voltar e só pode fazê-lo após cumprir com êxito sua missão172. Na morte

irrompe definitivamente a revelação de Deus à humanidade. A ressurreição é a ocasião, em

que o Pai revela a íntima ligação existente com o Filho, que não se rompeu pela encarnação

nem pela morte de cruz.

Segundo Müller, na concepção da cristologia do envio, o nascimento e a morte de

Jesus são momentos na existência do enviado. Sendo assim, mais que a humanidade de Jesus,

o predominante em João seriam os aspectos celestiais do enviado, que precisavam ser

168 Cf. Ibid., p. 252-255. Segundo Vitório, o Pai pode ser visto nas obras realizadas por Jesus. Enquanto a teofania veterotestamentária afirmava a impossibilidade de se ver Deus, o evangelho de João apresenta o ser e o agir de Jesus como a realização dessa visão. 169 Cf. TUÑÍ VANCELLS, Jesús, p. 101.170 BALTHASAR, H. U. von. O coração do mundo. Porto: Tavares Martins, 1959. p. 47.171 Cf. KONINGS, op.cit., p. 314. – O esquema ilustrativo usado pelo autor é bastante didático e ajuda a compreender a cristologia do envio.172 Cf. MÜLLER, op.cit., p. 68.

realçados já que a condição do “Jesus-carne” era patente naquele momento histórico173.

3.6 – O Jesus histórico em João

Ao falar da humanidade de Jesus, pode-se inquirir sobre o chamado “Jesus

histórico”. Theissen e Merz apontam cinco elementos em João que divergem dos sinóticos e

remetem ao Jesus histórico: a) ligação dos discípulos de Jesus com o Batista; b) Betsaida

como origem de Pedro, André e Filipe; c) melhor explicitação das expectativas despertadas

por Jesus e dos motivos que levam à sua condenação; d) narração de um interrogatório do

sinédrio no lugar de um processo judaico contra Jesus; e) morte de Jesus antes da Páscoa174.

Pode-se associar tudo isso ao fato de que a afirmação de Jo 1,14a torna indubitável a realidade

histórica de “Jesus-carne”. Realidade esta lida corretamente pelo evangelista ao produzir a

partir da mesma uma teologia narrativa. Ainda pode-se comparar que, embora tido como

Evangelho teológico ou espiritual, João é o que apresenta Jesus de forma mais humana: não é

um milagreiro, faz sinais que exigem uma tomada de decisão; sua transfiguração dá-se na

cruz; foi um pregador incompreendido e, por isso mesmo, não aceito; guardava em sua

“carne” o segredo de que é no humano, na história, que Deus revela-se; desafiou a

humanidade a aceitá-lo como enviado do Pai.

Toda a pesquisa em relação ao Jesus histórico, amplamente desenvolvida e

bastante divulgada, diante do Evangelho segundo João e, especificamente, diante do termo

“carne” (expressão de fragilidade humana na história) traz à superfície algumas questões. O

que (fatos, palavras) da história de Jesus pode ser reconstituído a partir do conjunto do Quarto

Evangelho? Como (pergunta pelo método) desentranhar do texto de João elementos que

pudessem contribuir para uma visão do Jesus histórico? Qual a melhor maneira para se pensar

o “Jesus-carne” sem cair numa recriação das “vidas de Jesus”175 a partir da história, conceitos

e subjetividade de quem a pensa?

173 Cf. Ibid., p. 72-73.174 Cf. THEISSEN & MERZ, op.cit., p. 56-57.175 Cf. MURPHY-O’CONNOR, A antropologia, p. 33. – Comentando acerca da aplicação do conceito de humano à pessoa de Jesus no contexto das cartas paulinas, Murphy-O’Connor diz: “[...] nas cerca de 60.000 biografias de Jesus escritas durante os séc. XVIII e XIX, o retrato de Jesus que emerge está condicionado principalmente pela subjetividade do autor que cria um herói em conformidade com suas próprias aspirações. Em conseqüência, Jesus surge de várias maneiras como idealista, racionalista, romântico, socialista etc”. – Também: THEISSEN & MERZ, op.cit., p. 24. Os autores recordam a afirmação de A. Schweitzer de que “cada imagem de Jesus da teologia liberal revelava a estrutura de personalidade que, aos olhos do autor, valia como o ideal ético mais digno de almejar”.

Um Deus que entra na história (“Jesus-carne”), mas que tem sua história narrada a

partir do ponto de vista teológico: um escrito sem preocupação com datas; contendo algumas

incongruências topográficas; marcado por personagens e diálogos ficcionais; silencioso em

relação a alguns episódios dos sinópticos e original na narração de outros não-mencionados

por eles176. Assim é João, quanto à sua forma de apresentar Jesus. Porém, pode-se ver no texto

uma história implícita que fala tanto da comunidade quanto da realidade vivida por Jesus, ou

seja, o duplo pano de fundo. Tal tarefa não é tão simples, mas intenta elucidar o que seria de

um ou outro momento histórico (de Jesus ou da comunidade) ou dos dois tempos. O que se

pretende aqui não é realizar tal empreitada, mas apenas sinalizar o valor histórico do Quarto

Evangelho. Um dos problemas que pode surgir é o de se fazer perguntas ao texto que o seu

autor não se fazia no momento de sua compilação. Ou ainda, o de ver no texto questões que

são da atualidade dos leitores.

Para a comunidade joanina, a afirmação apresentada em Jo 1,14a expressa a

consistência da verdade que será anunciada pelos cristãos e que veio ao mundo na pessoa de

Jesus. Ou, em outra formulação, a verdade de Deus, que, no mundo, é “Jesus-carne”. João faz

história no sentido mais próprio da palavra, ele não é um cronista, mas sim um intérprete dos

fatos, que procura organizá-los de modo inteligível com vistas a um objetivo177. João rompe,

já no passado, com o mito de uma história isenta de influências.

Se é fato inquestionável que João é uma obra teológica, é também inquestionável

que a afirmação de Jo 1,14a tem por objetivo um sentido histórico178. O evangelista não quis

apresentar a vida, paixão, morte e ressurreição da mesma forma que os sinópticos, sua

composição insiste no lugar histórico, essencial para a realização da missão de “Jesus-carne”.

“O Logos se fez carne” (Jo 1,14a) propõe que o Jesus confessado pela comunidade joanina

realmente existiu e o que importa para ela é resgatar o sentido de sua vida.

3.7 – Conclusões acerca do termo sa,rx em João

A afirmação de Jo 1,14a: “E o Logos se fez carne” insere-se perfeitamente na

compreensão hebraica de “carne”. No Prólogo, nessa aplicação à pessoa de Jesus, “carne”

significa a condição humana, frágil, perecível, mortal, crucificável de Jesus. É a manifestação

da nova forma de Deus comunicar-se com a humanidade, não mais nas alturas, mas na

176 Cf. BLANK, op.cit, p. 30-37.177 Cf. DODD, op.cit., p. 589.178 Cf. Ibid., p. 587-588.

história humana com tudo o que ela permite. João assegura a realidade histórica da existência

de Jesus pela declaração de que o Logos preexistente faz-se ser humano e estabelece morada

na terra.

Dizer que o Logos fez-se “carne” não significa em João um deixar de ser Deus,

pois ele permanece o mesmo e agora adquire algo novo, ou seja, a participação na condição

mortal dos humanos; e, ao mesmo tempo, revela outra novidade, Deus faz-se igual aos

humanos, “fala a mesma língua”. “Carne” no v. 14a do Prólogo também não se relaciona com

pecado, ela é sinônimo de enriquecimento da humanidade, chamada a reconhecer no “Jesus-

carne” aquilo a que todo ser humano é convidado a participar, a saber, a glória divina. O fato

de se encarnar é justamente o que possibilita ao Logos manifestar, na doação irrestrita de si na

cruz, todo o amor que Deus tem pelos seus. Não só a cruz salva, mas a encarnação já é a

possibilidade de encontro com a salvação que é “Jesus-carne”. Ele não veio para condenar o

mundo, mas sim para salvá-lo (cf. Jo 3,17).

Outro aspecto que se evidenciou foi o da visibilidade. O ser na “carne” permite

também ao Logos tornar-se visível. O agir na história não é uma elucubração, mas sim algo

real, concreto, palpável. Foi nessa condição que o “Jesus-carne” deixou-se conhecer e revelou

o rosto de Deus. Porém, o desafio, principalmente para os judeus, foi aceitar que na “carne de

Jesus” Deus revelava-se por completo e inesgotavelmente. A ocorrência de “carne” em

Jo 1,14a pode ser associada às do cap. 6. A encarnação é também o que permite ao Cristo

entregar seu próprio ser como alimento e bebida para a humanidade. E neste cap. 6 se

explicita claramente a resistência dos judeus à humanidade de Jesus.

As outras ocorrências de “carne” em João não dizem respeito ao Cristo e oscilam

de significado de acordo com o contexto em que se encontram. Certo é que, para João, não há

uma disputa entre “carne” e “espírito”; nele o dualismo é mais a manifestação das esferas

distintas, a da humanidade e a de Deus. E quem desejar experimentar por completo a

participação na salvação oferecida pelo “Jesus-carne” deve nascer na força do Espírito.

Quando João critica o termo “carne”, critica, na verdade, a pretensão humana de se dar por

satisfeita apenas na condição terrestre, esquecendo que o projeto de Deus é o de uma

verdadeira comunhão com ele.

Embora não se tratando de um sinônimo, como se mencionou, foram analisadas as

passagens nas quais o termo “humano”, evidente referência à humanidade de Jesus, dizia

respeito diretamente à sua pessoa. “Jesus-carne” é realidade pacificamente aceita no processo

de elaboração do Quarto Evangelho. Os judeus não tinham problemas em aceitar que Jesus

fosse ser humano; ao contrário, só viam nele o ser humano, portanto, não havia uma

preocupação com o docetismo. No diálogo com os da sinagoga, a comunidade joanina

enfrentou o desafio de convencê-los acerca da missão de “Jesus-carne” como Filho de Deus e

partícipe de sua divindade. João não tinha a pretensão de distinguir em Jesus o que era

humano e o que era divino. O anúncio do Evangelho era justamente o de que naquele ser

humano Deus manifestava-se. João não escreve um Evangelho a partir do alto; se fala do

Logos preexistente, é porque o enviado na “carne” permitiu conhecer o alcance do mistério de

Deus. Para João, falar de “Jesus-carne” é falar de Jesus por completo, ou seja, a preexistência

do Logos, a sua existência terrena e, também, a sua exaltação na cruz e ressurreição. Tuñí

Vancells o diz da seguinte maneira:

A humanidade de Jesus não é, portanto, para a comunidade joânica um aspecto historicamente relevante do passado. É precisamente na confissão onde se recorda a realidade humana de Jesus como algo que pertence indissoluvelmente ao objeto da mesma confissão. A comunidade do Evangelho de João não está apresentando a realidade terrena de Jesus como algo que aconteceu. A realidade terrena de Jesus segue sendo um aspecto central da confissão atual da comunidade179.

Na perspectiva joanina, o “humano Jesus” é o revelador que supera todas as

expectativas oficiais de messianismo e traz a novidade que o cristianismo persiste em

anunciar: “O Logos se fez carne!” (Jo 1,14a). O círculo hermenêutico que o termo “carne”

propõe faz uma evolução ao longo do Evangelho, partindo da referência da encarnação até a

alusão da paixão (Jo 19,5). O projeto de Deus feito “carne” revela-se em plenitude na

glorificação de Jesus pendente na cruz. O círculo não se fecha, abre-se novamente quando a

comunidade reconhece que é na vida humana que o “Jesus-carne” continua a manifestar-se e

que, somente acreditando, o ser humano descobre o sentido de sua existência e o alcance da

graça que Deus comunicou na pessoa de seu Filho.

4 – “Carne” nos outros escritos joaninos

Como derradeiro passo do estudo semântico de “carne”, serão apresentadas as três

ocorrências do termo nas cartas de João. Pretende-se, com isso, comparar e confirmar alguns

elementos já elucidados na reflexão sobre João.

179 TUÑÍ VANCELLS, Jesus, p. 92.

4.1 – Concupiscência da “carne” – 1Jo 2,16

Em 1Jo 2,16, tratando sobre o agir do cristão no mundo, o autor da carta escreve:

“Porque tudo o que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a

soberba da vida, não é do Pai, mas do mundo”. A expressão “concupiscência da carne”

apresenta o termo evpiqumi,a. O substantivo evpiqume,w, no NT, tem várias

possibilidades de tradução, girando sempre em torno da idéia de desejo, cobiça. Segundo

Schönweiss, nos escritos joaninos, o desejo tem sempre uma fonte mais antiga; não tendo sua

origem no humano, mas sim no mundo180. Pode-se compreender evpiqumi,a como um

desejo ardente, tão desenfreado a ponto de gerar preocupações, concupiscência. Pois bem,

ligado ao substantivo sarkój, a expressão completa indica “todo desejo desordenado ligado à

carne”.

Na verdade, “carne”, nesse caso então, seria a oposição ao mundo de Deus181 e a

explicitação de toda pretensão humana de se auto-sustentar. “Carne” no contexto joanino é o

ser humano na sua fugacidade, na sua precariedade de mortal (Jo 1,14), na sua totalidade

terrestre, na sua necessidade de aperfeiçoamento; sendo assim, o que é condenado na epístola

é o apegar-se a essa condição terrestre, o ser conquistado e aprisionado pelos sentidos. Pode-

se chegar a essa conclusão pela indicação dos v. 15 e 17. Em ambos, a oposição entre mundo

e Deus, ou entre amor ao mundo e o amor a Deus, ou ainda, entre mundo (realidade dominada

pelo Maligno – 1Jo 5,19) perecível/transitório e o Deus imperecível/eterno182; evidencia que o

deixar-se levar pela cobiça da “carne” terá como conseqüência o herdar o que é próprio da

“carne”, ou seja, a extinção, a corrupção total. Ao contrário, aqueles que se apegam ao amor

de Deus e se recusam a seguir a “concupiscência da carne” estão assegurando sua

perenização (1Jo 2,17). O autor exorta a que os cristãos vençam o que é característico da

sociedade pagã e firmem-se no seguimento de Jesus183.

180 Cf. SCHÖNWEISS, Hans. evpiqumi,a. In: DITNT. v. 1, p. 525.181 Cf. TILBORG, Sjef van. A Primeira Carta de João. In: THEVISSEN, G. et al. As Cartas de Pedro, João e Judas. São Paulo: Loyola, 1999. p. 215. – Também: FLEINERT-JENSEN, Flemming. Commentaire de la Première Épître de Jean. Paris: Cerf, 1982. p. 49.182 Cf. FORT, P. Le. As Epístolas. In: COTHENET, op.cit., p. 181-184. – Tratando do dualismo em João, o autor afirma que, tal antítese, além de manifestar a oposição entre as esferas do poder de Deus e do poder do maligno, obriga o cristão a tomar uma decisão. Há um imperativo prático, no qual se transfere para a vida comunitária o mesmo dualismo. Segundo Le Fort, não se trata de um dualismo estático, em 1Jo 2,18 o autor afirma que já se encontram na hora em que a confusão entre crentes fiéis e pessoas das trevas chegará ao fim; nesta hora o império de Deus triunfará. 183 Cf. BROWN, Evangelho, p. 188.

4.2 – Jesus Cristo na “carne” – 1Jo 4,2

Ainda na Primeira Epístola de João, ao tratar da necessidade de discernimento dos

espíritos diante do surgimento de doutrinas que não professavam a totalidade da fé cristã,

encontra-se a expressão VIhsou/n Cristo.n evn sarki, (1Jo 4,2). O critério cristológico é

aqui imprescindível para o discernimento dos espíritos184. O autor adjetiva os cismáticos de

diferentes formas, o que demonstra o teor de sua oposição e o desejo de realmente ajudar a

comunidade cristã a fazer seu discernimento. O autor os chama de mentirosos (1Jo 2,4.22a),

enganadores (1Jo 2,26), anticristos (1Jo 2,18.22b), impostores (1Jo 3,10b), falsos

profetas (1Jo 4,1c), perecíveis/sem vida (1Jo 5,12); sedutores, pertencentes ao mundo e

pecadores (1Jo 3,8), alheios à comunidade (1Jo 2,19).

Possivelmente, a comunidade, à qual a carta destina-se, defrontava-se com

afirmações frontalmente opostas ao que a fé cristã tinha como essencial185. O distintivo cristão

é a afirmação da encarnação do Filho de Deus; decorre dela o imperativo ético proposto à

comunidade de seguir Jesus até o fim, imitando suas atitudes (1Jo 3,16-18.23-24; 5,18)186. O

vocábulo “carne” em 1Jo 4,2 tem o mesmo significado de Jo 1,14a, pois uma das

características da pregação sobre Jesus na Epístola é justamente o anúncio de sua condição

mortal187. O Messias, humano como toda humanidade (“carne”), é aquele que doou sua vida

de forma voluntária e como vítima expiatória188.

Le Fort ainda diz que: “No plano doutrinal, a Epístola combate certa insipidez do

cristianismo que anula a existência física de Jesus e descura a exigência do amor fraterno”189.

Morgen também concorda com esse pensamento e alerta sobre o perigo de uma identificação

muito imediata dos falsos profetas da epístola com a corrente docetista; pois parece que o

problema era o não aceitar a unidade joanina que valoriza a “carne” de Jesus. Segundo

Morgen, os falsos profetas de 1 Jo “[...] não negavam a encarnação, nem a realidade física da

humanidade de Jesus; por outro lado, para eles, o que Jesus foi ou fez-se ‘carne’ não tinha

incidência em sua salvação”190. No pensamento joanino, “Jesus-carne” é quem conseguiu

convocar o ser humano à condição de “carne” vivificada pelo Espírito.

184 Cf. BONNARD, op.cit., p. 187.185 Cf. FLEINERT-JENSEN, op.cit., p. 85-87.186 Cf. BONNARD, op.cit., p. 193.187 Cf. TILBORG, op.cit., p. 247.188 Cf. FORT, op.cit., p. 173.189 Ibid., p. 173.190 MORGEN, Michèle. As Epístolas de João. São Paulo: Paulinas, 1991. p. 70.

Chama atenção o fato de, no “prólogo” da Epístola, o autor afirmar que a

revelação por ele recebida é atestada pelos verbos ouvir (avkou,w), ver (o`ra,w) e apalpar

(yhlafa,w). O conjunto desses verbos confirma que o “Jesus-carne” (1Jo 4,2) não foi uma

ilusão, mas sim uma realidade histórica audível, visível e palpável que manifestou Deus191.

Além de garantir a humanidade de Jesus, sua existência histórica e sua morte; os três verbos

ligam-se à experiência pascal dos discípulos192, quando compreendem o que Jesus havia dito

(Jo 2,22) e o que tinha acontecido (Jo 12,16).

4.3 – Jesus Cristo vindo na “carne” – 2Jo 7

O autor não tem pretensão de ensinar um preceito novo, mas sim recordar o

mandamento já anunciado do amor mútuo (2Jo 5). Reconhece que alguns permanecem no

caminho da verdade (2Jo 4) e alerta para o perigo da pregação dos impostores (2Jo 7). Qual

seria o erro doutrinal presente na pregação dos que são o Anticristo? O v. 7 explicita que se

trata da negação da humanidade de Jesus. O mistério cristão proclamava a “carne mortal” de

Cristo como dado essencial para a fé. Fica novamente muito evidente que nessa ocorrência do

termo “carne” seu significado é o mesmo já apresentado da finitude e fragilidade humanas.

Para Tilborg, “o uso do tempo presente [evn sarki,] significa que também agora importa

vencer o escândalo da dimensão sárquica. Jesus é homem como nós, mas é ele que devemos

confessar”193.

Mais uma vez, parece que o autor da Epístola quis insistir na ética cristã. Ele

associou o v. 7 ao conjunto que falava do caminho da verdade e da prática do amor

mútuo (vv. 4-6). Os vv. 8-11 continuam denunciando o perigo da pregação do Anticristo, na

qual, em nome de certo desenvolvimento espiritual, acaba-se chegando a excessos e

afastando-se do ensinamento autêntico. Quem é da luz deve rejeitar os que são das trevas e

suas ações. Mas, na prática, o que significa confessar que “Jesus veio na carne”? Confessar o

Cristo com a Igreja, permanecendo no caminho da verdade, é traduzir em obras o seu jeito de

191 Cf. TILBORG, op.cit., p. 194.192 Cf. MORGEN, op.cit., p. 13. Michèle Morgen propõe interpretar o Prólogo da Epístola justamente em chave pascal, apontando para a relação do verbo “ver” com as experiências do discípulo amado (Jo 20,8), de Madalena (Jo 20,18), dos discípulos (Jo 20,25) e de Tomé (Jo 20,29); do verbo “apalpar” com as evocações de toques no corpo de Jesus por Madalena (Jo 20,17) e Tomé (Jo 20,27). Embora Morgen não associe o verbo ouvir a nenhuma passagem, pode-se facilmente constatar que em todas as experiências que a comunidade faz do Ressuscitado-crucificado acontecem diálogos que também frisam o aspecto real da ressurreição.193 TILBORG, op.cit., p. 282-283.

agir. Morgen vê na expressão “Jesus veio na carne” o nexo entre amor ao irmão e cristologia,

acentuando que:

Uma vez que Cristo respondeu ao amor do Pai pelos homens, tornando-se carne, a nossa resposta ao amor de Deus só será verdadeira e adequada se, por nossa vez, inventarmos a encarnação do amor de Deus, e isso tanto em palavras (liturgia, confissões de fé etc.) como em nossas obras (amar ao próximo)194.

Conclui-se que, com relação ao termo “carne”, a Segunda Epístola reforça a

prática do amor já anunciada na Primeira Epístola. A realidade reveladora do amor de Deus

para com a humanidade está em “Jesus-carne” e, em conseqüência dessa assunção do gênero

humano, todo amor a Deus será verificável na prática do amor aos irmãos (1Jo 4,7-21).

Conclusão

A análise do termo “carne” no AT permitiu resgatar a dimensão da humanidade

enquanto criação de Deus e a ele referenciada. A pesquisa demonstrou que “carne” liga-se ao

sentido mais específico de formação de órgãos ou músculos, servindo como designação tanto

humana quanto animal; relacionada ao ser humano tem seu sentido ampliado, denotando

desde o grau de parentesco, a pertença a um grupo de origem ou religioso, até o de igualdade

entre todos os seres humanos. O termo “carne” não tem sentido negativo ou pejorativo,

apenas explicita a totalidade do humano e o que é próprio daqueles que vivem na esfera das

criaturas e, por isso mesmo, são decadentes, perecíveis, mortais. Ao afirmar isso, os autores

do AT depositam radicalmente a vida humana nas mãos de Deus. Em relação ao v. 14a do

Prólogo, a análise do AT assegura uma aproximação desprovida de preconceitos e

julgamentos morais, permitindo um contato com o que o evangelista e sua comunidade

transmitiram.

A leitura do vocábulo “carne” em Paulo surpreende pela proximidade que ainda

cultiva em relação ao AT. A novidade é que Paulo vai, progressivamente, transportando para

o universo teológico um termo que, a princípio, lhe era estranho. Embora no AT o vocábulo

tivesse uma incidência na elaboração e reflexão da fé, em Paulo “carne” passa a ocupar lugar

privilegiado, que explicita os desejos egoístas e de pretensão à salvação, bem como a ocasião

para a plena realização do ser à medida que se deixa guiar pelo Espírito.

194 MORGEN, op.cit., p. 93 [grifo da autora].

Quanto à aplicação do termo à pessoa de Jesus, como se viu, Paulo faz um uso

moderado, insistindo sempre na condição de igualdade com os seres humanos e ressaltando

sua isenção de pecado. Paulo credita à “carne” de Jesus uma missão de redenção. O mistério

da encarnação não é ainda a ação salvífica, ela se dá na paixão e ressurreição. No sacrifício de

“Jesus-carne”, o pecado é derrotado e o ser humano pode dar um novo sentido à sua condição

de criatura. Quando usa “carne” para referir-se a Jesus, Paulo não quer afirmar parte ou

componente do ser do Filho de Deus, ele está apontando para o todo de sua vida, a totalidade

de sua existência que se revela plenamente na cruz.

O estudo teológico-exegético de Jo 1,14a recuperou a ressonância hebraica do

termo grego usado por João. No Quarto Evangelho, o anúncio dá-se a partir da afirmação de

que Deus rompeu todas as barreiras que poderiam impedir uma verdadeira comunicação com

o ser humano e fez-se humano para falar sua palavra. O Logos encarnado é uma realidade

irrefutável que assegura à comunidade cristã a salvação trazida por Cristo, que revela a glória

do Pai. A humanidade precisa ver para além das aparências de Jesus e aceitar que o lugar de

Deus é junto com os seus e que seu agir demonstra qual deve ser o agir daqueles que o

seguem. A dificuldade dos contemporâneos de Jesus foi justamente a de ficarem estagnados

diante do humano e não conseguirem aceitar que nele Deus manifestava-se.

Afirmar que em João existe apenas uma cristologia descendente é não reconhecer

que no seu evangelho há um forte indício de que a humanidade de Jesus era dado pacífico e

que o desafio foi afirmar a sua participação na divindade. Mais que isso, em João, há uma

cristologia do envio, que contempla o terreno, pois é justamente na esfera do efêmero, do

transitório, do perecível, do carnal, do mortal que Deus se revela em Jesus. A redenção que o

Cristo comunica só pode ser vislumbrada na existência histórica de Jesus. Sendo assim, a vida

terrena de Jesus é essencial para a compreensão que se tem dele na fé.

O estudo das outras ocorrências da palavra “carne”, não aplicadas a Jesus, em João

assinalou que há mais de um sentido, bem semelhante ao AT, e que a ênfase encontra-se

sempre numa crítica ao apego às coisas terrestres. “Carne” é usado justamente para

demonstrar que a vida humana diante de “Jesus-carne” é um lugar de escolhas, de decisão. A

oposição joanina é um convite a perceber que o humano não tem o pleno domínio sobre si; no

Cristo, ele pode encontrar a verdade e a liberdade. A análise do conceito “humano” propôs

uma aproximação com “carne” e ajudou a demonstrar o quanto para a comunidade joanina a

confissão de fé na humanidade de Jesus era algo determinante, mostrando que é no Cristo

total que se encontra a plena realização do projeto criador de Deus.

Ainda sobre Jo 1,14a, ficou patente que não há nenhuma intenção do evangelista

de formular um princípio doutrinal acerca das duas naturezas de Jesus. Como se disse há

pouco, para João só é possível anunciar Jesus, o Cristo, como aquele que na “carne” revelou a

glória de Deus. É o Jesus terrestre que, compreendido pela comunidade à luz da Páscoa,

permite a essa mesma comunidade confessar num hino que o Cristo existe desde todo o

sempre. Ao dizer Jesus, João quer dizer aquele que, existindo desde sempre veio a este

mundo, nele viveu provisoriamente e agiu pela força do próprio Pai e, após cumprir sua

missão, a ele retornou e foi exaltado.

As ocorrências de “carne” nas Epístolas de João insistem na necessidade de se

viver a fé no Cristo “vindo na carne”. A ética que brota das passagens epistolares é a do amor

verdadeiro que se verifica na encarnação das mesmas atitudes de Jesus. Afirmar sua vinda na

“carne” é critério inalienável para o discernimento da comunidade e para resguardar o

específico cristão contra toda pretensão de conhecimento. Conhece-se a Deus por Jesus vindo

na “carne” e tal conhecimento só pode ser comprovado na prática do amor. As Epístolas

demonstram preocupação com os impostores que diziam viver a fé, mas se recusavam a

aceitar o “Jesus como o Filho de Deus vindo na carne” (1Jo 4,2).

As duas passagens das Epístolas que se referem a Jesus são declarações que

compõem o credo comunitário cristão e ligam-se ao mistério da redenção. Em ambas, há uma

crítica a todo descuido em relação à humanidade de Jesus. Mais que em Jo 1,14a, as duas

referências das cartas apontam explicitamente que aceitar o Cristo na “carne” é dado

fundamental da fé. No Evangelho, a menção à “carne” alude mais ao fato de Deus comunicar-

se na história e assumir de uma vez por todas a humanidade como lugar transitório de sua

revelação.

Após toda esta reflexão em torno do “Jesus-carne” a partir de Jo 1,14a, é preciso

ainda se perguntar sobre as conseqüências da mesma no nível eclesial, na dimensão do

diálogo ecumênico e inter-religioso e no diálogo com o mundo e a cultura modernas.

CAPÍTULO III: INCIDÊNCIAS DA LEITURA DE

“JESUS-CARNE” (Jo 1,14a)

Após a análise do significado do termo “carne” em Jo 1,14a, desejamos agora

explicitar algumas incidências de tal leitura através de questões que estão, direta ou

indiretamente, relacionadas ao vocábulo “carne” na sua aplicação joanina à pessoa de Jesus,

como também ao tema da encarnação. Seis proposições, divididas em três grupos, serão

apresentadas e comentadas. Divisão esta apenas didática, pois as questões estão intimamente

relacionadas e quase que se exigem mutuamente.

A primeira incidência diz respeito ao universo intra-eclesial. Nela demonstra-se

que o tema do “Jesus-carne” permanece uma verdade cristã a ser anunciada, mas, ao mesmo

tempo, uma incógnita. Não se trata aqui de mistério, mas sim de uma incógnita devido à

utilização de uma linguagem que já não responde aos interlocutores modernos. Esta

incidência reflete diretamente na teologia e suas dificuldades para tratar de Deus de forma

mais condizente com a chamada virada antropológica (GS 12). Posteriormente, aponta para a

relação abissal entre teologia, fé pensada e catequese e liturgia, fé experimentada.

A segunda incidência do “Jesus-carne” toca o tema do diálogo ecumênico e inter-

religioso. Nos dois diálogos é ressaltada a exigência que a humanidade de Jesus efetua em

relação a qualquer proposta religiosa, a saber, o colocar o humano como centro. O

ecumenismo circula em torno da proposta amorosa de “Jesus-carne”. Tal proposta tem suas

exigências éticas, e o diálogo ecumênico pode dar-se a partir daí. Quanto ao diálogo inter-

religioso, buscamos responder à questão do contributo do “Jesus-carne” diante do pluralismo

religioso e das pretensões cristãs de reconhecer em Jesus a revelação definitiva de Deus e de

sua relação com outras religiões também a partir do humano.

Por fim, uma última incidência diz respeito à importância de “Jesus-carne” para o

diálogo com o mundo moderno1, tentando elucidar a questão da relação entre Deus e o

humano não como díspares, mas sim como parceiros que em Jesus encontram-se e vinculam-

se. “Jesus-carne” revela o quanto Deus pode surpreender o humano e como o ser humano só

pode entender-se no voltar-se para Deus. Ainda na relação com a modernidade, buscamos

refletir sobre o valor do “Jesus-carne” para o tema tão candente da solidariedade. Ela

ultrapassa os limites religiosos e surge como uma proposta secularizada, que pode receber do

“Jesus-carne” um complemento significativo.

1 – “Jesus-carne”: verdade cristã e incógnita eclesial

O estudo de Jo 1,14a abre perspectivas para uma reflexão sobre a atual concepção

eclesial acerca da imagem e pessoa de Jesus. A leitura do “Jesus-carne” de João é um apelo

para voltar-se ao início do cristianismo e perceber que a fé na pessoa de Jesus é, inicialmente,

um ato de adesão a um ser humano que re-significou as relações da humanidade com Deus,

manifestando-se como o revelador do Pai. Os primeiros cristãos só puderam elaborar a

releitura de Jesus após o evento pascal, porque esse galileu não era fantasiosamente

imaginado por um grupo, mas um humano que existiu, agiu e pregou em meio à história de

homens e mulheres também reais.

A perspectiva joanina, ao propor “Jesus-carne”, assegura e dá como elemento

indiscutível a humanidade redentora do homem que, posteriormente, foi compreendido e

interpretado (cristologia) como Filho de Deus2, no sentido de participante da mesma natureza

de Deus. Como se viu, ao longo do capítulo anterior, no Evangelho de João não havia uma

distinção inicial entre divindade e humanidade de Jesus. Tal distinção culmina por criar certa

cisão, que impede ao cristão contemplar Jesus, o Cristo, como um todo, com o todo do seu

ser, da sua existência.

O desafio lançado aos primeiros ouvintes de Jesus e de João permanece atual: ver

naquele ser humano a revelação plena e definitiva de Deus e o único acesso ao Pai. A reflexão

teológica está muito além da compreensão da fé vivida, celebrada e ensinada pelos cristãos. O

Jesus, tantas vezes propagado pelo cristianismo, está muito aquém da pessoa do “Jesus-

1 Considera-se aqui como “mundo moderno” o advento, concretização e expressão da autonomia da razão, englobando seus momentos ou nuances, tais como “pré-modernidade” e “pós-modernidade”.2 Cf. SCHILLEBEECKX, Edward. História humana: revelação de Deus. São Paulo: Paulus, 1994. p. 216-217.

114

carne”, que habitou em meio à humanidade (Jo 1,14), e de sua densidade salvífica. “Jesus-

carne” permanece como verdade anunciada pelo cristianismo, mas também como uma grande

incógnita que desafia o fiel, a liturgia e a catequese.

Já distantes dos debates cristológicos, o cristianismo vê-se às voltas com o desafio

de dar o real significado a fórmulas que, na sua origem, tinham sentido muito claro e exato e,

hoje, revelam-se, por vezes, ininteligíveis. Já distante das conversões, compreendidas como

processo pessoal de adesão ao Cristo, o cristianismo depara-se com a urgente necessidade de

apresentar as razões de sua fé àqueles que o receberam como herança.

1.1 – A redescoberta do “Jesus-carne”

Proposição: A compreensão de “Jesus-carne” exige da teologia moderna um repensar as

afirmações da fé, na fidelidade ao que o evangelho de Jesus ensina, procurando desvelar o

que as primeiras comunidades cristãs quiseram afirmar sobre sua pessoa; consciente de que

sua palavra teológica não pode reproduzir conceitos abstratos de Deus, mas apenas inferir

algo sobre Deus a partir do que foi sua manifestação na história concreta de Jesus.

A cristologia tradicional, procurando na Escritura argumentos que confirmassem

as afirmações e definições dogmáticas3, encontrou em Jo 1,14a a prova bíblica que validava a

sua teologia da encarnação. Num contexto histórico distinto e, sendo também uma elaboração

marcadamente histórica, posto que é uma interpretação4, a teologia afirmou a preexistência do

Verbo, pensou sua natureza, definiu o conceito de pessoa, assegurou a humanidade de Jesus,

sem o pecado. Sem dúvida, questões verdadeiras e incorporadas pela Tradição, mas que

diante de uma releitura de Jo 1,14a podem parecer incômodas e exigir nova orientação.

Constata-se que a elaboração teológica nem sempre se encontra numa linguagem inteligível

ao homem e mulher contemporâneos. Uma primeira interpelação oriunda da mudança da

teologia tradicional5, que não mais dialogava com o mundo e contentava-se em repetir as

afirmações da fé, para a teologia moderna encontra-se no problema da linguagem.

Toda linguagem acerca do mistério é sempre analógica, contudo necessita ter

arrazoados claros. Os interlocutores não são mais atingidos pela cristologia tradicional. A

palavra sobre a encarnação está visivelmente encoberta por uma série de conceitos e 3 Cf. ALONSO SCHÖKEL, Luís. A Palavra Inspirada: a Bíblia à luz da ciência da linguagem. São Paulo: Loyola, 1992. p. 224.4 Cf. GEFFRÉ, Claude. Como fazer teologia hoje: hermenêutica teológica. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 83-85.5 Cf. LIBANIO, João Batista; MURAD, Afonso. Introdução à Teologia: perfil, enfoques, tarefas. São Paulo: Loyola, 1996. p. 137

115

preconceitos que não permitem uma leitura de Jo 1,14a como novidade de fé. Sendo assim,

uma nova cristologia não pode fugir à tarefa de dizer, em conformidade com a Tradição, a

verdade cristã acerca do Enviado pelo Pai. Entretanto, depois do advento da razão moderna, a

cristologia não pode se permitir apenas afirmar algo, mas deve sim explicitar racionalmente,

com direito ao uso de todos os elementos necessários, o que o cristianismo propõe.

A questão da linguagem está intimamente ligada ao ponto de partida da reflexão

cristológica. Diferentemente da teologia tradicional, a moderna, no desejo de dialogar com o

mundo, tem revelado uma preocupação em retornar humildemente à reflexão bíblica como

sua verdadeira fonte (DV 24) e, particularmente, aos evangelhos, como mensagem a ser

urgentemente anunciada. Nesse caminho, a teologia moderna, procurou refazer a história

vivida pela comunidade na exposição de sua fé. Daí surge a ênfase numa cristologia

histórica6, mais condizente com os enunciados dos evangelhos e não como reflexão e

reprodução sistemática do que os concílios e manuais teológicos haviam afirmado. Essa

mudança de ponto de partida fez com que a cristologia apontasse para o ser humano Jesus de

Nazaré, o Cristo, afirmado pela comunidade como Filho de Deus. A teologia assumiu que só

no diálogo com a exegese pode-se ser fiel à sua identidade de fala humana acerca de Deus7.

A experiência do anúncio do humano Jesus que revela em plenitude a face divina,

exige ainda a humildade teológica de reconhecer que do Deus, anunciado pelo cristianismo,

só se poderá dizer algo a partir de Jesus. E que de Jesus só se pode falar a partir de seu

ingresso na história humana, como agente do Pai. E, somente depois de compreender o

“Jesus-carne” revelador do Pai, reconhecendo o extraordinário da novidade trazida por ele, é

que se pode chegar como João a afirmar a sua preexistência8.

A cristologia histórica não pretende acentuar a humanidade de Jesus em

detrimento de sua divindade, mas proclamar que em “Jesus-carne” tem-se o legítimo acesso a

Deus e confessar esse Jesus como o Cristo9. Um Deus que resgata a transitoriedade da história

e a transforma em lugar para dizer o máximo de si; que se mostra fraco e perecível para,

paradoxalmente, revelar-se glorioso. “Jesus-carne” é palavra primeira que se pode falar sobre

6 Cf. QUEIRUGA, Andrés Torres. Repensar a Cristologia: sondagens para um novo paradigma. São Paulo: Paulinas, 1999. p. 311.7 Cf. GILBERT, Pierre. Pequena história da exegese bíblica. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 197. 201.8 Cf. SESBOÜÉ, Bernard. Pedagogia do Cristo: elementos de cristologia fundamental. São Paulo: Paulinas, 1997. p. 71.9 Cf. QUEIRUGA, Repensar, p. 333.

116

o Cristo10. O restante é, por assim dizer, palavra segunda ou interpretativa. Entretanto, a

palavra primeira indissoluvelmente unida à segunda é que permite afirmar a fé cristã.

O desafio que “Jesus-carne” propõe à cristologia em geral é o de retornar à índole

própria de João não como anúncio de um Deus preexistente que se encarna, mas como

testemunho que almeja renovar a fé daqueles que conseguem olhar para a humanidade de

Jesus e enxergar para além dela. A leitura de João utilizada como argumento para se asseverar

a divindade de Cristo11 ou, na terminologia corrente, a cristologia descendente em oposição à

ascendente, parece carecer de fundamento. O Evangelho de João não pretende mostrar um

Jesus tão divinizado como se lhe escapasse o ser humano ou isso lhe fosse algo suprimível;

tão pouco deseja ser uma história sobre a vida do Jesus terreno. Em João, “Jesus-carne” é

sinônimo da atuação de Deus na história. Não que Deus não agisse antes, mas, pela

proclamação do Prólogo, Deus é aquele que se deixa conhecer da forma como um humano

poderia conhecer.

Há, em João uma cristologia que concilia o agir terrestre de Jesus com o

significado último de sua exaltação. Não poderia ser glorificado aquele que não assumiu a

humanidade. Longe de ser um argumento para justificar a preexistência do Filho de Deus,

Jo 1,14a é o anúncio da missão de Jesus, ou seja, o vir na carne para comunicar-se à

humanidade em nome do Pai. A encarnação como a paixão são momentos extremos da vida

de “Jesus-carne”, elas não são em si a definição do seu ser e agir, elas enquadram-se no arco

da existência da pessoa humana Jesus que cumpre sua missão, chegando ao limite da morte.

Falar do “Jesus-carne” apresentado em João é tratar do Jesus humano que, viveu

em tudo a vida dos humanos, se desenvolveu como ser humano, passou pelas angústias e

alegrias, se reconheceu como pessoa e descobriu no Pai o sentido último de sua existência.

Por isso mesmo, anunciou o amor do Pai pelo seu agir, falar, enfim viver. Têm sido de grande

ajuda as análises feitas por judeus acerca de um Jesus mais real12. Nessas obras, procurando

uma aproximação isenta da confissão de fé cristã, revela-se com grande naturalidade como

10 Cf. DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso . São Paulo: Paulinas, 1999. p. 409.11 Cf. HAIGHT, Roger. Jesus, símbolo de Deus. São Paulo: Paulinas, 2003. p. 210-211.12 Destacam-se, sobretudo, nessas pesquisas as obras do professor Geza Vermes. Cf. VERMES, Geza. Jesus, o judeu. São Paulo: Loyola, 1990; A religião de Jesus e o cristianismo. São Paulo: Imago, 1995; Jesus e o mundo do judaísmo. São Paulo: Loyola, 1996. – Também: MEIER, J. P. Um judeu marginal: repensando o Jesus histórico. Essa obra, publicada pela Imago, está organizada em dois volumes, sendo o segundo dividido em três livros. – Ainda sobre pesquisas judaicas: LAPIDE, Pinchas. Filho de José?: Jesus no Judaísmo de hoje e de ontem. São Paulo: Loyola, 1993. – CHARLESWORTH, James H. Jesus dentro do Judaísmo: novas revelações a partir de estimulantes descobertas arqueológicas. Rio de Janeiro: Imago, 1992. – Na perspectiva do diálogo inter-religioso é clássico: MUSSNER, Franz. Tratado sobre los judíos: para el diálogo judeu-cristiano. Salamanca: Sígueme, 1983.

117

Jesus foi um judeu comum. “Jesus-carne” é um judeu insatisfeito com as barreiras impostas

aos que desejam conhecer Deus. São também de grande utilidade as pesquisas em torno das

literaturas circunvizinhas aos evangelhos, revelando o valor do gênero literário, dos esquemas

mentais comuns ao Oriente e da semântica utilizada na composição da boa-nova13.

As fórmulas dogmáticas podem, no máximo, afirmar que Jo 1,14a é a declaração

de que Jesus realmente foi uma pessoa humana como as outras, estabelecido na intempérie da

terra, passível de sofrimento e de morte. Deus fez morada no meio da humanidade. Quanto a

falar sobre sua preexistência, como se costumava no passado pelo tratado De Verbo

Encarnato, ou de dizer algo sobre a vida do Logos antes de sua encarnação, Jo 1,14a não é

argumento válido.

Outra questão que se verifica é a da tensão entre o Jesus histórico e o Cristo da fé.

Jo 1,14a não permite essa dissociação. O Evangelho de João compreende o Jesus histórico, ou

seja, a sua existência terrestre, enquanto momento daquele que será proclamado na fé como

Cristo. Jesus(-carne) é o Cristo, o enviado, e foi isto que João procurou transmitir à sua

comunidade.

Fica evidente, portanto que não se pode mais elaborar uma cristologia que

prescinda do “Jesus-carne” proposto em Jo 1,14a como revelador e aquele que atua no mundo

em íntima consonância com o Pai. “Jesus-carne” é a afirmação de que em Jesus o ser criatura

perecível foi elemento insubstituível para o anúncio do amor do Pai para com a humanidade.

1.2 – O abismo entre as formulações teológicas e a vida eclesial

Proposição: A teologia, enquanto ciência, tem feito enormes avanços na reflexão acerca da

pessoa de Jesus e de sua humanidade, contudo há um abismo entre essa reflexão teológica e

o substrato que dela chega até os fiéis, manifestando suas ressonâncias na vida cotidiana. Há

um cristianismo infantil coexistente com o cristianismo oficial e formal. Essa disparidade no

nível do conhecimento da fé tem-se revelado prejudicial ao anúncio do evangelho.

São inegáveis os avanços exegético-teológicos acerca da compreensão do Jesus

humano. Do ponto de vista eclesial católico, o que se vê, porém, é um abismo entre a fé

13 Cf. BERGER, Klaus. As formas literárias do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 1998. – Relacionado ao mesmo tema: MAIER, Johann. Entre os dois Testamentos: história e religião na época do segundo Templo. São Paulo: Loyola, 2005.

118

pensada, elaborada teologicamente, e a fé professada, vivida pela maioria dos fiéis14. Esse

fosso pode ser reconhecido na liturgia, na catequese e nas manifestações mais populares de

religiosidade cristã. A bem da verdade, várias questões teológicas intimamente ligadas ao

mundo bíblico são de total desconhecimento do grande público, o que causa determinados

constrangimentos quando os meios de comunicação anunciam como extraordinárias

novidades conclusões e descobertas que pertencem ao domínio de teólogos e exegetas há mais

de duas décadas15. A impressão passada com essa realidade é a de que, por vezes, subestima-

se a capacidade intelectual dos cristãos.

Não raro, embora se afirme que “o Logos fez-se carne”, encontra-se na

mentalidade de muitos cristãos católicos uma visão distorcida do que significou para Deus

revelar-se humano e do que isso significou e ainda significa para a humanidade. O “Jesus-

carne” permanece como um incômodo; e proliferam ainda, desde os meios mais populares e

de pouca erudição até as classes mais abastadas e capacitadas academicamente, idéias sobre a

humanidade de Jesus, que ora beiram o mágico, ora o pieguismo. Basta lembrar como os

Evangelhos Apócrifos caem no gosto popular e confirmam esse posicionamento, tornando-se

também uma empresa lucrativa a despeito de um sério retorno à leitura dos evangelhos

canônicos.

A visão de um Jesus glorioso, que tudo pode e tudo sabe, fortemente introjetada

nos cristãos, demonstra certa dificuldade para se aceitar um “Jesus-carne”, tão humano a

ponto de revelar realmente o rosto de Deus. Talvez, o aspecto mais aceito da humanidade de

Jesus encontra-se na extrema valorização dada pelos cristãos, principalmente pela devoção

popular, ao seu sofrimento e à sua morte16. Nem mesmo esse viés permanece isento de

exageros, basta recordar uma obra cinematográfica recente sobre a paixão de Cristo17 na qual

se apresentava Jesus como homem dotado de um poder extraordinário, excepcional, para

suportar o sofrimento.

14 Cf. CALVANI, Carlos Eduardo B. Desafios para o ensino da Teologia Latino-americana em nossos dias. In: Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 65, n. 258, p. 354-356, abr. 2005.15 Cf. QUEIRUGA, Repensar, p. 311, nota 32.16 Cf. COMISSÃO TEOLÓGICO-HISTÓRICA DO GRANDE JUBILEU DO ANO 2000. Jesus Cristo: ontem, hoje e sempre. São Paulo: Paulinas, 1996. p. 44-48.17 Cf. LISBOA, Walter Eduardo. A Paixão de Cristo segundo Mel Gibson: uma história bem contada?. São Paulo: Paulinas, 2005. p. 15. – Segundo Lisboa, no filme Paixão de Cristo, co-produção EUA/Itália, apresentada em 2004, seu diretor Mel Gibson para “completar” os evangelhos sinóticos, privilegia um escrito de inícios do século XIX, a saber, as visões de Anne Emmerich (1774-1824). Essa alemã, mística estigmatizada, foi bem conhecida e reverenciada em círculos católicos nas décadas de 1940-1950 e por ocasião do lançamento do filme foi publicada no Brasil a tradução de seu livro: EMMERICH, Anna. Vida, paixão e glória do Cordeiro de Deus: as meditações de Anna Emmerich. São Paulo: MIR, 2004.

119

O discurso litúrgico e celebrativo cristão enfrenta, apesar de ter se incrementado

com os resultados das últimas décadas, tanto teológicos quanto exegéticos, o desafio de

propor ao homem e mulher hodiernos uma mistagogia do “Jesus-carne”. A dificuldade para se

transpor ao universo litúrgico os avanços bíblico-teológicos revela muito do que está

sedimentado até mesmo no pensamento clerical. Com freqüência, a presidência e a pregação

litúrgicas denunciam uma atmosfera de desconfiança em relação ao humano em geral, daí

certo moralismo subliminar, e ao “Jesus-carne” em particular, uma constante insistência no

aspecto da sua divindade, beirando a um monofisismo. Curiosamente, é notável o apego ao

“corpo de Cristo”, a Eucaristia, deixando entrever um pouco de magia, de devocionismo e de

compreensão falsamente concreta e imediata do sacramento, sem reconhecer o apelo feito por

“Jesus-carne” aos que rememoram sua vida, paixão, morte e ressurreição, de que é necessário

ser no mundo a extensão de sua “carne” e de seu “sangue” (cf. 1Jo 4,17).

A catequese cristã católica, comumente de cunho mais doutrinal que bíblico, não

conduz o iniciando a uma verdadeira compreensão da fé. O Deus ensinado na catequese,

apesar das inovações metodológicas, continua praticamente o mesmo: um Deus que não é, em

hipótese alguma, aquele que “Jesus-carne” quis dar a conhecer. As imagens de Deus

transmitidas pela catequese cristã católica enquadram-se entre aquelas das chamadas “etapas

pré-cristãs da compreensão de Deus”18.

Ademais, uma visão distorcida do “Jesus-carne”, Deus na história, significa ao

final uma desvalorização da história e da vida humana como bem natural a ser respeitado. Ao

se privilegiar a natureza divina de Jesus, reforça-se a idéia de que apenas importa o mundo

vindouro, o reino dos céus, e que este mundo passageiro deve ser experimentado com certas

reservas. Schillebeeckx propõe a história como componente essencial de uma nova sentença

“doutrinal” em que salvação e história estão relacionadas:

O mundo e a história dos homens, em que Deus quer realizar a salvação, são a base de toda realidade salvífica: é aí que primordialmente se realiza a salvação... ou se recusa e se realiza a não-salvação. Neste sentido, vale: “extra mundum nulla salus”, fora do mundo dos homens não há salvação19.

Exegese e teologia, por um lado, e liturgia e catequese, por outro, sinalizam o

quanto é urgente uma reflexão sobre a humanidade de Jesus e o acreditar na capacidade de

18 Cf. SEGUNDO, J. L.; SANCHIS, J. P. As etapas pré-cristãs da descoberta de Deus: uma chave para a análise do cristianismo (latino-americano). Petrópolis: Vozes, 1968. – Os autores mostram como as imagens de Deus presentes no Antigo Testamento permanecem nas concepções atuais. O Deus apresentado por Jesus é praticamente um desconhecido. 19 SCHILLEBEECKX, op.cit., p. 29-30.

120

assimilação dos cristãos20. O cristianismo urge por partilhar o conhecimento e começar a criar

acesso ao que a exegese e teologia elaboram, a fim de que o “Jesus-carne” joanino possa

ajudar o humano contemporâneo a reconhecer-se na sua condição de privilegiado interlocutor

de Deus. Isso permitiria uma leitura da história humana marcada pela graça universal da

salvação, compreendida como momento dentro da história de Deus, evitando um desejo de

nova fuga mundi, que é sintoma de uma incompreensão do humano que em “Jesus-carne”

recebeu prerrogativa de comunhão com o divino.

2 – “Jesus-carne”: possibilidade do diálogo ecumênico e inter-religioso?

Após as proposições acima, relacionadas ao intra-eclesial, apresentamos agora

outras duas que dizem respeito aos que, diferentemente do catolicismo, professam a fé. Todo

o movimento ecumênico iniciado no século passado tem oferecido seus frutos ao cristianismo,

possibilitando uma nova relação entre aqueles que seguem o mesmo Senhor. O diálogo inter-

religioso também tem alcançado um nível de relação que interpela o cristianismo quanto à

verdade dita acerca do “Jesus-carne”. Ponderamos aqui a respeito desses diálogos e suas

relações, explícitas (no ecumenismo) e implícitas (no inter-religioso), com “Jesus-carne” de

Jo 1,14a.

2.1 – O horizonte do diálogo ecumênico

Proposição: Os cristãos, nas suas mais diversas denominações eclesiais, têm no “Jesus-

carne” o apelo irrecusável para que na unidade em torno da defesa do humano se dê a

experiência da verdadeira comunhão e o testemunho irrefutável da compreensão, aceitação e

vivência do evangelho como prática do amor.

20 Cf. CNBB. Crescer na leitura da Bíblia. São Paulo: Paulus, 2003. n. 22, p. 25.

121

Não mais vivendo em tempos nos quais se afirmava Extra Ecclesiam nulla salus21,

a Igreja Católica defronta-se com o desafio do diálogo ecumênico. Qual a incidência do

“Jesus-carne” para o diálogo ecumênico? O cristianismo encontra-se mais que nunca diante

do paradoxo da profissão do nome cristão, pois atualmente existem mais de uma forma de

cristianismo. Embora o anúncio eclesial, por mais diversificado que seja, proponha a Boa-

Nova, atribuindo-a à pessoa de Jesus, o que se nota é uma disparidade que ultrapassa o

meramente ritual e o estritamente doutrinal, chegando a questionar se realmente há uma

fidelidade à proposta de Cristo. Nominalmente se confessa o mesmo Cristo, mas nem sempre

ele é compreendido a partir dos mesmos elementos.

A pessoa do “Jesus-carne” pode ser, no diálogo ecumênico22, um ponto de

discórdia ou de unidade. Discórdia devido às divergentes formas de compreender sua

existência histórica, por vezes, muito idealizada e alienada, baseando-se numa imagem de

Deus que trai o original cristão. O problema acima apresentado, da discrepância entre a fé

pensada e a experimentada, também se repete em outros grupos cristãos, não sendo algo

exclusivo do catolicismo. Discórdia também pelo fato de que muitas denominações cristãs

exploram o nome de Jesus com outros interesses, beirando a uma religiosidade primitiva,

mágica, infantilizante e, até, comercial.

Particularmente na América Latina, o esforço para proteger a vida encontra-se

hoje também ameaçado por grupos que se intitulam cristãos, mas que não almejam

salvaguardar a pessoa humana. Alguns grupos pentecostais e neopentecostais surgidos nas

últimas duas décadas têm revelado-se não como lugar de experiência do sagrado, mas sim

como uma deturpação e até, em alguns casos, exploração do humano naquilo que lhe é mais

específico, a dimensão religiosa.

O diálogo ecumênico deve ser também espaço propício para questionamentos em

torno desse abuso do evangelho e do ser de Jesus por grupos que estão intrinsecamente

21 Cf. DZ 714. – O Concílio de Florença (1442), afirmava: “Firmemente crê, professa e proclama que ninguém fora da Igreja Católica, não só pagãos, senão também judeus, hereges ou cismáticos, participará da vida eterna, mas cairá no fogo eterno que está preparado para o diabo e seus anjos (Mt 25,41), a não ser que antes de sua morte se unir a ela”. – Acerca da expressão em questão: LIBANIO, João Batista. “Extra Ecclesiam nulla salus”. In: Perspectiva Teológica, São Leopoldo, v. 1, n. 8, p. 21-49, jan./jun. 1973. Libanio comenta que a expressão Extra Ecclesiam nulla salus surgiu no séc. III num contexto apologético e intra-eclesial, não se tratando portanto da problemática da salvação de toda a humanidade. Cipriano de Cartago tinha diante de si a problemática dos movimentos cismáticos. A intenção era guardar a unidade da Igreja sob a autoridade do bispo e impedir assim a ruptura dentro da comunidade. Libanio ainda traça o desenvolvimento histórico da expressão e reflete sobre a possível atualidade teológica da mesma.22 Cf. NASCIMENTO, Claudemiro Godoy do; ALBUQUERQUE, Klaus Paz de. A experiência de macro-oikoumene em tempos incertos: desafios e utopias. In: Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 65, n. 258, p. 317-322, abr. 2005. – Os autores abordam parte da história do movimento ecumênico.

122

vinculados ao projeto capitalista neoliberal. Tais grupos são realmente cristãos?23 Sem dúvida

existem grupos religiosos pentecostais e neopentecostais que revelam, principalmente pela

atuação de suas lideranças, um comprometimento com o anúncio do evangelho enquanto

libertação do humano24.

Segundo dados do IBGE a partir do censo de 2000, o número de cristãos

protestantes tradicionais no Brasil é de apenas 5% (8.477.068 pessoas de 169.870.803

brasileiros), ou seja, metade do número de evangélicos pentecostais e neopentecostais que se

dividem em médios, pequenos e minúsculos grupos25. É notório que inúmeras disparidades

existem não só entre católicos, de um lado, e protestantes tradicionais e evangélicos, de outro,

mas também entre esses dois últimos grupos.

Não há que se pensar em discutir dogmas ou formulações doutrinais entre aqueles

que se propõem dialogar ecumenicamente e colocar em comum as suas experiências de

encontro com o “Jesus-carne”, mas será sempre primordial discutir sobre o seguimento ao

projeto desse mesmo Revelador do Pai. “Jesus-carne” é elemento de unidade desde que

compreendido como inaugurador do ser humano na sua condição de plenitude e convite à

comunhão com Deus.

Olhando para o texto joanino (Jo 1,14a), os participantes do diálogo ecumênico

podem vislumbrar nele o verdadeiro encontro e comunhão. Cristo é o mediador26. Sem dúvida

que é extremamente desafiador propor uma prática ecumênica com grupos que nem sempre

têm a compreensão de “Jesus-carne” como aquele que traz o humano para o centro da

religião, para que a partir dele se encontre com Deus. As diferenças poderão silenciar-se

quando se aceitar que o grande ensinamento de “Jesus-carne”, na sua existência histórica, é a

afirmação de uma escolha incondicional de Deus pela humanidade e a apresentação dessa

humanidade como espaço inteiramente sagrado desde o seu início.

O diálogo ecumênico deve focalizar as angústias do ser humano e procurar

respondê-las de forma a ser no mundo um testemunho irrefutável do evangelho da

encarnação. A comunhão pode ser plenamente alcançada em torno do humano e de ações que

23 Cf. TIMM, Albert R. Teologia da Prosperidade: Breve Análise Crítica. In: Parousia, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 55-56, jan./jun. 2000. 24 Cf. ALTMANN, Walter. O pluralismo religioso desafio ao ecumenismo na América Latina. In: SUSIN, Luiz Carlos (org.). Sarça ardente: teologia na América Latina: prospectivas. São Paulo: Paulinas, 2000. p. 399.25 Cf. ANTONIAZZI, Alberto. Por que o panorama religioso no Brasil mudou tanto?. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2005. p.12; 37-38.26 Cf. RIBEIRO, Cláudio de Oliveira. Perspectivas teológicas para o combate à idolatria. In: Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 65, n. 258, p. 281, abr. 2005.

123

procurem beneficiá-lo27. O mosaico religioso cristão, em que de distintas maneiras elabora-se

e valoriza-se um dado do cristianismo, deve ser no mundo a expressão do rosto de “Jesus-

carne”. Nesta história, o ser humano é chamado a fazer experiência de sua vida como

sacralidade que jamais deveria ser desrespeitada.

É o ser humano, concretamente falando, quem sofre as conseqüências da injustiça,

da ganância, da violência; e é, este mesmo ser humano, quem necessita ser recolocado no

centro do diálogo como existência a ser preservada e amparada. Um passo significativo para o

diálogo ecumênico pode ser dado quando se opta por menos discurso e por mais ações em

torno da salvaguarda do humano. O Concílio Vaticano II preconizava essa postura há mais de

quarenta anos como se pode ver no Decreto sobre o Ecumenismo:

A cooperação de todos os cristãos exprime, de modo vivo, os laços que já os unem entre si e faz resplandecer mais plenamente a face de Cristo Servo. [...] Ela contribuirá assim para avaliar devidamente a dignidade da pessoa humana, promover o bem da paz, prosseguir na aplicação social do Evangelho, incentivar o espírito cristão nas ciências e nas artes e aplicar todo gênero de remédios aos males de nossa época, tais como: a fome e as calamidades, o analfabetismo e a pobreza, a falta de habitações e a distribuição não justa dos bens (UR 12).

Nenhum grupo cristão deve objetivar propor “conversões”, mas sim a verdadeira

conversão em torno do que o “Jesus-carne” propôs como maior e verdadeiro mandamento:

“Amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 15,12). O amor ensinado pelo Cristo não foi

nada romântico, alienado ou retórico, mas sim uma entrega plena da vida; entrega esta já

sinalizada pelo lava-pés como exemplo a ser seguido pelos que a ele aderissem (Jo 13, 12-17).

O princípio de todo verdadeiro cristianismo está no reconhecer no próximo, de modo especial

no mais necessitado, a pessoa do próprio “Jesus-carne”, que continua a solicitar da

humanidade uma adesão. Os cristãos podem acolher o pedido da oração de Jesus, “Que todos

sejam um, para que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17,21), como verdadeiro convite à

martyria (testemunho) e à diakonia (serviço)28.

O diálogo ou a prática ecumênica entre cristãos tradicionais, membros das Igrejas

históricas, é mais viável, porém isso não impede que se façam tentativas de aproximação com

os grupos evangélicos pentecostais e neopentecostais. A recusa pelo discurso religioso,

propriamente dito, não significa uma renúncia aos princípios e características específicas da

fé, mas sim uma estratégia que permite dialogar e agir a partir do comum, neste caso, a pessoa

humana que, implicitamente, tem sua referência em “Jesus-carne”. 27 A propósito, referindo-se ao contexto latino-americano e caribenho: ALTMANN, op.cit., p. 412.28 Cf. SPINSANTI, Sandro. Ecumenismo espiritual. In: Dicionário de espiritualidade. São Paulo: Paulus, 1993. p. 314.

124

2.2 – O horizonte do diálogo inter-religioso

Proposição: O cristianismo deve colocar-se o problema do fenômeno religioso sem descuidar

de sua especificidade, que é a encarnação, ousando afirmar o paradoxo que os primeiros

cristãos já proclamavam, ou seja, na plenitude dos tempos Deus veio à humanidade na

“carne”, em Jesus. Tal mensagem não é, para o cristão, um privilégio nem lhe confere um

grau de superioridade, mas é uma proposta para conhecer Deus a partir do que ele quis

revelar, dizer de si mesmo, no humano Jesus.

Tendo sido considerado, no Ocidente, durante séculos como a única resposta

religiosa ao ser humano, o cristianismo experimenta, atualmente, o confronto com as mais

diversas tradições religiosas. O processo de aceleração do diálogo entre as culturas, produzido

pela globalização, aproximou do Ocidente culturas alheias à idéia da encarnação proposta

pelo cristianismo. Esse fato, para uma proposta de diálogo, exige da teologia cristã uma séria

reflexão sobre sua contribuição a partir do “Jesus-carne”.

O cristianismo não pode fugir ao diálogo e a tudo o que esse termo significa, ou

seja, partilha, posicionamentos, confrontos, comunhão, busca da verdade, humildade para

reconhecer que nenhum grupo possui a totalidade da verdade sobre Deus29. O fenômeno da

multiplicidade religiosa leva o cristianismo a rever coerentemente o que diz sobre si mesmo e

como vê as outras religiões. Como em todo diálogo, os parceiros não podem descuidar-se de

seus elementos característicos e pontos essenciais; ao mesmo tempo em que buscam acolher a

contribuição oriunda de cada participante30. Marcelo Azevedo faz a seguinte indicação:

O diálogo supõe que cada um dos parceiros seja ele mesmo e como tal se manifeste e seja acolhido. Seu fruto principal é a percepção da diferença entre ambos e, por conseguinte, a intuição mais aguda das respectivas identidades. Ao conhecer melhor o outro, cada um se conhece melhor a si. O que poderia parecer um fator que aprofunda a discrepância e alarga a distância torna-se caminho privilegiado de uma nova perspectiva31.

No que tange ao diálogo inter-religioso, o cristianismo enfrenta duas objeções por

parte dos que propõem o pluralismo religioso:

29 Cf. DUPUIS, op.cit., p. 517.30 Cf. Ibid., p. 516.31 AZEVEDO, Marcelo. Prólogo. In: TEIXEIRA, Faustino Luiz Couto (org.). Diálogo dos pássaros: nos caminhos do diálogo inter-religioso. São Paulo: Paulinas, 1993. p. 18. – Faz afirmação semelhante: KONINGS, Johan. Ser cristiano: fe y práctica. México: Buena Prensa, 2005. p. 7.

125

a) A pretensão do cristianismo de ser a revelação definitiva de Deus faria dele uma

religião superiora a outras32. A fim de rejeitar tal afirmação, alguns autores cristãos

excluem a idéia de encarnação e procuram transformá-la em mero símbolo, metáfora33

de uma ação de Deus. Jesus torna-se um modelo, um ideal do ser humano, mas não

compreendido como aquele que em sua “carne” desentranhou a misericórdia de Deus

e a fez conhecida. Alguns sugerem que não é possível propor o diálogo inter-religioso

quando se leva para o mesmo a pessoa de Jesus. Sugerem que tal diálogo gire apenas

em torno do teocentrismo. O problema é pensar que o cristianismo pode dizer algo

sobre Deus sem tocar em “Jesus-carne” como revelador de Deus. Uma cristologia que

parta do “Jesus-carne” como momento de uma economia mais ampla que é a do Verbo

eterno permite um legítimo diálogo inter-religioso34. O cristianismo posiciona-se para

o diálogo consciente de sua fé em Jesus como a plena e definitiva revelação de Deus;

contudo, não se sente superior a nenhum outro grupo religioso; nem se outorga a si

mesmo o papel de juiz das outras religiões ou de exclusivo portador da salvação.

b) O caráter singular e único de Jesus, relacionado com a eleição do povo de Israel e

com a experiência cristã, como exclusão de outras religiões35. Compreende-se, por

vezes, o conceito de eleição como uma apropriação egoísta de Deus, que excluiria as

outras religiões. Na linguagem bíblica, a eleição sempre se dá em função de todos. A

escolha de um, por parte de Deus, é a garantia de sua real comunicação. Um deus que

se comunicasse diversamente em cada um e em cada grupo religioso e que o fizesse ao

mesmo tempo na história não poderia jamais ser conhecido!

O específico cristão é aceitar que em “Jesus-carne” Deus comunicou-se

totalmente ao ser humano. Isso não significa que os cristãos possuam a totalidade do

que “Jesus-carne” revelou sobre Deus, nem que as igrejas cristãs detenham toda a

densidade da vida de Jesus. O termo “eleição” é termo-chave da Tradição bíblica

cristã, a qual sem esse se tornaria inarticulável. O conceito de encarnação ligado ao de

eleição é elemento fundamental para o diálogo e aponta para a progressiva

manifestação de Deus à humanidade. Sem dúvida, como bem o lembra Queiruga, o

conceito de eleição permite, às vezes, conclusões precipitadas:

32 Cf. HICK, John. A metáfora do Deus encarnado. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 187; 217.33 Cf. DUPUIS, op.cit., p. 410. – Dupuis afirma que os pluralistas, principalmente Hick, consideram o termo ‘encarnação’ apenas como expressão mítica e metafórica. Essa atitude se justifica em função da rejeição a todo cristocentrismo e cristologias inclusivistas. Para os pluralistas a única perspectiva possível é a teocêntrica.34 Cf. GEFFRÉ, Claude. Théologie chrétienne et dialogue interreligieux. In: Revue de l’Institut Catholique de Paris, Paris, v. 38, n. 2, p. 72, 1991 (Apud DUPUIS, op.cit., 517).35 Cf. HICK, op.cit., p. 212-213; 217.

126

[...] a “eleição” é uma necessidade histórica que não consiste em privilegiar para separar, e sim em “intensificar” a uns para chegar melhor a todos. Aqui o esquema subconsciente a eliminar é o de “nós sim”/“os outros não”, normalmente traduzido em “nós verdadeiros”/“os outros falsos”36.

O cristianismo não pode excluir nenhum outro grupo como se detivesse a

salvação37, mas pode afirmar, tranqüilamente, que acredita estar próximo da imagem

que Deus permitiu-se revelar aos seres humanos na pessoa do “Jesus-carne”, não como

detentor dessa revelação, mas como anunciador dessa novidade. A diversidade

religiosa pode ser respeitada e o cristianismo não deve esperar adesão ou rejeição,

deve apenas colocar-se no diálogo como grupo que faz a experiência de uma ação

inovadora de Deus, que tocou o humano definitivamente e o constituiu como sinal de

seu ser e de seu agir na pessoa de Jesus. Eleição é categoria essencial.

Após apresentar as duas objeções mais comuns e a possível resposta cristã a elas,

cabe ressaltar que o “Jesus-carne” é, em si mesmo, a possibilidade de diálogo inter-religioso,

pois nele o ser humano encontra-se plenamente valorizado. Mais que discutir formulações

doutrinais e religiosas, às vezes infrutíferas, o diálogo inter-religioso deve esforçar-se por ser

instância em que o ser humano, como criatura única que pode dialogar com o Criador pela

religião, encontra-se no centro. Longe do centro dos diálogos e dos interesses, o ser humano

permanece como vítima de uma sociedade que o trata de forma oposta ao que ele é. A

Declaração do Parlamento das Religiões Mundiais formulou esse pensamento assim:

Todos sabemos: em toda parte no mundo, hoje como ontem, seres humanos são tratados de forma desumana. São privados de suas chances de vida e de sua liberdade, seus direitos humanos são pisoteados, desconsidera-se sua dignidade humana. Mas poder não é o mesmo que Direito! Diante de toda desumanidade, nossas convicções religiosas e éticas exigem: todo ser humano tem de ser tratado de forma humana!38

A pessoa de “Jesus-carne” deve ser um reforço para a percepção de que toda

forma de religiosidade torna-se legítima à medida que visa ao bem, a realização, à dignidade

36 QUEIRUGA, Andrés Torres. O diálogo das religiões. São Paulo: Paulus, 1997 (Comunidade e missão). p. 60 [grifo do autor].37 Cf. GEFFRÉ, Como fazer, p. 224. – O autor evidencia aquilo que se pode chamar de universalismo cristão da seguinte maneira: “É enquanto Universal concreto, isto é, enquanto Deus feito homem, que Jesus é universal. Cremos que Cristo não é uma manifestação entre outras do Absoluto que é Deus. Ele mesmo é Deus tornado histórico. Mas o que dizemos do Cristo como mediação de Deus não podemos dizer do cristianismo histórico. Por outro lado, a missão universal da Igreja não depende do caráter absoluto do cristianismo como religião histórica. O cristianismo não tem o monopólio da ação salutar de Deus: a graça é oferecida a todos os homens segundo vias conhecidas só de Deus. A Igreja, como realidade histórica, não tem o monopólio dos sinais do reino; Deus é mais do que os sinais históricos pelos quais ele manifestou sua presença”.38 CONSELHO DO PARLAMENTO DAS RELIGIÕES DO MUNDO. A Declaração do Parlamento das Religiões do Mundo. In: KÜNG, Hans; SCHMIDT, Helmut. Uma ética mundial e responsabilidade globais: duas declarações. São Paulo: Loyola, 2001. p. 74-75 [grifo do autor].

127

do humano39. O contributo cristão dá-se pela partilha de uma experiência em que o “Jesus-

carne” mostra que o caminho para o encontro com Deus não se dá num vazio abstrato, mas no

descobrir-se como próximo do outro, da mesma natureza humana. Nos diversos seguimentos

religiosos encontra-se a chamada “Regra de Ouro”, em que se fundamenta o agir humano e

apresenta um princípio de eqüidade nas relações sempre postulado na relação com o

semelhante40. O “Jesus-carne” pode ser compreendido como mais um que soma a tantos

outros no desejo de se respeitar o próximo, afinal também é característico do cristianismo

aquilo que Hans Küng apresenta como o elemento de validade e aceitação: “as religiões que

não concretizam em si mesmas os direitos humanos não são hoje mais dignas de fé”41. Por

fim, qualquer forma religiosa que aviltar o ser humano rompe com a imagem de Deus

proposta por “Jesus-carne” e com o sentido último da religião enquanto experiência de

encontro com o Criador.

3 – “Jesus-carne”: uma referência humana para a modernidade

Instalado num contexto plural, em que elementos modernos misturam-se

facilmente com outros pré e pós-modernos, o cristianismo precisa responder a novos apelos,

caso contrário pode transformar-se numa mera formalidade religiosa. Duas questões da

modernidade colocam-se diante do “Jesus-carne”. A primeira diz respeito aos conceitos de

Deus e ser humano apresentados pela razão e cultura modernas. A segunda trata da urgente

defesa do ser humano, que, apesar de todo crescimento tecnológico, permanece vítima de

outros humanos.

39 Cf. GEFFRÉ, Claude. Le dialogue des religions défi pour un monde divisé. Le Supplement, Paris, n. 156, p. 118, abr. 1986. – Diz Geffré: “Eu creio poder dizer que todas as religiões que são inumanas estão condenadas a morrer. O futuro das grandes tradições religiosas passa pelo rosto do homem”. 40 Cf. KÜNG, Hans. História, importância e método da Declaração para uma Ética Global. In: op.cit., p. 74-75. – Hans Küng lista algumas formulações da Regra de Ouro nos diversos textos sagrados, revelando o quanto há de semelhanças entre as religiões quando se coloca o humano como referência para o diálogo. Eis as formulações: Confúcio (c. 551-489 a.C.): “O que tu mesmo não queres, não faças a outra pessoa” (Ditos 15.23); Rabi Hillel (60 a.C. a 10 d.C.): “Não faças aos outros o que não queres que eles façam a ti” (Shabbat 31a); Jesus de Nazaré: “Tudo aquilo que quereis que os homens façam a vós, fazei-o vós mesmos a eles” (Mt 7,12; Lc 6,31); Islã: “Ninguém é crente enquanto não desejar a seu irmão o que deseja para si mesmo” (Quarenta Hadith de an-Nawawi, 13); Jainismo: “Os seres humanos deveriam ser indiferentes às coisas mundanas e tratar todas as criaturas do mundo como eles mesmos desejariam ser tratados” (Sutrakritanga I, II, 33); Budismo: “Um estado que não é agradável ou aprazível para mim também não será para ele; e como posso impor ao outro um estado que não é agradável ou aprazível para mim?” (Samyutta Nikaya V, 353.3-342.2); Hinduísmo: “Não se deve agir em relação ao outro de modo desagradável para si mesmo: é esta a essência da moralidade” (Mahabharata XIII 114,8).41 Ibid., Em busca de um “ethos” mundial das religiões universais. In: Concilium, Petrópolis, v. 2, n. 228, p.132, abr./mai.1990.

128

3.1 – O horizonte da razão e da cultura moderna

Proposição: “Jesus-carne” coloca em questão os conceitos tradicionais de Deus e do ser

humano apresentados pela cultura moderna como antagônicos e em constante rivalidade,

pois a encarnação afirma que Deus pode mais do que se consegue imaginar acerca de sua

pessoa; afirma também que o ser humano foi resgatado em sua dignidade e que é capaz de

acolher o ser de Deus em sua vida e história. “Jesus-carne” sugere que o ser humano só

pode ser compreendido no humano Jesus e que também Deus só pode ser compreendido a

partir dessa mesma revelação.

A filosofia moderna entende o conceito de Deus como alteridade radical e

absoluta, isso implica um total distanciamento entre o ser humano e o “ser supremo”.

Aplicando a Deus atributos contrários ao ser humano, tais como: eterno, imenso, imutável,

onipotente, perfeitíssimo, distinto do mundo, realidade pura; pode-se conceber o “Jesus-

carne” como uma limitação de Deus. Porém, em Cristo, Deus não nega o humano; ao

contrário, o tem como afirmação de si mesmo, explicitação de seu desejo de comunicar-se. A

força da concepção filosófica sobre Deus chegou a se impor nos manuais teológicos, neles os

atributos divinos tinham comprovação bíblica a posteriori e eram inicialmente derivados de

um conceito filosófico42.

Como Deus pode relacionar-se com a humanidade? A resposta panteísta

compreende que tudo é Deus. Deus e o mundo seriam idênticos. O mundo não seria uma

criatura de Deus, mas sim o modo necessário de Deus existir43. A resposta cristã vai mais

longe e afirma a radical escolha, livre e gratuita de Deus por comunicar-se com o humano a

partir do humano. Deus deixa-se conhecer no ser humano “Jesus-carne”. O conceito de Deus

como Absoluto, totalmente Outro, radicalmente oposto à contingência humana, diante da

encarnação é totalmente questionado. “Jesus-carne” é o conceito de um Deus que é frágil,

limitado, condicionado historicamente, escandalosamente semelhante à humanidade, vindo na

condição de enviado e servo. O conceito tradicional de Deus que se fixava em atributos extra-

mundanos é questionado radicalmente. O Deus antes imutável pode ser visto como um Deus

também em processo. Claude Geffré propõe uma conciliação da realidade de Deus com a

realidade do homem a partir do Cristo como universal concreto: 42 Cf. SATTLER, Dorothea; SCHNEIDER, Theodor. Doutrina sobre Deus. In: SCHNEIDER, Theodor. Manual de Dogmática, v. 1, p. 101.43 Cf. BOFF, Leonardo. Dignitas Terrae. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. São Paulo: Ática, 1999. p. 234-237. – Após criticar a postura panteísta, Boff apresenta o conceito de “pan-enteísmo” (em grego: pan = tudo; en = em; theós = Deus), ou seja, tudo em Deus e Deus em tudo. – Tal distinção encontra-se mais resumidamente em: BOFF, Leonardo. Ecologia, mundialização, espiritualidade. A emergência de um novo paradigma. São Paulo: Ática, 1993. p. 52.

129

Se formos até o fim no realismo da encarnação como tornar-se-homem de Deus e como tornar-se-Deus do homem, deveríamos poder compreender como a realidade de Deus se mostra como realidade do homem e inversamente. Desde que Deus se fez homem em Jesus, Deus e a realidade estão misteriosamente unidos – sem estarem identificados – no ser de Cristo. Falar a Deus sem falar do real é que seria alienação, porque é impossível falar do real em sua profundeza sem falar a Deus44.

Na cultura moderna, o conceito de humano que se tem não permite acolher o

“Jesus-carne”, pois nele revelam-se conciliadas duas realidades tidas como díspares. O ser

humano é, na cultura moderna, sempre apresentado como rival de Deus. Teme-se o conceito

de Deus como ameaça à liberdade humana. Deus e ser humano são apresentados como

realidades mutuamente excludentes. Para a modernidade, é a razão humana que tudo controla

e não há mais espaço para Deus como aquele que dá sentido à história e como explicação para

o funcionamento do universo45. Assim, o ser humano seria a resposta para si mesmo, se

bastaria a si próprio e poderia se compreender. Geffré sintetiza o desafio na atualidade da

designação de Deus em relação ao humano:

Em nosso desejo de designar Deus hoje, estamos expostos a dois perigos. Ou nos contentamos com um conceito metafísico de um Deus além do mundo, fora da realidade, Deus esse que é estranho ao que os homens vivem. Ou, no desejo de atingir melhor o homem, não ousamos mais falar de Deus e guardamos do cristianismo só sua dimensão ética de serviço aos homens. E se ainda falamos de Deus, é um discurso antropológico, isto é, um discurso indireto sobre o homem46.

Geffré deixa claro que, para a modernidade, a realidade de Deus e a do homem

parecem inconciliáveis. O problema desse pensamento, no que tange diretamente ao humano,

é o fato de privá-lo da dimensão transcendental, que é também constitutiva do seu ser47. Por

mais que o humano avance no processo do autoconhecimento, nunca se conhecerá por

completo. Enquanto ser transcendente, o ser humano também é ilimitado, imensurável. O ser

humano é bem mais que aquilo que a cultura moderna consegue formular em seus esquemas.

Diante dessas imagens errôneas, tanto de Deus quanto do ser humano, o “Jesus-

carne” é um convite a repensar a existência, a relação, a previsibilidade, tanto do Criador

quanto da criatura. O cristianismo, ao propor que num ser humano concreto Deus deu-se a

conhecer, afirma que todo ser humano é legítimo e válido em sua própria existência. O fato de

ser humano, o seu existir, sem nada fazer, já tem em si o seu valor. A vida humana em todas

44 GEFFRÉ, Como fazer, p. 159.45 Cf. SOUZA, José Carlos Aguiar de. O Projeto da Modernidade: autonomia, secularização e novas perspectivas. Brasília: Liber Livro, 2005. p. 55; 59.46 GEFFRÉ, Como fazer, p. 158.47 Cf. MARTINI, Antonio. O provisório e o transcendente. In: _____, et al. O humano, lugar do sagrado. 6. ed. São Paulo: Olho d’Água, 2001. p. 36.

130

as suas formas é tida como sagrada e, no ambiente secularizado, deve ser tida como realidade

a ser respeitada justamente por não ser totalmente compreendida.

As afirmações acima podem levar a um ateísmo, no qual o ser humano encontra

seu lugar, vê-se contemplado em “Jesus-carne”, mas prescinde de qualquer esfera

confessional. Todavia, o cristianismo aponta para o além, presente no ser humano, o

indecifrável, o incógnito. A contribuição cristã para a cultura moderna pode ser dada pela

valorização da vida não como existência a ser sofrida no mundo, mas como história que se

constrói na liberdade pessoal, que é inteiramente respeitada pelo Criador. O ser humano é

senhor, e tal senhorio não permite a nenhum igual achar-se em superioridade. O respeito pelo

humano nasce do reconhecimento de que há uma igualdade de base que prescinde de critérios

de raça, cultura, religiosidade, condição econômica. O anúncio cristão é o anúncio de que no

outro, semelhante a si, o ser humano é convocado à retidão do agir.

Além do dito acima, o cristianismo pode ser um provocador das ciências

humanas, particularmente filosofia e psicologia, quanto aos conceitos de Deus e pessoa,

permitindo romper com imagens míticas do sagrado, evitando negar a dimensão transcendente

do humano48 e realizando uma aproximação entre saberes que têm como único fim ajudar a

humanidade a ter uma vida com dignidade. Ênio Brito formula a relação entre Ciências

Humanas e Teologia desta forma:

Da aproximação entre Ciências Humanas e Teologia resulta a formulação da questão fundamental: “Como explicar o mistério do ser humano?” A progressiva compreensão do homem alcança um horizonte surpreendente a partir da fé de que o Verbo divino se fez carne. O lugar adequado para uma relação mais frutuosa entre Teologia e Ciências Humanas é a pessoa de Jesus Cristo. O relato de sua Ressurreição tem o seguinte significado: a intenção de Deus para a humanidade, e para cada um de nós, é que a última palavra da nossa existência seja a plenitude (“novos céus e nova terra”), superando o impasse, a morte. Só uma reflexão teológica capaz de explicitar a sabedoria do amor de Deus pela humanidade atual, estará em condições de dialogar com a Modernidade49.

A teologia aproximou-se bastante da sociologia (Teologia da Libertação, por

exemplo), mas carece ainda aproximar-se da psicologia, pois essa ciência aborda a liberdade

humana como âmbito inalienável, e o “Jesus-carne” é a referência cristã do humano livre por

excelência, a ponto de entregar-se por completo. Na análise psicológica, na qual o analisando

é o protagonista do processo, muitas vezes se demonstra certa pretensão de a pessoa humana

48 Cf. ECO, Umberto; MARTINI, C. M. Em que crêem os que não crêem?. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 75. – Numa resposta a Umberto Eco, o cardeal Martini afirma que o que constitui a dignidade humana é o fato de que cada ser humano é uma pessoa aberta para algo mais alto e maior que ela própria.49 BRITO, Ênio. O diálogo pelo avesso. In: MARTINI, Antonio et al., op.cit., p. 61.

131

bastar-se a si mesma e poder ter o acesso à compreensão total de si. A psicologia ajudou em

muito para uma visão mais humana da pessoa de Jesus e, conseqüentemente do humano em

geral. Algumas correntes psicológicas, como a Logoterapia, têm procurado implementar em

suas ações a questão religiosa, já que essa é uma das dimensões do humano50.

Carece aproximar-se ainda mais da filosofia, ciência que ajuda o humano a

posicionar-se no mundo como agente e sujeito e não como meramente uma marionete nas

mãos de um desconhecido. O contributo da filosofia para a interpretação de “Jesus-carne” foi

bastante enfatizado por Hünermann e ajudou na passagem de uma cristologia ontoteológica

para uma cristologia histórica51. Uma filosofia que se aproxima do “Jesus-carne” é, antes de

mais nada, uma antropologia, uma palavra a favor do humano e do seu agir responsável na

história; ao mesmo tempo em que uma filosofia inspirada no humano pode trazer em si os

elementos e valores anunciados pelo “Jesus-carne”.

Indubitável é o fato de que o cristão não pode mais agir no mundo como se dele

não fizesse parte ou não fosse por ele interpelado. A cultura moderna atribui ao humano um

lugar inigualável, mas nem sempre consegue vislumbrar a construção de uma história mais

justa. A autonomia da razão e o mito da cientificidade acabam por tornar o ser humano vítima

de suas próprias pretensões, pois arrisca negar a sua dimensão religiosa.

3.2 – O princípio da solidariedade

Proposição: A afirmação cristã do “Jesus-carne” revela uma solidariedade divina que,

respeitando e valorizando o agir humano, convida a descobrir o bem intrínseco a todo ser

humano. A solidariedade humana, independente de credos, pode na cultura moderna ser

expressão legítima do testemunho deixado pelo “Jesus-carne”. Sendo assim, a experiência

cristã pode contribuir ao defender a vida e pode enxergar sinais cristãos nos que defendem a

vida.

Para o cristão, o reinado de Deus não se confunde com nenhuma forma de poder

neste mundo, mas uma determinada forma de poder permite, por vezes, manifestar

50 Cf. PETER, Ricardo. Viktor Frankl: a antropologia como terapia. São Paulo: Paulus, 1999. p. 82-98. – Sobre a relação psicologia e religião: ANGERAMI-CAMON, Valdemar Augusto (org.). Espiritualidade e prática clínica. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004. – DOMÍNGUEZ MORANO, Carlos. Crer depois de Freud. São Paulo: Loyola, 2003. – ALMEIDA, Dalton Barros. Psicologia e fé, uma relação possível?. Rhema, Juiz de Fora, v. 6, n. 23, p.62-87, set./dez. 2000.51 A propósito: HÜNERMANN, P. Cristología. Barcelona: Herder, 1997.

132

parcialmente aquilo a que o humano é chamado na sua essência, ou seja, encaminhar-se para a

plenitude no respeito de sua dignidade e capacidade de interlocutor do mistério52.

“Jesus-carne” pode ser interpretado, no âmbito cristão, a partir da categoria

soteriológica da solidariedade53. Um Deus que deseja encontrar-se com o humano e, para isso,

torna-se da mesma condição desse ser, assumindo a história com sua morada, demonstra-se

solidário no seu agir. Não é um Deus que se humilha, mas sim que se comunica e deseja

mostrar-se solidário. A experiência bíblica veterotestamentária apontava para um Deus atento

ao clamor do seu povo (Ex 3,7). “Jesus-carne” é a resposta de Deus não só a um clamor

específico, mas a todos os clamores que qualquer ser humano possa manifestar. É o Deus que

também clama e inspira ao ser humano a plena confiança no amor.

A categoria soteriológica da solidariedade54 pode estimular os cristãos a assumir a

virtude da solidariedade como possibilidade de revelar-se ao mundo o “Jesus-carne”. No

contexto moderno, a vida humana, apesar de todos os avanços, permanece ameaçada devido a

interesses escusos. O fato de se olhar para o humano vendo apenas o que ele produz

(cf. GS 35), e não o que ele é, gera uma busca insana pelo lucro; matando o humano de

diversas formas. O cristianismo pode dialogar com esse mundo moderno neoliberal a partir de

uma proposta de solidariedade entre os seres humanos. Cresce, atualmente, o número de

organizações que objetivam defender a vida. A verdade cristã do “Jesus-carne” pode ser

apresentada como referência para esse agir humano. Não é o caso de se propor uma

“sociedade cristã”, afinal isso no passado não significou uma salvação e defesa de todos; mas

sim o perceber que o cristão pode agir no mundo de forma a integrar-se como parceiro de

outros em um agir solidário.

A solidariedade cristã, inspirada em “Jesus-carne”, propõe o despojamento do

egoísmo, tão comum aos tempos modernos, e o lançar-se ao encontro do outro para auxiliá-lo

e resgatar-lhe a dignidade. Mo Sung comenta que as religiões têm o papel de ensinar

sabedorias de vida e apresenta a solidariedade como uma delas:

52 Cf. SUNG, Jung Mo. Deus numa economia sem coração: pobreza e neoliberalismo – um desafio a evangelização. São Paulo: Paulinas, 1992. p. 124. – Sung assim se pronuncia acerca de uma escatologia intra-histórica: “A sacralização ou a absolutização de um sistema, seja capitalista ou socialista, significa a gestação de um totalitarismo. A distinção entre o projeto histórico e a utopia transcendental (ou, na linguagem de Dussel, a utopia histórica e a utopia escatológica) é fundamental na luta por uma sociedade mais humana. A utopia transcendental, não factível historicamente, deve acompanhar o projeto histórico, sendo uma fonte de inspiração e o fim a ser aproximado, mas não atingido; e, ao mesmo tempo, fonte de crítica ao projeto e às estratégias históricos”. 53 Cf. SCHILLEBEECKX, op.cit, p. 300. – O autor comenta o uso inicial do termo secular “solidariedade” como designativo do cristão “amor ao próximo”.54 Cf. SESBOÜÉ, Jésus-Christ, p. 367-375.

133

E uma sabedoria que está precisando ser ensinada e aprendida em todo mundo é a que nos ensina que não se pode ser feliz e amar a si próprio de verdade se não é capaz de se abrir ao sofrimento de outras pessoas, se não é capaz de ter uma sensibilidade solidária. E que não se pode realmente viver a sensibilidade solidária se não for capaz de aceitar, assumir e amar a si próprio, na sua condição humana e não em uma falsa auto-imagem de um ser supra ou infra-humano55.

A vida humana é o elemento primordial a ser defendido em todas as

circunstâncias, daí que toda atitude liderada por particulares, entidades públicas e líderes de

nações deve ser constantemente vigiada, evitando, assim, que firam o humano ou o tratem

aquém do que sua condição exige e dá-lhe direito.

Algumas atitudes laicas, melhor dizendo, secularizadas, propostas pelos mais

diversos grupos e organizações, podem receber a contribuição cristã:

a) Busca da paz: os interesses das grandes nações têm produzido um sem fim de

conflitos armados, tendo como mais prejudicados não os líderes nacionais, mas sim as

camadas populares, os mais sofridos entre os humanos. A paz cristã, que não se

confunde com a Pax Romana nem com a ausência de guerras, é apelo à proteção da

integridade pessoal e ao diálogo como meio unicamente válido para se construir uma

sociedade mais justa. Justiça esta que produzirá a verdadeira paz. O cristão é, pela sua

matriz geradora, um fomentador da paz nascida da justiça. Ele vê em toda forma de

violência contra o ser humano um risco e uma ameaça à paz. O sacrifício do “Jesus-

carne” repete-se no sacrifício de todos os homens e mulheres que são vitimados pela

violência e é um clamor aos que consideram o humano como realidade a ser priorizada

em todas as circunstâncias. O cristão não professa um deus sacrificado, mas sim um

Jesus que na sua “carne” recebeu do mundo uma resposta negativa às suas propostas.

O sacrifício da cruz, longe de ser um incentivo à submissão diante do sofrimento, é um

clamor para que não se repita com ninguém nenhuma forma de violência.

b) Garantia dos direitos humanos: inúmeros grupos, organizados cada qual em torno

de um objetivo particular, buscam defender os direitos inalienáveis dos seres humanos.

A disparidade econômica entre países superdesenvolvidos e aqueles marcadamente

empobrecidos exige do cristão um engajamento, para que todos tenham o necessário à

sua subsistência. “Jesus-carne”, que se deu como verdadeiro alimento para os seus

seguidores, exige dos mesmos o assumir sua forma de agir no mundo e todos os

esforços possíveis para sanar as deficiências sociais. “Jesus-carne”, que viveu e

55 SUNG, Jung Mo. Solidariedade e condição humana. In: Convergência, São Paulo, v. 36, n. 340, p. 100, mar. 2001.

134

assumiu a história humana como espaço de anúncio daquilo a que todo humano é

chamado a ser, exige do cristão uma postura de compromisso diante da história como

espaço em que se dão as verdadeiras escolhas da fé e no qual se explicita a vitalidade

do evangelho. Na luta em defesa do ser humano não importam os credos, mas a

legitimidade da ação que se realiza. Aí o cristão pode descobrir outros cristãos que não

professam por palavras o evangelho, mas o vivem na intensidade da prática da

solidariedade.

c) Proteção do mundo: é a partir da catástrofe humana que a teologia, particularmente a

da libertação, compreende a questão ecológica56 como lugar excelente para a prática

da solidariedade extra-eclesial. O paradigma ecológico tem gerado uma nova

consciência sobre o valor do planeta e de tudo aquilo que nele encontra-se como

biodiversidade ou que a permite existir. Sem nenhuma ingenuidade, o cristão é

também exortado a posicionar-se no mundo como quem conscientemente está

comprometido com a vida, a ponto de lutar ecologicamente com vistas no humano. A

defesa do planeta sem a referência da defesa do humano é alienação e inversão de

lugares. O mundo criado é dado ao humano como lugar de sua existência, está em

função do humano, e é nesse aspecto que toda luta ecológica precisa ter como

princípio uma ecologia humana, ou seja, o que se quer preservar, acima de tudo, é o

ser humano e, para tal, a conservação do mundo é um urgente enunciado, pois dentro

de uma visão holística há uma interdependência entre humanidade e mundo.

A solidariedade oriunda do “Jesus-carne” e orientada pelo seu jeito de agir não é

uma opção abstrata, mas sim a realização na história da perene revelação da glória de

Deus que o mesmo Jesus manifestou ao habitar no seio da humanidade. A história é o

palco onde os solidários reúnem-se em torno do humano e procuram os meios e formas de

favorecer sua vida. Para o cristão, tal história humana será sempre o lugar da ação de

Deus, que deseja salvar toda a sua criação, como bem o afirma Schillebeeckx:

No agir e pelo agir dos homens é preciso ficar claro que Deus, ajudado pelo homem, quer a salvação para sua criação inteira. Para a Bíblia, “o homem” é o representante de Deus na terra: para a salvação do homem, da natureza e da história do mundo. E por mais que pareça que o homem, em sua tarefa de criatura, falha mais do que tem sucesso, essa percepção de fato abre espaço para uma ética verdadeiramente humana regulando nossa atitude e comportamento para com o mundo e a natureza. Deus convida e dá forças: “Vamos, homem amado, tu não estás só!”57.

56 Cf. BOFF, Leonardo. Da libertação e ecologia: desdobramento de um mesmo paradigma. In: ANJOS, Márcio Fabri dos. Teologia e novos paradigmas. São Paulo: Loyola, 1996. p. 86.57 SCHILLEBEECKX, op.cit., p. 311-312.

135

Diante do tema da solidariedade a questão que pode surgir é, se realmente pode-se

valorizar e amar o ser humano sem se ter uma referência confessional ou não em Deus. Mais

uma vez é preciso acreditar que o que move o humano não é simplesmente um emaranhado de

interesses egoístas, mas sim um autêntico apelo que lhe ressoa constantemente a dar um

sentido para sua existência e a prática solidária acaba por responder esse chamado. Nenhuma

pessoa necessita confessar “Jesus-carne” como Cristo para daí fazer sua opção solidária.

Entretanto, pode ver em sua prática um modo bastante concreto de se respeitar o próximo. O

princípio da solidariedade pode capacitar a humanidade para responder de forma diferente às

interpelações de uma sociedade pluricultural e marcadamente financista e mercantilista.

Conclusão

Três incidências do “Jesus-carne”, bastante concretas, foram apresentadas. Não se

tem nenhuma pretensão de completude no tratamento do tema, mas pensa-se ter aberto

horizontes de compreensão nem sempre tão relacionados a uma leitura do termo “carne” de

Jo 1,14a. A importância dessas incidências encontra-se no fato de que não permitem também

um distanciamento da reflexão bíblico-teológica em relação à humanidade.

Há muito que se percorrer para que a teologia contemporânea consiga realmente

falar aos ouvidos dos atuais interlocutores. A cristologia, enquanto interpretação do “Jesus-

carne”, especificamente relacionada a João, ainda pode desenvolver-se sobremaneira. A

cristologia do Logos encarnado pode dar lugar à sarcologia joanina aplicada a Jesus e, como

tal, sinalizadora de uma real humanidade que possibilita um acesso inovador ao Deus já

conhecido como onipotente. “Jesus-carne” é consubstancial a todo o gênero humano.

A tarefa do diálogo ecumênico e inter-religioso tem efetuado transformações, mas

está longe de uma relação madura e saudável. Há desconfianças de quase todos os grupos

diante de uma manifestação cristã de exclusivismo da revelação. Certamente, o lugar ético é

onde melhor se dá a prática ecumênica e inter-religiosa. Não desprovida de discurso, afinal

toda práxis já carrega em si o seu discurso. Entretanto, os debates só terão sentido se girarem

em torno do “Jesus-carne”, pois nele visualiza-se o valor do humano para Deus. Em torno do

humano, Deus e os humanos encontram-se e podem re-significar suas relações.

136

Se a cultura moderna desafia a teologia cristã, o faz porque os cristãos já não

conseguem expressar com clareza as razões de sua fé e nem sempre proclamam o mistério do

humano enquanto interlocutores do divino. Somente revendo a forma de pensar Deus e de

pensar o humano, e conseguindo legitimá-las, é que a teologia poderá aproximar-se daqueles

que pensam Deus e o humano como antagonistas. Sem dúvida alguma, o “Jesus-carne”

propõe ao humano uma nova relação com Deus, consigo mesmo, com os outros e com o

mundo. A prática da solidariedade, que já tem sua tônica acentuada no agir ético cristão e

inter-religioso, é na sociedade atual convite irrecusável a todo cristão para se incorporar na

luta pela construção da paz, defesa da humanidade e do mundo.

Isso exige daqueles que crêem em “Jesus-carne” reconhecer que onde se encontra

um ser humano ali se encontra novamente o apelo da encarnação. Exige, ainda, reconhecer

que toda prática secular que visa à dignidade humana é, em si mesma, testemunho do que o

“Jesus-carne” propõe e espera de seu “corpo místico”. Num mundo moderno, as parcerias são

imprescindíveis e podem ser espaço para novos conhecimentos, revisão de antigos conceitos e

preconceitos, tentativa de responder a tantas inquietações que afligem os que são humanos e

têm o ser humano como referência máxima para o seu agir. O cristão é parceiro, na sua

própria identidade, de todos aqueles que evitam que mais uma vez o sacrifício da cruz impere

sobre a vida.

O estudo de “Jesus-carne” permite entrever que, em João, a humanidade ocupa

lugar central e, portanto, não se pode falar dele sem se desejar ardentemente falar do humano

com todas as suas complexidades. É salutar pensar que o Deus que se professa é o mesmo que

escolheu fazer-se um com a humanidade, para que não mais o buscassem nas alturas, mas sim

o reconhecessem desde então na imagem de todo ser humano e de tudo aquilo que lhe diz

respeito. Como diz Comblin:

[...] a novidade do cristianismo não é o desejo do infinito, é o amor das coisas finitas, o amor das coisas que passam. O homem foi criado, precisamente, para viver o eterno, para amar a Deus, na dimensão do tempo, passando e deixando-se passar, e forçando a passagem. O homem foi feito para viver o eterno na sucessão e no instante que passa. Não é se afastando das coisas que passam que ele se reúne a Deus. Pelo contrário, é mergulhando nelas, captando-as, abraçando-as inteiramente. A salvação não vem transformar essa vocação. Vem salvá-la58.

“Jesus-carne” é a afirmação do gênero humano e a revelação da meta a que cada

pessoa é chamada a atingir. Não heroicamente pela negação ou superação de suas limitações,

fragilidades e fraquezas, mas sim pela acolhida de sua condição humana como realidade que é

58 COMBLIN, José. O provisório e o definitivo. São Paulo: Herder, 1968. p. 72.

137

constantemente desafiada pelo mistério que lhe constitui a essência. Aceitar a condição

humana como o perecível chamado ao eterno, somente possível pela entrega e pelo agir

condizentes com o que é próprio do humano e que se evidenciou de forma inelutável em

“Jesus-carne”.

O “Jesus-carne” apresentado no Prólogo joanino também afirma que somente na

história humana, com todos os seus revezes, pode-se vislumbrar o rosto de Deus. Longe do

mundo não se chega a Deus e longe do humano distancia-se do semelhante. A história é,

então, instância na qual se decide por Deus e pelo próximo ou se os recusa ou rejeita. O

Evangelho de João dá um passo grandioso ao recuperar a terminologia veterotestamentária e

aplicá-la a Jesus, posteriormente compreendido pela comunidade como Filho de Deus.

O novo de João é a proclamação de que Deus adentrou a fronteira última que lhe

impedia tocar o humano, ele mesmo fez-se humano e deixou-se conhecer em Jesus como

Deus frágil, humilde, perecedouro, companheiro até o fim naquilo que é a trajetória humana.

Um Deus que em “Jesus-carne” revelou que sua glória é o amor, que seu encontro com a

humanidade dá-se para salvá-la, que sua entrega é resposta inequívoca à vocação plantada

pelo Pai em seu ser, a saber: a capacidade de doar-se no amor.

138

CONCLUSÃO

As Escrituras trazem em si uma reserva semântica que, como numa espiral, faz

com que uma só palavra abra uma série de perspectivas, significados e, conseqüentemente,

remeta a outras tantas palavras. A partir do termo “carne”, o estudo aqui realizado tinha como

proposta inicial ver o seu significado aplicado à pessoa de Jesus (Jo 1,14a). Diante de mistério

tão grandioso e fascinante que é a encarnação, a elucidação de um vocábulo a ele relacionado

é sempre um exercício atual e com implicações bastante concretas para o cristianismo.

No status questionis ficou evidente como o contexto sócio-religioso influenciou as

leituras do termo “carne” mencionado por João. Ireneu eleva “carne” à linguagem teológica e

lhe dá um significado essencial para a compreensão da pessoa de Jesus. Para Ireneu, sem a

afirmação da condição terrena do Verbo nada é modificado na condição humana. A

comunhão proposta por Deus em seu Filho é um resgate e divinização da pessoa humana.

Contra os gnósticos a palavra de Ireneu serviu como defesa de um elemento fundamental;

hoje uma leitura de Ireneu pode ajudar a vencer alguns pseudo-gnosticismos que têm

distorcido a verdade cristã e impedido uma valorização da vida na sua realidade perecedoura.

Num afã de salvaguardar a divindade do Verbo, Agostinho praticamente rompeu

com a dimensão humana de Jesus e, por sua vez, essa desvalorização da “carne” foi estendida

a todos os mortais. O espírito ficou em evidência, o humano não tinha sentido e era sempre

associado ao pecado. O Bispo de Hipona propõe que o Verbo vem como o médico que

devolverá a visão à humanidade. Existe aí certa semelhança com a idéia de envio, porém a

motivação pensada por Agostinho destoa por completo daquela apresentada por João como

comunicação da glória de Deus. João não propõe a missão de Cristo como motivada pelo

pecado, mas sim por um desejo divino de revelar o seu amor.

139

Tomás de Aquino utiliza como chave-de-leitura para o mistério da encarnação a

afirmação contida em Jo 14,6: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”. Essa chave é

bastante coerente com o sentido apresentado por João ao afirmar que “o Logos se fez

carne” (Jo 1,14a). O Doutor Angélico afirma a missão do Cristo como salvador da

humanidade, como o caminho e a meta a ser alcançada. Tomás assegura a unidade de corpo e

alma, permitindo uma valorização do terreno como mediação necessária para o encontro com

Deus. “Jesus-carne”, em Tomás, é a possibilidade de ascensão do humano até Deus. Este

acontecimento só foi possível por iniciativa de Deus.

Mais próxima do pensamento e linguagem modernos está a reflexão de Karl

Rahner. Esse teólogo rompe com um pessimismo em relação ao ser humano e interpreta a

encarnação como desejo de Deus de falar ao ser humano. Tal só pode acontecer em “Jesus-

carne”. A pessoa é em si um grande valor e Deus escolheu comunicar a ela todo o seu amor.

Na fragilidade do humano é que Deus revelou toda a sua magnitude. Rahner demonstra

acuidade ao pensamento joanino quando insiste na humanidade de Jesus como participação

plena e total na condição de todas as pessoas. A afirmação de João de que não há mais

barreiras a impedir a comunicação divina é legitimamente interpretada na proposta de Rahner

de que tudo está marcado pela graça de Deus. A realidade humana está imersa no mistério

divino.

Com relação à pesquisa bíblica, ficou evidente que o termo “carne” no AT é,

fundamentalmente, a condição humana na sua mortalidade, fragilidade e limitação. O humano

é uma “carne animada” que não tem todo o domínio sobre si mesma. A referência ao Criador

como o único imortal e eterno reforça que a pessoa na sua vida terrestre sempre será marcada

pela finitude e limitação espaço-temporal. Como vimos, a importância do estudo de “carne”

no AT está no fato de permitir uma real aproximação daquilo que o evangelista quis afirmar

no Prólogo. No AT, as duas esferas, a divina e a humana, são distintas, mas em constante

comunicação, pois é na “carne” que a existência humana se dá e nela se reflete o ser e o agir

de Deus. Importante notar como para o AT a categoria de história tem valor e como ela só é

possível a partir da existência concreta da humanidade.

Paulo não rompe com o pensamento hebraico sobre o vocábulo “carne”, porém

percebe as ameaças ao agir de Deus quando o humano tem a pretensão de se salvar pelas suas

próprias forças, não colocando mais a sua vida em referência ao Criador. A “carne” do pecado

é o orgulho humano, a vaidade da auto-suficiência que gera a ilusão de bastar-se a si mesmo.

Paulo levou o termo “carne” para o âmbito religioso e deu a ele um caráter teológico,

140

tornando quase impossível pensar sua teologia sem alusão ao mesmo. No que diz respeito à

pessoa de Jesus, o uso que Paulo faz de “carne” indica a existência de Jesus, a sua condição

humana, a totalidade de sua vida.

O estudo do Evangelho de João evidenciou que a palavra “carne” no Prólogo está

vinculada à realidade histórica da vida de Jesus. O “fazer-se carne” é o assumir a condição

humana com todas as suas características, mas particularmente com a realidade de

mortalidade. O todo da vida, palavra e ação de Jesus no mundo está condensado na afirmação

joanina de “carne”. A encarnação não é um acontecimento isolado, mas é o início de um

movimento muito mais amplo da revelação de Deus. “Carne” é, portanto, para João elemento

fundamental para a compreensão da fé cristã, pois sua cristologia é marcada pela idéia de

envio. Sendo assim, o “Jesus-carne” é a possibilidade única, verdadeira e insuperável do agir

de Deus no mundo.

O conjunto da obra de João deixa claro que não há um desprezo em relação à

“carne” nem uma vinculação ao pecado. “Carne” é a expressão da condição mortal escolhida

por Deus para se comunicar. É necessário ressaltar que, para João, não há necessidade de uma

defesa da humanidade de Jesus, pois isso já é dado pacífico; o paradoxo está em perceber

nessa humanidade a manifestação de Deus. Uma leitura da humanidade de Jesus em João não

pode se deter aos elementos meramente emocionais ou fisiológicos, mas deve sim atentar para

o fato de que o evangelista quis afirmar radicalmente que um “humano” como tantos outros se

distinguia por revelar o rosto do Pai. A profissão de fé da comunidade joanina assegura o

“Cristo total”, ou seja, a sua vida terrena, a sua glorificação após ter cumprido a missão para a

qual foi enviado e a sua pré-existência.

Não há no Evangelho de João interesse em se contrapor a um possível docetismo,

nem tampouco ele é fruto de um “docetismo ingênuo”. O Cristo joanino só pode ser

compreendido a partir do seu agir terreno, nem a glória nem a pré-existência isoladas

permitem ao humano decidir-se por ele. Na função de enviado, “Jesus-carne” é a realização

histórica do plano de Deus, o início de um novo tempo onde a glória divina já foi comunicada

e aguarda uma resposta humana. Impossível ficar indiferente ao “Jesus-carne”, ou se está ao

seu lado ou se estará do lado das “trevas”, a realidade distante de Deus.

No último capítulo foram apresentadas algumas incidências do “Jesus-carne”,

cabendo aqui somente afirmar que o atual momento vivido pelo cristianismo exige séria e

profunda reflexão acerca da humanidade de Jesus. Sem isso parece inevitável o movimento

141

massivo de adesão a um Deus distante da realidade, ora mágico, ora salvador, ora estranho e

incomunicável. Uma imagem de Deus, extremamente puritano, presente no cristianismo ou o

pseudo-cristianismo, em que a realidade terrena é negada em função do divino, leva a teologia

a repensar o seu lugar de fala sobre Deus e fala com Deus. O Deus apresentado por “Jesus-

carne” permanece, para muitos, um desconhecido. Na oficialidade dos catecismos, manuais,

escritos, há uma afirmação de que “o Logos se fez carne”, porém a forma como isso é

compreendido, principalmente a nível pastoral, desvia-se bastante daquilo que João propunha.

Afirmar a encarnação pode soar como afirmar uma história improvável ou

meramente fantasiosa de um Deus que se veste de humano, mas que verdadeiramente

permanece somente Deus e nunca efetivamente viveu a condição mortal. Por uma fidelidade

ao cristianismo primitivo importa resgatar que a humanidade de Jesus é dado essencial e que

em nada se diminui Deus ao pensá-lo como aquele que se fez criatura, viveu e morreu como

todo e qualquer humano. O desafio permanece: assumir que em “Jesus-carne” o cristianismo

vê a irrepetível e completa revelação de Deus, somente compreensível parcialmente, dada a

profundidade do seu ser.

Ao final desta pesquisa cabe reconhecer o quanto os cristãos precisam se apropriar

das suas verdades de fé, não como palavras mas como realidades que possam impeli-los a um

agir mais condizente com o do Mestre. “Jesus-carne” é o reconhecimento da história como

lugar imprescindível para o ser cristão. Não há outro Deus a ser buscado senão aquele que se

fez pequeno para revelar-se infinito, mortal para mostrar-se eterno, terreno para divina e

amorosamente surpreender a humanidade. Um Deus que coloca o humano no centro do seu

íntimo e que solicita do humano “amar como ele amou”.

A pesquisa em torno do “Jesus-carne”, ao propor uma “cristologia do envio”, abre

perspectivas para uma inovação no pensamento cristológico, evitando as propostas

descendente e ascendente, propondo uma integração entre o que foi a vida de Jesus e a

interpretação que dela fez a comunidade de fé. No campo da soteriologia ressoa o apelo por

uma interpretação da realidade humana nas suas várias dimensões e por um assumir a causa

do Reino não como realidade distante e futura, mas como ação cotidiana. Para isso a categoria

de “solidariedade” merece ainda maior aprofundamento. Um antropologia cristã à luz do

“Jesus-carne” pode ser instrumento elementar para um resgate do humano com tudo o que lhe

pertence e compõe como criatura aberta ao mistério.

142

Jesus, carne de Deus, estudo teológico-exegético a partir de Jo 1,14a, é mais um

esforço por explicitar uma compreensão do que há de mais sagrado no cristianismo e

contribuir para uma nova sensibilidade em relação ao humano Jesus e tudo o que ele significa

para a humanidade, bem como tudo o que a pessoa humana significa para Deus.

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