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Filosofia da Natureza Bruno Pettersen 1 Uma introdução à relação entre a Filosofia e as Ciências Naturais Bruno Pettersen 1 Introdução Este texto tem o objetivo de guiar as primeiras aulas da disciplina Filosofia da Natureza. Ele deve servir como uma explanação do argumento das aulas e também como uma indicação de fontes adicionais de leitura. Como o propósito do texto é a nossa disciplina, ele não deve ser citado e sua circulação deve ser apenas para as atividades da Faje. O texto é dividido em três partes. A primeira se ocupa em mostrar as relações existentes entre a filosofia e as ciências naturais, ressaltando a natureza do discurso de ambas atividades. A segunda parte tem o objetivo de examinar o conceito e os usos da ideia de “natureza”. Na última parte, abordaremos a atual descrição física de natureza. Parte 1. Em que se diferenciam ciência natural e filosofia? Introdução Desde do início da modernidade, quando a filosofia se tornou uma disciplina diferenciada da ciência, uma pergunta vem sendo feita por 1 Professor da Faje. Email: [email protected]. pesquisadores de ambas as áreas: há alguma diferença entre filosofia e ciência? Qual deve ser a relação entre a filosofia e as ciências? Logo de início podemos dizer que tanto a filosofia como a ciências naturais tem o mesmo objetivo fundamental: compreender o mundo natural. Justamente por manter tal objetivo comum é interessante supor que as duas atividades possam ser colocadas em relação, mas talvez não uma de igualdade, mas sim de proximidade. Neste texto, o nosso objetivo é o de pensar a natureza destas duas atividades de modo a poder diferenciá- las e também aproximá-las. Seção 1. As diferenças formais Um dos aspectos mais importantes para refletirmos acerca dessas atividades diz respeito à sua estrutura formal. No entanto, devemos notar que enquanto discurso, a ciência e a filosofia tem se afastado bastante nos últimos séculos. De um modo geral, na filosofia é o argumento, a capacidade de se “dar e pedir razões” quem decide os debates. Na ciência o argumento é quase sempre o ponto de partida, mas o modo de se obter as respostas é a experiência. Mas qual é a razão da diferença entre o discurso destas duas atividades? Começando pela filosofia, podemos supor que ela tem sempre como o objeto o entendimento do universal. A aproximação da filosofia nunca é do caso particular. Na filosofia sempre se está interessado em perguntas que visam entender o que de universal subjaz à multiplicidade particular. Perguntamos não “que horas são?”, mas “o que é o tempo?”;

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Filosofia da Natureza

Bruno Pettersen

1

Uma introdução à relação entre a Filosofia e as

Ciências Naturais

Bruno Pettersen1

Introdução

Este texto tem o objetivo de guiar as primeiras aulas da disciplina

Filosofia da Natureza. Ele deve servir como uma explanação do argumento

das aulas e também como uma indicação de fontes adicionais de leitura.

Como o propósito do texto é a nossa disciplina, ele não deve ser citado e

sua circulação deve ser apenas para as atividades da Faje.

O texto é dividido em três partes. A primeira se ocupa em mostrar

as relações existentes entre a filosofia e as ciências naturais, ressaltando a

natureza do discurso de ambas atividades. A segunda parte tem o objetivo

de examinar o conceito e os usos da ideia de “natureza”. Na última parte,

abordaremos a atual descrição física de natureza.

Parte 1. Em que se diferenciam ciência natural e

filosofia?

Introdução

Desde do início da modernidade, quando a filosofia se tornou uma

disciplina diferenciada da ciência, uma pergunta vem sendo feita por

1 Professor da Faje. Email: [email protected].

pesquisadores de ambas as áreas: há alguma diferença entre filosofia e

ciência? Qual deve ser a relação entre a filosofia e as ciências?

Logo de início podemos dizer que tanto a filosofia como a ciências

naturais tem o mesmo objetivo fundamental: compreender o mundo

natural. Justamente por manter tal objetivo comum é interessante supor

que as duas atividades possam ser colocadas em relação, mas talvez não

uma de igualdade, mas sim de proximidade. Neste texto, o nosso objetivo é

o de pensar a natureza destas duas atividades de modo a poder diferenciá-

las e também aproximá-las.

Seção 1. As diferenças formais

Um dos aspectos mais importantes para refletirmos acerca dessas

atividades diz respeito à sua estrutura formal. No entanto, devemos notar

que enquanto discurso, a ciência e a filosofia tem se afastado bastante nos

últimos séculos. De um modo geral, na filosofia é o argumento, a

capacidade de se “dar e pedir razões” quem decide os debates. Na ciência o

argumento é quase sempre o ponto de partida, mas o modo de se obter as

respostas é a experiência. Mas qual é a razão da diferença entre o discurso

destas duas atividades?

Começando pela filosofia, podemos supor que ela tem sempre

como o objeto o entendimento do universal. A aproximação da filosofia

nunca é do caso particular. Na filosofia sempre se está interessado em

perguntas que visam entender o que de universal subjaz à multiplicidade

particular. Perguntamos não “que horas são?”, mas “o que é o tempo?”;

Filosofia da Natureza

Bruno Pettersen

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perguntamos “o que é a beleza?” e não “qual é o meio de reduzir o

ingresso do museu?”.

A filosofia busca a totalidade porque há uma particularidade que

podemos chamar de formal na pergunta filosófica: ela sempre almeja o

fundamento das coisas. Neste sentido, ela precisa de um método adequado

de resposta, que possa, de alguma forma, dar conta deste universal, e

vemos que a experiência não pode ser o crivo deste discurso, justamente

por evocar apenas o particular. Isso não quer dizer que a experiência é

ignorada na filosofia, mas apenas que como o escopo da experiência é o

mundo particular, ela não pode servir como critério para a decisão daquilo

que subjaz à multiplicidade.

Já as ciências naturais2 têm como objetivo os temas particulares. O

cientista quer sempre jogar luz em um ou outro aspecto específico da

natureza. Ele está interessado em certo conjunto de leis, de seres ou

fenômenos, ou determinada reunião de problemas. Do ponto de vista da

ciência, questões realmente universais não são frequentemente tratadas. A

experiência pode ser o crivo do discurso, porque ela pode ser evidência

para um tema particular.

Não devemos ser ingênuos sobre a ciência: apesar dela não se

interessar pela busca de um fundamento último, ela se interessa sim por

algum fundamento. As ciências naturais não querem perguntar sobre o

fundamento da realidade, como o faz a filosofia, mas querem saber o

fundamento de sua própria área de investigação, onde o físico se pergunta

o fundamento das leis e o biólogo se pergunta sobre a natureza da vida. O

2 É importante aqui notar que o termo “ciência natural” é um termo amplo que

pretende incluir todas as disciplinas interessadas em estudar a natureza sem incluir

o estudo das modificações culturais realizadas pelo ser humano.

que torna a experiência o crivo, é que ela pode servir para nos aproximar

do fundamento específico daquela área.

A filosofia e as ciências naturais são perspectivas parcialmente

autônomas. Isso quer dizer que não é necessário desenvolver uma para

pensar se a outra. Mas, ao fim e ao cabo, as reflexões universais só podem

ser colocadas de modo preciso se temos alguma compreensão adequada de

que problemas nos interessam em específico. Assim, por exemplo,

perguntar “o que são leis da natureza?”, que é uma pergunta

essencialmente geral, precisa contar com uma compreensão de como as

ciências naturais tem pensado o problema da colocação de leis. De modo

diverso, as ciências têm usado conceitos filosóficos, com categorias

obviamente universais, de um modo mais aberto. Hoje a Física fala em

conceitos como “eternidade”, “tempo” e a Biologia fala de “vida” e

“natural”, termos que tem uma energia que engloba todo o mundo natural e

são questões também filosóficas. Estas questões filosóficas são tão

fundamentais para o desenvolvimento das ciências que os melhores físicos

e biólogos de nossa geração tem se ocupado com reflexões filosóficas de

suas atividades. Isso fica claro do lado da física as inúmeras publicações de

Einstein3 sobre a cosmovisão e de Heisenberg4 sobre a relação Física e

Filosofia, e também as publicações mais tardias de Mayr5 sobre conceitos

filosóficos da Biologia.

3 Einstein, Albert. Como vejo o mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981 4Heisenberg, Werner. Física e Filosofia. Brasília: Editora Universidade de Brasília,

1981. 5 Mayr, Ernst. Isto é Biologia: a ciência do mundo vivo. São Paulo: Companhia

das Letras, 2008.

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Neste sentido, podemos dizer que o objetivo da chamada filosofia

da natureza é fazer uma reflexão universal sobre o mundo natural em

conjunção com as ciências naturais, ou seja, de alguma forma relacionar

estes terrenos de investigação ao redor do mesmo objetivo: conhecer a

natureza.

Seção 2. As relações da filosofia da natureza com outras áreas

da filosofia.

Trazendo o tema da relação entre áreas do conhecimento para o

centro do nosso debate, agora examinaremos a questão de como as áreas da

filosofia são afetadas pela variedade de conhecimentos científicos.

Faremos isso especialmente com a antropologia e a epistemologia, áreas

que receberam o maior impacto das ciências naturais.

Antropologia

A atividade filosófica que tem mais sido afetada pela reflexão

científica é a antropologia. Muitas das teorias clássicas do acerca do ser

humano costumavam colocá-lo como um ser especial, qualitativamente

diferente dos outros seres. A ideia básica envolvia que para entender o ser

humano precisaríamos de refletir categorias não naturais, tais como seu

“espírito”, que a rigor, não seria parte do mundo natural. Esta maneira de

pensar o ser humano acabou gerando um ser esquizofrênico, onde o ser

humano estaria ao mesmo tempo na natureza e fora dela.

No entanto, nos últimos 1006 anos essa caracterização dupla do ser

humano tem sido fortemente problematizada, colocando o ser humano

frequentemente como um ser apenas da natureza, sem que ele tenha

qualquer característica que seja qualitativamente diferente dos outros. Toda

a Biologia tem apontado para o fato de que a diferença entre animais não

humanos e animais humanos é apenas da ordem quantitativa. Posta a

questão, “se o ser humano é ou não reduzível à natureza física?”, uma

investigação da filosofia da natureza, associada à Biologia pode certamente

nos guiar a pensar uma antropologia mais adequada.

Epistemologia

Não é apenas a antropologia que é profundamente impactada pela

filosofia da natureza. Todas as outras atividades filosóficas o são. De modo

também central, a epistemologia foi marcada pela filosofia da natureza. É a

teoria do conhecimento, em certo sentido, se tornando também teoria de

uma mente na natureza.

A epistemologia sempre se perguntou: como é possível conhecer?

Para responder a essa questão é necessário categorias que são próprias da

filosofia da natureza e das ciências, como “o que é a racionalidade

humana?” ou “que características têm a psique humana?”, entre outras

questões igualmente importantes. Tais questões são agora tematizadas não

apenas com conceitos próprios da filosofia como justificação e verdade,

mas também com ideias das ciências naturais, especialmente aquelas

6 Muitos antigos sabiam muito bem a natureza animal do ser humano,

especialmente Aristóteles, que definia o ser humano como um animal político.

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fornecidos por pesquisas de cunho psicológico sobre a natureza da mente e

suas crenças.

Outras áreas e as ciências naturais

Além da antropologia e da epistemologia, outras atividades foram

também impactadas pela filosofia da natureza.

A teologia pode agora se colocar questões tais como a natureza do

universo e sua criação a partir dos desenvolvimentos da física e da

cosmologia do século XX, que tem também ativamente colocado estas

questões.

A metafísica, que se pergunta “o que existe?”, tem agora também

de encarar de frente o debate na Física, indicando se toda a realidade é

“física” ou não. Além disso, os modelos de descrição da natureza feitos

pela Física nos colocam o problema de saber se tudo o que é descrito pela

Física é a própria natureza ou é apenas uma descrição funcional dela.

A estética pode se perguntar se há uma base cerebral ou

psicológica para o reconhecimento da beleza. Ainda que a beleza não seja

completamente dada por meio de uma avaliação naturalista, devemos

poder enriquecer nossa descrição estética a partir da questão de se há ou

não padrões naturais de reconhecimento de beleza.

Os casos mencionados, indo da antropologia à estética, são apenas

alguns deles. Em verdade, as ciências naturais cortam toda a filosofia de

modo indelével. A ideia aqui não é propor como esta relação pode ser

colocada, mas simplesmente o fato de que não nos parece possível

estabelecer mais as atividades da filosofia sem a presença das ciências.

Seção 3. Filosofia da natureza: por uma cosmovisão sem

dogmas

Um dos objetivos mais fundamentais da filosofia da natureza é

debater a possibilidade de uma cosmovisão em nossos dias. Tal tarefa é

seriamente dificultada pelas ciências naturais. Vejamos o porquê disto.

Antes da grande emergência das ciências naturais a partir do século

XVII, o homem possuía uma visão da “realidade como um todo”, ou seja,

uma “cosmovisão”, que em grande medida era derivada da religião e de

algumas compreensões rudimentares da ordem natural. Essa cosmovisão

permitia que nós pudéssemos entender qual era o nosso lugar na natureza e

como o mundo natural se desenrolava no tempo. Havia um sentido de

coesão na natureza e o homem se sentia integrado ao mundo natural.

Depois da chamada Revolução Científica do século XVII, essa

coesão foi rompida. Ocorre que as ciências naturais, na sua tentativa de

entender o mundo natural, acabaram por fragmentá-lo, dividindo-o em

tantos pedaços quanto possível. Foram criadas muitas ordens naturais. O

ser humano é um exemplo desta imagem, ele é tanto um animal, como uma

coleção de órgãos, moléculas, átomos, subpartículas e tantas outras ordens

quanto o são as ciências. Essa pluralidade de possibilidades fragmentou

nossa visão sobre a realidade, nossa cosmovisão. Não sabemos de modo

claro o que é o mundo natural e o que é o ser humano. Seguiu-se toda a

expectativa humana diante da falta de compreensão do mundo, do nosso

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deslocamento na natureza e da falta de compreensão exata de quem somos

exatamente.

A cosmovisão é algo que nos interessa como humanos, ainda que

não fique totalmente claro se realmente precisamos dela.

Essa pluralidade de ordens naturais não pode ser vista como um

impasse para a filosofia da natureza, antes: ela é mais estimulante. Hoje

temos muitas visões para dar conta, muitas imagens do que é o ser humano

e a natureza. Estas muitas imagens nos permite criar um panorama mais

rico de nossa realidade.

Não acreditamos ser possível oferecer uma cosmovisão final, pela

própria natureza da ciência, como um discurso em aberto, mas certamente

é parte de nosso objetivo fazer alguns apontamentos para uma reflexão

pessoal sobre este problema.

De modo mais fundamental, a filosofia da natureza se pretende

como uma espécie de remédio contra cosmovisões oportunistas ou

inadequadas. Exemplos desta inadequação são muitos, como o

mecanicismo, o positivismo, a “new age”, os usos atuais indevidos da

mecânica quântica e tantas outras maneiras de se criar cosmovisões que

são ingênuas, imprecisas ou simplesmente mal intencionadas. Tudo o que

podemos apontar neste momento é que nenhuma descrição simples é

possível. A reflexão sobre a cosmovisão contemporânea é profundamente

estimulante, mas de modo algum é simples de ser estabelecida.

Conclusão

A filosofia da natureza é uma atividade radical. Colocam-se

perguntas fundamentais e apontamos para uma colaboração entre a

filosofia e as ciências naturais. Esta relação precisa começar exatamente

pela pergunta do que exatamente significa o termo “natural”, tarefa esta

que nos ocupará na próxima seção.

Para saber mais:

Leia:

Livro Crítica da Razão Pura (especialmente o Prefácio) de

Immanuel Kant, publicado em 1996.

Livro Isto é Biologia de Ernst Mayr, publicado em 2010.

Livro O que é Cosmologia de Mario Novello, publicado em 2010.

Veja:

Documentário "Story of Science" produzido em 2010 e

apresentado por Michael Mosley.

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Parte 2. O conceito de natureza.

Introdução

Nesta seção analisaremos o conceito de natureza. Para tal,

dividiremos nosso exame em seções. Na primeira, serão examinadas as

duas concepções de natureza que foram as mais populares da história do

pensamento. Na segunda falaremos dos usos do substantivo e do adjetivo

“natureza”. E na terceira seção veremos os problemas presentes no uso do

termo “natureza”.

Seção 1: Duas ideias fundamentais de natureza na história do

pensamento

Podemos dizer que no Ocidente duas ideias sobre o que é a

“natureza” dominaram durante os últimos três milênios: a primeira é uma

concepção da natureza como um "organismo" e a segunda é a ideia da

natureza como um "mecanismo". Vamos verificar estas duas concepções.

A natureza como um organismo

A ideia da natureza como um “organismo” é tão antiga como a

própria ideia de natureza. As primeiras abordagens deste tema foram feitas

pelas religiões que identificavam a natureza como a fonte de toda a vida.

Muitos dos ritos, das mais antigas formas religiosas, queriam revelar as

conexões ocultas entre o ser humano e o mundo natural. Esta concepção da

natureza e sua ligação com o ser humano deu origem à ideia de que a

natureza seria uma espécie de organismo vivo. Pensar a natureza assim é

supor que ela é:

1) Um processo animado e autônomo: a natureza teria algum tipo

de “intencionalidade”, querendo realizar tal ou tal ato através

da manifestação de uma espécie de vontade.

2) Que a “natureza” passa pelos processos normais de

desenvolvimento dos organismos, nascendo, crescendo e

morrendo para depois tomar nova forma.

3) É dada numa totalidade. Neste sentido, ainda que possamos

reconhecer as partes, a real descrição da natureza só pode ser

dada quando percebermos que a natureza é um todo.

Tomar a ideia da natureza como um organismo é pensar que toda a

natureza é viva e que ela tem uma estrutura que é interdependente,

inclusive, inserindo o ser humano no seu interior. Essa visão da natureza

tenta tomar as características que são percebidas no ser humano e aplicá-

las ao mundo natural, o que contribuí para uma imagem da natureza onde

não somos diferentes dela. Nesta imagem de natureza, não há

independência das partes da natureza, sendo que para que nós possamos

estudá-la, precisamos buscar o conhecimento pela integração.

A natureza como um mecanismo

No século XVII outra ideia de natureza surge, a saber, da natureza

como sendo um “mecanismo”. Esta ideia sugere que a natureza é composta

de um conjunto de diminutas partes, que não são vivas, mas que ao ser

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colocadas em movimento, por leis ou por um Deus tornam-se vivas. As

ideias fundamentais desta concepção são:

1) A natureza é feita de partes independentes,

2) Uma vez estando em seu devido lugar, tais partes obedecem às

leis e não à vontade,

3) O mecanismo deve ser compreendido pelas suas partes.

A ideia da natureza como um mecanismo é muito popular.

Frequentemente escutamos as pessoas dizerem frases tais como "o corpo é

uma máquina perfeita" ou que "a natureza é como um relógio". Nesta

imagem, como num relógio, cada parte da natureza é realmente

independente e pode ser estudada como tal.

Essas duas visões do que é a natureza oscilaram durante vários

séculos. Atualmente, a imagem mecanicista é a dominante. No entanto,

encontramos pensadores determinados a abandonar tal imagem em prol de

uma visão organicista. O grande debate atual é saber se tal mentalidade

mecanicista surgida após a revolução científica realmente nos possibilitou

conhecer melhor a natureza ou se apenas nos permitiu lidar melhor com

ela.

Seção 2: As formas de se usar o substantivo e o adjetivo

“natureza”

A pergunta filosófica parece sempre ser atraída para uma questão

mais fundamental e que normalmente é colocada ao nos perguntarmos: “o

que significa o conceito de...?”. Este procedimento, afinal, bastante útil,

tem o objetivo de avaliar a estrutura fundamental do tema discutido –

embora quase sempre nos cause mais perplexidade do que uma resposta

definitiva. Para entrar nesse meandro, nos perguntemos: como a palavra

“natureza” é realmente usada e qual é o seu real sentido? Para nos auxiliar

aqui, voltaremos ao livro “Filosofia da Natureza” de M. Artigas7, onde ele

faz um ótimo catálogo das formas mais comuns de expressar o conceito de

natureza, dividindo nos usos substantivo e adjetivo de nosso conceito.

Vamos a eles.

O uso do substantivo “natureza”

Artigas nos mostra que o substantivo "natureza" pode ser usado em

dois sentidos: como (1) essência ou (2) como o conjunto de tudo, vejamos.

(1) A ideia da "natureza de algo" pode ser dita como o sentido

metafísico de natureza. Aqui aproximamos o substantivo natureza, do

substantivo "essência". Esse sentido de natureza é bastante comum, e é

usado tanto comumente, como numa visada técnica. Normalmente dizemos

que a natureza daquela árvore é “gerar frutas”, e num sentido técnico que a

natureza do humano é “ser racional”.

A grande utilidade deste uso do conceito de natureza é a

representação de que há em todas as coisas uma espécie de âmago, sem o

qual a coisa deixa de ser o que ela é. Tal âmago poderia ser compreendido

7Artigas, Mariano. Filosofia da natureza. São Paulo: Instituto Brasileiro de

Filosofia e Ciência "Raimundo Lulio" (Ramon Llull), 2005.

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racionalmente ou intuitivamente e representaria o ápice do conhecimento

de qualquer objeto da razão.

O problema com este uso de “natureza” é a suposição forte de que

há uma essência que une a multiplicidade em um todo coerente. Essa ideia

pode ser colocada em xeque quando observamos vários seres, dentre eles o

ser humano. Não parece haver uma parte mais essencial no corpo humano,

nem mesmo na caracterização psicológica. Pode ser que ao invés de uma

natureza, tenhamos várias características importantes e interdependentes,

sem que seja possível encontrar apenas uma ou duas essências, o que

inviabilizaria a própria ideia de essência.

(2) O segundo uso do substantivo natureza seria a ideia da natureza

com o “conjunto dos seres físicos”. Aqui atribuímos como natureza a

existência de todos os seres, vivos ou não. Normalmente este é o uso

comum do substantivo natureza. Quando alguém se refere à “preservação

da natureza” ou ao “contato com a natureza” o uso tem a ver com alguma

referência às coisas físicas em sua ou totalidade.

O problema neste uso de natureza é como classificar aquelas coisas

que são naturais. Neste sentido, precisamos sair do uso substantivo e ir

para o uso do adjetivo “natureza”.

O uso do adjetivo “natureza”

Continuando com a avaliação realizada por Artigas, podemos

pensar em quatro sentidos do adjetivo “natural”:

(1) Natural como aquilo que é espontâneo. A finalidade deste uso

do conceito é revelar que há um mecanismo interior à natureza que se

manifesta de um modo não forçado. Um exemplo aqui é pensar que é

natural ao tomate ter o gosto que tem, mas a cor que ele tem muitas vezes é

forçada através de uma manipulação. Assim, seria natural ao tomate ser

uma fruta, mas não é natural que ele tenha a cor que muitas vezes ele tem.

Este uso não é perfeitamente claro. O problema é que o termo

“espontâneo” parece sugerir que não há intervenção humana. Mas aqui se

pensa desde o início que o ser humano não seria natural, o que em si

mesmo é um problema.

(2) Natural como aquilo que não é artificial. Aqui temos uma

extensão do sentido acima, onde natureza seria tudo aqui que ocorre

principalmente sem a intervenção humana. Este uso do adjetivo natural é

problemático, no entanto, é um dos mais comuns. Falamos em “sanduíche

natural” como sendo um que não recebeu nenhuma “modificação” pelo ser

humano, o que é por demais confuso, pense: o que seria um sanduíche

artificial?

(3) O natural como aquilo que é distinto do espiritual. Neste

sentido a ideia de um espírito implica em concepção de algo que não

estaria submetido às leis naturais. Um exemplo comum aqui é a liberdade,

como podemos ver nos moldes kantianos.

No entanto, este uso é também bastante problemático, porque

podemos pensar em um cenário, no qual se inclua dentro da ideia de

“natureza” a manifestação espiritual, seja ela de que tipo for. De todo

modo, a exclusão do espiritual não é tão simples assim.

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(4) O natural como aquilo que é distinto do sobrenatural. Este

sentido indica que tudo o que ocorre segundo as leis da natureza é natural e

tudo aquilo que ocorre de modo contrário às leis da natureza é

sobrenatural. A definição de Hume do milagre como “uma ação que

acontece contra a ordem natural” é um exemplo aqui. Mas este uso é

apenas um desdobramento do uso em (3).

Seção 3: O problema com a ideia de “natureza”

Como vimos acima, muitas vezes o conceito de “natureza” é usado

apenas como sendo uma espécie de contraponto, para indicar “aquilo que o

ser humano não tocou”. No entanto, deve ser notado que este é um uso

relacional, entre alguma coisa tal como “a natureza” e por outro lado “o ser

humano”, onde este último não diz respeito à própria estrutura da realidade

natural.

No final das contas, o termo “natureza” mais incomoda do que

ajuda, uma vez que ele não descreve aparentemente coisa alguma. O

problema é que ele é uma antiga ideia problemática: não se engane

“natureza” é quase sempre usado para falar “não humano”, como se o

humano fosse não natural.

Em um sentido clássico, o termo “natureza” pode ser usado para

falar do Universo ou do Cosmo, tanto no sentido físico, quanto no sentido

de totalidade, aí incluindo o próprio humano. Mas o termo natureza está

maculado pelos muitos usos problemáticos ao longo dos séculos. Assim,

façamos uma associação: sempre que usarmos o conceito “natureza”

estaremos usando no sentido de “físico”. A natureza é tudo aquilo que é

físico, e o que é físico é tudo aquilo que é a natureza.

Mas o que é o mundo físico? É tal descrição que nos interessa a

partir de agora.

Para saber mais:

Leia:

O livro Filosofia da Natureza de M. Artigas, publicado em 2005.

Veja:

Filme "Ponto de Mutação" de 1990 dirigido por Bernt Capra.

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Parte 3: A estrutura do mundo físico

Introdução

Desde o século XVII, com a chamada Revolução Científica, a

nossa imagem da realidade física vem sendo modificada pela ciência.

Antes do século XVII tínhamos uma disciplina responsável pelo estudo da

natureza, a Filosofia da Natureza, que era uma área da Filosofia, que foi

emancipada e gerou as ciências naturais, tais como a Física, a Química, a

Biologia, a Geografia e tantas outras.

Apesar da separação, uma das características mais importantes do

discurso da Filosofia foi preservada na ciência: a possibilidade de revisão.

A força da Filosofia é que sempre podemos mostrar que o nosso antecessor

está errado (ou certo). E tal força é a mesma da ciência. Por causa dessa

característica do discurso filosófico e científico, temos que eles não são

definitivos. E por isto, o que vamos refletir é uma aposta recente para a

descrição daquilo que é o mundo físico. Vamos seguir de perto

especialmente o que a Física e a Biologia tem a dizer sobre a natureza da

realidade.

Podemos organizar a natureza em leis e padrões de matéria.

Seção 1: Leis

Os gregos criaram a necessidade de uma explicação da natureza

que desse conta dos mecanismos internos que governariam a estrutura do

mundo. No entanto, estes mecanismos não são visíveis, sendo descobertos

apenas por meio da racionalidade. Esse primeiro esforço para o

conhecimento da natureza levou à criação da ideia grega de “causa”.

Obviamente a ideia de causalidade sempre esteve presente para o

ser humano: desde o fato de que o ato de comer causa a saciedade, até a

ideia de que um Deus causou a criação. No entanto, no mundo pré-grego a

causalidade era tratada apenas como um fato empírico do mundo que nos

possibilitava a vida. O que os gregos alteraram foi o tratamento da

causalidade, atribuindo explicitamente a esta ideia quatro aspectos

fundamentais: ordem, universalidade, racionalidade e necessidade,

vejamos cada uma delas.

1. Ordem: A ordem da natureza representa a regularidade dos

fenômenos que vemos em nosso dia-a-dia, indo do ciclo da

Lua até a regularidade presente no fenômeno da vida e

morte dos seres vivos. O que os gregos fizeram foi atribuir

à ideia de causa à ordem percebida no mundo. A natureza

tem uma ordem por uma causa natural.

2. Universalidade: A ideia de universalidade também fora

bastante importante para a ideia de causa. A universalidade

da causa nos informava que havia uma estrutura

fundamental da realidade, a causa, que poderia ser

responsável não apenas por um fenômeno, mas por vários.

Por exemplo, que a causa do movimento da Lua seria a

mesma causa do movimento das marés. Assim as causas

naturais passam a ter uma realidade próxima da causa

realizada pelos deuses: a causa podia atuar em fenômenos

aparentemente diversos por meio de um mecanismo

universal, como ocorre com a vontade dos deuses.

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3. Racionalidade: A racionalidade é uma das marcas mais

importantes da cultura Ocidental e que definitivamente

altera a compreensão da natureza: a causalidade não nos

seria vedada como o são as decisões dos deuses, ao

contrário a causalidade estaria disponível a todos nós por

meio da reflexão racional.

4. Necessidade: A necessidade é a atribuição à causalidade de

uma característica apenas dos deuses: a causa percebida no

mundo não está submetida a qualquer contingência,

qualquer imprevisto. A natureza funciona de modo

necessário e a falta da percepção desta necessidade é a

marca da confiança do humano nas aparências. Aqui não

apenas temos a ordem, mas a suposição de que tal ordem

não é contingente.

Estas quatro ideias marcaram definitivamente à visão sobre a natureza

mantida por pensadores após o mundo grego. E foi mais ou menos

intocada até a modernidade.

A ciência surgida depois do século XVII manteve as ideias

atribuídas pelos gregos à causalidade, mas houve um acréscimo decisivo: a

introdução das leis. A lei, conforme expressão moderna, estava presente

não apenas no mundo natural, mas de modo mais evidente, ela foi uma das

grandes manifestações modernas, através das leis políticas. O conceito de

uma “lei política” é um dos mais importantes durante a modernidade,

chegando ao final deste período com a possibilidade de estender as leis aos

próprios governantes, como hoje pensamos, ou seja, propriamente uma lei

universal. A ideia de uma lei universal não era estranha aos modernos.

Se a lei política podia ser expressa em uma língua qualquer, a ideia

moderna de uma lei da natureza ganhou uma nova expressão: a

matemática. A grande novidade da modernidade foi a maneira matemática

de expressar a causalidade da natureza através de uma lei da natureza que

poderia vigorar sobre todas as coisas, e que inclusive nos forneceria o

padrão da causalidade. Temos o complexo conceito de uma lei matemática

da natureza. A racionalidade grega da causalidade passou a ser o segundo

momento da investigação e o primeiro momento se tornou a lei matemática

da natureza8. A partir do século XVII, especialmente depois de Newton, a

investigação da natureza passou a ser guiada pela busca de leis, de

estruturas racionais, ordenadas, necessárias e universais e que pudessem

ser matematizadas. A causalidade passou a ser compreendida via lei.

O primeiro conjunto de leis matemáticas, que são racionais,

ordenadas, necessárias e universais foi as três leis do movimento de Isaac

Newton, que se aplicariam a todos os corpos. Muitas outras se seguiram à

esta. E atualmente, quais são as leis da natureza?

Segundo a Física mais atual, temos quatro grandes leis da natureza,

a saber: a gravidade, o eletromagnetismo, a força nuclear fraca e a força

nuclear fraca (ou apenas “força fraca” e “força forte”). Segundo os físicos

atuais, estas são as únicas leis que precisamos para derivar todos os

comportamentos da natureza9. Uma breve palavra sobre cada uma:

1. Gravidade: A gravidade é talvez a força mais conhecida

por todos. Ela é a força de atração entre as massas. Tudo

8Atualmente muitos só se interessam pelas leis matemáticas e acreditam ser

desnecessária uma descrição destas leis que vá além da matemática. 9 As outras leis poderiam derivar destas.

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aquilo que tem massa exerce um poder de atração, que

varia de acordo com a sua massa e a distância.

2. Eletromagnetismo: O Eletromagnetismo foi uma lei

proposta por Clerk Maxwell e que atribuiu a um mesmo

mecanismo o comportamento de dois fenômenos que

conhecemos, a eletricidade e o magnetismo.

3. Força Fraca: A força fraca é responsável por interações no

interior do átomo. Especialmente a força fraca regula a

emissão de certas partículas que conhecemos em nossa

vida diária pelo nome de radiação10.

4. Força Forte: Como a força fraca, a força forte atua no

interior do átomo, especialmente no núcleo, sendo

responsável por manter o núcleo do átomo coeso11.

Estas são as leis da natureza de nossos tempos, o que evidentemente não

quer dizer que elas se manterão assim pela eternidade. O ponto é que

atualmente precisamos delas para dar racionalidade, universalidade, ordem

e necessidade12 à natureza.

10 De modo mais preciso, ela é geralmente conectada ao chamado de “decaimento

beta”. 11 Numa imagem mais geral, podemos pensar que a força forte é responsável por

manter prótons e nêutrons unidos. 12 Embora tenhamos na mecânica quântica alguns problemas para atribuir uma real

necessidade. Trataremos deste problema em outro momento do curso.

Seção 2: A Matéria

Além das leis que governam a natureza, um aspecto fundamental

dela é a matéria. Enquanto as leis da natureza eram invisíveis, a matéria era

inicialmente entendida como a parte “visível” da natureza, assim ao

observarmos o mundo ao nosso redor a compreensão básica dele era

através do que era tocável. O problema inicial não era saber o que era ou

não material, mas sim o quanto da natureza podia realmente ser explicado

pela matéria. Era a disputa entre os materialistas e os não materialistas.

Os materialistas diziam por um lado que tudo o que há é material:

só teríamos os particulares, tais como “árvores”, “computadores” e

“cavalos” e que estes seres poderiam ser compreendidos por meio do

estudo da matéria que os compõe.

Por outro lado, os não materialistas não podem ser vistos como

realmente uma corrente unívoca. Pensadores das mais diferentes

tendências, indo de um Platão que supunha que uma descrição puramente

material da realidade era insuficiente porque se desconsiderava a ideia

universal, até um Agostinho que pensava ser necessário a existência de

Deus para dar conta da natureza material, podem todos eles ser agrupados

como não materialistas. Os não materialistas pensavam, através de

argumentos diversos, que a natureza não pode ser explicada apenas pela

matéria. Na entrada da era moderna este debate estava longe de ser

superado. Pensadores opostos tomaram partida de um dos lados, mas ainda

sem uma resposta final à querela. A partir do século XVII nossa visão

acerca da matéria começou a se alterar definitivamente, mas a mudança

efetiva só veio no século XX. A ideia da matéria como algo “tocável” foi

sendo aos poucos substituída por uma visão mais fina da matéria com a

ideia do átomo.

Filosofia da Natureza

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13

Muitas concepções13 sobre o átomo foram propostas ao longo dos

últimos anos do século XIX e especialmente do século XX. Hoje, o átomo

é entendido como um arranjo e não mais como um todo “indivisível”,

como a palavra “átomo” significava no início. O que era indivisível, hoje é

bastante divisível. De acordo com isto, o átomo é composto por pequenas

partículas que, em diferentes quantidades, produzem formas diferentes de

matéria. Pense aqui em um conjunto de Lego: temos peças verdes,

vermelhas e azuis que podem ser combinadas de maneiras diversas, e que

em sua combinação podem gerar objetos dos mais diferentes, de casas a

carros. No átomo achávamos que as suas peças eram basicamente três, os

prótons de carga positiva, os elétrons de carga negativa e os nêutrons de

carga neutra. Os prótons e os nêutrons estariam no interior do núcleo do

átomo, enquanto os elétrons “orbitavam” ao redor do núcleo. Ao variarmos

a quantidade destas três peças teríamos diferentes formas de matéria, indo

do mais básico o Hidrogênio, que tem apenas um próton e um elétron até o

mais complexo elemento descoberto14 até hoje o Ununoctium, com 118

prótons, 176 nêutrons e 118 elétrons.

Essa imagem da matéria foi aos poucos sendo aperfeiçoada. Hoje

temos uma visão muito mais complexa das peças básicas da matéria.

Assim surgiu o chamado “Modelo Padrão” da Física de Partículas. Pense

neste modelo com uma lista de todas as peças do Lego. Hoje dividimos as

peças ou as partículas em dois grupos: os férmions (onde temos os hádrons

e os léptons) e os bósons15. Essas partículas são ordenadas nos mais

diferentes átomos, e a variação das combinações gera cada um dos

13 Duas propostas são essenciais nos primeiros momentos do desenvolvimento do

modelo atômico a de Rutherford e a de Bohr. 14 Ou fabricado 15 Verifique no apêndice uma tabela que descreve o chamado “modelo padrão”.

elementos conhecidos. Hoje também abandonamos algumas imagens

ingênuas da matéria, vejamos dois exemplos:

1) O aspecto “tocável” da matéria. Não é apenas porque os

átomos são pequenos, mas o que chamamos de “tocável” é na

maior parte um grande espaço vazio. Entre o núcleo do átomo,

até os elétrons, a maior parte é espaço vazio. Uma metáfora

usada muitas vezes é a seguinte. Pense na extensão de um

campo de futebol. Agora suponha que o núcleo do átomo é do

tamanho da cabeça de um alfinete, e estaria no meio do campo.

O elétron estaria em sua “órbita16” ao redor estádio. Entre o

núcleo e o elétron a maior parte é espaço vazio. É por isto que

não podemos usar a ideia de que a matéria seja realmente

aquilo que não tem espaço vazio.

2) Um aspecto curioso da matéria, que sabemos hoje ser

verdadeiro, é que o comportamento de partículas não pode ser

determinado com a mesma precisão com a qual determinamos

objetos de nosso tamanho17. Essa falta de precisão não é um

problema de nossa física, mas sim uma característica da

natureza em seus níveis mais fundamentais. A natureza pode

ser também probabilística.

Estas duas propriedades da matéria são apenas um pequeno exemplo de

como a nossa imagem da natureza deve ser mais bem colocada.

16 Tecnicamente não há realmente uma órbita, mas sim um padrão complexo de

possibilidade de estados. 17 Isso decorre de uma série de compreensões das subpartículas, conforme

proposto pela Física de partículas.

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14

E atualmente quem ganhou a discussão: materialistas ou não

materialistas? Podemos dizer que os dois perderam. Os materialistas, que

afirmavam que tudo era material certamente não podem mais manter uma

imagem tão ingênua da matéria. Mas ao mesmo tempo, os não

materialistas não podem negar que a nossa descrição de Física de

Partículas não dê conta de explicar a multiplicidade de seres que temos no

mundo.

Para tentar resolver esta dificuldade, uma proposta que nos parece

adequada é o chamado “Fisicalismo”. O fisicalismo afirma que tudo o que

existe é Físico, o que inclui as leis da natureza, ainda que elas não sejam

tocáveis, e a matéria conforme explicada pela física de partículas. O

fisicalismo não é ingênuo de pensar que tudo o que existe pode ser visto,

nem precisa de entidades que não são naturais para explicar a própria

natureza.

Seção 3: O caso da Biologia

Nossa descrição da natureza passou a maior parte do tempo se

referindo a explicações próprias da Física e Química, mas e a Biologia, ela

se encaixa neste padrão? A resposta desta questão não é de modo algum

simples, e se encontra no cerne de um importante debate atual entre

especialistas das duas áreas.

O problema, desde o início da formação da Biologia no século

XVIII, diz respeito a uma possível redução desta disciplina a algum

fenômeno mais simples, que por sua vez seria estudado pela Física. Veja

assim: um dos assuntos da Biologia é o comportamento de células. Para

entendê-las podemos estudar a composição de cada elemento da célula.

Neste processo, descobrimos que as células têm como componente

fundamental o Carbono e é pela composição deste elemento que as várias

partes da célula podem ser criadas. Contudo, o estudo do átomo de

Carbono e suas propriedades físico-químicas não são estudas pela

Biologia, mas pela Física e Química. Assim, a conclusão parece óbvia: as

estruturas organizacionais existentes da vida obedecem às mesmas leis e ao

mesmo comportamento da matéria descrito pela Física e tudo o que

precisamos saber sobre os assuntos da Biologia poderia ser reduzidos à

Física. Esta ideia foi propagada durante muito tempo como uma espécie de

anterioridade de uma disciplina sobre a outra. Contudo, no século XX, uma

série de estudiosos, dentro os quais podemos mencionar o biólogo Ernst

Mayr, vem argumentando que a tese reducionista é problemática18. O

argumento destes autores tem dois pontos básicos, o primeiro diz respeito à

continuidade entre as disciplinas e o segundo sobre a própria natureza das

leis. Vejamos.

O primeiro argumento diz que embora realmente todos os objetos

físicos obedeçam às leis da física e química, isto não significa que todo o

campo da Biologia pode ser explicado por meio destas leis. Um dos pontos

mais interessantes diz respeito ao fato de que o aumento de complexidade

faz surgir padrões que não existiam nos níveis mais simples. Um exemplo

interessante, atribuído à Marx, diz que se observarmos o Hidrogênio e o

Oxigênio veremos que os dois são gases inflamáveis19. No entanto, quando

os dois são unidos surge a molécula de água, com propriedades que

nenhum dos dois elementos geradores tinham em si. Portanto, embora

18 Cf. Mayr, Ernst. Isto é Biologia: a ciência do mundo vivo. São Paulo:

Companhia das Letras, 2008. 19 Nas condições habituais de temperatura, altitude e pressão.

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15

possamos dizer que a água obedece às leis da física, não podemos dizer

que tudo o que a água é pode ser compreendido ao se estudar suas partes

diminutas. É o mesmo com todo o estudo da Biologia, onde um ser como o

ser humano tem um organismo profundamente complexo, com uma série

de propriedades que não podem ser explicadas apenas pelo recurso à

Física. No ser humano, o caso mais curioso é o funcionamento do cérebro

que essencialmente obedece às leis da Física, mas que não pode ser

explicado exclusivamente por elas.

Aqui uma consequência seria indicar que a Biologia, ao estudar

estruturas complexas, poderia criar suas próprias leis, com alguma relação

à Física, mas sem qualquer necessidade de reduzir à Física suas

descobertas. Podemos pensar que em níveis de complexidade diferentes

leis diferentes existem. De qualquer maneira, para os nossos propósitos, é

ainda possível falar que a Biologia busca o mesmo que a Física: uma

ordenação da natureza, através de leis.

Mas há um segundo ponto aqui: qual lei a Biologia gerou? Será

que podemos falar realmente em uma lei na Biologia? Novamente, este é

um assunto bastante polêmico. Se por lei entendemos uma proposição

universal, metodizada pela matemática, capaz de descrever toda uma gama

de fenômenos aparentemente diferentes sobre o mesmo aspecto, então a

resposta é mais ou menos. Isso não quer dizer que a Biologia não tenha

gerado teorias capazes de dar conta da aparentemente multiplicidade ao

redor de um todo coeso. Mayr20 entende que a Biologia trata com

conceitos, mas não com leis e que entender que a Biologia busca leis, é não

entender que o procedimento da Biologia é o de explicar a multiplicidade

da vida a partir de padrões de desenvolvimento e das muitas contingências

20 Ver nota 16.

neste percurso21. Mas continua a ser um problema decisivo saber se a

Biologia deve ou não procurar leis. O fato é que, para uma reflexão sobre a

natureza, a Biologia tem a mesma intenção das leis, ainda que ela não

precise contar com a matemática e conserve a necessidade de estudo das

contingências.

Para saber mais

Leia

Artigo: “O Modelo Padrão da Física de Partículas” de Marco

Antônio Moreira. Disponível em:

http://www.if.ufrgs.br/~moreira/modelopadrao.pdf

Veja

Documentário “Cosmos a Space Time Odissey” produzido em

2014 e apresentado pelo físico Neil deGrasse Tyson.

21 A investigação acerca das contingências é um ponto bastante interessante na

Biologia. O fato é que o desenvolvimento da vida não ocorre, pelo menos

aparentemente, a partir de um percurso imutável, mas ao contrário, depende de um

sem número de interações com o ambiente, com outras espécies e mudanças

aleatórias nos próprios seres. Essa aleatoriedade nos seres vivos gerou a

multiplicidade que temos, mas também deixou a investigação mais complexa,

porque não há realmente uma regra universal que nos permita prever todas as

contingências necessárias para a modificação, criação ou extinção de uma espécie.

Podemos conhecer alguns mecanismos, mas certamente não deduzir toda a

contingência.

Filosofia da Natureza

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Conclusão: A tarefa da Filosofia da Natureza

Como disciplina a Filosofia da Natureza não tem mais a mesma

intenção que possuía quando do século XVII, ou seja, investigar a estrutura

física da realidade. Esta tarefa hoje é própria da Física, da Química, da

Biologia e outras ciências naturais. A Filosofia não tem mais como tarefa o

lidar com o dado empírico e fazê-lo falar.

O que uma Filosofia da Natureza tem o objetivo de realizar é o

fornecimento de uma compreensão sobre as teses destas disciplinas, nos

possibilitando a melhor compreensão sobre as pressuposições e

implicações das cosmovisões geradas pelas ciências naturais.

Apêndice: O modelo padrão: Segue abaixo uma organização do

que se chama de “modelo padrão” das subpartículas da matéria.

Filosofia da Natureza

Bruno Pettersen

17

Filosofia da Natureza

Bruno Pettersen

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www.bbc.co.uk/programmes/b00s9mms

Cosmos a Space Time Odissey

Mais informações em: http://www.cosmosontv.com/