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COLEÇÃO NEABI DIGITAL – VOL. 2 REFAZENDO LAÇOS E DESATANDO NÓS

África e afrodescendentes

no sul do Brasil:história, religião e educação

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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS UNISINOS

Reitor

Pe. Marcelo Fernandes de Aquino, S. J.

Vice-reitor

Pe. José Ivo Follmann, S. J.

CASA LEIRIA

EditoraCristina Gislene Leiria

Conselho EditorialLuciana Paulo Gomes

Gisele PalmaRosangela Fritsch

Anai Zubik Camargo de SouzaIsabel ArendtHaide Hupffer

Rua do Parque, 47093020-270 São Leopoldo-RS Brasil

___________________Telef.: (51)3589-5151

[email protected]

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COLEÇÃO NEABI DIGITAL – VOL. 2 REFAZENDO LAÇOS E DESATANDO NÓS

África e afrodescendentes

no sul do Brasil:história, religião e educação

Adevanir Aparecida Pinheiro (Organizadora)

CASA LEIRIASão Leopoldo-RS

2015

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África e afrodescendentes no sul do Brasil:história, religião e educação

Editoração: Casa Leiria.Revisão: Rosane Marques BorbaImagem da capa: “Navio negreiro”,

tela de Johann Moritz Rugendas (circa 1830).

Os textos e as imagens são de responsabilidade de seus autores.

Ficha Catalográfica

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973)

Todos os direitos reservados.A reprodução, ainda que parcial, por qualquer meio, das páginas

que compõem este livro, para uso não individual, mesmo para fins didáticos, sem autorização escrita do editor, é ilícita e constitui uma

contrafação danosa à cultura. Foi feito o depósito legal.

A258 África e afrodescendentes no sul do Brasil: história, religião e educação / Organização de Adevanir Aparecida Pinheiro – São Leopoldo: Casa Leiria, 2015.134 p. (Coleção NEABI DIGITAL: refazendo laços e desatando nós; 2)

Financiado por: Unisinos, CCIAS – Centro de Cidadania e Ação Social e NEABI – Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas.

ISBN: 978-85-61598-81-5ISBN da Coleção: 978-85-61598-79-2

1. Negros – identidade racial – Brasil. 2. Educação – Relações étnico-raciais – Brasil. 3. História – Relações étnico-raciais – Brasil. 4. Religião – Afrodescendentes – Brasil. 5. Afrodescendentes – Imigração Alemã – Brasil. I. Pinheiro, Adevanir Aparecida (Org.). II. Série.

CDU 316.347

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Sumário

Introdução e Preâmbulo Histórico Adevanir Aparecida Pinheiro, Jorge Euzébio Assumpção e José Ivo Follmann .............................................................................................. 9

I – Caminhos da História: da África aos Afrodescendentes do Brasil MeridionalJorge Euzébio Assumpção ................................................................... 17

II - Religiões e Afrodescendentes no Espelho de uma Cidade de Imigração Alemã no Sul do BrasilJosé Ivo Follmann ................................................................................ 67

III - Educação das Relações Étnico-raciais: um debate acerca dos afrodescendentes e a temática da branquidadeAdevanir Aparecida Pinheiro .............................................................. 95

Conclusões e Considerações FinaisAdevanir Aparecida Pinheiro, Jorge Euzébio Assumpção e José Ivo Follmann .......................................................................................... 117

Referências .................................................................................. 125

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Introdução e Preâmbulo Histórico

Adevanir Aparecida PinheiroJorge Euzébio Assumpção

José Ivo Follmann

Com o objetivo central de contribuir para novas reflexões sobre as sagas dos afrodescendentes no sul do Brasil, o presente livro recolhe aspectos relevantes envolvendo três contextos que trazem em seu conjunto uma abrangência, no mínimo, provocadora.

Uma primeira grande inspiração para a composição deste livro foi colhida em Carlos Rodrigues Brandão. Pode parecer estranho trazer esta menção na introdução de um livro que aborda afrodescendentes no sul do Brasil. Mas este autor, em um de seus livros no qual retratou a história de Paulo Freire, A história do menino que lia o mundo (2002), destacou que esse menino que lia o mundo aprendeu a perder o medo porque começou a entender as coisas e o mundo. Nós, em geral, temos medo frente ao que não entendemos. Quando não se entende de determinado assunto, tem-se muito medo de entabular conversa sobre o mesmo. Talvez possamos dizer que a temática dos afrodescendentes no Brasil está muito ausente nas escolas porque existe um grande desconhecimento em torno da mesma. Muitos professores e professoras têm medo de abordar o assunto.

Às vezes se ouve falar que tocar nesse tema pode acender as brasas que estão mortas debaixo das cinzas da história,

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despertando indesejados conflitos raciais. Trata-se do medo associado ao desconhecimento, pois, entendemos que, a rigor, proporcionar o conhecimento gera menos conflito do que esconder ou sonegar este conhecimento. No caso específico da temática dos afrodescendentes, no Brasil, isto é, sem dúvida, flagrante.

É necessário mexer nas cinzas da história para reacender as chamas vivas de culturas sufocadas pela espoliação e pela dominação. Neste sentido, a Lei 10.639, de 2003, a sua origem e todos os desdobramentos e regularizações que estão na sua sequência, foram sem dúvida um dos maiores avanços, na história recente, em termos de busca da regeneração da alma brasileira. O presente livro está centrado na importância da Educação das Relações Étnico-raciais. Isto se explicita de modo especial, no seu terceiro capítulo, de autoria da Profa. Adevanir Aparecida Pinheiro, ao tornar presentes e avivar reflexões a partir de estudos, de práticas institucionais e de sala de aula bem-sucedidas, na busca de um maior aprofundamento sobre o sentido e a importância da Educação das Relações Étnico-raciais no Brasil.

Antes de pontuar aspectos referentes a esta questão central, o livro abre para breves revisitas a aspectos chaves da história do continente Africano e também do “mundo das religiões e religiosidades” em geral e na África. Assim, além de um pequeno “preâmbulo” no final desta introdução, o capítulo primeiro, escrito pelo Prof. Jorge Euzébio Assumpção, está dividido em três passos, sendo um primeiro referente à história da África, o segundo referente à história dos afrodescendentes no Brasil e o terceiro referente à história dos afrodescendentes no Rio Grande do Sul.

O segundo capítulo, na sequência, escrito pelo Prof. José Ivo Follmann, se volta para a esfera do “mundo das religiões e religiosidades”, pois a esfera religiosa pode ser considerada uma referência exemplar no que se refere às consequências nefastas causadas pelo medo do desconhecido. Nesta esfera, sabe-se que os ressentimentos e conflitos tendem a crescer quando imperam

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a desinformação e o desconhecimento mútuos. Ao contrário, a harmonia, o convívio fraternal, o respeito e o diálogo começam a vigorar na medida em que cresce o conhecimento de par a par. No desconhecimento, as religiões tendem a se demonizar mutuamente e a afirmar a superioridade de sua proposta e missão com relação às demais.

A atenção central do livro está voltada para a importância das ações afirmativas, especificamente, com foco na educação. Ele é um convite para olharmos de frente a grave questão ideológica, no Brasil, do falseamento, do “mito da democracia racial”, do esquecimento e do escamotear, que faz das escolas e dos professores veiculadores e reprodutores das explicações fáceis ou das “não explicações”, ajudando a sonegar sutilmente as raízes da identidade dos afrodescendentes negros em nossa sociedade.

É necessário propor, também em sala de aula, com honestidade, o debate público sobre a questão da grande dívida social que o Brasil tem com relação aos afrodescendentes que constituem 51% da população brasileira. Trata-se da metade da nossa sociedade cujos ancestrais foram vítimas de um dos mais longos períodos de escravidão conhecidos na história humana: quase quatro séculos de escravidão de africanos no Brasil.

Por isso trazer à memória a discussão do período de escravidão nas charqueadas gaúchas e desmitificar todo mito criado em torno da “escravidão branda” em terras gaúchas, é muito oportuno e é o que está amplamente desenvolvido na terceira parte do primeiro capítulo da presente obra. O capítulo busca situar a questão da escravidão nas charqueadas gaúchas dentro da descrição e análise mais amplas, trazendo vários registros chaves para o entendimento do processo de escravidão no Brasil e no Rio Grande do Sul.

Não faz sentido trabalhar a temática dos afrodescendentes no Brasil em sala de aula, se persistir a gritante ausência dos mesmos afrodescendentes nas Universidades. Às vezes, são feitas comparações com a situação racial nos Estados Unidos, onde

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a política afirmativa teve a sua época e hoje já está superada. É importante sabermos que, naquele país, os afrodescendentes só representam 12,6% da população e são numerosos os que já conseguiram posições de destaque na sociedade. Aliás, neste sentido, as estatísticas da população leopoldense são muito próximas das estatísticas dos Estados Unidos. No município de São Leopoldo, os afrodescendentes também só representam 12,5%, mas a distância em termos de conquistas sociais é escandalosa em relação às conquistas conhecidas naquele país, devido às políticas afirmativas que ali já foram bem-sucedidas.

As políticas de ação afirmativa são necessárias para recuperar as enormes desvantagens sofridas por um segmento da sociedade com relação a outro, mas elas nunca devem significar abrir mão da exigência no preparo técnico e na qualidade. Devem significar formas criativas e inovadoras de proporcionar acesso ao preparo técnico e à qualificação. O terceiro capítulo, de autoria da Profa. Adevanir Aparecida Pinheiro, foca especificamente o processo da Educação das Relações Étnico-raciais. Obviamente, como o próprio texto do capítulo o demonstra, esse processo não pode ser visto cabalmente sem que também se coloque o debate da reeducação de toda sociedade, especialmente dos eurodescendentes, que são a população predominante, na região sul.

De fato, somos facilmente vítimas de um jogo secreto que desvia a atenção de seu verdadeiro foco. Segundo a Profa. Adevanir Aparecida Pinheiro, que, em sua tese de doutoramento, desenvolveu um aprofundamento sobre o conceito de “branquidade”, fala-se sempre em “questão do negro” ou “questão do índio”, quando de fato é uma “questão do branco”, em primeira instância. Se os estudos das relações étnico-raciais não tiverem um olhar atento para esse jogo secreto, continuando focados apenas nas etnias historicamente inferiorizadas, eles poderão ser novamente “um tiro no próprio pé”, como um dia refletiu o Prof. Jorge Euzébio, autor do primeiro capítulo deste livro. Estaremos correndo o risco de redobrar as mesmas escamoteações históricas já conhecidas no Brasil.

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Neste sentido, o livro também é um convite a que nos associemos à linha de reflexão, que traz ao centro do debate a questão do embotamento da consciência branca eurocêntrica. É uma consciência que permanece, muitas vezes, algemada no seu senso de superioridade. São inúmeros os aspectos históricos relacionados a isto, aos quais se deu pouca atenção no contexto social e acadêmico brasileiro. Esses aspectos muitas vezes são camuflados para não mostrar ou evidenciar as fragilidades e as vergonhas da parte da população sempre autoconsiderada superior. São registrados neste sentido alguns depoimentos de estudantes, que participam das aulas da disciplina de Educação das Relações Étnico-raciais, da Professora Adevanir Aparecida Pinheiro, autora do terceiro capítulo.

Este capítulo é precedido por uma longa incursão no “mundo das religiões e religiosidades”, que é o objeto do segundo capítulo, de autoria do Prof. José Ivo. Este autor, que é padre jesuíta e sociólogo, se coloca na perspectiva ao fazer um esforço de colher registros e dados sobre os afrodescendentes em São Leopoldo, no que se refere ao seu referencial religioso. Sabe-se da importância fundamental da dimensão religiosa dentro do processo de dominação e também de resistência à dominação de parte dos afrodescendentes. O segundo capítulo fornece pistas importantes para avançar hipóteses neste sentido.

Como já sinalizamos no início, esta introdução estaria incompleta se não fizéssemos um preâmbulo de contextualização ampla da história do próprio continente africano. Assim alguns registros referentes a isso se fazem necessários com a finalidade de ajudar a ampliar o horizonte de reflexão e de apreensão dos contextos diversos concretos trazidos nos três capítulos que constituem o presente livro.

Muito já se escreveu, porém pouco se sabe ainda sobre o continente negro, que, no entender de muitos, não teria história, ou seria insignificante, como um dia chegou a afirmar o filósofo alemão Georg W. Friedrich Hegel. Bárbaros, selvagens, bestiais são alguns dos adjetivos atribuídos por ocidentais aos africanos e

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seus descendentes. Nesta perspectiva, por longos anos, a África foi deixada de lado pela historiografia oficial, e, quando vista, eram ressaltados somente seus exotismos, riquezas naturais e sua vida selvagem. A África ficou assim, mais conhecida por seus animais do que seus habitantes humanos.

Ao que pese o esquecimento do homem africano, este possui uma história, mesmo antes da chegada dos ocidentais, na denominada Idade Moderna, o que torna possível falar de África sem o protagonismo europeu. Seu estudo é de fundamental importância, pois constitui peça chave para o entendimento da história moderna e contemporânea. É impossível falar destes períodos históricos sem conhecermos ou, no mínimo, termos noções da história do continente negro, que se entranhou, cada vez mais, nos destinos dos homens ocidentais, não só dos europeus, mas também dos americanos.

Neste sentido, torna-se imperativo conhecermos, mesmo que parcialmente, alguns dos povos que habitaram e fizeram história na África, antes das grandes navegações. O que nos remete aos três grandes reinos Sudaneses: Ghana, Mali e Songhai, como também dois reinos Bantos: Kongo e Ndongo, grandes exportadores de negros escravizados para o Brasil; sinalizando também a Idade Moderna ocidental e o tráfico de trabalhadores escravizados principalmente para as Américas.

O tráfico de trabalhadores africanos escravizados que sangrou o continente negro, fato singular na história mundial, trouxe consigo consequências trágicas para o mesmo; em contrapartida, financiava o desenvolvimento ocidental e proporcionava a exploração das terras do novo mundo entre os quais se encontra o Brasil, cuja história se confunde com a do continente africano, pois para cá vieram trabalhadores escravizados africanos, como em nenhuma parte do mundo. Não podemos falar no Brasil sem falarmos na África. Neste sentido, iniciamos o primeiro capítulo, de autoria do Prof. Jorge Euzébio, com uma abordagem da África em seus principais Estados ou Reinos mais conhecidos da antiguidade. Entendemos que só

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podemos compreender a história do Brasil se entender um pouco de África, pois dela somos herdeiros biológicos e culturais.

Da mesma forma, mutatis mutandi (mudando o que deve ser mudado), não podemos falar em religiões e religiosidades no Brasil sem nos reportarmos ao complexo processo religioso que marca a história do continente africano. É o esforço feito pelo segundo capítulo, de autoria do Prof. José Ivo, no qual mediante um cruzamento de informações e dados sobre os afrodescendentes em São Leopoldo e o “mundo das religiões e religiosidades”, são formuladas diversas questões relevantes, tanto para a compreensão dos caminhos das religiões e religiosidades, como dos afrodescendentes nesses caminhos.

O livro desemboca no terceiro capítulo, de autoria da Profa. Adevanir, que, de uma forma concreta, conduz os leitores para dentro da importância da Educação das Relações Étnico-raciais, a partir de reflexões teóricas e de práticas institucionais e de sala de aula, bem-sucedidas.

Na conclusão - conclusões e considerações finais -, os três autores costuram de forma integrada algumas ideias e sinalizações mais relevantes a partir de cada um dos três capítulos. O livro, em seu conjunto, pretende ser um apoio para professores e demais profissionais, que se envolvem, ativamente, dentro ou fora de sala de aula, no processo de Educação das Relações Étnico-raciais no Brasil.

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I – Caminhos da História: da África aos Afrodescendentes do Brasil Meridional

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Introdução

Os livros didáticos, com raras exceções, nos apresentam uma história eurocêntrica, ou seja, a Europa passa a ser o centro de partida e de decisões da humanidade. Sonegam-se ou menosprezam-se, de uma maneira geral, outras civilizações. Estas normalmente só são citadas após o contato com as nações europeias. Este tipo de proceder ocasiona um profundo desconhecimento dos povos, com exceção dos ocidentais, distorcendo suas histórias e cultura e proporcionando, devido ao desconhecimento, um preconceito em relação aos mesmos.

Tentando romper com essa visão eurocêntrica, iniciamos o nosso trabalho pelo continente africano, visto ser o mesmo

1 Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Atualmente, é professor titular – Secretaria Estadual de Educação do Rio Grande do Sul – professor da UNIVERSIDADE DO VALE DOS SINOS. Tem experiência na área de História, com ênfase em Escravidão, atuando principalmente nos seguintes temas: resistência, África, char-queada, negro e Rio Grande do Sul.

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o berço da humanidade. Obviamente, seria impossível falarmos de todos os aspectos e povos que habitaram em África desde a antiguidade até a era moderna. Nesse sentido, procuramos priorizar, ou seja, dar uma noção daquelas regiões que mais influenciaram, ou forneceram trabalhadores escravizados para o Brasil. Obviamente, temos clareza das deficiências e lacunas deixadas pelo texto, que poderá ser aprofundado posteriormente.

Procuramos dar uma visão do continente africano, assim como da importância dos afrodescendentes para a história do Brasil e do Rio Grande do Sul. Para tanto, tentamos mostrar outro olhar para África, como também destacar a importância dos africanos reduzidos à escravidão e sua resistência, na formação da sociedade brasileira. O texto não será inédito, pois tem como base outros escritos, já publicados, de nossa autoria.

África (dos grandes impérios à colonização)

O continente africano, mais antigo do planeta, possuindo uma enorme extensão territorial, cerca de 30.343.511 km², ocupando 22% do território terrestre, pode ser dividido geograficamente de várias formas, dentre elas em: África Setentrional (Magrab – Sahel) – África Ocidental – África Oriental – África Austral – África Central. O aspecto geográfico mais marcante do continente é o grande deserto do Saara.

É o segundo maior deserto do mundo (perdendo apenas para a Antártica), localizado no Norte de África, com uma área total de 9.065.000 km2, possuindo um território apenas um pouco menor do que a Europa (10.400.000 km2). Nele, salvo engano, vivem mais de 2,5 milhões de pessoas, distribuídas entre as regiões da Mauritânia, Marrocos, Líbia, Egito, Mali, Níger, Argélia, Tunísia, Sudão e Chade.

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África – Regiões Fonte: http://umolharquedesconstroi.weebly.com/

Tendo como ponto de partida o Saara, alguns autores, quando se referem ao continente africano, dividem-no em África Branca e África Negra. A primeira, em razão de sua localização geográfica próxima ao mediterrâneo e consequentemente à Europa, como também devido à influência árabe islâmica, é vista como pertencente à História Ocidental (Europa). Desta forma, destacam e ressaltam a prosperidade, o progresso e as maravilhas, entre outros, do antigo Egito, e menosprezam a porção subsaariana (África negra), dando a entender que a mesma pouco teria para acrescentar na história da humanidade.

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O Egito, embora seja uma das primeiras e mais importantes civilizações, não só da África como do mundo, não será abordado, devido ao conhecimento já existente sobre si. Daremos enfoque aos povos saarianos e principalmente subsaarianos. Esses, sonegados por grande parte da historiografia eurocentrizada que basicamente se restringe a ressaltar o lado exótico dos negros africanos.

Entretanto, diferente do que possam alguns pensar (ainda), a chamada África Negra não vai se destacar historicamente somente por ser berço da humanidade, ou pelos exotismos tribais, mas também pela prosperidade de impérios que nela existiram e que, de uma forma geral, ainda são muito pouco conhecidos, tanto no mundo acadêmico como por parte da população afrodescendente. Onde se destacaram na faixa sudanesa – em árabe Bilad al-Sudan (que quer dizer terra de negros) –, os antigos Impérios de Gana (séculos VI a XIII), Mali (séculos XIII a XVII) e Songhai (séculos XVII e XVIII).

Enfatizaremos os reinos de Ghana, Mali e Songai em nossa abordagem devido às suas influências e ligações a uma das regiões que mais exportou trabalhadores escravizados sudaneses para o Brasil, como também por suas importâncias históricas na formação do continente negro. Todavia, devemos destacar que o número de povos africanos denominados pré-coloniais com certeza não se limita aos citados, como demonstra o mapa elaborado por Leila Hernandez.2

Didaticamente, dividimos os povos africanos negroides em dois grandes grupos: Bantos e Sudaneses.

2 HERNANDEZ, Leila Maria Gonçalves Leite. A África na sala de aula: visita a história contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2005, p. 34.

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Delimitações aproximadas das organizações políticas na África (1500 a 1600) destacando “estados”, “reinos” e “impérios”. (Baseado em Vanchi, 1973).

SUDANESES: povos que habitam a região intertropical africana, entre os desertos do Saara e o Atlântico (Golfo da Guiné), compreendendo o Tchad, o Níger, o Sudão etc. e as regiões na Costa do Golfo: Nigéria, Daomé (atual república do Benin), Togo, Gana (antiga Costa do Ouro), Costa do Marfim, estendendo-se até a Libéria, Serra Leoa, Guiné, Senegal. Grupos de escravos vindos destas regiões sendo em maior quantidade os Iorubas (Nagô), os Hauçã (Maometanos), da Nigéria, os denominados Jeje, do Daomei, os Fanti-axanti (Minas), da Costa do Ouro.

BANTOS: grupo linguístico compreendendo milhões de africanos, com inúmeras línguas e quase trezentos dialetos, que se estende por aproximadamente dois terços da África Negra,

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desde o Camerum até o sul. Inclui Angola e Congo, de onde nos veio a maioria dos escravos desse grupo e cujas línguas, kimbundo e kikongo, entre outras, são as que mais termos deixaram em nossa linguagem atual.3

Ghana, o país do ouro

As origens de Ghana são desconhecidas; as primeiras notícias datam do século VIII, quando de uma expedição mulçumana vinda do norte relata a riqueza do Estado localizado no Sudão Ocidental, aproximadamente entre os atuais Estados de Mali e a Mauritânia. Apresentando o ouro como sua principal riqueza, logo virou objeto da cobiça por parte dos árabes que o trocavam por tecidos, cobre e sal, entre outros, além de tentarem expandir a religião islâmica. Segundo Mário Curtis Giordani, até a “descoberta” da América, o reino foi o principal fornecedor de ouro do mundo mediterrâneo.

Ghana era um título utilizado pelo chefe do reino – significava “senhor da guerra” – e como tal recebia tributação por extração e comércio do minério. Ghana era um Estado Tributário, ou seja, cobrava tributos sobre as mercadorias que passavam por seu território, possuía sua capital em Kumbi Saleh. Para proteger seus domínios, utilizava-se de um poderoso exército, que impunha um controle das rotas comerciais, o que lhes permitia vultosos ganhos. Segundo Mário Maestri, o modo de produção utilizado por essas comunidades do Sudão Ocidental era o de linhagem ou doméstico, organizado em torno de comunidades familiares ou aldeias. A posse da terra era coletiva, podia ser explorada coletiva ou individualmente. Além da mineração, exercitavam a caça, a pesca e a coleta. Possuíam uma incipiente divisão do trabalho: pastores, ferreiros, mercadores e outras profissões semiespecializadas.

Ghana sofreu uma considerável influência islâmica, principalmente por parte de seu grupo governante urbano,

3 CACCIATORE, Olga Gudolle. Dicionário de cultos afro-brasileiros. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1988. p. 33

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pois, ao que parece, existia certa desigualdade social entre os habitantes da capital e os moradores rurais. Enquanto a capital do reino era descrita como sendo uma grande cidade, com casas reais construídas de pedras, cercadas por muralhas, as moradias destinadas aos componentes não governantes ou comerciantes eram feitas de cabanas de terra com tetos redondos. Destaque também é dado aos negociantes arabizados que viviam à parte, em outra cidade um pouco afastada com “bazares, plantações irrigadas e nada menos de que 12 mesquitas em plena atividade cultural e religiosa”. O primeiro grande estado tributário sudanês vai sucumbir no século XIII, diante de uma força maior: o reino de Mali.

Ainda sobre Ghana, acrescenta Maestri Filho:

Hipóteses estapafúrdias foram levantadas pelos primeiros historiadores ocidentais que se interessaram pelo Estado negro. Ventilou-se a possibilidade de que sua fundação fosse obra de judeus sírios fugidos de perseguições romanas na Cirenaica (região da atual Líbia), no séc. II dC. As origens do reino são mais simples e menos fantasiosas.4

Essa não foi a única vez que historiadores ocidentais tentam desqualificar a história africana, atribuindo seus feitos a europeus, não negros, dando uma nítida demonstração de racismo historiográfico.

Mali

O Império de Mali, que sucedeu Ghana, foi edificado por Sundiata, unificando grande parte da África Ocidental. Senhor absoluto da situação após ter vencido seus inimigos, dividiu em províncias seu império, nomeou governantes e submeteu a uma espécie de servidão os povos que o haviam combatido. Com ele, os Keitas sobem ao comando do Império de Mali. O governo

4 MAESTRI, Mário. História da África negra pré-colonial. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988, p. 15.

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de Sundiata foi de tal forma marcante, que até os dias de hoje ele é reverenciado através de oferendas, como rezam antigos costumes de tradição africana.

O sucessor de Sundiata foi seu filho Mansa Uli. “Mansa” era um título usado pelos governantes locais. “Cada um desses chefes continuou a exercer o governo local, mas todos cederam o título de Mansa – ou Mandimansa – a quem na guerra os comandara”.5 Depois de Mansa Uli, esta designação passa a ser usada por todos os demais, que chefiaram o Império. Salvo engano, Uli, assim como seu pai, fora convertido ao islamismo, não se sabe se por fé ou por senso de oportunidade.

Isso vale também para outros governantes do império. Todavia, o mesmo não se deu com as populações dos territórios sob sua jurisdição, que continuaram a praticar suas crenças animistas. A conversão ao islamismo por parte do governante não significa deixar as crenças animistas de lado. Em muitos casos, parece ter sido a conversão ao islã uma estratégia política utilizada pelo governante para, talvez, poder usufruir de certas vantagens. Em muitos casos, esses abraçavam a fé em Alá, mas continuavam a praticar suas crenças locais, sem o mínimo embaraço.

A viagem a Meca de Mansa Uli pode ter-lhe sido ditada por exigência de uma profunda fé. Ou ter sido mero expediente político, para estabelecer melhor diálogo com os estados muçulmanos do outro lado do Saara e para ampliar seu prestígio entre os islamitas do Mali. E não só entre estes, pois tanto os maometanos quanto os pagãos acreditavam que a estada em Meca fortalecia o baraca, o poder propiciatório do rei, sua capacidade de influir favoravelmente sobre a terra e sobre o clima, sobre as colheitas e sobre o gado, sobre a fertilidade das mulheres e o bem-estar do povo.6

5 SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos portugue-ses, Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Edusp, 1992, p. 291.

6 Ibidem, p. 293.

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Foi durante o império de Mali que Djenne (ou Jenne) e Tombuctu começaram a emergir como prósperas cidades comerciais. Sobre Tombuctu, diz Maestri:

Centro cultural Tombuctu, que procurou a proteção dos senhores de Mali, transformou-se em um dos principais centros comerciais do Sudão Ocidental. Nos fins do séc. XVI possuía em torno de 25 mil habitantes, 26 alfaiatarias, com até 200 aprendizes cada uma, e nada menos do que 150 escolas alcoranistas. Basil Davidson, em Revelando a Velha África, registrou a referencia de Leon, o Africano, a Tombuctu: “Em Tombuctu há muitos juízes, médicos e letrados, e todos recebem bons estipêndios do rei, que tem grande respeito pelos homens de saber. Livros manuscritos têm ali grande procura e são importados da Barbaria. O comércio livreiro é aí mais lucrativo que qualquer outra espécie de negócio”.7

Tombuctu foi centro de um comércio internacional, onde tudo era negociado – sal, escravos, marfim etc. Havia também um grande comércio de livros de História, Medicina, Astronomia e Matemática, bem como uma grande concentração de estudantes. O culturalismo de Tombuctu pode ser percebido através de um velho provérbio africano: “O sal vem do norte, o ouro vem do sul, mas as palavras de Deus e os tesouros da sabedoria vêm de Tombuctu”.

A prosperidade, a pujança e a opulência de Mali ficam ainda mais evidenciadas durante o reinado de Mansa Kanku Mussa (1307-1332). Segundo relatos, quando de sua ida a Meca, local de peregrinação muçulmana, teria levado consigo milhares de pessoas – corte, soldados e servos – como também de 10 a 12 toneladas de ouro. Segundo Giordani, o mesmo levou consigo cerca de 8.000 cortesãos, e servos o acompanharam. Já em Meca, comprou casas e terrenos, distribuiu esmolas e presentes. De volta a Mali, trouxe letrados, comerciantes e religiosos. Kanku Mussa falava e escrevia em árabe.

7 MAESTRI, Mário. História da África negra pré-colonial. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988, p. 29.

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A viagem do Mansa Mussa foi cantada em prosa e versos por décadas seguintes, tal foi a sua suntuosidade. Porém, essa demonstração de poder e riqueza não deixou de trazer consigo consequências negativas, pois, a partir da mesma, os povos africanos começaram com maior intensidade a ser alvos da cobiça europeia. Por volta do século XV, principiara a decadência de Mali, quando, dentre outros motivos, foi atacada pelos tuaregues (povos nômades que habitavam o deserto do Saara). O estado de Mali começou a ser dividido, desde então, em vários pequenos reinos.

Songhai

Foi o último, mas o mais poderoso dos Estados tributários sudaneses, alcançando grande opulência e poder. Subpuljando-se a Mali. Aproximadamente, o seu território expandiu-se desde Mali até a atual Nigéria. Teve grande importância também como propagador da cultura islâmica.

As populações songhaias são divididas em dois grandes grupos: os sokos, que praticavam a pesca, e os goas caçadores. A principal cidade de Songhai era Gao, local de encontro das principais rotas saarianas. A cidade era habitada por negociantes. O rio Níger, principal via fluvial da região, servia como meio de transporte e comércio, principalmente de sal.

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Império de Songhai Fonte: MAESTRI, Mário. História da África Negra Pré-colonial, 1988, p. 34.

Os senhores de Songhai foram denominados de Soni. Tendo sua influência cada vez maior na região, o Soni Ali – O Grande – impôs a derrota do império mandinga (Mali), dando início ao novo e último grande império – Songhai –, onde governou até sua morte, em 1492, sendo substituído por seu filho. Vale registrar que Ali era líder do partido antimuçulmano, assim como seu herdeiro. O sucessor de Ali, no entanto, perde o poder para um antigo general de seu pai: Mohammed. De origem Sarakole, Mohammed aliou-se ao partido muçulmano, que, conforme José Rivair Macedo: “... não impediu que adivinhos e sacerdotes animistas fizessem parte da corte e detivessem o privilégio de, só eles, se dirigirem diretamente ao governante, chamando-o pelo nome”.

Durante seu reinado, Songhai conheceu todo o seu poder. O novo senhor não se mostrou somente um grande general, mas também um notável administrador. Após ter assegurado sua vitória militar, dedicou-se também à administração de seus novos domínios. Para tanto, erigiu canais de irrigação e mandou

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construir embarcações para controlar e aprimorar o comércio, dividiu o império em quatro vice-reinos, organizou um sistema regular de arrecadação de impostos. Ainda mais, tomou medidas unificadoras quanto aos pesos e medidas, regulamentou a arrecadação de impostos e formou um exército regular profissional composto por “escravos e prisioneiros”. O império de Songhai deu início a uma organização estatal em sua plenitude, sendo possuidor de classes antagônicas e aparato administrativo.

O poder de Songhai se deu através da força, onde foram submetidos: o antigo reino de Mali, alguns estados Hauçás, entre outros. Mediante a animosidade dos povos conquistados e a uma nova ameaça, determinada pela disputa das minas de Tagaza, motivo principal da disputa com os sultões do Marrocos, o império Songhai não resiste à nova conjuntura advinda da tecnologia: as armas de fogo, adquiridas pelos marroquinos junto aos europeus. Causaram uma grande derrota ao exército de Songhai em 1591, que jamais se recuperaria.

Os Bantus

Descendo rumo ao sul do continente, encontramos os povos denominados de Bantus. Esses se caracterizaram por possuir línguas semelhantes, formas de organização e cultura parecidas. Os Bantus são um grupo etnolinguístico que engloba mais de 400 subgrupos étnicos diferentes. Teriam se dispersado a partir do atual território de Camarões, dirigindo-se por toda a África central, oriental e meridional. Em meio a outros, destacaram-se: o Kongo e o Ndongo, salvo engano, dentre os reinos do sul africano foram os que mais tiveram contato com o tráfico negreiro brasileiro.

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Provável área de origem e rota de migração da etnia banto.Fonte: http://abentumba.blogspot.com

Kongo

Um dos mais destacados e importantes “impérios” bantus talvez tenha sido o Kongo, fundado provavelmente por Ntinu-Wene, chefe Kikongo. Sua capital localizava-se em Mbanza Kongo, atual São Salvador, em Angola. O “soberano” do Kongo possuía o título de Manikongo – Senhor do Kongo. Ao mesmo cabia nomear os governadores das províncias, e esses juntavam aos seus nomes o título de Mani. Os reinos do Kongo e do Ndongo apresentavam uma economia de subsistência, baseada na agricultura, onde desenvolviam práticas agrícolas complexas.

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Estas atividades estavam alicerçadas na mão de obra feminina. Produziam objetos de ferro e cobre de alta qualidade, como também de marfim. Criavam galinhas, cachorros e cabritos. A moeda de circulação no território era o nzimbo, uma espécie de caramujo. O comércio do sal era monopólio do Manikongo. Na década de 80 do século XV (1482/3), Diogo Cão aporta no Rio Zaire, dando início à conquista da região. De imediato, formaram-se duas facções africanas: uma liderada por Afonso I, pró-Português, e outra contra, encabeçada por Mpanzu a Katima, antilusitano, pagão e meio-irmão de Afonso I. O primeiro saiu vitorioso da disputa e deu início à evangelização da terra, em aliança com os lusos.

Esta união levou o reino a participar do comércio negreiro. E, aos poucos, o Manikongo começa a perder o poder para os traficantes a serviço do rei português. A submissão não pode ser atribuída a todos os Manikongos, pois alguns resistiram a este domínio, como foi o caso de Antônio I, que enfrentou, em 1665, tropas europeias. No entanto, o mesmo foi derrotado, aprisionado e decapitado, o que levou a uma divisão do Kongo em três reinos e o mergulhou na desordem.

Ndongo

O reino Ndongo, salvo engano, foi fundado no início do século XVI, por um chefe Kibundo. A autoridade máxima do reino denominava-se Ngola. Esses se submeteram à soberania dos Manikongos até 1556, quando, com o apoio de alguns portugueses, derrotam os senhores africanos. De sua capital Cabassa, o Ngola vencedor Inene mandou uma embaixada a Portugal a fim de estabelecer uma política de aliança diretamente com a coroa, sem intermediários. Não obteve sucesso. A relação entre os lusos e os ndongos não foi pacífica; ela também enfrentou a resistência de alguns ngolas, que se sentiam ameaçados diante da presença e interesses dos lusos em sua região. Possuindo os europeus o apoio do Manikongo, entraram em conflito armado com o senhor do Ndongo em uma sangrenta guerra.

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As tratativas de paz com os portugueses foram realizadas já no século XVII, sob a liderança de Nzinga Mbundi (1582-1663), rainha Jinga. Esta sendo possuidora de grande prestígio entre os seus, tornou-se soberana após romper as regras de sucessão ao trono Ndongo. Usando de diplomacia e artimanhas, não hesitou em converter-se ao catolicismo para alcançar seus objetivos, conseguindo grandes vantagens na mesa de negociação com os portugueses. Nzinga foi uma figura marcante no Ndongo, e hoje serve de referência a vários grupos de ativistas negros no Brasil.

Rainha Nzinga Fonte: http://www.qualiafolk.com/2011/12/08/nzinga/

Todavia, assim como aconteceu com os denominados sudaneses, onde apartamos os três principais reinos, Gana, Mali e Songhai, não podemos deixar de dizer que vários outros povos se destacaram naquela região. Igualmente, o mesmo vai acontecer com os denominados Bantus, em que teremos uma multiplicidade de outros povos, de singular importância no mundo africano, dentre os quais os Xonas, os Zulus e o império Monomotapa, entre outros. Todos tiveram suas estruturas abaladas com a chegada dos europeus e sofreram os malefícios

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ocasionados pelo tráfico transatlântico, tendo esse modificado os alicerces do desenvolvimento dos povos bantus.

Grupos linguísticos da ÁfricaFonte: MELLO E SOUZA, Marina de. África e Brasil africano. São Paulo:

Ática, 2006, p. 20

O tráfico de escravos para o Brasil

A escravidão não pode ser debitada a um ou a outro povo. Desde os tempos mais remotos, seres humanos escravizaram outros seres humanos. A maior fonte de escravização sempre foram as guerras. Egípcios, romanos, gregos, mesopotâmicos, assim como outros, participaram ativamente dessa experiência.

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Prisioneiros de guerra eram postos a trabalhar ou eram vendidos conforme a situação. Contudo, não somente as guerras eram fontes de condução de homens e mulheres ao cativeiro, como também crimes, dívidas e falta de condição de autossustentar-se, dentre outros.

Assim também ocorreu no continente negro, onde várias etnias se utilizaram da servidão. Entretanto, a sujeição africana não pode jamais ser comparada à escravidão brasileira, pois na primeira a servidão era algo definido, os cativos tinham direitos e deveres, podendo ao longo do tempo livrar-se do cativeiro. Muitos cativos, tanto na África como no mundo islâmico, ocuparam cargos de destaque e prestígio junto a seus senhores.

Nas sociedades organizadas em torno dos chefes de linhagens, em aldeias ou federações de aldeias, podiam viver estrangeiros, capturados em guerras ou trocados por produtos como sal e cobre que eram subordinados a um senhor e podiam ser chamados de escravos. Eles podiam ser castigados ou vendidos e tinham de fazer o que seu senhor determinasse. Dava-se preferência a mulheres, que cultivavam a terra, preparavam os alimentos e tinham filhos. Os filhos das escravas com homens livres da família do seu senhor ou com ele mesmo geralmente não eram escravos. A princípio não tinham os mesmos direitos dos filhos de mulheres livres, trazendo a marca da escravidão, mas a cada geração esta ia diminuindo, até desaparecer. Ter escravas que aumentassem a capacidade de trabalho e de reprodução da família era uma forma de uma linhagem se fortalecer diante das outras.8

Na idade moderna, quando os laços de servidão começavam a se afrouxar na Europa, surpreendentemente vai haver o florescimento da escravidão nas Américas, com uma nova característica: a cor da pele, ou seja, baseadas em justificativas morais, religiosas e em uma suposta superioridade racial, os ameríndios e os africanos foram reduzidos ao cativeiro.

8 MELLO E SOUZA, Marina de. África e Brasil africano. São Paulo: Ática, 2006 p..48.

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Nesse novo contexto, coube a primazia do tráfico de africanos aos portugueses. A escalada dos lusos deu-se após a unificação do reino português.

A tomada de Ceuta em 1415, importante porto comercial africano que se encontrava nas mãos dos muçulmanos, serviu de marco ao início das conquistas, bem como o Tráfico Negreiro Transatlântico. Costeando a costa africana, os portugueses entraram em contato com as populações nativas do território e estabeleceram atividades mercantis, dentre estas, tendo como principal objeto de comércio o tráfico de seres humanos. Salvo engano, os primeiros trabalhadores escravizados trazidos ao Brasil teriam vindo do Congo (1532), importante região negra habitada por milhões de pessoas, que teve seu primeiro contato com Portugal através de Diogo Cão, em 1482.

O tráfico de escravos foi uma fonte de acumulação de capital para as nações europeias, pois era algo extremamente lucrativo. Embora a primazia tenha sido portuguesa, aos mesmos não podemos atribuir a exclusividade. Do vantajoso comércio de seres humanos participaram, também, holandeses, espanhóis, ingleses, franceses e outros, que ceifaram milhões de vidas africanas. O continente que outrora abastecera a Europa com metais preciosos – ouro – passou, a partir do século XVI, a municiar as Américas com trabalhadores escravizados.

Após serem capturados, os africanos eram levados aos portos litorâneos para serem transportados em embarcações, alcunhadas de navios negreiros ou “tumbeiros”. Esta alcunha devia-se ao elevado percentual de mortes, ocorridas durante a longa travessia transatlântica a que eram submetidos os filhos da África. O comércio de africanos reduzidos à escravidão era algo extremamente vantajoso, de cujos lucros participavam não somente os negreiros, mas também o estado e o clero.

No reinado de D. João II, o tráfico já estava organizado e regulamentado, submetendo-se no reinado seguinte à jurisdição da “Casa dos Escravos” de Lisboa, anexa à Casa da Mina, depois Casa da Índia. Desde essa época, a coroa

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tinha interferência direta na atividade, fazendo negócios por conta própria, além de cobrar rendas sobre ela. A Casa dos Escravos destinava o dízimo (10%) dos escravos ao rei e a vintena (5%) à Ordem de Cristo.9

O Brasil, ao longo de sua história, foi um dos grandes importadores de africanos escravizados. No que contava com o apoio explícito das autoridades nacionais, tanto no período colonial, como mais tarde durante o império. Em ambos os estágios, a mão de obra servil foi a base da economia brasileira.

O próprio governo brasileiro era um “governo que negociava com escravos, contra suas próprias leis e tratados”, escreveu o Ministro dos Estados Unidos no Rio, em 1846. “Os Ministros & Conselheiros de Estado & Senadores e Delegados nas Câmaras estão, sem dúvida, envolvidos neste tráfico tão ousado quanto horroroso...”.10

Devido às relações diplomáticas e econômicas existentes entre Inglaterra e Portugal, a primeira após também ter se dedicado e se beneficiado do tráfico internacional, partiu principalmente no século XIX a repressão do lucrativo comércio escravista. O governo luso foi pressionado a acabar com o mesmo, no menor espaço possível de tempo.

Durante a sua cruzada de quarenta anos contra o comércio de escravos no Brasil, a Grã-Bretanha negociou uma série de tratados com os governos do Brasil e Portugal entre 1810 e 1826, tendo sido todos eles recebidos com grande relutância por parte dos governantes brasileiros, que sempre tiveram consciência da amarga oposição da maioria de seus cidadãos mais poderosos a quaisquer concessões na questão dos escravos.11

9 MENDES JUNIOR, Antônio; RONCARI, Luiz; MARANHÃO, Ricardo. Brasil História. Texto e Contexto. São Paulo: Editora Brasiliense, 1979, vol. 1. p. 104.

10 CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravidão no Brasil: 1850-1888. Trad. Fernando de Castro Ferro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 31.

11 Ibidem, p. 31.

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Sobre o mesmo assunto, segue Conrad:

Em 1823, José Bonifácio de Andrada e Silva afirmou que 40 mil escravos haviam entrado no país durante os cinco ou seis anos anteriores sem causarem aumento significante na população de escravos, com a maioria deles morrendo “ou de miséria ou de desesperação...”. Um cirurgião britânico que vivia no Rio na década de 1840 afirmou que a população escrava brasileira estava “diminuindo e seria reduzida à insignificância, exceto pelos carregamentos de africanos que eram trazidos anualmente da costa oposta par substituir os mortos”. Os brasileiros, segundo ele pensava, não estavam dispostos “a submeterem-se a todas as despesas e riscos inerentes à infância e a adolescência, quando... podem ir à rua ao lado e obterem qualquer idade ou sexo de que precisem.”.12

A África, através do tráfico, foi palco do maior holocausto provocado pela humanidade, que foi a transformação de africanos em trabalhadores escravizados. Não sabemos ao certo quantos milhões de pessoas foram vítimas diretas ou indiretas do mesmo, porém não temos nada comparável com este. Segundo o historiador Walter Rodney, esta cifra pode beirar a 100 milhões de pessoas.13 O mesmo autor nos apresenta um quadro estimativo das populações entre 1650 a 1900 (em milhões de habitantes).

Estimativa em milhões 1650 1750 1850 1900África...... 100 100 100 120Europa.... 103 144 274 423Ásia......... 257 437 656 857

Os dados acima demonstram a estagnação da população africana, durante os séculos XVII, XVIII e XIX, ou seja,

12 CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravidão no Brasil: 1850-1888. Trad. Fernando de Castro Ferro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 35-36.

13 RODNEY, Walter. Como a Europa subdesenvolveu a África. Trad. Edgar Vales. Lisboa: Seara Nova, 1975. p. 56.

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durante o período de maior vigor do tráfico transatlântico. Estatisticamente, salvo engano, enquanto os demais continentes tiveram um significativo aumento populacional, a África ficou quase estagnada, em relação ao crescimento populacional, devido ao maior holocausto da história da humanidade: o tráfico de escravos negros.

A utilização de africanos como cativos já era algo consagrado mesmo antes da fixação dos portugueses no continente negro. Os árabes antes destes já utilizavam a mão de obra servil negra, assim como os romanos antes daqueles, entre outros. Todavia, nada se compara com ao êxodo de trabalhadores africanos para as colônias do Novo Mundo. O tráfico negreiro, assim como os horrores causados a suas vítimas, foi magistralmente narrado por Castro Alves, em seu épico “O navio negreiro”.

”Navio negreiro”, tela de Johann Moritz RugendasFonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Navio_negreiro

Sobre as condições de transporte nos “tumbeiros”, descreve um médico britânico contemporâneo:

Amontoados no convés, e obstruindo as passagens em ambos os lados, agachados, ou melhor, curvados, trezentos e sessenta e dois negros. Com doença, deficiência e miséria estampadas com imensidade de tal forma dolorosa que excedia qualquer poder de descrição. Um canto... um grupo de miseráveis estirados, muitos nos últimos estágios

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da exaustão e todos cobertos com pústulas de varíola. Observei que muitos deles tinham rastejado até o lugar em que a água havia sido servida, na esperança de conseguir um gole do líquido preciso; mas incapazes de retornarem aos seus lugares, jaziam prostrados ao redor da tina. Aqui e ali, em meio ao aglomerado, havia casos isolados da mesma doença repugnante em sua forma confluente ou pior, casos de extrema exaustão. Alguns em estado de completo estupor, outros olhando penosamente ao redor, apontando com os dedos para suas bocas crestadas... Em todos os lados, rostos esquálidos e encovados, tornados ainda mais hediondos pelas pálpebras intumescidas por uma violenta oftalmite da qual parecia sofrer a maioria; além disso havia figuras reduzidas a pele e osso, curvadas numa postura que originalmente foram forçadas a adotar pela falta de espaço, e que a debilidade e rigidez das juntas forçaram-nos a manter.14

Traficantes de várias nacionalidades usufruíram do tráfico transatlântico, em que trocavam suas mercadorias (ferro, cobre, armas, tecidos, vidros, fumo etc.) na costa africana, por prisioneiros que recebiam a designação de “peças”.

A peça representa um negro de 15 a 25 anos. Um negro de 8 a 15 anos não constitui uma peça inteira; são precisos três para fazer duas peças. As crianças com menos de 8 anos (moleques) e os adultos de 35 a 45 anos contam ½ peça. As crianças de peito seguem as mães e não contam. Os doentes e os que tem mais de 45 anos são julgados por árbitros. O escravo ideal é a peça de 1.82m, de 25 anos e sem defeitos físicos. Abaixo de 1.65m, uma peça perde muito de seu valor.15

O tráfico de africanos e a consequente escravização dos mesmos contaram também com o apoio da Igreja católica,

14 EQUIPE Cehila – popular. A História dos africanos na América Latina. Petrópolis: Vozes, 1988. p. 26.

15 MAURO, Frederic. Portugal, o Brasil e o Atlântico (1750-1670). Lisboa: Estampa, 1989, p. 243.

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que, juntamente com o Estado, se beneficiava economicamente do rendoso negócio, como relata Ronaldo Vaifas, citando uma correspondência de Luís Brandão, reitor do colégio de Luanda a Alonso Sandoval em 1611:

[...] nunca consideramos este tráfico ilícito. Os Padres do Brasil também não, e sempre houve, naquela província, padres eminentes pelo saber. Assim, tanto nós, como os padres do Brasil, compramos aqueles escravos sem escrúpulos... É verdade que, quando um negro é interrogado, ele sempre pretende que foi capturado por meios ilegítimos... É verdade também que, entre os escravos que se vendem em Angola nas feiras, há os que são legítimos... Mas estes não são numerosos e é impossível procurar estes poucos escravos ilegítimos entre os dez ou doze mil que partem cada ano do porto de Luanda.16

Outro fator que motivava o tráfico era o valor. Depois de capturados e entregues aos Pumbeiros pelos Sobas, os africanos poderiam ser comprados nas costas africanas, em 1846, por oito a dezoito dólares, e três ou quatro semanas depois poderiam ser vendidos em território brasileiro por trezentos dólares.17 Os homens, devido à sua força física, foram o alvo preferencial dos traficantes.

Calcula-se que para cada três ou quatro homens embar-cados para o Brasil tenha sido importada uma mulher, ocasio-nando, dessa forma, um desequilíbrio sexual entre a escravaria brasileira. Os trabalhadores e trabalhadoras escravizados, após serem transportados em condições desumanas, chegavam ao seu destino no Brasil e, via de regra, desembarcavam nos portos do Rio de Janeiro, Recife, Bahia, São Paulo, entre outros. A chega-da da mercadoria, como era chamada, foi descrita por Robert Conrad:

16 VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e escravidão: os letrados e a sociedade escravista no Brasil colonial. Petrópolis: Vozes, 1986. p. 16.

17 GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990. p. 88.

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Havia nesta cidade, o terrível costume de tão logo os negros desembarcassem nos portos vindos da costa africana, entravam na cidade através das principais vias públicas, não apenas carregados de inúmeras doenças, mas nus. E porque essa espécie de gente, se não lhe é dada maiores instruções, é como qualquer bruto selvagem, eles faziam tudo o que a natureza sugeria no meio da rua, onde ficavam sentados em algumas tábuas ali colocadas, causando não apenas a pior espécie de mau cheiro nessas ruas e cercanias, mas também oferecendo o espetáculo mais terrível que o olho humano pode testemunhar.18

Guardados em depósitos e examinados como animais, onde lhes eram vistoriados os dentes e os órgãos genitais, os escravos estavam prontos para serem vendidos aos seus “senhores”. Após o negócio, eram marcados a ferro com a marca de seu dono e recebiam um nome cristão de batismo. Era necessário cortar todo o vínculo ou lembrança de suas vidas livres na África, por isso, era-lhes dada uma nova identidade e religião. Os laços com o passado deveriam ser desfeitos para facilitar suas submissões.

O comércio de cativos era algo extremamente lucrativo para os comerciantes, pois estes nunca saíam com os navios sem mercadorias. Os negociantes de seres humanos partiam da Europa carregando objetos como: rum, fumo, ferro, tecidos, armas, vidro, cobre etc., rumo aos portos africanos. Lá, trocavam as mercadorias por prisioneiros, muitas vezes senhores da elite local – reis e homens da nobreza africana ou homens comuns, que agora serviriam como “mercadoria”.

De posse da “nova mercadoria”, os traficantes rumavam para os portos coloniais, onde as vendiam. Após transacionarem os seres humanos transformados em “peças”, as naus então retornavam aos portos de origem, carregadas de produtos coloniais como: melado, pau-brasil, cachaça, tabaco etc., fechando, assim, um rentável comércio transatlântico, que, salvo

18 CONRAD, Robert. Tumbeiros – O Tráfico de escravos para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 19.

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engano, teve seu apogeu no século XIX em terras brasileiras, último país a abolir a escravidão, até meados do mesmo século.

Europeus tomam a África

Em que pese o esgotamento e as consequências nefastas dos quais foram vítimas os povos africanos, diante do tráfico internacional de trabalhadores escravizados, longe ainda estava o território negro, ao longo do século XIX, de ter esgotado sua participação como continente vitimado por ações espoliativas, para a construção e a prosperidade dos atuais estados europeus, ditos civilizados.

O solo e o subsolo africanos eram um atrativo por demais poderosos à ganância imperialista das potências ocidentais, ávidas por aumentar seus domínios mundo a fora - o que hoje chamaríamos de globalização da economia. O expansionismo europeu pode muito bem ser traduzido através do pensamento de Cecil Rhodes19: “... essas estrelas... esses vastos mundos que nunca poderemos atingir.” E afirmava: “Se eu pudesse, anexaria os planetas.”.

E assim foi feito, pelo menos em relação ao continente africano, que pós-meados do século XIX, foi retalhado pelos países europeus, na denominada PARTILHA DA ÁFRICA onde os ocidentais do velho mundo fatiaram o continente negro como se esse fosse um bolo de aniversário, que cada um tentava pegar a maior parte e preferencialmente com maior recheio do bolo (riquezas) no Congresso de Berlim.

A conquista ou partilha da África (1884/1885) não se deu, contudo, sem resistência, em que pese a superioridade bélica dos Estados espoliadores. De todas as formas, tentaram os africanos resistir à investida colonialista: lutando de forma aberta, criando sociedades secretas, realizando pactos, ou ainda individualmente.

19 Conquistador, político inglês, organizador da anexação por parte da Grã-Bretanha de extenso território na África do Sul, dono de grande fortu-na conseguida através da exploração de diamantes e ouro na região do Transvaal

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Os povos negros não deram tréguas aos conquistadores que, aproveitando-se das rivalidades locais, faziam, muitas vezes, alianças com algumas etnias para subjugar determinadas regiões. Entretanto, nem mesmo nos “aliados” a confiança poderia ser total, pois mesmo entre ele, sempre houve focos de resistência.

A queda de Napoleão Bonaparte e a consequente “pacificação” da Europa abriram as portas à expansão das nações industrializadas ou em via de industrialização para ampliarem seus lucros. A nova ordem econômica mundial necessitava, entretanto, de uma acomodação de mercados, caso contrário o choque de interesses entre os novos países capitalistas que estavam emergindo acenderia novos confrontos. Nesse contexto geopolítico e econômico, surgiu o Congresso de Viena (1815).

As decisões tomadas neste Congresso influíram, de maneira significativa, nos destinos da África, colocando-a como um dos polos de suas deliberações, agora não mais para estimular o tráfico, mas pelo contrário, seguindo os novos rumos da economia. Principalmente sob a orientação da Inglaterra, começaram as tentativas para restringir o comércio negreiro transatlântico, proibindo sua consecução acima da linha do equador.

Ao continente negro seria atribuída uma nova função. O outrora exportador de seres humanos reduzidos ao cativeiro passaria agora a ser fornecedor de matérias-primas e riquezas naturais aos Estados “industrializados”. Para tanto, era necessário aos Estados colonialistas possuírem o controle das fontes produtivas, plantações, minas etc. À nova ordem econômica ocidental, que se tornaria hegemônica, não era mais interessante o êxodo de africanos, pois estes poderiam atender, em seu próprio território, as necessidades imperialistas ocidentais, servindo ao mundo “civilizado” como mão de obra barata e consumidores dos produtos manufaturados.

Nessa perspectiva, a África sofreu um processo de partilha, pelo qual os países mais industrializados abocanharam a maior parte do território africano – colônias. Como disse

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Leopoldo II: “[...] Os lucros coloniais não eram o glacê do bolo, mas o próprio bolo.”.

O território negro era uma das soluções ao imperialismo monopolista das nações europeias, mas, para tanto, seria necessário colonizar as terras africanas. Tal medida foi adotada até pela Inglaterra, país que, devido à sua tradição comercial, defendia o livre comércio. Grandes potências do século XIX, tais como França, Alemanha e Grã-Bretanha, lançaram-se na conquista de novas colônias nas terras africanas. O Continente passou a ser alvo de cobiça por parte dos países ocidentais, ávidos por conseguirem possessões como fonte de aumentar seus lucros na corrida imperialista deflagrada, assim como para solucionarem seus problemas sociais de desemprego e marginalização social.

As terras habitadas pelos negros já haviam mostrado seu potencial econômico, séculos atrás, quando abastecia de ouro a Europa. Sendo assim, sem nenhum escrúpulo, os europeus, através do congresso de Berlim, partilham a África entre si, sem levar em conta os interesses dos africanos. Assim ficou o território africano, após 1885, dividido através de áreas de dominação por países europeus. Era o colonialismo em África. Povos outrora soberanos agora teriam de curvar-se diante da supremacia bélica dos novos espoliadores. Acabaram com o tráfico, mas não com a exploração do território que mais uma vez viria a servir a seus interesses. E cujas consequências perduram até os dias atuais.

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Partilha do continente africano.Fonte: http://geografianovest.blogspot.com.br/2009/

07/partilha-da-africa.html

Brasil dependente da mão de obra negra

O século XVI marca a chegada dos europeus nas terras hoje denominadas de Brasil. Porém, antes da chegada dos mesmos, essa já se achava ocupada pelos brasis (brasileiros – indígenas). Calcula-se estimativamente que esta população estaria em torno de dois a cinco milhões de habitantes, quando da chegada dos portugueses. Os lusos que aqui abordaram estavam à procura de especiarias e metais preciosos. Porém, não encontrando tais objetos, deixaram quase abandonadas as terras brasileiras.

Temendo a presença de corsários holandeses, ingleses e franceses nas costas de seu novo território, Portugal buscou

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uma alternativa comercial para colonizar suas terras no novo mundo. Aproveitando-se de sua experiência na produção de açúcar, nas Ilhas da Madeira, os lusos resolvem transportar seus experimentos no cultivo da cana para o Brasil.

A empresa açucareira vai modificar radicalmente as relações sociais entre os portugueses e os brasis. Necessitando de obreiros que trabalhassem de forma permanente e não esporadicamente, como era o caso do escambo, para o novo empreendimento econômico, os galegos vão optar pela escravização indígena para resolver o problema de mão de obra no cultivo de cana-de-açúcar, fazendo desses os primeiros trabalhadores escravizados na nova terra.

Este procedimento por parte da metrópole vai provocar inúmeros conflitos com os brasis, e a consequente desestruturação destes povos do litoral. Diante do novo contexto, aos brasis restou a escravidão, o refúgio no interior ou o combate aos invasores, o que acarretou sua dizimação, haja vista hoje estarem reduzidos a uma população de aproximadamente 896.917, segundo o Censo IBGE 2010. Não conseguindo resolver o problema da mão de obra através da escravização dos autóctones, os galegos vão se voltar para o continente africano, onde já praticavam o tráfico de escravos.

A sociedade açucareira, que vai se estruturar principal-mente no Nordeste brasileiro, proporcionou a entrada em gran-de número dos primeiros trabalhadores africanos reduzidos à escravidão e com esses as bases de uma sociedade colonial assaz hierarquizada, apresentando, assim, uma estratificação social ex-tremamente rígida, na qual quase inexistia a mobilidade social.

Inegavelmente, os trabalhadores escravizados africanos ou seus descendentes foram os produtores diretos dos grandes ciclos econômicos brasileiros, durante o período colonial e imperial, açúcar, mineração e café. Porém, foi no último grande período da era imperial, já no século XIX, que eles tiveram o seu aproveitamento em maior escala até o fim do regime escravista, em 1888.

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O Negro e o Rio Grande do Sul

Se é verdade que no Brasil a maior concentração da escravaria se deu nas fazendas de café, deve-se também observar que não só nas grandes plantações do sudeste ou nordeste brasileiro (engenhos) foram utilizados os trabalhadores feitorizados. Eles também se fizeram presentes no Brasil meridional. No Rio Grande do Sul, uma das principais províncias escravistas do século XIX, a principal atividade econômica que deu entrada aos africanos e seus descendentes foi a charqueadora. Porém não só, mas também em todas as atividades produtivas da sociedade sulista, tanto no mundo rural como urbano.

Nas cidades, a escravaria também se fez presente, embora desfrutando em certos casos de uma liberdade relativa maior do que na zona rural. Nos grandes centros, as opções do elemento servil poderiam variar, dando ao escravizado algumas alternativas em relação ao cativeiro, no qual muitas vezes podiam atuar como escravos de aluguel ou ao ganho.

A importância da escravidão para a prosperidade do Rio Grande do Sul

O Sul do país foi uma área de constantes tensões entre portugueses e espanhóis, que disputavam o controle da região e, sobretudo, da Colônia de Sacramento, importante centro de contrabando lusitano na região do Prata. Fundada em 1680, pelos portugueses, essa ocupava posição estratégica na disputa pela região, devido à sua posição geopolítica, situada hoje no atual extremo sul do Uruguai. Desde sua fundação, Sacramento contou com a participação dos trabalhadores negros escravizados.

A presença dos africanos e seus descendentes na região foi destacada por Cláudio Moreira Bento, quando diz que, na fundação da mesma por D. Manoel Lobo, sua expedição era constituída, entre outros elementos, por 200 militares, 3 padres, 60 negros, dos quais 41 escravos do comandante, 6 mulheres índias e uma branca e índios. Os negros representavam mais de 20% do total da expedição.

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A contribuição dos africanos e seus descendentes pode ser comprovada não só em Sacramento, mas também na fundação do Rio Grande lusitano, onde tornaram-se figuras marcantes nas diversas atividades produtivas, realizadas nas terras sul-rio-grandenses, como é sugerido no levantamento feito pelo tenente Córdova em 1780, no momento em que começava a instalação das grandes charqueadas.

População RS – 1780

Freguesias Brancos Índios Pretos TotalMadre de Deus 871 96 545 1.512Rio Grande 1.643 182 596 2.421Estreito 880 97 277 1.254Mostardas 360 40 291 591Viamão 1.028 114 749 1.891Conceição do Arroio 234 25 158 417Aldeia dos Anjos 210 1.890 255 2.355Vacaria 291 32 248 571Triunfo 637 - 640 1.277Taquari 580 - 109 689Santo Amaro 512 - 208 720Rio Pardo 1.317 438 619 2.374Cachoeira 42 383 237 662Totais 9.433 3.388 5.102 17.923

Fonte: CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. 2. ed.

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 41.

As charqueadas

Charqueada São JoãoFonte: http://regionalismogaucho.weebly.com/o-charque.html

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Ao longo dos anos, a entrada de trabalhadores negros reduzidos à escravidão teve um aumento significativo, principalmente após a criação do polo charqueador pelotense, a partir de 1780, que proporcionou em grande escala a entrada dos trabalhadores escravizados negros na região. Tanto em números absolutos quanto em percentual, como pode ser constatado pelo Censo de 1814.

Censo da População do Rio Grande do Sul por zonas, segundo a condição da população presente em 1814.

Freguesia Brancos Indíg. Livres Escravos R.Nasc. TotalViamão 1.545 11 188 908 160 2.812Santo Antonio da Patrulha

1.706 8 330 961 98 3.103

Conceição do Arroio 837 19 180 538 74 1.648

S. Luiz de Mostarda 723 5 68 281 74 1.151

N.S.dos Anjos (aldeia) 1.292 256 233 716 156 2.653

Porto Alegre (cidade) 2.746 34 588 2.312 431 6.111

S. Bom Jesus de Triunfo (vila)

1.760 55 240 1.208 193 3.450

S. José de Taquari (fazenda)

1.092 42 67 433 80 1.714

Rio Pardo (cidade) 5.931 818 969 2.429 298 10.445

Cachoeira (vila) 4.576 425 398 2.622 204 8.225

Piratini (vila) 1.439 182 335 1.535 182 3.673Pelotas 712 105 232 1.226 144 2.419Rio Grande (cidade) 2.047 38 160 1.119 226 3.590

Missões (povos) 824 6.395 77 252 403 7.951

Total das províncias 32.300 8.655 5.399 20.611 3.691 70.656

Fonte: CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. 2. ed.

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 43.

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Sobre a presença escrava no Rio grande do Sul, afirma Mário Maestri:

O cativo africano foi introduzido no Sul antes mesmo dos fundadores da capitania de São Pedro. Em 1874, com 21,3% de cativos, o Rio grande era terceira província brasileira em números relativos de cativos, após o Rio de Janeiros (39,7%) e o Espírito Santo (27,6%). Até 1884, a província sulina constituiu uma das principais regiões escravistas do Brasil em quantidade de cativos, após Bahia, Maranhão, Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. Os dados demográficos sugerem que, no mínimo, a população regional escravizada expandiu-se, em número absoluto até os anos de 1870.20

Presentes no território gaúcho desde a sua fundação pelos portugueses, os trabalhadores negros escravizados foram de essencial importância para o desenvolvimento econômico e cultural da antiga Província de São Pedro. Fato este que contraria parte da historiografia, que por muito tempo sonegou ou menosprezou sua participação na formação social sul-rio-grandense, principalmente nas lidas campeiras.

A liberdade no Rio Grande do Sul é uma condição anterior a tudo, tão necessária ao homem como o sol que lhe dá vida; para não perdê-la, é capaz dos maiores heroísmos. Por isso, dentro dos acampamentos, conserva aquele altivo sentimento que tanto o distingue.21

Ainda sobre o assunto, segue o autor:

É a democracia rio-grandense das estâncias que influi sobre a disciplina e não esta sobre aquela. No tecido social rio-

20 MAESTRI, Mário. Deus é grande, o mato é maior! História trabalho e resistên-cia dos trabalhadores escravizados no Rio Grande do Sul. Passo Fundo: EDUPF, 2002. p. 88 – 89.

21 GOULART, Jorge Salis. A formação do Rio Grande do Sul. 4. ed. Porto Alegre: Martins Livreiro; Caxias do Sul: EDUCS, 1985, p. 27.

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grandense sempre foram as estâncias as verdadeiras células. Os estancieiros, suas famílias e seus peões construíram uma unidade que tinha alguma coisa do clã céltico ou da organização patriarcal sem se confundir com nenhum deles.22

Com base em depoimentos como o de Jorge Salis Goulart entre outros, criou-se o mito da democracia pastoril com uma vida livre sem opressão, baseada na mão de obra livre, na qual o “gaúcho” trabalhava pelo prazer e pelos laços de amizade que o ligava ao seu estancieiro. Segundo essa visão historiográfica, o peão era quase como um membro da família. Entretanto, as estâncias nunca foram um exemplo de liberdade, como tentam salientar alguns ideólogos do tradicionalismo e da historiografia oficial. Muito antes pelo contrário, a servidão e a coerção sempre estiveram presentes dentro desses estabelecimentos. Haja vista o fato de grande parte da peonada sul-rio-grandense ser composta de escravos ou negros livres.

Em 7 de março de 1978, Décio Freitas afirmava em artigo que “o trabalho social da produção pecuária era desempenhado por gente livre só esporadicamente aparecia o escravo”. Apoiados em dados demográficos de municípios pastoris, Sergio da Costa Franco contraditou o então historiador marxista, propondo, com sensibilidade, que, “muito provavelmente”, o trabalho cativo tivesse sido a base da produção pastoril sulina. Em 10 de março, entrando no debate, Paulo Xavier, do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, retrucou a Fernando Henrique Cardoso, que também defendera a pouca importância do negro escravizado nas fazendas criatórias em Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. Paulo Xavier citou dados de 1859, sobre 391 estâncias no município de Alegrete, com rebanho de 772.232 vacuns, cuidados por 124 capatazes, 159 peões livres e 527 escravos, com uma produção anual de 96.529 vacuns, 6.039 muares e 32.558 borregos. Uma interpretação rápida desses dados sugere a maioria absoluta de trabalhadores escravizados nas fazendas do município.23

22 Ibidem, p. 27-28.23 MAESTRI, Mário. Deus é grande mas o mato é maior! História, trabalho e resis-

tência dos trabalhadores escravizados no Rio Grande do Sul. Passo Fundo: EDUPF, 2002, p. 90.

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O exemplo acima comprova a importância e a presença dos negros escravizados também nas atividades campeiras. Fato este que destitui a ideologia da denominada democracia racial gaúcha. Todavia, se existiram “dúvidas” em relação à participação dos africanos e seus descendentes nas lides do campo, o mesmo não se deu em relação às charqueadas. Estas, sem sombra de dúvida, sempre tiveram sua produção vinculada à mão de obra servil, fato irrefutável até mesmo por aqueles que tentam menosprezar a importância dos trabalhadores negros escravizados no Brasil Meridional.

Foi nos estabelecimentos saladeiris que ocorreu, no Rio Grande do Sul, a maior concentração de trabalhadores escravizados, pois, devido às duras condições de trabalho, suas atividades eram refutadas pelos homens livres, obrigando seus proprietários a utilizar a mão de obra escrava. O grande número de cativos pode ser exemplificado através dos testamentos dos charqueadores, chegando alguns deles a possuir mais de uma centena de negros escravizados, como foi o caso de Eugenia Ferreira da Conceição, com 179; Antônio José da Silva Maia, com 116; Barão de Buthuy, 142 e outros.

Nas charqueadas, o principal produto a ser fabricado era o charque, sendo esse o “carro chefe” das exportações do Rio Grande do Sul. Sobre a importância econômica desse produto, assim como dos estabelecimentos produtores, coloca Alvarino Marques:

O exame de participação dos produtos animais no valor das exportações feitas no Rio Grande do Sul em 1861 a 1890 mostra que o charque em 1861, contribuía com 37,7% do valor total do que vendíamos para o exterior e os couros com 37,2% desse mesmo valor. Em 1890, o charque figurava com 30,3% e os couros com 24,4% do que valiam nossas exportações. Portanto em 1861, 74,9% do que vendíamos para fora era representado por produtos das charqueadas. Em 1890, 54,7% desses produtos tinham a mesma origem [...].24

24 MARQUES, Alvarino da Fontoura. Evolução das charqueadas rio-grandenses. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1990. p. 96-97.

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Pelotas foi o grande centro escravista, assim como principal polo econômico do Rio Grande do Sul no século XIX, tendo sua parcimônia baseada nos produtos fabricados nas charqueadas, sendo que as mesmas funcionaram tendo como base a mão de obra cativa. Nesse sentido, podemos afirmar serem os afrodescendentes os responsáveis diretos pela prosperidade e pujança da economia gaúcha exportadora dessa centelha. O que desmitifica também alguns conceitos de sonegação da importância da mão de obra escrava no Brasil Meridional.

Tratamento dispensado aos escravos gaúchos

As relações entre negro e senhor eram iguais, senão piores que as verificadas no resto do Brasil escravocrata, o que levou o viajante Nicolau Dreys, a escrever: “uma charqueada bem administrada é um estabelecimento penitenciário”.25

Criou-se no Rio Grande do Sul um artifício de desvalorização da mão de obra escrava, através de vários mitos e inverdades históricas. Nesse processo, verifica-se também “folcloricamente” a apologia do escravo bem tratado, ou seja, de uma escravidão mais benigna e humana do que a existente no restante do Império.

O modo pelo qual a escravaria era tratada na antiga província de São Pedro pode ser muito bem ilustrado pelo viajante francês August de Saint-Hilaire, contemporâneo da escravidão gaúcha, no século XIX. Esse descreve o dia de um dos denominados “meninos de parede” ... O depoimento do viajante se torna mais expressivo ainda devido ao fato de o autor possuir uma postura não muito simpática aos negros:

Nas charqueadas os negros são tratados com dureza. O Sr. Chaves, tido como um dos charqueadores mais humanos só fala aos seus escravos com exagerada severidade, no

25 ASSUMPÇÃO, Jorge Euzébio. Pelotas: escravidão e charqueadas (1780/1888), Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. p. 200.

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que é imitado por sua mulher; os escravos parecem tremer diante de seus donos. Há sempre na sala um pequeno negro de 10 a 12 anos, cuja função é ir chamar os outros escravos, servir água e prestar pequenos serviços caseiros. Não conheço criatura mais infeliz que essa criança. Nunca se assenta, jamais sorri, em tempo algum brinca! Passa a vida tristemente encostado à parede e é frequentemente maltratado pelos filhos do dono. à noite chega-lhe o sono e quando não há ninguém na sala, cai de joelhos para poder dormir. Não é esta casa a única que usa esse impiedoso sistema: ele é freqüente em outras26.

Paradoxalmente, o estado que se orgulha de ser o mais europeu do país, e de não ter tido aqui significativamente a mão de obra negra escravizada, como em outras províncias, possui como vulto central de sua lenda mais popular a figura de um menino negro, na fábula conhecida como “O negrinho do pastoreio”, escrita por Simões Lopes Neto, descendente do próspero escravista charqueador João Simões Lopes, proprietário da Fazenda da Graça.

Talvez por ter nascido em um estabelecimento charqueador e ter visto os horrores da escravidão é que Simões Lopes Neto tenha se inspirado para escrever, salvo engano, a mais conhecida e popular lenda gauchesca, que retrata, juntamente com os depoimentos dos viajantes, as agruras dos africanos e seus descendentes no Rio Grande do Sul. Dando-nos embasamento para poder afirmar que o tratamento dispensado aos escravos no sul do Brasil não foi nada brando como alegam alguns, muito antes pelo contrário, principalmente nos estabelecimentos charqueadores, fonte de concentração da escravaria gaúcha. E que a chamada democracia racial não passa de uma obra de ficção, ou de loucos delírios daqueles que querem idealizar e romantizar o passado sulista.

26 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul (1820- 1821). Rio de Janeiro: Ariel, 1935, p. 73.

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Resistência: fugas e quilombos

O ferro em brasa foi um instrumento freqüentemente usado não só para punir o escravo mas também para marcá-lo, geralmente com as iniciais do senhor, de forma a discriminar sua propriedade; sendo comum nos anúncios de escravos fugidos; a menção destas marcas inclusive em ‘moleques’ de menos de 15 anos de idade como sinal de identificação. Em 1741 o Alvará de 03 de março, já referido, mandava marcar um F na espádua de escravos aquilombados. Abolida pela constituição de 1824 a marca ferro continuou, contudo, sendo utilizada pela justiça privada do senhor. (LIMA, Lana Lage da Gama)

A resistência dos trabalhadores escravizados parece ser tão antiga quanto a escravidão. Desde seu aprisionamento em terras africanas, os cativos tentaram de todas as maneiras conquistar a sua liberdade. A luta contra o trabalho coercitivo encontra na fuga a sua reação mais perceptível.

As fugas, além de trazerem um prejuízo econômico para os senhores, poderiam também proporcionar a formação de quilombos, sendo que estes trariam consigo mais prejuízos e desgastes à ordem vigente. Por Quilombos ou Mocambo entende-se “toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte desprovida, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles” (Conselho Ultramarino 02/12/1740).

A primeira referência sobre a existência de quilombos em território gaúcho data do século XVIII, segundo Mário Maestri:

A primeira referência conhecida a quilombos no Rio Grande encontra-se nas atas da Câmara de Porto Alegre. Na sessão de 31.02.1789, podemos ler “Nesta Vereança se proveu a Estância Dutra para Capitão do Mato do Distrito da Freguesia desta vila e se passou Edital sobre as rondas que o mesmo devia fazer de noite”. Os escravos começam a ser um problema para a vila. Essa referência é seguida por uma outra da mesma câmara, de 18 de abril do mesmo ano “Nesta Vereança se deferiu a vários requerimentos e

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se mandou fazer uma marca F para marcar os escravos apanhados em quilombo, e assim mais um tronco para o capitão do mato segurar os escravos que forem apanhados em quilombos para neles se fazer à execução que a lei determina antes de entrar na cadeia”.27

As décadas de 1830 e 1840 parecem ter facilitado a rebeldia dos escravizados, devido ao conflito interno que sofreu a província com a Revolução Farroupilha, quando os cativos, aproveitando-se do contexto e o consequente afrouxamento da vigilância ao trabalho coercitivo, devido ao estado de beligerância na província, passaram a tentar com maior frequência obter sua liberdade, através das fugas.

Foi nesse período da guerra civil que encontramos as primeiras referências, salvo engano, ao principal quilombo gaúcho, que foi o de Manuel Padeiro, embora não se saiba exatamente quando este teve sua origem. Mesmo que os quilombos gaúchos não tivessem os mesmos números populacionais de outros, como o de Palmares, ou de alguns outros situados em Minas Gerais e na Bahia, os agrupamentos de escravos fugitivos no sul do Império não deixaram de ser menos preocupantes para as elites locais do que em outras paragens.

Neste sentido, destacou-se o de Manoel Padeiro. Localizado na Serra dos Tapes, na antiga São Francisco de Paula, atual cidade de Pelotas, na década de 30 do século XIX, quando apavorou e amedrontou esta região. O mocambo apresentava uma estrutura militar, sendo Manoel Padeiro general; João, juiz de paz; Alexandre Moçambique, capitão etc. Esta formação dá a ideia do caráter belicoso do agrupamento. Esse, diferente de outros, era nômade e vivia de roubos, assassinatos e da pilhagem junto à população local, de onde retiravam sua sobrevivência. Após os ataques, era comum os quilombolas atearem fogo às moradias assaltadas.

27 MAESTRI FILHO, Mário José. O escravo no Rio Grande do Sul. A charqueada e a gênese do escravismo gaúcho. Porto Alegre: Escola Superior de São Lourenço de Brindes, 1984, p. 127.

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A violência do grupo de Manoel Padeiro gerou reações das autoridades locais, que ofereceram uma recompensa de 400 mil réis pelo líder quilombola e de 200 mil réis por cada um dos outros participantes do grupo. Sobre as quantias citadas, afirma Mário Maestri: “Na época, somas avultadíssimas. Nos anos 1840, comprava-se, em Pelotas, ‘uma morada de casa térrea’ por quinhentos mil réis”.28

Todavia, os planos de Padeiro não se limitavam somente a aterrorizar a população da serra dos Tapes. O mesmo tinha a intenção de invadir a Vila, “principiando pela Costa de Pelotas” e sublevando toda a escravaria das Charqueadas. Entretanto, assim como tantos outros, o sonho insurrecional de Manoel Padeiro também foi abortado, pois seu quilombo foi desbaratado antes de conseguir colocar em prática seu plano de invasão.

Os cativos tentavam, via fuga, conquistar a liberdade. O objetivo poderia ser o aquilombamento, ou o simples refúgio para as cidades ou o estrangeiro, onde procuravam viver como forros. O grande contingente de negros livres, libertos e escravizados nos centros urbanos permitia que os fugitivos, muitas vezes, apesar do aparato repressivo, pudessem viver como libertos.

Outro aspecto importante, em relação às fugas e também motivo de preocupação para as elites locais e nacionais, era a possível evasão dos cativos para os estados fronteiriços, principalmente o Uruguai, onde poderiam engrossar o exército de Rivera. Quando não raro, esse acolhia os melhores cativos e devolvia os demais para Bento Gonçalves da Silva. A fuga de escravos para o outro lado da fronteira parece ter sido muito maior do que se imagina, como sugere o estudo do historiador Silmei Petiz, que analisou as fugas escravas na Província de São Pedro entre os anos de 1815-1851.29

28 MAESTRI, Mário. Deus é grande mas o mato é maior! História, trabalho e resis-tência dos trabalhadores escravizados no Rio Grande do Sul. Passo Fundo: EDUPF, 2002, p. 52.

29 PETIZ, Silmei de Santa’Ana. Buscando a liberdade: as fugas de escravos da província de São Pedro para o além fronteira (1815-1851). Passo Fundo: EDUPF, 2006.

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Insurreições

Outra forma de resistência igualmente desprezada pela historiografia tradicional sul-rio-grandense, além dos quilombos, foram as insurreições. Essas muito mais temidas pelos senhores, pois colocavam em jogo suas próprias vidas, principalmente após a revolta do Haiti (1804). As pugnas pela independência do Haiti resultaram em uma luta racial e, por consequência, em um banho de sangue proporcionado pela escravaria, que pelejava por sua liberdade.

Liderados por Toussaint-Louverture, a população negra escrava não teve clemência de seus antigos algozes e eliminou grande parte dos habitantes brancos da ilha, promovendo a maior revolta vitoriosa de escravos dos tempos modernos. Os revoltosos também aboliram a escravidão em 1794, antes mesmo de proclamarem a República. O Haiti foi o primeiro país negro e segundo americano a adquirir a independência, no período colonial, só sendo antecedido pelos Estados Unidos.

Os fatos ocorridos no transcurso da revolução negra haitiana tiveram grande repercussão no Brasil, pois temiam os escravistas uma repetição de tais eventos em solo nacional, devido à grande quantidade de africanos e seus descendentes aqui escravizados. Haja vista os censos de 1817/18.

Estimativas da população brasileira

1798 1817/18Brancos 1.010.000 1.043.000Livres de cor 406.000 585.500Total de livres, exceptuando índios 1.416.000 1.628.500Índios 250.000 259.400Total de Livres 1.666.000 1.887.900Escravos mulatos 221.000 202.000Escravos negros 1.361.000 1.728.000Total de escravos 1.582.000 1.930.000População total 3.248.000 3.817.900

Fonte: Agostinho, Marques Perdigão Malheiro, A escravidão no Brasil (2 vols.; 2ª edição; São Paulo, 1944), p. 197-198.

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Estimulados pelos acontecimentos ocorridos no Haiti, a escravaria brasileira se lançou em uma série de insurreições, sendo a mais conhecida a baiana, conhecida como revolta dos Malês. Esse foi o maior levante urbano promovido por escravos ocorrido no Brasil, onde os cativos em sua grande parte islamizados organizaram um movimento de libertação, o que ocasionou grande medo entre as elites, que já viviam em um verdadeiro pânico devido às constantes rebeliões promovidas pela escravaria, principalmente na província da Bahia.

No entanto, as insurreições não se limitaram à província baiana; elas também chegaram ao Rio Grande do Sul. As revoltas, as insurreições e insubordinações refletem a não acomodação dos negros escravizados no território gaúcho. Embora os movimentos de rebelião e insurreição fossem mais difíceis de serem organizados que a simples fuga, aquelas não deixaram de fazer parte da resistência escrava gaúcha. Nota-se, porém, ao analisarmos tais movimentos, que os mesmos não ficaram restritos ao elemento servil: deles participaram estrangeiros e negros libertos.

Em 25 de fevereiro de 1863, o Presidente da Província envia ao Chefe de Polícia o Reservado Nº 13. Acuso recebido o ofício dessa repartição datado de ontem, ao qual acompanha cópia da comunicação do delegado de Polícia de Pelotas sobre as seduções empregadas pelo preto liberto Sebastião Maria, que se acha preso para levar a efeito a insurreição de grande número de escravos que naquele termo existem. Sendo este um assunto digno de maior atenção das autoridades, convém que se recomende ao mesmo Delegado incessante vigilância a fim de prevenir os efeitos que por ventura tivessem provocado no animo dos escravos as aliciações [...].30

Tal fato pode ser entendido, como uma provável consciência racial dos africanos ou descendentes libertos.

30 PICOLLO, Helga Iracema. A resistência escrava no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EDIUFRGS, 1982, p. 34-35.

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Estes não sendo escravos, por que deveriam arriscar-se em tais movimentos? A consciência das insurreições manifesta-se, provavelmente, não só na luta pela liberdade, mas também na extrapolação destas reivindicações. Salvo engano, foi na região hoje denominada de Pelotas que ocorreu o maior número de movimentos contra a ordem escravista, o que não causa espanto, devido ao fato de possuir a antiga São Francisco de Paula o maior número proporcional de escravos na província.

Com o subtítulo de insurreições, levantes, insubordina-ções, a historiadora Helga Piccolo fez o seguinte levantamento:

Ano e local (insurreições)

1803 – Insurreição na Feitoria do Linho Cânhamo;

1822 – Insurreição na Feitoria do Linho Cânhamo;

1833 – A Câmara Municipal de Pelotas receia o aliciamento de escravos por parte dos Farroupilhas;

1834 – Denúncia da Câmara de Jaguarão que Riveira havia mandado emissários seus para promoverem uma sublevação escrava;

1838 – Tentativa de Insurreição em Porto Alegre;

1841 – Tentativa de Insurreição na província;

1848 – Plano de Insurreição dos escravos minas em Pelotas;

1854 – Boatos de um levante escravo em Rio Grande;

1858 – Tentativa de insurreição liderada pelo preto Oriental Francisco Antônio Dias em Santana do Livramento;

1859 – Descoberta de um plano de insurreição dos escravos em Rio Pardo;

1859 – Descoberta de um plano de insurreição em Capivari;

1859 – Descoberta de um plano de insurreição em Encruzilhada;

1859 – Descoberta de um plano de insurreição em Piratini;

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1863 – Indícios de insubordinação nas fazendas de Antônio José de Moraes em Taquary;

1863 – Tentativa de insurreição em Pelotas liderada pelo liberto Sebastião Maria;

1863 – Tentativa de insurreição na Aldeia dos Anjos;

1864 – Descoberta de insurreição em Taquary;

1864 – Descoberta de insurreição em Porto Alegre;

1865 – Várias tentativas de insurreições de escravos;

1868 – Insurreição em Porto Alegre;

1870 – Levante na charqueada de Joaquim Rasgado;

1873 – Insurreição em Pelotas;

1881 – Descoberta de uma revolta escrava em Pelotas;

1885 – Rebelião de escravos da Fazenda São João de propriedade de Manoel Vieira Vargas em Pelotas;

1887 – Insubordinação de libertos em Pelotas na charqueada de Julio Brutos de Almeida.

O crime, o roubo, o corpo mole, tudo fazia parte da resistência escrava. A oposição à escravatura fazia parte do dia a dia do cativo, que, explícita ou implicitamente, até 1888 lutou contra o cativeiro. Das savanas africanas, passando pelos porões putrefatos dos tumbeiros e chegando até as senzalas, os africanos e seus descendentes não conheceram outro sonho senão o da liberdade. Para tanto, não titubearam, muitas vezes, em justiçar seus algozes, em suas lutas contra o cativeiro.

O negro no campo de batalha

As elites brasileiras, sempre que se fez necessário, não se furtaram em utilizar os trabalhadores escravizados também nos campos de batalha, em defesa de seus interesses. Salvo engano, não existiu nenhum grande confronto armado no Brasil em que

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não houvesse a participação do elemento negro, lutando ao lado da autoridade constituída ou contra essa.

Provavelmente, a saga guerreira dos africanos e seus descendentes no Brasil tenha começado com a defesa de pequenos quilombos, passando por Palmares, terço dos Henriques, seguindo com as lutas pela independência, nas revoltas provinciais e por aí afora. Acontecendo o mesmo nos confrontos internacionais, em que afro-brasileiros se fizeram presentes e nos confrontos fronteiriços, principalmente no Brasil Meridional e a Guerra do Paraguai, sendo esse um dos marcos do II Império, no qual a elite brasileira, com o objetivo de proteger seus pares, alistava escravos para combaterem em suas fileiras.

Também no extremo sul do Brasil, a presença guerreira do negro se fez presente. Sobre esse assunto, afirmou Cláudio Moreira Bento: “Acreditamos que a maior contribuição do africano negro e descendentes no Rio Grande tenha sido no campo militar, como excelentes combatentes de Infantaria e cavalaria”. Dentre os vários conflitos armados no território em que os negros tiveram participação relevante, parece-nos ser a chamada Revolução Farroupilha o mais emblemático deles, devido ao desfecho inesperado para os afrodescendentes.

Após combaterem tanto ao lado das tropas imperiais como republicanas, os negros farroupilhas oriundos do cativeiro, conhecidos hoje como Lanceiros Negros, foram atraiçoados pelos líderes farroupilhas, na chamada Traição de Porongos, na qual Davi Canabarro, em vil ato de perfídia, desarmou a infantaria negra, para que os mesmos fossem atacados, na madrugada de 14 de novembro de 1844, pelos soldados do império brasileiro.

Em tratativas firmadas entre o Barão de Caxias e David Canabarro, ficou traçada a sorte dos lanceiros: Caxias ordenou que o Coronel Francisco Pedro de Abreu atacasse o acampamento farroupilha na data combinada, e que o mesmo não temesse o resultado do confronto, pois a infantaria farroupilha, composta por escravos, estaria desarmada. Por ordem de Canabarro, conforme o “Acordo Secreto” entre ambos. Desta forma, com o

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auxílio do chefe farroupilha, a infantaria negra foi covardemente massacrada. Como prova inequívoca de que o alvo eram somente os negros, escreveu Caxias a Abreu: “No conflito poupe o sangue brasileiro quando puder, particularmente de gente branca da província ou índios, pois bem sabes que esta pobre gente ainda nos pode ser útil no futuro”.31

A ordem de Caxias não deixa dúvidas: os lanceiros, somente eles, deveriam ser massacrados. Este ato covarde dos farroupilhas e imperiais contra os combatentes negros denominou-se de Traição de Porongos. Embora seja simbólico, Porongos foi apenas mais um dos vários massacres aos quais foram submetidos os africanos e seus descendentes no Brasil, que para conseguir sua liberdade não hesitaram em ir aos campos de batalha, para conseguirem suas alforrias, que nem sempre obtiveram. Haja vista “A traição de Porongos”!

No entanto, o mesmo negro que servia ao exército imperial e republicano gaúcho, para se ver livre do cativeiro, não titubeou em fazer o mesmo nos exércitos dos países vizinhos. Vários escravos em fuga ganharam a fronteira e foram servir aos caudilhos platinos para garantir sua liberdade, haja vista o grande número de negros no exército do Uruguai.

Com base na documentação, podemos afirmar, salvo engano, que para os africanos e seus descendentes a liberdade valia mais do que a bandeira pela qual lutavam, pois em todos os casos o engajamento se dava devido a promessas de liberdade. Para tanto, “alugavam” seu braço guerreiro a quem lhes garantisse ou prometesse uma vida longe do cativeiro.

A abolição

A abolição não pode ser encarada como um fato isolado ou fruto do desejo pessoal de uma única pessoa. Ela deve ser contextualizada, tanto em nível externo através das pressões

31 ASSUMPÇÃO, Jorge Euzébio. História & Luta de classes. Escravidão Trabalho e Resistência, Rio de Janeiro, ano 2, nº3, p. 68.

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internacionais, principalmente da Inglaterra, como também a fatores internos, tais como a resistência escrava e os movimentos emancipacionistas e abolicionistas. A elite brasileira, dependente da mão de obra escrava, sem ter como reagir às pressões políticas externas, viu-se obrigada a submeter-se às mesmas, ao menos por meio de leis.

Todavia, estes códigos que obedeciam aos interesses externos, na prática, não surtiram efeito, pois iam contra os interesses das elites nacionais. Tão importante quanto as pressões externas, foram os movimentos internos, com a participação da escravaria, em sua resistência ao modo de produção escravista.

Tentando manter ao máximo o sistema servil, as elites usaram de todos os subterfúgios para manter a escravidão. No intuito de frear as várias formas de resistências escravas, principalmente na década de 1880, os escravistas sulinos vão se utilizar das cartas de alforrias, como meio de manter ou sustentar o máximo possível o que restava ainda da servidão negra.

A alforria servia aos senhores para os seguintes objetivos principais: permitia-lhes livrar-se de escravos imprestáveis; concedida como prêmio; estimulava a fidelidade de certo tipo de escravo a exemplo dos domésticos, diante dos quais os senhores eram mais vulneráveis. Constituía uma fonte de renda suplementar derivado do pecúlio dos escravos. Como é evidente a alforria foi um fator de decréscimo da população escrava. Mas sua prática variou na História de cada regime escravista, conforme necessidades endógenas e circunstanciais.32

No intuito de amenizar as “rebeliões” escravas, os senhores vão se utilizar da concessão das alforrias, mediante certas condições. Tal recurso utilizado pela elite escravista tentava subjugar de maneira não violenta a escravaria, que a todo o momento se revoltava em busca de sua liberdade. Este expediente poderia, muitas vezes, ser mais eficiente que o chicote, pois o

32 GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 5. ed. São Paulo: Ática, 1988, p. 352-353.

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mesmo provocava medo, revolta e tinha seu efeito por tempo determinado, enquanto a provável liberdade apresentava efeito contrário: mantinha o escravo submisso, calmo e principalmente fiel e grato a seu “benfeitor”. Sendo assim, os cativos bem comportados e obedientes poderiam ganhar esta dádiva de seus humanitários senhores, e servir de exemplo para os demais.

Com o fim do sistema se aproximando a longos passos, a elite escravista ainda tenta prorrogar a escravidão através das cartas de emancipações com cláusula de prestação de serviço. Sobre o movimento de alforriamento de 1884, no Rio Grande do Sul, disse Robert Conrad:

O movimento libertador, que alcançou um auge de intensidade no Rio Grande do Sul em agosto e setembro de 1884, não foi portanto, tão claramente idealista ou até tão completo quanto os do Ceará e do Amazonas. Numa questão de meses, dois terços dos sessenta mil escravos dessa província do sul receberam a condição de livres, mas a verdade é que a maioria foi obrigada a continuar dando seu trabalho, sem pagamento a seus antigos senhores durante de um a sete anos. O movimento no Rio Grande do Sul conforme The Rio Hews afirmou no jornal de 1884, deverá ser diferenciado dos movimentos do Ceará e do Amazonas, pois é de natureza muito menos liberal e generosa. Quase todas as libertações estão sendo concedidas em condições de tempo de trabalho ou aprendizado que se verificam, em grande parte, para um período de cinco anos.33

Por fim, é de fundamental importância lembrar que, embora tenha sido liberto um grande número de cativos em 1884 no Rio Grande do Sul, a escravidão continuou a existir na antiga província de São Pedro, com todos os seus vícios, contando com a inquebrantável resistência dos africanos e seus descendentes escravizados até 1888, diferentes do que dizem alguns autores, de a mesma ter sido extinta quando da grande campanha de 1884, no Brasil Meridional.

33 ASSUMPÇÃO, Jorge Euzébio. Pelotas: escravidão e charqueadas (1780/1888), Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995, p. 310.

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No final do livro, estaremos voltando com algumas considerações conclusivas de forma integrada com os outros dois capítulos.

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II - Religiões e Afrodescendentes no Espelho de uma Cidade de Imigração

Alemã no Sul do Brasil

José Ivo Follmann1

A proposta do texto

Na noite branca desta cidade marcada pelo signo da “imigração alemã”, os tambores e os atabaques ecoam em ritmos compassados que não calam e não param... Com a ideia de provocar uma reflexão sobre as religiões de origem africana em São Leopoldo2, o texto pretende fornecer uma visão suficientemente abrangente, costurando dados históricos e sociológicos através de registros diversos.

Mesmo que estejamos focados em aspectos relevantes da memória e processos de identidade dos afrodescendentes em São Leopoldo, a figura central deste texto é o próprio “mundo das religiões e religiosidades”, como ele está construído na humanidade em geral, no continente Africano e no Brasil. O

1 Doutor em sociologia, professor titular da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, atuando no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais.

2 São Leopoldo, RS é conhecida como a cidade “berço da imigração alemã” do Brasil. Situa-se na Região Metropolitana de Porto Alegre e acolheu em 1924 a primeira leva de imigrantes alemães.

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texto visa a jogar luzes sobre como os afrodescendentes em São Leopoldo se movem nesse “mundo”.

Com um enquadramento amplo assim, fica facilitada a circunscrição de questões com vistas à formulação de hipóteses de estudo sobre as práticas religiosas da população afrodescendente e as diferentes formas locais de afirmação das religiões de matriz africana. Os tambores e os atabaques que ecoam na noite constituem-se em expressão revestida de múltiplas convergências e, também, divergências, mas, sobretudo, expressão impregnada de criativa resistência e persistência.

A proposta do presente texto, em forma de capítulo deste livro, soa muito ambiciosa em sua abrangência, mas está contida em um texto singelo e repleto de fragilidades, assim como é frágil, e, talvez, totalmente ausente, o vínculo entre os afrodescendentes de São Leopoldo e as suas origens pretéritas com o Continente Africano e as respectivas Nações originárias. É como se tivesse no horizonte a percepção perplexa dos tambores e atabaques abafados no meio de muitos outros ruídos e silêncios, bem como, dos tambores e atabaques tocados por mãos brancas... A única pretensão do texto é a de estar contribuindo para uma reflexão mediante o manejo de informações poucas vezes colocadas juntas, com a finalidade de ajudar a formular questões para a compreensão do comportamento religioso dos afrodescendentes.

Experiência de África: Narrativa a partir de vivência pessoal do autor

Eu havia me conformado com a ideia de que a cidade em que eu vivia era uma cidade tipicamente de imigração alemã, mas isto começou a mudar radicalmente quando, a partir de 1973, ainda durante meus estudos de teologia, dividia as minhas atividades, como professor de sociologia na Universidade, com inserções de trabalho social e pastoral nas periferias. Em 1978, já sacerdote jesuíta, eu fui residir na Vila Duque, Zona Sul de São Leopoldo.

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Na minha ambientação, no contexto daquela pequena vila, passei a ouvir os tambores e os atabaques da noite... Naquela vila, onde ainda trafegava esporadicamente um pequeno trem ‘maria fumaça’, chamou a atenção o relativamente grande número de afrodescendentes. Especificamente comecei a conviver e interagir muito com algumas famílias de uma pequena rua que era apelidada ‘Rua da África’ devido à grande concentração de famílias negras que ali residiam. Comecei a prestar atenção em outros pontos de São Leopoldo e as realidades como ‘Bairro da Feitoria’, ‘Vila do Quilombo’ e outros começaram a ‘habitar’ a minha mente e curiosidade com relação à presença dos descendentes africanos nesta cidade. Em 1987, e, depois, sob o embalo de Campanha de Fraternidade (1988), nascia na Vila Duque, com a liderança da, então estudante, Adevanir Aparecida Pinheiro, a primeira organização de consciência negra de São Leopoldo, o ‘Grupo de União e Consciência Negra Zumbi dos Palmares’.

De 1990 até 1993, ao longo de minha estada na Bélgica, em Louvain la Neuve, durante meus estudos de doutorado, tive a graça de ter um convívio praticamente cotidiano com estudantes africanos, presentes ali, às centenas, de diferentes países da África. Foi quando algumas questões, que eu havia assimilado teoricamente a partir de leituras de Florestan Fernandes sobre a condição dos ‘negros no mundo dos brancos’ no Brasil, se evidenciaram de forma mais aguda. Só hoje estou sendo capaz de entender a tremenda provocação do sociólogo Florestan Fernandes, ao formular o título de seu livro ‘O Negro no Mundo dos Brancos’... O Brasil é o segundo país de maior população negra do mundo, só perdendo da Nigéria... E eu não via negros brasileiros fazendo mestrado ou doutorado, ali. Os estudantes brasileiros presentes naquela cidade universitária eram mais de cem, e eu não me lembro de ter conhecido um brasileiro negro ali, na época. Isto muito me questionou, ao longo de todos aqueles anos.

Em julho de 2009, estive em Moçambique, no continente Africano, para coordenar oito dias de Exercícios Espirituais junto a meus companheiros jesuítas. O grupo do retiro estava constituído por 48 jesuítas, quase todos moçambicanos, alguns de outros países da África e seis vindos do Brasil. Senti-me muito desafiado frente a todo aquele grupo, misturado com os moçambicanos, sua história e suas culturas.

Entre os retirantes, estava o P. Francisco Almenar S. J., meu amigo Paco, espanhol de origem e brasileiro por opção, que estava temporariamente

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cedido para trabalhar em Moçambique. Lembrei-me de textos de Notícias que ele enviara depois de sua chegada à sua nova missão. Em abril de 2008, ele citara algumas frases de sua primeira fala pública em uma celebração, sete dias depois de chegar para abraçar a nova missão em terras de África: ‘Sinto-me como uma criança de sete dias. Como uma criança, preciso que vocês me ensinem a falar como vocês falam, a rezar como vocês rezam, a viver como vocês vivem e a cantar como vocês cantam’... Três meses depois, em julho de 2008, num belo hino de louvor ao Senhor, o mesmo Paco assim se expressava: ‘Eu te louvo, Senhor, porque o povo Moçambicano é, antes de tudo, um fervilhar de vida, de movimento, de capacidade de resposta e iniciativas ante os colossais obstáculos interpostos pela história’...

‘Colossais obstáculos interpostos pela história’ é um belo eufemismo para referir a dívida imensa e impagável que países de outros continentes, sobretudo do continente Europeu, contraíram para com os povos africanos, devido à dominação terrível e desumana e à espoliação exercidas ao longo da história, bem como a maneira irresponsável e cruel com que se ‘retiraram’ desse processo. Os afrodescendentes no Brasil também enfrentaram ‘colossais obstáculos interpostos pela história’ e o Brasil carrega dentro de si, a marca de quase quatro séculos de escravidão. Também aqui, a exemplo da maneira perversa como os países europeus ‘concluíram’ as suas dominações coloniais no continente Africano, o modo de fazer a ‘abolição da escravatura’, foi cruelmente desrespeitoso e carregado de irresponsabilidade de parte da administração branca.

A humanidade precisa refazer-se deste prejuízo causado e desta ferida imensa. Ela precisa voltar a ser criança para descobrir a África. Não escrevo ‘redescobrir’, porque os primeiros encontros de Europeus com Africanos foram envoltos em intenções de dominação e espoliação e pouco caso se fez por realmente descobrir os povos, a sua história e a sua cultura. Os povos africanos são povos que sobrevivem na alegria, mesmo que carregando muita dor. Uma dor profunda acumulada por diversas dominações coloniais, em suas diferentes formas e origens. Mas, sobretudo, a dor da desagregação, vítimas de administrações coloniais desastradas e que foram concluídas de uma forma desrespeitosa e irresponsável.

Ao iniciar este texto, junto minhas palavras às do meu amigo Paco, prosseguindo na sua prece de louvor: Eu te louvo Senhor, porque a

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humanidade está reencontrando a África! Porque muita gente hoje se dispõe a ajudar a humanidade a reencontrar-se com a África! Porque nós brasileiros nos reencontramos conosco mesmos, reencontrando a nossa metade africana!

A exultação de louvor não é só porque nós brasileiros estamos tomando maior consciência de que a metade de nossa população é negra. Isto é verdade e é fundamental para que se faça justiça à nossa história, mas é importante, sobretudo, lembrar que na África reside o berço da humanidade e o berço das primeiras religiões. O teólogo Hans Küng, em seu vídeo documentário ‘Religiões do Mundo – Religiões Tribais’, em meio às suas reflexões sobre a contribuição dos povos africanos e suas religiões, afirma: ‘ainda que sejamos muito diferentes, dado as características raciais, todos temos presumivelmente uma origem africana comum. Por baixo da pele, somos todos africanos’. (até aqui depoimento pessoal do autor)

O ‘mundo das religiões e religiosidades’

O documentário organizado pelo teólogo Hans Küng é paradigmático, ao projetar uma reflexão ética sobre o processo mundial, tendo como referência as religiões. Nós normalmente estamos acostumados a olhar o “mundo das religiões e religiosidades” a partir do viés europeu, ocidental e judaico-cristão. Nós sabemos, no entanto, que a história da humanidade pode ser lida como uma história de construção de grandes tradições religiosas, em grande parte, muito para além do estreito paradigma ocidental, podendo ser destacados, talvez, de forma didática, três grandes “conjuntos religiosos” importantes para uma visão geral. Dois destes “conjuntos”, por sucessivos processos históricos, estão profundamente embebidos nos contextos de África e dos afrodescendentes.

O que Hans Küng refere como religiões tribais expressa grande parcela do conjunto “religiões animistas”, que constituem as primeiras manifestações religiosas conhecidas na história e que continuam vivas em muitos contextos hoje. A ideia central do Animismo é que forças naturais têm alma (do latim: ánima),

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ou seja, são animadas por entes invisíveis e espirituais... Nessas religiões predominam as práticas conhecidas como Xamanismo.

Dentro da visão animista, a natureza é habitada por forças espirituais (sobrenaturais). Um xamã é alguém que se reveste de poder extraordinário e canaliza as forças sobrenaturais, presentes na natureza, a serviço de interesses humanos, de proteção, de harmonia pessoal, de saúde e de combate às adversidades naturais e sociais. As práticas xamânicas são conhecidas no mundo todo. No Brasil as práticas xamânicas e as crenças animistas aparecem, de forma intensa, na Pajelança dos povos originários, nativos indígenas (Pajé: líder religioso), nas religiões de Matriz Africana em suas múltiplas manifestações (Candomblé, Batuque etc.), na Umbanda, no Santo Daime e em diferentes outras. É no contexto dessas práticas que o ritmo dos tambores e dos atabaques impera... Os tambores e os atabaques que ecoam, também, nas noites “brancas” de São Leopoldo.

Talvez, devido à ausência de uma orientação comum central escrita e organizada por documentos ao longo da tradição, essas religiões não tiveram como se confrontar, em pé de igualdade, com a racionalidade escrita de outras tradições que posteriormente se impuseram no mundo. As religiões animistas, no entanto, trazem até nós através da oralidade que perpassa milênios, um conjunto complexo de crenças e práticas repletas de profundo sentido de religare, isto é, de ligar de novo o mundo visível com o mundo invisível.

Apesar do seu caráter de ligação com a natureza, são iluminadas, quase sempre, por uma grande complexidade teológica. Reconhece-se, normalmente, segundo cada contexto cultural, um Ser Supremo, como também existem múltiplas divindades e entidades intermediárias. Por exemplo, Olodumaré é o Ser Supremo na cultura Yorubá, na África. Outras culturas e tradições no Continente Africano também trazem em seu bojo esta referência monoteísta, apesar da enorme complexidade de seus panteões de divindades intermediárias e especializadas.

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Visitando práticas religiosas populares hinduístas, na Índia, como tivemos oportunidade de fazer em 2013, tem-se, em diversas situações, a impressão de existir uma similitude muito grande com práticas religiosas de tradição africana. Mesmo que, no primeiro impacto de visibilidade externa, este registro possa ser feito, existe, no entanto, um grande distanciamento do conjunto das religiões védicas, que são originárias daquele país, em relação às práticas e aos seguimentos religiosos de Matriz Africana, nos meios africanos e de afrodescendentes.3

Se, por um lado, as religiões védicas, que exercem grande impacto no Continente Asiático, têm pouca presença, ou, são praticamente ausentes no Continente Africano, o impacto exercido pela presença do Cristianismo e o Islamismo, neste meio, é determinante.

3 Apesar do seu pouco impacto neste meio, que é o nosso foco de atenção, mas para termos a visão de conjunto, fazemos o registro deste segundo grande conjunto de religiões são as religiões védicas. Elas têm sua referência histórica primeira em escritos que datam de 3.300 anos atrás, ou seja, 1.300 anos antes da era cristã (a.C.). Trata-se dos Vedas (‘Conhecimento’) escritos, no período de 1.300 - 900 a.C., por sábios e videntes da Índia, de proveniência ariana. Trata-se de livros de profunda filosofia humana e orientação espiritual que são as bases do Sanatana Dharma (Ordem Eterna), religião que nós conhecemos por Hinduísmo. Muitos outros textos sagrados se seguiram, destacando-se, sobretudo, os Upanixades (instruções pessoais) e, especificamente, o Cântico do Excelso, o Bhagavad-Gita, 200ac, que é o ‘livro de cabeceira’ e de orientação para a vida de todo hinduísta. Assim como se tem registros do Ser Supremo (Divindade Suprema) em religiões animistas, assim, também, nas religiões védicas, especialmente no Hinduísmo, é originariamente marcante a ideia do Absoluto, presente em tudo (Brahma) e as figuras de Vishnu e Shiva (divindades que são expressões do Absoluto). Estas divindades se manifestam de diferentes formas na humanidade, através de figuras heróicas e sábias, como Krishna, Buda etc. Neste meio religioso, no entanto, a centralidade não está na divindade, mas na prática pessoal. É a pessoa, que, através do seu empenho e do exercício pessoal, constrói o seu espaço de liberdade, de felicidade e de eternidade. O Budismo é o exemplo mais radical disto. Ele nasceu de dentro do Hinduísmo, com uma proposta diferenciada, sem divindade, baseada nas orientações de Buda (na pessoa do Príncipe Siddhartha Gautama). Buda viveu de 563 até 483ac e suas orientações foram publicadas, em forma escrita, somente 400 anos depois de sua morte. Destas tradições herdamos um grande número de ramificações e um forte legado, sobretudo, nas práticas de ‘meditação oriental’ sempre mais difundidas no mundo de hoje.

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Trata-se de duas tradições integrantes de um terceiro grande agrupamento que é constituído pelas religiões abraâmicas. Estas são talvez as mais conhecidas em nosso meio. As religiões abraâmicas são o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo. O centro está na fé no Deus que se revela para a humanidade. O termo “abraâmica” diz respeito a Abraão. O Patriarca com este nome pode ser situado na história, mais ou menos há 3.900 anos, ou seja, 1.900 a.C., mas os textos sagrados que registram e orientam estas tradições começaram a ser escritos mais ou menos no ano 1.000 a.C.

A Torá, 1.000 - 200 a.C. é o livro sagrado dos Judeus e corresponde praticamente ao Antigo Testamento da Bíblia Sagrada dos Cristãos. Na tradição judaica, Deus (Javé) faz a Aliança com o seu povo. Na Bíblia Sagrada dos Cristãos, tem o Novo Testamento (50-100 depois do início da era cristã), que comunica a Nova Aliança de Deus, através da pessoa de Jesus Cristo, com a humanidade.

O Alcorão do Islamismo registra (a partir do ano 600) a visão inspirada do Profeta Maomé (570-632), na qual a Torá judaica e a Bíblia cristã são respeitadas como escritura sagrada mais antiga. Fica clara a profissão central da fé no Deus (Alá) e a importância de sua revelação através de seu Profeta Maomé.

Por uma série de fatores históricos, as religiões abraâmicas, tanto pela vertente do Islamismo como pela vertente do Cristianismo predominam hoje na África. Os afrodescendentes brasileiros em sua grande maioria hoje são marcados, também, pela vertente do Cristianismo, historicamente pelo domínio Católico e nas últimas décadas, também, com uma presença crescente em Igrejas Evangélicas, sobretudo, de recorte Pentecostal e Neopentecostal.

Com estas rápidas observações descritivas sobre os três “conjuntos religiosos” para introduzir a sua incidência nos povos africanos e em meio aos afrodescendentes brasileiros, não se está, no entanto, fazendo um convite para o fechamento das cortinas... Pois, são incontáveis as ramificações religiosas que derivam de

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cada um dos “conjuntos religiosos” aqui referidos, como são também incontáveis as formas religiosas institucionalizadas, que não se enquadram em nenhum desses “conjuntos”.4

A África religiosa

O continente Africano, hoje em dia (2014), está composto por um total de 54 países, sendo 48 no próprio continente e 6 em ilhas adjacentes.5 Além desses 54 países ainda existem vários territórios, a maior parte dos quais são estrangeiros, ou seja, que não estão administrativamente integrados nos limites das 54 nações contabilizadas. Colocamos este quadro político-administrativo no início deste item, para mostrar a complexidade presente no continente africano, que muitas vezes continua sendo apresentado como se fosse uma grande unidade cultural e histórica.

Por trás do complexo retalhamento administrativo atual, que não é definitivo, está presente uma história ainda mais complexa de povos, culturas e línguas originárias, cujos retalhos em muitos casos talvez sejam irrecuperáveis e pouco costuráveis.

Como já foi frisado, com toda pertinência no capítulo precedente, a visão simplista que tende a encarar o continente africano como se tivesse uma única identidade étnica ou uma só cultura africana está totalmente superada... A África é um conjunto de muitos povos, culturas e línguas. Trata-se de um continente muito complexo, em termos de tradições culturais. Só no país Moçambique, que trazemos à memória, no relato pessoal

4 Certamente, para sermos mais completos, deveríamos falar, também, das “religiões da sabedoria do extremo oriente” (o Xintoísmo, o Confucionismo e o Taoísmo), das “religiões do racionalismo moderno” (por exemplo, o Espiritismo) e de outras... O Espiritismo Kardecista, por exemplo, exerce um papel religioso extremamente forte no Brasil, e, contexto das religiões de Matriz Africana, através da sua parcela de contribuição no processo de constituição da religião de Umbanda.

5 http://wantmoney.9f.com/africano/africano/entrada.africana.html (18 de julho de 2014).

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inicial que abre este capítulo, conhece-se mais de 50 línguas ou dialetos diferentes, revelando uma grande diversidade, apesar de apresentarem uma matriz cultural originária única, que é a matriz Banto.

O que talvez nem sempre esteja sendo suficientemente cultivado é algo que se evidenciou, de forma crescente, através das descobertas científicas é a grande probabilidade de os seres humanos, todos sermos descendentes de um pequeno grupo originário de, talvez, menos de cem indivíduos, existentes na África, a mais ou menos 60 mil anos atrás. É do conhecimento, também, que as referências religiosas mais antigas têm a ver com o continente Africano.6

Quanto à distribuição das religiões no continente Africano, hoje, a grande maioria da população dos 14 países ao norte, é seguidora do recorte Islâmico, das religiões abraâmicas. Já nos países ao sul do deserto do Sahara, a diversidade religiosa tende a ser maior, com alguma presença do Islamismo, também, mas a predominância atual tende a ser de cristãos. O Cristianismo em suas diferentes expressões e seguimentos eclesiais foi introduzido no continente africano, sobretudo, através da colonização europeia e hoje continua sendo a proposta de diversas iniciativas missionárias estrangeiras, inclusive do Brasil.

As religiões originárias, que classificamos acima como animistas, continuam sendo cultivadas. Apesar de constituírem, em termos de estatística, uma minoria extrema, consubstanciam um forte substrato cultural que perpassa todos os povos, enquanto crenças na força dos Espíritos presentes na natureza e o culto aos ancestrais.7

A maioria dos africanos, hoje, são adeptos de religiões abraâmicas, seja através do Islamismo, seja através do Cristianismo. Estas duas tradições estão, em sua grande diversidade, espalhadas e enraizadas em todo o continente africano. Muitas vezes existem

6 http://www.sacred-texts.com/afr/ (18 de julho de 2014).7 http://www.africanculturalcenter.org/5_3languages_religion.html (14 de

julho de 2014).

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ricas adaptações e adequações rituais, valorizando os diversos contextos culturais e sistemas de crenças originários.8

Afrodescendentes e o Brasil religioso

O Brasil é o segundo país de maior população negra do mundo. O primeiro é Nigéria, no continente africano. 51% dos brasileiros são afrodescendentes, ou seja, a população afrodescendente brasileira soma mais de 100 milhões de pessoas.

Mas esses afrodescendentes que constituem mais da metade da população brasileira, além das muitas misturas étnicas sofridas ao longo do processo histórico brasileiro, são também provenientes de uma grande diversidade cultural em sua origem africana. Ou seja, a diversidade africana de que falávamos acima está presente também no Brasil.

Quanto às adesões religiosas da população afrodescendente brasileira, é fundamental que registremos o processo histórico de violência religiosa sofrida, no início, pelos africanos escravizados quando traficados para o território brasileiro. O Catolicismo era a religião oficial no Brasil, e os africanos traficados como escravos, entre os muitos mecanismos de esquecimento a que foram submetidos, talvez o mais cruel tenha sido o de lhes ser imposta uma nova religião. A sua proveniência religiosa pregressa era totalmente ignorada, espezinhada e demonizada. Alguns grupos vinham, inclusive, de longa tradição como seguidores do Islamismo. Todos eram batizados católicos, de forma imposta, como um dos requisitos na chegada ao novo destino.

Pensava-se, dentro do horizonte cultural e religioso da época, estar promovendo uma prática de redenção desta população em termos religiosos. Na mente dominante branca europeia, eles estariam sendo redimidos de sua vida de perdição pregressa para assim poderem usufruir os caminhos da salvação

8 http://basmozambique.files.wordpress.com/2009/09/religion-in-africa.pdf (14 de julho de 2014).

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da alma, da cultura cristã ocidental. Mas, felizmente, os tambores e atabaques não calaram e nem pararam...

Dentro do contexto mundial, o Brasil faz parte do continente de maior incidência do Cristianismo e, especificamente, da parte mais numerosa do Cristianismo, que é o Catolicismo. O Brasil apresenta uma realidade religiosa bastante diferente, comparado com o contexto religioso mundial e também do contexto de África. Aliás, em todo o continente latino-americano a presença do Hinduísmo, do Budismo e, mesmo, do Islamismo, para referir exemplos de grandes tradições religiosas mundiais, são presenças relativamente pouco expressivas, ao lado do Cristianismo que é amplamente preponderante.

O Brasil viveu quase quatro séculos de religião Católica como religião oficial. Mas por baixo desta capa de oficialidade religiosa unívoca, um “mundo” oculto de diversidade persistiu e cresceu. O Censo de 2010, refletindo uma tendência dos últimos Censos, mostrou como a esfera religiosa no Brasil veio se diversificando. Os tambores e os atabaques, que nunca pararam, passaram a ser ouvidos e entendidos...

O mundo das religiões e religiosidades no Brasil hoje já mereceu muitos comentários. A partir dos dados do Censo Demográfico do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), demonstra-se uma nítida evolução do quadro estatístico de composições e recomposições na esfera religiosa de nossa sociedade. Nestes comentários, é sublinhada em geral a queda numérica sensível daqueles que se declaram católicos (de 95,2% da população em 1940 para 64,6% em 2010) e do aumento, sempre mais acelerado, daqueles que se declaram evangélicos (de 2,6% da população em 1940 para 22,2% em 2010).

Também é refletido o aumento grande daqueles que se declaram “sem religião” (de 0,2% da população em 1940 para 8% em 2010), incluindo, neste último grupo, os descrentes ou ateus (que, provavelmente, não passa de 1% da população). A multiplicação do número de religiões que se somam no quadro das “demais” e “diversas” denominações (2% da população em

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1940 para 5,2% em 2010), também é pauta nesses comentários e publicações, especialmente no que diz respeito ao paradoxo do pequeno percentual registrado quando se trata de seguidores das religiões da matriz africana (0,3% da população em 2010).

São grandes as reações de estranhamento frente ao dado estatístico que apresenta somente 0,3% da população brasileira (em 2010) como seguidora de religiões de Matriz Africana. Nós partilhamos esses estranhamentos, porque escutamos e entendemos os ritmos dos tambores e atabaques...

É um estranhamento que denuncia o mito do branqueamento, que perverte as estatísticas religiosas, pois grande parte da população brasileira foi historicamente educada a se identificar pela religião do branco (religião e cultura euro-refenciada), mesmo seguindo práticas religiosas de origem africana.

O que de fato está evidenciado é o “emergir” de um grande mapa da diversidade e do pluralismo religiosos no Brasil. O verbo “emergir” sinaliza uma analogia muito acertada, pois de fato trata-se da ponta de um grande iceberg da esfera religiosa do Brasil que é sinal da diversificação e pluralidade crescentes e ainda escondidas. O mapa religioso brasileiro sinalizado, por exemplo, pelo censo do IBGE 2010, além de apontar para esta multiplicação de novas formas de expressão do religioso, deixa sinais de uma riqueza muito grande que subjaz e que as estatísticas ainda não estão conseguindo fazer emergir.

Existe uma espécie de explosão da diversidade, como que reagindo contra os constrangimentos uniformes que nos precedem, na história brasileira. Mesmo que isto tenha que ser considerado como um fato, é também de se observar que essa “identidade social” religiosa católica colada à brasilidade, que foi, em geral, constrangedora para os outros empreendimentos institucionais religiosos, acabou sendo também um manto suave e, até certo ponto, acolhedor de processos de identidade diversificados, na esfera religiosa, com dissimulações e camuflagens católicas.

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Parte da grande diversidade religiosa que hoje explode e passa a ter afirmação pública própria, mesmo que ainda não se manifeste totalmente nas estatísticas, tem a ver com esse processo histórico. A outra parte tem a ver, sobretudo, com confrontos explícitos na esfera religiosa, pela via da afirmação do segmento Evangélico Pentecostal e Neopentecostal.

Ao mesmo tempo em que trazemos à evidência as limitações das estatísticas e os justos estranhamentos, não podemos encerrar este item sem que voltemos a nossa atenção para os recentes movimentos de intolerâncias religiosas, que, de certa forma, estão recrudescendo, talvez em forma de revanche, lembrando páginas dolorosas de nossa história religiosa. Já transcorreram vários anos desde o evento patético e inusitado do “chute da santa”, por um pastor da Igreja Universal do Reino de Deus. Na época, o gesto foi rejeitado, de forma unânime, pela sociedade brasileira, evidentemente por uma questão de cultura e identidade nacional, mas também, sobretudo, como condenação deste tipo de intolerância em nosso meio.

O evento em si já caiu no esquecimento e seria insignificante trazê-lo à memória se não fosse a nossa intenção, lembrar as inúmeras intolerâncias cometidas em relação às manifestações religiosas populares e, sobretudo, em relação a manifestações religiosas dos povos indígenas, dos afrodescendentes e de outros, em nossa sociedade. Estaríamos vivendo novos movimentos para silenciar os tambores e atabaques que tocam e que nunca pararam e nunca deixaram de ecoar, no meio das noites “brancas”?...

A diversidade cultivada de forma subjacente e o cultivo de uma duplicidade religiosa são devidos, em grande parte, à necessidade de sobrevivência da própria tradição religiosa, como foi o caso, por exemplo, das religiões de matriz africana, do próprio surgimento da Umbanda, e, porque não, do Santo Daime... Pode-se levantar, com segurança, a hipótese de que, se houvesse um registro estatístico dando conta de dupla ou múltipla adesão religiosa, no meio da população brasileira, as estatísticas desenhariam um quadro diferente. Religiões como as de matriz

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africana e outras apareceriam com muito maior expressividade estatística e a informação estaria mais próxima dos verdadeiros processos religiosos de identidade.

Por ocasião de um texto que escrevemos sobre o Documento da V Conferência do Episcopado Latino-Americano e Caribenho - CELAM, que se realizou no ano 2007 em Aparecida do Norte, Brasil, sublinhávamos que a escolha do Santuário de Aparecida para a realização daquela Conferência devia ser entendida dentro do contexto de um empenho decisivo, de parte da hierarquia católica, neste continente, por uma aproximação maior com a maneira de vivenciar e expressar a fé católica, testemunhada pelo povo. Tratava-se de um gesto de aproximação que devia ser visto como um gesto de diálogo, dizíamos no texto. A V Conferência deu-se num ambiente de contato quase permanente com devotos marianos e romeiros, e os bispos escreveram: “eles nos edificaram e evangelizaram”. Ao aprovarem estas palavras, com certeza, os bispos não estavam simplesmente referendando uma bela frase de efeito retórico.

O diálogo não permanece ao nível de devotos marianos e romeiros, mas são todos os “rostos” do povo sofrido que comparecem naquele texto dos bispos. Trata-se de “rostos” de pessoas, que quando se voltam para alguma imagem de sua devoção, não o fazem de uma forma alienada, mas carregam consigo uma grande carga existencial, de sofrimento e de busca de superação desse sofrimento. É importante lembrar que em geral as mesmas imagens que são expressões de veneração da Virgem Maria ou de outros santos no devocionário católico, representam, também, para seguidores da Umbanda e de Religiões de Matriz Africana, Espíritos de Ancestrais, Divindades ou Orixás dentro dessas vertentes religiosas.

As movimentações do povo em torno de festas religiosas de devoção popular são conhecidas e são impressionantes, mas o que mais deve chamar a nossa atenção é o motivo dessas concentrações e peregrinações. São também cenas que se multiplicam pelos bairros populares através de grandes

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concentrações de pessoas, principalmente afrodescendentes, nas festas sagradas das religiões de Matriz Africana e de Umbanda... São momentos de intensidade grandiosa em que recantos mais longínquos e recônditos de bairros pobres desta São Leopoldo, “alemã”, revestem-se de cores, música, alegria e esperança.

Por detrás de toda essa movimentação de gente, existe o grandioso: as pessoas em busca de uma referência sagrada, em busca de segurança, de paz, de perspectivas de vida e de confirmação na esperança. Pode-se falar em “busca de sentido”... E os tambores e os atabaques ressoam. Aquele sentido que dá unidade a tudo o que existe e que a pessoa experimenta em sua existência. É o sentido religioso, para as pessoas que creem. É a sua forma de “narrar Deus” em sua vida.

São Leopoldo e as religiões e religiosidades dos afrodescendentes

Como os afrodescendentes em São Leopoldo “narram Deus” em suas vidas? É a pergunta escondida dentro da proposta do presente escrito, mas que ultrapassa, em muito, as condições de resposta do mesmo. Como já foi sinalizado no início, o que se intenciona é a circunscrição de questões com a perspectiva de formular hipóteses de estudo sobre as práticas religiosas da população afrodescendente e as diferentes formas locais de afirmação das religiões de Matriz Africana.

Aliás, a quase totalidade da “narrativa de Deus” do meio das religiões de Matriz Africana acontece na tradição oral e é de difícil acesso documental para os estudos. Recebemos, neste sentido, um dia, uma grande lição de uma Mãe de Santo.9 Foi em um seminário sobre espiritualidade e religiões de Matriz Africana. A Mãe de Santo, que era uma das palestrantes, acabara de fazer uma reflexão de grande profundidade e que, no nosso entender, deveria merecer um registro escrito.

9 Ialorixá Dolores Senhorinha Dornelles, Associação Africanista Santo Antonio de Categeró, São Leopoldo, RS.

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No final de sua colocação, dirigimos-lhe a pergunta sobre porque as religiões de Matriz Africana, ainda hoje, continuavam resistentes ao registro escrito das grandes lições de vida e fé de seus líderes e, também, de suas reflexões espirituais e religiosas. Ela respondeu: ‘Padre Ivo, vou dizer uma coisa muito certa. Se a gente escreve, aí vêm outros, leem e saem fazendo bobagem!...’. Foi uma resposta inesperada, que já nos oportunizou muita reflexão.

O que está expresso nesta interpelação é o posicionamento de que valores e atitudes não se aprendem em livro! Ou seja, existem dimensões no conhecimento que não passam pela simples captação da razão. As formulações da linguagem sempre serão pobres para dar conta delas. Só podem ser colhidas na vivência e no coração. A simples apreensão pela leitura, quando não acompanhada pela acolhida vivencial, proporciona uma falsificação cognitiva. A frase “aí vêm outros, leem e saem fazendo bobagens!” pode ser entendida também como “Aí vêm outros, leem, acham que sabem e saem a fazer bobagens!” Ou então: “Aí vêm outros, leem, se aproveitam e saem a fazer bobagens!”.

Afrodescendentes em São Leopoldo

Historicamente, São Leopoldo é apresentada como a cidade “berço da colonização alemã” no Estado do Rio Grande do Sul. A primeira leva de imigrantes alemães para a região aportou em Feitoria do Linho-Cânhamo, em 25 de julho de 1824. A casa que abrigou os imigrantes era a Casa da Feitoria, marco histórico importante da longa presença, precedente, de trabalhadores negros escravizados nesta região. A casa estava desocupada na chegada dos alemães, pois a estância agrícola do linho cânhamo fora desativada. Trata-se de uma casa ampla, que se encontra num ponto elevado na região da margem esquerda do Rio dos Sinos.

Os primeiros colonos alemães que chegaram, eram um grupo de 39 sujeitos, 33 dos quais Luteranos e 6 Católicos. A Casa da Feitoria, pela qual anteriormente haviam transitado centenas

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de negros escravizados e era o símbolo da histórica presença negra em São Leopoldo, passou a ser batizada de Casa do Imigrante, de forma equivocada, incorreta e injusta com relação à história pregressa, unicamente devido ao fato de ter acolhido em seu espaço os imigrantes alemães, em sua chegada. Antes de ser utilizada, pelos imigrantes alemãs, em sua primeira chegada, naquela casa os tambores e os atabaques dos afrodescendentes tinham sido tocados e haviam ressoado, por várias décadas.

Esta sobreposição simbólica ou, melhor, usurpação simbólica, que se deu na troca de denominação de Casa da Feitoria para Casa do Imigrante, sintetiza, de certa forma, toda a realidade vivida pela população afrodescendente em São Leopoldo e repercute, também, obviamente, no seu jeito de viver na sociedade local e conviver no “mundo das religiões e religiosidades”.

Tendo presente este horizonte e esta provocação, propomos trilhar um caminho de reflexão sobre o tema, pautando alguns fragmentos de resultados de pesquisas realizadas e a questão do diálogo inter-religioso e sua relação com o despertar para a educação das relações étnico-raciais.

Fragmentos de algumas pesquisas

O “mundo das religiões e religiosidades” de São Leopoldo pode ser sintetizado, de forma ampla e abrangente, através de três fatos marcantes (não exclusivos):

1) São Leopoldo é um município historicamente Católico e Evangélico-luterano; os imigrantes que aqui aportaram trou-xeram com eles uma bagagem sociocultural e religiosa razoável, mantendo suas tradições e impondo seu padrão cultural e religio-so, mantido praticamente inalterado até o presente;

2) São Leopoldo pouco ou nada difere de outras regiões tipicamente de grande concentração urbana, com formas mis-cigenadas de viver a religião e com afirmação plural crescente, sobretudo, dentro do campo Evangélico em expansão, especi-ficamente pela via Pentecostal, a maior visibilidade das religiões

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Espíritas, de Umbanda e de Matriz Africana e a multiplicação de formas religiosas não tradicionais;

3) Diversas iniciativas recentes de diálogo e reconheci-mento da diversidade representam um novo impulso; Entre estas iniciativas, pode ser destacado o Programa Gestando o Diálogo Inter-religioso e Ecumenismo - GDIREC e a sua expressão forte no Grupo Inter-religioso de Diálogo como um dos impul-sionadores mais consistentes para acelerar uma cultura de plura-lismo religioso e de diálogo; é importante notar que o ponto de início deste programa está na ação conjunta de agentes Católicos e Evangélico-luteranos, dentro da Pastoral Universitária da UNISINOS.

Quando em 2002, a demanda de líderes religiosos em conhecer melhor e apropriar-se dos resultados de uma pesquisa, que estávamos realizando junto às religiões locais, levou a uma reunião, ao lado da busca institucional por aprofundar e oportunizar o diálogo, outros fatores reapareceram com força. Entre os líderes havia também a presença de líderes de religiões de Matriz Africana ajudando a estabelecer necessidades específicas para que se gerasse um espaço mais favorável e ampliado de maior conhecimento e reconhecimento dessas religiões de parte de todos os líderes. A ideia da constituição do grupo permanente de reflexão e diálogo, depois denominado Grupo Inter-religioso de Diálogo e sua continuidade foi consenso naquela reunião organizada para atender a demandas dos líderes.10

Este Grupo Inter-Religioso de Diálogo11 caracteriza-se por ser um grupo permanente, que se reúne regularmente com a

10 A coordenadora de campo da pesquisa Adevanir Aparecida Pinheiro, hoje doutora em Ciências Socais e professora da Universidade, organizou a reu-nião com dois objetivos: responder às demandas dos líderes religiosos e convidar os mesmos a se fazerem mais próximos de todo o esforço de diálogo inter-religioso que se estava fazendo na Universidade.

11 O Grupo faz parte do Programa de Diálogo Interreligioso e Ecumenismo - GDIREC, inicialmente batizado com o nome “Grupo Permanente de Reflexão, Estudos e Diálogo de Líderes Religiosos Locais”; No entanto, a denominação que de fato se consagrou pela prática foi “Grupo Inter-Religioso de Diálogo”- GIRD.

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participação de líderes de diferentes religiões, fazendo do espaço de suas reuniões um espaço de amizade, diálogo e reflexão sobre diferentes temas, práticas e atividades. O Grupo é constituído, hoje, por integrantes de treze religiões ou denominações religiosas diferentes, e, ao longo de sua história, além de suas reuniões mensais, foi protagonista de diversas atividades e participações, tendo sido, também referência e estímulo para outros projetos gerados no contexto da Universidade, destacando-se, sobretudo, os trabalhos da Educação das Relações Étnico-raciais.

O município de São Leopoldo é formado por uma população de 214 mil habitantes (Censo IBGE, 2010), dos quais 66% se dizem Católicos, 24%, Evangélicos (12% históricos, Luteranos, Anglicanos e outros, e 12% Pentecostais e Neo-pentecostais), 4,5% se dizem sem-religião, 2,6% se dizem Espíritas, 1,2%, de Umbanda e Religião de Matriz Africana e 1,7% outras. Estes dados são aproximativos, mas é o que o Censo do IBGE consegue nos fornecer com imprecisões nos recortes de denominação religiosa. Apesar da imprecisão e limitações, trata-se de um indicativo importante.

Assim como em nível nacional, assim também no contexto particular de São Leopoldo, as estatísticas religiosas despertam, no mínimo, curiosidade, e, em alguns aspectos, também, estranheza e perplexidade como já foi sinalizado anteriormente. Os maiores estranhamentos e perplexidades se manifestam com relação ao percentual de seguidores das religiões de Umbanda e de Matriz Africana, apesar de o percentual em São Leopoldo ser significativamente superior percentual nacional de 0,3%, considerado por muitos como absurdo e ridículo. Como, também, já foi observado, os dados certamente seriam muito diferentes se a formulação das perguntas possibilitasse uma resposta mais condizente com a realidade concreta vivida. É bem possível que, caso houvesse a possibilidade de registrar mais do que uma adesão ou seguimento religioso, o quadro estatístico se transformaria radicalmente.

O que nos faz insistir nesta reflexão estatística são os resultados de uma pesquisa que realizamos no ano 2000, no

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município de São Leopoldo. Tratava-se de um mapeamento dos locais de culto e templos do município. Na ocasião, foram identificados, mediante a técnica simples de caminhar pelas ruas, 101 locais de culto de religiões de Umbanda e/ou de Matriz Africana.

Segundo registro publicado no Observasinos do IHU, pelo Prof. Inácio J. Spohr, a partir de dados reunidos pela Associação Afro-Umbandista de São Leopoldo e pela Associação Leopoldense de Candomblé, Umbanda e Cultos Afro-brasileiros (ALCUCAB), estariam em funcionamento no município proximamente 468 Casas de Religião Africana. Ao fazer este registro, o professor acrescentou o seguinte comentário:

“Se cada uma delas tivesse, em média, 10 a 20 adeptos, a soma total ultrapassaria, distante, o número registrado pelo Censo. Contudo, sem um censo específico que tenha foco na experiência religiosa africanista da região, torna-se difícil averiguar o que, de fato, acontece neste meio. Cabe, também, um alerta sobre a nomenclatura usada no Censo. No Rio Grande do Sul o nome ‘Candomblé’, por ser pouco conhecido, pode ter contribuído pelo exíguo número de registros afro-brasileiros. Mais conhecidas são as denominações Batuque (termo muito popular), Religião (dizem, fulano é de religião), Nação, Religião Africana e Africanismo, entre outros.”12

12 http://www.ihu.unisinos.br/component/content/article/53-de-olho-no-vale/520303-opcoes-religiosas-em-sao-leopoldo (visitado em 13/09/2014).

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NÚMERO DE LOCAIS DE CULTO E TEMPLOS E NÚMERO DE FREQUÊNCIAS SEMANAIS POR DIFERENTES TIPOS DE

RELIGIÃO, SÃO LEOPOLDO, 2000.

RELIGIÕESNº de locais de culto ou

templos

Nº de frequências por semana

Umbanda e/ou de Matriz Africana 101 6.294Catolicismo 64 14.161Evangélicas Pentecostais Neo-pent. 137 23.880Espiritismo Kardecista 17 2.963Evangélicas Históricas 28 2.912Outras diversas 17 3.310TOTAL 364 53.520

Fonte: Banco de Dados sobre Religiões, Programa Gestando o Diálogo Inter-religioso e o Ecumenismo – GDIREC, Instituto Humanitas Unisinos – IHU, UNISINOS, 2001. (Cadastro dos locais de culto e templos, 2000).

No preenchimento do cadastro, na época, foi registrada somatória das frequências semanais de seguidores. Apesar das imprecisões inevitáveis dos dados, trata-se de um indicativo bastante expressivo das tendências atuais no processo de diversificação religiosa do município. As igrejas Pentecostais Neopentecostais, que hoje ostentam a primazia em locais de culto, asseguram igualmente o primeiro lugar nas frequências semanais, que somam, segundo cálculos a partir das informações cadastrais, o número de 23.880. Já no meio Católico este número seria de 14.161. Seguem as religiões de Matriz Africana e/ou Umbanda, com 6.294 frequências semanais. Os Kardecistas registraram 2.963 e, por fim, as Evangélicas históricas registraram 2.912.

Considerando os dados históricos e indicadores a que nos referimos acima, talvez seja pertinente registrar que percebemos em São Leopoldo uma sociedade ainda fortemente marcada por uma prática religiosa vinculada ao grupo das religiões ditas “históricas”. Mas hoje estas precisam dividir o espaço da religiosidade, em igualdade de condições, com o meio Pentecostal, por um lado, e Afro e de Umbanda, por outro.

Este registro sobre as novas tendências e diversificação nas frequências religiosas semanais torna-se mais evidenciada

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quando visualizamos a multiplicação dos locais de culto e templos e como este processo se deu nas últimas décadas. O quadro a seguir visualiza com bastante precisão:

SÃO LEOPOLDO, RS: RELIGIÕES E PROCESSO DE DIVERSIFICAÇÃO DOS LOCAIS DE CULTO E TEMPLOS NAS

ÚLTIMAS TRÊS DÉCADAS DO SÉCULO XX

RELIGIÕES

NÚMERO DE NOVOS LOCAIS DE CULTO E TEMPLOS EDIFICADOS

Antes de 1970

1970 a 1979

1980 a 1989

1990 a 2000 TOTAL

Umbanda e/ou Matriz Africana 11 23 36 31 101

Catolicismo 15 05 23 22 65Evang. Pentecostais Neo-pent. 12 13 36 75 136

Espiritismo Kardecista 07 03 05 02 17

Evangélicas Históricas 07 01 07 13 28

Outras diversas 02 04 05 06 17TOTAL 54 49 112 149 364

Fonte: Banco de Dados sobre Religiões, Programa Gestando o Diálogo Inter-religioso e o Ecumenismo – GDIREC, Instituto Humanitas Unisinos – IHU, UNISINOS, 2001. (Cadastro dos locais de culto e templos, 2000).

A evolução registrada neste quadro é muito sugestiva e provocadora. Apesar da tradicional marca religiosa cristã, sobretudo pela via da religião Católica e da Evangélica Luterana, e apesar da forte marca histórica de dominação branca, desde a perspectiva da evolução numérica dos locais de culto e templos e por religião, São Leopoldo se encaminha para um crescente pluralismo religioso, sobretudo, se nos ativermos às três últimas décadas.

Até 1939 havia somente nove locais de culto e templos, dos quais cinco eram Católicos, duas igrejas Evangélicas históricas e dois Centros Espíritas. Na década de 1940, foram agregados mais 8, e nos anos 50 e 60, outros 13 e 22 respectivamente. Neste ínterim, as religiões de Matriz Africana e de Umbanda ascendem a 11 locais de culto, os templos Católicos chegam a 15, os de

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igrejas Evangélicas históricas, a 6, e os Kardecistas apresentam 17 centros, enquanto as Evangélicas Pentecostais e Neopentecostais somam 11 templos, sendo que ainda se registravam 2 outros locais de seguimentos religiosos.

Já o período entre 1970 e 2000, deve ser visto com especial atenção, pois denota uma significativa transformação religiosa do município. Com efeito, nestas três décadas desponta o colossal crescimento do meio Pentecostal e Neopentecostal, com um incremento de mais 124 locais de culto e templos e, em segundo lugar, o também importante avanço das religiões Afro e Umbanda que somaram mais 90 pontos de culto às entidades e santos.

As demais religiões também tiveram crescimento quanto a locais de culto e templos, apresentando, porém, números mais modestos: a Católica acresceu 49 locais, as Evangélicas históricas acresceram 22; houve também crescimento no contexto das outras diversas, somando mais 15 locais, e dos Kardecistas, somando mais 10 espaços.

O que, no entanto, se repete em São Leopoldo como característica nacional, presente, sobretudo, nos meios afrodescendentes, por fatores históricos conhecidos, é certa fluidez e imprecisão nos processos religiosos de identidade. Em uma pesquisa posterior realizada sobre a população afrodescendente em São Leopoldo, foram colhidos alguns depoimentos em forma de história de vida e chamou a atenção como as práticas e referências religiosas do meio afrodescendente são contaminadas pela referência católica.

Religião? Olha, eu posso dizer que 90% da minha família era católica não praticante, nenhum deles que eu me lembre, à exceção de uma irmã que eu tenho, foi de religião Umbanda ou... não, eles eram católicos. Tenho uma irmã hoje que é Mãe de Santo, que ela gosta da religião; tive uma irmã que era espírita; e os outros irmãos são católicos também não praticantes. A minha mãe é uma católica, não fervorosa, mas ela vai à missa. A mãe eu posso dizer que vai à missa

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regularmente. O meu pai não vai à missa. Aquele “nego véio” não quer saber de religião, não quer saber mesmo. A religião que ele professa é outra, completamente diferente... (afr.sl.me.ident/hv-023, 18/09/06)13.

Se o convívio com o meio Católico parece ser mais ou menos pacífico, cultivando, em muitos casos, uma duplicidade harmonizada nos processos religiosos de identidade, como as narrativas destes depoentes revelam, retrata-se, nestas narrativas, de certa forma aproximada, a trajetória histórica religiosa de muitas famílias afrodescendentes. Isto não deve, no entanto, significar que o mundo das relações religiosas seja um mundo tão simples quanto aparenta.

Algumas manifestações com relação a práticas de religião de Matriz Africana refletem, no entanto, uma contaminação católica mais evidente, como, por exemplo, está expresso na seguinte fala:

Depois surgiu o jornal dos cultos afros que eu trabalhei 10 anos e depois não quis mais. Eu estava muito bem, mas depois que eu comecei a ver esse negócio de tirar o dinheiro dos outros e mistificação, eu disse pra [...], minha chefe, que eu tenho só duas filhas pra me chamarem de mãe, pois nós temos a carne podre, amanhã ou depois nós morremos e vamos pra debaixo do chão e cadê aquela mãe? Mãe de Santo é Nossa Senhora, eu não admito que ninguém me chame de Mãe. (afr.sl.me.ident/ hv-027, 08/11/06).

A maior controvérsia, no entanto, está localizada dentro do próprio meio das religiões de Matriz Africana e tem muito a ver com o avanço da presença branca na liderança deste meio, que é, aliás, um fenômeno muito característico do estado do Rio Grande do Sul. Segundo uma Mãe de Santo negra, uma das entrevistadas, integrante do Grupo Cidadania, que é líder de uma

13 De ‘História de Vida’, pesquisa sobre ‘Afrodescendentes em São Leopoldo, Memória e Identidade’ (afr.sl.me.ident/ hv), realizada pelo NEABI, sob a coordenação de Adevanir Aparecida Pinheiro e José Ivo Follmann.

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casa de religião de Matriz Africana, a religião foi e é dominada pelo branco, que vem se aproveitando da mesma.

Segundo ela, referindo-se aos Pais de Santo brancos, que existem em grande número, sempre que um branco conduz uma religião de Matriz Africana, sempre que um branco é saudado como Pai de Santo, ali se vê repetido o que “acontecia durante a escravidão”, pois o branco conduzia, e o negro ia atrás... Segundo esta Mãe de Santo, os brancos não deveriam liderar esta religião: “eles nos tiraram tudo, e agora estão vendendo até a nossa religião”. (afr.sl.me.ident/hv-028, agosto de 2008).

Se, por um lado, existe esta reação que reflete a consciência profunda de uma história cultural usurpada, é também comum, por outro lado, nos depararmos com Pais de Santo e Mães de Santo, que não são afrodescendentes, mas que vivenciam e expressam uma muito entranhada assimilação e identificação com a cultura e religião de Matriz Africana. Um Pai de Santo que integra um Grupo Inter-Religioso de Diálogo, que é loiro e de cor branca – e cujo sobrenome é de origem alemã –, diversas vezes em suas falas espontâneas pode ser flagrado expressando essa pertença assimilada, quando diz, sem se dar conta de sua verdadeira origem: “Nós, da cultura africana...”; “A nossa cultura negra...”, etc.

Sempre lembrando as considerações feitas sobre as limitações dos dados estatísticos, é importante que, a finalizar este capítulo, retomemos o registro de algumas estatísticas do IBGE 2010. Segundo análise feita pelo Prof. Inácio J. Spohr, em publicação eletrônica do Observasinos, IHU,

“de um total de 2.473 habitantes que frequentam casas de religião africana, 1.768 (71,49%) informam que tem cor ‘branca’, enquanto que 370 (14,99%) apontam a cor ‘preta’ e outros 335 (13,55%) marcam como sendo sua a cor ‘parda’. Pretos e pardos somam, portanto, 28,51% nestas casas, enquanto que os ‘brancos africanistas’ (permita que os designe assim) perfazem 71,49%. Por conseguinte, os dados do Censo confirmam que a grande maioria dos

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que frequentam religiões afro-brasileiras são brancos e que, nestas mesmas casas, pretos e pardos participam em número que supera sua representatividade real na região. Por outra, as religiões afro-brasileiras não são religiões só de negros, mas também não confirmam a ideia de que sejam (absolutamente) brancas.”.14

E os tambores e os atabaques continuam a tocar...

No final do livro estaremos voltando com algumas considerações conclusivas referentes a este capítulo, de forma integrada com os outros dois capítulos.

14 http://www.ihu.unisinos.br/component/content/article/53-de-olho -no-vale/520303-opcoes-religiosas-em-sao-leopoldo (visitado em 13/09/2014).

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III - Educação das Relações Étnico-raciais: um debate acerca dos afrodescendentes e a

temática da branquidade

Adevanir Aparecida Pinheiro1

Palavras introdutórias

Para elaborar este artigo, é importante que apresentemos aqui algumas falas de alunos que merecem ser repensadas ou ampliadas nesta nossa elaboração. Uma me chamou a atenção quando um dos alunos da disciplina de “Educação das Relações Étnico-raciais” disse:

1 O projeto original, de autoria da professora MS Adevanir Aparecida Pinheiro, foi elaborado já em 2005, após algumas gravações de histórias de vida e principalmente por meio de abordagens e visitas domiciliares a famí-lias de origem afrodescendente. Atualmente, atua junto ao Grupo articula-dor do Neabi, coordenado pelo Vice-Reitor Pe. José Ivo Follmann, sendo responsável pela pauta de discussão mensalmente. Além disso, administra a disciplina de “Educação das Relações Étnico-raciais” e “Afrodescendente e América Latina”. Hoje o Neabi conta com uma ampla equipe: Débora Barbosa Bauermann e Elisabeth Natel, que coordenam as práticas opera-cionais do Neabi Cristiano Silveira, que coordena o projeto de Inclusão Digital Afrodescendente; Renata Moura, que administra as atividades da secretaria, e contamos com três profissionais da Pórticus: Professor Jorge Euzébio Assumpção, Isis Alves e Daiane Severo, ambos contratados para auxiliar na produção e elaboração de materiais didáticos para o Núcleo de Estudos Afrobrasileiro e Indígenas.

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Eu estou assustado com as discussões sobre essa temática da ERER, eu pensava que já sabia tudo e que a história brasileira já havia sido esgotada por meio de estudos nas universidades e agora descubro que nós estamos apenas começando a conhecer essa história e o que aconteceu com os negros no Brasil.

A outra fala também muito interessante registramos no seminário e debate realizado na sala de aula, quando uma aluna se manifestou, dizendo:

Agora que estou me dando conta da ausência dos negros na universidade e nas escolas. Tive alguns amigos negros no colégio Estadual, mais agora com esse estudo da branquidade e branquitude percebo que esses meus amigos ficaram para trás, nem sei aonde eles ficaram e se terminaram os estudos assim como eu terminei e agora estou aqui na universidade.

Essas duas falas nos fazem entender o quanto ainda faz necessário avançar nos debates acadêmicos e escolares, seja municipal, seja estadual. As experiências vividas no cotidiano do Neabi/Unisinos podem ser um demarcador de aprendizado e descobertas diante desse debate. Após logo anos de trabalhos no Neabi, pudemos perceber que os próprios afrodescendentes são verdadeiros protagonizadores dos avanços e provocadores de aberturas das discussões voltadas para a temática dos afrodescendentes, mais também provocando os brancos para entrarem no debate sobre as suas “patologias” e saírem da zona de conforto e superioridade que para Guerreiro Ramos era uma patologia que necessitava ser debatida já nos anos 50.

O artigo procura dar conta desta transposição metodológica, destacando a formação acadêmica dos alunos e sua compreensão diante da história e identidade, tanto dos negros quanto também dos próprios brancos. A metodologia usada com os alunos tem dado resultados surpreendentes no aprendizado dos alunos. O artigo está desdobrado em vários momentos, através dos quais se coloca em evidência, por um lado, a importância da metodologia utilizada e, por outro, alguns aspectos concretos relativos aos procedimentos da metodologia trabalhada com os alunos.

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Além disto, o artigo quer contribuir com novas luzes para o entendimento e discussão dos conceitos que auxiliem no aprendizado dos alunos de forma coerente e ética. Desta forma, faz com que possam obter suas próprias convicções e descobertas de conhecimentos que foram soterrados pelas academias em que seus discursos científicos deturparam a verdadeira historicidade da população negra. Esses discursos levaram a população branca acreditar na sua superioridade, que para Guerreiro Ramos não passou de uma visão fictícia de autores da época que atuaram com a política do branqueamento.

Assim, inicialmente, são feitas algumas referências voltadas para a educação das relações étnico-raciais e a importante luta do movimento negro desde a frente Negra Brasileira até os dias de hoje. Enfatizaremos também algumas reflexões acerca das organizações atuantes na contemporaneidade e o trabalho incansáveis do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas - NEABI/UNISINOS - e os resultados deste trabalho na Universidade. Num segundo momento, trataremos brevemente da importância das disciplinas da ERER e Afrodescendente e América Latina na visibilidade e adesão dos alunos e a articulação do grupo Articulador do Neabi.

Na sequência, procuraremos apontar aspectos teóricos e práticos da temática da branquitude e a branquidade frente às relações étnico-raciais e os autores que se desbravaram nos meios intelectuais das academias sobre a temática, mas que de uma forma e de outra foram banidos e excluídos das academias brasileiras, sendo inclusive desvalorizados dos meios intelectuais. Finalmente, em dois desdobramentos, destacaremos a importância de discutir e ampliar as situações patológicas da branquitude e da branquidade que acabam maquiando a emancipação dos afrodescendentes no dia a dia nas academias, nas escolas e nos projetos sociais entre outros.

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A educação das relações étnico-raciais apreciação da história africana e a participação de autores negros

Atualmente, podemos verificar as inúmeras posições e elaborações voltadas para a temática da educação das relações étnico-raciais. São numerosos os estudos e textos que falam sobre o tráfico dos escravos negros da África para as Américas e particularmente para o Brasil. As condições do trabalho escravo, as graves marcas da escravidão de quase quatro séculos na história do Brasil e a maneira como foram mostradas através de publicações se tornaram grandes clichês, muitas vezes reforçando uma imagem negativa da população negra no Brasil. Neste sentido, argumenta Ramos que:

O Movimento em apreço representa uma reação de intelectuais negros que, em resumo, tem três objetivos fundamentais: 1) formular categorias, métodos e processos científicos destinados ao tratamento do problema racial no Brasil; 2) reeducar os brancos brasileiros... (RAMOS 1957, p. 163).

O autor e outros militantes negros mostraram suas forças no sentido de apresentar os objetivos e processos metodológicos que poderia estar já naquela ocasião mudando as formas negativas e estereotipadas no modo de ver a população negra. Os autores mais fiéis à realidade buscaram mostrar os registros de uma história dos afrodescendentes no Brasil, protagonizando organizações sociais marcadas por lutas de afirmação no fortalecimento de sua identidade cultural e étnico-racial.

A partir das experiências vividas no dia a dia, ficamos mais e mais estimulados para resgatar a história dos negros ou afrodescendentes por meio de nossas leituras e outros levantamentos e pesquisas. Ao focarmos no resgate da história, encontramos nas leituras as principais ideias de autores negros que afirmam o processo e a necessidade de se retomar as

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discussões da reeducação da população branca no país ou na sociedade brasileira como muito bem afirma o autor na citação acima registrada.

Acreditamos que muito ainda há por fazer a fim de se vencer os obstáculos impostos pelo enredo, às vezes perverso, da cultura branca. Talvez seja a reeducação que assevera Guerreiros Ramos. O Brasil foi o último país a abolir a escravidão, ou seja, terminar com o tráfico negreiro e ainda percebe-se a forma de operacionalidade nas academias, escolas e outros espaços a metodologias simbólicas no modo de escravizar os negros de alguma maneira. Talvez tenha-se presenciado, em nosso país, uma das formas mais perversas de processo abolicionista que a história já tenha registrado. Ramos afirma que:

O abolicionismo depois que os últimos escravos houverem sido arrancados ao poder sinistro que representa para a raça negra a maldição da cor viril e séria, a lenta estratificação de trezentos anos de cativeiro, isto é, de despotismo, superstições e ignorância. O processo natural pela qual a Escravidão fossilizou nos seus moldes a exuberante vitalidade do nosso povo durou todo período do crescimento...) (RAMOS 1957, p. 161).

O Brasil, quando aboliu a escravidão, tentou varrer do “mapa social” a população afrodescendente dos “ex-escravos”. A expressão principal disto foi a ausência de uma política afirmativa de inserção na sociedade e no mercado de trabalho, na época, e ausência marcante, também, de todas as formas culturais e visuais da população negra dos livros escolares entre outros veículos de formação e comunicação, fazendo com que a imagem visual de originalidade africana ou afrodescendente ficasse relegada a situações de sofrimento e opressão, enquanto o branco permanecia na sua zona de conforto social e da dominação fácil.

Hoje em dia, a bem da verdade, deve-se dizer que já há uma preocupação com a produção de materiais didáticos afro-

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brasileiros de forma ética e moral. As produções elaboradas devem apresentar a história e identidade de forma coerente no que diz respeito a cultura e sua identidade. Entretanto, há muito que se fazer, pois os livros escolares e demais materiais didáticos ainda têm sido elaborado de forma “torcida” e que não condiz com a verdadeira história da população negra.

A partir da década de 40, alguns militantes negros da época como Abdias do Nascimento mesmo em meio a situações cruciais e exílio, propuseram uma visão de organização negra em prol da população já abandonada pelos seus senhores e pelo sistema brasileiro. Com isso nasce, na cidade do Rio de Janeiro, o protesto racial que se organizou em torno do Teatro Experimental do Negro, como apresenta Gonçalves e Silva em seu artigo afirmando que:

Essa tendência foi mantida praticamente ao longo de todo o século XX. Em momentos cruciais da história republicana, podemos encontrar registros dos movimentos de protesto dos negros: o mais emblemático foi o promovido pela Frente Negra Brasileira. (GONÇALVES e SILVA 2000 p. 139).

A organização do movimento negro e o TEN e reeducação dos brancos brasileiros

Abdias do Nascimento e Guerreiro Ramos, foram militantes negros fundamentais na ocasião. Ambos tiveram papel muito importante na discussão referente à nova carta constitucional, em 1946, com a derrocada da ditadura varguista (Gonçalves, 1997). Já nos anos 80, o movimento tem um caráter nacional, reúne entidades negras de todo o país em defesa da democracia por meio de manifestações e elaboração de documentos contra a discriminação, segundo Gonçalves e Silva:

Comecemos, então, pelo documento que, a nosso ver funda uma nova perspectiva de luta contra o racismo no Brasil,

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parecida Pinheiro 101que é o próprio Manifesto Nacional do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, apresentado em 4 de novembro de 1978. (GONÇALVES e SILVA, 2000, p. 25)

Nos estudos realizados, encontramos na fala de Ramos que a criação do TEN foi uma marca de luta muito expressiva do Movimento Negro. Esta organização aos poucos vai se fortalecendo em suas ações e avanços na efetivação de atividades dos ativistas negros da época. Tanto as atividades quanto os próprios sujeitos negros lutavam para não ficarem às margens da sociedade brasileira e enfrentando o combate ao racismo e todo tipo de preconceito já existente naquela ocasião. Ainda hoje o Movimento Negro marca as lutas atuais e a visibilidade das políticas afirmativas e a inclusão dos negros na educação e nas diversas áreas de conhecimento e área de inclusão na sociedade brasileira.

As lutas pautadas pelo Movimento Negro no Brasil têm apresentado os resultados de uma história longínqua de reivindicações por uma educação das relações raciais nunca respeitadas no sistema educacional. A agenda organizativa do Movimento Negro brasileiro chega hoje com a vitória fortalecida e aplaudida por toda população negra que aos poucos vão percebendo a importância dessa multiplicação e pavimentação entre os próprios negros ou afrodescendentes. Uma dessas agendas é a criação da Lei 10.639/03, que prescreve a inclusão da história dos afro-brasileiros e dos africanos nos currículos escolares em toda rede de ensino educacional.

Ainda hoje o Movimento Negro tem tido uma ação desafiadora no sentido de fazer com que a Lei 10.639/03 se cumpra, ou seja, que a mesma seja efetivada em todas as áreas de ensino desde a educação infantil até o ensino superior. A luta de monitoração na efetivação da Lei e da Educação das Relações Étnico-Racial se tornou uma agenda desafiadora para todos os Estados brasileiros. Para que haja uma efetivação coerente, é preciso que repare os danos morais e éticos.

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Atualmente, uma considerável parte da população negra já observa atentamente as inúmeras manipulações para que no Brasil se perpetue a superioridade branca, e que a população negra continue na sua alienação e falta de identidade histórica. Pensar na visibilidade dos sujeitos afrodescendentes é ter, no mínimo, um senso de “justiça social e racial”, sem esse compromisso, corre-se o risco de reproduzir as mesmas arbitrariedades históricas com essa população em todo país.

Por isso cabem às instituições de ensino repensar os seus métodos teórico e prático pedagógicos frente aos conteúdos, visão e discursos, sobretudo, perceber que a branquidade também precisa rever os seus sintomas “patológicos” para sair das zonas de conforto e alienação identitária. Em toda a América Latina houve um profundo ato falho no sentido de estudar e classificar a população negra como um problema, e que os brancos sempre foram os puros e superiores.

Nos levantamentos e pesquisas realizadas, percebemos que a ausência dos autores negros é explícita. Diante disso, faz-se necessário apresentar as discussões e resgate desses autores nas dinâmicas intelectuais das academias que sejam respeitados como os demais autores não negros. Com a efetivação da Lei 10.639/03 e a temática da educação das relações étnico-raciais, é um momento de estarmos atentos no sentido de dar visibilidade aos pensadores negros e afirmar a suas visões científicas e acadêmicas.

A importância do Neabi e da visibilidade da disciplina de educação das relações étnico-raciais e afrodescendentes na América Latina nas grades curriculares

Um dos grandes desafios postos para toda população negra é ver os seus saberes conhecidos e reconhecidos nas universidades, nas escolas, nas academias brasileiras. Podemos aqui apresentar as experiências vividas com os resultados dos

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trabalhos do Neabi. Um trabalho que foi iniciado em 1999 por meio de abordagens realizadas nos corredores da universidade junto aos afrodescendentes. Este trabalho do Neabi/Unisinos mostra que a luta aprendida pelo Movimento Negro continua se alastrando e se multiplicando de forma comprometida por diversos profissionais.

O trabalho do Neabi tem sido reconhecido em âmbito nacional, por meio de seus trabalhos concretos e efetivos na universidade. Um dos primeiros projetos e Cidadania e Cultura Religiosa Afrodescendente que é atualmente a mola mestra do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígena – Neabi – existente na Unisinos desde 2005. A criação deste projeto marca os duros momentos de dificuldades junto à população branca da universidade. Muitas problemáticas raciais foram enfrentadas pela equipe do Neabi, principalmente pelos que vivem a internalização da “branquidade”. Foram momentos de muitas durezas diante dos brancos da universidade, sobretudo os que tinham e ainda têm o comando de poderes centrados no âmbito do eurocentrismo.

Este projeto foi um trabalho de muita resistência na universidade, quando os brancos se deram conta da entrada dos afrodescendentes por esse projeto. O mesmo continua sendo o principal ponto de entrada para a população negra na superação de suas dificuldades para acessar e permanecer no convívio acadêmico. Em recente artigo, intitulado os Étnico-raciais, Diálogo e Inclusão Cidadã, a professora Adevanir Aparecida Pinheiro desenvolveu alguns aspectos importantes envolvidos na metodologia utilizada nos diversos projetos de trabalhos com afrodescendentes na Unisinos (cf. PINHEIRO, 2009). Segundo a autora, trata-se de uma forma de metodologia diferenciada, pois busca a inclusão dos afrodescendentes no meio acadêmico, mediante um trabalho de valorização específica de sua cultura e as diversas maneiras de ser e tratar a cultura africana e seus sujeitos no cotidiano.

A metodologia tem como ponto de partida a prática básica de ir ao encontro da realidade dos sujeitos num movimento de

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conhecimento e reconhecimento. Destaca-se a importância do diálogo, mediante o envolvimento dos sujeitos como participantes ativos e o permanente aprendizado cidadão e solidário, tendo como apoios de referência a importância da escuta e a importância da sistematização. Essa é uma das práticas metodológicas que têm nos mostrado o quanto se faz necessário repensar a forma teórico-metodológica para tratar a cultura africana e afro-brasileira.

Esta prática que marca o Projeto do Cidadania e Cultura Religiosa Afrodescendente se deu, sobretudo, através das histórias de vida e trocas de experiências, além da formação continuada, enfatizando o trabalho de empoderamento e autoestima cidadã desta população. Nos contos e relatos sobre as histórias de vida, o sujeito afrodescendente vai descobrindo a sua importância enquanto sujeito e se apoderando do seu processo de identidade. Toda experiência vivida e acumulada no Programa do Neabi possibilitou ainda outras organizações importantes como, por exemplo, o Projeto de Inclusão Digital Afrodescendente – IDA2 – e o Grupo Articulador do Neabi.

O IDA tem como objetivo formar crianças, adolescentes, jovens e adultos afrodescendentes na informatização e profissionalização para melhor serem incluídos no mercado de trabalho. Já o Grupo Articulador do Neabi tem a incumbência de disseminar no interno da universidade toda prática e efetivação dos trabalhos do Neabi e suas práticas metodológicas centradas na circularidade e saberes civilizatórios dos ancestrais africanos e afro-brasileiros. As experiências levaram a universidade a rever principalmente suas estruturas inflexíveis a inclusão dos diferentes e considerando, sobretudo, a visibilidade da população afrodescendente e profissionais atuantes em seu interno.

A partir de 2008, a Universidade do Vale do Rio dos Sinos busca rever as suas estruturas puramente embranquecidas focadas

2 Projeto de Inclusão Afrodescendente, coordenado pelo educador da infor-matização, Cristiano Silveira. Formado em filosofia. O projeto tem um foco centrado no resgate da história e da identidade da população negra. Este projeto foi elaborado em 2005 pela coordenadora-geral do Núcleo de Estudos Afrobrasileiro e Indígena – NEABI/UNISINOS.

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no conceito (branquidade) muito pouco aberto da cultura africana e míope frente aos negros de modo geral na universidade. A partir da firmeza e resistência dos trabalhos e atividades realizadas pelo Núcleo de Estudos Afro-brasileiro e Indígenas – Neabi – foi surgindo lentamente a postura coerente de alguns profissionais brancos que discutimos enquanto conceito de branquitude.

Ambos os conceitos foram aprofundados na tese de doutorado em 2011. Além da institucionalização do Neabi, tratou-se também de criar as disciplinas nos currículos da universidade no sentido de efetivar a Lei 10.639/03 e a temática da Educação das Relações Étnico-raciais nos cursos de: formação docente, projetos sociais, Curso de Ciências Sociais, Licenciaturas/Compartilhadas, Pedagogia, Humanismo Social Cristão, Educação Física, demais áreas de conhecimento da Universidade.

A visibilidade das disciplinas de “Educação das Relações Étnico-raciais” e “Afrodescendente e América Latina” nas grades curriculares e os conceito de branquidade e branquitude

Para falar da visibilidade das duas disciplinas, retomamos aqui as duas falas dos alunos já apresentadas no início da introdução deste artigo. Pois as duas falas nos ajudam a entender como os alunos se sentem diante do conhecimento da Lei 10.639/03 e a temática da Educação das Relações Étnico Raciais e Afrodescendentes e América Latina. Após a criação e visibilidade da disciplina da Educação das relações Étnico Raciais e Afrodescendente e América Latina, percebemos que os alunos, em sua maioria, ficam assustados ou demonstram profundo entusiasmo por obter conhecimento sobre a história da população negra e os muitos saberes dos quais muito pouco tiveram conhecimento na sua infância ou vida escolar nas séries iniciais. No decorrer da administração das aulas, é notória a satisfação e a adesão dos alunos que se matriculam e frequentam as aulas.

No início das aulas, os alunos sempre chegam com a rejeição das cotas e no decorrer das disciplinas da ERER e Afrodescendente

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e América Latina, quando usamos uma metodologia de resgate sobre nossa “Educação” no ensino fundamental, parece que os alunos não têm muitas lembranças positivas da infância em relação aos diferentes, ou seja, os afrodescendentes e indígenas. Uma das alunas se manifestou, dizendo que:

Olha, agora que eu estou me lembrando de um caso que aconteceu, mas a gente nem tinha ideia que aquilo era racismo. Foi assim, né, profa. A professora fez um trabalho de grupo, e eu tinha uma amiga que era negra, então todos os alunos se juntaram para fazer o trabalho, e minha amiga ficou esperando a professora chamar ela e não chamou... aí a professora chamou ela e colocou num grupo que ninguém queria ela, aí ela pediu pra mim falar para professora deixar ela ficar comigo, e a professora disse, ela deve ficar aonde eu mandei...E ela teve que ficar naquele grupo que ninguém queria, e ela sofreu um monte, chorou, mas não podia fazer nada, e ela não conseguiu fazer o trabalho com ninguém, acabou fazendo sozinha o trabalho. (Depoimento sistematizado em sala de aula no dia 26 de março de 2014).

Logo no início das atividades do Neabi junto às disciplinas e cursos, tínhamos apenas 15 minutos para falar sobre a temática. A nossa resistência frente aos profissionais e professores coordenadores, hoje podemos apresentar a importância de obter conhecimento e consciência fortalecida na identidade e a respeito da história dos afrodescendentes no Brasil e demais estados brasileiros. Alguns cursos como as Ciências Sociais, e Humanismo Social Cristão se fortaleceram com a inclusão da temática dos afrodescendentes e suas temáticas.

A disciplina da Educação das Relações Étnico Raciais ofertada nos cursos de licenciatura e Afrodescendente na América Latina no curso de ciências sociais tem mostrado por meio da adesão dos alunos que as academias não têm mais como negar os estudos da Lei 10.639/03. A temática da Educação das Relações Étnicos Raciais e afrodescendente e América Latina, hoje visível na grade curricular dos cursos, mostra que as dificuldades não estão centradas especificamente na adesão dos alunos como muitas vezes víamos alguns profissionais afirmarem. A

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manifestação de um desses profissionais pode ilustrar essa nossa reflexão quando diz:

“Olha, eu não vejo necessidade de ter disciplina com esse tema da Lei 10.639/03 e a temática da ERER, nós já trabalhamos as diversidades das culturas nas atividades compartilhadas, na história também já estudam esse tema, acho desnecessário ficar nessa discussão e os alunos hoje nem querem saber dessa história, eles estão se encontrando mesmo é nos cursos que apresentam meio de trabalho no mercado e que renda em finanças”. (Depoimento registrado em reunião em de colegiado em 12/03/2010).

Por algum tempo, a disciplina da Educação das Relações Étnico-raciais ficou na invisibilidade no currículo e na grade curricular dos cursos; faz pouco tempo que a mesma foi colocada na visibilidade dos alunos. Passou a substituir a disciplina intitulada “Seminário Temático”. Já no Curso de Humanismo Social Cristão, a disciplina está posta transversalmente em todos os cursos com: Filosofia, Ética, Exatas, entre outros. O depoimento de um aluno pode ilustrar essa evidência das disciplinas nos currículos a partir do segundo semestre de 2014. Afirma este aluno:

Agora eu consigo ver a disciplina na grade do currículo, antes a gente não via essa disciplina. Nessa disciplina eu estou conhecendo autores que eu nem imaginava. Eu achava que conhecia a história do Rio Grande do Sul e nem sabia que aqui tem um monte de quilombo que eu nem sabia o que era isso. Sempre conhecia a história dos gaúchos, CTG, Cavalgada, a Semana da Farroupilha, mas agora eu percebo que nem tem prenda negra e são poucos negros nas atividades das festas da farroupilha. Mais só passei a perceber isso depois das aulas da ERER. Eu acho um absurdo isso! (Depoimento sistematizado em aula do dia 11 de março de 2014).

É importante enfatizar que todas as atividades existentes na Universidade hoje seguem a pauta de discussão do Neabi que apresenta a pauta para o coordenador do Grupo Articulador do Neabi. Neste grupo, registram a participação de sujeitos de diversas áreas de conhecimento, sobretudo os coordenadores de curso que são responsáveis pelas ofertas das disciplinas a

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cada semestre. No Grupo Articulador,3 é um espaço também de avaliação das responsabilidades de todos os integrantes e, sobretudo, a postura ética e moral no modo de lidar com a temática e com seus sujeitos.

Na expressão de um participante do Grupo Articulador, podemos apresentar também alguns depoimentos que buscam despertar a miopia de sujeitos brancos que ainda não visibiliza as situações problemáticas veladas e dissimuladas de sujeitos que vivem sem a percepção de sua “branquidade”: “Olha eu nunca tive noção de tantas situações vividas pela equipe do Neabi, eu pensava que era tudo igual e que não havia essa desigualdade dos afrodescendentes aqui na universidade”. Essa cegueira ainda está muito presente nas academias e escolas e que requer uma visão crítica e política para efetivação da Lei 10.639/03 e da ERER no sentido de apontar para os brancos as diversas falhas na educação e na forma de acesso e permanência dos afrodescendentes nas universidades.

Nas academias brasileiras, escolas e colégios, ainda necessita-se abrir mão de suas posturas enrijecidas no modo de avaliar os seus sistemas educacionais ainda centrados na matriz eurocêntrica. O eurocentrismo acadêmico, por décadas, excluíram os diversos saberes originais da sociedade brasileira e aqui falamos das matrizes africana e indígena. Os enrijecimentos dos saberes científicos tiveram a incumbência de se tornar crucial a inclusão e valorização destes saberes. Diversos autores negros tentaram reagir contra esse poder intelectual e científico europeu que, sem muita dificuldade, se apoderou das linhas de pesquisas e produções que se alastraram mundo afora.

Muitos desses autores e autoras foram muitas vezes obrigados a fugir de seu próprio país brasileiro, buscando refúgio em outros países. Uma das metodologias trabalhadas nas disciplinas já citadas é de reconhecer esses autores e autoras e dar visibilidades em suas contribuições e saberes para a educação

3 O GRUPO Articulador do Neabi é coordenado pelo Professor Dr. José Ivo Follmann, atual Vice-Reitor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos.

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de todas as áreas de ensino. As academias sempre tiveram como única fonte científica a visão da matriz europeia que foi a principal matriz que explorou e desvalorizou os saberes do continente africano. Dentro dessa reflexão, perguntamos: por que os intelectuais brancos não perceberam a ausência dos intelectuais negros nas academias? Qual era a visão científica nas academias?

Na disciplina de Afrodescendente e América Latina, nossa preocupação é trabalhar uma forma metodológica e teórica que contempla e resgata tanto os autores e autoras de origem afrodescendentes que muito contribuíram com as suas teorias e práticas de conhecimentos de matriz africanas. Para alguns desses autores negros foi uma ocasião de muitas lutas para que se houvesse possíveis considerações e reconhecimentos e importância dos negros no mundo escolar e sua inclusão nas academias. Para Gonçalves e Silva:

Desnecessário dizer que um dos indicadores da exclusão dos negros era a baixa escolarização da maioria da população negra. Não é por acaso que o movimento liderado por Abdias do Nascimento fará da educação uma das maiores bandeiras de luta em prol da raça negra (Nascimento, 1978). À medida que avançamos no tempo, as exigências das novas gerações, no meio negro, aumentam. Não se reivindicava apenas acesso ao ensino fundamental, queria-se mais: ensino médio e universitário (Gonçalves1997). (GONÇALVES & SILVA 2000, p.147).

As fundamentações apresentadas nos mostram que ao longo das décadas passadas e presente, o movimento negro, os autores negros, ambos vieram lutando nocombate ao racismo, e ao mesmo tempo, buscando abrir espaços de inclusão dos sujeitos negros, crianças e adultos no ensino desde a sua infância até o ensino superior. Diversos autores negros não puderam estar presentes nas academias brasileiras e darem suas contribuições no sentido de ver seu povo participar das políticas educacionais.

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A educação das relações étnico-raciais e o desvelamento da temática da branquitude e a branquidade e suas patologias soterradas

Quando iniciamos o trabalho de pesquisa voltada para a temática da branquitude e da branquidade, sabíamos que era necessário, mas não tínhamos certeza de que seria tão preciso. As discussões sobre a temática têm possibilitado a amplitude e visão da problemática centrada nessa população tratada como “branca”. Como refere Ware, “Similarmente, a branquidade precisa ser entendida como um sistema global interligado, com diferentes inflexões e implicações, dependendo de onde e quando ela é produzida”. (WARE 2006, p. 12). Foi estudando e pesquisando os autores debatedores da temática da branquidade que passamos a ser estimulados para entrar neste debate.

A imprecisão sobre o conceito de branquitude, não apresentando uma nitidez conceitual, será a causa do silêncio nas academias e nas escolas? O silêncio e as válvulas de escapes presentes no campo teórico, assim como no campo empírico, será que se revela no autoritarismo dos brancos? À primeira vista, talvez pareça uma ingenuidade levantar essas inquietações, mas torna necessária uma busca de entendimento e quais as implicações existentes nesse sentido. Segundo Ware (2004, p. 12), “[a] branquitude precisa ser entendida como um sistema global interligado, com diferentes inflexões e implicações, dependendo de onde e quando ela é produzida”. Na “real” realidade, não sabemos ao certo quais os aspectos que tornam um sujeito de identidade branca, “um branco”? Foi o que nos levou a estabelecer a distinção, para fins puramente didáticos, entre branquitude e branquidade.

Diante disso, temos hoje a responsabilidade de resgatar esses autores e colocá-los na visibilidade dos alunos e deixá-los pesquisar e apresentarem por eles mesmos esses saberes e autores que foram expurgados das academias administradas pela branquidade brasileira. Consideramos importante aqui poder

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apresentar os conceitos de “branquidade” e “branquitude”. Para facilitar a compreensão desses conceitos, buscamos sistematizar de maneira mais simplificada, visando ao seu entendimento e que os brancos possam obter um olhar sobre si e suas patologias. Pinheiro (2011) define o conceito de branquidade e branquitude, quando:

O conceito político de raça é um conceito gerador de conhecimento. Assim também, entendemos que o esforço de distinguir entre branquidade e branquitude pode ser gerador de conhecimento. Nós distinguimos branquidade de branquitude, associando a idéia da branquidade com a negação da importância do conceito político de raça e a idéia da branquitude com a aceitação da importância do conceito político de raça. (PINHEIRO 2011, p. 79).

Os conceitos apresentados foram no sentido de mostrar para os brancos as suas patologias, ainda intocável e que necessita de trazer essa discussão para o mundo das academias e todas as áreas de ensino. Trata-se da reeducação da branquidade e ainda da branquitude, embora tenhamos brancos nossos aliados, ainda assim a hegemonia eurocêntrica não percebe que sua identidade também se apresenta de forma alienada. Autores como KabengelMunanga, Guerreiro Ramos Abdias do Nascimento, Frantz Fanon, AiméSesarié, Milton Santos, Petronilha Beatriz Gonçalves da Silva e Silva, Florestan Fernandes, entre outros autores e autoras que ficaram sem ser reconhecidos.

A partir do momento em que apresentamos a discussão sobre a temática da branquidade e branquitude em sala de aula, avaliamos que já houve uma atenção de muitos brancos ao se darem conta do que significa ser branquidade e branquitude. Para Ware: “A branquidade foi construída a um custo indizível para a humanidade, mas também pode ser desconstruída” (WARE 2004, p.10). Na sala de aula, os alunos estão assimilando de forma muito consciente e dão exemplo de sujeitos brancos que possuem um ou outro conceito.

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A importância da Educação das Relações Étnico-raciais a disseminação e multiplicação dos conceitos e o “processo de identidade”

No decorrer do tempo, vamos percebendo através do empenho na disseminação das atividades que os debates vão se ampliando de forma enaltecedora. Os debates voltados para o processo de indentidade têm contribuído para que haja uma melhor compreensão em torno dos entendimentos das diversas identidades existente ao nosso arredor. A metodologia trabalhada em sala de aula tem proporcionado aos alunos um estímulo na compreensão, além de auxiliar para uma visão de conhecimento mais amplo, tirando-os da pura visão do “senso comum”.

Num primeiro momento, buscamos refletir sobre a “memória da nossa infância”, usando a dinâmica de trabalho de grupo. Cada um tem a oportunidade de relembrar como conviveu com os diferentes (negros, indígenas, portadores de alguma deficiência). Depois realizam um seminário para debater no grande grupo. Num outro momento, trabalhamos com autores que contribuem com o aprofundamento de diversos conceitos (identidade, raça, etnia, racismo, discriminação, cidadania, entre outros).

Para esses estudos, adotamos como autores Nilma Lino Gomes, Kabengele Munanga e José Ivo Follmann. Outro momento muito importante é o estudo dos autores, em que cada aluno busca pesquisar o autor distribuído, elaboram um Power Point visando a apresentar para os colegas e entregam também uma cópia do trabalho pesquisado. Na disciplina de Afrodescendente e América Latina, os alunos são estimulados a pesquisar também os países da América Latina e além de apresentar é solicitada também a entrega de uma cópia para ser avaliado.

Essa metodologia tem sido muito apreciada pelos alunos; o retorno tem dado ótimo resultado no aprendizado e compreensão dos mesmos. Nos seminários abertos, todos

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têm a oportunidade de fazer sua manifestação sobre os autores pesquisados. É neste momento que avaliamos a importância de adotar uma metodologia condizente com a realidade de compreensão e conhecimento dos estudantes acadêmicos. Temos o entendimento que para lidar com a temática de outros sujeitos que não seja a minha em particular, é preciso conhecer uma forma teórica e metodológica que condizente com a prática vivida.

Por isso, avaliamos ser importante dar continuidade na discussão da temática nas disciplinas e que possa haver brancos mais conscientes de sua identidade, como afirmamos branco é um (leite, um chumaço de algodão, um papel branco...). Deste modo, parece-nos que essa discussão vai conscientizando os alunos, brancos e negros, em relação à discussão do “processo de identidade”. Uma das discussões foi trabalhada em aula com a assessoria do Professor Doutor José Ivo Follmann, que trata desse conceito. Estudar o processo de identidade junto aos alunos faz parte da metodologia de enriquecimento do aprendizado, pois os próprios vivem suas confusões teóricas e prática no cotidiano.

Nossa avaliação sobre o aprendizado dos alunos no que se refere à problemática de identidade tem sido muito positiva. Através da discussão, afirma Follmann que: “Pode-se definir processo de identidade como a busca constante de estabelecer coerências lógicas entre as experiências vividas e aquilo que se tem como objetivo”. (FOLLMANN 2012, p. 84). Os alunos têm demonstrado isso em seus cotidianos de atuações, principalmente no que tange ao processo de identidade. A discussão tem sido importante para o conhecimento dos alunos, pois amplia a visão dos mesmos, possibilitando uma nova forma de discutir e conceber o debate sobre as cotas, visto como um debate polêmico. O exemplo disso esta na fala de um aluno que diz:

Professora quero falar duas coisas aqui: Eu não consigo mais estar num lugar sem contar o número de negro presente, isso é uma coisa que não sai mais da minha cabeça. Outra coisa, é perceber o jeito da branquidade e da branquitude, dá para perceber logo quem é branquitude o branco de atitude quando se fala de discriminação, aí da para ver direitinho que é branquidade.

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Isso me ajudou até rever meus conceitos sobre as cotas para os negros nas universidades. Prá falar a verdade, quando eu entrei na disciplina eu era contra, mas agora vejo que os problemas de nós brancos são muito maiores do que isso...Agora a gente já pode até ajudar a branquidade dar uns conselho e alertar ele desse racismo, mas antes eu não tinha esse conhecimento e agora a gente tem como acabar com o racismo.

Esse depoimento nos amplia ainda mais o horizonte no sentido de dar continuidade na pesquisa e sistematização em torno dessa temática para que os brancos possam assumir seus próprios problemas e não delegar suas reações patológicas do racismo para os afrodescendentes. O movimento negro desde a década de 50 vem apresentando inúmeras propostas para que os afrodescendentes possam ser incluídos no mundo acadêmico, mercado de trabalho, e nas escolas de modo geral.

Ainda hoje, o movimento negro brasileiro pauta suas agendas e tem seu foco nas políticas de ações afirmativas, sobretudo, considerando a importância da participação dos afrodescendentes, sobretudo na educação. Para que isso aconteça, faz-se necessária a reeducação dos brancos que regem as demandas educacionais e no ensino superior em todo o país. Diante disso, enfatizamos a necessidade de se aprofundar a temática da branquidade e branquitude, para que possam perceber suas “patologias” e que a população negra seja livre.

Quando colocamos para que a população negra seja “livre”, é porque percebemos que com a efetivação da Lei 10.639/03 e com a temática da educação das relações étnico-raciais, muitos brancos ainda rejeitam a possibilidade de um afrodescendente se emancipar. Deste modo, os afrodescendentes que têm uma identidade e não têm conhecimento de sua história acham que isso é normal, e esse branco acaba cooptando esse negro que não tem como reagir e dificulta todo trabalho exigido. Neste sentido, há uma intrínseca necessidade de tratar a temática da branquidade, auxiliando-os na sua identidade que em nossa opinião é o que atrapalha hoje a inclusão e a emancipação dos afrodescendentes.

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Na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, já se pode dizer que há mudanças neste sentido. A inclusão da temática nos eixos da Universidade mostra que a branquidade também vai se dando conta da responsabilidade em tratar de forma coerente os afrodescendentes. Para isso foi tratado sobre as temáticas das Três Ênfases, que são: Educação das relações Étnico-raciais, Meio Ambiente e o Combate à Pobreza por meios dos Tecnossociais. Além disso, visa a enegrecer também os projetos sociais que muito pouco tinha noção da exclusão dos afrodescendentes.

Diante de todo processo criado por meio do Núcleo de Estudos Afro-brasileiro e Indígena – NEABI – entendemos que as experiências avaliadas até o momento têm mostrado que ainda se necessita de um amplo trabalho junto aos afrodescendentes, mas também é preciso que avancemos nas pesquisas e trabalho de sistematização voltada para a temática da branquitude e da branquidade para que a Lei 10.639/03 e a Educação das Relações Étnico Raciais seja de fato uma ferramenta para combater o racismo e fazer com que os brancos possam assumir de vez as suas problemáticas e patologias. As mudanças já estão aos poucos tomando novos rumos, mas ainda assim acreditamos na reeducação entre negros e brancos, principalmente levando os brancos a assumirem os seus problemas como muito bem já apontada por Guerreiros Ramos na década de 50.

Na sequência, estaremos voltando com algumas considerações conclusivas referentes a este capítulo, de forma integrada com as conclusões dos outros dois capítulos.

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Conclusões e Considerações Finais

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Como já sinalizamos na introdução, a política da Educação das Relações Étnico-raciais, que foi instaurada através da Lei 10.639, de 2003, juntamente com todo o movimento que está nas suas origens e os desdobramentos e as regularizações na sua sequência, constituiu-se em um dos maiores avanços, na história recente, em termos de busca da regeneração da alma brasileira.

O terceiro capítulo deste livro procurou narrar algumas manifestações concretas disto a partir da prática da Educação das Relações Étnico-raciais por meio das disciplinas desenvolvidas junto aos alunos de graduação. Esta narrativa teve como referência e pano de fundo a história dos afrodescendentes no Estado do RS, no território leopoldense e região, além da resistência do movimento negro na luta pela inclusão dos afrodescendentes na educação.

O aprendizado dos alunos dentro de uma metodologia acolhedora mostra que há uma grande defasagem na educação tradicional que não buscou revelar desde seu contexto histórico na construção social e racial do Brasil a importância da participação dos negros nesta construção. É salutar apreciar as

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diversas reações dos alunos que se matriculam nesta disciplina da Educação das relações Étnico-raciais. Num primeiro momento se apresentam em relação à disciplina como se fosse mais um conhecimento qualquer e corriqueiros de qualquer outro tipo de disciplina desenvolvidas na academia. Já em outro momento mais debatido e apresentado sobre as relações raciais e todo arcabolso de desvelamento sobre a educação brasileira e as lacunas deixadas sobre as contribuições da população negra escrava e todo conhecimento civilizatório voltado para esta realidade.

O mesmo terceiro capítulo propiciou diversas reflexões acerca da importância da Lei 10.639/03 e a luta para a efetivação da mesma no ensino em todas as áreas de conhecimento, condensando alguns aspectos do desenvolvimento da disciplina da Educação das Relações Étnico-raciais e Culturais na Educação Básica e Afrodescendentes e América Latina, apresentando os autores negros que muito pouco foram estudados nas academias e escolas brasileiras.

A metodologia trabalhada junto aos alunos talvez seja o que mais deva ser destacado, pois buscamos abordar a temática de forma didática e prática, no sentido de desvendar a história da população negra, através da reflexão sobre o “rolo compressor” que enrolou os saberes científicos da cultura afrodescendente nas academias.

Os alunos têm demonstrado abertura e diálogo para o debate e, sobretudo, a compreensão no processo de identidade discutido por Munanga e Follmann e principalmente a temática da patologia do branco brasileiro, branquitude normativa e branquidade, baseado em autores como Ramos, Ware, Bento e Pinheiro.

Temos a certeza que as reflexões desenvolvidas ao longo deste último capítulo podem contribuir significativamente para percebermos concretamente as experiências vividas no cotidiano acadêmico, sobremaneira as contribuições voltadas nas quebras de paradigmas que provocam inúmeras confusões na mentalidade dos estudantes e demais profissionais das áreas de conhecimento.

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Considerou-se a importância dos trabalhos realizados no Núcleo de Estudos Afro-brasileiros, que é o programa condutor das diversas atividades desenvolvidas atualmente na Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Além das atividades desenvolvidas pelo próprio programa, conta-se ainda com o compromisso do Grupo Articulador, que tem como objetivo auxiliar na disseminação deste trabalho em todas as áreas de conhecimento.

As disciplinas da Educação das Relações Étnico-raciais e Afrodescendente e América Latina também têm sido uma das ferramentas muito produtivas no aprendizado dos alunos que representam atualmente 7 turmas que foram matriculadas. Os resultados têm sido enaltecedores no sentido de apreciar o aprendizado de cada aluno. Os conceitos como raça, racismo, etnia, identidade, branquitude e branquidade são conceitos que têm estimulado os alunos numa busca constante para desvendar os muitos conhecimentos que não foram respeitados no meio acadêmico e que a visão científica e a ciência deixaram à margem como a temática da população negra e indígena, seus saberes civilizatórios e a valorização de seus sujeitos.

Já as questões das cotas, logo no início, os alunos já chegam à sala de aula esperando que se vão discutir as cotas já de imediato, mas logo percebem que há muitos conhecimentos históricos que antecedem todo debate das cotas. Resgatamos inclusive a própria educação tradicional e as formas como nos apoderamos dos conhecimentos que fizeram parte da nossa infância. A problemática histórica da população negra e a branca contribuem para que os alunos percebam as lacunas não refletidas e que causaram profundo desconhecimento e por isso o desconhecimento das necessidades das cotas, mesmo que temporárias. Assim como foi a própria lei das “cotas do boi” no RS.

O livro, através do primeiro e do segundo capítulo, nos ajudou a ampliar o horizonte da reflexão sobre os processos de Educação das Relações Étnico Raciais reportando aspectos

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fundamentais da história da África e dos afrodescendentes no Brasil e Rio Grande do Sul e também aspectos referentes ao “mundo das religiões e religiosidades”.

Neste sentido, o primeiro capítulo foi pautado na premissa de que não podemos falar no Brasil sem falarmos na África. O capítulo buscou demonstrar que o melhor caminho para compreender a história do Brasil é entender de África, pois dela somos herdeiros biológicos e culturais.

Da mesma forma, o segundo capítulo, mutatis mutandi, (mudando ou o ato de mudar), esteve pautado na ideia de que não podemos falar em religiões e religiosidades no Brasil, sem nos reportarmos ao complexo processo religioso que marca a história do continente africano.

Hoje estamos longe do tempo em que o padre católico batizava os africanos escravizados, dando-lhes a identidade de católicos, ato contínuo à ordem do comprador dos mesmos que mandava marcar, com o ferro em brasa (o selo da posse), as suas novas mercadorias, como peças de trabalho. Apesar dessa violência sistemática, a cultura religiosa dos afrodescendentes persistiu em sua riqueza e diversidade. Hoje em dia se pode conversar honesta e tranquilamente sobre isto. Podemos presenciar diversas situações de diálogo e reconhecimento mútuos envolvendo lideranças católicas e lideranças de religiões de Matriz Africana junto com representantes de diversas outras denominações e confissões religiosas para desenvolver propostas comuns.

No capítulo segundo foi realizado um caminho rico, tortuoso e inacabado pelo “mundo das religiões e religiosidades”, visitando os afrodescendentes em São Leopoldo. Pode-se dizer que a evolução do fenômeno religioso acompanha efetivamente transformações havidas na geografia humana do município. Ou seja, esta hoje tende para um crescente pluralismo racial e étnico.

O processo de mudança avança junto com a expansão dos empregos gerados pela implantação de parques industriais, de quartéis militares - houve tempos em que havia três quartéis na

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cidade e hoje são dois - e a expansão da rede de ensino, sobretudo a de nível superior, abriram portas a uma infinidade de migrantes internos, propiciando ampla miscigenação de sobrenomes antes inimaginável. Quiçá, por isso, encontra sentido emblemático o fato que São Leopoldo por alguns anos, recentemente, festejou com menor intensidade o dia do migrante alemão, optando pela São Leopoldo Fest de todas as cores e culturas.

A opção pela religiosidade afro-brasileira encontra substancial justificativa na afinidade cultural com o meio, como deixam claro alguns testemunhos dos entrevistados: felizmente “encontrei meus ideais” ou só agora “me encontrei verdadeiramente”, destacam. Outros acentuam que entraram para a umbanda por causa do “fascínio do culto afro”, porque “senti que a católica não é africanista”.

Também a visão de que as religiões afro-brasileiras propiciam paz, ajuda espiritual para a solução de problemas concretos, alcança boa receptividade neste grupo: “na minha religião é melhor para receber ajuda”, “na umbanda é que resolvemos os problemas de marido e mulher e de saúde”, “entrei por causa de doença, tive cura”, porque a “mãe de santo é a verdadeira psicóloga do povo”, assinalaram estes.

Mas dentre os aspectos apontados como motivo da mudança, o que mais vezes vem a calhar é o de “antes tinha somente uma religião tradicional”, “não era praticante”, “era católico por tradição” e por isso a mudança de credo incide em um sentimento de que optou por algo seu, de acordo com os seus “ideais culturais”.

Existem, no entanto, algumas questões, ou, uma grande questão, que não podem ser caladas no final da costura desta nossa bela “colcha de retalhos”. O percentual relativamente baixo nas estatísticas do IBGE no que tange à participação dos afrodescendentes nas religiões de Matriz Africana e Umbanda não estaria ocultando mais um processo de branqueamento “incorporado” neles? Muitos se tornaram seguidores de Igrejas Cristãs Pentecostais e Neopentecostais, mas, sobretudo, muitos

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que são seguidores de religiões de Matriz Africana e Umbanda, preferem se identificar como sendo da Igreja Católica, quando perguntado sobre sua identidade religiosa.

Como sinalizamos anteriormente só será possível efetivamente compreender a sociedade brasileira se referirmos essa compreensão ao entendimento da África. Neste sentido, assim como o capítulo segundo fez o esforço de referir aspectos descritivos importantes do “mundo das religiões e religiosidades” no continente africano para entender melhor o que vai pelas opções religiosas dos afrodescendentes em São Leopoldo, assim as contribuições do capítulo primeiro, trazendo alguns detalhes históricos da África e dos afrodescendentes no Brasil e Rio Grande do Sul, são chaves para podermos situar e entender melhor o que acontece em nível de adesões religiosas e, sobretudo, em nível de processos educativos e seus limites.

O capítulo primeiro detalhou resumidamente como mesmo antes da chegada dos europeus, já havia civilizações no território africano que podem ser exemplificadas através dos grandes reinos sudaneses e bantos, formados na era antiga do continente.

Mostrou-se que na idade moderna ocidental, os africanos foram vítimas do maior holocausto já visto na humanidade: o tráfico negreiro. Este tráfico foi responsável pelo abastecimento de mão de obra no novo mundo, principalmente para o Brasil. Nas novas frentes coloniais no continente americano, os trabalhadores escravizados foram o motor de desenvolvimento. Isto não foi diferente no atual território do sul-rio-grandense.

O mesmo capítulo primeiro nos fez concluir que a história do continente africano, na maioria das vezes, é mostrada com um grande grau de preconceito e de estereótipos infundados. Desta forma, sonega-se a história para enfatizarmos o exotismo, belas paisagens e o mundo selvagem. Parece nada mais existir a não ser animais, florestas e o autismo próprio destes lugares.

Demonstramos que a África não é só isto. Ela é o berço da humanidade, lugar onde nasceram as primeiras civilizações e

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alguns dos Estados mais prósperos e pujantes do mundo antigo, como Gana, Mali, Songhai, Egito etc. Foi também a responsável pelo fornecimento de trabalhadores escravizados que sustentou o novo mundo e, consequentemente, impulsionou a prosperidade da Europa, através da riqueza das Américas e da própria África. Como também o continente negro foi vítima da espoliação europeia através do colonialismo.

Como já sinalizamos, quanto ao Brasil, não é possível falar-se desse sem o vincular com o continente negro, pois o mesmo foi o maior importador de mão de obra de trabalhadores escravizados negros. Chegaram a superar numericamente o de europeus e seus descendentes. Os africanos cativos foram “os pés e as mãos dos latifundiários brasileiros”, portanto responsável direto pela produção da riqueza gerada nessas terras.

A importância dos trabalhadores escravizados negros se deu em todo o território brasileiro, inclusive do Rio Grande do Sul. Embora pese ainda nos dias atuais uma negação do elemento servil nas terras gaúchas, eles estiveram presentes desde sua fundação até os últimos anos da escravidão.

Trabalhando nas charqueadas, nas fazendas ou nas grandes cidades, lá estava o negro escravizado dando seu suor para o desenvolvimento sulino. Mas não podemos pensar que esta escravização se deu sem luta. Desde a chegada dos primeiros africanos feitorizados, os mesmos se rebelaram contra o cativeiro, quer através de fugas, assassinatos, quer formando quilombos para fugir dos horrores da escravidão.

Por fim, não podemos falar em Brasil sem nos referirmos à escravidão e não podemos falar em escravidão sem nos reportamos à luta dos trabalhadores servis na busca de sua liberdade. Prova disso são as comemorações feitas a Zumbi dos Palmares, ícone da luta dos negros por sua liberdade. O evento escravidão é um tremendo agravante nas relações étnico-raciais no Brasil e faz que com tenhamos que concluir que as raízes históricas de tudo o que se vivencia nesse âmbito são profundas e é necessário cavar muito para chegar a elas e arrancá-las.

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Para concluir este livro, e tendo presente que se trata, sobretudo, de reversão ou conversão da postura da sociedade branca, entendemos que um dos caminhos que vislumbramos é o de saber assumir a causa do outro. Neste sentido lembramos um texto que circulou no meio da Ordem dos Jesuítas, a partir de abril de 2006, elaborado por uma equipe internacional e intercultural de jesuítas sob a coordenação do Secretariado para a Justiça Social, da Companhia de Jesus, durante a preparação da 35ª Congregação Geral, que é o órgão deliberativo máximo desta Ordem Religiosa, havia a seguinte recomendação: é recomendável que cada jesuíta se empenhe em defender ao menos uma cultura, que não seja a sua! Esta formulação não entrou em nenhum texto oficial, mas é com certeza altamente inspiradora e faz parte do espírito da Companhia de Jesus.

Como vivemos em uma sociedade que é vítima de uma longa história de políticas de branqueamento, trata-se, sem dúvida, de uma ótima fórmula para um branco romper as algemas de seu embotamento racial, colocando-se na efetiva defesa do negro e fazendo de sua prática cotidiana uma “prática afirmativa” deste outro tão espezinhado em nossa história.

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Referências

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