01 livro digital soter 2009 vol 1 de 3

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SOTER (org.)

Anais do 22 Congresso Anual da Sociedade de Teologia e Cincias da Religio Soter

Conferncias Grupos Temticos

Volume 1

Edio digital ebook Paulinas 2009ISBN: 978-85-356-2571-4

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NDICE GERALVOLUME 1

Apresentao ConfernciasRepensar as religies na atual crise da razo: a contribuio do feminismo. Ivone Gebara

Quando a natureza nos salva Eva Aparecida Rezende de Moraes

A cano do universo Melodia do absurdo ou da graa Luiz Carlos Susin

Seo de Grupos Temticos (GTs)Filosofia da Religio Coord.: Flvio Senra PUC-Minas Religio e Educao Coord. Afonso Soares PUC-SP; Srgio Junqueira PUC-PR e Remi Klein EST-RS

VOLUME 23. A Bblia e suas leituras: orante, literria, popular e cientfica Coord.: Valmor da Silva PUC-GO 4. Teologia, Universidade e Sociedade Coord.: Joo Decio Passos PUC/SP e Edivaldo Bortoleto - UNIMEP 5. Literatura, Arte e Religio Coord.: Grupo TAL (Waldecy Tenrio PUC-SP; Maria C. Bingemer e Eliane Yunes -PUC-Rio 6. Gnero e Religio Coord.: Anete Roese-PUC MINAS e Maria Ins Milln - CES/ITASA Juiz de Fora 7. Teologias Reformadas Coord.: Ronaldo Cavalcante Mackenzie

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8. Religies de ascendncia africana e indgena Coord.: Adailton Maciel Augusto - ITESP 9. Cristianismo: histria e contemporaneidade Coord.: Jaldemir Vitrio FAJE 10. Novos Movimentos Religiosos Coord.: Pedro A. Ribeiro de Oliveira PUC Minas 11. Religio, Cincia e Tecnologia Coord.: rico Hammes - PUC/RS 12. Cincia, religio e pluralismo (Sl. 306) Coord.: Gilbraz Arago Unicap 13. Religio, Economia e Poltica (Sl. 308) Coord.: Marcio Tangerino PUCCamp 14. Desafios da Mstica para a Teologia Contempornea (Sl.304) Coord.: Ceci Baptista Mariani PUCCamp 15. Interculturalidade e Religio (Sl. 501) Coord.: Selenir Kronbauer EST e Roberto Zwetsch Cetela

Seo de Anexos

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Apresentao

Mais uma vez, como vem fazendo h 25 anos, a Sociedade de Teologia e Cincias da Religio SOTER reuniu-se para seu Congresso anual, desta feita ocorrido de 6 a 9 de Julho de 2009, nas dependncias da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais (PUC-Minas), em Belo Horizonte. Ao longo desses anos, SOTER tem permanecido fiel ao compromisso de contribuir com a pesquisa cientfica, ao ensejar encontros de especialistas e facilitar a publicao dos resultados mais relevantes para as reas de Teologia e Cincias da Religio. A gesto atual (2007-2010) persiste na misso de incentivar e apoiar o ensino e a pesquisa no campo da Teologia e das Cincias da Religio; promover servios e assessoria de telogos, telogas e cientistas da religio a comunidades e organismos eclesiais, a obras e instituies de interesse pblico, na perspectiva da opo pelos pobres e da incluso social. Embora no seja fcil, devido a inmeros escolhos, entre os quais o da sustentao financeira de nossas atividades, imprescindvel facilitar a comunicao, o debate e a cooperao entre os membros da SOTER e as instituies afins; defender a liberdade de pesquisa e o pluralismo e promover a solidariedade entre nossas associadas e associados. Na atual conjuntura de regulamentao e afirmao de novas reas de conhecimento no pas, nossa Sociedade est ciente da importncia de propiciar encontros e estreitamento de laos entre telogos e cientistas da religio; estes, embora com olhares distintos, prestam um servio mutuamente complementar que, bem calibrado, desembocar no bem comum de nossas comunidades. A presente publicao o mais recente fruto desse trabalho a muitas mos de cientistas sociais e intelectuais teologicamente gabaritados. A obra, que vem luz em meio digital, graas parceria j duradoura com a Editora Paulinas, complementa o livro impresso, lanado em Junho de 2009, e que recolhia as principais contribuies tericas que tornaram possvel o 22 Congresso Anual da Sociedade de Teologia e Cincias da Religio (SOTER). Neste volume so dados ao pblico os textos de 3

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conferncias do Congresso, que tinham ficado prontos em tempo para o livro impresso, as ementas de todas as comunicaes cientficas de fato apresentadas no evento, com a ntegra dos principais textos selecionados pelas coordenaes dos respectivos Grupos Temticos organizados para o Congresso. O tema escolhido para 2009 foi Religio, Cincia e Tecnologia, sem dvida atual e instigante. Escolhemos conferencistas cuja competncia reconhecida nacional e internacionalmente e a qualidade de suas reflexes poder demonstr-lo a seguir. Com a publicao do livro digital, investimos na documentao e divulgao de nossas atividades, entendendo ser esta uma ocasio a mais para retomar as reflexes desenvolvidas ao longo do evento e, a partir da, iluminar a pesquisa e a ao de nossos telogos e cientistas da religio em um tema do qual no podemos nos desviar nem calar. O tema do Congresso de 2009 grave e urgente e foi abordado de maneira ecolgica e plural, acolhendo contribuies do mbito das religies, da poltica, das cincias da vida e da sade, numa discusso atenta complexidade que o assunto comporta. Esperamos que as Universidades e demais Programas de Ps-graduao que participaram dos Grupos Temticos do Congresso continuem incentivando pesquisas que gravitem em torno dessa temtica geral, cumprindo assim o papel social que se espera de todo Centro de Saber. Da parte da SOTER, continuaremos a envidar todos os esforos a fim de que se fortalea o esprito de pesquisa entre ns, contribuindo tambm com a divulgao de nossas produes.

AFONSO MARIA LIGORIO SOARES PRESIDENTE DA SOTER

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CONFERNCIAS

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Repensar as religies na atual crise da razo: a contribuio do feminismo. Ivone Gebara

O texto do Professor Dr. Hilton Japiassu apresenta-se como uma reflexo filosfica sobre o estado atual da cincia e da religio e, como ele mesmo escreve, uma contribuio para repensar a religio na atual crise da razo. Sua perspectiva de inter-relao entre os diferentes saberes deita razes em muitas filosofias ocidentais que reconhecem a ancestralidade do fenmeno religioso em relao quilo que hoje chamamos cincia. O ttulo enunciado em seu texto aparece, entretanto, no singular, ou seja, fala de repensar a religio. Este singular universal vai demonstrando que a escolha reflexiva do termo religio apresentada pelo Professor Jupiassu incide mais especialmente sobre o cristianismo e em particular o cristianismo catlico romano a partir de uma perspectiva precisa. No se trata, portanto, da totalidade do fenmeno religioso. uma escolha justificvel, mas que necessita ser explicitada como escolha para evitar possveis equvocos devidos s armadilhas que o cristianismo ao longo de sua histria imps ao conceito de universal visto que, identificou suas verdades com as verdades universais. Em termos simples isto significa afirmar que o cristianismo se apresentou historicamente como representante mximo do que se convencionou chamar de valores universais. claro que esta considerao tem a ver com a realidade geopoltica a partir da qual o cristianismo tornou-se parte dos imprios do mundo. Aqui no se inclui o humanismo budista, islmico, as religies ancestrais, as tradies africanas assim como de outras tantas sabedorias igualmente presentes na histria da humanidade. A ruptura entre razo e cincia que nos apresenta refere-se razo ocidental e cincia ocidental com suas conhecidas interferncias e imposies em outros horizontes culturais. Por diversas vezes senti em seu texto uma espcie de regret ou de tristeza pela perda mesmo parcial de crenas e valores do passado e isto acompanhado por sua indiscutvel abertura e viso crtica em relao aos dogmatismos de nosso tempo. De fato, h perdas de valores em nosso tempo, mas creio, h tambm mais do que isso. H outras novidades positivas na linha do combate pela vivncia dos valores que sustentam as relaes humanas que no aparecem no texto. H outras fontes, outras iniciativas, outras idias que no parecem exploradas embora bastante divulgadas.

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Seu texto poderia ser identificado teoricamente como de corte europeu-francs como se pode observar pelas citaes e referncias. Embora crtico do racionalismo transformado em razo instrumental na ps-modernidade em favor de uma tecno-cincia promotora do consumismo, do lucro de poucos e do individualismo, o texto parece distanciar-se de alguns grandes movimentos sociais da atualidade. Omitindo-os ao menos no presente texto, o Professor Japiassu, no parece preocupar-se primeira vista com as razes contemporneas do distanciamento de alguns grupos de ativistas e pensadores do referencial hierrquico metafsico religioso presente no cristianismo tradicional e atual. Alude aos casos de Coprnico, Jordano Bruno, Galileu, Pascal reafirmando a tese antropocntrica da modernidade a partir da qual Deus j no o fundamento de toda a verdade e da necessidade de instaurar uma justa relao entre os seres humanos. Mostra que o cristianismo foi agredido pela cincia, pelo Estado ou por outras organizaes que fizeram com que acontecesse o divrcio entre os relatos bblicos, os dogmas da religio e as buscas do pensamento. Entretanto, o cristianismo nas suas diferentes manifestaes histricas atuais, sobretudo institucionais aparece apenas de forma discreta como agressor de liberdades, como inquisidor e dogmtico ou como limitado nas respostas que vem dando a diferentes desafios do atual momento histrico. O cristianismo no mostrado em seus limites histricos e tericos e em sua forma negativa de exerccio de poder institucional sobre corpos e conscincias. H aluses, algumas crticas, porm pouca anlise neste particular. Por exemplo, os conflitos do Vaticano com a teologia da libertao e outras teologias no parece ocupar um espao significativo em sua reflexo. Entre os movimentos sociais e de pensamento que afrontaram a tradio crist patriarcal no ltimo sculo quero referir-me de maneira particular ao feminismo. Sua crtica metafsica tradicional no se situou a partir de uma considerao de uma Transcendncia como horizonte tico fundador das relaes humanas, mas da transcendncia vivida historicamente a partir de situaes culturais e sociais precisas. A transcendncia histrica vivida sob a gide masculina e explicitada em termos historicamente masculinos constituiu-se muitas vezes em dogma religioso e poltico e impediu o acesso de muitas e de muitos liberdade nas suas mltiplas expresses. A crtica transcendncia expressa numa metafsica religiosa de poder e controle social masculino tornou-se um dos pilares sociais e culturais que foi preciso combater em vista da manuteno da prpria dignidade humana. Alm disso, a substituio de Deus pela Razo igualmente significou a afirmao da Razo masculina visto que no palco da8

histria pblica que cremos, pensamos, atuamos como seres sexuados. Aqui tambm o controle sobre o feminino persiste a ponto de afirmar de diferentes maneiras a res cogitans como eminentemente masculina, uma res cogitans chamada a dominar a res extensa, a matria considerada como simbolicamente feminina. E, igualmente, a chamada nova cincia contempornea na sua emergncia a partir das pesquisas em torno do Big Bang e da restaurao de uma espiritualidade menos dogmtica no trabalhou as relaes entre os diferentes papis sociais de gnero assim como a dimenso simblica sexuada de nossas crenas religiosas. Nesse particular, lembro que algumas telogas ecofeministas entre as quais a norte-americana Rosemary Radford Ruether apresentaram interessantes snteses nas quais os textos bblicos e grandes nomes da tradio so resgatados luz de uma nova cosmologia. O Professor Japiassu, refiro-me a seu texto, no parece considerar o movimento feminista na sua complexa pluralidade como um dos movimentos de maior significado do sculo XX e isto at no dizer tambm de vrios pensadores franceses como Edgar Morin, Pierre Bourdieu, Alain Tourraine, Jean Delumeau. Ignorar o feminismo, segundo eles, de certa forma ignorar uma das mais significativas revolues culturais de nosso tempo. O feminismo no se constituiu apenas em um movimento social de reivindicao das mulheres por seus direitos bsicos. Foi e esta sendo um movimento de pensamento que pretende criticar as estruturas filosficas e teolgicas tradicionais baseadas numa hierarquia masculina e num pensamento filosfico de tipo idealista, assim como propor outras formas de reflexo. A religio no ficou fora da hierarquia metafsica masculina. No s atribuiu a soberania a uma divindade espiritual historicamente glorificada como masculina, mas identificou a RAZO a razo masculina. Tal identificao pode ser verificada ainda hoje, por exemplo, na observao da diviso social do trabalho e nas atribuies masculinas e femininas na linha do exerccio do poder pblico e particularmente do poder pblico religioso. O movimento de des-construo da metafsica masculina a partir da religio comea na atualidade por volta de 1895 com a norte-americana Elisabeth Cady Stanton que denunciou o uso da Bblia para impedir as mulheres de votar. Nasceu da a clebre Bblia das mulheres, instrumento terico importante para a luta das sufragistas norteamericanas e cujo centenrio (1995) foi motivo de re-atualizao das diferentes hermenuticas bblicas feministas contemporneas.

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O movimento de des-construo da razo religiosa masculina retomou fora na segunda metade do sculo XX especialmente com a ascenso do feminismo crtico francs e anglo-norte-americano. Nomes como o de Luce Irigaray, Julia Kristeva, Iris Murdoch, Sheila Ben-Habib, Jydith Buttler, Elisabeth Roudinesco, Marcela Althauss-Reid e muitas outras introduziram uma nova maneira de viver e pensar a religio. Cada uma delas, a partir das questes relativas diferena e/ou igualdade, abordaram, no apenas a questo das relaes culturais e sociais entre mulheres e homens, mas as relaes com as crenas religiosas. Entretanto, nos lugares onde a Razo masculina, mesmo a Razo humanista masculina predominam estes nomes no foram citados e seus trabalhos quase completamente ignorados. No Brasil um processo semelhante se deu em diferentes ambientes universitrios e movimentos de mulheres. Em muitos lugares como a Pontifcia Universidade de So Paulo, a Faculdade de Teologia Metodista, a Faculdade Luterana de So Leopoldo e outras nos diferentes estados do Brasil introduziram em seus cursos de Cincias da Religio a perspectiva feminista. Esta introduo no foi e no est sendo fcil, sobretudo porque os responsveis das diferentes igrejas resistem introduo de uma perspectiva mais inclusiva. Mulheres doutoras em diferentes reas do conhecimento, debruam-se sobre o fenmeno religioso para tentar rel-lo a partir de novos referencias filosficos, teolgicos, psicolgicos, sociais e polticos. Da mesma forma nos diferentes movimentos sociais e organizaes no governamentais liderados por mulheres, uma leitura feminista leiga do cristianismo comeou a se impor desde o final do sculo passado. Em termos sintticos o que se quer mostrar que estamos vivendo um outro momento de expresso e compreenso da humanidade tambm a partir da tradio crist. J no se podem aceitar os modelos pr-estabelecidos de homem e mulher com os seus tradicionais papis sociais e correspondentes simblicos, reconhecidos hoje tambm como criadores de injustia e violncia. J no se pode mais aceitar que as crenas religiosas estejam a salvo das estruturas culturais de dominao social. A metafsica hierrquica de dominao masculina assim como a homogeneidade masculina da religio quebrada. O mesmo processo se d na teologia como cincia de compreenso e explicitao das crenas religiosas. De consumidoras das crenas religiosas as mulheres passam a repensar os contedos aprendidos em suas igrejas e perceber criticamente as formas de manuteno da opresso social presentes nas mesmas. O corpo feminino o lugar especial da investida religiosa metafsica masculina. Nas profundezas do inconsciente patriarcal ainda subsiste a idia de que o10

corpo feminino para ser doado, para servir aos outros, ser dominado e at abusado como se fosse objeto da natureza. um corpo que se contrape iminncia do masculino representante mximo da Razo e do divino. Por essa razo as mulheres pensadoras destes dois ltimos sculos incluindo as telogas tm refletido sobre o diversificado uso simblico do corpo feminino na religio. Afinal, sabemos bem que no imaginrio e na teologia crist o corpo masculino o corpo ressuscitado e o corpo capaz de salvar. Mas, sabemos igualmente que h uma apropriao indevida do masculino em relao ao feminino, uma espcie de cime originrio, um medo das origens femininas dos seres humanos. Muitos ensaios nessa linha foram escritos e tm sido proibidos nos ambientes universitrios considerados como uma afronta f e tradio crist. E mais uma vez quem parece determinar os limites pblicos da f e a ortodoxia o masculino. O nmero de obras publicadas em teologia feminista enorme apesar de sua pouca divulgao no Brasil. Diante deste quadro no sabemos qual ser o futuro do feminismo teolgico. O que clara a sua rejeio pelas instituies religiosas e a partir da a busca de argumentos na tradio para impedir o direito de cidadania das mulheres nos lugares onde a dominao masculina continua presente. Neste particular tambm h iniciativas marginais interessantes por parte de alguns grupos de mulheres para fazer frente a esse poder consagrado pela cultura tradicional. Outra problemtica que o Professor Japiassu abordou em seu texto e que eu gostaria de dar relevo, a vivncia religiosa crist das grandes massas populares. Quero brevemente retomar esta idia e enfatizar a vivncia religiosa plural em nosso meio como algo necessrio, mas ao mesmo tempo preocupante. A religio tem sido usada como fora nos movimentos libertrios e igualmente como fora nos movimentos neoliberais de ascenso do individualismo. H uma volta da religio em forma de milagre e em forma de controle contra as possesses demonacas. Algumas anlises sociais e polticas contemporneas do lugar interveno das foras malignas representadas pelo mal. A proliferao desta percepo no existe apenas nos Estados Unidos e especialmente na era Bush, mas em diferentes outros contextos. No Brasil tal perspectiva tem assumido um lugar de grande importncia, sobretudo no crescimento das igrejas de corte pentecostal ou nas igrejas independentes altamente mediatizadas pela rdio e pela televiso. Estas desenvolvem a idia de que toda a dificuldade econmica ou doena provm do maligno, de certa forma exterior histria. contra este maligno que os pastores investem para libertar os fiis. Afirmam nossa dependncia e exposio a estas foras e a necessidade da mediao de alguns escolhidos para sanar11

erros, desvios e doenas. uma forma de guerra santa dentro dos limites dos templos mostrada em tempo real pelas televises. E, bom notar que a grande maioria das agraciadas de mulheres, consideradas presa fcil dos muitos demnios. Com isto estou querendo lembrar que as religies no esto acima ou abaixo dos processos sociais, mas absolutamente conectados com o que vivemos e buscamos. Nessa linha igualmente no h mais uma nica ordem qual todas as pessoas obedecem mesmo se todos falam da necessidade de respeitar o bem comum e se muitos falam do Evangelho de Jesus. O que mesmo o bem comum nesta situao to diversa? Quem o estabelece? Quem lhe d fundamento e autoridade? Que Evangelho e como anunciado? Para evitar o caos social das diferentes concepes de bem comum parece que um sempre renovado contrato ou pacto social est sendo exigido entre todos os grupos inclusive entre as diferentes igrejas. A experincia de que no h uma ordem e um sentido previamente dado que deveria ser seguido por todos impe novas formas de convivncia social. Isto no significa que tudo se equivale ou que devemos nos submeter aos jogos do mercado, inclusive do mercado religioso, buscando eficincia e lucro para suas elites. E mais, isto no significa ceder aos mltiplos imediatismos quer das curas milagrosas ou das solues individualistas embora seja este o espetculo que a mdia tem nos apresentado. nessa linha que desejo reafirmar que h muitos movimentos de resistncia que a mdia no permite que apaream. E mais uma vez, um novo dilogo se impe entre os diferentes grupos para se chegar a uma melhor convivncia humana e com o planeta. A tradio humanista tem seu lugar assim como a herana humanista presente nos diferentes povos e contextos. Nessa linha o cristianismo na sua pluralidade de expresses uma das manifestaes do humanismo e tem potencial para ajudar a sociedade na busca do bem comum. Entretanto, esse potencial ou essa capacidade no viro apenas das novas teorias teolgicas, mas de uma prtica de vida comunitria onde cada membro deve ser provocado a repensar o bem comum colocando-se no lugar do outro. Dizer comunidade dizer pequena comunidade onde h riscos de controle e desafios de crescimento. apostar de novo sobre a sociabilidade humana apesar de nossas decepes e da fuga no consumismo ou no isolacionismo poltico. Algum tem que provocar algum para algo simples como a partilha do po e do vinho, como uma conversa franca na qual possamos falar de nossas histrias e de nossas buscas. Algum tem que ser capaz de abraar uma pequena causa e convidar companheiras e12

companheiros para entrar nesse caminho. Algum tem que ser capaz de quebrar o ciclo da violncia que cresce em ns. Temos que ser chamamento ou chamado uns para os outros. Temos que nos reaproximar de vizinhos, colegas de trabalho, amigos e engatar um novo dilogo. No estaramos assim, em nosso tempo e em nosso espao relembrando e continuando o chamado das discpulas e discpulos de Jesus para uma misso comum? Recomear, recomear de novo a partir do ordinrio da vida. Recomear a refazer a colcha que nos cobre e protege do frio da vida, do frio da falta de sentido e do individualismo; costurar em conjunto os pedacinhos de pano sem a pretenso de tornar a colcha uma colcha global, mas apenas a colcha que pode nos abrigar hoje e dar vontade a nossos filhos e netos de tambm costurar a sua. No esta a dinmica do Evangelho: a pequena semente, a diviso dos poucos pes, a partilha das duas tnicas, a alegria com a dracma encontrada? Recomear a acreditar que apesar da produo de violncia somos tambm capazes de criar aes de misericrdia. E a semente crescendo poder se tornar rvore frondosa, poder nutrir nossa esperana e no mais a nsia de sucesso e consumo que a sociedade atual nos impe. algo pequeno talvez diante da grandeza dos problemas atuais, mas creio que este pequeno absolutamente necessrio para nos dar foras para enfrentar os problemas globais que nos desafiam tambm nas diferentes religies.

Obrigada Professor Hilton por suas anlises provocativas e sua valiosa contribuio ao longo de anos de rduo trabalho.

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Quando a natureza nos salva1

Eva Aparecida Rezende de Moraes

Tempo difcil esse em que estamos, onde mais fcil quebrar um tomo do que um preconceito. Albert Einstein

Qual o papel da natureza na relao do ser humano consigo mesmo? A teologia pode oferecer uma palavra acerca da inteligibilidade da natureza? Qual o papel das cincias da natureza e das religies na atual crise tica ambiental? Ns salvamos a natureza? E a natureza: pode nos salvar? So questes propositivas, diante da atual redescoberta ontolgica da criao e dos desafios postos pelo antropocentrismo moderno, ao instrumentalizar ou desontologizar a natureza. Diante das questes ambientais da atualidade, necessria uma releitura da teologia da criao, em dilogo com as novas descobertas cientficas.

1. As tradies religiosas, as cincias e suas relaes com a CriaoEstou convencido de que o mundo no um mero pntano onde homens e mulheres se jogam... e morrem. Algo magnificente est ocorrendo aqui, em meio s crueldades e tragdias, e o desafio supremo inteligncia fazer prevalecer o que h de mais nobre e melhor em nossa curiosa herana. C. A. Beard

A natureza est na pauta atual e grande parte da discusso se d por causa do aquecimento global por que passa atualmente nosso planeta. A atual crise ambiental tem levantado a questo da salvao da Terra: nossas aes em prol do ambiente so convocadas, pelas cincias, pela mdia, pelas religies, pelas Organizaes No Governamentais, entre outras. Devemos nos perguntar, primeiramente, se realmente salvamos ou no o planeta quando recolhemos seletivamente o lixo ou o reciclamos; quando evitamos o consumo de madeiras extradas de florestas ou plantamos e replantamos rvores, quando reaproveitamos ou reciclamos materiais ou cuidamos dos aterros sanitrios; quando repensamos o espao urbano, combatemos as minas

Lato-sensu em Matemtica pela Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras Profa. Nair Fortes Abu-Merhy (MG) e doutora em Teologia pela Puc-Rio. E-mail: [email protected]

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carbonferas ou discutimos a preservao da Amaznia, entre outras aes. Outra pergunta que emerge se nossas aes salvficas para com a natureza nos salvam a ns mesmos; para tal, devemos nos perguntar o que mesmo salvao, e qual sua correlao com a criao do Criador. No tocante questo do atual aquecimento global, existem vrias leituras. Sabemos das diversas causas naturais que o provocam; esse foco no , a nosso ver, o prioritrio, mas a degradao sofrida pelo ambiente devido ao humana as causas antropognicas. Existem diferentes discursos e olhares sobre a natureza, como os do mercado, das cincias e das religies. Muitas aes propostas de combate ao atual aquecimento global (como as negociaes das reservas de carbono proporcionadas pelo Tratado de Kyoto) possuem a economia como chave para a discusso. O discurso da economia interessante para o ambiente quando se realmente visa o refreamento das conseqncias do aquecimento global que, alis, recaem sobre todos (como a chuva sobre justos e injustos Mt 5,45b). Entretanto, observamos que os pases do G8 ou do G20 se reuniram, recentemente, no para combater as causas do aquecimento global ou salvar os pobres (maiores vtimas do capital e do aquecimento), mas para combater a crise econmica mundial (como as economias so, hoje, globalizadas, a crise de um pas [Estados Unidos] torna-se a crise de todos, num efeito domin). O neoliberalismo busca satisfazer nossos desejos naturais de consumo; entretanto, no desejamos somente objetos-mercadorias, mas tambm smbolos relacionados com o lugar social e que dem sentido para a existncia . Falamos, portanto, de valores (inclusive morais) que, no somente fizeram surgir as civilizaes, como, tambm, o prprio mercado, segundo F. Hayek . A cultura, os mitos e, inclusive, as religies colaboraram nesse processo, funcionando como verdades simblicas; algumas, teolgicas, conhecemos bem, como as noes de providncia divina, teologia da prosperidade ou sacrifcio. A ao econmica humana para a simples subsistncia ou em funo do mercado sempre altera o ambiente; geralmente, o planeta consegue se recuperar, mas quando grande o impacto, no h tempo hbil para tal. As marcas da destruio da natureza em funo da sobrevivncia humana e, principalmente, do dinheiro, datam de2 3 2

Cf. MO SUNG, Jung. Nova forma de legitimao da economia. In: LIMA, Degislando N; TRUDEL, Jacques (orgs.). Teologia em dilogo. I Simpsio TeolgicoInternacional da UNICAP. So Paulo, Paulinas. 2002. P. 31. 3 Cf. HAYEK, F. La fatal arrogncia: los errores del socialismo. Madri, Unin Editorial. 1990. P. 33. Apud ibidem, p. 34-37.

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muito tempo e no precisamos de muitas fundamentaes sobre esse assunto. Encontramos, inclusive, na Bblia : (...) O Senhor abre um processo contra os cidados do pas, pois no h mais fidelidade, nem amor, nem conhecimento de Deus nesta terra. Juram falso, mentem, matam, roubam, cometem adultrio, cometem assassinatos um atrs do outro. Por isso que o pas est todo abatido e seus cidados esto murchos. Os animais silvestres, as aves do cu e at os peixes do mar esto desaparecendo... (Os 4,1-6). O profeta adverte que a corrupo humana est destruindo a ordem da criao. indiscutvel, portanto, que existem marcas humanas na degradao do planeta que revelam a necessidade salvfica de uma tica do cuidado . Alm do mercado, a crise ambiental da atualidade remete aos campos cientfico e religioso, pelo fato de a natureza ser objeto de reflexo de ambos. Metodologicamente, cincia e teologia no se aproximam : as cincias perguntam como o Universo, buscando uma explicao para a matria . No mbito cientfico, costumamos dizer que o sculo XX foi paradigmtico, quando a cincia sofreu uma crise em seus valores, o que a levou a confrontar sua prpria tica. Um dos maiores sintomas foi a ruptura com o determinismo e a certeza cientficos ; assim, no ltimo sculo, as cincias mudaram a linguagem e a interpretao dos dados observados. O paradigma cientfico anterior, que vigeu durante sculos, trouxe8 7 6 5 4

conseqncias srias para nossa vida e para nossas relaes com a natureza; a mais danosa, a nosso ver, a viso mecanicista, que trouxe uma conseqente viso cultural: a da vida em sociedade como pura competio, a crena no progresso material e tecnolgico como ilimitado e a instrumentalizao da natureza. Essa cultura tem sido questionada pelos novos paradigmas cientficos: portanto, a mudana de paradigma na cincia implica uma mudana metodolgica e cultural. A revoluo paradigmtica deu-

Cf. OROFINO, Francisco. Sangue derramado se ajunta a sangue derramado. A crise que levou o povo a repensar tudo. In: TEPEDINO, Ana Maria; ROCHA, Alessandro. A teia do conhecimento. So Paulo, Paulinas. 2009. P. 289-296. 5 Cf. REIMER, Haroldo. Sustentabilidade e cuidado. Contribuies de textos bblicos para uma espiritualidade ecolgica. In: ibidem. P. 273-287. BOFF, Leonardo. Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres. So Paulo, tica. 1995. 6 Cf. GOULD, Stephen Jay. In: ZIMMER, Carl. O Livro de Ouro da Evoluo. O triunfo de uma idia. Editora Ediouro. 2004. P. 9. 7 Cf. SUSIN, Luiz Carlos. A criao de Deus. Coleo Teologia Sistemtica. Volume 5. Valencia, Espanha. So Paulo, Brasil. Siquem Ediciones Catequticas y Litrgicas / Edies Paulinas. 2003. P. 23s. 8 Cf. Idem. Teologia da Criao: uma proposta de programa para uma reflexo sistemtica atual. In: Ivo Mller (org.). Perspectivas para uma nova Teologia da Criao. Vozes, 2003. P. 23.

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se, inicialmente, no campo da fsica e agora, sobretudo, na rea da biologia, que , em nossos dias, a linguagem preferida, por sua viso unificada entre mente, matria e vida . At um passado, de certa forma, recente, o mtodo experimental era compreendido como nico e fundamental, mas foi questionado diante de comportamentos da matria no totalmente explicveis experimentalmente (como os do mundo atmico e subatmico), e a partir da descoberta de que o cientista interfere no fenmeno observado; alm disso, a cincia, hoje, compreende que necessita, tambm, da sensibilidade, da intuio e da imaginao, quando cria frmulas, teses, hipteses . Essa nova forma cientfica de observar a natureza (articulando mtodo experimental e intuio) aproxima mais cincias exatas e humanas e enriquece nosso olhar sobre a Criao. Alguns cientistas compreendem, hoje, que na totalidade e na complementaridade entre razo e espiritualidade que podemos obter uma viso mais realista da natureza e da essncia da matria . Entendemos essa nova era como o reencontro da cincia consigo mesma: Tales de Mileto possua uma viso profundamente orgnica da natureza, percebida por ele como entidade dinmica; Parmnides acreditava que o essencial no pode se transformar, o que simplesmente (para o fsico Marcelo Gleiser, existe, aqui, um germe da idia de uma entidade eterna, transcendente) ; Aristteles ligava matria e forma;... Apesar dessa viso integrada da natureza, foi o pensamento platnico-dualista que influenciou os padres do perodo da Patrstica e dos sculos sucessivos: a teologia sistematizou atravs do mtodo analtico e discursivo, abrindo um amplo campo especulao racional iluminada pela f . Certamente, a teologia possui, como a cincia, a sua racionalidade e, neste sentido, teologia e cincias se encontram. Enquanto logos,9 14 13 12 11 10 9

Cf. CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. So Paulo, Cultrix. 2002. P. 19-40. Apud BOFF, Lina: MORAES, Eva A. R. A concepo de vida em Gregrio de Nissa: Ensaio de aproximaes com as cincias da Vida (parte II). In: Atualidade Teolgica. Ano XII. Fasc. 29, p. 151. Revista do Departamento de Teologia da PUC-Rio. 2008. P. 137-168. 10 Cf. BOFF, Lina; MORAES, Eva A. R. A concepo de vida em Gregrio de Nissa: ensaio de aproximaes com as cincias da vida (parte I). In: Atualidade Teolgica. Revista do Departamento de Teologia da Puc-Rio. Ano XI, fasc. 27, p. 317-341. 2007. P. 331. 11 Atualmente, existem trs fatores que contribuem para o processo cientfico: a deduo (entende o mundo de dentro para fora); a induo (procura criar de fora para dentro as regras que organizam esses dados de forma lgica); e, o terceiro, a intuio, que advm da insuficincia dos dois (este ltimo muito usado pelos cientistas tericos). Cf. GLEISER, Marcelo. Retalhos Csmicos. So Paulo, Companhia das Letras. 2001. P. 42-47. FEYNMANN, R. P. Fsica em seis lies. Editora Ediouro. P. 36-37. Apud ibidem, p. 331-332. 12 Cf. GLEISER, Marcelo, ob. cit., p. 13. Apud ibidem, p. 333. 13 Cf. Sapientia Fidei, Introduo. BAC, Madrid. 1996. P. XIX-XX. Apud BOFF, Lina; MORAES, Eva, ob. cit., p. 321. 14 Cf. SUSIN, Luiz Carlos. A Criao de Deus, ob. cit. P. 30.

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a razo teolgica precisa das outras linguagens (como a cientfica) para melhor compreender o dado da Revelao de Deus; mas no de uma linguagem qualquer: o pensamento semita que transparece na Bblia (unio corpo-alma, carne-esprito, psopro,...) to unificador quanto o pensamento aristotlico (matria-forma); a nova linguagem sistmica da biologia possui vizinhana com o conceito teolgico de comunho; a grandiosidade do infinitamente pequeno revelado pela quntica nos recorda o mtodo paradoxal da Revelao de Deus que, sendo todo poder, escolhe o despojamento quentico; a revelao da matria, que surge do equilibro delicadssimo de partculas opostas, nos faz pensar no Mistrio cristo da essncia trinitria de Deus, que unidade a partir da diferena de trs Pessoas,... . Apesar do pensamento e da linguagem integrados da Bblia, a tradio crist ocidental se permitiu uma omisso de reflexo sobre a natureza; ou, quando a fez, apresentou uma incompatvel com os avanos cientficos acontecidos na modernidade e ps-modernidade . Assistimos, hoje, secularizao da natureza, que fruto da instrumentalizao cientfico-tecnolgica, mas tambm dessa omisso teolgica. A natureza, reduzida apenas a seu aspecto fsico, foi destituda de espiritualidade, e, em conseqncia, a relao do ser humano para com ela transformou-se naquela de um sujeito com um objeto, e, a racionalidade moderna, em uma do tipo instrumental. Nos ltimos tempos, com o advento das novas cincias e diante da indiscutvel funo de mythos a que se prestam os textos sagrados a respeito da criao, a teologia necessita dar uma palavra condizente com as atuais e reais necessidades impostas pela realidade. Diante das descobertas recentes acerca da matria, devemos nos perguntar: por que Deus cria essa matria (dotada de energia, evoluo, dinamismo, interdependncia, autonomia,...)?, qual a relao entre criao e salvao? A mudana de mtodo nas cincias e a redescoberta da criao pela teologia crist implicam numa nova viso da realidade da vida: a nfase no todo, que chamada de pensamento sistmico (a palavra sistema deriva do grego synhistanai = colocar junto), holstico ou ecolgico. Os pioneiros do pensamento sistmico foram os bilogos na dcada de 20; posteriormente, esse pensamento foi enriquecido pela ecologia e pela fsica quntica. Um dos primeiros bilogos a fazer essa mudana foi Ross Harrison, que15 16 15

uma linguagem aproximativa, pois no podemos aplicar, diretamente, a linguagem da natureza das coisas linguagem da natureza de Deus. Cf. MORAES, Eva A. R. Interlocutores e proposies: interfaces entre Teologia e cincias modernas. In: TEPEDINO, Ana Maria; ROCHA, Alessandro (orgs.). A teia do conhecimento. F, cincia e transdisciplinaridade. So Paulo, Paulinas. 2009. P. 99-132. 16 Cf. SUSIN, Luiz Carlos, Teologia da criao: uma..., ob. cit., p. 17.

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substituiu a velha noo de funo (= viso mecanicista) por organizao, que possui dois aspectos importantes: a configurao e a relao entre as diversas partes que compem os organismos vivos . O bilogo Joseph Woodger enfatiza que uma propriedade que se destaca em toda a vida existente sua tendncia para formar estruturas multiniveladas (de sistemas dentro de sistemas maiores: um sistema integrado). Partindo desse fato, o bioqumico Lawrence Henderson correlaciona organismos vivos e sistemas sociais: ambos devem formar, equilibradamente, relaes em um todo integrado. Essa forma sistmica de ver a realidade pode nos ajudar a respeitar a natureza nela mesma e no apenas por causa do atual aquecimento global; pode nos ajudar, igualmente, a humanizar a forma que desenvolvemos ao lidar com a matria; como pode, tambm, nos inspirar uma leitura teolgica da criao que nos aproxime mais da criao mesma, tanto quanto nos aproximamos, em reflexes teolgicas anteriores, do Criador. Portanto, a partir do que as novas cincias tem nos informado, o antropocentrismo moderno ainda presente na sociedade ocidental nos soa17

incompreensvel. Assim, a questo atual do meio-ambiente no apenas cientfica ou teolgica: tambm uma questo tica. Talvez devssemos nos perguntar por que esses novos paradigmas das cincias e os milenares contedos das tradies religiosas que respeitam a natureza por si mesma no atingem as pessoas no seu cotidiano e na sua conscincia. Por outro lado, essa crise ambiental pode, tambm, reaproximar significativamente f e cincia e promover o dilogo entre ambas: cognio e religiosidade parecem ser um trao humano universal, visto que os termos culto e cultura possuem a mesma raiz etimolgica . Aproximar as linguagens, mesmo sem uma base reflexiva, j um vlido exerccio metodolgico, que pode ser usado para vencer as distncias histricas entre cincias e religies e salvar a natureza de ns mesmos, dos males que nela provocamos. A aproximao entre ambos os discursos acolhida por diversos autores, que propem uma dialtica entre mythos e logos, como mtodo para a construo de uma nova cultura.18

2. A Criao e seu Criador.

Cf. CAPRA, Fritjof, ob. cit., p. 40. A palavra latina colnia (= assentamento), que deriva do verbo colere (= lavrar, cultivar, habitar, honrar). Cf. KELLY, Terence J.; REGAN, Hilary D. Deus, vida, inteligncia e o Universo. So Paulo, Loyola. 2007. P. 30; 27-66.18

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A me do Universo a me de todas as histrias . A natureza tem perfeies que mostram que a imagem de Deus, e defeitos que mostram que [ela] apenas a imagem. Blaise Pascal

Existem diversos olhares sobre a natureza, mas nem sempre a partir dela mesma, de sua essncia. A tradio crist nos informa que, na criao, Deus se revela. Ento, a proposta perceber, na essncia da natureza, as marcas da Revelao de Deus, valorizando o mtodo da imanncia . Em geral, o que as novas cincias nos informam com relao matria que, tanto no micro quanto no macrocosmo, percebemos os mesmos sinais: uma unidade essencial . A matria da natureza nos aproxima mais do panentesmo: tudo envolto pelo tero materno de Deus (um conceito que deveramos retomar, rever e incorporar novas significaes). Nos ltimos quinhentos anos, aconteceram interessantes descobertas no campo das cincias, alterando nossa compreenso da natureza da matria e da estrutura do universo23 22 21 20

e possibilitando uma aproximao epistemolgica com a teologia, num

possvel dilogo interdisciplinar. Outras descobertas descortinam, por sua vez, um desafio teologia por exemplo, a descoberta do paradoxo presente na matria: tudo o que existe feito de tomos e cerca de 90% so compostos de vazio atmico; apenas 10% do espao do Universo so ocupados por matria viva: o restante feito de matria escura;... Mas como o vazio pode estar na base de tudo o que existe? e que lgica matemtica estranha, onde a menor porcentagem responsvel pela vida?NATALE, A. A.; VIEIRA, C. L. O Universo sem mistrio. So Paulo. 2003. P. 11. Alguns poderiam identificar esse mtodo com o Argumento do Desgnio ou Argumento Teleolgico, que percebe uma intencionalidade na existncia do mundo natural, onde tudo se adequa funo que executa, portando, em si, a evidncia de ter sido projetado para um fim por um Criador. O Argumento do Desgnio foi enfraquecido pela Teoria da Evoluo de Charles Darwin (1809-1882) (adaptaes ao meio ambiente puderam ocorrer sem a necessidade de introduzir a noo de Deus) e pelo Problema do Mal (o mal natural no o mal moral, provocado pelo ser humano questiona a idia crist da criao por parte de um Deus benevolente). Cf. WARBURTON, Nigel. O Bsico da Filosofia. Jos Olympio Editora. Rio de Janeiro, 2008. P. 28-33. O objetivo do texto acima refletir sobre a criao, por Deus, do mecanismo de evoluo presente na criao. 21 Cf. LIMA VAZ, H. Cl. De. Universo cientfico e viso crist de Teilhard de Chardin. Vozes, Petrpolis. 1967. Apud LIBNIO, Joo Batista. Teologia e interdisciplinaridade: problemas epistemolgicos, questes metodolgicas no dilogo com as cincias. In: SUSIN, Luiz Carlos (org.). Mysterium Creationis. Um olhar interdisciplinar sobre o Universo. SOTER/Paulinas. 1999. P. 18-19. 22 Cf. ibidem, p. 9. Panentesmo (pan-em-tesmo): doutrina segundo a qual o universo est contido em Deus, mas Deus maior que o universo; diferente do pantesmo (pan-tesmo), que diz que Deus e o universo coincidem perfeitamente ou seja, so o mesmo. No panentesmo, todas as coisas esto na divindade, so abarcadas por ela, identificam-se, mas a divindade , alm disso, algum alm de todas as coisas, transcendente a elas, sem necessariamente perder sua unidade. Esta crena panentesta pode ser identificada de forma bastante vlida com a interpretao cabalstica da criao, especificamente a idia de Tzimtzum. Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Panente%C3%ADsmo. 23 Cf. CAPRA, Fritjof., O Ponto de Mutao. A cincia, a sociedade e a cultura emergente. So Paulo, Editora Cultrix. 2003. P. 67.20 19

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No basta apenas relegar ao Mistrio de Deus o paradoxo encontrado na matria ou afirmar que a realidade material assim mesmo, no cabendo explicaes. Necessitamos, hoje, de uma teologia que no receie dar uma palavra acerca da intencionalidade do Criador ao criar assim a matria. Outra questo que ainda desafia a teologia a questo do mal: sobre o pecado, o mal moral, a teologia desenvolveu seu pensamento, mas no ainda propriamente sobre outros males que atingem a matria: por que existe a morte?, a morte , necessariamente, um mal?, por que a gravidade, que responsvel pela nossa vida, tambm responsvel pela nossa morte?, por que no houve diversidade e criatividade enquanto a matria no morreu?, por que a matria dinmica, processual e, de certa forma autnoma com relao ao ambiente e ao ser humano?, se a matria morre mas a energia no, em que se transforma nossa energia quando morremos? Alm disso, pensar, essencialmente, a criao nos faz pensar, essencialmente, em ns mesmos: quais so, exatamente, nosso lugar e nossa vocao no Universo ? Por que somos feitos do mesmo material de tudo criado e, ao mesmo tempo, to diferentes, dotados de conscincia e responsabilidade (= capacidade de dar resposta)? O fenmeno do Big Bang no campo da cosmognese (j praticamente aceito e comprovado pela comunidade cientfica) nos remete pergunta sobre o que ou quem foi o responsvel pelo incio da exploso . Igualmente o que aconteceu imediatamente aps o mesmo nos leva a pensar: matria e antimatria foram criadas em quantidades praticamente iguais; em um milissegundo no tempo, o universo esfriou-se e quarks e antiquarks se condensaram. O encontro de um quark com um antiquark resultou na destruio completa de ambos (dada a densidade do universo ser muito alta); no entanto, a cada um bilho de pares de quarks e antiquarks, houve um quark a mais e, graas a essa incrvel assimetria (uma probabilidade rarssima), o universo no se dissolveu em radiao pura e tudo passou a existir. Algo semelhante observamos com a formao de elementos mais pesados: se a fora nuclear que une prtons e nutrons tivesse sido minimamente mais fraca, somente o hidrognio teria se formado no universo; se fosse minimamente mais forte, o hidrognio teria se transformado em hlio e a fuso no interior das estrelas (que gerou elementos bsicos da vida) nunca teria existido; alm disso, umas quinze constantes fsicas (como a velocidade da luz e a fora da gravidade)25 24

24 25

Cf. KELLY, Terence J.; REGAN, Hilary D., ob. Cit., p. 27. Cf. COLLINS, Francis S., A linguagem de Deus. So Paulo, Editora Gente. 20072. P. 73-81.

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possuem valores exatamente necessrios para que o universo seja estvel e capaz de sustentar formas de vida complexas uma probabilidade que quase tende ao infinito. Essas informaes nos sugerem, naturalmente, a idia de um ordenamento do caos para que o universo existisse, nos remetendo tese do Princpio Antrpico . Telogos como Leonardo Boff percebem, na dinmica da matria, as marcas do Criador: h propsito e intencionalidade na Criao, apontando para um Agente supremamente inteligente e ordenador . O Princpio Antrpico alvo de muita discusso e at preconceito, seja da parte de cientistas (muitos acreditam que tudo aconteceu por acaso), seja de telogos (porque esse conceito fundamentaria o antropocentrismo). A criao expresso da bondade do Criador que, antes de tudo, amou: a confluncia de fatores conjugados, a nosso ver, no existiu em funo do ser humano, mas em funo da vida, (seria um Princpio Biotrpico ? ). A criao do ser humano parte do plano salvfico do Criador para sua criao: chamado bondade, o ser humano vocacionado a ser partner com Ele. Deus quis criar e, para criar a matria, criou, tambm, as possibilidades para a matria existir por si mesma. Se entendermos esses fatos como coincidncias, fundamentamos a teoria cientfica de que tudo veio pelo acaso e, portanto, deveramos dizer uma palavra teolgica sobre o acaso em Deus. Por outro lado, a aceitao do princpio antrpico no alimenta, por si s, a prepotncia humana diante da criao: houve condies para que a vida existisse e, portanto, para que o ser humano tambm existisse, j que faz parte da criao. A teoria do Big Bang uma explicao para a construo das galxias atuais, mas no para o comeo do Cosmos, visto que essa exploso a fragmentao de algo que j existia: portanto, a teoria da Criao busca a origem do primeiro elemento csmico e vital . Desde tempos remotos, o ser humano tem atribudo um Criador para a criao, como mostram diversos mitos gnicos. Portanto, o conhecimento religioso do universo existiu antes do conhecimento filosfico e cientfico : ele parte da evidncia29 28 27 26

O Princpio Antrpico uma variante do Argumento do Desgnio. Cf. WARBURTON, Nigel, ob. cit., p. 28-33. 27 Cf. BOFF, Leonardo, ob. cit., p. 41; 226. 28 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Gnesis 1-11: E assim tudo comeou... Rio de Janeiro. Mazzarolo Editor. 2003. P. 23. 29 A palavra cincia vem da palavra latina scientia, que significa conhecimento. At o Iluminismo, a palavra cincia significava qualquer conhecimento gravado, sistemtico ou exato. Portanto, possua um significado to amplo quanto a filosofia tinha naquele tempo. Mais recentemente, a cincia mostrou-se restrita ao que costumava ser chamado de cincia natural ou filosofia natural. Assim, podemos conceituar cincia formalmente, como investigao racional da natureza, ou, menos formalmente, abrangendo qualquer campo sistemtico de estudo ou conhecimento obtido desse. Cf.

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contemplativa de tudo . A tradio judaico-crist foi alm dos diversos mitos gnicos, acolhendo a revelao da bondade do Criador: a Criao obra de Algum maior que a quis. Essa compreenso do universo tarefa da teologia, em funo da razoabilidade de acreditar num Criador e no destino da Criao. No relato da criao, no incio do livro do Gnesis, aparece dez vezes a frmula Deus diz e Deus disse fiat, e tudo se fez, e se fez com autonomia e evoluo. A autonomia presente na natureza o lan evolucionrio e a energia dinmica presentes na matria revelam a bondade do Criador, que no cria a matria dependente de Si mesmo. Todo o movimento da criao na volta ao seu znite, seu ponto de origem, a saber, o Criador, deve usar, portanto, o mesmo vis do processo criacionrio: o amor e, no, a dependncia. No isto que observamos, inclusive, nas atuais descobertas das clulas-tronco adultas ? Elas existem em nosso corpo e nos possibilitam a cura dos nossos prprios rgos: nossa cura est dentro de ns e no fora de ns. Nosso movimento ao Criador deve ser o do amor livre e desinteressado, isento das negociaes e dependncias que desenvolvemos, muitas vezes, em nossas prticas pietistas cotidianas. Quanto ao surgimento da vida na Terra, a questo ainda est em aberto. Existem duas idias recentes: a primeira, baseada na presena de compostos orgnicos em asterides, que a vida veio do espao; a segunda, que ela surgiu nas profundezas dos oceanos primitivos, junto a fendas hidrotrmicas. Mas, independente de como a vida se estabeleceu em nosso planeta, a pergunta permanece: em que nvel de complexidade uma molcula se torna viva, sendo capaz de se alimentar e se reproduzir? O fsico Walter Elsasser cunhou o termo imenso para descrever nmeros maiores do que 10110. Ora, o nmero de molculas possveis na Natureza , certamente, imenso : para armazenarmos as informaes contidas numa lista contendo 10110 molculas, precisaramos de um computador cuja memria utilizaria todos os tomos de hidrognio do Universo! E, para examinarmos o contedo da lista, precisaramos de um tempo maior que a idade do Universo (em torno de 15 bilhes de anos). Existem molculashttp://pt.wikipedia.org/wiki/Ci%C3%AAncia. Aqui, foi usada a palavra cincia no primeiro sentido, o emprico. 30 Cf. SUSIN, Luiz Carlos, A Criao de Deus, ob. Cit, p. 25-30s. 31 Clulas-tronco, ou clulas-me, so clulas que possuem maior capacidade de se dividir dando origem a clulas semelhantes progenitora. Existem dois tipos de clulas-tronco: embrionrias (encontrada no embrio humano, tem enorme capacidade de diferenciao; elas devem ser retiradas de embries jovens o que acaba destruindo-os) e adultas (extradas de tecidos maduros de adultos e crianas, como medula ssea, sangue, fgado, etc). 32 Cf. ibidem, p. 16s.32 31

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que nunca foram estudadas, cujas propriedades so imprevisveis (o nmero, por exemplo, de protenas, combinaes genticas, tipos de clula ou de estados mentais so imensos): a Natureza imensamente criativa. Segundo os bilogos, a matria viva extremamente complexa, resultado de reaes qumicas, combinaes moleculares e flutuaes estatsticas muito improvveis ou seja: a vida um processo rarssimo . S chegaremos a uma compreenso mais completa da vida mediante a elaborao de uma biologia de sistemas. A abordagem sistmica enfatiza que todo e qualquer organismo uma totalidade integrada. Outro dado a marca da diferena na essncia da matria: segundo as cincias, no existe nenhuma clula rigidamente igual outra (toda estrutura elementar que compe o ser vivo nica, em sua essncia). Os organismos vivos revelam um elevado grau de flexibilidade e plasticidade internas: eles crescem e, portanto, devem ser vistos como processos. Eles participam do princpio de auto-organizao: sua ordem em estrutura e funo no imposta pelo meio ambiente, mas estabelecida pelo prprio sistema ou seja: o ambiente interfere no desenvolvimento dos organismos vivos, mas at certo ponto. Os dois principais fenmenos dinmicos da auto-organizao so a autorenovao e a autotranscendncia, nos processos de aprendizagem, desenvolvimento e evoluo. Assim, determinismo e liberdade da matria so relativos: na medida em que um sistema autnomo em relao ao seu meio-ambiente, ele livre; mas, na medida em que depender deste atravs da interao contnua, sua atividade ser modelada por influncias ambientais. Portanto, a matria , ao mesmo tempo, autnoma e dependente, afeta o meio e afetada por ele. No somente a vida e o Universo e sua origem so pesquisados pelas cincias: a morte da matria tambm fonte de interesse. Os organismos vivos no vivem para sempre, mas sucumbem por exausto. Segundo as cincias da vida, algo em ns est sempre morrendo e nascendo: as clulas do pncreas morrem e so substitudas por novas em 24 horas; o estmago renova as clulas do revestimento interno em trs dias; os leuccitos morrem e renascem em dez dias; 98% da protena do crebro so refeitas em menos de um ms; planrias, plipos e estrelas-do-mar se regeneram quase inteiramente a partir de um fragmento; lagartos, salamandras, caranguejos, lagostas e muitos insetos so capazes de renovar um rgo ou membro perdido; animais superiores renovam tecidos e curam ferimentos, substitumos todas as nossas clulas (exceto as do33

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Cf. CAPRA, F. O ponto de mutao, ob. cit., p. 259s.

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crebro), num prazo de poucos anos... Para sobreviver, as espcies no substituem partes, mas o organismo todo: mais uma vez, aparece aqui a importncia do todo sobre as partes. O fenmeno de auto-organizao existe tambm em certos sistemas qumicos (como comprovou Ili Prigogin, chamados por ele de estruturas dissipativas): nosso organismo gera coisas vivas a partir da morte de outras estruturas, o que , de certa forma, a morte gerando vida. Essas estruturas qumicas dissipativas se encontram na maioria dos fenmenos da vida, mas no so vivas: so um elo entre a matria animada e a inanimada. Assim, nascimento e morte apresentam-se como a prpria essncia da vida. Todos os seres vivos que nos cercam (com exceo de organismos simples celulares, como amebas e bactrias) renovam-se o tempo todo. Portanto, para as cincias, a morte no o oposto da vida, mas um aspecto essencial dela. Para o nosso crebro, o tempo quntico, sem as nossas divises entre passado, presente e futuro. Fonte de tudo o que sentimos, fazemos ou pensamos, o crebro representa um dos grandes desafios para a cincia moderna; at mesmo a compreenso do funcionamento de um nico neurnio encontra srias dificuldades: aparentemente tem o poder de tomar decises individualmente, resolvendo quando transmitir ou no um determinado impulso. Algumas questes ainda nos so desconhecidas: como definir a mente?, o que conscincia? Para Antonio R. Damsio, a conscincia uma propriedade que emerge do crebro, explicvel cientificamente; no obstante, os cientistas admitem algum aspecto ainda desconhecido da atividade cerebral. Tcnicas modernas de observao do crebro permitem que os pesquisadores observem o crebro em ao e o aspecto mais imediato que revelado a imensa complexidade do funcionamento cerebral, at mesmo em tarefas bastante simples. O crebro humano trabalha articuladamente: pensamos numa pessoa querida e o crebro aciona, instantnea e concomitantemente, vrias reas cerebrais que compem a imagem dessa pessoa e as emoes de saudade. Mas o crebro no sabe que essa pessoa se encontra longe ou no passado: para ele, a mensagem que lhe enviamos est acontecendo o tempo do nosso crebro sempre o tempo presente, um tempo quntico . Essas e outras interessantes descobertas nos desvelam a natureza em si mesma, e nos proporcionam um reencantamento por ela, nos inspirando uma forma de rezar nela;A ligao mais prxima de nosso corpo como nosso passado pelo olfato; como precisa de apenas dois neurnios para contatar o crebro, o olfato relaciona cheiro com as imagens do passado.34 34

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nos ajudam, igualmente, a perceber a razoabilidade da criao: a natureza possui sua razo, sua racionalidade, como tambm propsito, significado, inteligibilidade, desde seus aspectos fsicos. Essa razoabilidade da criao e a intencionalidade do Criador, vistas a partir da essncia da matria, precisam ser ditas pela teologia.35

3. Criao e evoluo : dilogo cincias e f.A natureza criou o tapete sem fim que recobre a superfcie da terra. Dentro da pelagem desse tapete vivem todos os animais, respeitosamente. Nenhum o estraga, nenhum o ri, exceto o homem. Monteiro Lobato

Criao e evoluo so duas palavras, muitas vezes, usadas como antagnicas. No conseguimos fundamentar a separao entre ambas. O dilogo entre teologia e demais cincias poder favorecer uma tica a favor da natureza, da vida e da dignidade humana; mas, para essa construo tica, necessitamos vencer alguns obstculos, levantados por ambas as reas. As cincias modernas da natureza verificaram com suficiente certeza que a matria criada por Deus contm um lan, um movimento, uma dinamicidade, que a evoluo , sendo exemplos a imprevisibilidade do clima, o deslocamento das placas tectnicas e a grafia incorreta de um gene no processo da diviso celular . A evoluo definida como a ligao genealgica entre todos os organismos terrestres, baseada em suadescendncia de um ancestral comum, e a histria de qualquer linhagem como um processo de descendncia com modificaes. A evoluo comprovada hoje, principalmente, pelos37 36

estudos cientficos acerca do surgimento do universo como um todo . Tudo o que tem vida e, portanto, tambm ns evolumos.Uma das maiores relevncias no dilogo cincia e teologia a discusso criao ou evoluo. O autor Freire-Maia apresenta cinco posies fundamentais nessa discusso: criacionismo fixista (Deus criou todos os seres vivos sem mudanas evolutivas); criacionismo semifixista (Deus criou os tipos maiores de organizao, que evoluram); evolucionismo materialista (a matria surgiu por acaso); evolucionismo agnstico (aceita a teoria da evoluo em sua forma integral, mas diz-se incapaz de entender as razes do Absoluto ao criar dessa forma); criacionismo evolucionista (Deus criou a matria com propriedades evolutivas). Cf. FREIRE-MAIA, Newton. Criao e evoluo. Deus, o acaso e a necessidade. Vozes. 1986. P. 18-22. 36 A teoria evolucionista elaborada a partir de trs aspectos principais: a relao ancestral entre os organismos, o aparecimento de novas caractersticas em uma linhagem e o mecanismo que faz com que algumas caractersticas persistam enquanto outras perecem. A maioria dos bilogos evolucionistas acredita que toda a vida na Terra descende de um ancestral comum, habitualmente chamado de LUCA (Last Universal Common Ancestor), devido ao fato de que os organismos vivos apresentam caractersticas bsicas extremamente semelhantes. Cf. COLLINS, Francis S., ob. Cit. FOLEY, Robert. Apenas mais uma espcie nica. Edusp (Editora da Universidade de So Paulo). 1993. Apud BOFF, Lina; MORAES, Eva A. R., ob. Cit., p. 156-157, inclusive nota no. 51. 37 Cf. COLLINS, Francis S., ob. Cit., p. 53. 38 Cf. GLEISER, M., ob. cit. P. 83.35

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Na natureza, nada criado, tudo se transforma: a energia a responsvel por essa dinmica. Essa a Lei de Conservao da Massa, datada de 1789 pelo fsico Antoine Laurent de Lavoisier e expressa o carter dinmico da natureza . Essa evoluo de todo organismo vivo est presente, tambm, em nosso planeta-me, o planeta que acolheu a vida e que tambm um organismo vivo . Todos os seres que ela abriga so interdependentes: a evoluo acontece atravs de uma interao entre adaptao e criao. O processo no linear, seqencial, mas inter-relacional: no h evoluo, mas co-evoluo. Essa evoluo processual, mas no ascendente: at algumas dcadas atrs, pensava-se a evoluo como resultado de mltiplas adaptaes ao ambiente e somente evoluiria o ser mais forte. Ora, na cadeia de seres vivos que habitam nosso planeta, o ser mais perfeito e mais forte seramos ns, seres humanos. Esse pensamento tem sido questionado profundamente pelas cincias da vida . Primeiramente, a idia de evoluo ascendente : a partir das recentes descobertas, ns, seres humanos, no somos superiores aos demais somos os mais complexos, os mais desenvolvidos em nossos sistemas, mas no os mais perfeitos. Para as cincias atuais, evoluo sinnimo de mudana ou transformao. Essa descoberta quebrou o antigo paradigma cultural, que afirmava o ser humano acima da criao e, no, parte dela. Queremos, aqui, enfatizar a segunda parte da assertiva de Lavoisier (tudo se transforma). Ora, se tudo se transforma, a morte da matria entra como componente necessrio desta transformao. Lavoisier entende a natureza, aqui, no como algo pronto, acabado . Essa assertiva de Lavoisier questiona a nossa idia teolgica de criao, geralmente compreendida como algo j pronto. Segundo o pensamento cientfico atual, se Deus criasse acabado, no criaria, visto que a evoluo so etapas necessrias para a criao. A evoluo no criada por Deus de fora para dentro da matria, mas de dentro para fora (no nos lembra o Big Bang?).Cf. COLLINS, Francis S., ob. cit., p. 10s. Cf. CAPRA, Fritjof, O Ponto de Mutao, ob. cit., p. 278. 41 Cf. BOFF, Lina; MORAES, Eva A. R., ob. cit., p. 158-159. 42 No sculo XIX, a palavra "evoluo" era identificada como melhoria; no entanto, a seleo natural no implica em alguma forma de melhoria, rumo a uma perfeio ideal, mas o resultado do acmulo de caractersticas hereditrias que, ao longo do tempo foram relativamente vantajosas aos seus portadores, em seus respectivos ambientes. Assim, um ser evoludo no aquele que melhor ou superior (no sentido moral da palavra), mas aquele que sofreu uma mutao ou, no mnimo, uma transformao em funo da adaptao a um novo ambiente, ou aquele que acumulou em seus gens informaes acerca de melhores caractersticas que se ajustariam a novos ou inspitos ambientes. Ser evoludo, portanto, ser melhor adaptado. Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Evolu%C3%A7%C3%A3o. 43 Cf. BOFF, Lina; MORAES, Eva A. R., ob. cit., p. 160-161.40 39 43 42 41 40 39

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Deus cria a matria com a essncia da evoluo nela. Se tudo o que criado por Deus criado com finalidade, a finalidade da matria no seria evoluir? Falar sobre a evoluo da matria supe falar sobre sua morte, o que tambm estudado pelas cincias atuais: segundo a biognese, s houve variedade e abundncia de vida na Terra quando a matria morreu (princpio que ainda continua acontecendo) . Ou seja: somente quando um organismo vivo evoludo morreu, a natureza pde evoluir, realizar transformaes, numa palavra, criar (no no sentido de gerao, mas no de criatividade). Assim, criar, da parte de Deus, gerar, e criar, da parte da criao, evoluir. Sabemos hoje que o Universo formado por sistemas interativos altamente interconectados ; se ele interligado, no podemos explic-lo com um nico mtodo de uma nica cincia . A cincia, apesar de ser a nica forma confivel para entender a natureza, no consegue responder a questes fundamentais, como o sentido da existncia da natureza; entretanto, as Igrejas nos ajudam nisso : so dois nveis diferentes, mas que se completam, na leitura da realidade. Para Marcelo Gleiser, o apetite pelo saber racional e o senso de mistrio esto presentes em ambas . A natureza nos enche de questes que necessitam de respostas e, portando, as cincias so necessrias; por outro lado, as cincias sabem que seu mtodo experimental no to correto assim: nunca os fsicos efetuaram, com preciso, experincias de espao e tempo abaixo de certa distncia minscula e, portanto, ainda no conhecem todas as leis bsicas . Portanto, alm das leis advindas do mtodo experimental, os fsicos necessitam de imaginao para criar as grandes generalizaes.50 49 48 47 46 45 44

Segundo as cincias da vida, as bactrias hoje presentes so as mesmas que povoaram a Terra h bilhes de anos, ramificadas em inmeros organismos. Essa vida sem morte foi a nica a existir nos primeiros dois teros da histria da evoluo, segundo registram os fsseis encontrados. Somente aps a morte dos organismos vivos evoludos das bactrias, que a vida comeou a se manifestar numa variedade e numa intensidade intensas. O perodo anterior, sem envelhecimento nem morte, foi um perodo de vida, mas uma vida sem variedade, sem nenhuma forma de vida superior. Cf. CAPRA, F. O ponto de mutao, ob. cit., p. 264s. 45 Cf. VIEYRA, Adalberto; SOUZA-BARROS, Fernando. Teorias da origem da vida no sculo XX. In: EL-HANI, Charbel Nio; VIDEIRA, Antonio Augusto Passos (org.). O que vida?, ob. cit. P. 72. 46 Cf. COLLINS, Francis S. ob. cit., p. 14s. 47 Cf. RODRIGUES, Joo Manuel Resina. Entrevista virtual feita por Antonio Marujo, em 04/12/2007. Conhecido como o padre da fsica quntica, licenciado em Engenharia Qumica, investigador do Centro de Fsica da Matria Condensada. Cf. http://www.paroquias.org/noticias.php?n=7088. 48 Cf. GLEISER, M., ob. cit., p. 20s; 46s. 49 Cf. EMMECHE, Claus; EL-HANI, Charbel Nio. Definindo vida. In: EL-HANI, Charbel Nio; VIDEIRA, Antonio Augusto Passos (org.). O que vida?, ob. cit. P. 31. 50 Cf. FEYNMAN, Richard. Fsica em seis lies. Editora Ediouro. 2004. P. 35s.

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A cincia tem reconhecido que a mente humana capaz de duas espcies de conhecimento: o racional e o intuitivo . Segundo Fritjof Capra, a prpria subjetividade do cientista interfere na experincia, pois, como no pode considerar todas as caractersticas existentes, seleciona aquelas que julga serem de maior significao. Se as cincias experimentais no so puramente racionais, ento no devem questionar outros mtodos que no sejam puramente experimentais. Sabe-se tambm que, na natureza, os fenmenos no ocorrem sequencialmente, mas concomitantemente; portanto, nosso sistema abstrato de pensamento conceitual mostra-se incapaz de refletir e revelar a realidade em sua totalidade e plenitude. O dilogo entre cincia e religio global: ambas afetam e so afetadas por pessoas de todos os cantos do planeta . Existe um leque de campos comuns a ambas, como, por exemplo, a natureza da natureza e as questes da conscincia e da tica. muito difcil, atualmente, construir um pensamento teolgico sem levar em conta os aspectos tratados e descobertos pelas cincias e, por outro lado, na busca pela educao cientfica, muitos pases tm revisado seus valores culturais e religiosos. Muitas pessoas religiosas conhecem as cincias e as afirmaes convincentes que faz acerca da natureza e questionam, muitas vezes, as afirmaes teolgicas. Segundo Ted Peters, necessria uma parceria cooperativa entre cincia e religio (consonncia hipottica), onde a religio sujeita seus pressupostos investigao cientfica e, a cincia, sujeita seus pressupostos ao exame religioso. Segundo Clauss Emmeche e Charbel El-Hani, existem, nas cincias, noes bastante amplas como vida, mente, conscincia, matria que necessitam de uma definio , o que no o mesmo que definir termos cientficos especficos: elas so ontodefinies e necessitam de ambos os saberes. Podemos fazer interdisciplinaridade se respeitarmos ambos os campos . A cincia a nica forma confivel para entender a natureza; entretanto, ela no consegue responder a questes fundamentais, como: por que o universo existe?, qual o sentido da existncia humana? Perguntas cientficas no devem ser feitas Bblia ou s Igrejas, que no possuem competncias nessa matria; entretanto, se a questo o que devemos fazer, como devemos viver, nesse caso, perguntamos histria, s culturas, s54 53 52 51

Cf. CAPRA, Fritjof. O Tao da Fsica. So Paulo. Editora Cultrix. 1983. P. 28-33. Cf. PETERS, Ted; BENNET, Gaymon (org), Construindo pontes entre a cincia e a religio. ENESP e Edies Loyola. 2003. P. 30-36. 53 Cf. EMMECHE, Claus; EL-HANI, Charbel Nio, ob. cit., p. 35-36. 54 Cf. COLLINS, Francis S. A Linguagem de Deus, ob. cit., p. 14-16.52

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religies . So duas coisas diferentes que se completam. Sabemos que essas duas questes levaram a conflitos imensos, historicamente. No sculo XIX, com Descartes e as grandes filosofias englobantes, a cincia pensou que possua a verdade absoluta, mas hoje j no pensa assim; a Igreja tambm evoluiu no sculo XX e aprendeu que a maneira de pensar e ensinar a religio varia na histria, que as pessoas mudaram e que as teologias devem comunicar essa verdade usando linguagens, conceitos e estruturas mentais diferentes. Alguns autores criticam a simetria entre os discursos religioso e cientfico; porm, essa aproximao no deve ser vista como danosa, ao contrrio: as cincias e a f crist sofreram um processo histrico de desconfianas mtuas, ataques e perseguies. O panorama atual de salvao planetria tem se oferecido, portanto, como uma oportunidade de aproximao dos discursos, qui de possibilidades mesmas de parcerias interessantes no tocante questo do humano e de sua relao com o ambiente natural. No campo da teologia catlica, um dos pioneiros na busca por uma relao aproximativa entre ambas foi o grande sacerdote cientista Teilhard de Chardin que, ao longo de uma vida dedicada e difcil (foi proibido de lecionar e publicar sobre esse assunto), atingiu um ponto alto da interpretao conciliadora; Chardin aceitou todas as proposies da cincia materialista e as teologizou: segundo o jesuta, existe evoluo, a Bblia deve ser reinterpretada e Deus existe . O criacionista evolucionista no acredita que haja alguma fora imaterial e distinta atuando sobre a matria (fora vital, entelquia, lan vital, vis essencialis, etc) e que tenha o poder de dirigi-la ao longo da evoluo: a posio que aceita a de uma epignese ou seja: acredita que as formas surgidas ao longo da evoluo no estavam pr-formadas na matria viva primeva, mas, antes, surgiram por transformaes sucessivas, que no estavam previstas no incio. Assim, acredita que existam direes ntidas na evoluo, mas, tambm, uma grande liberdade dentro dessas direes. Portanto, podemos dizer, teologicamente, que a evoluo da matria est nos planos salvficos do Criador e parte do chamado vocacional que a criao chamada a viver. Como ns hoje, nossos antepassados povoaram e laboraram o nosso planeta e, portanto, so um conosco; trazemos as marcas de nossos antepassados em nosso planeta e em ns, em nosso cdigo gentico, contribuindo, biologicamente, para nossa evoluo. Do mesmo modo, somos um com as56

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55 56

Cf. RODRIGUES, Joo Manuel Resina, ob. cit. Cf. FREIRE-MAIA, Newton, ob. cit., p. 18-22.

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novas

geraes,

porque

contribumos

com

o

futuro

delas,

gentica

e

ecossistemicamente. Como vemos, a fsica e a teologia se distanciaram historicamente, mas sabemos que nem sempre foi assim . A tentativa de retomar o dilogo tem crescido desde a dcada de 1960, com Ian Barbour e seu realismo crtico, combinando a filosofia da cincia e a filosofia da religio . A leitura unvoca entre cincia e religio foi iniciada por Pitgoras e caracterizou a filosofia desde a Grcia, passando pela Idade Mdia e Idade Moderna, at Kant. Em Plato, Santo Agostinho, Santo Toms de Aquino, Descartes, Spinoza e Leibniz, existe uma fuso entre religio e raciocnio. Entretanto, essa leitura foi interrompida, principalmente, a partir dos sculos XVI a XVIII. Cincia e religio seguiram caminhos opostos, mas, no sculo XX, tiveram condies de se reaproximar e a atual crise ambiental pode ser um bom motivo para isso.58 57

4. Quando a natureza nos salvaEis a natureza que te convida e te ama; mergulha no seu seio que ela constantemente te oferece. Alphonse de Lamartine

Quando se afirma a salvao do planeta, devemos nos perguntar de que salvao se trata. Salvao, na tradio das Igrejas crists, veio sempre ligada ao mal e ao pecado quase nunca criao. A Bblia tem em comum com diversos povos as mesmas questes: de onde vem o mal que tanto aflige as criaturas?, por que o humano deseja viver e deve morrer? Assim, a pergunta pela Criao, na Bblia, surge junto com uma pergunta pela salvao . No existe um mal presente na matria: como nos tem confirmado a fsica quntica, a matria no ambgua, mas dual, fruto de um equilbrio refinado, sutil e muito prximo de elementos opostos (aqui, a palavra opostos significa complementares). Ns nos sabemos diferentes da natureza porque olhamos para ela e encontramos, nela, um diferente de ns (= alteridade) e nos faz olhar para ns mesmos quando olhamos para ela (= eudade). Neste sentido, a natureza nos salva, ao nos mostrar a diferena: somos feitos do mesmo material da natureza, somos um com59

Cf. ROSENFELD, Rogrio. A Evoluo do Universo: passado, presente e futuro. In: NATALE, Adriano A.; VIEIRA, Cssio Leite (editores). O Universo sem mistrio. Uma viso descomplicada da fsica contempornea: do Big Bang s partculas. Edio Vieira & Lent. 2003. P. 11. 58 Cf. ibidem, p. 11-12. Cf. EL-HANI, Charbel Nino; VIDEI RA, Antonio Augusto Passos (org.). O que vida? Para entender a Biologia do sculo XXI. Editora Relume Dumar / FAPERJ. Rio de Janeiro. 2005. P. 19. 59 Cf. Luiz Carlos Susin, A Criao de Deus, ob. cit. P. 28.

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ela e, ao mesmo tempo, diferentes dela e nos sabemos diferentes dela porque olhamos para ela e a vemos diferente de ns. Quando ns, cristos, tratamos da salvao ofertada por Deus desde a criao, a relacionamos a Jesus Cristo; entretanto, o Esprito de Deus atua salvificamente desde a Criao. , portanto, a mesma obra salvfica, a do Cristo e a do Esprito, mas feita de modos diferentes: o que nos informa Yves Congar . O Esprito Santo exerce um papel csmico na Criao, sendo, inclusive, identificado com a Sabedoria nessa misso (cf. Sb 1,6; 7,7b.22b) : o Esprito preencheu o mundo e tudo abarca (cf. Sb 1,7). A sabedoria tudo atravessa e penetra, porque o sopro do poder de Deus; sendo una, tudo pode e, permanecendo a mesma, tudo renova (cf. Sb 7,24-8,1). O Esprito caracteriza-se por sua sutileza e pureza, que lhe permitem insinuar-se por qualquer lugar e, permanecendo nico, vem a ser, em todo humano e em tudo, princpio de vida, de novidade e de santidade (cf. Is 32,15-17; 63,7-14; Sl 143; Ne 9,20-21; Pv 20,27; Sl 139,7-12; J 28,20-27). O Sopro-Esprito de Deus Sua ao, aquilo pelo qual Deus Se manifesta ativo para dar, primeiro, animao natureza; , tambm, o meio pelo qual Deus conduz Seu povo atravs de profetas e lderes, culminando no Messias. Em Sb 1,7-8,1, vemos que o Esprito cumpre uma tarefa csmica: a de manter a coeso do universo . Para Congar, a plenitude (que deve recapitular-se em Cristo) prepara-se materialmente na histria e o Esprito atua nela. Ele inunda o universo, guia o curso dos tempos, renova a face da terra, est presente na evoluo, move o corao das criaturas em direo a Deus e faz do cristo uma nova criatura . Salvao, ento, uma situao nova das realidades deste mundo, onde o humano no somente existe, mas existe verdadeiramente. isto a salvao, que tem sua plenitude no amor filial perfeito realizado por Jesus sobre a cruz e aceito pelo Pai. E, em razo do lao de destino que existe entre o cosmo e o humano, a criao inteira envolvida na realizao dos santos (cf. Rm 8,20s; 2Pd 3,13) . Congar percebe a salvao como o avano da histria da6064 63 62 61 60

Cf. CONGAR, Yves. El Espritu Santo. Seccin de Teologa y Filosofia. Barcelona. Editorial Herder. 19912. P. 38-40. Apud MORAES, Eva A. R. Odres novos para um vinho novo: a eclesiologia de comunho em Yves Marie-Joseph Congar. Tese Doutoral defendida na Puc-Rio. 2004. P. 70-71. 61 Cf. LARCHER, C. tudes sur le Livre de la Sagesse. Et. Bibliques. Paris. 1969. P. 411. LEBRETON, J. Les origines du dogme de la Trinit. T. II. Paris. 19282. P. 513; 567; 569-570. Apud CONGAR, Yves, ob. cit., p. 37-38. Cf. CONGAR, Yves, ob. cit., p. 37; 57. 63 Decreto do Conclio Vaticano II Presbyterorum Ordinis n. 22 3; Constituio do Conclio Vaticano II Gaudium ET Spes ns. 11 1, 26 4, 41 1, 22 4, 37 4. Apud ibidem. P. 200. 64 Cf. idem. Cette glise que jaime. Paris, Les ditions du Cerf. 1968. P. 47-48.62

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criao para seu fim em Deus (cf. Jo 7,39; 16,7) . Portanto, a Criao nos salva. Descobrir a intencionalidade do Criador e a inteligibilidade da Criao elemento formador e provocador da transcendncia humana: nos faz sair de ns mesmos, sair do ego para encontrar o alter e, assim, nos descobrir a ns mesmos (quem quiser reter a sua vida, vai perd-la.... Mt 16,24-25). A graa feita a nosso mundo, em sua universalidade e de modo definitivo, veio por Jesus Cristo (cf. Jo 1,17) e ela entrou no mundo sob uma forma corporal . Salvos por Jesus Cristo, somos membros de seu Corpo. Segundo R. Ruether, o cristianismo foi moldado pela crena na ressurreio do corpo: os cristos esperavam que o corpo, em vez de ser abandonado no momento da morte, seria transformado naquilo que So Paulo chamou de corpo espiritual (1Cor 15,42-44): a crena de que o corpo, desfigurado em finitude atravs da queda na primeira gerao (cf. Gn 3,21), capaz de eliminar estas expresses finitas . Portanto, no o corpo finito que o cristianismo valorizou, mas sua capacidade de ser purificado de todos os limites finitos. O mundo medieval valorizou o material-corporal e os corpos virginais e martirizados dos santos, mas apenas como manifestaes que apontam para um corpo transformado, liberto da escria mortal. A Renascena, a Reforma e o incio da cincia moderna representam uma srie de mudanas nesta viso, constituindo, ao mesmo tempo, uma manipulao da natureza como esfera humana de poder e controle e a perda da noo da natureza como corpo sacramental. A primeira cincia moderna, a princpio, exorcizou da natureza as foras demonacas; mas, no sculo XVII, surge um dualismo entre intelecto transcendente e matria morta. Este processo de controle sobre a natureza atravs da aplicao tecnolgica do conhecimento cientfico comeou a trazer grandes lucros na revoluo industrial dos sculos XVIII-XIX, precedidos desde o sculo XVI pelo colonialismo, de novas e amplas fontes de riqueza das Amricas, sia e frica, reduzindo suas populaes escravido. O que aconteceu num breve perodo de 3/4 de sculo de progresso infinito j sabemos bem. Repensar nossa relao com o corpo e com a natureza, implica tambm repensar as relaes com aqueles grupos de pessoas que, segundo nossa viso estereotipada, so identificadas com o corpo (e, no, com a mente): mulheres, negros, indgenas, trabalhadores e pobres. Urge uma nova tica de reciprocidade, que orientar as relaesCf. idem, Introduo ao Mistrio da Igreja. So Paulo, Editora Herder. 1966. P. 107-108. Cf. idem. Cette glise que jaime, ob. cit. P. 45-46. 67 RUETHER, R. R. Refletindo sobre criao e destruio Reavaliao do corpo no ecofeminismo. In: Concilium 295 2002/2. Petrpolis. Editora Vozes. P. 44[180]-54[190].66 65 67 66

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entre ns mesmos, a relao com nossos corpos e com o mundo corpreo de plantas, animais, terra, ar e solo. Afinal de contas, este mundo nosso , metaforicamente, corpo de Deus, como nos oferece a reflexo de S. McFague: se a plenitude da revelao de Deus a ns encarnada, feito carne, ento, devemos tratar o modelo do mundo como corpo de Deus nesta perspectiva, h continuidade (embora no identidade) entre Deus e mundo . O mundo um corpo em relao com Deus, pois a doutrina da criao no se refere, primariamente, ao poder, mas ao amor de Deus: vivemos como corpo, em relao com outros corpos, dentro do Universo (= corpo de Deus). O corpo humano o nico objeto do mundo que pode ser dirigido diretamente pela conscincia . Atravs dele, que uma parte do mundo, temos um acesso direto ao mundo. O corpo no apenas nos posiciona, como tambm nos orienta; como entidade psicofsica, disposto no apenas geneticamente, mas tambm culturalmente. Todo ser vivo possui uma histria e as impresses se conservam mesmo quando sua causa j deixou de existir, j que todo estmulo deixa um vestgio fisiolgico, um engrama. O corpo , ele prprio, a primeira expresso da cultura. Alm disso, o corpo funciona como um limite entre o mediato e o imediato: est ligado diretamente nossa psique e aos nossos hbitos, mas , ao mesmo tempo, o meio que nos liga quilo que ns no somos (no somos planta, rvore, bicho, Deus, o outro,...). Na experincia da comunidade, ocorre uma participao direta: a proximidade produzida pelo contato corporal. Nas culturas dominadas pela escrita, as idias corporais se tornam mais abstratas, ocorrendo um distanciamento entre o mundo visvel e o corpo (o meio da escrita abrange, sobretudo, coisas estruturais, isto , que se encontram abaixo da superfcie visvel). Com o surgimento da mdia, acontece uma superficializao, uma refrao: o corpo passa a ser um pedao de matria moldvel: algo ligado ao humano, mas no mais uma entidade psicofsica com a mdia, o humano expulso de seu prprio corpo. E, por fim, com as codificaes informticas, acontece o pleno desligamento entre as representaes pictricas e as individuais no temos necessidade de atores e, portanto, no necessitamos de corpos: o conjunto da criao se compe de elementos que podem ser substitudos e combinados vontade, cuja simbologia seria o cyborg, que a negao do corpo. Esse o sonho da69 68

Cf. McFAGUE, Sallie. O mundo como corpo de Deus. In: ibidem. P. 55[191]-62[198]. Cf WIEGERLING, K. O corpo suprfluo utopias das tecnologias de informao e comunicao. In: ibidem. P.19[155]-30[166].69

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cyberexistncia: as existncias cibernticas no precisam de nenhuma tica, pois no existem corpos, e, portanto, no existem as conseqncias da relao...

5. No debate tico, onipotncia e impotncia humanas diante da naturezaSomos forados a pagar um preo quase intolervel por cada ganho em conhecimento e poder o custo psicolgico do destronamento progressivo do homem do centro das coisas e uma marginalidade crescente em um universo que no se importa conosco. Stephen Jay Gould (paleontlogo americano) A natureza faz troa dos indivduos. Desde que a grande mquina do universo v girando, os nfimos seres que a habitam no lhe interessam para nada! Voltaire

Como refletimos acima, conforme a tradio crist, a salvao a finalidade da criao. Ultimamente, temos sido convocados a salvar o planeta, combatendo o atual aquecimento global. Muito se tem discutido sobre as causas do mesmo, sejam as naturais ou antropognicas, sem termos chegado, ainda, a concluses definitivas. Entretanto, se as aes humanas no tm gerado o atual aquecimento da Terra, indiscutvel o fato de que elas o tm acelerado. As evidncias desse aquecimento vem das medies de temperatura de estaes meteorolgicas desde 1860, sendo maiores as registradas entre 1910 a 1945 e 1976 a 2000, segundo o Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC). Essas medies so acrescidas de outras observaes, como as variaes da cobertura de neve das reas geladas, o aumento do nvel global dos mares e das precipitaes da cobertura de nuvens, aumento dos efeitos do El Nio, entre outras . Segundo, ainda, o IPCC, o principal fator antropognico a emisso de sulfatos que sobem estratosfera: a partir de 1750, as emisses de dixido de carbono aumentaram 31%; as de metano, 151%; as de xido de nitrognio, 17% e, as de oznio troposfrico, 36%. Outras contribuies antropognicas ao aquecimento global seriam o maior uso de guas subterrneas e de solo para a agricultura industrial, um maior consumo energtico e a poluio . Simulaes climticas mostram que o aquecimento ocorrido de 1910 at 1945 pode ser explicado por foras internas e naturais, mas aquele entre 1976 e 2000 necessita da emisso de gases antropognicos para ser explicado.71 70

Cf. http://www.terrazul.m2014.net/spip.php?article231. Cf. MIRANDA, E. E. de; COUTINHO, A. C. (Coord.). *Brasil Visto do Espao*. Campinas: Embrapa Monitoramento por Satlite, 2004. Disponvel em: http://www.cdbrasil.cnpm.embrapa.br.71

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Estudos divulgados em abril de 2004 procuraram demonstrar que a maior intensidade das tempestades estava relacionada com o aumento da temperatura da superfcie da faixa tropical do Atlntico (violenta temporada de furaces registrada nos Estados Unidos, Mxico e pases do Caribe). A determinao da temperatura global superfcie feita a partir de dados recolhidos em terra (sobretudo em estaes de medio de temperatura em cidades) e nos oceanos (recolhidos por navios). Desde janeiro de 1979, os satlites da National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA) passaram a medir a temperatura da troposfera inferior (de 1000 m a 8000 m de altitude) atravs da monitorizao das emisses de microondas por parte das molculas de oxignio na atmosfera; essas medies indicam um aquecimento de menos de 0,1C desde 1979, em vez dos 0,4C obtidos a partir dos dados superfcie. Ou seja: existe uma divergncia ainda inexplicvel de dados entre a superfcie e os oceanos (pode ser um processo atmosfrico ainda desconhecido). Alguns dados referentes ao aquecimento global nos assustam. Por exemplo: a cada ano, 2.000 km2 se transformam em desertos devido falta de chuva; 40% das rvores da Amaznia podem desaparecer antes do final do sculo, caso a temperatura suba de 2C a 3C; a geleira Gangotri, no Himalaia, perdeu 2.000 m em 150 anos; em 2004, foram registradas 750 bilhes de toneladas de CO2 na atmosfera; a calota polar ir desaparecer por completo dentro de 100 anos, de acordo com estudos publicados pela National Sachetimes de New York, em julho de 2005, o que provocar o fim das correntes martimas no oceano atlntico, esfriando o clima no hemisfrio norte e aquecendo o resto do mundo; a seleo natural tem acontecido num ritmo cinqenta vezes mais rpido do que o registrado h 100 anos; nas prximas dcadas, de 9% a 58% das espcies em terra e no mar vo ser extintas ;... Apesar de uma previso plenamente confivel do futuro ser impossvel, ela necessria para que aconteam decises polticas que evitem impactos maiores do aquecimento global. Alguns autores opinam que a importncia do protocolo de Kioto no fenmeno do aquecimento global pequena (uma reduo de 0,15, num aquecimento de 2C em 2100), mas, indiscutivelmente, um primeiro e importante passo, mesmo que mais poltico que prtico . As crticas partem de diversos pontos de vista. Muitas previses so feitas com base em simulaes estatsticas que, por sua vez, so baseadas72 73 74 73 72

Cf. http://www.noaa.gov.br/. Cf. MIRANDA, E. E. de; COUTINHO, A. C. (Coord.). *Brasil Visto do Espao*, ob. cit. 74 Cf. http://www.jornaldomeioambiente.com.br.

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em modelos numricos climticos e, no, da observao direta da evoluo de variveis fsicas reais, o que tem sido usado por crticos s causas antropognicas do aquecimento global. Entretanto, em setembro de 2006, James Hansen, diretor do Instituto Goddard de Estudos Espaciais da Nasa, publicou na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) , da Academia Nacional de Cincias dos EUA, uma matria em que so apresentadas informaes detalhadas de um modelo climtico aperfeioado desde os anos 80 (Modelo de Hansen), alimentado por medies originadas de satlites, navios e estaes meteorolgicas no mundo inteiro. O estudo afirma que, nos ltimos trinta anos, a Terra esquentou 0,6C, perfazendo um aumento total de 0,8C no sculo XX a temperatura mdia atual a maior dos ltimos 12.000 anos, faltando apenas mais 1C para que seja a mais alta do ltimo milho de anos; foi registrado aquecimento dos oceanos ndico e Pacfico, o que far com que fenmenos como o El Nio sejam mais significativos. Partindo do pressuposto de que a ao humana tem acelerado o aquecimento global, a discusso deixa de ser cientfica e passa a ser tica. Primeiramente, o desenvolvimento humano muitas vezes sinnimo de progresso nem sempre veio carregado de senso tico, principalmente na questo da natureza. Chegamos a um nvel de desenvolvimento tecnolgico e de consumo inigualveis. A economia de materiais nos revela que esse desenvolvimento fruto de um sistema de depredao do ambiente em funo do dinheiro . Esse sistema entrou recentemente em crise, porque se trata de um sistema linear desenvolvido dentro de um planeta finito, o que os torna incompatveis. Todo esse sistema acontece ao longo de uma vida real: o sistema interage com pessoas, sistemas, sociedades, culturas, ambiente,... e, ao longo das etapas, a vida vai se chocando contra os limites do prprio sistema. A funo dos governos zelar por e cuidar de toda a sociedade; depois do governo, as pessoas mais importantes so as corporaes e, nesse atual sistema, elas so maiores que o governo: atualmente, elas somam 51% de toda a economia mundial, o que explica, por exemplo, o fato de muitos governos estarem mais preocupados em servir a elas do que s sociedades. Nesse sistema, a primeira etapa chamada de extrao, ou, explorao de recursos naturais. Nessa etapa, enfrentamos nosso primeiro limite: estamos ficando sem os recursos naturais porque estamos utilizando demasiados materiais. DuranteCf. http://www.pnas.org/. Cf. LEONARD, Annie. The Story of Stuff (vdeo). Tides Foundation Funders Workgroup for Sustainable Production and Consumption and Free Range Studios. Cf. http://www.storyofstuff.com. Verso brasileira feita pela comunidade Permacultura.76 75 76 75

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apenas as trs ltimas dcadas, o planeta tornou-se debilitado por causa do nosso modo moderno de vida. Nos Estados Unidos da Amrica (EUA), por exemplo, restam menos de 4% da floresta original e 40% dos cursos de gua esto imprprios para o consumo; alm disso, apesar de os EUA possurem apenas 5% da populao mundial, eles utilizam 30% dos recursos mundiais (se o resto do mundo consumisse no ritmo dos EUA, precisaramos de trs a cinco planetas). Devido a esse desaparecimento dos recursos naturais dos EUA e outros pases do primeiro mundo, os olhares se voltam para o terceiro mundo, que ainda os possuem. A discusso d-se no campo ideolgico, pois o primeiro mundo alega que o terceiro mundo no dono de seus recursos naturais, mesmo que vivamos aqui h geraes. A segunda etapa desse sistema depredador a produo, onde utilizamos energia para misturar qumicos txicos aos recursos naturais e gerar produtos industrializados: existem, atualmente, no comrcio, mais de 100.000 qumicos sintticos, onde apenas uns poucos foram testados para avaliar seu impacto sobre a sade humana e nenhum foi testado para avaliar seus impactos sinrgicos sobre a sade (ou seja, a interao com todos os outros qumicos e o impacto em nossos corpos e no nosso meio ambiente). Um exemplo so os BFRs (Brominated Flame Retardants), os retardantes de incndio base de brometo, que tornam as coisas resistentes ao fogo, mas que so supertxicos: so neurotoxinas, ou seja, so txicos aos nossos crebros; so usados em nossos computadores, eletrodomsticos, sofs, colches e at em alguns travesseiros. Essas toxinas vo se acumulando ao longo da cadeia alimentar e se concentram em nossos corpos. No