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SOTER (Org.)

ANAIS DO CONGRESSO DA SOTER27º Congresso Internacional da Soter

Espiritualidades e Dinâmicas Sociais: Memória - Prospectivas

PUC Minas, 15 a 18 de julho de 2014 Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

Comunicações Grupos Temáticos (GTs) e Fóruns Temáticos (FTs)

Edição Digital / Textos Completos

SOTERISSN: 2317-0506Belo Horizonte

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ANAIS DO CONGRESSO DA SOTERISSN: 2317-0506

27º Congresso Internacional da Soter / 2014Tema: Espiritualidades e Dinâmicas Sociais: Memória - Prospectivas

Local: PUC Minas, 15 a 18 de julho de 2014 Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

SOTER – Sociedade de Teologia e Ciências da Religião

Os textos publicados são de responsabilidade de cada autor.

Projeto Gráfico e Diagramação: Verônica CottaCapa: Tiago ParreirasFoto: Gustavo Basso

Publicação eletrônica: Belo Horizonte, 2014

FICHA CATALOGRÁFICAElaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Congresso Internacional Sociedade de Teologia e Ciências da Religião -

C749a Anais do 27º Congresso Internacional da SOTER: espiritualidades e dinâmicas sociais: memória – prospectivas / Organização SOTER. Belo Horizonte: SOTER,

2014. Anual 2730 p. ISSN: 2317-0506

1. Espiritualidade - Congressos. 2. Cultura - Aspectos sociais. 3. Pluralismo religioso. I. Sociedade de Teologia e Ciências da Religião. II. Título.

CDU: 248

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ORGANIZAÇÃO

Diretoria da SOTER

Prof. Dr. Jaldemir Vitório, FAJE, MG - PresidenteProf. Dr. Érico João Hammes, PUC RS, RS - Vice-PresidenteProf. Dr. Adilson Schultz, PUC Minas, MG - 1º SecretárioProfa. Ma. Selenir Correa Gonçalves Kronbauer, Faculdades EST - 2ª SecretáriaProf. Dr. Edmar de Avelar de Sena, PUC Minas, MG - Tesoureiro

Secretaria da SOTER

Secretária: Lídia Regina Barbosa do CarmoAv. Dom José Gaspar, 500 – Coração EucarísticoPUC Minas, Prédio 4, Sala 119Belo Horizonte – MG | CEP [email protected] | www.soter.org.brFone: (31) 3319 4396

Comissões

Comissão Científica:

Prof. Dr. Afonso Maria Ligório Soares, PUC SP, SP Prof. Dr. José Maria Vigil, EATWOT/ASETT, Panamá Prof. Dr. Luis Carlos Susin, PUC RS, RS ¬ Prof. Dr. Márcio Fabri dos Anjos, ISPES, SP Prof. Dr. Paulo Fernando Carneiro de Andrade, PUC Rio, RJ Prof. Dr. Roberto Zwetsch, EST, RS Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza, UMESP, SP Prof. Dr. Valmor Silva, PUC Goiás, GO

Comissão Organizadora

Presidente: Prof. Dr. Roberlei Panasiewicz, PUC Minas, MGMembros:Prof. Dr. Jaldemir Vitório, FAJE, MGProf. Dr. Edmar de Avelar de Sena, PUC Minas, MGProf. Dr. Paulo Agostinho Nogueira Baptista, PUC Minas, MGProf. Dr. Carlos Frederico Barboza de Souza, PUC Minas, MGProf. Dr. Antônio Geraldo Cantarela, PUC Minas, MGProfa. Dra. Áurea Marin Burochi, ISTA e PUC Minas, MGProf. Me. Edward Neves Monteiro de Barros Guimarães, PUC Minas, MGProf. Me. Carlos Alberto Motta Cunha, FAJE, MG

Parceria PUC Minas, FAJE, INSe CT

Apoio CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de P essoal de Níve l SuperiorFAPEMIG - Fundação de Amparo à P esquisa do Estado de Minas Gerais

Patrocínio Editoras Vozes, Loyola, Paulus, Paulinas, Sinodal, CEBI, Santuário, PUC Minas,Editora O Lutador, Fonte Editorial

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O relato do Éden segundo a hermenêutica de Fílon de Alexandria: o tema do prazer na alegoria filoniana e a tradição filosófica

Cesar Motta Rios1*

Reseumo: O prazer não configura uma questão explicitamente discutida no relato do Éden ou mesmo na Bíblia hebraica como um todo. Contudo, Fílon de Alexandria, exegeta judeu do século I d.C., em seu ideal de aperfeiçoamento moral, encontra no prazer um problema a ser enfrentado com muitos argumentos e exortações. Como além de leitor dos textos da tradição judaica, Fílon tem uma sólida formação helenística, encontrará na tradição filosófica grega uma rica reflexão sobre o prazer, tanto hedonista quanto anti-hedonista. Mas o exegeta não se privará de discutir o assunto a partir da Torah. Por meio da interpretação alegórica, encontrará ali um ponto de partida adequado para suas considerações. Nesta comunicação, a partir de uma leitura do percurso interpretativo realizado por Fílon em trechos pertinentes de De Opificio Mundi e Legum Allegoriae, exponho o modo como essa dinâmica se dá quando o alexandrino lê o relato do Éden. Ao fazê-lo, demonstrarei a complexidade do método alegórico filoniano, bem como aspectos de seu pensamento sobre o prazer.

Palavra-chave: Fílon de Alexandria; hermenêutica; prazer; Éden.

Introdução

O prazer não constitui um problema na Bíblia hebraica. Até mesmo fora do âmbito do cânone sagrado, não é abundante a polêmica contra o prazer em textos judaicos antigos. Não é estranho, então, que tenha demorado até que aparecesse alguma interpretação do relato do Éden que identificasse o prazer (sexual) como elemento desencadeador dos acontecimentos que resultariam na expulsão de Adão e Eva. Na tradição judaica, era normal entender que o casal primitivo mantinha relações sexuais ainda habitando o pomar das delícias (ANDERSON, 1992). Em contraste, no âmbito da cultura helênica, o prazer foi tratado como problema de especial relevância desde o período clássico. Em vários diálogos de Platão, a discussão sobre o prazer faz perceber que se tratava de um debate intenso e significativo. Tanto é assim, que um diálogo inteiro, o Filebo, é dedicado a se pensar

1 * Doutor em Literaturas Clássicas e Medievais (UFMG). Pós-doutorando junto ao Programa de Pós--Graduação em Filosofia da UFMG. O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil.

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o estatuto do prazer como definidor da boa vida. Aristóteles divergirá de Platão, mas também dedicará várias páginas ao tema, especialmente na Ética a Nicômaco e na Ética a Eudemo. Também, como é amplamente sabido, embora frequentemente de modo precário, o prazer representa um elemento importante no pensamento de Epicuro. Ademais, a escola dos cirenaicos se destacará pela defesa do prazer, enquanto os estoicos se oporão a ele de modo ferrenho. É justamente no encontro com o pensamento grego que o prazer passará a se evidenciar como problema também na tradição judaica. Na Carta de Aristeas, encontraremos os tradutores da Torah enviados a Alexandria em conversa com o Ptolomeu fazendo algumas referências ao prazer. Contudo, nessas ocasiões, não citam o texto que haviam sido encargados de traduzir. Suas respostas revelam que são verdadeiros leitores de Aristóteles. De modo mais intenso, em 4 Macabeus, um desconhecido escritor judeu tentará provar que “o raciocínio devoto” (ho eusebès logismós) é o único elemento que tem o poder de superar as paixões. A argumentação é construída a partir de um modo helênico, mas a devoção a Deus e a Lei são introduzidas como elementos fundamentais. Não obstante, o texto da Torah não é trazido de modo substancial para a argumentação, talvez justamente pela falta de referências que possibilitem imediatamente a peleja contra o prazer. Parece que Fílon de Alexandria é o primeiro a reunir características necessárias para a inclusão definitiva da Torah no dilema do prazer, e vice-versa, do dilema do prazer na Torah. Trata-se de um judeu decididamente dedicado à exegese da Torah em sua versão grega, a LXX. Ao mesmo tempo, é alguém interessado no ascetismo e no progresso moral da alma, em sintonia com grande parte do pensamento estoico, embora também influenciado por Platão, possivelmente pela escola peripatética, e em decidida oposição aos defensores do hedonismo. E se a questão do prazer não está explícita no texto canônico, não é preciso deixá-lo fora da reflexão. Basta perceber (ou gerar a percepção de) que está implícita, ou melhor, inserida no subterrâneo do texto, como subsentido (hypónoia), precisando apenas ser procurado por meio do método interpretativo apropriado, a interpretação alegórica (allegoría).

Qualquer pessoa interessada na história da recepção e hermenêutica da Bíblia saberá que Fílon de Alexandria é conhecido pela utilização frequente do método alegórico na interpretação da LXX. Certamente, o alexandrino não inventou esse método de leitura, mas o adaptou a seu objeto de estudo, e o aplicou de modo tão amplo que se poderia dizer que se a alegoria fosse suprimida de sua obra, restaria somente uma pequena parte dela, ainda que também significativa.

O método alegórico viabiliza a identificação do prazer em diversos textos da Torah, nos quais não se lê nenhum termo correspondente ou reflexão pertinente. Essa dinâmica do método pode sugerir que se trata de uma leitura completamente

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desconectada do texto, e sustentada somente por imagens evocadas aleatoriamente. Nas páginas que seguem, me proponho a demonstrar o oposto. Simultaneamente, então, exporei o modo como Fílon trata o tema do prazer a partir de sua leitura do relato do Éden, e farei perceber características fundamentais de seu método de leitura, o qual, também simultaneamente, favorece o desenvolvimento de uma reflexão que interessa ao exegeta e o ajuda a defender o valor do texto canônico, livrando-o do rótulo de mito, mero mito.2

1. Adão, Eva, a serpente e seus respectivos significados profundos

Fílon se refere ao relato do Éden por diversas vezes, em diferentes tratados. Em cada uma dessas vezes, ele é coerente na indicação dos significados alegóricos atribuídos a cada um dos personagens envolvidos. Neste estudo, privilegiarei dois tratados: De Opificio Mundi e Legum Allegoriae, no que diz respeito à leitura dos acontecimentos entre Adão, Eva e a serpente. Embora haja, como se verá, alguma variação no tratamento dos elementos da narrativa, não se verifica uma incompatibilidade entre os tratados, como se o alegorista fosse um leitor absolutamente descompromissado, que a cada ocasião inventa um sentido que lhe convenha para o texto que estuda. Adão é, pois, consistentemente entendido como símbolo da mente (noûs) e Eva da percepção sensorial (aísthesis). Então, o casal primitivo em conjunto representa elementos constitutivos de todos os seres humanos. O texto canônico não é mais (somente) sobre um passado longínquo, mas diz respeito à existência de cada ser humano existente, no tempo do exegeta e seu público, inclusive. Normalmente, o ser humano mobiliza mente e percepção sensorial para apreender o que tem a seu redor. Por isso, se um mente e percepção sensorial não se encontrarem, a apreensão do mundo exterior será impossível.3 Mas os dois não se encontram por si mesmos. Um terceiro elemento de ligação surge como forma de unir essas duas partes. Tal terceiro elemento, que existe por necessidade, é o prazer, simbolizado, na narrativa, pela serpente. Não há propriamente uma redenção da serpente/prazer nessa leitura, até porque a expulsão é apresentada por Fílon como resultado de uma escolha pela maldade em lugar da piedade, e a serpente/prazer tem sua parte nesse acontecimento

2 Em Opif. 157, ao introduzir a leitura desse episódio em que um animal fala e os primeiros humanos são criados, Fílon é categórico: “E tais coisas não são formulações de um mito, as quais agradam à raça dos poetas e sofistas, mas são exemplos de figuras que exortam à alegoria, conforme explicações por meio de subentendidos.” (Minha tradução, assim como as demais da obra de Fílon.)3 Cabe observar que em Fílon há certa ambivalência na apreciação do mundo físico. Em alguns momen-tos, ele acusa a existência material como nefasta, mas em outros tantos elogia a criação de Deus como algo bom. (Cf. ANDERSON, 2011).

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(Opif. 155-156). Ainda assim, a sua localização como algo estritamente necessário para a existência humana contrasta seriamente com as duras repreensões de Fílon em diversos outros trechos de sua obra. Não obstante, um caminho sensato é valorizar o fato de que o alexandrino apresenta o papel do prazer como necessário e não bom. Mas resta uma questão menos óbvia: Por que ler a serpente justamente como o prazer? Ou, noutros termos, por que o prazer faz a ligação entre mente e percepção sensorial? Francesca Calabi sugere de passagem, sem demonstrar seus motivos, que essa opção de Fílon faz lembrar de dois trechos do Banquete de Platão: 191d e 206b-207a. O segundo não me parece especialmente relevante. Já o primeiro é instigante e, se nos convencermos de que o alexandrino o tem em mente, enfrentaremos um problema secundário importante. Quem tem a palavra em Banquete 191d é Aristófanes, que conta um mito sobre a divisão do ser humano em dois e a posterior união apaziguadora das metades por meio do sexo. Esse relato poderia motivar Fílon de alguma forma, uma vez que associar sexo e prazer não é um passo difícil, pois Fílon entende que o prazer oriundo da união entre homem e mulher é o maior de todos, algo que, ele afirma, inclusive, no trecho em estudo (Leg. II 74), de modo que pode ser usado para fazer referência a todo prazer em geral (Spec. I 9). Favorece a aproximação o fato de que tanto o relato de Aristófanes quando o do Gênesis tratam a origem do ser humano. Se tivéssemos testemunho de alguma interpretação desse mito em termos semelhantes aos do alexandrino a respeito do prazer, seria certa a apropriação.4 No entanto, nada nos chegou nesse sentido. Resta-nos supor que Fílon faz uma aproximação do relato do Gênesis a um mito grego em sua forma literal, o que ele se recusa a fazer e a aceitar o mais das vezes.

Parece-me possível também que Fílon apresente o prazer como viabilizador do êxito da apreensão do mundo sensível a partir de uma reflexão teórica própria, ainda que apoiada obviamente em desenvolvimentos anteriores. Nesse sentido, seria plausível pensar em alguma relevância do desenvolvido por Aristóteles no livro X da Ética a Nicômaco (1174b). Como se trata de uma conjectura que dependeria de uma argumentação minimamente prolongada e ainda em desenvolvimento, prefiro apenas registrar a hipótese, já que sua exposição minuciosa, além de não ser possível nesta ocasião, não afetaria o decorrer da presente reflexão. De fato, o fato é que o alexandrino não explicita ou discute o motivo pelo qual o prazer teria esse papel de elemento de ligação. Esse silêncio pode sugerir justamente que ele se apoia em alguma noção compartilhada por seus leitores. Não me parece que esse dado compartilhado se basearia em uma intrincada apropriação

4 Inclusive porque Fílon faz apropriação de significado alegórico encontrado na Odisseia por intérpretes gregos a relato do Gênesis (cf. Congr. 9ss).

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de elementos do mito grego contado por Aristófanes no Banquete.5 Seria pedir muito do leitor. Menos difícil, mas ainda discutível, seria considerar plausível que uma reflexão teórica de origem peripatética a respeito do prazer fosse bem compreendida em Alexandria. Mas resta a possibilidade, também, de que Fílon não estivesse realizando uma incursão teórica sobre o papel do prazer, mas somente aproveitando alguma reflexão desenvolvida no período entre Aristóteles e ele mesmo, com possível participação (indireta, talvez) do pensamento estoico. O estado fragmentar do que nos restou da filosofia helenística, estoica sobretudo, nos permite suspeitar da existência dessa lacuna. Mas se Fílon não explica o motivo desse papel do prazer, ele dá, por outro lado, as razões pelas quais deveríamos entender como plausível a relação entre símbolo e significado profundo, sobretudo no caso da serpente/prazer.

2. Analogia visual entre a serpente e o (amante do) prazer

Em Opif. 157, Fílon afirma que alguém diria ser a serpente o símbolo do prazer seguindo uma conjectura razoável (eikóti stokhasmôi). Esse detalhe na apresentação da leitura como dependente de uma conjectura indica a reconhecida inexatidão do método. Os significados profundos são variáveis e devem ser apresentados e defendidos pelo exegeta, como se seu leitor fosse julgar o acerto da relação alegórica proposta. No presente caso, a defesa da leitura é feita inicialmente pela apresentação paralela entre características da serpente e do amante do prazer. Resumidamente as aproximações são as seguintes: A serpente se arrasta junto ao chão sobre o estômago, e, semelhantemente, o amante do prazer mal pode erguer a cabeça, por andar pesado, como que puxado para baixo; A serpente se alimenta do que está no chão, e o amante do prazer não usufrui do alimento celestial, mas se entrega desmedidamente à comilança e ao vinho, que estimula também o apetite sexual; A serpente tem veneno nos dentes, e os dentes do amante do prazer são mortais na medida em que são servos de um apetite insaciável, cortando e destrinchando mais comida incessantemente. Como se vê, a evidência em favor da leitura é uma analogia entre imagens. Facilita essa demonstração a troca do prazer pela figura do amante do prazer, uma vez que o comportamento do ser humano descrito é mais facilmente traduzido em imagens aproveitáveis para a comparação. Em Leg. II, Fílon não recorre a essa estratégia, mas, estabelecendo a analogia a partir do prazer mesmo, se restringe a dizer que o deslocamento ziguezagueante e tortuoso da serpente se assemelha ao

5 A não ser que houvesse uma interpretação desse mito em termos semelhantes, como sugeria antes.

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prazer, que se enrola por cada uma das partes irracionais da alma, os sentidos (Leg. II 74-75); assim, o andar variado da serpente se aproxima da atuação variada do prazer (Leg. II 76). Outra característica específica da serpente do Gênesis aproveitada por Fílon é o fato de que ela emitia voz humana. A explicação está no fato de que o prazer tem diversos defensores, que discursam em seu favor (Opif. 160). Em seguida, o exegeta apresenta alguns dos argumentos levantados por tais defensores do prazer, começando pela afirmação de que, como todos os seres nascem da conjugação carnal com prazer entre macho e fêmea, ainda recém-nascidos sentem uma afinidade natural com o prazer, detestando seu oposto, a dor (Opif. 161). Especificamente, essa defesa do prazer é identificável como oriunda de Epicuro (RUNIA, 2001, 375). Fílon não tem interesse em explicar o pensamento do filósofo, que é muito mais complexo e menos tosca e radicalmente hedonista do que sua representação pelo próprio Fílon e a maioria dos pensadores cristãos posteriores (cf. RAMELLI, 2014). Essa crítica aparentemente descuidada pode se explicar, a meu ver, por duas razões diferentes e alternativas: 1) É possível que Fílon conhecesse o pensamento de Epicuro de modo mais completo, mas preferisse não dar-lhe a oportunidade de parecer mais razoável por considerar vital desprezar todo seu pensamento em conjunto por causa de sua impiedade, que é acusada nominalmente Post. 2. É possível que, nesse passo, Fílon não estivesse pensando em Epicuro especificamente, quer soubesse ou não que o argumento era dele originalmente, mas que estivesse se voltando contra pessoas que se valiam do argumento epicurista junto de outros.

3. Evidência a partir da oposição ao prazer por recorrência lexical complexa

Em seguida, Fílon recorre a outro texto da Torah como evidência da existência dessa peleja em prol do prazer e necessária oposição a ela. O texto evocado é legislativo e não guarda muita semelhança imagética com a narrativa do Gênesis. O que possibilita a relação entre essas diferentes partes do Livro Sagrado é a recorrência da raiz de óphis no termo ophiomákhes em Lv 11:22, que traduz o termo hebraico khagav, e que seria um tipo de gafanhoto. Esse animal é indicado pela Lei como permitido para consumo. Fílon reconhece nessa autorização um louvor do ophiomákhes (Opif. 163), que lhe seria tributado pelo fato de ele simbolizar o autocontrole (enkráteia), uma vez que se opõe à incontinência, o que lhe é sugerido pelo significado etimológico do nome, composto por óphis (serpente) e mákhe (batalha). Esse movimento hermenêutico é interessante porque faz perceber que o alegorista não se envereda somente pelas imagens sugeridas pela narrativa, mas atenta também aos detalhes textuais. É por

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isso que chega ao ophiomákhes, por atentar para uma recorrência lexical complexa (de uma raiz no interior de um termo, e não de um mero termo) no texto da LXX. Ora, isso revela também que é o texto grego da LXX que possibilita a associação, uma vez que o caminho percorrido seria impossível na leitura do texto hebraico, que é, o mais das vezes, ignorado por nosso exegeta. Do detalhe lexical, contudo, Fílon volta a sugerir algo no âmbito imagético, ao lembrar que o tal animal salta da terra ao ar (Opif. 163), diferente da serpente que está presa ao chão. De modo diferente, mas complementar, em Leg. II 105 a imagem alimentar ou nutricional, obtida da leitura do texto legislativo de Levítico, é aplicada à leitura alegórica da serpente por meio de uma oposição: se o ophiomákhes é permitido como alimento é porque o autocontrole é nutritivo, enquanto seu oposto não alimenta e é prejudicial. O ophiomákhes não é um bom oposto da serpente/prazer somente por seu nome, mas por suas características.

4. Recorrência e ambivalência da imagem / expansão da reflexão

Em Leg. II, antes de mencionar o ophiomákhes e concluir o tratado com uma exortação ao combate contra o prazer, a qual comentarei adiante, Fílon menciona outros trechos da Torah em que aparecem serpentes e os interpreta tendo em vista o tema do prazer. Não obstante, a serpente não será sempre interpretada como o prazer. Ora, essa polissemia me parece possibilitada justamente pela primeira cena evocada pelo intérprete nessa série de alegorizações: o episódio das serpentes que Deus manda para atacarem os hebreus murmuradores no deserto (Nm 21:6). Na própria narrativa, encontram-se dois tipos de serpentes com valores inversos. As serpentes que mordem provocam a morte. A serpente de bronze que Deus manda Moisés erguer traz a cura. Essa oposição é aproveitada da seguinte forma: a serpente que morde representa o prazer, é a própria serpente de Eva, enquanto a outra, a de que Moisés ergue, é a moderação (sophrosýne): “Pois caso a mente mordida pelo prazer, pela serpente de Eva, seja capaz de contemplar espiritualmente a beleza da moderação, a serpente de Moisés, e, por meio dela, o próprio Deus, viverá” (Leg. II 81). Não é, pois, o alegorista que descuidadamente decide variar os significados conforme sua necessidade. Ele é levado pelo próprio texto à constatação da polissemia da serpente.6

A interpretação traz, então, a sophrosýne para o combate contra o prazer, juntamente com a enkráteia, que em Opif. é representada pelo ophiomákhes. Não é

6 Outras imagens muito recorrentes na Torah também serão apontadas como polissêmicas e tal fato semântico será cuidadosa e engenhosamente assinalado pelo exegeta. Por exemplo, o Sol tem significados dife-rentes, mas semelhantes (Somn. I 77ss) e o cacho de uva tem, como a serpente de que agora trato, significados não só diferentes, mas opostos (Somn. II 169).

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coincidente o fato de que na tradição grega sophrosýne e enkráteia são igualmente assinalados como meios para o controle ou supressão das paixões/afecções (páthe) e do prazer. Mas Fílon não deixa de sugerir que sua proposta vai além, ao convidar à contemplação da própria divindade por meio da contemplação da beleza da moderação. Esse passo além é muito relevante, e a ele voltarei adiante. Neste ponto, contudo, para facilitar minimamente a visualização da complexa interpretação filoniana, apresento a série de alegorizações de modo esquemático, para, em seguida, assinalar algo de seu conteúdo e de sua construção:

A) A interpretação é introduzida pela citação direta de Gn 3:1, e se desenrola como

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foi exposto anteriormente.A > B) A transição se dá pelo fato de Fílon mencionar o efeito danoso do prazer, que provoca a morte. O trecho do relato do Éden em foco não deixa isso claro, sobretudo pela apresentação do prazer-serpente como elemento de ligação entre mente e percepção sensorial. Por isso, recorre ao texto seguinte.B) A interpretação, que já foi exposta, é importante por viabilizar a partir de um texto da própria Torah a percepção da ambivalência da serpente.B1) Fílon menciona Sara já lhe atribuindo o significado alegórico de sabedoria governante e cita uma fala dela quando do nascimento de Isaque: “O que ouvir se alegrará comigo”. Logo, narrando já com o sentido alegórico diz que, de fato, alguém que escutasse que a virtude (Sara) gerou a alegria (Isaque) entoaria um hino de gratidão. Essa leitura serve como exemplo de uma relação causal (quem ouve isso naturalmente expressa gratidão) tão lógica quanto a interpretada no caso da serpente de bronze (quem contempla a moderação e a Deus naturalmente não morre). De todas as interpretações dessa série, essa talvez seja a que menos se ajusta imediatamente ao tema. Não obstante, ela se relaciona por oposição, uma vez que trata da virtude e de seu fruto, enquanto o tema principal é o das paixões, ou de uma paixão específica, e de seus efeitos danosos. As virtudes e as paixões são elementos fundamentais do pensamento ético estoico, com o qual Fílon se relaciona de perto.B > C) A ligação entre as duas interpretações é a imagem do deserto. O motivo da complementação é a apresentação de uma alternativa à sophrosýne-serpente de bronze. C)C > D) A imagem recorrente nos episódios interpretados em C e D é o cajado de Moisés. Mas esse objeto não é mencionado diretamente em C, só sendo possível estabelecer a relação se o texto interpretado é conhecido pelo leitor. Parece-me possível, contudo, que esse seja o motivo que leva o exegeta a fazer a transição, embora não o explicite. A conexão conceitual também existe, como percebe pela proximidade de sentido entre os significados alegóricos da água da rocha e do cajado.D) Fílon introduz a explanação observando que o prazer não se afastou nem de Moisés, o mais amado de Deus (toû theofilestátou Mouséos). O cajado de Moisés é símbolo da formação (paideía), pois com a formação a alma aquieta sua agitação. Quando Moisés lança o cajado, ele se transforma em serpente, porque quando a pessoa se separa da formação (paideía), se torna amante do vício (e por isso o prazer aparece). Moisés foge, pois o virtuoso foge da paixão e do prazer. Mas Deus manda que ele agarre a serpente pela cauda, porque Moisés havia alcançado a perfeição e lhe cabia enfrentar a paixão e o prazer de frente. Diferentemente, os que não chegaram à perfeição devem sim fugir. Moisés agarra a serpente com a mão (símbolo da ação da alma) e ela volta a ser bastão, porque o prazer se transforma em formação

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(paideía) na ação virtuosa do sábio (sophós). Esse gesto de estender a mão para pegar a serpente ainda é interpretado como o movimento da alma que reconhece que suas ações e progressos existem conforme Deus e que nada deve ser creditado a si mesma. Não fica claro o modo como essa ação divina se articula com a formação (paideía). É possível, contudo, supor que Fílon entende que o fato de Deus ser aquele que comanda a ação de Moisés diante com relação à serpente e o cajado é suficiente para se perceber que esse Deus rege sobre tudo isso.D1) Para corroborar a interpretação do cajado como formação (paideía) com uma recorrência da imagem, Fílon recolhe uma frase proferida por Jacó em mensagem a Esaú: “Com meu cajado passei o Jordão”. Não lhe interessa expor o contexto narrativo, mas apenas mencionar que Jacó é a figura do praticante/exercitador (leitura frequente e importante em suas interpretações) e que “Jordão” é interpretado como “descida”. Tratar-se-ia de uma descida ao mundo corruptível, terreno. Fica, pois, corroborada a interpretação do cajado como formação (paideía), uma vez que é significativo que o praticante transite no meio desse mundo com a formação. Além disso, Fílon encerra essa exposição breve sugerindo que o sentido literal seria pobre (tapeinós), obviamente, como forma de respaldar a busca do sentido alegórico.D > [B >] E) Fílon não vai de D imediatamente a E, mas faz uma breve referência a B, pela necessidade de lembrar o leitor do sentido oposto que também pode ser atribuído à imagem da serpente. Já a ligação entre D e E não se explica por uma imagem, mas por uma continuidade no ensino exposto por meio da alegoria, especialmente no que diz respeito ao papel de Deus no enfrentamento do prazer.E) É inviável expor em detalhes a apresentação dessa interpretação de Fílon, pois remete a uma sequência de grande de significados concatenados com figuras relacionadas com Dan. Apresento, pois, somente o cerne da interpretação, que é o que diretamente se relaciona com a questão do prazer. Após retomar a serpente/moderação de Moisés, o exegeta passa à nova intepretação com a seguinte frase: “Em tal serpente (toioûton óphin) Jacó pede que Dan se transforme” (Leg. II 94). Assim, ele assinala que essa ocorrência da imagem carrega o mesmo significado positivo de outra específica. Introduz, então, a fala de Jacó, que diz: “E Dan se torne uma serpente no caminho, de tocaia junto à trilha, mordendo o tornozelo do cavalo, e cairá o cavaleiro para traz, aguardando a salvação do Senhor” (Gn 49:17). O que se diz alegoricamente é que apareça na alma uma serpente, isto é, o discurso da moderação (tòn sophrosýnes lógon), e que ela fique à espreita no caminho muito transitado, isto é, no caminho da paixão e do vício, por onde vão os pensamentos que se afastam da virtude. O cavalo bem representa as paixões por ser quadrúpede (Fílon se refere à divisão estoica das paixões em quatro principais). O discurso da moderação impede que as paixões levem a mente, representada pelo cavaleiro, aonde quiserem. Ele

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estava se dirigindo a um vício, mas o discurso da moderação intervém e o faz voltar para traz, por isso diz que cai para traz. Todo aquele que se livra das paixões colhe o melhor fruto, a apátheia. É na apátheia que os estoicos diziam se localizarem as virtudes (SVF III, p. 48). Para Fílon há algo mais. Pois esse que aí se encontra é ainda salvo por Deus (hypò theoû sóidzetai).E1) Fílon encontra uma imagem de cavalo montado que serve para corroborar a interpretação proposta por meio de um contraste. Trata-se de Ex 15:1, que narra a destruição dos egípcios que perseguiam os hebreus quando da travessia do Mar Morto. O cavalo e aquele que o monta são lançados ao mar. Esse não tem, pois, o mesmo fim do que monta o cavalo mordido pela serpente. Em vez de cair e esperar pela salvação divina, é lançado ao mar, isto é, é anulado junto com o cavalo (as paixões). O contraste é reforçado pelo fato de que Ex 15:1 se refere ao cavaleiro como anabáten, “aquele que monta”, e não, como no caso de Gn 49:17, como hippeús, “cavaleiro”.7 A diferença é que o cavaleiro doma o cavalo, controla as paixões, enquanto o que monta simplesmente é levado aonde vai o cavalo. A diferença lexical conciliada com o diferente fim dos acontecimentos favorece a interpretação alegórica contrastante.E > F) A passagem de E a F se faz por um méntoi adversativo. Como E termina com a impressão de uma possível passividade na espera de uma intervenção divina no combate contra as paixões, é preciso apresentar uma interpretação final que desfaça o possível engano e viabilize a exortação final a um enfrentamento ativo.F) Trata-se da já comentada interpretação do ophiomákhes, animal evocado pela recorrência da raiz de óphis. O objetivo dessa interpretação é viabilizar a exortação final, que motiva o leitor a combater o prazer como em uma batalha.8

Ora, a proliferação de textos evocados e interpretados não se realiza por mero colecionismo ou exibicionismo. Ela serve como meio de especificar melhor o pensamento a respeito do tema desenvolvido na interpretação inicial, e serve também para respaldar essa interpretação inicial pela demonstração da possibilidade de coerência do sentido proposto com uma série de outros textos da Torah. Ao longo de todo o percurso interpretativo, percebe-se a presença de elementos do pensamento

7 Essa diferença inexiste nos textos se lidos em hebraico. Ambos os versículos apresentam rokhvo com o sufixo pronominal obviamente remetendo ao cavalo. Mas para Fílon isso é indiferente, uma vez que ele lê so-mente a LXX.8 Pode parecer curioso que o exegeta inicie o percurso localizando o prazer como inevitavelmente pre-sente na existência humana e o encerre com um convite a luta contra o prazer, depois também de exaltar a possibilidade de uma ausência dele (apátheia). Para desfazer esse aparente paradoxo, teríamos que considerar que há para Fílon uma diferença entre o ideal e o viável na existência terrena, ou admitir que ele se enquadra entre aqueles que, conforme Aristóteles, afirmam que o prazer é absolutamente mau não por convicção de que tal afirmação seja verdadeira, mas por julgarem que é conveniente para a vida de seus leitores (Ética a Nicômaco 1172a25). Essa dimensão didática da escrita de Fílon precisa ser melhor estudada, mas sem dúvida é extrema-mente relevante.

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grego, sobretudo no que se refere à oposição ao prazer, como o autocontrole, a moderação e a formação escolar. No entanto, com a mesma frequência se encontram referências à atuação de Deus como superior. Por isso encontramos menção à sabedoria divina, à salvação e ao mérito de Deus na vitória sobre o prazer e outras paixões. Enquanto o sábio estoico como compreendido por Sêneca, contemporâneo de Fílon, é privilegiado por não temer nem a deus nem a seres humanos (Epístola XVII, 6), o sábio na concepção filoniana, embora igualmente vitorioso contra as paixões, tem como característica fundamental a dependência de Deus.

5. Aplicação do sentido alegórico ao plano diegético

Parte da interpretação alegórica consiste na aplicação ao plano narrativo do significado alegórico proposto e defendido pelo intérprete. Não são somente os personagens ou objetos da narrativa que estão em jogo, mas também suas ações e inter-relações. Se um significado alegórico não se acomodar à ação narrada, lida em seu sentido mais profundo, isto é, dependente dos significados alegóricos dos diferentes participantes no enredo, não será possível entendê-lo como plausível.

Antes de introduzir um exemplo que explicita bem esse movimento, lembro aos significados alegóricos atribuídos a Adão, Eva e serpente: mente, percepção sensorial e prazer, respectivamente. Pois bem, Fílon encontra um aparente problema no seguinte diálogo entre Deus e Eva quando a transgressão havia sido revelada:

E disse-lhe [Deus]: Quem te anunciou que estás nu? Não é que comeste da árvore, desta única árvore de que te ordenei não comer?E disse Adão: A mulher, que deste junto de mim, ela me deu da árvore e eu comi.E disse o Senhor Deus à mulher: O que é isso que fizeste?E disse a mulher: A serpente me enganou e eu comi. (Gn 2:11-13)9

Inicialmente, o exegeta observa um desencontro entre a pergunta de Deus e a resposta de Eva. Ele pergunta sobre o fato de ela ter dado o fruto a Adão. Ela responde sobre como veio ela mesma a comer do fruto. Segundo Fílon, esse problema da narrativa no nível literal se resolve quando se passa ao significado alegórico da narrativa: Uma vez que tudo que a percepção sensorial se lança sobre algo do mundo sensível, ou “come” no plano literal, é imediatamente recebido pela mente que a acompanha. Se a mulher, isto é, a percepção sensorial, responde que o comeu, então, é porque isso significa também já que o deu ao homem, à mente (Leg. III 51ss). O alexandrino ainda aproveita a diferença dos verbos utilizados pelo homem-mente e pela mulher-percepção sensorial. Ele diz que a mulher lhe deu o fruto, porque a percepção sensorial é direta em comunicar à mente tudo que tem diante de si tal

9 Minha tradução a partir da LXX, texto como o utilizado por Fílon.

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como é. O prazer, por sua vez, é enganoso, e faz confundir e aceitar algo ruim como se fosse bom (Leg. III 54).

6. Deus e o combate contra o prazer

Essa exposição parece-me suficiente para ilustrar como o pensamento de Fílon a respeito do prazer está relacionado diretamente com o pensamento grego. Uma ampliação do recorte aqui estabelecido tornaria ainda mais evidente tal fato (cf. BOULLUEC, 1998). Não obstante, ao mesmo tempo, Fílon expõe sua reflexão de modo completamente judaico, como um exegeta incansável, que se rodeia de numerosos textos da Torah como se isso fosse imprescindível para que seu discurso ganhasse consistência. Assim fazendo, ele estabelece que o lugar da Torah, enquanto texto e filosofia perfeita, é oposto ao do discurso da serpente, isto é, do pensamento dos defensores do prazer. A Torah, sob os olhos de Fílon, se afasta de um certo “Epicuro”, ou dos cirenaicos e outros, enquanto se aproxima dos estoicos. Restaria pensar por que ele faz justamente essa opção, uma vez que no texto mesmo da LXX não há referências ao prazer que o requeira. Pode-se pensar que o alexandrino se alinha com os estoicos nesse ponto, embora também reproduza também a respeito desse tema ideias identificáveis com diálogos platônicos, com o objetivo de se inserir no diálogo de modo amigável com uma escola filosófica respeitável, o que lhe conferiria certo status. Não obstante, é preciso lembrar que Fílon é em primeiro lugar um exegeta (BORGEN, 2005), mais que um filósofo, e que ele se utiliza da filosofia como uma linguagem da razão capaz de comunicar sua exegese, por meio do que se dá uma mutação qualitativa, que gera noções que não são completamente equivalentes às do pensamento grego, nem às das Escrituras (NIKPROWETZKY, 1974, p. 326). Se tamanha relevância tem tal aspecto da escrita de Fílon, parece-me sensato buscar em seu ofício de exegeta e na lida com o texto sagrado sua motivação para estabelecer a necessidade de oposição ao prazer. Nesse sentido, não me vejo em condição de defender cabalmente minha hipótese, mas não deixo de apresentá-la ao menos como modo de instigar o leitor e de definir um rumo para a reflexão a partir deste texto: É possível que Fílon identifique no discurso dos hedonistas radicais, que definem o prazer como o bem absoluto e sua busca como finalidade da vida, como opositor da piedade judaica na medida em que pode fomentar a inobservância da Lei. Afinal, se o fim (télos) da vida é o gozo do prazer, se a boa vida é uma vida cheia de prazer, não seria sábio dedicar-se a uma lei que restringe em muitos aspectos a experiência do prazer. Fílon não nega que a Lei imponha impedimento ao prazer. Pelo contrário, ele o afirma. Entendo que se essa é a disposição de Fílon em seu embate contra o excesso do prazer, ele pode estar simplesmente seguindo uma lida já empreendida

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pelo autor de 4 Macabeus e, de modo diferente e em outro ambiente discursivo, pelo autor do Salmo 1. Ao menos, isso me sugere a leitura dos dois primeiros versos conforme o Texto Massorético, uma vez que o texto da tradução grega antiga opta por traduzir khephets não por hedoné, mas por thélema.

Conclusão

Mesmo que a motivação de Fílon ou do autor de 4 Macabeus não seja a mesma e exatamente a preservação da observância da Torah, é notável que uma semelhança permanece entre os dois: ambos se apropriam de um tipo de discurso ou de noções da filosofia helênica, mas tratam de inserir o Deus de Israel em uma posição de absoluta importância no enfrentamento contra o prazer e outras paixões. Parece-me que são os primeiros textos com formulações desse tipo. A meu ver, uma diferença importante entre os dois reside na insistência de Fílon em refletir e tecer sua exposição como um exegeta incansável, que não se satisfaz em comunicar o que pensa se não encontra um texto da Torah no qual possa se apoiar. O presente estudo demonstrou a intrincada forma como Fílon defende sua leitura, que encontra o prazer rastejando no Jardim do Éden, por meio de uma série de outras alegorizações de diferentes textos da Torah. Ficou clara sua negação de que a Torah se iguale a mitos e também sua crença na unidade do texto. Além disso, a sagacidade e capacidade de observação e exposição de detalhes do exegeta alexandrino puderam ser contempladas em diferentes passos. Essa veneração e valorização do texto sagrado, refletida em uma dedicação radical, contribui para minha hipótese improvada de que até mesmo a opção do enfrentamento contra os discursos pró-hedonistas seja oriunda de uma defesa da observância desse mesmo texto. Inclusive porque, para Fílon, mesmo o alegorista deve cumprir literalmente toda a Lei (Mig. 89-90).

Referências

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BORGEN, Peder. Philo of Alexandria: an exegete for his time. Supplements to Novum Testamentum, v. 86. (Originally published: Leiden: Brill, 1997) Atlanta: Society of

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