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Aparecida Maria de Vasconcelos A EXTENSÃO DA CRISTOGÊNESE EM TEILHARD DE CHARDIN “OMNIA IN IPSO CONSTANT” (Cl 1,17) Tese de Doutorado em Teologia Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori Apoio PAPG-FAPEMIG FAJE Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia Belo Horizonte 2015

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Aparecida Maria de Vasconcelos

A EXTENSO DA CRISTOGNESE EM

TEILHARD DE CHARDIN

OMNIA IN IPSO CONSTANT (Cl 1,17)

Tese de Doutorado em Teologia

Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori

Apoio PAPG-FAPEMIG

FAJE Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia

Belo Horizonte

2015

Aparecida Maria de Vasconcelos

A EXTENSO DA CRISTOGNESE EM

TEILHARD DE CHARDIN

OMNIA IN IPSO CONSTANT (Cl 1,17)

Tese apresentada ao Departamento de Teologia da Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia, como requisito parcial obteno do ttulo de Doutora em Teologia.

rea de concentrao: Teologia sistemtica

Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori

Apoio PAPG-FAPEMIG

FAJE Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia

Belo Horizonte

2015

FICHA CATALOGRFICA Elaborada pela Biblioteca da Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia

V331e

Vasconcelos, Aparecida Maria de A extenso da cristognese em Teilhard de Chardin: Omnia in ipso constant (Cl 1, 17) / Aparecida Maria de Vasconcelos. - Belo Horizonte, 2015. 331 p.

Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori Tese (Doutorado) Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia, Departamento de Teologia. 1. Cristologia. 2. Cristognese. 3. Teoria da Evoluo. 4. Teilhard de Chardin, Pierre. I. De Mori, Geraldo Luiz. II. Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia. Departamento de Teologia. III. Ttulo.

CDU 232

AGRADECIMENTOS

Ao Deus humanissimus, que, no corao da matria, pelo Vivente-Pessoal, est

sempre a realizar uma nova criao pelo Esprito.

A meu pai Itamar (in memoriam), um homem de Deus! A minha me Maria, pela

fora e abnegao. Deles recebi o testemunho vivo da f crist, o respeito e o cuidado para

com a Me Terra.

A todos(as) aqueles(as) que me acompanharam, durante este percurso, com

oraes e estmulos.

Ao professor dr. Geraldo Luiz De Mori, SJ, pelos encorajamentos no decorrer da

orientao.

Ao estimado padre Johan Konings, SJ, pelo apoio amigo e solidrio.

Ao professor dr. Franois Euv, SJ, que, junto direo do Centre Svres,

conseguiu a aprovao de meu estgio junto instituio.

Ao pre Gustave Martelet, SJ (in memoriam), que, com sua sbia orientao, no

mediu esforos para esclarecer as dvidas do projeto da tese. Tambm ao frre Jean-Michel

Maldam, OP, que, com acolhimento, ternura e humanidade, se prontificou a alargar o

horizonte da pesquisa.

Ao dr. Jacques Arnould, filsofa profa. dra. Marie-Jeanne Coutagne (Centre

Svres), ao paleontlogo dr. Henry de Lumley, diretor da Fondation Teilhard de Chardin e do

Institut de Palontologie Humaine de Paris, que forneceram preciosas contribuies

pesquisa. Ao pre Robert Bonfils, SJ, responsvel pelos Archives Jsuites de Vanves. Ao

historiador das religies, dr. Patrice Boudignon, que me forneceu fartos materiais

bibliogrficos.

mre prieure Marie-Madeleine Caseau e s soeurs bndictines do Prieur

Sainte Bathilde, Vanves, que me acolheram na estadia em Paris. O espao de silncio e orao

proporcionou-me ambiente adequado ao trabalho.

s irms Marguerite Laffont, Fille de la Charit; Rgine du Charlat Auxiliatrices,

Marie Dolores Marco, a Marie-Jos Broto e Assuno Deodato, pelas preciosas colaboraes

e confortos nos momentos mais difceis.

Ao corpo docente e funcionrios da FAJE, pela competncia e profissionalismo,

de modo especial aos funcionrios da Biblioteca Pe. Vaz e s bibliotecrias Zita Mendes

Rocha e Vanda Lcia Abreu Bettio.

Ao Programa de Apoio Ps-graduao da Fapemig, pela concesso da bolsa de

estudos e da bolsa-sanduche em Paris. Representaram contribuies de enorme importncia

para a elaborao desta tese.

J no sou eu que vivo, mas Cristo que vive em mim. Minha vida presente na carne, eu a vivo pela f no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim

(Gl 2,20).

RESUMO

Esta pesquisa, que se situa no quadro da teologia natural crist, tem como escopo trabalhar a

extenso da cristognese em Teilhard de Chardin. Esta categoria, genialmente intuda pelo

sbio francs, revela-nos a ao do Cristo, Alfa e mega, desde a origem do cosmo at a

sua transfigurao (na parusia). Uma ao que tudo energiza, polariza, amoriza e congrega. A

extenso da categoria sugere-nos uma ampliao surpreendente da obra da redeno.

Aplicaremos o mtodo hermenutico-sinttico-dedutivo aos escritos filosficos e religiosos

do autor, para demonstrar como se operam a extenso da cristognese e sua ligao com o

mistrio da redeno. A tese se compe de trs partes. A primeira, a cristognese na histria

do cosmo; a seguir, a cristognese na histria do ser humano e, finalmente, a cristognese

como divinizao e transfigurao. Ao final, dever ter respondido s seguintes perguntas:

qual o carter que a noo de cristognese, com suas possveis implicaes para pensar a

dimenso ubiqusta da redeno, recebe no pensamento do autor? At que ponto a categoria

inovadora Cristo-gnese capaz de contribuir para o atual discurso da teologia natural? O

estudo no busca em nada relativizar a importncia do enraizamento histrico da revelao

em Jesus Cristo, mas quer confirmar, pela via da teologia natural, que o Cristo a razo de

Deus para o mundo e, por isso, o sentido do cosmo e a meta da histria. aquele do qual

se pode dizer que omnia in ipso constant.

PALAVRAS-CHAVE

Teilhard de Chardin. Cristognese. Teoria da evoluo. Cristo Alfa e mega.

RSUM

Le but de cette recherche, qui se situe dans le cadre de la thologie naturelle chrtienne, est de

travailler sur lextension de la catgorie de christogense chez Teilhard de Chardin. Cette

catgorie, gnialement saisie par le savant franais, nous rvle laction du Christ, Alpha et

Omga, des origines du cosmos sa transfiguration ( la parousie). Une action qui nergise,

polarise, amorise et agrge tout. Lextension de cette catgorie suggre un largissement

surprenant de loeuvre de rdemption. Afin de dmontrer comment se produit cette

extension de la christogense et son rapport avec le mystre de la rdemption, la mthode

utilise sera la fois hermneutique, synthtique et dductive. La thse est compose de trois

parties. La premire abordera la christogense dans le cosmos; la deuxime, la christogense

dans lhistoire du cosmos; et la dernire, la christogense comme divinisation et

transfiguration. On se posera ensuite les questions suivantes: Quelle caractristique

lextension de la notion de christogense, avec ses possibles implications pour penser la

dimension ubiquiste de la rdemption, reoit-elle dans la pense de Teilhard de Chardin?

Jusqu quel point cette catgorie innovatrice de la Christo-gense peut-elle contribuer au

discours actuel de la thologie naturelle? Cette tude ne cherchera pas revitaliser

limportance de lenracinement historique de la Rvlation en Jsus Christ, mais visera plutt

confirmer, par la voie de la thologie naturelle, que le Christ est la raison de Dieu pour le

monde, le sens du cosmos et l objectif de lhistoire Cet omnia in ipso constant.

MOTS CLS

Teilhard de Chardin, christogense, thorie de lvolution, Christ Alpha et Omega.

ABSTRACT

This research, in the field of Christian natural theology, aims at studying the extension of the

category of Christogenesis in Teilhard de Chardin. This category, well understood by the

French scientist, reveals to us the action of Christ, the Alpha and Omega, from the origins of

cosmos to its transfiguration (at the Parousia). An action that energizes, polarizes, amorizes

and congregates everything. The extension of this category suggests a surprising

broadening of the work of redemption. In order to show how the extension of christogenesis,

and its relationship with the mystery of redemption, happen, the method utilized will be at the

same time hermeneutic, synthetic and deductive. The thesis is composed of three parts. The

first part examines Christogenesis in the cosmos; the second, Christogenesis in the history of

the cosmos; and the last one, Christogenesis as divinization and transfiguration. It will then

address the following questions: Which characteristic does the extension of the notion of

Christogenesis, and its possible implications for thinking the ubiquist dimension of

redemption, receive in Teilhard de Chardins thought? To what extent can the innovative

category of Christo-genesis contribute to the present discourse of natural theology? This study

does not seek to revitalize the importance of the historical rooting of Revelation in Jesus

Christ, but aims to confirm, through natural theology, that Christ is Gods reason for the

world, the meaning of the cosmos and the objective of history, the omnia in ipso constant.

KEYWORDS

Teilhard de Chardin, Christogenesis, theory of evolution, Christ Alpha and Omega.

LISTA DE SIGLAS E ABREVIAES

1 Obras e correspondncias de Teilhard de Chardin

Le Phnomne Humain. v. 1.

O Fenmeno Humano. v. 1.

Lapparition de lHomme. v. 2.

La Vision du Pass. v. 3.

Le Milieu Divin. v. 4.

O Meio Divino. v. 4.

LAvenir de lHomme. v. 5.

LEnergie humaine. v. 6.

Lactivation de lEnergie. v. 7.

La place de lhomme dans la nature. v. 8

Science et Christ. v. 9.

Comment je crois. v. 10.

Les directions de lAvenir. v. 11.

crits du Temps de la Guerre. v. 12.

Le coeur da la Matire. v. 13.

Lettres dEgyte: 1905-1908.

Gense dune pense. Lettres, 1914-1919.

Les neuf cahiers manuscrits du Journal, de 1915 1925.

Notes de retraites: 1919-1954.

Lettres de voyage. 1923-1955.

Correspondance. Pierre Teilhard de Chardin e Lucile Swan.

2 Outras siglas

Ad. Haer - Adversus haereses

AT - Antigo Testamento

Carn.- De Carne Christi

De Civ. Dei - De Civitate Dei

Dem. - Dmonstration de la predication apostolique

NT - Novo Testamento

ST - Suma Teolgica

3 Siglas referentes a documentos eclesiais

DH - DENZINGER-HNERMANN

DV - CONCLIO VATICANO II. Constituio Dogmtica Dei Verbum

GS - CONCLIO VATICANO II. Constituio Pastoral Gaudium et Spes

LG - CONCLIO VATICANO II. Constituio Dogmtica Lumen Gentium

VS - Carta encclica Veritatis Splendor

4 Abreviaturas

BAC - Biblioteca de autores cristos

Cf. - Confira

Dir. - Direction

ed. - Edio

n. Nmero

Orgs.- Organizadores

p. Pgina

Prod.- Producteur

Ral. Ralisateur

sc. - Sculo

s.d. - Sem data

v. - Volume

As abreviaturas bblicas seguem a traduo da Bblia de Jerusalm.

*O asterisco diante de um ttulo significa alguma carta indita de Teilhard.

SUMRIO

INTRODUO GERAL .................................................................................................. 015

PARTE I A CRISTOGNE NA HISTRIA DO COSMO: ... ET

PARTURIT USQUE ADHUC ................................................................ 026

Introduo . ........................................................................................................................ 026

1 UM COSMO PROCESSUAL E ALEATRIO ......................................................... 029 Prolegmenos ..................................................................................................................... 029 1.1 UM MUNDO EM DEVIR, NUM OCEANO DE ENERGIA: A EVOLUO

CSMICA .................................................................................................................... 031 1.2 NATUREZA PROCESSUAL, CONTINGNCIA HISTRICA: A TEORIA

DA EVOLUO ......................................................................................................... 038 1.3 CENRIO EVOLUTIVO: SEMENTEIRA FRTIL PARA UMA

TEOLOGIA NATURAL .............................................................................................. 045 Anamnese prospectiva ....................................................................................................... 054

2 TEILHARD E AS SEMENTES DA CRISTOGNESE ........................................... 057 Prolegmenos ..................................................................................................................... 057 2.1 AS HERANAS FAMILIARES .................................................................................. 058 2.2 O DESABROCHAR DA INTUIO DE CRISTOGNESE ..................................... 062

2.3 UM SOBREVOO SOBRE AS OBRAS DE TEILHARD....................................... 071

Anamnese prospectiva ....................................................................................................... 075

3 DA COSMOGNESE CRISTOGNESE ................................................................ 077 Prolegmenos ..................................................................................................................... 077 3.1 A TRANSFORMAO E A UNIO CRIADORAS .................................................. 078 3.2 A CRIAO COMO EVOLUO .......................................................................... 084 3.3 DA COSMOGNESE A CRISTOGNESE ................................................................ 093 3.3.1 A perspectiva fenomenolgico-cientfica ................................................................ 093

3.3.2 O plano da opo filosfica ...................................................................................... 100

3.3.3 Perspectiva teolgica ................................................................................................ 102

Anamnese prospectiva ....................................................................................................... 104

Concluso da primeira parte ............................................................................................ 105

PARTE II A CRISTOGNESE NA HISTRIA DO SER HUMANO: IPSE EST QUI REPLET OMNIA ........................................................................ 107

Introduo .......................................................................................................................... 107

4 A ENCARNAO: PRODIGIOSA OPERAO BIOLGICA ........................ 110 Prolegmenos ..................................................................................................................... 110 4.1 O CRISTO-UNIVERSAL: EXPLICAO INEVITVEL DA

ENCARNAO ........................................................................................................ 111 4.2 O HOMEM-JESUS, PHYLUM RELIGIOSO NA ANTROPOGNESE ..................... 119 4.3 CORPO DE CRISTO: CENTRO FSICO DA HUMANIDADE E DO

COSMO ........................................................................................................................ 128 Anamnese prospectiva ....................................................................................................... 136

5 A REDENO ENTRE A EXPIAO E A EVOLUO ....................................... 139 Prolegmenos ..................................................................................................................... 139 5.1 A FACE CRIADORA DA REDENO .................................................................. 140 5.2 O MAL E O PECADO ORIGINAL NA DIMENSO DO COSMO ........................... 151 5.3 JESUS: O QUE PORTA O PESO DA CRIAO OS PROGRESSOS DA

MARCHA UNIVERSAL ........................................................................................... 165 Anamnese prospectiva ....................................................................................................... 172

6 A RESSURREIO: CRISTO, A MEDIDA E A CABEA DA CRIAO ................................................................................................................... 176

Prolegmenos ..................................................................................................................... 176 6.1 A MORTE E A RESSURREIO ............................................................................... 177 6.2 O RESSUSCITADO: CENTRO UNIVERSAL OMNIA IN IPSO

CONSTANT ............................................................................................................... 185 6.3 O MISTRIO DO CORPO DO RESSUSCITADO: TRANSFIGURADO E

GLORIFICADO ........................................................................................................... 189 Anamnese prospectiva ....................................................................................................... 196 Concluso da Segunda Parte ............................................................................................ 198

PARTE III A CRISTOGNESE COMO DIVINIZAO E TRANSFIGURAO: IN IPSO ENIM VIVIMUS ET MOVEMUR ET SUMUS ...................................................................................................................... 201

Introduo .......................................................................................................................... 201

7 A EUCARISTIZAO DO SER HUMANO E DO COSMO ................................... 204 Prolegmenos ..................................................................................................................... 204 7.1 AS EXTENSES REAIS E FSICAS DA PRESENA EUCARSTICA ............... 205 7.2 A EUCARISTIZAO DO SER HUMANO E DO UNIVERSO: O MEIO

DIVINO ...................................................................................................................... 217

7.3 A EUCARISTIA E A IGREJA, CORPO MSTICO DE CRISTO ............................... 227 Anamnese prospectiva ....................................................................................................... 237

8 A PARUSIA: O TRIUNFO FINAL DO CRISTO REDENTOR .............................. 240 Prolegmenos ..................................................................................................................... 240 8.1 A PLEROMIZAO: A CONSUMAO DA UNIO CRIADORA DO

COSMO EM CRISTO .................................................................................................. 241 8.2 PARUSIA CRSTICA E MATURAO HUMANA .............................................. 248 Anamnese prospectiva ....................................................................................................... 257 9 A TEOLOGIA NATURAL CRIST ........................................................................... 260 Prolegmenos ..................................................................................................................... 260 9.1 UMA APROXIMAO AO ESQUECIMENTO DA FIGURA DO CRISTO ........... 261 9.2 O CRISTO NA TEOLOGIA NATURAL ..................................................................... 265 9.3 O ADVENTO DA ECOTEOLOGIA ............................................................................ 272 Anamnese prospectiva ....................................................................................................... 281 Concluso da Terceira Parte ............................................................................................ 282

CONCLUSO GERAL ...................................................................................... 284

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .............................................................. 293

APNDICES

SO PAULO E TEILHARD: CHRIST TOUJOURS PLUS GRAND .............................................................................................................. 317

MEIO DIVINO ...................................................................................................331

15

INTRODUO GERAL

Na proposta desta pesquisa, desejamos inscrever-nos na tradio da racionalidade

da f crist e na atitude de abertura da teologia frente s cincias da natureza. Buscando cruzar

olhares entre domnios diferentes, somos motivada por uma mensagem do papa Joo Paulo II,

em junho de 1988, dirigida ao ento diretor do Observatrio do Vaticano, pe. George Coyne,

SJ. O papa afirmou que os desenvolvimentos atuais da cincia desafiam a teologia mais

profundamente do que a introduo de Aristteles na Europa do sculo XIII. Props que,

assim como os conhecimentos aristotlicos delinearam algumas das expresses mais

profundas da doutrina teolgica no podemos esperar que as cincias de hoje, com todas as

formas de conhecimento humano, fortifiquem e informem as partes da abordagem teolgica

que se baseiam nas relaes entre a natureza, a humanidade e Deus?1

As relaes entre evoluo cosmolgica, biolgica, humanidade e Deus ocuparo

nosso labor, no esforo de pensarmos o universo nAquele em quem omnia in ipso constant

(Cl 1,17). Atualmente, h um intenso debate sobre a importncia do dilogo que a teologia

deve estabelecer com a cultura e a cincia. Este dilogo estimulado pela urgncia, pela

complexidade e pela globalidade dos problemas de nosso mundo (as descobertas cientficas,

as novas tecnologias, a destruio dos ecossistemas, etc.). Pierre Teilhard de Chardin (1881-

1955) foi o pensador catlico que, no sculo XX, mais promoveu esse debate, construindo

uma sntese entre duas vises de mundo: a da f crist e a do pensamento cientfico. Instiga-

nos o fato de que, na atualidade, um dos grandes desafios para a teologia seja o apelo

construo de uma teologia dialgica.

Esta foi a questo que desencadeou nossa pesquisa. O cruzar do olhar com outros

campos do saber renovao em prticas fossilizadas da f crist. O que Teilhard j

profeticamente intura, e ao nosso olhar grave, que o cristianismo tem necessidade de uma

forte infuso de seiva humana, renovada e corajosa. Se existe uma indiferena crescente das

pessoas pelo cristianismo porque ele cessou de agradar2. Trabalhar com o jesuta uma

escolha que se deve ao fato de que ele, embora no tenha sido um telogo de profisso, fez de

1 JOHN PAUL II Pope. Message of his holiness Pope John Paul II to the Reverend George V. Coyne, SJ, director of the Vatican Observatory, 1 june 1988. In: COYNE, George V.; RUSSELL, Robert J.; STOEGER, Willian R. (Eds.). Physics, Philosophy and Theology: a common quest for understanding. Vatican Observatory: Vatican City state, 1988. p. M1-M14. p. M12.

2 Cf. TEILHARD, Les directions de lAvenir, v. 11, p. 33-34.

16

seu ofcio de paleontlogo um meio para estabelecer contato com as verdades e as realidades

da f. Como sbio, buscou direcionar suas intuies e reflexes ao cristo inquieto e desejoso

de encontrar uma resposta convincente e uma garantia final para suas realizaes terrenas.

Tambm procurou encontrar uma nova linguagem para expressar os dogmas cristos no

cenrio evolutivo do mundo. No decorrer de sua vida, experincias humanas, religiosas e

profissionais o conduziram a fundar uma verdadeira exigncia csmica para a teologia crist,

traduzida numa imponente Weltanschauung (viso de mundo), em particular dos tempos

atuais. o caso da experincia humana do sacerdote e soldado que viveu a Primeira Guerra

Mundial (1914-1918) nas trincheiras. A experincia do cientista e peregrino, durante a

prolongada estadia no seio da cultura oriental, e sua sensibilidade paleontolgica e geolgica

o levaram a buscar as origens da humanidade.

Nossa aproximao do gnio teilhardiano focalizar a temtica cristolgica, por

duas razes. A primeira consiste na tarefa premente de trabalhar a dimenso csmica da

cristologia. A Comisso Teolgica Internacional chama a ateno para duas dimenses da

reflexo cristolgica que merecem ser aprofundadas. Trata-se da dimenso pneumatolgica e

da dimenso csmica. Embora no suficientemente estudadas, guardam uma grande riqueza e

densidade de significado. O documento define a cristologia csmica como a que mostra a

significao ltima da cristologia, que no toca somente a todos e a cada uma das criaturas

celestes, terrenas e infernais, mas tambm a todo o mundo e a sua histria (Fl 2,10)3.

Nossa pesquisa no busca em nada relativizar a importncia do enraizamento

histrico da revelao em Jesus Cristo, mas quer confirmar, pela via da teologia natural crist,

que o Cristo a razo de Deus para o mundo e, por isso, o sentido do cosmo e a meta

derradeira da histria em perene evoluo. Nossa investigao, por isso, caminhar de forma a

explorar a dimenso cosmolgica da cristologia. Nesse percurso, no temos a menor

pretenso de fazer um estudo exaustivo do tema, muito menos de encontrar solues para

questes relacionadas ao pensamento teilhardiano, que continuam abertas e em discusso.

A segunda razo de nosso estudo, em menor proporo, diz respeito aos desafios

das questes ambientais. A tomada de conscincia atual em assunto de ecologia convida o

telogo a reconsiderar a relao entre Deus e a natureza, e, mais especificamente, entre o

Cristo e o universo no seu conjunto. Em um mundo to grande ao olhar da cincia, como

assumir teologicamente o carter universal da f crist?

3 COMISIN TEOLGICA INTERNACIONAL. Documentos 1969-1996. Veinticinco aos de servicio a la

teologa de la Iglesia. Madrid: BAC, 1998. p. 239-240. p. 240. (BAC, 587).

17

Oportunamente, cabe frisar que no somos especialistas em cincias naturais.

Mas, na medida em que esse domnio interfere com uma certa viso do humano, do mundo,

da natureza, como estudiosa da teologia, propomo-nos cruzar olhares que, embora diferentes,

so complementares. O pensamento teolgico, cujo objeto de estudo o sobrenatural,

tambm um pensamento que toma como ponto de partida situaes concretas, sujeitas a

experincia cientfica. Assim, o mundo, a natureza, o ambiente, a relao do ser humano com

isso, tudo faz parte da investigao teolgica.

A hiptese que orienta e motiva nossa pesquisa a noo teilhardiana de

cristognese que nos revela o Christ toujours plus grand, o Cristo crescendo sempre mais,

o Cristo em gnese, o Cristo que aparece cada vez mais. Tais afirmaes sero traduzidas

e parafraseadas ao longo de nosso trabalho.

Teilhard, educado e formado na cristologia tradicional, demasiadamente

delimitada no tempo e no espao, ousou estend-la desde a origem do cosmo at a

transfigurao do cosmo (na parusia). Alm disso, ele teve a coragem de envolv-la

visceralmente no vir a ser, ou seja, no processo evolutivo do estofo csmico, no qual Cristo

Jesus, Alfa e mega, tudo energiza, polariza, amoriza e congrega, tornando-se, dessa

maneira, a Cristognese. Tal concepo teolgica, original e inovadora, no foi bem

compreendida em sua poca, a ponto de suscitar discusses e polmicas, embora animosas,

mas que se revelaro frutferas no magistrio futuro da Igreja.

Esta categoria no surgiu nos primeiros escritos do autor, isto , em Les crits du

temps de la guerre (1916-1919), nem em ensaios prximos a esse perodo. O termo gnese,

em relao a Cristo, foi utilizado em 1938. A noo de cristognese foi aplicada natureza

fsica da encarnao em 1939. O desenvolvimento subsequente do conceito foi explorado,

sobretudo, na anlise do papel da Igreja como phylum de amor no processo evolucionista.

A categoria, mencionada em alguns escritos, ganha extenso e se mostra em toda a sua

riqueza, embora de forma dispersa e fragmentada, nos opsculos teilhardianos.

Elaboramos, a respeito, uma hiptese, que pretendemos provar com o presente

trabalho, que estruturamos em trs partes, sobrepostas e encadeadas. A hiptese principal -

Christ toujours plus grand se desdobrar em trs hipteses menores, interligadas, a serem

argumentadas e comprovadas no percurso da investigao. De incio, na primeira parte, a

cristognese na histria do cosmo, avaliaremos o Cristo crescendo sempre mais, antes no

universo, dinamizando, no interior da matria, todo o seu processo evolutivo. A seguir, com a

cristognese na histria do ser humano, evidenciaremos o Cristo imergindo nas entranhas

18

insondveis da terra para dinamiz-la, energiz-la, sustent-la e redimi-la. Por fim, na ltima

parte, a cristognese como divinizao e transfigurao, verificaremos de que maneira o

Cristo vai divinizando e transfigurando o mundo em que vivemos.

A extenso da categoria cristognese sugere-nos uma ampliao surpreendente da

obra da redeno. O autor estimou que a redeno constitui uma verdadeira histria, cuja

unidade interior e fundamental resulta de sua condio transcendental, a saber, do amor

divino. Sua espiritualidade, encarnada no hmus csmico, originou uma teologia da histria

da redeno na qual cada acontecimento vem a seu tempo. Assim, intumos que a ampliao

da obra da redeno pode se estender para trs, desde a origem do cosmo, e para frente, at

a transfigurao do cosmo.

Em funo do encadeamento dessas hipteses, ao final da pesquisa dever-se- ter

respondido s seguintes perguntas:

- Que tipo de caraterstica a cristognese, at ento desconhecida, com suas

possveis implicaes para pensar a dimenso ubiqusta da redeno, assume no pensamento

do autor?

- At que ponto esta categoria inovadora - Cristo-gnese - capaz de contribuir

para o discurso da teologia natural atualmente desenvolvido?

Estas questes podem ser desdobradas, gerando outras mais especficas, a saber:

- Como se realiza a cristognese na histria do cosmo, movida pela unio

criadora e transformadora, em sentido processual e convergente, da dimenso cosmolgica

da redeno?

- Em que medida os mistrios da encarnao, da redeno e da ressurreio

revelam a cristognese na histria do ser humano, inscrita na genealogia da rvore da Vida, e

como se refletem na dimenso antropolgica da redeno?

- De que maneira a cristognese, como divinizao e transfigurao do ser

humano e do cosmo, evidencia, em sentido pleno e escatolgico, a dimenso teolgica da

redeno?

Para responder satisfatoriamente a tais perguntas gerais e especficas ,

aplicaremos um mtodo que denominamos hermenutico-sinttico-dedutivo. Ele ser aplicado

na leitura dos 13 volumes das correspondncias do Dirio, dos artigos e das notas de leitura de

Teilhard de Chardin. Com isso, queremos indicar que procederemos com uma interpretao

dos escritos bibliogrficos organizados de forma sinttica e sistemtica, inferindo deles o

19

objeto que julgamos nortear toda a construo cristolgica do autor, ou seja, a extenso que a

noo de cristognese ganha em seu pensamento e sua relao com a redeno.

Para a primeira parte, captulo 3 (seo 3.2), a segunda e a terceira parte da tese

recorreremos a dados da Sagrada Escritura, da Patrstica, da Tradio, do Magistrio, assim

como aos especialistas ou comentadores clssicos do jesuta: Henri De Lubac, mile Rideau,

Bruno Solages, Madeleine Barthlemy-Madaule, Gustave Martelet, Peter Smulders, Peter

Schellenbaum, David Grumett, Christopher Mooney, George Crespy. A retrospectiva da

histria lembra-nos, por um lado, que o fazer teolgico sempre os escuta como ponto de

partida. Todo olhar para o futuro precisa conter um olhar voltado para o passado! Por outro,

trata-se de ver at que ponto as fontes referidas ressoam no pensamento do mstico francs,

fazendo-o avanar em sua proposta de um novo e original cruzamento dos olhares entre os

saberes.

importante que fique bem claro, nesse caminho, que o recurso imprescindvel a

essas fontes, devido a exigncias metodolgicas, ser sintetizado. Quem protagonizar

totalmente a cena ser Teilhard. As duas partes da tese acima referidas poderiam insinuar

alguma ambio da pesquisadora em construir um compndio cristolgico. Esclarecemos no

ser nossa pretenso! preciso passar pelos mistrios da vida do Nazareno (2 parte) e, a

seguir, pela eucaristia e a parusia (3 parte) para, enfim, demonstrar as hipteses propostas e

defendidas.

Cada parte que compe o corpo da tese apresentar trs captulos com objetivos

menores. Cada captulo foi estruturado em trs sees, que visam a levantar os elementos para

demonstrar a hiptese relativa a cada parte. A primeira seo da segunda e da terceira parte se

destinar sempre a oferecer uma viso geral da concepo do autor acerca do tema em

questo, sem qualquer pretenso de esgotar um pensamento to vivo e to vasto. Este

procedimento pretende ajudar o leitor a visualizar de antemo o todo, o panorama no qual ir

transitar, para, em seguida, atingir as partes, desentranhando os mistrios e as belezas do

caminho. Acreditamos que tal opo auxiliar o leitor a ter uma noo geral da res-

semantizao dos dogmas luz da teoria da evoluo. O captulo oito (8) constituir exceo.

Suas duas sees que se movimentaro de modo diferente. Apresentaremos, inicialmente

(seo 8.1), a categoria do pensamento teilhardiano que prepara o mistrio parusaco. Em

seguida (seo 8.2), a concepo da parusia no esquema evolutivo.

A exposio preliminar de cada captulo, intitulada Prolegmenos, justifica-se

pela necessidade de fornecer ao leitor as ideias-chave acerca do tema a ser trabalhado, alm

20

das provocaes e/ou interrogaes que brotam do texto. A reflexo intitulada Anamnese

prospectiva, situada em seguida a cada captulo, constitui um momento rememorativo e um

esforo de lanar um olhar adiante no objeto de estudo, isto , a cristognese e sua relao

com a dimenso csmica, antropolgica e teolgica da redeno. evidente que as sees

podem inspirar outras questes adicionais a serem esclarecidas. Todavia, nosso foco se

manter no objeto da pesquisa.

Ao final das trs partes haver um apndice. As palavras inspiradas de So Paulo,

omnia in ipso constant, preferidas de Teilhard de Chardin, parecem destilar a essncia da

cristognese em todos os seus estgios. Trata-se da exegese da percope de Cl 1,15-20, um

dos textos do NT que mais destacam a funo csmica de Cristo. Este recurso se impe ao

conjunto de nossa investigao, tendo sido o ponto de partida da reflexo cristolgica do

autor. Algumas vezes, nos permitiremos manter o tom potico-mstico que caracteriza alguns

escritos de Teilhard e que atestam sua reflexo construda na adorao do Cristo. Esperamos

que o apoio numa linha potico-mstica alivie a leitura, embeleze o texto e, sobretudo, consiga

expressar o mnimo do que representa uma reflexo pulsante, porque extremamente viva,

humana e existencial. Com tal procedimento, estaremos honrando tambm sua

Weltanschauung, por sua vez intelectual e apaixonada, aureolada pela arte e pela poesia.

O enredo temtico, diversificado, porm integrado hiptese central - Christ

toujours plus grand -, associado aos arranjos estruturais e aos procedimentos metodolgicos

adotados nesta pesquisa, dever conduzir o leitor ao interior da construo original intuda por

Teilhard.

A primeira parte da pesquisa apresentar a cristognese na histria do cosmo. O

enredo temtico do captulo 1 tratar de uma viso geral e atual nos dois domnios cientficos

em que o autor desenvolveu sua cosmoviso: a evoluo cosmolgica e biolgica.

indispensvel conhecermos os terrenos nos quais o gelogo e o paleontlogo perscrutava os

vestgios do passado.

Com certeza no o faremos com a profundidade de um especialista, mas

certamente com a admirao e o encantamento de quem se surpreendeu com a argcia

racional dos cientistas da natureza e sua seriedade frente s pesquisas. Considerando o cenrio

evolutivo uma sementeira frtil, desejamos descobrir seus reflexos no discurso da teologia

natural (1.1, 1.2 e 1.3).

O captulo 2 apresentar aquele que, sem dvida, mais influenciou o discurso da

teologia natural nos ltimos tempos, Teilhard de Chardin. Alguns aspectos de sua vida, ao

21

mesmo tempo filho da terra e filho do cu, bem como as abordagens que ele utilizou, so

necessrios para se compreender como seu pensamento nasceu e se forjou (2.1, 2.2, 2.3). No

captulo 3, percorreremos a viso ortogentica do jesuta, o gigantesco processo da evoluo,

que avana passo a passo ao longo de bilhes de anos, amadurecendo atravs de uma maior

complexidade e interiorizao da matria, desde as partculas elementares at as amplides

sem fim das galxias csmicas, passando pela biosfera das plantas e do mundo animal at o

ser humano (3.1, 3.2, 3.3).

A segunda parte da tese se ocupar da cristognese na histria do ser humano.

Num certo perodo da histria evolutiva, na fase da socializao (de convergncia ou

expanso), desabrochou a flor no caule de Jess e da humanidade. Aqui, trabalharemos os

mistrios da vida do Nazareno (encarnao, morte e ressurreio) luz da evoluo. A morte

e a ressurreio foram tratadas ao mesmo tempo pelo autor. Por questes metodolgicas e

didticas, para facilitar a demonstrao de nossas hipteses, aconselhvel separar os

mistrios.

O captulo 4 contemplar a encarnao pelo prisma da longa preparao csmica

e da prodigiosa operao biolgica no cimo da rvore da vida, quando o Cristo-universal,

depois de providenciar a sua habitao na terra, se manifestou. A irrupo gratuita do Verbo,

Jesus da histria em cujo corpo fsico convergem, pelo complexo trabalho evolutivo, todos os

feixes do cosmo inteiro e do gnero humano (4.1, 4.2 e 4.3).

O captulo 5 revelar que a redeno, inserida no mistrio da encarnao,

salvfica e libertadora do pecado. No entanto, a funo redentora do Cristo no se reduz ao

perdo dos pecados, mas se ressitua em novo cenrio, que assume um mundo por sua vez

limitado e inacabado. Nesta perspectiva, Cristo Jesus, o Nazareno, redentor e salvador que

carrega o peso da criao, de um mundo em progresso, pela dolorosa unificao e sofrida

sublimao dos homens com Deus, seu Pai. (5.1, 5.2 e 5.3).

O captulo 6 sublinhar que o Salvador e Redentor, pela cruz, ao romper os liames

corporais, presentes entre o homem e o mundo, provocar um formidvel evento csmico no

qual o Cristo Jesus, Filho de Maria, ressuscitado, se revela como um centro universal, como

medida e cabea da Criao. Ele no somente unifica os elementos embrionrios, mas

tambm cobre a criao com o manto da sua glria e do seu esplendor, merecendo, assim,

honra e adorao. Numa palavra, o mistrio da ressurreio apenas um vestgio de Deus

na humanidade de morte, que se tornar, graas a Ele, a humanidade de vida. Seria o corpo do

ressuscitado, na cosmoviso teilhardiana, uma neguentropia absoluta? Mesmo que o seja, a

22

cristognese no se detm a, mas persiste ainda no corpo mstico Igreja -, na ascenso do

ultra-humano e no cosmo sustentado e conservado pelo amor-energia, para se concluir na

parusia (6.1, 6.2 e 6.3).

A terceira parte investigar a cristognese como divinizao e transfigurao. Na

histria evolutiva do universo aleatrio, comandado pelos acasos cegos, permanece uma

ltima finalidade, graas ao acaso dirigido, a saber, o amor-energia de Deus, Cristo Jesus,

pantocrator e evolutor, que cria e transforma, unifica e plenifica o cosmo inteiro. O captulo 7

contemplar as extenses da eucaristia, pela qual o Cristo ressuscitado plasma e estabelece

um vnculo entre os homens e o corpo mstico, que a sua Igreja. Alm disso, assinalaremos

de que maneira a transubstanciao da matria do po e do vinho se evade do altar,

alcanando as fronteiras siderais e os confins do universo para tornar-se uma liturgia csmica,

ou seja, a missa sobre o mundo (7.1, 7.2 e 7.3).

O captulo 8 refletir sobre a parusia, um ponto culminante da diafania do Cristo,

pantocrator e evolutor. O acontecimento da parusia dependente da maturao planetria. A

espera deste evento , pois, encarnada. Pleromizao, ou unio criadora e cristognese so

termos sinnimos, utilizados para descrever o exerccio do poder do Cristo como centro

orgnico do universo (8.1 e 8.2). No captulo 9, concluindo nossa tese, retomaremos o tema

da teologia natural, cujo breve percurso histrico traamos no captulo 1 (seo 1.3).

Mostraremos, em breve aproximao, como a figura de Cristo imprescindvel a um discurso

marcado pela cincia. Teilhard de Chardin , com certeza, uma figura que muito contribuiu

para esse cenrio. As reflexes acerca da teologia natural crist parecem abrir-nos um

horizonte interessante para pensar a ecoteologia (9.1, 9.2 e 9.3).

A pesquisa se justifica em vista da mudana epocal na qual vivemos. A pessoa de

Jesus Cristo foi objeto de uma intensa busca ao longo da histria da Igreja. Crentes e no

crentes, msticos e telogos investigaram a vida dAquele que se encarnou, morreu e

ressuscitou em um determinado tempo e lugar da histria da humanidade. A propsito disso,

cada poca fornece seu toque particular ao evento Cristo e aos acontecimentos de sua vida.

legtimo dizer aqui que, desde o sculo XVI, a busca teolgica, bblica e arqueolgica tem

sido mais crtica e mais experimental.

Numa poca de desenvolvimento prodigioso das cincias, da tecnologia e de uma

nova conscincia da dimenso evolutiva, csmica e ecolgica da existncia, os crentes no se

contentam mais com viver na continuidade espontnea dos acontecimentos da vida de Jesus.

23

Ao contrrio, desejam verificar em todos os planos possveis os fundamentos de sua f4. um

fato, oportuno e providencial, que Teilhard tenha desenvolvido uma cristologia

contextualizada. Sob esse ttulo, honramos uma intensa busca que se produziu durante os

ltimos decnios, seja com as novas preocupaes cientficas, seja em nome da pertena a

uma cultura geograficamente situada 5.

Nosso cientista-mstico, homem dotado de viso retrospectiva e prospectiva, abriu

uma nova era no arcabouo teolgico, solidificado h sculos... Pensar que a teologia ganha

uma rajada de ar fresco, vendo o esprito de Cristo circular nos lenis de gua nascidos do

universo, nas estratificaes das camadas geolgicas e o sentido da vida nas espirais

ascendentes da histria... Tais intuies nos estimulam a trazer tona o que suspeitamos ser o

subtexto do texto. Em outras palavras, expor a envergadura imponente, espacial e temporal da

categoria cristognese, eixo central e norteador, que se estende do Cristo Alfa ao Cristo

mega, do Fiat original ao Maranata final. Tambm envolve, de forma orgnica e

progressiva, a dimenso cosmolgica, antropolgica e teolgica da redeno. Esta

originalidade de nossa pesquisa.

Com ela, enfrentamos limites de duas naturezas. O primeiro diz respeito s

questes referentes ao olhar multidisciplinar pelo qual transita o pensamento teilhardiano. O

segundo advm de questes com que nos defrontamos no conjunto dos escritos filosficos e

religiosos do autor.

Teilhard, com a sabedoria de ver horizontes mais distantes, cruzou genialmente os

dados cientficos, filosficos e teolgicos. Acreditamos, por isso, que esses trs aspectos

devam ser estudados em conjunto, a fim de se perceber suas conexes fundamentais.

Esforar-nos-emos para trabalhar o contedo, to vasto e to rico, observando nele e

aprofundando, em particular, os dados teolgicos, que so nosso alvo. Pelo fato de a

construo do autor se mover em domnios diferentes, seu pensamento extremamente

complexo, de difcil compreenso, muitas vezes no suficientemente clarificado por ele

4 Cf. SESBO, Bernard. Les trente glorieuses de la christologie (1968-2000). Paris: Lessius, 2012. p. 5-

20; 323-328. p. 6 (Donner raison, 34). Esclarecemos, para efeitos metodolgicos e de formatao de acordo com o padro ABNT e disposio do Vademecum (guia de redao da FAJE), que citaes em lngua estrangeira aparecero no texto do trabalho em traduo nossa, com reproduo do mesmo texto em lngua original em nota de rodap, dispensada a anotao traduo nossa. Igualmente, e pela possiblidade de opo permitida pelo Vademecum, com conhecimento e consentimento dos membros da banca, em caso de vrias citaes seguidas de um mesmo documento deixamos de utilizar os recursos da ABNT como: id. ibid. op. cit., apud...), repetindo, para maior clareza e utilidade do leitor, autoria e ttulo da obra.

5 SESBO, Les trente glorieuses, p. 323. Grifos do autor. [...], nous entendons honorer une recherche intense qui sest produite au cours des dernires dcennies, soit avec des proccupations scientifiques nouvelles, soit au nom de lappartenance une culture gographiquement situe.

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mesmo. Reconhecemos, por essa razo, que nossa pesquisa sobre a categoria cristognese est

longe de esgotar o assunto, alis ainda abordado pelos estudiosos, embora de modo

fragmentrio. Por se tratar, porm, de um tema fecundo e complexo, merecer

desdobramentos futuros.

Pelo que diz respeito ao nosso trabalho, admitimos limitaes em relao a termos

e conceitos cientficos, j que as cincias naturais no constituem nossa especificidade nem

nossa rea de atuao.

Consideramos pertinentes, apesar disso, as provocaes oriundas do campo

cientfico, sobretudo no que desafiam a tradio cristolgica. No se trata apenas de colocar

lado a lado duas leituras da realidade, mas de mostrar que o evento Jesus de Nazar, nico e

irrepetvel, torna possvel outra viso da realidade. Uma viso particular, sem dvida, mas

capaz de dar sentido a um mundo humano e em constantes transformaes. Por esta razo,

buscaremos, onde e se possvel, ampliar o pensamento do autor. A tarefa j constitua uma

questo pendente para o prprio Teilhard: O que deve se tornar nossa Cristologia para

permanecer ela mesma em um Mundo novo?6 Atender a essa pendncia nosso desafio!

Reconhecemos no ser acanhado este objetivo; temos conscincia do risco de no sermos fiis

ao que o autor pretendeu desenvolver. Alis, ele prprio escrevia que sua nica ambio era a

de lanar os fundamentos de algo plausvel, com chances de poder crescer7. Ora, compreender

um mestre no repeti-lo; prolong-lo; faz-lo fermento.

Nesta altura, conveniente observar que os 13 volumes das Edies Seuil, nos

quais nos baseamos, foram reagrupados segundo um plano temtico arbitrrio e no desejado

por Teilhard. Esta questo dificultou sobremaneira nosso trabalho. Outra dificuldade foi a

ausncia de sistematizao teolgica dos contedos cristolgicos. Eles se encontram esparsos

em seus escritos. Isto ser comprovado pelo leitor quando remetermos s notas de rodap,

sinalizando em que ensaios se encontra o tema abordado. Este fato, ao tempo em que

dificultou nossas anlises, demonstra que fatal conceber a sua obra como uma teologia ou

uma cristologia construda segundo os tratados sistemticos, o que deveras no , pois

permanece sempre incompleta e circunstancial. Toda prudncia necessria no tocante

fragmentao de tal quadro, aparentemente deficiente, pois se trata de um domnio que o

cientista-mstico no tinha pretenses de abarcar.

6 TEILHARD, Comment je crois, v. 10, p. 95. 7 Cf. TEILHARD, Lettre du 10 janv. 1954. In: CUNOT, Claude. Pierre Teilhard de Chardin. Les grandes

tapes de son volution. Paris: Plon, 1958. p. 482. Jai conscience, en tous mes travaux, dtre un simple rsonateur, grossissant ce que les gens pensent autour de moi. Je ne suis, ni ne peux, ni ne veux tre un matre. Prenez en moi ce qui vous va, et construisez votre difice.

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De acordo com o telogo George Crespy, todas as construes teolgicas de

Teilhard esto em relao estreita com a sua certeza de um crescimento evolutivo do mundo,

atravs do homem, convergindo para um centro polarizador, pantocrator e evolutor. Em

consequncia disso, esta certeza afeta todas as aproximaes dos problemas estudados.

Portanto, para fazer uma crtica a Teilhard, obrigatrio, antes de tudo, examinar o sentido, o

fundamento e a razo desta certeza, j que tudo resulta dela8.

No quadro de uma grandiosa cosmoviso (Weltanschauung) em que, em ltima

anlise, se desenha a cristognese, esperamos caminhar de tal forma a constatar em sua

extenso Aquele no qual omnia in ipso constant. A caminhada acontecer no cone do tempo

rumo unidade final no Cristo mega. O cone do tempo uma metfora geomtrica,

tipicamente teilhardiana, destinada a significar no tempo orgnico o movimento convergente

da omegalizao. As reflexes a propostas no dizem respeito a um tempo abstrato, mas a

um tempo real, o da evoluo do universo. Tempo bem existencial: de interrogaes,

ansiedades, emoes as mais preciosas e fundamentais do ser humano.

8 Cf. CRESPY, George. La pense thologique de Teilhard de Chardin. Suivi de Mystique , indit de Teilhard de Chardin. Paris: Universitaires, 1961. p. 132. (Encyclopedie universitaire).

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PARTE I

A CRISTOGNESE NA HISTRIA DO COSMO

... ET PARTURIT USQUE ADHUC1

Introduo

O Big Bang, que hoje temos como a origem do mundo, no contradiz a interveno criadora, mas a exige. A evoluo na natureza no incompatvel com a noo de criao, pois a evoluo exige a criao de seres que evoluem.

(Papa Francisco2)

Um universo rico e complexo desperta inmeras interrogaes em face do

mistrio dos mistrios3. De onde o cosmo surge e para onde ele vai? O que determina a

flecha do tempo? Qual a origem das leis fsicas? A matria mesmo feita de partculas?

Como podemos explicar a unidade da vida? De onde vm a multiplicidade e a variedade das

formas viventes, a capacidade de se renovar? Por que as espcies mudam e por que elas so

bem adaptadas ou no vida? O que que guia esse processo? H um plano por detrs dessa

multiplicidade?

Estas so algumas questes referentes cosmologia e biologia evolutiva. A

impresso vertiginosa de um universo aparentemente coerente - mas cujas dimenses,

propriamente falando, astronmicas e que a todo momento lanam novas questes - no pode

deixar indiferente o olhar do filsofo e do telogo. Na contemplao da grandiosidade do

universo, sobressalta-nos um incontido sentimento de reverncia, perplexidade e

atordoamento. O telogo se pe a pensar: um universo de futuro incerto, de natureza

1 Rm 8,22: em trabalho de criao. Optamos por colocar os subttulos das trs (3) partes de nossa pesquisa

com citaes bblicas em latim, pois Teilhard cita habitualmente os textos do NT nesse idioma. 2 FRANCISCO, Papa. Trecho do discurso do papa Francisco, em 27 de outubro de 2014, diante de um grupo de

membros da Academia de Cincias do Vaticano. Disponvel em: . Acesso em: 2 nov. 2014.

3 DARWIN, Charles. LOrigine des Espces. Paris: Flammarion, 1992. p. 45.

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processual aleatria, parece questionar o projeto de uma cristologia que postula a figura

estvel e soberana do Pantocrator4. Que imagem do Cristo omnia in ipso constant (Cl 1,17)

esta nova concepo do mundo permite contemplar?

O objetivo desta primeira parte identificar como se realiza a cristognese na

histria do cosmo, que movida pela transformao e pela unio criadoras. A partir da,

encontrar elementos que nos ajudem a pensar, em sentido processual e convergente, a

dimenso cosmolgica da Redeno. Para alcanar este objetivo, propomos trs captulos.

Eles se justificam para demonstrar a hiptese que orienta a primeira parte da pesquisa: o

Christ toujours plus grand dinamiza, do interior da matria, todo o seu processo evolutivo.

O ponto de partida Um cosmo processual e aleatrio (captulo 1) um

modesto sobrevoo nas reas que aparecem sob a pena de nosso autor a evoluo

cosmolgica e a evoluo biolgica. Esta opo, mencionada na introduo, quer conhecer os

terrenos sobre os quais Teilhard construiu a sua cosmoviso e conferir a legitimidade de um

possvel debate com a teologia natural. Como nossa pesquisa se enquadra na linha da teologia

natural, faremos um breve percurso histrico nessa disciplina, no intuito de avaliar possveis

relaes com as cincias naturais.

Buscaremos, captulo 2 Teilhard e as sementes da cristognese , conhecer as

razes de seu pensamento sobre o Cristo e ver como sua presena se atesta de modo

irresistvel ao longo de toda a sua vida. O cenrio da evoluo do cosmo e dos viventes,

conjugado com as inspiraes bblicas do primado de Cristo sobre o universo, conduziu o

jesuta a uma reflexo cristolgica original. Um olhar mais amplo sobre seus escritos permite

conhecer os pontos e os nveis nos quais ele estruturou metodologicamente seu pensamento.

No terceiro captulo Da cosmognese cristognese , conheceremos as

categorias basilares da sntese teilhardiana. A partir da viso ortogentica, resultante da

reduo do mltiplo ao uno e da transfigurao da matria em esprito, esclarece-se toda a

perspectiva teilhardiana csmica e religiosa. Investigando esse processo, em busca da

cristognese na histria do cosmo, vamos percebendo que o mundo cientfico forneceu

linguagem e smbolos para o que parece ser a fonte na qual o autor bebeu a mstica.

Iniciaremos o desenvolvimento dos captulos com prolegmenos. Uma exposio preliminar

4 O termo Pantocrator, na Bblia Hebraica, refere-se ao nome de Deus (Sabaoth Deus dos exrcitos 1Sm

17,47), traduzido nos LXX por pantokrator (Todo-Poderoso, Senhor do universo, Aquele que intervm no ntimo de todas as coisas por seu poder). No NT, este nome tem uma funo litrgica. Ele intervm ali num contexto escatolgico, para ordenar o mundo glorificao pascal do Cristo. Cf. BOULNOIS, Olivier. Potncia Divina. In: LACOSTE, Jean-Yves. (Dir.). Dicionrio Crtico de Teologia. So Paulo: Loyola, 2004. p. 1.414-1.417.

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ao assunto permitir, na entrada da cena, captar os movimentos ardentes e inquietantes que se

desenrolaro ao longo das exposies. A seo Anamnese prospectiva ir rememorar e lanar

algumas tmidas reflexes de uma teloga iniciante.

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1 UM COSMO PROCESSUAL E ALEATRIO

Prolegmenos

A cosmologia sustenta suas teorias sobre o carter evolutivo do cosmo1.

O mundo visto pelos astrofsicos contemporneos no aparece mais como um

todo ordenado e sossegado. Um universo que se desvelava aos antigos como um pedestal

imutvel, com cenrios de magnfica simplicidade, escondendo deles o processo da formao

dos corpos celestes, a existncia de buracos negros, , na realidade, um mundo profundamente

instvel, sujeito a mudanas e aberto a novidades. Os cientistas da natureza, reclusos numa

casca de noz, continuam a explorar todo o universo e a avanar audaciosamente para onde

at mesmo a jornada nas estrelas teme seguir, se os maus sonhos permitirem2.

A biologia evolutiva gerou teorias3 e mtodos que vm aprofundando

continuamente a nossa compreenso da evoluo das espcies vivas. Cada disciplina das

cincias biolgicas, da biologia molecular ecologia, foi enriquecida pela perspectiva

evolutiva. A evoluo, que fornece uma estrutura que vai de genes aos ecossistemas, a

nica teoria unificadora da biologia4. O sucesso da teoria da evoluo5, hoje incontestvel,

1 A cosmologia contempornea abraa uma variedade de disciplinas cientficas e trata de questes concernentes ao carter, estrutura, origem e at mesmo ao destino do universo. Seu principal objeto de investigao a realidade fsica observvel (espao, tempo, matria, causalidade) e suas origens fsicas com a sua prpria inteligibilidade. No claro, nas discusses e na pesquisa cosmolgica, onde termina estritamente a anlise cientfica e onde comea a reflexo metafsica e filosfica. A filosofia v as mesmas realidades do ponto de vista de como elas so dadas a ns como conhecedores e do papel que elas desempenham na estrutura do conhecimento e da existncia. Cf. STOEGER, William R. Contemporary cosmology and its implications for the Science religion dialogue. In: RUSSELL, Physics, p. 219-247.

2 HAWKING, Stephen. O universo numa casca de noz. So Paulo: Arx, 2002. Esta frase de Hawking um comentrio ao pensamento de Shakespeare: Eu poderia viver recluso numa casca de noz e me considerar rei do espao infinito (SHAKESPEARE, Hamlet, ato 2, cena 2). Esses pensamentos encontram-se na orelha do livro.

3 Teoria, na cincia, um corpo maduro e coerente de afirmaes interconectadas, baseadas em raciocnios e evidncias, que explicam uma variedade de observaes. As teorias se desenvolvem quando so confrontadas com novos fenmenos ou observaes, podendo, assim, ter partes descartadas, modificadas e/ou acrescentadas.

4 FUTUYMA, Douglas J. (Ed.). Evoluo, Cincia e Sociedade. So Paulo: Sociedade Brasileira de Gentica, 2002. p. 8.

5 A teoria da evoluo um conjunto de afirmaes a respeito dos processos da evoluo tidos como causadores da histria dos eventos evolutivos. Ela d uma explicao geral que responde ao porqu e ao como os seres vivos so o que so, mostrando plenamente a unidade e a diversidade das espcies. Cf. FUTUYMA, Evoluo, p. 9. Ela construda a partir de fatos interpretados segundo o mtodo cientfico: a objetividade (observao influenciada pelo real), a classificao (colocao em srie dos resultados e sua comparao para precisar a classificao) e a universalidade das leis da natureza (vlidas em todos os tempos e lugares). Cf. MALDAM, Jean-Michel. En qute du propre de lhomme: notes de lecture sur la question de

30

como diz o telogo dominicano Jean-Michel Maldam, tal que a perspectiva evolutiva

deixou de ser ponto de partida para se tornar um princpio geral6.

Tal afresco, majestoso e complexo, quer seja ele inspecionado pelo olhar do fsico

ou do bilogo, instiga uma atitude intelectual que honra a reflexo filosfica e teolgica. A

primeira, ocupada em avaliar o peso das palavras nos abismos do pensamento; a segunda, usa

do rigor do raciocnio para encontrar a unidade do contedo da f. Ambas, necessrias ao

exerccio laborioso de repensar e renovar seus discursos perante os desafios que o cenrio das

cincias da natureza impe aos seus projetos.

Motivados pela inteligibilidade decorrente da cosmologia contempornea e da

teoria da evoluo das espcies, objetivamos identificar as perspectivas que esses dois

domnios cientficos despertam ou provocam no discurso da teologia natural. Trata-se do

objetivo do primeiro captulo. Advertimos que a recorrncia a uma breve anlise desses dois

campos se justifica pela razo de se conhecer, no que seja indispensvel, os terrenos nos quais

nosso autor perscrutava os vestgios do passado. A investigao contemplar trs sees.

A primeira Um mundo em devir, num oceano de energia: a evoluo csmica

(1.1). A cosmologia moderna arruinou o esquema confortvel de um cosmo imutvel,

garantidor da permanncia dos princpios morais. Tudo no universo est em movimento,

efmero, vivemos em tempos incertos... Aps uma breve exposio desses elementos que

compem o discurso atual da cosmologia, consideramos pertinente evocar a viso de Teilhard

acerca de sua construo cosmolgica. Alguns cientistas da atualidade veem algumas de suas

intuies repercutindo no pensamento cientfico atual.

A seguir, Natureza processual, contingncia histrica: a teoria da evoluo (1.2).

A teoria da evoluo das espcies mudou a viso fixista tradicional, fazendo aparecer a vida

como resultado de um processo aleatrio, oportunista. Aqui, seguiremos o procedimento

adotado na seo anterior. Evocaremos alguns elementos da viso teilhardiana da evoluo

frente posio atual da teoria. Cientistas atuais tm opinies curiosas acerca da postura

adotada pelo jesuta.

A terceira seo, Cenrio evolutivo: sementeira frtil para a teologia natural

(1.3). Percorrendo, num modesto sobrevoo, a histria da teologia natural, observaremos que

salutar para esta disciplina imbuir-se dos estudos cosmolgicos e, sobretudo, da representao

la place de lhumanit dans le monde des vivants. Revue Thomiste, Toulouse, t. 109, n. 2, p. 253-307, 2009. p 253.

6 MALDAM, Jean-Michel. Cristo para o universo: f crist e cosmologia moderna. So Paulo: Paulinas, 2005. p. 23.

31

darwiniana da vida. O breve percurso colocar-nos- frente legitimidade da teologia natural,

bem como aos seus limites.

1.1 UM MUNDO EM DEVIR, NUM OCEANO DE ENERGIA: A EVOLUO CSMICA

O sentido de cosmo, do grego ordem ou ornamento, designa o universo, sem

nenhuma limitao, desde as menores partculas atmicas at as mais afastadas galxias7,

ordenado segundo suas leis prprias. Para os gregos, criadores deste vocbulo, o cosmo era

um sistema bem ordenado e harmonioso. O modelo cosmolgico aristotlico-ptolomaico

postulou que a terra era esttica, o centro do universo, e que o sol, a lua, os planetas e as

estrelas se deslocavam em rbitas circulares sua volta. Na filosofia da causalidade

aristotlica, que se harmoniza com a cosmologia das esferas, a fsica do cu (supralunar)

permanece distinta da terra (sublunar). A natureza nos aparece geomtrica. Considerava-se o

mundo constitudo de uma hierarquia de esferas celestes centradas sobre a terra. A fsica

invocava uma noo de lugar que apenas expressava alguns aspectos da noo de espao8.

Esse mundo hierarquizado foi progressivamente abandonado entre os sculos XV

e XVII. Os trabalhos de Nicolau Coprnico (1473-1543), Johannes Kepler (1571-1630) e

Galileu Galilei (1564-1642) marcaram o incio da mecnica celeste (o abandono das esferas

celestes), que Isaac Newton (1642-1727) unificou com a mecnica terrestre. A nova fsica de

Newton constituiu a primeira teoria cientfica do mundo9. Ele desenvolveu a teoria de como

os corpos se movem no espao/tempo e utilizou a matemtica para analisar tais movimentos.

O fsico ingls elaborou tambm as leis da gravitao universal10. Newton, de certa maneira,

aproximou as duas noes espao/tempo, introduzindo uma aproximao geomtrica,

espacializada do tempo11. O tempo segue do passado para o futuro. A flecha do tempo marca

7 COSMO. In: MOURO, Ronaldo Rogrio de Freitas. Dicionrio Enciclopdico de Astronomia e

Astronutica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987. p. 204. 8 Cf. HAWKING, Stephen W. Uma breve histria do tempo. Do Big Bang aos buracos negros. 6. ed. Rio de

Janeiro: Rocco, 1988. p. 19-20. LACHIZE-REY, Marc. Au-del de lEspace et du temps. La nouvelle physique. France: Le Pommier, 2003. p. 12-52; 192-198.

9 LACHIZE-REY. Au-del de lEspace et du temps. La nouvelle physique. France: Le Pommier, 2003, p. 30-32.

10 Cf. HAWKING, Uma breve histria do tempo, p. 22. Newton demonstrou, com a sua lei, que a gravidade faz com que a lua se mova na rbita elptica em torno da Terra, bem como a Terra e os planetas percorram trajetrias tambm elpticas em torno do sol.

11 Cf. LACHIZE-REY, Au-del de lEspace, p. 47.

32

esta distino12. A fsica newtoniana negligenciou a flecha do tempo e no levou em conta a

irreversibilidade que alguns fenmenos fsicos apresentam.

A cosmologia contempornea nasce no incio do sculo XX, principalmente da

teoria da relatividade Albert Einstein (1879-1955)13 e da fsica quntica14. Com um

olhar evolucionista, organicista, temporal e holstico, ela se ope s insuficincias do

pensamento mecanicista, determinista e fragmentrio da fsica dos sculos precedentes. A

nova fsica lembra-nos que do infinitamente pequeno (quarks, prtons, nutrons, eltrons,

tomos, molculas), que se ocupa do indeterminismo das leis fsicas, ao infinitamente grande

(estrelas, galxias, planetas), que d conta das foras de gravidade, tudo est em contnua

expanso.

A matria nuclear, que a que vemos no cu, no representa mais que 5% do

contedo material global do universo. Por isso que designamos, sob o nome de matria

negra, esta matria-energia abundante, e ainda misteriosa, mas cuja existncia no pode ser

colocada em dvida15. Este cosmo, com caractersticas presentes incertas, revela-se sujeito a

uma expanso eterna16. A matria escura exatamente a matria que no emite luz e,

portanto, no se v ao observar as estrelas e galxias, feitas da matria comum que constitui

menos de 5% do que existe. Em 1998 foi descoberto que a velocidade de expanso do

universo no est diminuindo, mas est acelerando, ao contrrio do que se pensava antes!

Assim, ficou excluda a possibilidade de o cosmo sofrer um futuro colapso. Para explicar esta

acelerao da expanso, fala-se em energia escura.

12 Cf. LACHIZE-REY, Au-del de lEspace, p. 51-52. A noo de flecha estava j presente na dimenso

vertical (considerada como espacial), tal qual evocava a anlise do movimento antes de Newton. Os corpos caem [...] para baixo e no para o alto, a vertical era orientada. Isso indica que ela possua implicitamente uma natureza parcialmente temporal, e no somente espacial. Nota de rodap n. 1, p. 52.

13 A teoria da relatividade repousa sobre o fato de que no podemos mudar o ponto de referncia sem levar em conta o tempo, enquanto na mecnica clssica apenas se levava em conta o espao. Tendo constatado que a rapidez da luz um limite intransponvel, foi preciso corrigir os sistemas de transformao e associar tempo e espao. Esta teoria liga a energia massa e permite explicar a gnese dos elementos constitutivos do universo. Einstein prolongou a obra comeada por Galileu e Newton. Pela primeira vez na histria das ideias, foi evocado um espao finito, mas sem fronteiras. Cf. MALDAM, Jean-Michel. Le Christ et le cosmos. 2. ed. Paris: Vrin, 2001. p. 16-18. (Science Histoire Philosophie).

14 A introduo da fsica quntica lembra-nos Lachize-Rey, que, desde as primeiras dcadas do sculo XX, representou uma revoluo como a desencadeada pela teoria da relatividade. Inicialmente, ela operou no quadro geomtrico newtoniano. Adaptada em seguida ao espao-tempo, isto , ao quadro da relatividade restrita, tomou a forma da teoria quntica dos campos (Cf. LACHIZE-REY, Au-del de lEspace, p. 12).

15 Cf. MAGNIN, Thierry. Du Big Bang lemergence de la vie: lhomme en qute dorigine. Teilhard aujourdhui, Paris, n. 39, p. 13-27, sep. 2011. p. 17.

16 Cf. STOEGER, William R. Contemporary cosmology and its implications for the Science religion dialogue. In: RUSSELL, Physics, p. 219-222.

33

No final do sculo passado, o desenvolvimento do standard model de cosmologia,

que incorpora a origem do Big Bang com a teoria de partculas elementares, explica como a

bola inicial evoluiu para produzir o universo de hoje. A palavra modelo, utilizada pelos

fsicos, significa um quadro simplificado, expresso em smbolos matemticos, cujos traos

essenciais so pensados para corresponder realidade17. Esse modelo fornece, no quadro da

relatividade geral, uma interpretao geomtrica coerente do universo. H cerca de

aproximadamente 13,8 bilhes de anos iniciou-se a expanso csmica.

A histria do Big Bang comeou em 1927. De acordo com Lachize-Rey, este

modelo o nico compatvel com a fsica do incio do sculo XXI. Esta representao do

incio do universo no tem a ambio de tudo explicar; como toda teoria cientfica, possui

uma validade limitada. Os limites do Big Bang resultam daqueles da fsica (eletromagnetismo,

fsica nuclear, partculas, relatividade geral), sobre os quais ele est fundamentado18. O xito

do modelo do Big Bang deve-se a dois aspectos. Primeiro, trata-se de um modelo simples e

natural, que descreve com preciso uma realidade a priori to complexa como o universo.

Segundo, porque esse modelo consolidado por uma srie de resultados de observaes19.

As condies existentes antes do Big Bang so especulaes que a teoria

convencional no contempla. O universo primitivo era muito quente, denso e irregular.

Alguns minutos aps a Grande Exploso, ocorreram reaes nucleares. O hlio existente no

universo foi sintetizado nessa ocasio. medida que o universo se expandia, ele se esfriava.

A radiao csmica de fundo um vestgio residual dessa era primitiva e tem sido

denominada de bola de fogo primordial. proporo em que a matria do universo esfriava,

ela ia se transformando em galxias. As galxias se fragmentaram em estrelas e se

mantiveram agrupadas para formar imensos agregados em vastas regies do espao. Com a

extino das primeiras geraes de estrelas, elementos como o carbono, o oxignio, o silcio e

o ferro foram sendo gradualmente sintetizados20.

Novas estrelas se formavam a partir das nuvens de gs e de poeira. Os gros de

poeira juntaram-se uns aos outros, dando origem a corpos maiores, que aumentaram de

tamanho devido sua atrao gravitacional, formando uma imensa variedade de corpos,

asteroides, estrelas, galxias e os planetas gigantes que constituem o sistema solar. O Big

17 Cf. TIPLER, Frank J. The Omega point theory: a model of an evolving God. In: RUSSELL, Physics, p. 313-

331. p 314. 18 Cf. LACHIZE-REY, Au-del de lEspace, p. 192-193. 19 Cf. LACHIZE-REY, Au-del de lEspace, p. 159-160. Grifo do autor. 20 Cf. SILK, Joseph. O Big Bang. A origem do universo. Braslia: Universidade de Braslia, 1985. p. 6-7.

34

Bang conduz-nos, pois, atravs da evoluo de todo o universo, desde os primeiros segundos

do tempo at a formao da terra, ao desenvolvimento da vida, expandindo-se a um futuro

talvez infinito21.

A gnese do universo aparece como o estabelecimento progressivo para as

possibilidades da vida. A cosmologia abre um discurso sob o ponto de vista antropolgico;

este, porm, permanece na fronteira da cosmologia e da metafsica22. Trata-se do princpio

cosmolgico antrpico, que coloca em evidncia a conexo entre o universo e o homem23.

Como o prprio nome sugere, o princpio antrpico se apresenta como um princpio fsico.

Seu enunciado no tem o estatuto de uma teoria, mas se trata de um acrscimo lista dos

princpios que constituem os axiomas da fsica moderna.

O primeiro enunciado do princpio antrpico foi formulado pelo astrofsico

australiano Brandon Carter (1942), em 1974, com a seguinte afirmao: O que podemos

aguardar em observar deve ser compatvel com as condies necessrias nossa presena

enquanto observadores24. A discusso desse princpio conduziu a distinguir, entre outras

interpretaes, o princpio antrpico fraco e o princpio antrpico forte. O que gerou essas

distines foi a noo de condies necessrias. No princpio fraco, estas dizem respeito

unicamente nossa posio temporal no universo. No princpio forte, elas concernem mais ao

conjunto das propriedades do universo, tanto cosmolgicas quanto fsicas25.

Em sua forma fraca, o princpio enuncia a existncia de condies necessrias

apario do fenmeno humano. Na atualidade, esse princpio considerado um princpio de

auto-seleo observacional, insistindo sobre o fato de que o Homo sapiens, que realiza as

observaes astronmicas e fsicas, apenas um instrumento de medida completamente

especial26. Nessa forma, ele deve ser aceito como aplicao direta da lgica cientfica

habitual. O enunciado, em sua forma fraca, pode aparentar uma tautologia. Esse princpio se

21 Cf. SILK, O Big Bang, p. 6-7. 22 Cf. MALDAM, Cristo para o universe, p. 71-82. 23 Cf. DEMARET, Jacques; LAMBERT, Dominique. Le Principe Anthropique. Lhomme est-il le centre de

lUnivers? Paris: Armand Colin, 1994. p. 143-150; 247-254. p. 143. (Collection S). Os dois grandes promotores do princpio antrpico so o cosmlogo, fsico e matemtico ingls, John Barrow (1952), e o cosmlogo e fsico americano Frank Tipler (1947). A obra clssica se intitula: BARROW, John D.; TIPLER, FRANCK J. The Anthropic Cosmological Principle. Oxford: Clarendon Press, 1986.

24 DEMARET; LAMBERT, Le Principe, p. 143. 25 Cf. DEMARET; LAMBERT, Le Principe, p. 143. 26 DEMARET; LAMBERT, Le Principe, p. 153. Grifos dos autores.

35

reduz, no plano lgico, a expressar uma evidncia: o universo como tal permitiu a emergncia

da vida; se isso no acontecesse, no seramos os observadores vivos27.

Em sua forma forte, o princpio atribui uma explicao finalista evoluo

cosmolgica. O universo deve possuir as propriedades particulares que permitem vida de

se desenvolver em seu seio, a certo estado de sua evoluo28. O universo tal que a vida

deve necessariamente aparecer. Essa forma associa, primeiramente, a finalidade em jogo no

universo a uma inteno transcendente. Segundo, a dinmica cientfica recusa toda explicao

que faa intervir qualquer finalidade. A interpretao finalista deixa a cincia e reaparece no

quadro de uma filosofia da natureza.

Nessa busca universal pela compreenso do nosso mundo e pelo que isso implica

para a humanidade, o cientista Teilhard de Chardin empenhou-se em mostrar a grandiosidade

de um universo em devir, com significado. No utilizando telescpios, mas, em stios

clssicos, nos estratos sedimentares, em trabalho de prospeco e coleta de fsseis, com

picaretas, ps e martelos, ele mostrou como as cincias naturais apontam para o mistrio

divino que pode ser descoberto na grandiosidade do universo em via de criao. Como

constataremos no terceiro captulo, ele nos mostrou que o conjunto do universo est em

evoluo e existe uma clara direo para a histria csmica.

A fsica fala do infinitamente pequeno e do infinitamente grande. Nosso autor

postulou um terceiro infinito: o infinito da complexificao. No corao do fenmeno

csmico (nas dimenses fsicas, temporais e espaciais), ao contrrio de se desenhar uma

tendncia geral desintegrao, desenha-se uma corrente ascendente de complexificao

acompanhada de conscincia29. Assim, a complexificao caracteriza-se por uma tendncia

do real em construir, nas condies favorveis, dos edifcios cada vez mais ricos em

interligaes e cada vez mais bem centrados, resultando nos organismos vivos e no fenmeno

da socializao30.

O sbio francs observou, pois, que o universo, como um todo, move-se em uma

crescente complexidade, unificando-se irreversivelmente, em sua hiptese, no Ponto mega.

Ao longo da pesquisa, exploraremos a noo de mega. No entanto, j adentrando em sua

27 Cf. DEMARET; LAMBERT, Le Principe, p. 154. LACHIZE-REY, Au-del de lEspace, p. 197-198. 28 Enunciado de Barrow e Tipler, citado por Demaret (Le Principe, p. 148). 29 Cf. TEILHARD, Lactivation de lEnergie, v. 7, p. 150. 30 CUNOT, Claude. Complexification. In: Id., Nouveau lexique Teilhard de Chardin. Paris: Seuil, 1968. p. 60.

Tendance du rel construire, dans les conditions favorables, des difices de plus en plus riches en interliaisons et de mieux en mieux centrs, aboutissant aux organismes vivants et au phnomne de la socialisation.

36

Weltanschauung, o primeiro sentido desse termo equivale a um ponto de convergncia natural

da humanidade e do cosmo31. A sua construo cosmolgica geomtrica. Ele utilizou a

imagem de um cone que coloca em evidncia sua viso finalista de um universo convergente.

Nesta cosmoviso, que tem como coordenadas fundamentais as dimenses de espao e tempo,

o cosmo entrou num regime de cosmognese. Passamos de uma viso esttica do universo,

para outra, de um universo aberto, evolutivo e complexo.

Alguns autores sublinham que Teilhard no abordou as discusses dos modernos

dados da astrofsica; ele no tinha conscincia das implicaes da fsica quntica, como ns a

conhecemos hoje. No entanto, ele teve algumas intuies acerca de fenmenos fsicos, que

hoje apoiam concepes cientficas. De acordo com o fsico e filsofo das cincias, o francs

Dominique Lambert, a energtica teilhardiana sublinha, no nvel das cincias, de um lado, a

emergncia de uma fsica de infinita complexidade, ao lado da que se liga ao infinitamente

pequeno e ao infinitamente grande. De outro lado, a exigncia de uma pesquisa que estabelece

uma irreversibilidade intrnseca da natureza.

Lambert explica o insight do paleontlogo jesuta. Em seu pensamento, cada etapa

de convergncia rumo ao Ponto mega marcada por um crescimento do ser32. A unio, no

esqueamos, no transforma, no somente adiciona: ela produz. Cada nova unio realizada

aumenta a quantidade absoluta do ser existente no universo33.

Esta produo no perturba o jogo dos determinismos fsico-qumicos, pois

Teilhard conjuga a causa final e a causa eficiente graas a uma energtica interessante. Esta

distingue e rene, em toda realidade csmica, a energia tangencial e a energia radial. A

primeira considera as estruturas naturais sem recorrer finalidade, seguindo os mtodos

usuais da fsico-qumica. A segunda suscita e intensifica, ao longo do tempo, as interaes

entre os elementos do cosmo, a fim de fazer emergir as totalidades, caracterizadas por uma

crescente complexidade-conscincia, unificando-se em convergncia ao mega34.

O fsico e telogo francs Thierry Magnin situa a questo da convergncia ao

Ponto mega, intudo por Teilhard. Com certeza, diz-nos Magnin, nenhuma prova cientfica

fornecida sobre o Ponto mega de Teilhard. Entretanto, h a possibilidade de situar seu cone

31 Cf. CUNOT, Omga, p. 138-139. 32 Cf. DEMARET; LAMBERT, Le Principe, p. 235. 33 TEILHARD, crits du Temps de la Guerre, v. 12, p. 201. Grifo do autor. LUnion, ne loublions pas, ne

transforme, nadditionne pas seulement: elle produit. Chaque union nouvelle ralise augmente la quantit absolue dtre existant dans lUnivers.

34 Cf. DEMARET; LAMBERT, Le Principe, p. 235-236.

37

de convergncia em um cone de divergncia global35. Isto representa a noo que as cincias

atualmente utilizam, e que aborda a ordem e a desordem de toda a evoluo. A complexidade

fruto desta relao ordem-desordem. O cone de divergncia representa o crescimento da

entropia, da degradao da energia que globalmente impiedosa. A ordem na desordem,

aspecto da neguentropia, representada pelo cone de convergncia. Teilhard representou sua

viso de mundo por um cone de convergncia rumo ao Ponto mega, que, para ele,

corresponde abertura vitria final da vida. Evidentemente, entre a divergncia global e a

convergncia local, o jesuta privilegiou a segunda36.

O qumico alemo Lothar Schfer diz que Teilhard teve intuies com um

possvel fundamento na realidade quntica37. Assegura, por exemplo, que atualmente

possvel conceber que as partculas elementares tenham propriedades semelhantes s da

mente, porque podem reagir ao fluxo de informaes como uma mente. Os objetos qunticos

no tm inteligncia, mas, sob certas condies, reagem de modo automtico e mecnico a

mudanas nas informaes que temos sobre eles. O que conhecemos que pode reagir dessa

maneira uma mente consciente. Teilhard, em vrios escritos, expressou a ideia de que um

elemento de conscincia atuante em todos os nveis da realidade, desde a matria bruta at o

fenmeno humano de conhecimento reflexivo.

Este cenrio de magnitude, que nos inspira sentimentos de reverncia,

perplexidade e desconfiana quanto aos discursos totalizantes sobre a natureza, encontra-se

unido a outro cenrio: o da biologia evolutiva38.

35 Cf. MAGNIN, Du Big Bang, p. 20. 36 Cf. MAGNIN, Du Big Bang, p. 20. 37 Cf. SCHFER, Lothar. Somos parte de um processo csmico que est em andamento. Revista IHU On-line

do Instituto Humanitas Unisinos. Publica entrevistas de assuntos tratados nas notcias do dia. Disponvel em: . Acesso em: 23 mar. 2013.

38 A biologia evolutiva o estudo da histria da vida e dos processos que levam sua diversidade. Baseada nos princpios da adaptao, no acaso e na histria, ela procura explicar todas as caractersticas dos organismos, ocupando por isso uma posio central dentro das cincias biolgicas. FUTUYMA, Evoluo, p. 3-5. As informaes que se seguem acerca da teoria da evoluo foram extradas do material oferecido em sala, no curso de Evoluo I, que a doutoranda fez na UFMG (no segundo semestre de 2011), oferecidos pelo professor Gustavo Kuhn, do Departamento de Biologia Geral da mesma universidade.

38

1.2 NATUREZA PROCESSUAL, CONTINGNCIA HISTRICA: A TEORIA DA EVOLUO

A emergncia da cincia moderna, no sculo XVII, recusou a histria natural de

Aristteles (384-322 a.C.). At essa poca, tal viso, enriquecida por outros pensadores,

postulava a existncia de uma causa final na natureza. A descoberta de novos pases e de

novas espcies vegetais contriburam para as primeiras intuies da evoluo. A Ilustrao, no

sculo XVIII, com sua nfase no progresso e no poder da razo, foi cenrio para o

pensamento evolutivo. A concepo fixista das espcies vivas e do mundo, que perdurou at o

final desse sculo, foi colocada em causa pela cosmologia, pela geologia, pela paleontologia e

pela biologia.

O naturalista francs Georges-Louis Leclerc, conhecido por seu ttulo Comte de

Buffon (1707-1788), em sua obra Histoire Naturelle (1749), e o av de Darwin, Erasmus

Darwin (1731-1802), em Zoonomie (1794-1796), cogitaram ideias evolutivas.

A hiptese evolutiva pr-darwiniana mais significativa foi proposta por Jean-

Baptiste de Monet, chevalier de Lamarck (1744-1828): a teoria da Progresso Orgnica. Os

seus argumentos eram:

1. cada espcie atual se teria originado individualmente por gerao espontnea na base de

cadeia;

2. aps surgirem, as espcies se transformam indefinidamente;

3. as formas de vida progridem invariavelmente em direo a uma maior complexidade e

perfeio;

4. no existem relaes evolutivas entre as espcies.

A Teoria da Progresso (dos animais) baseava-se em dois mecanismos que

explicitavam por que as espcies mudam. O primeiro era que a transformao ocorria sob o

impulso de uma fora interna. O cientista francs concebeu um mecanismo desconhecido que

fazia com que as geraes se desviassem entre si gradualmente, at que, aps muitas geraes,

estas diferenas se acumulariam, dando origem a uma nova espcie. A perspectiva finalista.

Entrementes, Lamarck contribuiu para a cincia ao recusar que a transformao que ocorria se

devia ao fato de algo miraculoso, de intervenes sucessivas do Criador em sua obra.

O segundo mecanismo o da herana de caracteres adquiridos. Lamarck

sustentou que as espcies poderiam se transformar se as modificaes surgidas durante o

decorrer da vida de um indivduo fossem herdadas. O caminho particular da progresso

39

guiado pelo ambiente. Um ambiente em mudana alteraria as necessidades do organismo e

este responderia a essa alterao mudando seu comportamento e, consequentemente, usando

alguns rgos mais do que outros. O uso e desuso alteram a morfologia, que transmitida s

geraes subsequentes39.

O naturalista britnico Charles Darwin (1809-1882) desenvolveu uma teoria para

explicar como a emergncia de novas espcies toma lugar ao longo do tempo. Ele estava

interessado no somente em agrupar evidncias sobre a evoluo, mas tambm em conceber

um mecanismo que pudesse ser responsabilizado por ela40. A partir das observaes e dos

materiais coletados em sua viagem a bordo de uma embarcao da marinha britnica, H. M. S.

Beagle (1831-1836), e da leitura do ensaio de Thomas Malthus (1766-1834) sobre populao,

Darwin desenvolveu a teoria da evoluo por seleo natural41.

As teses de sua teoria so:

1. os organismos mudam com o tempo (constataes feitas a partir de registros fsseis,

distribuio geogrfica das espcies, anatomia e embriologia comparadas, modificao de

organismos domesticados);

2. ancestralidade comum (todas as espcies, atuais ou extintas, descendiam sem interrupo

de uma ou poucas formas originais de vida; os seres vivos no surgiram, como na viso de

Lamarck, por gerao espontnea; a espcie humana uma entre milhares de ramos,

compartilhando ancestrais em comum com outras espcies);

3. gradualismo (as diferenas entre organismos evoluem pelo acmulo de vrias diferenas ao

longo do tempo);

4. populao como centro da evoluo (a evoluo ocorre atravs da mudana da proporo

de indivduos dentro de uma populao que diferem por uma ou mais caractersticas);

39 Cf. RIDLEY, Mark. Evoluo. 3.ed. Porto Alegre: Artmed, 2006. p. 31-32. A teoria de Lamarck errada

porque no tinha extino. Alguns autores afirmam que a sua ideia de diferenciao por meio de herana de caracteres adquiridos, seu grande erro, foi, na poca, um grande passo em direo a um conceito correto de Evoluo. O homem ocupava o mais alto posto da escala dos seres vivos elaborada pelo naturalista francs. Em sua concepo, as alteraes nos seres vivos teriam como objetivo o surgimento do homem, passando, durante o processo, por todas as espcies da escala, em ordem crescente de complexidade. DIAS, Thomaz Lscher. Uma breve histria da Teoria da Evoluo. Disponvel em: . Acesso em: 25 ago. 2011.

40 Cf. RIDLEY, Evoluo, p. 33-34. 41 Malthus, em An essay on the Principle of Population (1798), observou que o crescimento da populao

humana sempre limitado pelo estoque de alimento disponvel. Desse modo, sempre teremos uma luta entre numerosas proles para quantidade de alimento limitado. Nesse contexto, a natureza cruelmente selecionar o forte e eliminar o fraco. Darwin, aps ler Malthus, concluiu que em cada espcie viva a luta pela existncia permitir variaes que favoreero a preservao, enquanto que algumas desfavorveis sero eliminadas. Cf. HAUGHT, John F. Responses to 101 questions on God and evolution. New York: Paulist Press, 2001. p. 5-68; 123-143. p. 7.

40

5. seleo natural (as modificaes nas espcies, ao longo das geraes, provocada pela

seleo natural; devido luta pela vida, as formas mais adaptadas sobrevivncia deixam

uma gerao maior e, automaticamente, aumentam em frequncia de uma gerao para a

outra, enquanto os organismos geram descendentes com pequenas variaes; essas

variaes, devido ao meio, podem ser favorveis ou desfavorveis ao descendente).

Para Lamarck, os seres se organizariam em uma longa srie linear, progressiva,

dos mais simples aos mais complexos: peixes, anfbios, pssaros, mamferos, homem em

evoluo sem ancestralidade comum e sem criao divina. Para Darwin, este esquema do

transformismo no fazia sentido; da a analogia com a rvore. Todas as espcies atuais seriam

as mais evoludas de suas linhagens, compartilhando o mesmo horizonte temporal. Evoluo

com ancestralidade comum.

Convm salientar que Darwin permaneceu na ignorncia da c