trabalho, tempo livre e lazer: as possibilidades de liberdade no capitalismo ... · 2017-02-22 ·...

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Mariana Lopes Custodio Trabalho, Tempo Livre e Lazer: as possibilidades de liberdade no capitalismo contemporâneo Mestrado em Ciências Sociais São Paulo 2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Mariana Lopes Custodio

Trabalho, Tempo Livre e Lazer: as possibilidades de liberdade no capitalismo contemporâneo

Mestrado em Ciências Sociais

São Paulo 2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Mariana Lopes Custodio

Trabalho, Tempo livre e Lazer:

as possibilidades de liberdade no capitalismo contemporâneo

Mestrado em Ciências Sociais

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais, sob a orientação da Professora Doutora Carla Cristina Garcia.

São Paulo 2012

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Trabalho, Tempo livre e Lazer: as possibilidades de liberdade no capitalismo contemporâneo

Mariana Lopes Custodio

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais, sob a orientação da Professora Doutora Carla Cristina Garcia.

Aprovada em:

Banca Examinadora

________________________________________________ Professora Doutora Carla Cristina Garcia

________________________________________________ Professora Doutora Dulce Maria Tourinho Baptista

________________________________________________

Professor Doutor Edson Marcelo Húngaro

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Ao meu querido, compreensivo e carinhoso pai,

Jesus Martinho Custodio (in memorian).

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AGRADECIMENTOS

À minha mãe Bel e às minhas irmãs Juliana Lopes e Luciana Lopes, pela confiança e

pelo apoio incondicional. Aos familiares e amigos: Silvia, Edvaldo, Igor, André e Celso.

À minha querida orientadora Carla Cristina Garcia, que despojada de qualquer vaidade

intelectual, mostrou-se sempre compreensiva, amiga, acolhedora e, principalmente, correta

nas intervenções críticas. Por tudo isso, expresso minha enorme admiração e respeito.

Ao Prof. Dr. Marcelo Hungaro, a quem considero uma referência intelectual, e que,

desde o período da graduação, tem participado na condição professor, amigo e conselheiro da

trajetória construída até aqui.

À Profª. Drª. Dulce Maria Tourinho Baptista, pelas importantes sugestões e

apontamentos críticos na banca de qualificação; agradeço também a sua prontidão em aceitar

o convite para participação na banca examinadora.

À Suzana Vaz Hungaro, pela excepcional seriedade e pelo altruísmo de abdicar-se do

convívio de sua família para a revisão deste trabalho.

Aos professores e alunos da EMEF Péricles Eugênio da Silva Ramos, que na

convivência diária, me ensinam a superar as inúmeras adversidades e os conflitos da prática

educativa.

Ao “camarada e amante” Vitor Hungaro, que nos últimos anos tem me ensinado que

é impossível ser feliz sozinha.

A CAPES, pela concessão da bolsa de estudo, imprescindível para realização deste

trabalho.

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RESUMO

O problema investigativo que dá origem a esta dissertação relaciona-se à antinomia lazer e

trabalho, considerando nesta relação o tema da liberdade. Assim, o objetivo deste trabalho é

refletir sobre a centralidade do trabalho como uma categoria privilegiada para o entendimento

do ser social e de suas possibilidades de liberdade. Empreendemos, portanto, uma

investigação bibliográfica, para mostrar como as formas de organizar os processos de trabalho

- fordismo-taylorismo e o toyotismo - acarretam novos valores e transformações na forma de

gerir o tempo livre e o lazer. A partir dessa constatação, buscamos apontar, por um lado,

como o lazer se configura no discurso dos autores que o perspectivam como um tempo de

fruição e liberdade ou então, por outro lado conferem ao lazer o status de ócio. A análise

empreendida nos permite afirmar, que, as noções de lazer /liberdade e lazer/ócio, ajustam-se

as formas de organizar os processos de trabalho submetidos à lógica de valorização do capital.

Dessa forma, num primeiro momento ratifica-se a cisão tempo de trabalho e tempo livre e

num segundo momento incorre numa tentativa de suprimir as contradições dos tempos

sociais.

Palavras-chave: Trabalho. Tempo Livre. Lazer. Liberdade.

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ABSTRACT

The investigative problem that gives rise to this dissertation is related to the antinomy leisure

and work, considering in this relation the theme of freedom. The objective of this paper is to

reflect on the centrality of work as a privileged category for understanding the social

being and the possibilities of freedom. We undertook, therefore, a literature search to show

how the ways of organizing work processes -Fordism-Taylorism and the Toyota model -

bring new values and changes in the way of managing free time and leisure. From this

observation, we point out, firstly, how leisure is configured in the discourse

of the authors perspective as a time of enjoyment and freedom or on the other hand give

the status of leisure entertainment. Such analysis allows us to affirm, that the notions

of pleasure / freedom and pleasure / leisure, fit forms of organizing work processes submitted

to the logic of capital appreciation. Thus, at first it confirms the split work time and free time

and incurs a second time in an attempt to suppress the contradictions of social time.

Keywords: Labor. Leisure. Leisure. Freedom.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO CAPÍTULO I 1.1 O Trabalho: a interação homem e natureza

1.2 O Renascimento: o trabalho e a categoria “liberdade” CAPÍTULO II 2.1 Os sentidos do trabalho

2.2 O trabalho como processo de valorização do capital 2.3 A racionalização da produção e do trabalho: a disciplina do tempo

para o trabalho

2.4 A reestruturação produtiva: da coerção ao consentimento para a (re) formação do homem

CAPÍTULO III 3.1 A construção do tempo livre 3.2 O lazer e a liberdade 3.3 A Economia do Ócio? CAPÍTULO IV 4.1 O trabalho e o ser social: a liberdade e a necessidade REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

10 18 27 34 43 47 66 75 87 94 110 123

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“Sempre no coração, haja o que houver A fome de um dia poder

Morder a carne desta mulher Veja bem meu patrão como pode ser bom

Você trabalharia no sol E eu tomando banho de mar

Luto para viver, vivo para morrer Enquanto minha morte não vem

Eu vivo de brigar contra o rei Em volta do fogo todo mundo abrindo o jogo

Conta o que tem pra contar Casos e desejos, coisas dessa vida e da outra

Mas nada de assustar Quem não é sincero sai da brincadeira correndo

Pois pode se queimar Saio do trabalho, ei Volto para casa, ei

Não lembro de canseira maior Em tudo é o mesmo suor”

Caxangá - Milton Nascimento

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INTRODUÇÃO

"É sempre no passado aquele orgasmo, é sempre no presente aquele duplo, é sempre no futuro aquele pânico.

É sempre no meu peito aquela garra. É sempre no meu tédio aquele aceno.

É sempre no meu sono aquela guerra...” (Carlos Drummond de Andrade – O Enterrado Vivo)

A angústia do indivíduo que está no mundo repleto de possibilidades, mas que não as

usufrui ou é impedido de realizar todas as suas potencialidades, é dupla como o seu presente:

por um lado, muitos “vegetam” alheios, por outro, a consciência de alguns deprime-se frente à

falta de esperança. Conforme Konder (1994), o mundo contemporâneo abandonou

implicitamente qualquer universalidade, as pessoas estão reduzidas a motivações particulares,

permeadas pela ideia de felicidade enquanto consumo efêmero e, desse modo, assistem

resignadas ao avanço de ideologias conservadoras. Para Barroco (2009), o pensamento

conservador fundamenta-se na valorização do passado, da tradição, da autoridade baseada na

hierarquia e na ordem, e, por conta disso, nega a razão, a democracia, a liberdade com

igualdade, a emancipação da mulher, etc. Barroco (2009).

A passagem do século XIX até meados do século XX caracteriza um prodigioso

período no que diz respeito a movimentos sociais, existência da crença do poder de

transformar e revolucionar o mundo via partidos e organizações revolucionárias. São

exemplos desse período as revoluções de 1848 na Europa, comumente conhecida como

“Primavera dos Povos”; a Comuna de Paris em 1871; e a emblemática Revolução Russa,

iniciada em 1905, no trágico domingo sangrento, e com a derradeira tomada do poder em

outubro de 1917. Segundo Hobsbawm (1995), a Revolução de Outubro foi reconhecida

universalmente como um acontecimento que abalou o mundo, sua repercussão resultou em

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uma onda revolucionária que varreu o globo nos dois anos após Outubro. Na Espanha, por

exemplo, os anos de 1917-9 ficaram conhecidos como o “biênio bolchevique”.

Todos os movimentos de luta por uma sociedade mais justa partiram de pressupostos

advindos da árdua tarefa para compreender as contradições de um sistema econômico –

capitalista – que, ao mesmo tempo em que proporcionava incomensuráveis ganhos materiais,

submetia quase que a totalidade da humanidade a todo tipo de miséria. Contudo, conforme se

aproximava do final do século XX, os sonhos de liberdade que inspiraram os movimentos

revolucionários foram sendo lentamente abandonados e rechaçados.

De acordo com Hobsbawm (1995), o breve século XX é apresentado como um

paradoxo composto por períodos de catástrofe, de surto econômico e transformações sociais,

culminando com as décadas de crise que se seguiram. Abrimos o século XXI com inegável e

espantoso progresso tecnológico, inexorável na visão sombria de um futuro dominado por

máquinas e autômatos e justificável somente quando permite um impulso maior ao

desenvolvimento das forças produtivas em benefício da coletividade, ou seja, quando permite

que a sociedade economize trabalho reduzindo esforço físico para a produção material.

Segundo Mandel (2001), um movimento de emancipação real é uma conquista progressiva do

espaço material de vida e de liberdade, ou seja, insere-se na capacidade de liberar os

indivíduos das limitações impostas pela natureza para a efetiva possibilidade de fruição

espiritual.

Contudo, na mesma proporção em que vislumbramos um mundo repleto de

tecnologias e maravilhosos progressos, os seres humanos aprenderam a viver nas condições

mais brutalizadas, nos quais predominam valores egoístas e individualistas. “[...] Essa

sociedade, formada por um conjunto de indivíduos egocentrados sem outra conexão entre si,

em busca apenas da própria satisfação (o lucro, o prazer ou seja lá o que for)”.

(HOBSBAWM, 1995, p.25). Por conseguinte, esse projeto de sociedade reduzido a

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manifestações de preferências individuais está aliado a um dos fenômenos mais característicos

e lúgubres do final do século XX: a destruição do passado, ou melhor, dos mecanismos

sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas. “Quase todos os

jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica

com o passado público da época em que vivem”. (HOBSBAWN, 1995, 13). Nesse sentido,

“O enterrado vivo”, de Carlos Drummond Andrade, sugere o espírito de nossa época:

“Sempre dentro de mim meu inimigo. E sempre no meu sempre a mesma ausência”

De acordo com Ianni (1989), a consolidação do mundo moderno apontava uma

crescente intelectualização dos indivíduos e a contínua racionalização das organizações

parecia “despojar de magia o mundo”, desencantá-lo. O homem e a sociedade emancipados

da tradição e da religião assumiam o controle de seus atos, conferindo à ciência a missão do

progresso e da resolução dos problemas materiais e espirituais. Eis a Razão, que explica,

nomeia, descobre e exorciza as visões do passado, porém o mundo de coisas criadas pelos

homens assume vida própria, “agora as visões e os fantasmas não se encontram mais lá fora,

forçando para entrar, vigiadas por Deus, estimuladas pelo Diabo. Os fetiches são criados e

recriados cotidianamente, à luz do dia, à sombra da razão” (IANNI, 1989, p.21).

A Sociologia, enquanto um campo delimitado do saber científico, propõe-se a refletir

sobre essa complexa realidade social, dividindo-se em distintas tendências, escolas, teorias e

interpretações. Com o intuito de desvelar as relações, os processos, as estruturas e os impasses

que emergem com a consolidação da sociedade urbano-industrial, a Sociologia depara-s com

um dos principais símbolos da sociabilidade moderna: o capital. Segundo Ianni (1989), o

capital, imbuído de uma missão civilizatória, em suas conotações sociais, políticas e

econômicas, estabelece os limites e as sombras entre presente e passado, a superstição e a

ilustração, a nação e a província, o capital e o trabalho, a tradição e a modernidade.

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Podemos afirmar que, além de marcar as distâncias e estabelecer os limites temporais

mais amplos, o sistema de metabolismo social engendrado pelo modo de produção capitalista

é marcado por uma fragmentação, oposição e hierarquia do tempo a processos cotidianos de

vida, como, por exemplo, o trabalho produtivo que se impõe à preguiça, ao tempo livre e ao

lazer. À medida que os fenômenos sociais tomam a aparência mais dispersa, com finalidade

de melhor apreendê-los, a sociologia também se especializa em: Sociologia Antropológica,

Sociologia do Direito, Sociologia Política, Sociologia da Família, Sociologia da Educação,

Sociologia da Religião, Sociologia Industrial e do Trabalho, Sociologia da Comunicação,

Sociologia do Lazer, etc.

Nesse sentido, a partir da dicotomia entre o trabalho e o tempo livre, começa a tomar

corpo uma preocupação com o uso desse tempo fora do trabalho, mais especificamente com o

lazer. No âmbito internacional, os primeiros estudos que tem o lazer como temática datam das

décadas 1920-1930, prioritariamente nos Estados Unidos e França. Contudo é só com o findar

da segunda Guerra Mundial que se estrutura a chamada Sociologia do Lazer, que tem sua

síntese mais acabada nas elaborações do sociólogo Joffre Dumazedier. Para esse autor, a

instauração da jornada de 8 horas colocou em relevo a reflexão sobre o lazer e o uso do tempo

fora do trabalho.

O objetivo de Dumazedier era tornar os estudos relativos ao lazer autônomo em

relação à Sociologia do Trabalho. Dessa forma, fundamentado num quadro de referência

chamado histórico-empírico, busca estabelecer rigorosamente o campo específico da

Sociologia do Lazer. Definiu que somente as atividades orientadas para a expressão da

pessoa, quaisquer que sejam seus condicionamentos sociais, diz respeito ao lazer, sendo essa

autonomia que viabiliza a inserção do lazer como objeto de estudo. No Brasil, a produção

cientifica sobre o lazer emerge a partir da década de 1970, extremamente influenciada pelos

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estudos de Dumazedier. No período de 1961-1963, o autor esteve no país participando dos

seminários internos promovidos pelo SESC / SP.

Consideramos o lazer como um fenômeno associado à evolução da sociedade urbano-

industrial. Surge como uma estratégia da classe dominante para o controle sobre o tempo livre

dos trabalhadores (Mascarenhas, 2001). Quando concebido como oportunidade de descanso –

para a recuperação da força de trabalho - ou como entretenimento, ou, ainda, como um tempo

para o consumo fetichizado das mercadorias, cumpre uma funcionalidade imprescindível ao

metabolismo do capital. Assim pensado, trata-se, historicamente, de uma manifestação, um

constructo, que, indiscutivelmente, serve à hegemonia burguesa no controle do tempo livre

dos trabalhadores.

O lazer enquanto fenômeno social está permeado pelas contradições de uma sociedade

divida em classes antagônicas, na qual perpassam relações de hegemonia e contra-hegemonia.

O tempo social parece dividir-se em um tempo dedicado ao trabalho e em outro tempo de

não-trabalho, o chamado tempo livre, o qual é dedicado ao lazer. Ante essa cisão, para uma

determinada perspectiva de análise, o lazer é identificado como um momento de emancipação

ou escape frente à vida desprovida de sentido gerada pelo trabalho alienado. Assim, o lazer é

percebido como uma espécie de remédio ou tempo de fruição e prazer no qual está dada a

possibilidade de liberdade e satisfação que pelo trabalho não se realiza. Há, portanto, uma

corrente no campo acadêmico para a qual as atividades de lazer traduzem-se por si próprias

como um tempo de liberdade, o que acaba por tornar sinônimos os conceitos de lazer, tempo

livre e liberdade.

Não obstante, na tentativa de superar tal separação temporal, vem ganhando terreno,

atualmente, uma corrente teórica expressa, por exemplo, na tese do ócio criativo. Trata-se de

uma tentativa de fundir trabalho e lazer, partindo da ideia de que o trabalho, fruto das

mudanças de cunho organizacional, tende a prescindir de pessoas no processo de produção, e

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portanto, perde o sentido como forma de explicação da vida. Para De Masi (2000a), a

tendência da sociedade pós-industrial é libertar a mente, com atividades intelectuais e

criativas, numa perfeita simbiose entre trabalho, estudo e jogo, tudo isso proporcionado pelo

incremento do tempo livre. Para o sociólogo italiano, a função social da formação humana

consistiria, justamente, na preparação dos cidadãos para o chamado “ócio criativo”e

argumenta, ainda, que a maneira de produção industrial estipulada por Henry Ford, no início

do século XX, está ultrapassada e em decadência. A sociedade pós-industrial privilegia a

produção de ideias, o que, por sua vez exige um corpo quieto e uma mente irrequieta, pois

predominam hoje as tarefas mais flexíveis e, por assim dizer, mais criativas.

A hipótese inicial dessa dissertação incide no debate do lazer, com algo permeado de

um discurso ideológico, que implica a dicotomia do indivíduo e a sua atividade vital – o

trabalho. Nesse sentido, a problemática está expressa no discurso que vislumbra nas

atividades de lazer um tempo de liberdade, satisfação e prazer, em uma falaciosa impressão de

emancipação humana. Por outro lado, com estabelecimento de novas relações de trabalho,

pautadas na reestruturação produtiva, o lazer poderia deixar de ser utilizado como “locus” do

discurso ideológico da liberdade, pois, supostamente, o indivíduo encarnado no ser flexível é

livre e as demarcações entre trabalho e tempo livre tendem a ser paulatinamente dissolvidas.

Não se trata, aqui, de travar uma crítica conceitual ao debate sobre o lazer proposto

pelos autores investigados, porém apresentar um conjunto de problemas que podem ser

elencados. O primeiro decorre da visão de sociedade equilibrada e sem contradições, em que

o lazer é supostamente uma atividade lúdica, desinteressada e autônoma para todos. Um

segundo problema consiste na oposição entre liberdade e necessidade. Por fim, é perceptível

uma noção extremamente superficial sobre os domínios da liberdade, entendida como algo

circunstancial e subjetivo, ou seja, a liberdade resume-se a um problema individual entre

desejo e satisfação.

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A conquista do tempo livre - redução da jornada de trabalho - consignou uma vitória

ao diminuir os ganhos do capital, por outro lado, temos a tese de que a apropriação desse

tempo não consegue romper com as relações de dominação. O lazer, como hoje é concebido,

pelas vivências hedonistas, como forma de entretenimento fortemente individualizado, na

realidade tende a afastar o indivíduo de projetos coletivos. Partindo dessa problemática, nosso

objetivo é pôr em relevo a centralidade do trabalho como uma categoria essencial para o

entendimento do ser social, mostrando o processo – ideológico - que transfere a gênese da

liberdade ao lazer e ao ócio.

Para consecução do nosso objetivo, no primeiro capítulo desse trabalho

empreendemos uma investigação histórica pautada nas pesquisas sobre a cultura cômica

popular na Idade Média do historiador Mikhail Bakhtin e sobre a construção do homem do

Renascimento da filósofa Agnes Heller, com a finalidade de mostrar o esforço dos pensadores

desses períodos em conceber o trabalho como uma categoria privilegiada da existência

humana, como um conjunto complexo de relações entre natureza, trabalho, e liberdade.

No segundo capítulo, apresentamos, inicialmente, os sentidos valorativos atribuídos ao

trabalho e ao tempo de não trabalho. Em seguida, empreendemos uma análise das

transformações que envolvem o mundo do trabalho – inovações tecnológicas e

organizacionais – para que seja possível compreender as mudanças na percepção e atitude

relativas ao uso do tempo. Nessa direção, é preciso notar que, juntamente com as mudanças

de cunho organizacional, que envolvem técnicas e procedimentos visando ao aumento da

produtividade, tanto o fordismo/taylorismo como o toyotismo atuaram na conformação de um

novo tipo de trabalhador e de homem. Nesse percurso enfatizamos a gestão da força de

trabalho, processo que se constituiu em um tenaz e obstinado esforço de submeter o trabalho à

lógica de valorização do capital.

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No terceiro capítulo situamos o surgimento do lazer enquanto apropriação do tempo

livre, colocando no centro do debate a ininterrupta e contraditória disputa entre capital e

trabalho, para a redução e regulamentação da jornada de trabalho. Essa discussão fez-se

necessária tendo em vista a problemática de se atribuir às revoluções tecnológicas ainda em

curso e aos complexos processos de organização para a produção a gênese das condições para

produção do tempo livre e de uma nova sociedade emancipada do trabalho. Num segundo

momento, empreendemos uma revisão de literatura com a finalidade de apontar nas

elaborações dos autores investigados uma convergência entre lazer e liberdade. Por fim,

destacamos as teses que conferem ao lazer os valores inerentes ao ócio ou, ainda, a tendência

que aponta para a construção de uma autêntica civilização do lazer ou do ócio.

No quarto capítulo, retomaremos a discussão sobre os domínios da liberdade, tomando

como pressuposto uma aproximação à elaboração marxiana. Pretendemos, conforme nos

demonstrou Agnes Heller e György Lukács, o reconhecimento em Marx de uma nova

Antropologia, a qual a essência do homem, suas possibilidades e a universalidade de suas

ações aparecem novamente como problemas no centro de uma teoria. Lukács assinalou que a

filosofia moderna expurgou toda e qualquer indagação sobre o ser ou a existência, dessa

forma toda análise ou estudo que tratassem desse assunto seriam considerados um absurdo

anacrônico e anticientífico.

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CAPÍTULO I

1.1 O Trabalho: a interação homem e natureza

“O pão e o vinho (o mundo vencido pelo trabalho e pela luta) afugentam todo o medo e libertam a palavra. O encontro alegre,

triunfal, com o mundo enquanto come e bebe o homem vencedor, que engole o mundo e não é engolido por ele, está em profunda harmonia

com a essência mesma da concepção rabelaisiana do mundo” (Mikhail Bakhtin)

François Rabelais (1494-1553), conhecido também pelo pseudônimo Alcofribas

Nasier – um anagrama do seu verdadeiro nome -, foi considerado o mais democrático dos

mestres da literatura mundial. De acordo com Bakhtin (2008), sua contribuição para a

literatura é, sem dúvida, comparada a Dante, Boccaccio, Shakespeare e Cervantes, porém é o

menos estudado, o menos compreendido e menos estimado no rol dos grandes escritores.

Segundo Bakhtin (2008), a grandeza da obra de Rabelais destaca-se por sua íntima

ligação com a antiga cultura popular cômica1, de um tipo peculiar de estética,

convencionalmente denominado de realismo grotesco2. A narrativa repleta de imagens

ambivalentes, exageradas e hipertrofiadas assinala o “caráter não oficial” e decididamente

contrário a toda perfeição, estabilidade e dogmatismo, isto é, a recusa categórica dos cânones

e regras da arte literária do século XVI. Por tudo isso, a compreensão da obra rabelaisiana

revela-se como um verdadeiro “enigma” para os tempos modernos, podendo ser resolvido na

1 De acordo com Bakhtin (2008), o humor popular e todas as manifestações do riso, na Idade Média, faziam o

contraponto à cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal. Na Idade Média, o riso não compunha as esferas oficiais da ideologia, o culto religioso, o cerimonial feudal e estatal. Isso significa que a verdade só poderia ser expressa por um tom sério, posturas de medo, veneração e docilidade. As imagens de Rabelais evocam as festas públicas carnavalescas, os ritos e cultos cômicos especiais, os bufões e tolos, gigantes, anões e monstros, palhaços de diversos estilos e categorias, a literatura paródica, etc. 2 O realismo grotesco é baseado no princípio material e corporal, num incessante movimento de rebaixamento

para o plano corporal de todas as coisas. Degradar significava entrar em comunhão com a vida da parte inferior do corpo, a do ventre e dos órgãos genitais, portanto com atos como o coito, a concepção, a gravidez, o parto, a absorção de alimentos e a satisfação das necessidades. “O traço marcante do realismo grotesco é o rebaixamento, isto é, a transferência ao plano material e corporal, o da terra e do corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato” (BAKHTIN, 2008, p.17)

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medida em que se empreende um estudo em profundidade das suas fontes. Trata-se de uma

árdua tarefa que exige uma reformulação radical de concepções artísticas e ideológicas

legadas pelo pensamento burguês.

Ao traçar um percurso analítico para a compreensão da concepção rabelaisiana de

mundo, Bakhtin apresenta-nos uma visão detalhada da cultura cômica popular na Idade Média

e no Renascimento, destacando-se: o contexto da festa carnavalesca; a história do riso; a

concepção do mundo embasada na noção de alto e baixo material e corporal; o caráter

cósmico universal do corpo; a ambivalência entre vida e morte; a noção do tempo cíclico da

vida natural; e a festa do banquete enquanto consagração do ato de trabalho. Entre esses temas

analisados por Bakhtin, destacaremos “O Banquete em Rabelais” e “A festa Carnavalesca”,

para demonstrarmos a interação entre o homem e a natureza.

O ato de comer e de beber, ou o banquete, está ligado à cultura popular cômica e é

representativo da abundância e a da universalidade, do qual participava toda a sociedade. As

festas, espetáculos e ritos contrapunham a forma séria e oficial da Igreja e do Estado, criavam

uma espécie de dualidade do mundo em ocasiões determinadas, ou seja, eram uma segunda

vida que se erguia paralela às regras do mundo oficial, aos quais os homens da Idade Média

pertenciam em maior ou menor proporção. Por um lado, a festa oficial olhava apenas para o

passado com a finalidade de consagrar a ordem presente, a estabilidade, a imutabilidade e a

perenidade das regras, por isso as celebrações tinham como características o tom sério e a

consagração da desigualdade.

Os festejos do carnaval ocupavam um lugar importante na vida do homem medieval.

Como uma espécie de representação da própria vida, a ideia de carnaval ignorava qualquer

distinção entre atores e espectadores, não havia palco nem cenário:

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Os espectadores não assistem o carnaval, eles vivem, uma vez que o carnaval pela sua própria natureza existe para todo o povo. Enquanto dura o carnaval, não se conhece outra vida senão a do carnaval. Impossível escapar a ela, pois o carnaval não tem nenhuma fronteira espacial. Durante a realização da festa, só se pode viver de acordo com as suas leis, isto é, as leis da liberdade. (BAKHTIN, 2008, p.06)

Contrapondo a ideologia da seriedade, por outro lado, os espetáculos carnavalescos

provocavam, mesmo que por um breve período, uma suspensão da hierarquia e dos cânones,

ou seja, o carnaval era o triunfo de uma espécie de libertação temporária da verdade

dominante e do regime vigente, de abolição provisória de todas as relações hierárquicas,

privilégios, regras e tabus. “Ela se fundia com a atmosfera do júbilo, com a autorização de

comer carne e toucinho, de retomar a atividade sexual. Essa liberação do riso e do corpo

contrastava brutalmente com o jejum passado ou eminente” (BAKHTIN, 2008, p.76).

Para Bakhtin (2008), esse aspecto da vida, a boca aberta que mói, corta, mastiga e

ingere, é um dos assuntos mais antigos e marcantes do pensamento humano, as imagens do

banquete consagram o encontro do homem com o mundo, ao degustar a vida desperta à

consciência. O vinho afugenta o medo e abre o caminho para a verdade, assim, a embriaguez

é definida: “um aumento súbito do sangue, as almas mudam com os pensamentos que elas

contêm, e os homens, esquecidos dos males presentes, aceitam a esperança de bens futuros”.

(BAKHTIN, 2008, p.250).

O comer revela um corpo aberto e inacabado em incessante interação com o mundo e

da forma mais concreta: “O homem degusta o mundo, sente o gosto do mundo, o introduz no

seu corpo, faz dele uma parte de si”. (BAKHTIN, 2008, p.245). Segundo Bakhtin (2008), o

universalismo das imagens do banquete deve-se a sua ligação complexa com a vida, a morte,

a luta, a vitória, o triunfo e o renascimento, ou seja, o comer era indissociável do trabalho.

Não havia fronteiras e demarcações entre trabalhar e comer, o corpo vitorioso absorve o corpo

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vencido e se renova incessantemente; aqui, não se trata simplesmente de um ato biológico e

animal, mas de um acontecimento de caráter dialético e social.

As imagens dos banquetes evocadas, segundo Bakhtin (2008), não têm nada em

comum com glutonaria e embriaguez da vida privada, da forma como são representadas na

literatura burguesa, no qual o corpo moderno está restrito ao plano privado e ao gozo

individual.

[...] Elas estão isoladas do processo de trabalho e de luta, desligadas da praça pública e encerradas no interior da casa e do quarto (“abundância doméstica”); não é a “boa mesa”, mas uma pequena refeição doméstica com mendigos esfaimados à soleira; quando essas imagens são hiperbolizadas, são apenas a expressão da cupidez, e não dum sentimento de justiça social. É a vida cotidiana imóvel, privada de toda ampliação simbólica e valor universal independentemente do fato de saber se a pintura é estritamente satírica, isto é, puramente negativa ou positiva (enquanto satisfação). (BAKHTIN, 2008, p.264)

O encontro do homem com o mundo do trabalho traduz o embate e a luta necessária

para arrancar uma parte do mundo que lhe serviria de alimento. O banquete – absorção do

alimento - completa o processo de trabalho, caracterizando, assim, o coroamento da vitória do

homem. “Como última etapa vitoriosa do trabalho, o comer substitui frequentemente no

sistema das imagens o processo do trabalho no seu conjunto”. (BAKHTIN, 2008, p.246).

Esta vitória sobre o mundo no ato de comer era concreta, consciente, material e corporal; o homem sentia o gosto do mundo vencido. O mundo alimenta e alimentará a humanidade. É por isso que não havia o menor grão de misticismo, nem o menor grão de sublimação abstrata e idealista na imagem da vitória sobre o mundo. (BAKHTIN, 2008, p.249)

A percepção do trabalho até aqui desenvolvida é restrita aos limites da natureza, trata-

se especificamente de subtrair, arrancar, extrair da terra – o baixo material por excelência – os

suprimentos necessários para a manutenção da vida, mediante cultivo da terra e a

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domesticação dos animais. Daí a vitalidade da ideia de que “o mundo alimenta e alimentará a

humanidade”. Dessa forma, a concepção rabelaisiana do mundo está perfeitamente ajustada a

um determinado contexto histórico, sintetiza um todo coerente, pois entrelaça e confere

sentido, de forma singular, ao trabalho, à festa e ao banquete. A necessidade e a liberdade

fundem-se e permeiam todos esses momentos.

Porém, uma figura emblemática na visão de Bakhtin é apresentada no quarto livro de

Rabelais3 trata-se de Gáster o inventor e criador de toda a cultura técnica humana. Isso

porque a celebração de Gáster representaria a ação transformadora por meio da criação de

artefatos que ampliavam as possibilidades de conquistar e dominar o mundo. Considerando a

produção enquanto um processo ilimitado, a necessidade natural direta não é mais central,

porque uma necessidade historicamente criada substitui a natural.

Gáster, que inventou a agricultura, os meios de conservar o grão, as armas para defedê-lo, os meios de transportá-lo, a construção de cidades e fortalezas, a arte de destruí-las, e que, por causa disso, inventou as ciências (Matemática, Astronomia, Medicina, etc.), esse Gáster não é o ventre biológico de uma criatura animal, mas a encarnação das necessidades materiais de uma coletividade humana organizada. (BAKHTIN, 2008, p.262-263)

As condições de existência modificam-se na proporção que as inovações técnicas

ampliam a produção; o mundo não é mais imagem e semelhança do “meio natural”. O

trabalho impõe-se como atividade exclusiva do homem. Todavia, inevitavelmente, esse

desenvolvimento está ligado à condição originária do homem enquanto ser da natureza, por

isso, a imagem de Gáster inventor – gastro, barriga e estômago – é tão rica em significados e

interpretações.

3 Capítulo LVII – Como Pantagruel desembarcou na morada de Gaster, o primeiro mestre nas artes do mundo.

Capítulo LXI – Como Gaster inventou os meios para obter e preservar milho.

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Na introdução da Ideologia Alemã, por exemplo, Marx argumenta que o primeiro

pressuposto de toda existência humana, de toda história, é que os homens devem estar em

condições de viver para poder fazer história, “o primeiro ato histórico é, portanto, a produção

dos meios que permitam a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida

material”. (ENGELS e MARX, 1993, p.39). A história da humanidade é condicionada pelas

necessidades humanas e pela maneira como os homens se organizam – as relações sociais de

produção - para satisfazer essas necessidades. Assim, há uma conexão materialista dos

homens entre si condicionada pelas necessidades e pelo modo de produção, conexão que é tão

antiga quanto os próprios homens.

Partimos, então, do pressuposto de que a construção da história humana se deu através

do trabalho – produção da vida material para a satisfação das necessidades. O trabalho é a

relação entre homem e natureza, atividade que se torna meio para que os homens produzam,

reproduzam e transformem suas vidas, é a única atividade que faz a mediação entre natureza e

sociedade. O trabalho, por ser uma atividade de cooperação entre os indivíduos, produz

formas de interação humana como, por exemplo, a linguagem.4

De acordo com Marx (2004), a natureza é o corpo inorgânico do homem, e, por isso,

tanto o animal quanto os homens vivem da natureza inorgânica, na qual se estabelece um

intercâmbio essencial, um processo contínuo para não morrer. A natureza fornece ao homem

os subsídios para sua atividade vital, como forma de alimento, aquecimento, vestuário,

habitação, etc. “Comer, beber e procriar etc., são também, é verdade, funções genuína

[mente] humanas. Porém na abstração que as separa da esfera restante da atividade

humana, e faz delas finalidades últimas e exclusivas são [funções] animais”. (MARX, 2004,

p. 84).

4 Segundo Lukács o trabalho é um momento predominante no desenvolvimento do mundo dos homens, vindo a

se desenvolver mediante outras duas categorias: as relações sociais e através da linguagem. “Portanto, já no seu momento primordial, o ser social comparece como um complexo constituído, pelo menos, por três categorias primordiais: a sociedade, a linguagem e o trabalho”. (LESSA, 1996, p.10).

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Partindo da tradição marxista, o filósofo húngaro György Lukács (1885-1970)

concorda que o homem também é natureza, pois o ser social emerge e se desenvolve sobre a

base de um ser orgânico; “a essência do trabalho consiste precisamente em ir além dessa

fixação dos seres vivos na competição biológica com seu mundo ambiente”. (LUKÁCS, 1978,

p. 15). Outros seres transformam a natureza e fabricam produtos, mas só o homem opera uma

atividade consciente.

Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou por tudo que se queira. Mas eles próprios começam a se diferenciar dos animais tão logo começam a produzir seus meios de vida, passo este que é condicionado por sua organização corporal. Produzindo seus meios de vida, os homens produzem, indiretamente, sua própria vida material. (ENGELS e MARX, 1993, p.27).

Ao diferenciar o homem dos outros seres vivos, não se trata, como pensou Platão, de

uma concepção dualista de ser humano, o qual pertence, ao mesmo tempo, à natureza e à

sociedade, sendo difícil operar uma separação, mesmo no plano do pensamento. “O homem

nunca é, de um lado, essência humana, social, e, de outro, pertencente à natureza; sua

humanização, sua sociabilização, não significa uma clivagem de seu ser em espírito (alma) e

corpo” (LUKÁCS, 2010, p. 42).

Marx, na Introdução de Para a Crítica da Economia Política, elucida a forma

particular como o ser humano se relaciona com a natureza: “A fome é fome, mas se é satisfeita

com carne preparada e cozida e se é ingerida com a ajuda de garfo e faca é diferente da fome

que é satisfeita devorando a carne crua, destroçada com as mãos, as unhas e os dentes”

(MARX, 1982, p.09).

[...] A fome é a sinalização natural de que o organismo necessita de insumos (calórico, proteicos) para a continuidade do seu funcionamento. Sob esse aspecto, a fome de um homem não se distingue da fome de um cão. Entretanto, a satisfação da fome humana é radicalmente distinta da satisfação da fome animal (natural): implica procedimentos de transformação do insumo (o alimento), implica valores e rituais.

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[...] Sem a satisfação da fome, ou seja: da necessidade natural de se alimentar, os homens e os animais não podem viver – mas o atendimento dessa necessidade, entre os homens, é rigorosamente social. (BRAZ E NETTO, 2006, p.38)

O atendimento das necessidades do homem é rigorosamente social, pois, segundo

Heller (2008), a assimilação da manipulação das coisas – segurar o copo e beber a água,

utilizar o garfo e a faca para comer – é sinônimo, sobretudo, de um processo de assimilação

das relações sociais. “A forma concreta de submissão ao poder (da natureza) é sempre

mediatizada pelas relações sociais, mas o fato em si da submissão à natureza persiste sempre

enquanto tal” (HELLER, 2008, p.33).

Outra observação pertinente diz respeito à relação imediata, necessária e natural do

homem com a sua própria natureza, levada a cabo na relação entre os gêneros - homem e

mulher. Afirma Marx (1974) que esta relação é reveladora, da maneira mais sensível, do grau

de cultura do homem em sua totalidade5. Essa relação entre os gêneros permite que homens

diariamente renovem a sua própria vida, comecem a criar outros homens.

Sendo assim, o que vai distinguir o homem dos outros seres da natureza, que também

transformam a natureza e fabricam produtos, é a sua atividade operando de modo consciente.

Segundo as reflexões de Marx (2004), o animal também produz, mas apenas aquilo de que

necessita imediatamente para si ou para sua cria – produção unilateral –, já o homem produz

livre da carência física – produção universal.

A vida genérica, tanto no homem quanto no animal, consiste fisicamente, em primeiro lugar, nisto: que o homem (tal qual o animal) vive da natureza inorgânica, e quanto mais universal o homem [é] do que o animal, tanto mais universal é o domínio da natureza inorgânica da qual ele vive. Assim plantas, animais, pedras, ar, luz, etc., formam teoricamente uma parte da consciência humana, em parte como objetos da ciência natural, em partes como objetos da arte – sua natureza inorgânica, meios de vida espirituais, que ele tem de preparar prioritariamente para a fruição e

5 Desta constatação Marx extrai consequências de relações sociais fetichizadas: “Na relação com a mulher, como presa e servidora da luxúria coletiva, expressa-se a infinita degradação na qual o homem existe para si mesmo, pois o segredo dessa relação tem sua expressão inequívoca, decisiva, manifesta, desvelada, na relação do homem com a mulher e no modo de conceber a relação imediata, natural e genérica”. (MARX, 1974, p.13)

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para a digestão -, formam também praticamente uma parte da vida humana e da atividade humana. (MARX, 2004, p. 84).

A produção material da existência impõe novas possibilidades e novos problemas no

encontro do homem com o mundo, para os quais, segundo Bakhtin, a concepção rabelaisiana

não apresentou uma solução. Gáster é o ventre – necessidade - que estuda e decifra o mundo,

mas, ao final do banquete, antevê uma visão sombria: “se ele inventou o meio de construir

cidades, ele também inventou o de destruí-las, isto é, a guerra”. (BAKHTIN, 2008, p.263).

Essa percepção das contradições é sintomática de um mundo hierárquico que ruía na época de

Rabelais. Mais uma vez destaca-se a força dessa narrativa, pois ela traduz uma profusão de

acontecimentos que marcaram o processo de transição do período feudal para o Capitalismo.

As contradições afloraram neste interstício chamado de Renascimento: as manifestações da

arte e da literatura, o pensamento filosófico, o conhecimento científico e a prática cotidiana6

empenham-se na construção de um novo quadro conceitual.

Construir e Destruir. As contradições morais do progresso técnico aparecem no

renascimento, segundo Heller (1982), como uma preocupação – individual e social – em face

do que Bacon chamou de “artes mecânicas” - a fonte dos instrumentos de luxúria e dos

instrumentos de destruição. No âmbito individual figuram a imagem diabólica da tecnologia,

pois o criador de novos inventos é o conhecedor dos segredos e possuidor de um poder em

face da comunidade. No âmbito social, por um lado, as novas descobertas e inventos

provocaram a redução do privilégio do conhecimento através da divulgação dos resultados,

6 A ciência renascentista manteve-se nos limites do pensamento cotidiano, mas com o desenvolvimento da

sociedade burguesa os problemas científicos alcançaram um grau de abstração de tal modo técnico que passaram a não ser compreendidos pelo pensamento cotidiano, ou seja, a ciência ausentou-se do pensamento cotidiano. “Com o aparecimento dos ciclos burgueses de acumulação, surgiu uma interação constante entre as necessidades criadas pelo desenvolvimento dos meios de produção, por um lado, e a evolução da ciência, por outro; e a colaboração entre o pensamento filosófico e os problemas da vida tornou-se igualmente mais intensa” (HELLER, 1982, p.125).

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por outro lado, abriu a possibilidade de esses instrumentos serem usados contra a

humanidade.

1.2 O Renascimento: o trabalho e a categoria “liberdade”

Heller (1982) entende o período do Renascimento como uma inflexão cultural,

política e econômica de uma primeira onda do lento processo de transição do Feudalismo para

o Capitalismo. No Renascimento, as condições objetivas para a superação do Feudalismo

eram ainda incipientes, porém a nascente burguesia já se firmava como uma classe social

relevante, principalmente do ponto de vista econômico.

O conceito de «Renascimento» significa um processo social total, estendendo-se da esfera social e econômica onde a estrutura básica da sociedade foi afectada até ao domínio da cultura, envolvendo a vida de todos os dias e as maneiras de pensar, as práticas morais e os ideais éticos quotidianos, as formas de consciência religiosa, a arte e a ciência. Só podemos de facto falar de Renascimento quando todos estes aspectos surgem ligados e, num mesmo período, fundamentados em certas alterações da estrutura social e econômica: em Itália, Inglaterra e França e, em parte na Holanda. (HELLER, 1982, p.09-10, grifos nossos)

Para entendermos o significado das mudanças operadas no Renascimento, façamos

uma breve digressão. Segundo Huberman (1979), do ponto de vista econômico, a sociedade

feudal era eminentemente agrícola e essa produção estava restrita ao atendimento das

necessidades de subsistência. Na estrutura da sociedade, encontramos três classes: os servos

constituíam a base produtiva – por meio do cultivo da terra; o clero e a nobreza constituíam as

classes governantes. A igreja atuava no campo espiritual enquanto cabia à nobreza a proteção

militar. No sistema econômico feudal, a produção limitava-se à satisfação de necessidades de

autoconsumo e todo excedente agrícola era expropriado dos produtores diretos. Porém,

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mesmo de forma incipiente, paralelamente mantinha-se a produção para a troca, centrada no

trabalho artesanal.

As relações estabelecidas no sistema feudal, então, embasadas numa rígida hierarquia

não permitiam a mobilidade entre os estratos. O servo - camponês - estava atado à terra pelo

trabalho, obrigado por toda vida a prestar serviço aos seus senhores, isto é, todo seu modo de

vida e de seus descendentes seria determinado pelo seu nascimento enquanto servo. Segue um

trecho do historiador Leo Huberman, no qual encontramos uma descrição desse modo de

vida:

O camponês vivia numa choça do tipo mais miserável. Trabalhando longa e arduamente em suas faixas de terra espalhadas (todas juntas tinham, em média, uma extensão de 6 a 12 hectares, na Inglaterra, e 15 a 20, na França), conseguia arrancar do solo apenas o suficiente para uma vida miserável. Teria vivido melhor, não fora o fato de que, dois ou três dias por semana, tinha que trabalhar a terra do senhor, sem pagamento. Tampouco era esse o único trabalho a que estava obrigado. Quando havia pressa, como em época de colheita, tinha primeiro que segar o grão nas terras do senhor. Esses “dias de dádiva” não faziam parte do trabalho normal. [...] A propriedade do senhor tinha de ser arada primeiro, semeada primeiro e ceifada primeiro. (HUBERMAN, 1979, p. 14)

Heller (1982) sinaliza que durante a Antiguidade e a Idade Média não havia,

essencialmente, qualquer diferença entre o modo de vida e um estilo de vida, ou seja, todo

valor ético ou escolhas morais estavam plenamente de acordo com o lugar do indivíduo na

estratificação social. O nascimento num determinado lugar da comunidade e a divisão do

trabalho existente determinavam o modo de vida de cada indivíduo. Nesse sentido, o trabalho

surge circunscrito aos limites da natureza: “objeto do trabalho de um homem não lhe surge

como um produto do trabalho, antes parecendo “dado naturalmente” (findet sich vor als

Natur); é uma condição da sua existência, algo que lhe pertence do mesmo modo que os seus

órgãos dos sentidos ou a sua pele.” (HELLER, 1982, p.11)

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O ponto de viragem desse modo de vida estático ocorreu, conforme Heller (1982),

com o Renascimento. Nesse período surge o conceito dinâmico do homem, o indivíduo passa

a ter a sua própria história, tal como a sociedade. A contradição entre indivíduo e sociedade

surge em todas as categorias fundamentais com desenvolvimento do Capitalismo. Portanto,

no momento em que se dissolveram os elos naturais que uniam o homem à sua situação social

e ao seu lugar na sociedade, a estrutura hierárquica feudal perdeu sua base e, por conseguinte,

sua estabilidade. O homem passa a viver num constante processo de devir.

É a partir do desenvolvimento dos meios de produção, da substituição do existente por

algo totalmente diverso do que pode ser encontrado na natureza, que emergem novas

problemáticas. Além do dilema moral, envolvendo o uso da tecnologia, entre o poder de

construir e destruir, outro tema é identificado por Heller, o caráter ambíguo da riqueza criada

pela tecnologia. Daí repercutem as noções de julgamento. O pensamento renascentista

ocupou-se com o problema do uso da riqueza, isto é, no sentido do seu emprego para o bem

ou para mal. “[...] Era bem empregue no caso de beneficiar o comércio e a «indústria» e a

cultura, mal no caso de dar lugar à ociosidade, ao luxo e à negligência dos assuntos

públicos”. (HELLER, 1982, p.287).

Além das questões relativas ao emprego da riqueza, foi estabelecido um elo

importante entre o trabalho e a riqueza como seu resultado. De acordo com Heller (1982),

pensadores e homens comuns do Renascimento não duvidaram em conceber a riqueza

enquanto um produto do trabalho. Porém, o processo que permitia a concentração de riqueza

jamais foi imputado à ação de expropriar o trabalho dos “pobres” e, sim, ao talento, à astúcia

e à esperteza humana. “Os pensadores e homens comuns do Renascimento não duvidaram

por um só momento de que a riqueza da sociedade é o produto do trabalho e não do capital,

de que todos os bens eram «a dádiva da mente e das mãos», e não do dinheiro” (HELLER,

1982, p.318).

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Do ponto de vista da estrutura do processo de trabalho, os problemas suscitados pelos

pensadores do Renascimento não avançaram para além das conclusões de Aristóteles: assim,

considerava-se o processo de trabalho como uma operação planejada pelo artesão individual;

o trabalho figurava como a realização de um objetivo, ou seja, como trabalho enquanto

atividade que conferia forma e possibilitava elevar o desenvolvimento do indivíduo. O

problema investigativo voltava-se, agora, para os aspectos técnicos da estrutura do processo

de trabalho. Aparecem, assim, as referências descritivas das tarefas concretas.

[...] As estruturas típicas da «comunidade natural», ou seja, do passado recente (o trabalho no âmbito das guildas, por exemplo), já não interessava aos homens do Renascimento; o que os interessava, eram as coisas que tinham destruído a «comunidade natural». O trabalho do cultivador deixou igualmente de ter qualquer interesse. O que preocupava os espíritos era o trabalho em condições técnicas em constante alteração – o trabalho como um processo dinâmico que nunca se repete, nunca faz duas vezes a mesma coisa exatamente da mesma maneira. (HELLER, 1982, p.317).

Em suma, as análises realizadas durante o período do Renascimento em relação ao

trabalho eram relacionados ao ponto de vista técnico, notavelmente concretas, mas

simultaneamente abstratas nos seus aspectos sociais, conforme nos apontou Heller (1982).

Em verdade, ainda não havia distinção entre as formas reificadas e não reificadas da

alienação, de tal forma que os escritores utopistas dessa época tomaram como base crítica

para os seus escritos os aspectos morais da desigualdade - a sorte do campesinato, o

empobrecimento e a ruína do cultivador dos campos, a unilateralidade do trabalho camponês e

o aumento de luxo e riqueza.

No que diz respeito à avaliação ética do trabalho, não havia uma ligação entre o

trabalho e o dever – tens de trabalhar - o valor do trabalho estava inscrito ao seu caráter

singular em promover o desenvolvimento das capacidades humanas. Essa interpretação,

segundo Heller (1982) aproximava-se da concepção marxista desenvolvida séculos mais

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tarde, ou seja, pautada no reconhecimento do trabalho como pertencente à essência

antropológica do homem. Porém a descoberta do trabalho enquanto propriedade essencial da

humanidade não significava concebê-lo como força motriz no processo de hominização do

homem, isto é, na apreensão da transição de um mundo não humano para um mundo humano.

Dessa forma, segundo Heller (1982), o maior legado do pensamento renascentista com

relação ao trabalho foi o reconhecimento da sua universalidade antropológica, ou seja, o fato

de exprimir uma potencialidade inerente a todos os homens indistintamente: a realização da

liberdade. “A actividade laboral e a produção são igualmente realizadas mediante escolhas

entre alternativas; escolher e alcançar a alternativa correcta constituem uma realização da

liberdade humana, do «livre arbítrio»”. (HELLER, 1982, p.344). O ponto de partida de todo

pensamento renascentista no tratamento da essência do homem, independente das diversas

interpretações e conclusões, era a noção de livre arbítrio.

Na busca pela essência comum a todos os homens, o pensamento renascentista confere

primazia à categoria liberdade. Assim, do ponto de vista do livre arbítrio, os homens podiam

ser igualados. Segundo Heller (1982), o homem, enquanto portador dessa potencialidade, só

pode ser comparado com criaturas em que se verifica a ausência dessa potencialidade. “O

«homem» acaba por ser contrastado com os animais – e por vezes, no outro extremo, com

Deus, os deuses, os anjos, etc.” (HELLER, 1982, p.342).

Em suma, o Renascimento representou indiscutivelmente uma época de autênticas

possibilidades humanas e, acima de tudo, abriu uma nova perspectiva para a compreensão do

homem. A categoria “liberdade” – objetivo da essência humana – é tangível por meio do

intelecto e do trabalho:

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Quais são essas forças essenciais dos homens que se desenvolvem a partir da liberdade, com o auxilio das mãos e do intelecto, e que no final tornam o homem um deus terreno? São (1) a capacidade e o exercício da criatividade (trabalho, arte, ciência, técnica); (2) a autocriação – incluindo o desenvolvimento da sua substância ética e a autoconsciência; (3) a versatilidade; (4) a insatisfação (insaciabilidade); e (5), como manifestação desta última, a ausência de limites no que se refere ao conhecimento, à criação e à satisfação de necessidades. (HELLER, 1982, p.355).

Podemos concluir, a partir do exposto, que tanto na reveladora análise de Bakhtin

sobre a cultura cômica popular na Idade Média como na investigação de Agnes Heller sobre o

Renascimento, houve um esforço dos pensadores desses períodos em conceber o trabalho

como uma categoria privilegiada da existência humana.

Ao empreender uma análise sobre a concepção rabelaisiana de mundo, o historiador

marxista Mikhail Bakhtin mostrou-nos a unidade presente na relação trabalho, consumo, festa

e liberdade, representada pela cultura popular. O homem manteve-se de fato, como parte de

um todo, enquanto mantinha uma relação natural com sua comunidade. O drama da vida

corporal que envolvia cultura cômica da Idade Média nunca negou ou opôs a relação entre o

homem e a natureza, pelo contrário, a concepção grotesca do corpo tomou forma de um novo

sentimento histórico, concreto e realista.

Conforme demonstramos, o pensamento renascentista ocupou-se das contradições

inerentes ao progresso da ciência, da técnica e do trabalho e, assim, elaborou um conceito

dinâmico de homem e sociedade, no qual a liberdade e o trabalho compunham a essência da

natureza humana. Porém esse quadro tende a se transformar na medida em que a filosofia da

sociedade burguesa emergente apropriou-se dessas formulações: “Mas explorou uma nova

direção; procurou o motivo que levava o homem a criar. E encontrou esse motivo – já não

era sublime, nem moral – na motivação real do indivíduo burguês: o egoísmo”. (HELLER,

1982, p.361)

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Segundo Konder (2000), a história dos últimos seis ou sete séculos retrata a história da

formação do homem burguês, um tipo ideal de indivíduo que deve ser autônomo,

empreendedor, competitivo e principalmente em crise com seus referenciais éticos, ou seja,

seu comportamento corresponde direta ou indiretamente aos interesses da sua propriedade. O

direito tido como natural à propriedade privada passa a ser um dos princípios fundamentais da

liberdade individual.

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CAPÍTULO II

2.1 Os sentidos do trabalho

Vai trabalhar, vagabundo Vai trabalhar, criatura

Deus permite a todo mundo Uma loucura

Passa o domingo em família Segunda-feira beleza Embarca com alegria

Na correnteza Prepara o teu documento

Carimba o teu coração Não perde nem um momento

Perde a razão... (CHICO BUARQUE - Vai Trabalhar Vagabundo)

A compreensão sobre a categoria trabalho, na Filosofia, na Economia Política7 e até

mesmo na religião, assume, de acordo com o contexto histórico, conotações extremamente

diversas. É ao mesmo tempo expressão de vida e degradação, criação e infelicidade, atividade

vital e escravidão ou criação de riqueza e castigo divino. É também perceptível tal paradoxo,

dependendo do caráter positivo ou negativo da noção de trabalho, na caracterização do tempo

de não-trabalho, ora exaltado ou condenado, sinônimo de preguiça ou valor indispensável

para o cultivo do espírito.

Na tradição judaico-cristã, o trabalho aparece nas evocações bíblicas do Gênesis,

como um castigo divino imposto aos homens, nas figuras de Adão e Eva, acusados do pecado

original. Deus, numa de suas demonstrações de vingança, vaticinou:

7 Economia Política tem como objeto as relações sociais próprias à atividade econômica considerando como sua base o trabalho. Segundo assinala José Paulo Netto, a expressão Economia Política aparece, pela primeira vez, em 1615, quando Antoine Montchrétien publica a obra Traité de l’Éco nomie Politique. No entanto o chamado período clássico da Economia Política vai de meados do século XVIII ao início do século XIX, e tem como seus maiores representantes Smith (1723-1790) e Ricardo (1772-1823).

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À primeira mulher, Deus disse: Multiplicarei as dores de tua gravidez, na dor darás à luz filhos. Teu desejo te levará ao homem e ele te dominará (Gn, 3:16). Ao primeiro homem, disse Jeová: Maldito é o solo por causa de ti! Com sofrimentos dele te nutrirás todos os dias de tua vida [...]. Com o suor do teu rosto comerás teu pão, até que retornes ao solo, pois dele foste tirado. Pois tu és pó e ao pó tornarás (Gn, 3:17-19)

“Ao ócio feliz do Paraíso segue-se o sofrimento do trabalho como pena imposta pela

justiça divina e por isso os filhos de Adão e Eva, isto é, a humanidade inteira, pecarão

novamente se não se submeterem à obrigação de trabalhar” (CHAUI, 1999, p.09). Por outro

lado, o homem, ao deixar o paraíso, rompe com sua existência meramente natural. Ao que

parece, nenhum dos atos da criação divina descritos no Gênesis, produziu agricultura, arte,

música, etc.

Segundo Chauí, a ideia do trabalho enquanto desonra revela-se também nas sociedades

escravistas antigas, como a grega e a romana, porém seria destinado somente aos escravos e

aos homens livres pobres. Nesse contexto, o ócio é considerado um valor indispensável para

a vida livre, para o exercício da política e da reflexão, enfim, essencial para a formação do

homem integral, ou seja, a síntese perfeita entre o corpo, a mente, a moral e a sensibilidade,

proporcionada pela ginástica, filosofia, música e arte, respectivamente. O ócio proporcionava

a condição à contemplação, à reflexão e à sabedoria, denotava um privilégio de classe,

significava não ter quaisquer preocupações com questões materiais, com o comércio ou a

guerra e a educação estava voltada para a preparação do nobre exercício da política.

O desprezo pelo trabalho pode ser observado, por exemplo, na concepção filosófica de

Platão. Na obra A República, o estado ideal não é aquele que impera a igualdade entre os

homens, e sim a divisão da pólis em estamentos segundo as três espécies de virtudes baseadas

na alma. Sendo assim, a Politeia, na qual impera a verdadeira justiça, é composta por três

classes: dos filósofos, dos guerreiros e a dos produtores, que correspondem, respectivamente,

às almas racional, irascível e concupiscente.

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[...] cada um deve ocupar-se de uma função na cidade, aquela para qual a sua natureza é mais adequada [...] Produzir justiça consiste em dispor, de acordo com a natureza, os elementos da alma, para dominarem ou serem dominados uns pelos outros; a injustiça, em governar um por outro, contra a natureza. (PLATÃO, 2000, p.128-141)

Na cidade justa cada classe exerce estritamente uma função, sendo a mais proeminente

a dos filósofos, os quais são incumbidos de governar e devem se dedicar à contemplação das

ideias. Por outro lado, cabe à classe inferior, agricultores e artífices, a realização das tarefas

servis, ou seja, a manutenção econômica da cidade. O repúdio ao trabalho material e à

experiência sensível são o legado da concepção platônica, que confere a primazia da alma em

relação ao corpo.

Ainda sobre os diversos sentidos de concepção do trabalho, é elucidativo o excerto

abaixo:

[...] Enfim, não é demais lembrar que a palavra latina que dá origem ao nosso vocábulo ‘trabalho’ é tripalium, instrumento de tortura para empalar escravos rebeldes e derivada de palus, estaca, poste onde se empalam os condenados. E labor (em latim) significa esforço penoso, dobrar-se sob o peso de uma carga, dor, sofrimento, pena e fadiga. Não é significativo, aliás, que muitas línguas modernas derivadas do latim, ou que sofreram a sua influência, recuperem a maldição divina lançada contra Eva usando a expressão “trabalho de parto”. (CHAUI, 1999, p.12)

Com efeito, na antiguidade, em que subsiste a escravidão, ou no período feudal, em

que os servos garantiam a subsistência da sociedade, a abstenção das atividades ligadas à

produção denotava um privilégio de classes. Sendo assim, não é difícil entender por que o

trabalho é considerado castigo, ocupando um lugar inferior comparado a outras esferas da

vida. Ora et labora não constituía uma obrigação universal. Conforme demonstrou Heller

(1982), toda interpretação ética do trabalho, na concepção cristã do mundo na Idade Média,

estava ajustada à ordem hierárquica da sociedade. O trabalho enquanto realização de um

dever e uma obrigação ordenada por Deus cabia a um dado estrato social, ao servo camponês.

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Contudo, no desenvolvimento da produção capitalista, uma nova significação é dada à

categoria trabalho, que passa a ser sinônimo de virtude, isto é, surge um novo ethos na visão

do sociólogo Max Weber (1864-1920). Na análise sobre a constituição do Capitalismo no

ocidente, o ponto de partida de Max Weber é a constatação empírica da relação entre

indivíduos protestantes e a gerência e propriedade do capital na Alemanha. O autor

estabelece um nexo entre as atitudes religiosas, por um lado, e a formação das estruturas

econômicas por outro. Observou, em determinadas doutrinas religiosas, uma tendência ao

cultivo de valores voltados à racionalização das condutas dos fiéis, especialmente na doutrina

protestante.

Essa prática de racionalização seria um fenômeno fundamental que influenciaria as

práticas econômicas e a constituição das sociedades modernas. O autor apresenta a seguinte

questão: Qual o motivo de serem os líderes comerciais e detentores do capital, assim como a

mãodeobra qualificada, das modernas empresas capitalistas preponderantemente protestantes?

A resposta a essa questão vai sendo construída ao longo de sua obra, que incide na tese

da existência do chamado “espírito do capitalismo”, e as primeiras pistas para a elucidação do

problema são explicitadas nas máximas de Benjamim Franklin, escritas em meados do século

XVIII.

Lembra-te que tempo é dinheiro; aquele que com seu trabalho pode ganhar dez xelins ao dia e vagabundeia metade do dia, ou fica deitado em seu quarto, não deve, mesmo que gaste apenas seis pence para se divertir, contabilizar só essa despesa; na verdade gastou, ou melhor, jogou fora, cinco xelins a mais. [...] O som do teu martelo às cinco da manhã ou às oito da noite, ouvido por um credor, o fará conceder-te seis meses a mais de crédito; ele procurará, porém, por seu dinheiro no dia seguinte se te vir em uma mesa de bilhar ou escutar a tua voz numa taverna quando deverias estar trabalhando. (WEBER, 1996, p. 29-30)

A filosofia de vida contida nas sentenças de Franklin pode ser resumida em: trabalhar

o mais arduamente possível, sem descanso, para ganhar o máximo possível de dinheiro, que

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deve ser acumulado. Conforme Weber (1996), “esta filosofia da avareza” não prega

simplesmente uma técnica de vida, mas uma ética peculiar de conduta, cuja violação é

considerada uma falta para com um dever; o homem virtuoso é honesto, pontual e dedica-se

ao labor. Assim, não devemos buscar a explicação em meios exteriores ao indivíduo, e sim

como um processo de educação religiosa em que o trabalho é entendido como uma

“vocação”, sendo executado como um fim em si mesmo.

[...] o racionalismo econômico, embora dependa parcialmente da técnica e do direito racional, é ao mesmo tempo determinado pela capacidade e disposição dos homens em adotar certos tipos de conduta racional. Onde elas foram obstruídas por obstáculos espirituais, o desenvolvimento de uma conduta econômica também tem encontrado uma séria resistência interna. Ora, as forças mágicas e religiosas, e os ideais éticos de dever deles decorrentes, sempre estiveram no passado entre os mais importantes elementos formativos da conduta. (WEBER, 1996, p. 11).

Contudo, conforme assinalou Weber, o espírito religioso perde força com o

desenvolvimento do Capitalismo, mas o impulso do acúmulo de riqueza via o trabalho pode

associar-se com paixões puramente mundanas.

A raiz religiosa da humanidade econômica moderna extinguiu-se. Atualmente, o conceito de profissão está no mundo como um caput mortuum. A religiosidade ascética foi substituída por uma atitude realista-pessimista perante o mundo e o homem, expressa, por exemplo, na Fábula das abelhas, de Mandeville, defendendo que também vícios privados podem circunstancialmente resultar em vantagem para o conjunto da sociedade. (WEBER, 2006, p. 127)

Não cabe, aqui, argumentar sobre as críticas dirigidas ao método empregado por

Weber8, que, numa explicação simplista, consiste em supervalorizar o sentido da ação humana

em relação ao objeto, quando atribui ao progresso do Capitalismo moderno a orientação dada

8 A resposta encontrada por Weber para os intrincados problemas metodológicos do início do século XX foram originais, permitindo um novo rumo para as Ciências Sociais. O indivíduo é colocado no ponto de partida da investigação e esta deveria ser essencialmente histórica. Para Weber, as normas sociais só se tornam concretas quando se manifestam em cada indivíduo sob a forma de motivação. É tarefa do cientista descobrir as conexões possíveis de sentido em relação ao aspecto da realidade social.

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pela reforma protestante. Mas é válido apontar a correção da análise empreendida por

Marilena Chauí, ao demonstrar a generalização da autoimagem do burguês virtuoso.

[...] Em suma, a “ética protestante” e o “espírito do capitalismo” são a conjunção temporal de dois acontecimentos históricos que, em si mesmos, seriam independentes. Além disso, o clássico de Weber identifica a ética burguesa do trabalho e a figura do trabalhador no capitalismo. Em outras palavras, o homem honesto, que trabalha, poupa e investe, é a autoimagem do burguês e não a figura dos que trabalham para que o burguês poupe ou invista. (CHAUÍ, 1999, p.16)

Além disso, não se trata apenas de valorizar e estimular, via ética puritana, a

necessidade de trabalhar; é perceptível, também, uma crítica moral da ociosidade e da

preguiça. Quem não trabalha comete um crime contra a sociedade9 e, ao mesmo tempo um

pecado perante Deus. No panfleto revolucionário “O Direito à Preguiça", de 1880, Paul

Lafargue oferece um panorama da sociedade burguesa, apresentando uma crítica dirigida à

moral cristã e à ideologia do trabalho, mais especificamente ao trabalho assalariado, que cria a

riqueza social na mesma medida em que cria a miséria individual. Invertendo a relação,

enfatiza a preguiça como a maior virtude:

[...] que proclame os Direitos à Preguiça, mil vezes mais nobres e mais sagrados que os tísicos Direitos do Homem, arquitetados pelos advogados metafísicos da revolução burguesa. É preciso que ele se obrigue a não trabalhar mais que três horas por dia, não fazendo mais nada, só festejando, pelo resto do dia e da noite. (LAFARGUE, 1999, p.84)

9 Num estudo de Behring e Boschetti sobre a origem das políticas sociais, “Política Social: fundamentos e

história”, encontramos já no contexto da irrupção da Revolução Industrial a Lei Revisora das Leis dos Pobres, ou Nova Lei dos Pobres (Poor Law Amendment Act), de 1834. A promulgação dessa legislação tinha como objetivo proibir a mendicância dos pobres válidos, obrigando-os a se submeter aos trabalhos “oferecidos”, tinha o sentido de liberar a mãodeobra, marcando o predomínio, no Capitalismo, do primado liberal do trabalho como fonte única e exclusiva de renda, deixando a cargo da filantropia a assistência aos pobres. “Política Social: fundamentos e história”

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De acordo com Huberman (1979), um Arquidiácono inglês chamado Paley escrevia já

em 1793 sobre as virtudes da miséria e a exaltação do trabalho como argumentos contra a

limitação da jornada de trabalho em discussão na Câmara dos Comuns. Para esse sacerdote,

uma legislação que impede a liberdade de trabalhar é imoral. E pregava aos seus fiéis: “Os

pobres invejam aos ricos sua ociosidade. Que erro! Os ricos é que realmente estavam

invejosos – porque a ociosidade só constitui um prazer depois do trabalho árduo”.

(HUBERMAN, 1979, p.195). Esse tipo de pregação, comum nesse período, pretendia, além

de esconder as flagrantes contradições entre pobres e ricos, manter sobre certos limites a

revolta. Vejamos outro exemplo:

Algumas das necessidades que a pobreza impõe não constituem durezas, mas prazeres. A frugalidade em si é um prazer. É um exercício de atenção e controle que produz contentamento. Este se perde em meio à abundância. Não há prazer em sacar recursos imensos. Uma vantagem ainda maior que possuem as pessoas em situação inferior é a felicidade com que sustentam seus filhos. Tudo de que o filho de um pobre necessita está encerrado em duas palavras, “indústria e inocência”. 10 (PALEY, 1793 apud HUBERMAN, 1979, p. 195).

Lafargue critica veementemente a posição do proletariado francês quando aceitou, pós

1848, em caráter de conquista revolucionária, uma lei que limitava em doze horas o trabalho

nas fábricas. Afirma ainda que, desconhecedores de sua missão histórica, deixaram-se

converter pelo desastroso dogma do trabalho. A paixão cega, perversa e homicida do trabalho

faz de homens livres escravos das máquinas.

[...] Doze horas de trabalho para as crianças. Que miséria! Mas todos os Jules Simon da Academia de Ciências Morais e Políticas, todos os Germinys dos jesuitismos não poderiam ter inventado um vício mais embrutecedor da inteligência das crianças, mais corruptor de seus instintos, mais destruidor de seus organismos do que o trabalho na atmosfera viciada da fábrica capitalista. (LAFARGUE, 1999, p.72)

10

W. Paley, Reasons for Contentment: Addressed to the Labouring Part of the Bristish Public, Londres, 1793, pp. 11-12.

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Nesse sentido, Karl Marx (1818-1883), também elabora uma perspicaz crítica dirigida

à ideologia presente na economia política que se traduz num ideal moral ascético, isto é, a

ciência da riqueza é ao mesmo tempo a ciência da renúncia e da privação.

[...] Esta ciência da maravilhosa indústria é ao mesmo tempo a ciência do ascetismo, e seu verdadeiro ideal é o avaro ascético, mas usurário, e o escravo ascético, mas produtivo. Seu ideal moral é o trabalhador que leva à caixa econômica uma parte de seu salário e, para esta sua ideia favorita encontrou até uma arte servil. Isto foi levado ao teatro de forma sentimental. Por isso, a economia política, apesar de sua aparência mundana e prazerosa, é uma verdadeira ciência moral, a mais moral das ciências. A autorenúncia à vida e a todo carecimento humano é o seu dogma fundamental. Quanto menos comas e bebas, quanto menos livros compres, quanto menos vás ao teatro, ao baile, à taverna , quanto menos penses, ames, teorizes, cantes, pintes, esgrimes, etc., tanto mais poupas, tanto maior se torna teu tesouro, que nem a traça nem poeira devoram, teu capital. (MARX, p.24, 1974)

Para Antunes (2005), Marx é o responsável pela mais sublime síntese do trabalho no

mundo moderno: trabalhar significa, ao mesmo tempo, necessidade eterna da relação homem

com a natureza, ocupando lugar de destaque na história de nossa existência. Porém, sob os

ditames da produção de mercadorias, nossa atividade vital se transforma em nossos grilhões,

em atividade imposta, forçada, extrínseca e exterior.

Segundo Huberman (1979), foi Marx quem derrubou a falácia do homem livre, ao

afirmar que, na sociedade capitalista, a exploração era oculta e mascarada, assim como fora na

sociedade escravocrata e feudal, ou seja, ainda persistia a subsunção do homem pelo homem.

Afirma ainda, que o trabalho para a classe produtora passa a ser tão somente manutenção da

existência.

Chega-se, por conseguinte, ao resultado de que o homem (trabalhador) só se sente como [ser] livre e ativo em suas funções animais, comer, beber e procriar, quando muito ainda habitação, adornos etc., e em suas funções humanas só [se sente] como animal. O animal se torna humano, e o humano, animal. (MARX, 2004, p. 83).

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Por outro lado, afirma Marx que a maneira como esses indivíduos reais produzem suas

próprias condições de existência – através do trabalho - configura-se no primeiro ato histórico

desses indivíduos. O trabalho é, acima de tudo, um ato criativo que impulsiona a humanidade,

trata-se de uma categoria que permite a compreensão do modo de ser dos homens e da

sociedade. Isso decorre, num primeiro momento, do fato inexorável de ser a própria existência

social dependente dessa atividade.

Vejamos, então, como, no modo de produção capitalista, é organizado o processo de

trabalho, tendo em vista uma tendência constante de subordinação do trabalho ao processo de

valorização do capital. Em outras palavras, o modo de produção capitalista funda-se, assim

como seus antecedentes, na exploração do trabalho, visto que a origem da acumulação

capitalista corresponde ao poder desempenhado por uma classe de detentores dos meios de

produção sobre outra classe submetida ao trabalho assalariado, que possui como valor de

troca nessa relação sua capacidade de trabalho.

É importante, entender o trabalho como elemento primordial para o processo de

valorização do capital, pois, independentemente das mutações nos processos de trabalho, as

condições essenciais que dão coerência ao modo de produção capitalista permanecem

inalteradas. Desse modo, concordamos com Harvey (2008), de que, apesar das transformações

de âmbito econômico, político e cultural do final do século XX, vivemos, ainda, em uma

sociedade que tem como princípio organizador da vida econômica a produção em função de

lucros. Assim, consideramos como ponto de partida a teoria do valor trabalho de Marx para

entender a história de subordinação do processo de trabalho ao capital.

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2.2 O trabalho como processo de valorização do capital

No Capitalismo – que se proclamou sociedade dos homens livres –, o trabalho não

mais vai significar servidão ou desonra, pois, teoricamente, o trabalhador é um agente livre e

sua subsistência passa a ser garantida com a realização de um trabalho em troca de salário.

Assim trabalhar, do ponto de vista moral, vai adquirindo um novo significado: “Viver é

trabalhar. Só por meio do trabalho podemos conseguir felicidade e prosperidade. Da

tentativa de furtar-se ao curso normal do trabalho é que a miséria humana deflui”. (FORD,

1925, p.08).

O século XVIII testemunhou uma mudança qualitativa nas relações de trabalho, não

apenas no que diz respeito ao aumento da manufatura e do comércio, mas por ser o marco do

fim da subordinação ou usos e direitos não monetários sobre os servos. Conforme demonstrou

Thompson (1998), uma proporção substancial da força de trabalho tornou-se realmente mais

livre para escolher entre o trabalho e o lazer, experimentando um modo de vida menos

marcado por uma posição de dependência. Nesse período, a autoridade espiritual e psíquica

enfraqueceu-se, a Restauração afrouxou os novos laços de disciplina que o puritanismo

introduziria em seu lugar. Com efeito, a igreja vai perdendo o controle sobre os ritos e as

festas populares.

O preceito da liberdade na compra e venda da força de trabalho11 foi o resultado da

lenta dissolução econômico-política da propriedade feudal, ou seja, abre-se com o projeto de

emancipação conduzido pela burguesia revolucionária o horizonte para a formação de um

novo homem, livre e racional em sua atividade. O caráter parasitário da nobreza feudal é

11

O modo de produção capitalista tende a universalizar a lógica mercantil, tão logo o trabalho se converte também em uma mercadoria. No mercado de trabalho, o trabalhador não se vende - isso faria dele um escravo -, mas vende a sua força de trabalho, conferindo ao capitalista o direito de dispor dela por determinado tempo. O valor da força de trabalho como o de outra mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho necessário para produzi-la. “o valor da força de trabalho é determinado pelo valor dos artigos de primeira necessidade exigidos para produzir, desenvolver, manter e perpetuar a força de trabalho”. (MARX, 1974, p.88)

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colocado em questão e as explicações com base em princípios e valores morais, para justificar

o statu quo, perdem força. Em resumo, a burguesia desvela as relações feudais baseadas no

sagrado e religioso, do poder e da riqueza como um dom natural.

Marx e Engels (1998), no Manifesto do Partido Comunista, sintetizam o papel

revolucionário empreendido pela burguesia, que alterou significativamente as relações

produtivas e humanas:

A burguesia, onde conquistou o poder, destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Rasgou sem compunção todos os diversos laços feudais que prendiam o homem aos seus “superiores naturais” e não deixou entre homem e homem outro vínculo que não o do frio interesse, o do insensível “pagamento em dinheiro” (ENGELS E MARX, 1998, p.07).

É inegável o papel revolucionário burguês ao superar todo o modo de vida feudal e a

forma como revolucionou as forças produtivas a patamares jamais vistos. Conforme Lessa

(1996), o ciclo revolucionário burguês é encerrado, e de modo cada vez mais intenso, quando

o capital tende a impedir o desenvolvimento humano-genérico12. Para Marx (2006), a

produção capitalista baseia-se na exploração do trabalho com vista no acúmulo de riqueza sob

a forma de mercadorias; "a riqueza das sociedades onde rege a produção capitalista

configura-se em imensa acumulação de mercadoria; e a mercadoria, isoladamente

considerada, é a forma elementar dessa riqueza". (MARX, 2006, p.57).

12

A citação que segue é ilustrativa e sintética para elucidar os limites da burguesia: “ A cultura ilustrada condensa um projeto de emancipação humana que foi conduzido pela burguesia revolucionária, resumido na célebre consigna liberdade, igualdade, fraternidade. Entretanto, a emancipação possível sob o regime burguês, que se consolida nos principais países da Europa Ocidental na primeira metade do século XIX, não é a emancipação humana, mas somente a emancipação política. Com efeito, o regime burguês emancipou os homens das relações de dependência pessoal, vigentes no feudalismo; mas a liberdade política, ela mesma essencial, esbarrou sempre num limite absoluto, que é próprio do regime burguês: nele, a igualdade jurídica (todos são iguais perante a lei) nunca pode se traduzir em igualdade econômico-social – e, sem esta, a emancipação humana é impossível”. (BRAZ e NETTO, 2006, p.19)

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A mercadoria é, antes de qualquer coisa, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia. Não importa a maneira como satisfaz a necessidade, se diretamente, como meio de subsistência, objeto de consumo, ou indiretamente, como meio de produção. (MARX, 2006, p. 57).

Um bem vai transformar-se em mercadoria quando não é produzido para o consumo

direto, mas, inicialmente, para troca, para a venda. "Quem, com seu produto, satisfaz a

própria necessidade gera valor-de-uso, mas não mercadoria. Para criar mercadoria, é mister

não só produzir valor-de-uso, mas produzi-lo para outros, dar origem a valor-de-uso social".

(MARX, 2006, p. 63).

O que determina o valor de uma mercadoria é o tempo de trabalho socialmente

necessário encerrado na sua produção, mas a qualidade de trabalho tem um valor - um custo

para o capitalista: uma parte é paga através do salário e a outra parte corresponde a um valor

cujo equivalente não é pago. O trabalhador não vende a força de trabalho pelo tempo que vai

levar para produzir o valor de seu trabalho, mas vende o dia de trabalho.

O trabalhador enquanto produtor de mercadorias é o elemento fundamental no

processo de valorização do capital; quando vende sua força de trabalho ao capitalista ele

também se converte em uma forma particular de mercadoria.

Quanto ao salário ele corresponde ao necessário a sua manutenção física, pois ao vender a força de trabalho o trabalhador se torna uma mercadoria, diz então “O valor de sua força de trabalho, como o de qualquer mercadoria, é o total necessário à sua reprodução – no caso, a soma necessária para mantê-lo vivo”. (HUBERMAN, 1979, p. 232).

A produção de bens, independente do que seja, realiza-se através do processo de

trabalho, composto por três elementos: a atividade que é o próprio trabalho; o objeto de

trabalho, matéria a que se aplica o trabalho; e os meios de trabalho, instrumentos. A esse

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conjunto de elementos designamos de forças produtivas. Considerando esses elementos

submetidos a uma estrutura social determinada temos que: “[...] O processo de trabalho é um

processo que ocorre entre coisas que o capitalista comprou, entre coisas que lhe pertencem.

O produto desse processo pertence-lhe do mesmo modo que o produto do processo de

fermentação em sua adega”. (MARX, 2006, p.219).

O que recebe de salário o trabalhador, ele pode produzir em uma parte do seu dia de

trabalho – tempo de trabalho necessário –, que é parte do tempo em que se realiza a

reprodução da sua força de trabalho. Contudo o tempo total de trabalho de um operário é

maior do que o socialmente necessário - o denominado tempo de trabalho excedente -, não

pago de que o capitalista se apropria. Esse período extra não constitui nenhum valor para o

operário, mas é essencial ao capitalista, trata-se do que Marx vai denominar de sobretrabalho.

Em síntese, a criação de valor opera-se no tempo de trabalho necessário; a valorização opera-

se no tempo de trabalho excedente.

O valor da força de trabalho se determina pela quantidade de trabalho necessário para a sua conservação, ou reprodução, mas o uso dessa força só é limitado pela energia vital e a força física do operário. O valor diário ou semanal dessa mesma força de trabalho difere completamente do funcionamento diário ou semanal dessa mesma força de trabalho; são duas coisas completamente distintas, como a ração consumida por um cavalo e o tempo em que este pode carregar o cavaleiro. A quantidade de trabalho que serve de limite ao valor da força de trabalho do operário não limita de modo algum a quantidade de trabalho que sua força pode executar. (MARX, 1982. p. 163-164).

Segundo Weil (2001), no tempo das oficinas, a opressão é fundada essencialmente nas

relações de propriedade e troca, isto é, na oposição criada entre vendedores e compradores da

força de trabalho. Do ponto de vista do processo de trabalho, tal período se caracterizou por

poucas mudanças nos instrumentos de trabalho; no modo de produzir em relação à produção

artesanal, a mesma oficina que antes era dirigida pelo mestre-artesão passa para a tutela e

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supervisão do capitalista; os trabalhadores planejavam os trabalhos que deviam ser

executados, e estabeleciam o ritmo para a máquina, ou seja, tinham a iniciativa e a liberdade

para decidir o método que julgavam mais adequados e, assim, empregá-lo. Esses eram os

chamados trabalhadores qualificados, expropriados dos meios de produção, mas ainda

detentores do conhecimento, do saber fazer. A esse processo de subordinação do trabalhador

ao capital Marx denominou subsunção formal do trabalho ao capital.

Com a crescente racionalização do trabalho e o uso da maquinaria, uma nova oposição

é adicionada à já existente, trata-se dos que dispõem da maquinaria, de um lado, e, de outro,

daqueles dos quais a maquinaria dispõe. Assim, a máquina, que foi produto de relações de

produção, assume a proeminência no processo, o que implica o fato de que o trabalho vivo

imediatamente aplicado à produção passa a ser “apendicizado”. Esse controle do processo de

trabalho é denominado subsunção real do trabalho ao capital.

Ao se converter dinheiro em mercadorias que servem de elementos materiais de novo produto ou de fatores do processo de trabalho e ao se incorporar força de trabalho viva à materialidade morta desses elementos, transforma-se valor, trabalho pretérito, materializado, morto, em capital, em valor que se amplia, um monstro animado que começa a trabalhar, como se tivesse o diabo no corpo. (MARX, 2006, p.228)

2.3 A racionalização da produção e do trabalho: a disciplina do tempo para o trabalho

A consolidação da produção fundada numa “economia programática”13 tem como

cerne a figura da indústria capitalista, pautada numa organização fordista e de gestão

13 Termo empregado por Gramsci no artigo “Americanismo e Fordismo”, publicado em 1934, para sinalizar a passagem do individualismo econômico do tipo “laissez faire” para uma economia racionalizada baseada na experiência Norte-Americana.

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taylorista dessa produção, inicialmente no setor automobilístico14. Tais estratégias de

organização das atividades de trabalho têm como finalidade última o aumento da

produtividade atrelado à diminuição dos custos, à intensificação da exploração do trabalho e

combinado com elevação dos lucros.

Basicamente, quando observamos o processo de desenvolvimento da indústria, é

comum privilegiar as inovações tecnológicas e a invenção de máquinas como propulsoras do

crescimento. É verdadeira a constatação de que, desde a Revolução Industrial, vem ocorrendo

um acelerado progresso técnico, porém, de acordo com Harvey (2008), a base de expansão do

capitalismo do pós-guerra 1945 advém de um conjunto de práticas que vão muito além da

inserção de novas tecnologias, incluindo, também, formas de controle do trabalho, mudanças

nos hábitos de consumo e adequação do poder político. Dessa forma, o período de espetacular

expansão capitalista no pós-guerra resultou da associação entre um modelo de regulamentação

social e política expressa no keynesianismo e de um regime de acumulação baseada no

fordismo.

O mesmo autor conclui, então, que a viabilidade e estabilidade do sistema econômico

capitalista dependem da intervenção do Estado em duas áreas estratégicas: na regulamentação

do mercado e no controle sobre o emprego da força de trabalho. No período que compreende

o final do século XIX e início do século XX, o liberalismo dá claros sinais de esgotamento e

enfraquecimento de suas bases materiais e subjetivas. Observa-se o fortalecimento do

movimento operário e a ascensão do capitalismo monopolista. Esses processos político-

econômicos culminaram na grande crise que assolou o mundo do capital: a quebra da bolsa de

14 O método de organização idealizado por Ford é progressivamente generalizado em diversos setores da indústria e até mesmo na prestação de serviços, como hospitais, escolas e empresas de transporte. Em 1921 a empresa Ford Motor Company adquiriu a Detroit, Toledo & Ironton Raiway, e após adoção dos princípios de eficiência, os gastos que giravam em torno de 18.000 dólares foram reduzidos para 200 dólares. “O acertado era, naturalmente, transformá-la em empresa lucrativa, segundo os métodos comuns da nossa organização. E aplicando a regra do máximo serviço com o mínimo custo, obtivemos que sua renda fosse acima das despesas – coisa que jamais havia sucedido” (FORD, 1925, p.296)

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Nova York em 1929 e a derrocada dos preceitos liberais como norteadores da economia e de

legitimidade política.

O economista John Maynard Keynes (1883-1946), como um bom representante da

classe burguesa, ao invés de vislumbrar na crise a supressão do modo de produção capitalista,

procurou encontrar os mecanismos que, se não evitassem as crises, conseguissem pelo menos

controlá-las. Sua proposta visava à intervenção estatal na economia por meio de investimentos

no mercado produtivo e na promoção do bem-estar. Acreditava, ainda, que, através de

adequadas políticas governamentais, seria possível conter as crises cíclicas do capitalismo,

garantir o pleno emprego e taxas contínuas de crescimento. Em síntese, Keynes operou uma

mudança no papel do Estado apontando uma saída capitalista para a própria crise do

Capitalismo, ao ampliar o consumo pela estruturação de um mercado consumidor de massas.

De acordo com Mandel (2001), a história tem demonstrado que o Capitalismo não é

somente uma ampliação colossal de conhecimentos científicos, riquezas e direitos humanos,

mas também uma acumulação de misérias, injustiças e negação de direitos elementares. Ficou

evidente, a partir da “Grande Depressão”, o caráter ambíguo e contraditório do progresso

econômico baseado na livre iniciativa, pois a impressionante capacidade da indústria de

replicar mercadorias não foi acompanhada por um consumo de massa, visto que a lógica dos

mercados livres tende a rebaixar ao mínimo os salários enquanto as taxas de lucros crescem

absurdamente. Desemprego em escala global. Foi essa a inevitável consequência para

homens e mulheres contratados por salários, no período mais crítico da Depressão – 1932/3.

Harvey (2008) explicita a ação reguladora do Estado:

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[...] Algum grau de ação coletiva – de modo geral, a regulamentação e a intervenção do Estado – é necessário para compensar as falhas de mercado (tais como danos inestimáveis ao ambiente natural e social), evitar excessivas concentrações de poder de mercado ou combater o abuso de privilégio do monopólio quando este não pode ser evitado (em campos como transportes e comunicações), fornecer bens coletivos (defesa, educação, infraestruturas sociais e físicas) que não podem ser produzidos e vendidos pelo mercado (HARVEY, 2008, p.118)

Mas outro perigo ameaçava a ordem moral e social: segundo Hobsbawm (2001), trata-

se da organização operária revolucionária, visto que a União Soviética parecia imune aos

abalos da Depressão. Não havia desemprego. Enquanto a economia em escala global

estagnava, na URSS a produção industrial triplicava.

Segundo Hobsbawm (1995), o êxito econômico em países capitalistas no pós-guerra,

raras as exceções, resultou desse compromisso político com o pleno emprego e com a redução

da desigualdade social através de políticas de seguridade social e previdenciária,

proporcionando um significativo aumento na demanda do consumo. Desse modo, liberdade e

igualdade, no marco do Capitalismo, consagram-se progressivamente no exercício do

consumo, como bem demonstrou Hobsbawm (1995) numa citação do economista John

Kenneth Galbraith, quando inicia a análise sobre a Era de Ouro: “Nenhum homem faminto e

sóbrio pode ser convencido a gastar seu último dólar em outra coisa que não comida. Mas

uma pessoa bem alimentada, bem vestida, bem abrigada e em tudo mais bem cuidada pode

ser convencida a escolher entre um barbeador e uma escova de dentes elétrica”.

(GALBRAITH, 1967 apud HOBSBAWM, 1995, p.253)

Na realidade, o surto econômico vivido principalmente pelos países de capitalismo

avançado permitiu o amplo acesso a bens e serviços, antes exclusivos a uma ínfima parcela da

população. Isso significa que bens antes considerados de luxo podiam passar a ser aceitos

como necessidades em virtude da produção em massa de produtos homogêneos.

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[...] O modelo de produção em massa de Henry Ford espalhou-se para indústrias do outro lado dos oceanos, enquanto nos EUA o princípio fordista ampliava-se para novos tipos de produção, da construção de habitações à chamada junk food (o McDonald´s foi uma história de sucesso do pós-guerra). Bens e serviços antes restritos a minorias eram agora produzidos para um mercado de massa, como no setor de viagens a praias ensolaradas. Antes da guerra, não mais de 150 mil norte-americanos viajaram para a America Central ou o Caribe em um ano, mas entre 1950 e 1970 esse número cresceu de 300 mil para 7 milhões (US Historical Statistics, vol. I, p.403) (HOBSBAMW, 1995, p.259)

As estratégias de acumulação na indústria automobilística foram preponderantes para

o desenvolvimento capitalista do século XX, devendo ser obrigatoriamente adotadas pelas

sociedades que almejavam o pleno desenvolvimento econômico15, tendo em vista os

excepcionais resultados obtidos pela Ford Motor Company. Por exemplo, em 1921, em pleno

período entre guerras, pouco mais da metade dos automóveis do mundo eram da Ford. Graças

aos lucros incessantes o capital da empresa passou dos 2 milhões de dólares em 1907 para 250

milhões em 1919. O preço de venda dos automóveis de turismo foi reduzido em quase 40%,

em 1909/1910 o preço era de 950 dólares para uma produção de 18.664 carros já em

1918/1919 o preço era de 525 dólares para uma produção de 533.706 carros.

Interessa-nos discutir o controle do processo de trabalho, ou seja, como tornar homens

e mulheres altamente produtivos quando os resultados desse trabalho são de apropriação

privada, e, mais especificamente, como o processo de racionalização da produção com base

no fordismo/taylorismo aprofunda a oposição entre trabalho e outras dimensões da vida.

15

No Brasil, esse processo não foi diferente. Na segunda metade da década de 50, instalaram-se no país as norte-americanas, General Motors e Ford e a alemã Volkswagen. Na pesquisa de Guimarães, 1980, “A dinâmica de crescimento da indústria de automóvel no Brasil de 1957/78”, o autor argumenta que o processo de instalação do setor no país ocorreu por conta da convergência entre os interesses da política nacional e as estratégias de competitividade dos produtores. Dessa forma, o projeto político de industrialização do governo Kubitschek incentivou a instalação de empresas internacionais, em especial as automobilísticas, visando a atrair capital estrangeiro no país. Por outro lado, o processo crescente de internacionalização das indústrias ancorado na produção em massa encontrou no país condições das mais propícias, como o baixo custo da mão de obra e incentivos do governo.

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Como demonstrou Thompson (1998), não foi tarefa fácil transformar agricultores,

servos e artífices em trabalhadores assalariados da indústria fabril ao longo do século XVIII: o

progresso do trabalho livre, móvel e assalariado tem como problemática a indisciplina dos

trabalhadores, sua irregularidade em emprego, sua falta de sujeição econômica e sua

insubordinação social. Em um acurado estudo sobre a disciplina do trabalho no capitalismo

industrial, Thompson demonstra que a questão da apropriação e imposição do tempo de

trabalho é extremamente conflituosa.

Por um lado, a notação do tempo para agricultores e artífices independentes era

extremamente vinculada aos fenômenos da natureza – dia, noite, inverno, verão, colheita, etc.

–: o dia de trabalho prolonga-se ou contrai-se segundo a tarefa, não implicando oposição às

relações sociais. Como revela Thompson (1998), além dessa quase inexistente separação entre

“trabalho” e “vida”, percebe-se, também, uma atitude para com o trabalho perdulária e carente

de urgência.

Na sociedade rural em que persistiam a pequena lavoura e a economia doméstica, bem como grandes áreas da indústria manufatureira, a organização do trabalho era tão variada e irregular que é ilusório traçar uma distinção nítida entre “trabalho” e “lazer”. Por um lado, as reuniões sociais mesclavam-se ao trabalho – o mercado, a tosa das ovelhas e a colheita, o ato de buscar e carregar os materiais de trabalho, e assim por diante, durante o ano todo. Por outro lado, investia-se um enorme capital emocional, não aos poucos numa sequência de noites de sábado e manhãs de segunda-feira, mas em ocasiões festivas e nos dias de festivais especiais. Muitas semanas de trabalho pesado e dieta escassa eram compensadas pela expectativa (ou lembrança) dessas ocasiões, quando a comida e a bebida eram abundantes, floresciam os namoros e todo tipo de relação social e esquecia-se a dureza da vida. Para os jovens, o ciclo sexual do ano girava em torno desses festivais. (THOMPSON, 1998, p.52).

Por outro lado, artífices e agricultores submetidos ao crescente processo de

regulamentação do tempo de trabalho experimentam uma nítida separação entre trabalho e

vida, bem como há uma mudança na percepção e atitude em relação ao tempo e ao trabalho.

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Aqueles que são contratados experienciam uma distinção entre o tempo do empregador e o seu “próprio” tempo. E o empregador deve usar o tempo de sua mãodeobra e cuidar para que não seja desperdiçado: o que predomina não é a tarefa, mas o valor do tempo quando reduzido a dinheiro. O tempo agora é moeda: ninguém passa o tempo, e sim gasta. (THOMPSON, 1998, p.272)

As modificações na rotina de trabalho e a imposição de novos hábitos provocaram

resistência, mas, na visão do empregador que necessita extrair o máximo de produtividade,

essa resistência assume a forma de insubordinação, preguiça e vagabundagem. De acordo

com Thompson (1998), na sociedade industrial, todo o tempo deve ser consumido, negociado

e utilizado, é uma ofensa que a força de trabalho meramente “passe o tempo”.

As pressões em favor da disciplina e da ordem partiam das fábricas, por um lado, e das escolas dominicais, por outro, estendendo-se a todos os demais aspectos da vida: o lazer, as relações pessoais, a conversação e a conduta. Juntamente com os instrumentos disciplinares das fábricas, das igrejas, das escolas, dos magistrados e dos militares, havia outros meios semioficiais para se impor um comportamento moralizado e disciplinado. (THOMPSON, 1998, p.292)

Na realidade, a noção do dever e da obrigação de trabalhar, presente na concepção

cristã, muito comum ao campesinato, ao incipiente proletariado industrial, não vigorava mais.

Segundo Heller (1982), as investigações realizadas por Marx revelam que mesmo um século

mais tarde os operários ingleses não completavam uma semana inteira de trabalho, isso

porque, persistia a ideia do dever de trabalhar conforme o tempo necessário ao magro sustento

de outrora. O grande problema foi adaptar-se à disciplina do tempo da fábrica, do ritmo de

trabalho imposto.

A questão do conflito gerado pelo emprego do tempo qualitativa e quantitativamente

configura-se como uma das grandes tensões geradas pela sociedade do capital, pois a

subordinação do trabalho ao processo de valorização do capital depende terminantemente do

controle do tempo. Sem dúvida, não é coincidência que a exigência de uma rígida disciplina,

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acompanhada de críticas aos antigos costumes, persista também enquanto problemática para o

estabelecimento do taylorismo/fordismo.

Todos se recordam que quando procedeu ao exame do trabalho fabril para ensinar aos operários a maneira de economizar energia e trabalho corporal, foram eles próprios os maiores adversários disso. Tinham, talvez, suspeitado que tudo não passasse de uma trama para explorá-los ainda mais; porém o que sobremodo os incomodou foi a obrigação de saírem dos antigos hábitos da rotina. Há comerciantes que abrem falência só porque não querem despegar-se de antiquados sistemas, nem aceitar uma reforma qualquer. São criaturas que não compreendem que o dia de ontem já é passado. Acordaram pela manhã com as mesmas ideias do ano anterior. (FORD, 1925, p. 40).

Frederick Winslow Taylor (1856-1915), por exemplo, argumenta que a aplicação dos

princípios da administração científica objetiva assegurar o máximo de prosperidade para os

empregadores, quando se reduz o custo da produção e, para os empregados, com o aumento

de rendimentos; por conta disso é um equívoco considerar seus interesses divergentes. Nesse

sentido, para Henry Ford (1863-1947), os fins justificam os meios, os capitalistas apenas

administram a propriedade para bem servir o público, ou seja, é dever do bom administrador

adotar toda e qualquer iniciativa voltada para redução dos custos e diminuição do tempo

necessário para produção.

A lógica empreendida por ambos é extremamente mecânica: a chave para a eficiência

da fábrica é a administração do custo do tempo, o que tornaria possível o atendimento do

interesse de todos os agentes econômicos, isto é, empregador, empregado e consumidor,

respectivamente, com aumento do lucro, maiores salários - embora ambos não aumentassem

na mesma proporção - e preços mais baixos de produtos acabados. Esse movimento se perfaz

com a organização científica do trabalho aprimorada e intensificada pela linha de montagem,

com a desqualificação do trabalho e, por fim, com o consumo em massa.

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Nessa direção, é preciso notar a caracterização do fordismo enquanto o

desenvolvimento da proposta taylorista. Conforme apontou Moraes Neto (1989), essa ideia é

amplamente disseminada na literatura, o fenômeno do taylorismo é levado quase à perfeição

por Ford, no sentido de que se busca o auxílio dos elementos objetivos do processo, no caso a

esteira, para objetivar o elemento subjetivo, o trabalho vivo.

O fordismo caracteriza o que poderíamos chamar de socialização da proposta de Taylor, pois, enquanto este procurava administrar a forma de execução de cada trabalho individual, o fordismo realiza isso de forma coletiva, ou seja, a administração pelo capital da forma de execução das tarefas individuais se dá de uma forma coletiva, pela via da esteira. (MORAES NETO, 1989, p.36)

Em linhas gerais, o taylorismo representou uma nova organização do trabalho no

espaço fabril, obtida através da divisão pormenorizada do trabalho, controle e intensificação

do ritmo, supressão dos operários qualificados e separação entre concepção e execução16. O

fordismo, por sua vez, ao incorporar os elementos do taylorismo, intensifica e aumenta a

produtividade com a regulação do tempo destinado à produção através da implantação da

esteira rolante, padronização das peças e automatização das fábricas. Em 1914, o tempo

necessário para a produção de um carro era de uma hora e meia, isso significou uma redução

de oito vezes em relação ao tempo anterior. Outro aspecto diz respeito ao tempo necessário de

aprendizagem para exercer uma função: “Uns 43% de todos os serviços não requerem mais

que um dia de aprendizagem; 36% requerem de um até oito dias; 60% de uma a duas

semanas; 14% de um mês a um ano; 1% de um a seis anos”. (FORD, 1925, p.148).

16 Em 1903, Taylor publicou o resultado de suas experiências e de seus estudos sobre o tempo e movimentos - Motion-Time Study, no conhecido livro “Administração de Oficinas”.

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O aumento na eficiência da produção, dos lucros, da prosperidade e, principalmente, a

exaltação do progresso17 passa a ser vinculada à capacidade de trabalho de cada indivíduo e,

por conta disso, uma ferrenha luta patronal é travada contra os trabalhadores, para impor uma

ética de trabalho baseada na disciplina do tempo e na satisfação adiada. Segundo Thompson

(1998), a disciplina do tempo de trabalho ocorreu por duas vias: por pressões externas -

divisão e supervisão do trabalho, multas, sinos e relógios, incentivos em dinheiro, pregações e

ensino, supressão das feiras e dos esportes - e pela necessidade de internalizar no trabalhador,

via ética puritana, a pregação da diligência e crítica moral da ociosidade.

Nesse sentido, o ponto de partida de Taylor consistiu num obstinado combate ao que

chamou de vadiagem e indolência, consideradas, então, como antigos e arraigados hábitos dos

operários ingleses e americanos. O homem “comum”, na visão de Taylor, é propenso à

indolência e à preguiça, isto é, possui o instinto nativo de fazer o menor esforço para o

cumprimento do seu trabalho, no entanto ocorre um fato curioso, quando se refere às práticas

esportivas – basquetebol e cricket: americanos e ingleses não medem esforços para assegurar

a vitória de suas equipes.

Ao observar essa aparente contradição entre o péssimo desempenho no trabalho e a

eficiência demonstrada nos esportes, Taylor identifica uma segunda e mais perniciosa forma

de indolência, a que chamou de vadiagem sistemática. Surge dos raciocínios confusos

promovidos por lideranças de trabalhadores, pautados na disseminada ideia de que quanto

maior o rendimento do homem e da máquina, maior o índice de desemprego. Assim, coagidos

por seus colegas mais experientes, o melhor trabalhador, gradualmente e de modo inevitável,

abaixa seu rendimento ao nível dos mais fracos.

17 Para Paul Lafargue, o Progresso como finalidade do trabalho foi louvado por filósofos e economistas burgueses: Augusto Comte, Leroy-Beaulieu, Vitor Hugo e Paul de Kock. “[...] todos entoaram cantos nauseabundos em honra do deus Progresso, primogênito do trabalho. Segundo eles, a felicidade reinaria sobre a Terra, e já se podia ouvi-la chegar! Vasculhavam nos séculos passados, entre a poeira e as misérias feudais, a fim de oferecer sombrios altares às delícias dos tempos presentes”. (LAFARGUE, 1999, p.73)

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[...] Trabalhar menos, isto é, trabalhar deliberadamente devagar, de modo a evitar a realização de toda a tarefa diária, fazer cera, soldering, como se diz nesse país, handing it out, como se chama na Inglaterra, can caen como é designado na Escócia, e é o que está generalizado nas indústrias e, principalmente, em grande escala, nas empresas de construção. O autor assevera, sem medo de contestação, que isso constitui o maior perigo que aflige, atualmente, as classes trabalhadoras da Inglaterra e dos Estados Unidos. (TAYLOR, 1978, p.32)

Taylor julgava necessário determinar as causas desse deliberado hábito de “fazer

cera”, e elencou como fatores, os métodos empíricos adotados, o sistema de administração

ineficiente e, por fim, a redução deliberada do ritmo de trabalho por parte dos operários – a

vadiagem sistemática. O problema principal eram os métodos empíricos adotados e,

principalmente, o desconhecimento, por parte da administração, das rotinas e do tempo

necessário para a produção, que involuntariamente fomentavam a ociosidade no trabalho.

Portanto era inadmissível deixar a cargo do operário a escolha do método para realizar o

trabalho, porque inevitavelmente seria lento e demorado.

Não há dúvidas de que a tendência do homem comum, em todos os atos de sua vida é trabalhar devagar e comodamente e só depois de pensar e observar bem a esse respeito ou como resultado de exemplo, consciência ou pressão, ele adota um ritmo mais rápido. (TAYLOR, 1978, p.36)

Para Ford, a massa nunca se eleva ao padrão do seu melhor membro; pelo contrário,

degrada-se ao nível do pior. Como vadiagem é algo inerente ao homem, neste caso o operário,

quando os níveis de eficiência desejável não eram alcançados era demitido. Por exemplo,

vejamos a rotatividade anual na planta da Ford:

Em 1914, quando entrou em vigor o primeiro plano, ocupávamos 14.000 homens e tínhamos de admitir anualmente 53.000 para manter aquele número. Em 1915 só admitimos 6.508 homens, na maioria chamados graças ao crescimento da empresa. Se continuássemos com o primitivo índice de admissões, seríamos obrigados hoje a tomar 200.000 homens por ano, problema quase insolúvel. Bem que um mínimo de tempo seja necessário para o aprendizado em quase todas as operações da nossa

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fábrica, seria impossível mudar o pessoal todo o dia, toda a semana ou todo o mês. (FORD, 1925, p. 173).

O modelo ideal de trabalhador é apresentado na figura do imigrante holandês Schmidt,

considerado por Taylor um homem estúpido e assemelhado a um boi, ou seja, com muita

força muscular e pouco cérebro, mas extremamente diligente e esforçado, pois, além de ir e

voltar correndo do trabalho, no final da jornada tinha disposição para construir uma casinha

para habitar com sua família. Ford reforça a crítica: “Nada há mais detestável, na minha

opinião, do que uma vida de repouso. Ninguém tem direito à vadiagem e para o preguiçoso

não há lugar na civilização” (FORD, 1925, p.20).

Como, então, estimular, ou melhor, impelir homens e mulheres ao trabalho pesado,

dada a sua natureza intrinsecamente indolente? Ou ainda, fazê-los perceber as vantagens

quando se estabelece o espírito da cooperação científica do trabalho? Afirma Taylor (1978)

que o melhor incentivo da administração para incutir o desejo de trabalhar bem e com afinco é

dar ao indivíduo livre curso para a sua ambição, no sentido de incitar a livre iniciativa e o

egoísmo econômico ao invés de promover o desejo de bem-estar geral; trata-se de uma

estratégia das mais poderosas. Para Ford, as leis que impõem a igualdade de recompensas são

nefastas, são contra a natureza, basta ver que os indivíduos não podem nem ao menos exercer

os mesmos misteres, somente a filosofia de liberdade presente nos Estados Unidos é capaz de

promover a justiça. Para quem não trabalha resta a liberdade de morrer de fome.

Segundo Taylor (1978), são inúmeros os benefícios estendidos aos empregados, como,

por exemplo, além do aumento real dos salários, as horas de trabalho foram reduzidas de dez

horas e meia para oito horas e meia por dia, com sábado de meio dia e lhes foram dados

quatro períodos de recreação, convenientemente distribuídos pelo dia. A todas as operárias

foram dados dois dias consecutivos de repouso escolhidos livremente por elas. Afirma, ainda,

ser o resultado mais importante o efeito sobre a moral dos trabalhadores:

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Uma investigação minuciosa sobre as condições desses homens revelou que dentre 140 trabalhadores somente dois eram considerados ébrios. Isso não quer dizer que muitos deles não tomassem um trago, ocasionalmente. O fato é que a um bêbado habitual era impossível manter o ritmo do trabalho planejado e, por isso, a maior parte deles tornaram-se praticamente abstêmios. (TAYLOR, 1978, p.75)

Nesse sentido, em 1914, a fábrica da Ford, em Detroit, estabeleceu o salário mínimo

de cinco dólares diários, “Five dollar a day”, para oito horas de trabalho. Isso implicou, na

época, dobrar o pagamento e aumentar a produção em cinco vezes. Contudo o aumento do

salário estava ligado à conduta do operário – homem - fora da empresa. Em virtude disso

criou-se um departamento de Previsão Social, inicialmente com 50 investigadores, que

visitavam as casas dos trabalhadores com a finalidade de verificar hábitos como alcoolismo,

vício em jogos e capacidade de economia.

[...] Esperava-se que os homens casados, para se tornarem dignos das recompensas, vivessem com suas famílias e procurassem esmerar-se nos seus deveres para com elas. Foi preciso em primeiro lugar, ir desarraigando o mau costume (muito comum nos operários estrangeiros) de receberem hóspedes e de considerarem as próprias casas como uma coisa lucrativa e não como um lar. Moços menores de 18 anos recebiam prêmio por manterem os seus pais envelhecidos e os obtinham igualmente os solteiros que levavam uma vida inatacável. (FORD, 1925, p. 172-173).

Essa citação ilustra uma importante questão. Como podemos observar, não se trata

apenas do aumento do ritmo de trabalho e da divisão de tarefas, mas de uma forma de

opressão mais aperfeiçoada, que irá abarcar todas as esferas da vida, ou seja, do controle total

do processo de trabalho estendido para fora da fábrica. O trabalhador deveria viver apenas de

seu salário e o lar, somente o ambiente doméstico, deveria prover segurança e tranquilidade

suficientes para o descanso e o sossego com a finalidade de garantir a sua integridade física e

a renovação de suas forças para o trabalho.

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Nesse sentido, Gramsci revela em seu artigo “Americanismo18 e Fordismo” como a

América conseguiu centrar toda a vida do país na produção, combinando habilmente força,

persuasão e propaganda política e ideológica. Conforme assinalou Gramsci (1984), o modelo

de produção fundado no fordismo assume um caráter ideológico, político e cultural, isto é, a

racionalização da produção exige a disciplina da força de trabalho, obtida através de

mecanismos como repressão sexual, coerção moral (advento da psicanálise), cooptação (altos

salários), portanto, do controle do trabalhador no seu tempo livre. Isso significa dizer que os

novos métodos de trabalho estão indissoluvelmente ligados a um determinado modo de viver,

de pensar e de sentir a vida.

O objetivo de conservar, fora do trabalho, certo “equilíbrio psicofísico” - com a

finalidade de resguardar a eficiência física do trabalhador - tem como foco o que Gramsci

designou de questão sexual, uma vez que foram os instintos sexuais que sofreram a maior

repressão da sociedade em desenvolvimento. Regulamentar os instintos sexuais revela-se

como um ponto fundamental da questão econômica, daí é possível compreender as iniciativas

puritanas de Ford com relação à família.

[...] Percebe-se claramente que o novo industrialismo pretende a monogamia, exige que o homem-trabalhador não desperdice as suas energias nervosas na procura desordenada e excitante da satisfação sexual ocasional: o operário que vai ao trabalho depois de uma noite de “desvarios” não é um bom trabalhador, a exaltação passional não está de acordo com os movimentos cronometrados dos gestos produtivos ligados aos mais perfeitos processos de automação. (GRAMSCI, 1984, p. 399).

A administração do tempo, a divisão da vida em minutos, controlada pela batida

regular da máquina, acentua a demarcação entre a disciplina da fábrica e uma nova

18 Americanismo é o termo utilizado pela igreja católica no início do século XX para se referir a princípios considerados anticatólicos praticados nos Estados Unidos: liberalismo, individualismo, racionalismo, liberdade religiosa, liberdade de pensamento, secularismo e laicismo.

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organização da vida, na qual tudo deve ser separado e não confundido. Conforme pontuou

Ford (1925), a liberdade funda-se no direito de cada um dedicar-se ao trabalho por um tempo

determinado e de obter como recompensa uma remuneração compatível a sua condição, daí

outras manifestações secundárias do conceito idealístico da liberdade, apenas existirem para

tornarem suportável a vida cotidiana. Por exemplo, Ford não concorda que o desenvolvimento

da grande indústria, pautado na mecânica, engendra um mundo frio e metálico, feito de

máquinas de ferro e de máquinas humanas.

Diz ele, ainda, que o homem conhecedor da finalidade do seu trabalho deve empregar

toda sua capacidade física e mental na execução de tarefas simples, ou seja, não há lugar para

liberdade de ação dos operários em decorrência da especialização, estes são contratados para

efetuarem o máximo de trabalho por um máximo de salário. Assim, liberado de sua atividade

produtiva, aparentemente o tempo de pós-trabalho seria uma forma de retribuição ou prêmio

pelo esforço individual, o trabalhador poderia usufruir desse tempo conforme seus desejos e

interesses. O conjunto de citações seguintes exemplifica esse pensamento:

É simplesmente questão de bom senso planejar o serviço, de modo que os operários trabalhem realmente quando é hora de trabalhar e descansem, também, quando é hora de folga, e não misturem as duas coisas. (TAYLOR, 1978, p.83) [...] Quando encetamos uma obra, é preciso que nos concentremos no trabalho; quando nos dedicamos a uma diversão, devemos ter só em vista o prazer. Seria absurdo pretender combinar um elemento com outro. O único desejo do operário deverá ser cumprir o seu dever ao pé da letra e perceber uma boa paga. Uma vez terminado o serviço pode-se cogitar da diversão, mas nunca antes. (FORD, 1925, p.123-124)

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Dejours (1992) argumenta que a introdução da organização científica do trabalho gera

exigências fisiológicas até então desconhecidas, opera no sentido de controlar os movimentos,

gestos, ritmos e cadências num incessante processo de anulação do comportamento livre, ou

seja, neutraliza a atividade mental dos operários ao cindir o trabalho intelectual do trabalho

manual. O corpo dócil, explorado e fragilizado pela privação do seu protetor natural, que é o

aparelho psíquico19, figura como a principal vítima da organização do trabalho. É a partir da

luta pela saúde do corpo que emergem, nesse período, as correntes contemporâneas da

medicina do trabalho, da fisiologia e da ergonomia. Diante disso, será o homem inteiro

condicionado ao comportamento produtivo pela organização do trabalho e, fora da fábrica, ele

conserva a mesma pele e a mesma cabeça, por conseguinte, despersonalizado no trabalho, ele

permanecerá despersonalizado em sua casa.

O uso do tempo fora do trabalho pode significar um elemento defensivo para a

manutenção do equilíbrio mental dos trabalhadores, porém, adverte Dejours (1992), que são

poucos os trabalhadores que conseguem organizar o lazer de acordo com seus desejos e suas

necessidades:

O tempo fora do trabalho não seria nem mais livre e nem virgem, e os estereótipos comportamentais não seriam testemunhas apenas de alguns resíduos anedóticos. Ao contrário, tempo de trabalho e tempo fora do trabalho formariam uma continuum dificilmente dissociável [...] Assim, o ritmo do tempo fora do trabalho não é somente uma contaminação, mas antes uma estratégia, destinada a manter eficazmente a repressão dos comportamentos espontâneos que marcariam uma brecha no condicionamento produtivo. (DEJOURS, 1992, p.46)

Gramsci (1984) visualiza o fordismo para além de uma nova forma de organização

dirigida à produção de mercadorias ou ainda uma forma passageira de puritanismo hipócrita.

19 Segundo Dejours (1992), o sistema Taylor ao suprimir a atividade cognitiva e intelectual, faz desaparecer o “amortecedor”, o aparelho psíquico, lugar do desejo e do prazer, da imaginação e dos afetos. Além disso, a erosão da vida mental individual dos trabalhadores é útil para a conservação do comportamento condicionado, isto é, o sofrimento mental aparece como um intermediário fundamental à submissão do corpo.

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Na expressão de Gramsci, na América “A hegemonia nasce da fábrica e, para ser exercida,

só necessita de uma quantidade mínima de intermediários profissionais da política e da

ideologia” (GRAMSCI, 1984, p. 381-382). O significado do fenômeno americano traduz-se

numa ideologia que se afirma em ação, para a construção de um novo tipo de trabalhador e de

homem. Dessa forma, o fordismo, enquanto processo de trabalho, opera separação entre

trabalho e vida e ainda confere valores distintos para cada um desses momentos.

Concordando com a assertiva de Gramsci de que frases feitas podem obscurecer e confundir o

senso crítico, segue o excerto abaixo:

Jamais se chegara a inventar um sistema para acabar com a necessidade de trabalhar. A própria natureza foi o que determinou assim. As mãos e o cérebro não foram criados para os ouvidos. No trabalho está a nossa saúde, o nosso respeito próprio, a nossa futura salvação. Longe de ser um castigo, o trabalho é a melhor das bênçãos. (FORD, 1925, p. 160)

Ford já havia compreendido que o princípio econômico fundamental é o trabalho, mas

sua ênfase e louvor são dirigidos ao trabalho na sua dimensão abstrata, enquanto criação de

valores de troca e forma exclusiva para o processo de acumulação de capital. Quando divide e

separa mãos, cérebro e ouvido, afirma na realidade, que o trabalho manual ou o trabalho

intelectual não combinam ou são incompatíveis com a criação voltada para a satisfação dos

nossos sentidos, ou seja, o trabalho desprovido de qualquer conteúdo. Por fim, quando afirma

que saúde, respeito e futura salvação são as finalidades do trabalho, não menciona sua visão

sobre o espetáculo horrível que constitui a reprodução contínua de uma operação idêntica por

processos que não variam nunca. “A mim me causa horror. Por preço algum o mundo

poderia fazer todos os dias as mesmas coisas. Entretanto atrevo-me a dizer que para a

maioria a repetição nada tem de desagradável”. (FORD, 1925, p. 138).

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De acordo com Moraes Neto (1989), o taylorismo influiu na conformação do processo

de trabalho no Capitalismo do século XX, quando impôs à gerência científica o controle das

decisões. Desse modo, o problema da dependência do capital em relação ao trabalho vivo é

solucionado de maneira totalmente diversa e causadora de perplexidade, pois, ao invés de

subordinar o trabalho vivo através do trabalho morto – incremento do capital constante –, o

capital lança-se para dominar o elemento subjetivo em si mesmo, ou seja, o homem é

transformado em instrumento de produção. E essa visão do homem enquanto instrumento de

produção é ampliada no fordismo. Num segundo momento, Moraes Netto (2000) afirma que,

na realidade, a grande fábrica fordista não é, de forma alguma, a grande indústria por

excelência, significou, isso sim, uma “reinvenção da manufatura”, contudo, do ponto de vista

econômico e produtivo, não restam dúvidas da extrema eficiência dessa forma de

organização.

[...] O caminho do taylorismo–fordismo significa na verdade um “desvio mediocrizante” do capitalismo no que se refere ao desenvolvimento das forças produtivas, amplamente vinculado à indústria metalmecânica. Afinal, não é nada brilhante colocar o ser humano em atividades sem conteúdo, e medir seus tempos e movimentos como um instrumento de produção, assim como não é nada brilhante colocar milhares de pessoas, umas ao lado das outras, fazendo movimentos repetitivos. Isto não tem nada a ver com a utilização da ciência como força produtiva, não faz jus à colocação de Marx do brilhantismo do capitalismo quanto ao desenvolvimento das forças produtivas. (MORAES NETTO, 2000, p.11)

Segundo Moraes Netto (2000), Marx, ao explicitar sua visão sobre o movimento de

ajuste das bases técnicas à forma social capitalista, sinaliza os movimentos mais importantes

do processo de trabalho industrial, incluindo-se aí o fordismo e, decisivamente, o taylorismo.

Isso porque, a introdução da máquina ao processo de trabalho significa um intensivo emprego

tecnológico da ciência e com isso, o trabalho vivo imediatamente aplicado à produção, além

de amplamente desqualificado, passa a ser desnecessário, supérfluo ou dispensável.

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Superfluidade. Essa é a noção fundamental de Marx quando examina a questão da grande

indústria moderna; a produção de riqueza torna-se menos dependente do tempo de trabalho e

da quantidade de trabalho.

De acordo com Moraes Netto (2000), nesse sentido, Marx introduz, do ponto de vista

teórico, uma fundamental contribuição: a ideia da natureza autocontraditória do capital, isso

quer dizer que, ao encetar o desenvolvimento das forças produtivas o capital agiria contra os

seus interesses em termos de forma social. O Capitalismo, enquanto forma social, é

intrinsecamente medíocre, tendo em vista a exploração do trabalho.

O movimento de desenvolvimento das forças produtivas significa para Marx uma “trombada” futura das potencialidades abertas por esse desenvolvimento com as barreiras postas pela forma social. A proeminência do trabalho morto, ou seja, dos elementos objetivos do processo de trabalho, a objetivação crescente, traria não só desdobramentos importantes de natureza econômica, mas uma perda de sentido histórico da forma capitalista: uma forma social que se alicerça na exploração do homem pelo homem deixa de ter sentido histórico se o processo produtivo deixa de usar o próprio homem. (MORAES NETTO, 2000, p.10)

Nesse sentido, de acordo com Antunes (2011), a redução da dimensão variável do

capital em decorrência do crescimento da sua dimensão constante poderia oferecer a

possibilidade de o trabalhador aproximar-se do que Marx - Grundrisse 1857/1858 - chamou

de “supervisor e regulador do processo de produção”20. Entretanto, a própria lógica do

capital tem demonstrado um caminho totalmente diverso, a revolução tecnológica das últimas

20 “À medida, entretanto, que a grande indústria se desenvolve, a criação da riqueza efetiva torna-se menos dependente do tempo de trabalho e da quantidade de trabalho empregados, do que frente aos agentes postos em movimento durante o tempo de trabalho, que por sua vez – us powerful effectiveness – não guarda relação alguma com o tempo de trabalho imediato que custa a sua produção, mas que depende mais do estado geral da ciência e do progresso da tecnologia, ou da aplicação desta ciência à produção. [...] A riqueza efetiva se manifesta melhor – e isto o revela a grande indústria – na enorme desproporção entre o tempo de trabalho empregado e seu produto, assim como na desproporção qualitativa entre trabalho, reduzido a pura abstração, e o poderio do progresso de produção vigiado por aquele. O trabalho já não aparece tanto como encerrado no processo de produção, senão que, melhor, o homem se comporta como supervisor e regulador em relação ao processo de produção mesmo”. MARX, Karl. Elementos fundamentales para la crítica de la economias política (Grundrisse) 1857-58, 1972. In: ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho? : ensaios sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 15.ed. São Paulo: Cortez, 2011. p.53.

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décadas do século XX - automação de base microeletrônica e robótica- elevou o grau de

desemprego estrutural, alterou a forma de gestão da força de trabalho remanescente e

enfraqueceu os movimentos de reivindicação.

O mais brutal resultado dessa transformação é a expansão, sem precedentes na era moderna, do desemprego estrutural, que atinge o mundo em escala global. Pode-se dizer, de maneira sintética, que há uma processualidade contraditória que, de um lado, reduz o operariado industrial e fabril; de outro, aumenta o subproletariado, o trabalho precário e o assalariamento no setor de serviços. Incorpora o trabalho feminino e exclui os mais jovens e os mais velhos. (ANTUNES, 2011, p.47)

A partir da década de 1980, em países de Capitalismo avançado é possível identificar

profundas mudanças no mundo do trabalho. O fordismo e o taylorismo não são mais os

modelos dominantes para a organização da produção. De acordo com Antunes (2011), as

transformações apontam um grande salto tecnológico: a automação, a robótica e a

microeletrônica invadiram o universo fabril. O fordismo /taylorismo deixam de ser o modelo

dominante de processo produtivo e diversas experiências da “Terceira Itália”, Suécia, Vale do

Silício nos EUA e regiões da Alemanha (neofordismo, neotaylorismo, pós-fordismo) surgem,

assim como o novo modelo: toyotismo.

2.4 A reestruturação produtiva: da coerção ao consentimento para a (re) formação do homem

Com o esgotamento da fase expansionista do capital, o término dos chamados anos

dourados do Capitalismo, ocorrem mudanças que alteram fundamentalmente a configuração

econômica anterior, as taxas de lucro caíram veloz e significativamente21. Essa dinâmica de

21 “A taxa de lucro, rapidamente, começou a declinar: entre 1968 e 1973, ela cai, na Alemanha Ocidental, de 16,3% para 14,2%, na Grã-Bretanha, de 11,9% para 11,2%, na Itália, de 14,2% para 12,1%, nos Estados Unidos,

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ampliar consumo na mesma medida com que desenvolve a força produtiva aproxima-se de

seus limites, visto que um nível de crescimento ascendente com base em inovação

tecnológica carece, simultaneamente, de uma ampliação significativa do mercado e de um

elevado crescimento econômico que conduza a um alto nível de emprego.

De maneira geral, tornou-se cada vez mais evidente a incapacidade da aliança

fordismo/keynesianismo de conter as contradições inerentes ao Capitalismo. De acordo com

Hobsbawm (1995), economicamente, a estabilidade da Era de Ouro dependia de um

equilíbrio entre o crescimento da produção e a capacidade dos consumidores de comprá-la, ou

seja, quando não havia choque entre as demandas do capital (aumento de lucro) por um lado

e, por outro, o trabalho - aumento de renda.

Antunes (1999) sinaliza que, a partir de meados da década de 1970, o Capitalismo

começa a dar sinais de um quadro crítico, expresso pelas seguintes tendências: queda da taxa

de lucro, esgotamento do padrão de acumulação taylorista/fordista, autonomia da esfera

financeira frente aos capitais produtivos, crise fiscal do Estado, acentuação das privatizações e

tendência à flexibilização do processo produtivo e dos mercados e da força de trabalho.

Tais reviravoltas nada mais são do que o desdobramento de uma profunda crise

estrutural do capital, que, ao invés de apontar para uma derrocada de todo sistema, assume

outra direção, revela a possibilidade de reorganização em bases mais racionais. Essa

transformação se dá em nível superficial, trata-se de reestruturar o padrão produtivo embasado

no modelo fordista/taylorista, sem alterar as bases do modo de produção capitalista.

De acordo com Harvey (2008), há de se lembrar que a acumulação flexível é uma

forma de Capitalismo e, como o novo é criado no seio do velho, são válidos alguns elementos

e relações invariantes do modo de produção capitalista, delineados por Marx, para o

de 18,2% para 17,1% e, no Japão, de 26,2% para 20,3%. Também o crescimento econômico foi reduzido: nenhum país capitalista central conseguiu manter as taxas do período anterior”. (BRAZ e NETTO, 2007, p.213).

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entendimento desse novo padrão de acumulação: 1) o capitalismo é orientado para o

crescimento; 2) o crescimento em valores reais se apoia na exploração do trabalho vivo na

produção; 3) o capitalismo é, por necessidade, tecnológica e organizacionalmente dinâmico.

“Marx foi capaz de mostrar que essas três condições necessárias do modo capitalista de

produção eram inconsistentes e contraditórias, e que, por isso, a dinâmica do capitalismo era

necessariamente propensa a crises.” (HARVEY, 2008, p.169).

Esse processo é denominado de reestruturação produtiva e a amplitude desse novo

padrão é assim definida por Harvey:

A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. (HARVEY, 2008, p.140).

Mais uma vez o setor automobilístico é pioneiro nas estratégias de organização do

processo de trabalho. O novo método iniciado pelos japoneses propiciou um novo impulso

para a acumulação capitalista na tentativa de reverter a queda da taxa de lucro, por conta da

capacidade de produção simultânea de produtos diferenciados, variados e em quantidades

suficientes para abastecer “just-in-time” um mercado cada vez mais instável. De acordo com

Gounet (1999), o que chamou a atenção foi o aumento da participação dos japoneses no

competitivo cenário internacional, que passou dos 14,4% da produção mundial de veículos em

1973, para 23,2% em 1988.

Com a finalidade de entender a essência do método japonês de produção, Coriat

(1994) examina a obra do engenheiro chefe da Toyota, Taichi Ohno, objetivando entender os

princípios e os fundamentos dessa nova forma de organização do processo de trabalho. O

autor defende a tese de que o conjunto de inovações organizacionais promovidas pela Toyota

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foi de tal monta que pode ser comparado ao que foi o fordismo e o taylorismo para uma época

e, mais do que isso, esse sistema não pode ser meramente definido como uma técnica de

produção de estoque zero fundamentada no preceito just-in-time, por isso identifica para além

de técnicas e princípios o chamado “espírito toyota”.

Segundo Coriat (1994), o método idealizado por Ohno foi concebido para enfrentar

situações de busca de ganho de produtividade na ausência de crescimento de demanda,

inicialmente pensando nas especificidades do mercado japonês. Assim, a principal distinção

em relação ao sistema norte-americano reside em buscar fora dos recursos das economias de

escala e padronização fordista/taylorista origens e naturezas de ganhos de produtividade

inéditas. Trata-se de um sistema adaptado à produção em séries restritas de produtos

diferenciados e variados22. Agora, definitivamente produzem-se mercadorias para atender as

demandas do mercado.

A questão do estoque é apenas o ponto inicial para avaliar e ajustar a produção a fim

de evitar o desperdício e diminuir os custos, logo, se há estoque, isso indica, na realidade

excesso de pessoal e excesso de equipamentos. Segundo Coriat (1994), são dois os

pressupostos decorrentes dessa simples observação do estoque: administração pelos olhos e

fábrica mínima.

Em decorrência da falta de espaço, o trabalho em uma fábrica deve se restringir a

quatro operações: transporte, produção, estocagem e controle de qualidade. É na produção que

o valor é agregado ao produto, por esse motivo é preciso limitar ao máximo o tempo de

transporte, estocagem e controle de qualidade, que, na verdade, acarretam custos, ou seja, a

fábrica passa a ser apenas uma montadora. A fábrica mínima é prioritariamente a fábrica

mínima de pessoal, ou seja, o aumento da produtividade é alcançado com o corte sistemático

de trabalho vivo.

22 A cada modelo produzido, as máquinas são substituídas com a redução do tempo de setups, graças ao SMED - single minute exchange of die -, uma metodologia desenvolvida pelo professor Shigeo Shingo, em 1969.

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Como se verá esta “fábrica mínima” deverá necessariamente também ser uma fábrica “flexível”, capaz de absorver com um efetivo reduzido as flutuações quantitativas ou qualitativas da demanda. Ohno assim conduzido a buscar produtividade não mais no sentido da grande série mas “internamente” no sentido da flexibilidade do trabalho, na alocação das operações da fabricação, opondo-se assim às facilidades que constituem a produção de série com estoques a cada intervalo. (CORIAT, 1994, p.34)

O ideal de fábrica enxuta e com preços competitivos é obtido, necessariamente quando

se instaura uma nova forma de organização e, principalmente, de gestão da força de trabalho.

Segundo Alves (2007) o toyotismo assume um valor universal enquanto momento

predominante do complexo de reestruturação produtiva ao articular, de modo original,

coerção capitalista ao consentimento do trabalhador, assim introduzindo o que chamou de

inovações sócio-metabólicas. Essas inovações constituem o nexo essencial do toyotismo, pois

possibilitam a “captura” da subjetividade do trabalho ao capital.

Segundo Gounet (1999), no toyotismo, o princípio fundamental do taylorismo, ou seja,

a luta patronal contra o ócio – aqui entendido como desperdício de tempo- operário atinge um

patamar superior. A técnica chamada de linearização da produção materializa a obtenção de

produtividade através da flexibilidade, cujo objetivo é maximizar o tempo, através da

mobilização ininterrupta de trabalhadores em postos polivalentes. Assim, há a alteração da

relação um homem/máquina para a relação equipe um sistema, em que cada homem opera,

em média cinco máquinas.

De acordo com Coriat (1994), para Ohno, os princípios fordista/taylorista são

excessivamente consumidores de tempo morto, ou seja, não basta economizar tempo

suprimindo gestos desnecessários e comportamentos supérfluos individualmente em cada

posto de trabalho. Assim é introduzido o princípio da organização do tempo “partilhado”. A

organização linearizada dos postos, juntamente com a exigência da polivalência do trabalho,

insere a atribuição de tarefas moduláveis e variadas que são partilhadas por equipes de

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trabalhadores, isto é, são abolidas as fronteiras entre os postos ou seções e o objetivo é tornar

a resolução de problemas que afetam a produção como parte integrante do processo.

O comprometimento e envolvimento do trabalhador com o ideário da empresa é

adquirido com a formação dos CQCs – Ciclos de Controle da Qualidade. Consiste na criação

de pequenos grupos de operários para discutir e apresentar soluções a partir de seu lugar na

produção e no processo de trabalho. Trata-se de mais um dispositivo organizacional destinado

a eliminar possíveis erros e falhas que comprometam a produção. Dessa forma é possível

reduzir os tempos ociosos e ainda, sob uma disfarçada forma de autonomia e participação

intensificar o ritmo de trabalho. De acordo com Alves (2007), essa estratégia procura

reconstituir um vínculo fundamental entre autonomia e ação, ou, restabelecer o que Gramsci

chamou de velho nexo psicofísico do trabalho profissional qualificado - a participação ativa

da inteligência, da fantasia, da iniciativa do trabalho.

Os círculos de controle de qualidade (CCQs), a gestão participativa e o controle total

da qualidade (TCQ) constituem os novos mecanismos para gestão da força de trabalho. Para o

patronato japonês, fazer parte dos CCQs tem um significado maior: além de criar um clima de

harmonia e sentido de participação, cada contribuição é a garantia de que o trabalhador está

pensando na empresa e não contra ela.

As dimensões e significados das “metamorfoses do mundo do trabalho” foram

examinadas por Antunes (2011), e representam de maneira simultânea uma dupla crise: uma

que atingiu a materialidade da classe trabalhadora - que são as metamorfoses no processo de

trabalho acompanhadas de uma grande redução quantitativa do operariado industrial; e outra

que atingiu a subjetividade do trabalho - alteração qualitativa na forma de ser do trabalhador,

afetando intensamente os seus organismos de representação.

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Com referência às mutações relacionadas à estrutura organizacional, ao invés de

aprofundar a integração vertical e altamente hierárquica característica da firma fordista, são

introduzidos os conceitos de integração horizontal e cooperativa. Isso significa, em tese,

formas de desconcentração e de descentralização da produção realizada através de contratos

entre diferentes agentes - colaboradores – que concorrem à realização dos objetivos da firma,

ou seja, a fábrica mínima pressupõe a adoção de serviços terceirizados e das redes de

subcontratação.

Na verdade, essa estratégia permite que as grandes empresas reduzam seus

investimentos em capitais fixos e consigam manter o abastecimento de peças e outros

materiais. Com efeito, são os chamados colaboradores que arcam com os encargos salariais e

com os prejuízos de períodos de instabilidade. As consequências dessa estratégia são nefastas

na esfera dos direitos do trabalho, pois reduz-se drasticamente o emprego regular em favor do

crescente uso do trabalho em tempo parcial, temporário ou subcontratado. De acordo com

Harvey (2008), esses arranjos de empregos flexíveis, quando levamos em conta a cobertura de

seguro, os direitos de pensão e a segurança no emprego, de modo algum parecem positivos.

“A atual tendência dos mercados de trabalho é reduzir o número de trabalhadores centrais e

empregar cada vez mais uma força de trabalho que entra facilmente e é demitida sem custos

quando as coisas ficam ruins” (HARVEY, 2008, p.144).

Assim, direitos e conquistas históricas dos trabalhadores são desregulamentados e

flexibilizados de modo a dotar o capital do instrumental necessário para adequar-se a sua nova

fase. Dessa forma, a verdadeira natureza para a retomada da lucratividade implica novas

relações de produção: intensificação do trabalho, aumento do desemprego estrutural,

diminuição da proteção social e dissolução da organização dos trabalhadores enquanto classe.

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Mas, o valor ontológico do toyotismo para o capital não se vincula apenas à sua morfologia intrínseca adequada a mercados restritos, mas a ser ele (o toyotismo) o resultado de um processo de luta de classes. O toyotismo é a expressão plena de uma ofensiva ideológica (e material) do capital na produção. Ele é um dispositivo organizacional e ideológico cuja “intentio recta” é buscar debilitar (e anular) “negar”, o caráter antagônico do trabalho vivo no seio da produção do capital. (ALVES, 2007, p.161)

De acordo com Harvey (2008), com a radical transformação do mercado de trabalho,

torna-se mais complexa a relação entre capital e trabalho, pois a subcontratação abre a

oportunidade para a formação de pequenos negócios através do retorno de sistemas antigos de

trabalho, como domésticos, artesanal, familiar e paternalista. Essas novas estruturas do

mercado de trabalho facilitam muito a exploração da força de trabalho, como por exemplo,

das mulheres e de minorias étnicas.

Há, inequivocamente, uma substancial alteração e complexificação na composição da

classe trabalhadora, o que torna difícil compreender as normas, hábitos, atitudes culturais e

políticas e, inclusive, as delimitações entre os espaços da produção e da vida social. Isso

porque o novo regime de acumulação flexível expressa também a formação de um novo

trabalhador ao impor novas exigências e qualificações profissionais. Para Harvey (2008)

muitos aspetos da vida incorporam um individualismo mais competitivo e impregnado pela

cultura do empreendedorismo, afirma ainda que: “o movimento mais flexível do capital

acentua o novo, o fugidio, o efêmero, o fugaz e o contingente da vida moderna, em vez de

valores mais sólidos implantados na vigência do fordismo” (HARVEY, 2008, p.161).

Sennett (2003) demonstra como a era do Capitalismo flexível acarreta significativas

alterações na formação do caráter pessoal. A chamada flexibilidade empregada para definir os

novos contornos do capitalismo, exige novas formas de relação do homem com o tempo, com

o conhecimento e na organização do trabalho, isto é, ser flexível significa romper com a

rigidez, a hierarquia, o controle e a disciplina, herdados do binômio taylorismo-fordismo.

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[...] Diz-se que, atacando a burocracia rígida e enfatizando o risco, a flexibilidade dá às pessoas mais liberdade para moldar suas vidas. Na verdade, a nova ordem impõe novos controles, em vez de simplesmente abolir as regras do passado – mas também esses novos controles são difíceis de entender. O novo capitalismo é um sistema de poder muitas vezes ilegível. (SENNETT, 2003, p.10)

O sentido da palavra flexível deriva da observação de que, embora a árvore se

dobrasse ao vento, seus galhos sempre voltavam à posição normal. O comportamento humano

flexível deve ser igual aos galhos de uma árvore, ser adaptável às mais adversas situações,

mas não quebrado por elas. Um exemplo citado por Sennett (2003) desse novo

comportamento diz respeito à forma como as pessoas reagem frente às oscilações do mercado

de trabalho. A expressão “fui demitido”, que designava um fracasso, é abolida; ao invés disso

usa-se “enfrentei uma crise e tive de tomar uma decisão, assim, como uma árvore as pessoas

devem assumir a responsabilidade de um evento fora de seu controle.

A moderna ética do trabalho concentra-se no trabalho de equipe. Celebra a sensibilidade aos outros; exige “aptidões delicadas”, como ser bom ouvinte e cooperativo; acima de tudo, o trabalho em equipe enfatiza a adaptabilidade às circunstâncias. O trabalho em equipe é a ética de trabalho que serve a uma economia flexível. [...] O trabalho de equipe é a prática de grupo da superficialidade degradante. (SENNETT, 2003, p.118)

Essa ideologia da empresa constitui dispositivos morais ainda mais eficazes quando se

trata de contornar a crise do mercado de trabalho. Conforme Alves (2007), homens e

mulheres sem emprego são encorajados a ser uma espécie de empresa gestora de si, é

disseminada a ideia do empreendedorismo e do capital humano. Supostamente, as pessoas são

livres para escolherem quem querem ser, assim, de acordo com a nova ótica ideológica, cada

um é responsável por sua saúde, mobilidade, pela atualização de seus conhecimentos, por sua

diversão e pela escolha dos seus horários.

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CAPÍTULO III

3.1 A construção do tempo livre

O sonho de Aristóteles é a nossa realidade. Nossas máquinas de hálito de fogo, membros de aço, infatigáveis, de uma fecundidade

maravilhosa e inesgotável, realizam docilmente, por si sós, seu santo trabalho; no entanto, a mente dos grandes filósofos do capitalismo

continua dominada pelo preconceito do assalariado, a pior das escravidões.

(PAUL LAFARGUE – O Direito à Preguiça)

No capítulo anterior, num primeiro momento, tratamos da construção dos sentidos

éticos que envolvem o trabalho, ou seja, como a religião, a filosofia e a política exprimiram

uma visão, uma interpretação ou até mesmo propuseram uma atitude de valorização ou

depreciação do trabalho. Porém a reflexão preliminar desse conjunto de ideias não significa o

reconhecimento de efetivos processos sociais, pois como bem assinalou Sennett, “uma ideia

precisa suportar o peso da experiência concreta, senão se torna mera abstração”

(SENNETT, 2003, p.11). Num segundo momento, empreendemos um exame dos princípios

que envolvem os dois processos de trabalho predominantes nos séculos XX e XXI,

respectivamente, o fordismo/taylorismo e o toyotismo. Mais especificamente, demonstramos

o esforço empreendido pelo sistema fordista-taylorista para o controle do tempo de trabalho e

a forte tendência em racionalizar todos os momentos da vida, inclusive acentuando a divisão

entre o tempo dedicado ao trabalho e o chamado tempo livre.

Nas últimas décadas do século XX, o toyotismo, plenamente coerente com contexto de

uma economia instável e projetada para expulsar o trabalho vivo dos processos produtivos,

engendra uma nova forma de conceber o tempo livre, atua no sentido de suprimir todas as

demarcações, contradições e limites do tempo impostos anteriormente.

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O uso do tempo sempre foi uma questão vital para o capital. Erroneamente pensamos

que o uso da maquinaria e dos complexos processos de organização para a produção resultaria

na diminuição do tempo dedicado à produção. Verdade é que, quanto mais avançadas as

forças produtivas, menor será o tempo necessário para a criação do produto social. Assim, as

revoluções industriais, desde que tiveram início, na Inglaterra, a partir do século XVIII,

fomentaram a imaginação de que naturalmente o aperfeiçoamento da tecnologia na indústria

promoveria a promoção das condições de existência, tornaria o trabalho mais leve e

produziria mais tempo livre.

Henry Ford não explicitava nenhuma dúvida ou contradição em relação às

consequências do desenvolvimento da indústria; na realidade julgava imprescindível o

progresso da mecânica no sentido de liberar o tempo destinado à fruição e, assim, expressava

sua opinião a esse respeito: “julgo até que se não soubermos um pouco mais a respeito de

máquinas e de seus usos, e não compreendermos melhor o componente mecânico da vida,

não poderemos dispor de tempo para gozar das árvores, das flores e dos campos

verdejantes”. (FORD, 1925, p.05-06).

Como já demonstramos, a realidade não se mostrou bem assim, pelo menos para uma

grande parcela da humanidade. De acordo com Hirata (1989), o emprego do princípio

mecânico não consiste na substituição da força humana por outra artificial; o que ocorreu foi o

deslocamento de uma parte da inteligência do gesto produtivo para a máquina-ferramenta, em

virtude do trabalho de um número restrito de idealizadores – “concepteurs”. “Por essa forma

social de desenvolvimento das forças produtivas, torna-se possível fazer com que apenas à

grande massa dos trabalhadores seja atribuída a operação das máquinas”. (HIRATA, 1989,

p.78)

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Com advento da automatização e a experiência de reorganização do trabalho no final

do século XX, vemos o retorno das ideias quiméricas da supressão do trabalho alienado, dada

a possibilidade de entregar à máquina atividades repetitivas e extenuantes, além da

perspectiva de uma autêntica “civilização do ócio”. Concordamos que toda vez que

substituímos homens por máquinas em tarefas ingratas estamos promovendo um progresso

para a humanidade, por outro lado, conforme Hirata (1989), a reestruturação do trabalho

impõe um dilema, pois, enquanto temos um número reduzido de trabalhadores numa situação

de vigilância e de intervenção limitada a operações de ajuste, milhares de trabalhadores

ocupam os postos do desemprego.

Conforme Cunha (1987), o tempo destinado ao trabalho, historicamente, depende de

três fatores: em primeiro lugar, das forças produtivas - dos instrumentos, máquinas, matérias-

primas, energia humana; em segundo lugar, do modo como se organiza a sociedade para a

produção - tribal, escravista, feudal, capitalista ou socialista -; e, em terceiro lugar, o mais

importante fator consiste no grau de organização e autonomia dos que se dedicam à produção,

isso porque a força de trabalho é a mais notável e imprescindível no interior do processo de

trabalho.

Para explicitar a importância da força de trabalho recorremos a Braz e Netto (2006): o

processo de trabalho envolve o conjunto das forças produtivas, as quais são compostas por

três elementos, os meios de trabalho e os objetos de trabalho que formam enquanto objetos

exteriores, os meios para a produção, e o terceiro elemento desse conjunto, que é a força de

trabalho. É com intervenção da força de trabalho que o processo de trabalho é posto em

movimento, ou seja, isso depende da capacidade de os homens operarem os meios de

produção. Ainda segundo esses autores, o caráter histórico das forças produtivas revela-se na

capacidade de o homem mobilizar conhecimento, perícia técnica e aperfeiçoamento dos

instrumentos. Assim Marx define o caráter privilegiado da força de trabalho: “[...] O que se

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manifesta em movimento, do lado do trabalhador, se revela agora qualidade fixa, na forma

de ser, do lado do produto. Ele teceu e o produto é um tecido”. (MARX, 2006, p.215).

Marx inicia o capítulo “A maquinaria e a indústria moderna”, de O Capital, com uma

citação do economista inglês John Stuart Mill: “É duvidoso que as invenções mecânicas feitas

até agora tenham aliviado a labuta diária de algum ser humano”. Marx então explicita que o

objetivo do capital quando emprega a maquinaria, não é, de forma alguma, aliviar a labuta

diária de algum ser humano, exceto a do ser humano que viva do trabalho alheio. O

desenvolvimento da força produtiva do trabalho tem a finalidade de baratear as mercadorias,

ou seja, a maquinaria é necessariamente utilizada como um meio de produzir mais-valia.

Para Marx (2006), o ponto de partida da indústria moderna é a revolução do

instrumental de trabalho – a transformação da ferramenta manual em máquina – com o

surgimento da máquina-ferramenta. A máquina tem a capacidade de trabalhar com várias

ferramentas simultaneamente, enquanto o homem é limitado pelo número de seus

instrumentos naturais de produção, seus órgãos físicos – dois braços, duas pernas, etc.

Num primeiro momento, a revolução industrial apropria-se das ferramentas do

trabalho manual, assim agulhas, cutelos e lâminas de serra passam a ser incorporados ao

corpo da máquina. Por tudo isso, resta ao ser humano, inicialmente, a função puramente

mecânica de força motriz ou o papel de vigiar e corrigir a produção. Em síntese, a ferramenta

propriamente dita transfere-se do homem para um mecanismo. Porém o emprego da força

muscular humana como força motriz é também suprimido, pois é facilmente substituído por

forças mais potentes: o vento, a água, o vapor e, ulteriormente, a eletricidade.

A produção mecanizada encontra sua forma mais desenvolvida no sistema orgânico de máquinas-ferramenta combinadas que recebem todos os seus movimentos de um autômato central e que lhes são transmitidos por meio de mecanismos de transmissão. Surge, então, em lugar da máquina isolada, um monstro mecânico que enche edifícios inteiros e cuja força demoníaca se disfarça nos movimentos ritmados quase solenes de seus membros gigantescos e irrompe no turbilhão febril de seus inumeráveis órgãos de trabalho. (MARX, 2006, p.438)

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A maquinaria movida a vapor, além de tornar supérfluo o uso da força muscular,

favoreceu a criação do produto social. Desse modo, tornou a produção mais rápida, precisa,

regular e com um menor dispêndio de tempo e trabalho. Porém, partindo dessa constatação,

como explicar o dogma desastroso do trabalho, ao qual faz referência Lafargue, que converte

homens livres em instrumentos de produção? Afirma, ainda, Lafargue: [...] À medida que a

máquina se aperfeiçoa e elimina o trabalho do homem com uma rapidez e precisão cada vez

maiores, o operário, em vez de prolongar seu descanso na mesma medida, redobra seus

esforços, como se quisesse rivalizar com a máquina. (LAFARGUE, 1999, p.88).

Nas palavras de Huberman (1979), ao invés de tornar o trabalho mais leve, as

máquinas fizeram-no pior. Enquanto coisas que pertenciam ao capitalista, máquinas e mãos

deveriam ser ágeis, pois quanto mais tempo funcionando o mais rápido possível, maiores

seriam os ganhos. “Por isso os dias de trabalho eram longos, de 16 horas. Quando

conquistaram o direito de trabalhar em dois turnos de 12 horas, os trabalhadores

consideraram tal modificação como uma benção”. (HUBERMAN, 1979, p.189)

Por que a máquina opera no sentido de intensificar o trabalho e ainda aumenta o

número de assalariados com o emprego de mulheres e crianças? A explicação de fatos

aparentemente contraditórios, na análise de Marx, torna-se coerente. Do ponto de vista do

capital, e isso deve ser sublinhado, o lucro não deriva da diminuição do trabalho empregado,

mas da apropriação do sobretrabalho, da diferença entre o trabalho realizado e o não pago.

Pensando-se dessa forma, o investimento em capital fixo depende terminantemente da

diferença entre o valor da máquina e o valor da força de trabalho que ela substitui. “[...] Como

qualquer outro elemento do capital constante, as máquinas não criam valor, mas transferem

seu próprio valor ao produto para cuja feitura contribuem”. (MARX, 2006, p.433). Vejamos

o exemplo empírico desse fato:

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[...] Os ianques inventaram as máquinas britadoras. Os ingleses não as aplicam, pois o pagamento recebido pelo desgraçado, wretch (wretch é o termo com que a economia política inglesa designa o trabalhador agrícola), que realiza esse trabalho, corresponde a uma parte tão ínfima de seu trabalho que a maquinaria encareceria a produção para o capitalista. Na Inglaterra, em vez de cavalos, empregam-se ainda, ocasionalmente, mulheres para sirgar os barcos nos canais, pois o trabalho necessário para produzir cavalos e máquinas é uma grandeza matemática bem definida, e o necessário para manter as mulheres da população excedente não chega a merecer consideração. Por isso, é a Inglaterra, o país das máquinas, o lugar do mundo onde mais vergonhosamente se dilapida a força humana de trabalho em tarefas miseravelmente pagas. (MARX, 2006, p.450-451)

O capital, ao tornar supérflua a força muscular, apropria-se de forças de trabalho

suplementares: das mulheres e das crianças. Esse fato altera radicalmente os contratos de

trabalho até então em vigor:

Tomando por base a troca de mercadorias, pressupuséramos, de início que o capitalista e o trabalhador se confrontam como pessoas livres, como possuidores independentes de mercadorias, sendo um o detentor de dinheiro e dos meios de produção e o outro detentor da força de trabalho, mas agora o capital compra incapazes ou parcialmente capazes, do ponto de vista jurídico. Antes, vendia o trabalhador sua própria força de trabalho, da qual dispunha formalmente como pessoa livre. Agora, vende mulheres e filhos. Torna-se traficante de escravos. (MARX, 2006, p.453)

Marx mostra que a finalidade do emprego da maquinaria, dentro do modo de produção

capitalista, não corresponde, de forma alguma, às necessidades do trabalhador; ao contrário,

num primeiro momento, ocorre o aumento absoluto da jornada de trabalho, pelo menos até a

limitação imposta por uma legislação, momento em que se configura a inversão do caráter

extensivo para o intensivo da extração da mais-valia. O tempo de trabalho passa a ser medido

por duas variáveis: a sua duração ou o grau de sua intensidade.

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[...] Quando a rebeldia crescente da classe trabalhadora forçou o Estado a diminuir coercitivamente o tempo de trabalho, começando a impor às fábricas propriamente ditas um dia normal de trabalho, quando, portanto, se tornou impossível aumentar a produção da mais-valia, prolongando o dia de trabalho, lançou-se o capital, com plena consciência e com todas as suas forças, à produção da mais-valia relativa, acelerando o sistema de máquinas. (MARX, 2006, p.467)

Na análise sobre a jornada de trabalho, Marx (2006) mostra-nos que existe um duplo

limite para o prolongamento indiscriminado do dia de trabalho: o primeiro refere-se ao limite

físico da força de trabalho, pois é necessário descansar, dormir e alimentar-se; e o segundo às

fronteiras morais, ou seja, um tempo para satisfazer necessidades espirituais e sociais.

[...] Fica desde logo claro que o trabalhador, durante toda a sua existência, nada mais é que força de trabalho, que todo o seu tempo disponível é, por natureza e por lei, tempo de trabalho, a ser empregado no próprio aumento do capital. Não tem qualquer sentido o tempo para a educação, para o desenvolvimento intelectual, para preencher funções sociais, para o convívio social, para o livre exercício das forças físicas e espirituais, para o descanso dominical, mesmo no país dos santificadores do domingo. (MARX, 2006, p.306)

Para Marx (2006), a história da humanidade não é o reflexo passivo da exploração do

trabalho, mas também de resistência à marcha inexorável do capital rumo à destruição de

todas as fronteiras morais e naturais. A redução da jornada de trabalho é o resultado de uma

luta multissecular entre os interesses opostos do capitalista e do trabalhador; já não era mais

admissível transformar “o sangue das crianças em capital”. Mas, conforme Marx,

infelizmente, o primeiro efeito da redução da jornada de trabalho foi inversamente

proporcional a sua intensificação.

O primeiro efeito da jornada de trabalho diminuída decorre desta lei evidente: A capacidade de operar da força de trabalho está na razão inversa do tempo em que opera. Por isso, dentro de certos limites, o que se perde em duração, ganha-se em eficácia [...] A redução da jornada cria de início a condição subjetiva para intensificar o trabalho, capacitando o trabalhador a empregar mais força num tempo dado. Quando essa redução se torna legalmente obrigatória, transforma-se a máquina

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nas mãos do capital em instrumento objetiva e sistematicamente empregado para extrair mais trabalho no mesmo espaço de tempo (MARX, 2006, p.468-470)

De acordo com Padilha (2003), as lutas travadas pela redução da jornada de trabalho,

nos marcos do capitalismo, refletem, na realidade, a utilização da categoria tempo como fonte

de poder social. Assim, o tempo das máquinas é o tempo dominante e os donos das

máquinas, consequentemente, são os senhores do tempo. Com a expansão das indústrias,

exige-se uma maior sincronização, disciplina e controle do ritmo de trabalho. Tanto no

trabalho como fora dele o valor do tempo é inestimável, por isso não pode ser perdido, pois se

trata de uma perda irrecuperável. “Por mais abstrato que seja o tempo no cálculo econômico,

ele pode ser concretizado e consumido como qualquer outro objeto” (PADILHA, 2003,

p.200).

O homem da sociedade urbano-industrial vive em um constante paradoxo: deve primeiro economizar o tempo - e para esse fim desenvolve inúmeras técnicas – para gastá-lo depois. Com isso, busca “ganhar tempo” nas suas atividades cotidianas, sejam elas profissionais ou as vistas como obrigatórias, para poder “passar o tempo” nos jogos e divertimentos, os quais são curiosamente chamados de “passatempo” (PADILHA, 2003, p.189)

Desse modo, o que chamamos de tempo livre - ou outras classificações de diferentes

autores, como tempo residual, tempo disponível, tempo de não trabalho, lazer ou ócio - deve

ser caracterizado, na sociedade moderna, como um tempo decorrente da correlação de forças

entre capital-trabalho na luta pela apropriação do tempo. Dessa forma, o título da obra de

Padilha (2000) é exemplar nesse sentido: “Tempo Livre e Capitalismo: um par imperfeito”.

Não há dúvidas, afirma a autora, que o uso da automação e de todo desenvolvimento

tecnológico aplicado à produção não é sinônimo de emancipação, tendo em vista os

mecanismos da racionalidade econômica e do processo global de produção capitalista.

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A tecnologia por si não define a relação social de maneira automática. Conforme

salienta Padilha (2000), hoje ao debate em torno do tempo livre, da redução da jornada de

trabalho, acrescenta-se, também, um problema de dimensão político-social e econômico: o

desemprego. “Assim, o desemprego, como uma manifestação de não trabalho, está

constituindo-se numa das mais importantes marcas do capitalismo” (PADILHA 2000, p.15).

Sublinhamos o caráter político-social e econômico, pois, para as organizações empresariais, a

raiz do desemprego consiste no descompasso entre a oferta e a procura de competências de

trabalho, ou seja, força de trabalho qualificada para o uso de novas tecnologias.

Segundo Sader (2000), quando atribuímos ao emprego da tecnologia a causa do desemprego,

estamos absolvendo responsabilidades sociais, políticas e governamentais. Com efeito, há

entre a tecnologia e os seus resultados econômicos uma intermediação, que passa pelas lutas

sociais. Vejamos o exemplo do autor para explicar essa questão:

Quando surgiu a luz elétrica qual foi o resultado mais importante da implantação dessa invenção? Mais bem-estar na casa das pessoas? Não. A consequência imediata foi a introdução da jornada noturna de trabalho? Thomas Edison? A luz elétrica? Ou foi quem se apropriou da tecnologia, maximizou seus lucros e aumentou a exploração da força de trabalho? [...] Apodera-se da tecnologia quem tem mais força, mais capacidade para se apropriar das vantagens que ela proporciona. (SADER, 2000, 192)

A tecnologia não produz desemprego, mas mercadorias com um menor dispêndio de

tempo. De acordo com Sader (2000), duas alternativas podem ser cogitadas com relação à

força de trabalho: podemos suprimir metade dos postos de trabalho ou diminuir a jornada de

trabalho pela metade. A opção por uma das alternativas vai depender da luta social, política e

ideológica, ou seja, do estágio em que se encontra a luta de classes em determinado período

histórico.

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[...] Afinal, a tecnologia não foi criada por uns poucos, foi desenvolvida pela prática geral dos trabalhadores, pela reflexão feita sobre ela pelos trabalhadores, cientistas e intelectuais. É um bem que pertence à humanidade. Não é justo que uma minoria de proprietários dos meios de produção se arbore como beneficiária fundamental do desenvolvimento tecnológico, produza o desemprego maciçamente e ainda alegue, com complacência de governantes que dão legitimidade a essa interpretação, que o desemprego é fruto da tecnologia. (SADER, 2000, p.193)

Podemos citar um exemplo de discussão em torno da redução da jornada de trabalho

que se aproxima muito das críticas de Sader, como a proposta de “Trabalhar menos para

trabalharem todos” presente no título do livro de Aznar (1995), que não considera o

desemprego um problema conjuntural, tratando-se, isso sim, de uma tendência progressiva e

inevitável dos países desenvolvidos. Para o autor, é preciso aceitar que o pleno emprego não é

mais possível e nem plausível que retorne, por isso é imprescindível um projeto voltado para a

diminuição da jornada de trabalho. Uma proposta voltada para o século XXI considera o fato

de que hoje, com a revolução tecnológica, os homens deveriam compreender que entramos

numa fase em que produziremos riqueza sem trabalho, pois inventamos as máquinas para

substituí-lo:

Progresso tecnológico assombroso, tão importantes como a descoberta do fogo ou da eletricidade, vão permitir a produção de riquezas, de bens, de objetos, de serviços, com menos trabalho. Há séculos vimos tendo que suportar a maldição do trabalho com suor de nossa fronte, e nossa vida era totalmente invadida pelo universo do trabalho, de maneira que a maioria das pessoas o considerava de duração excessiva. Eis que um gênero de escravos chamados robôs vem desempenhar em nosso lugar o aspecto desagradável, constrangedor, repetitivo, enfadonho, monótono do trabalho. Francamente, é o 14 de julho... (AZNAR, 1995, p.27)

Admitindo a tese do fim do trabalho, a revolução assinalada por Aznar (1995) será

desencadeada, primeiramente, com a quebra de um persistente tabu, chamado de neurose do

trabalho, e em seguida, com a conquista do “planeta tempo, o novo western da humanidade”.

Assim, os trabalhadores, livres da ditadura do trabalho, teriam mais tempo para dedicar-se a

outras atividades: à família, ao desenvolvimento pleno da cidadania, além de o trabalho

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tornar-se mais prazeroso. “A nova revolução é a da fluidez e da liberdade” (AZNAR, 1995,

p.27).

O tempo livre será para alguns a consumação louca e voraz dos lazeres. Para outros será a viagem, o turismo, a exploração, o passeio, a montanha. Ou então a cultura, os concertos, os museus, o teatro, os festivais. Para outros, a cozinha, a invenção de um outro tipo de lazer ou um tipo de cultura. Para outros ainda, a militância política ou social, o apoio humanitário. Para outros a fotografia, a pintura. Para outros, o corpo, a dança, o relaxamento, a beleza. Para outros, uma nova forma de trabalho. Finalmente para outros, nada. (AZANAR, 1995, p.248)

Apostando na substituição dos homens pelas máquinas e na consequente conquista do

tempo livre, o autor não cogita, em nenhum momento, uma transformação na estrutura

econômica; ao contrário, acredita que é possível manter os salários elevados sem a redução do

lucro dos capitalistas, como se fosse possível conciliar interesses excludentes.

Uma colocação mais consistente do problema encontrou nas formulações de Ricardo

Antunes uma perspectiva mais acurada. Para o autor, a redução da jornada diária de trabalho

sem a redução de salário pode ser considerada dentro dos limites de uma luta pontual, uma

vitória, uma vez que se constitui num mecanismo de contraposição à extração do

sobretrabalho. Paradoxalmente, nos dias atuais, limitar a jornada de trabalho torna-se,

também, um mecanismo imprescindível para minimizar o desemprego estrutural.

[...] o direito ao trabalho é uma reivindicação necessária não porque se preze e se cultue o trabalho assalariado, heterodeterminado, estranhado e fetichizado (que deve ser radicalmente eliminado com o fim do capital), mas porque estar fora do trabalho, no universo do capitalismo vigente, particularmente para a massa de trabalhadores e trabalhadoras (que totalizam mais que dois terços da humanidade) que vivem no chamado Terceiro Mundo, desprovidos completamente de instrumentos verdadeiros de seguridade social, significa uma desefetivação, desrealização e brutalização ainda maiores que as já vivenciadas pela classe-que-vive-do-trabalho. (ANTUNES, 1999, p.177-178)

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Conforme indica Antunes (1999), a luta pelo trabalho e, mais precisamente, pelo

emprego, não representa, sob nenhuma hipótese, concordância com a preservação do trabalho

alienado, mas se faz contingente porque estar fora do trabalho nos dias atuais, carente de

instrumentos legais de proteção, é estar submetido a maiores níveis ainda de desrealização e

brutalização. Assim, tanto a luta pela redução da jornada de trabalho – isto é, pelo direito ao

tempo livre –, como a luta pelo direito ao trabalho, revelam-se igualmente importantes.

Porém, afora essa questão mais imediata sobre redução da jornada de trabalho e a luta pelo

emprego, outro aspecto emerge, ancorado no universo da vida cotidiana: trata-se da

possibilidade de uma reflexão sobre o tempo - o autocontrole sobre o tempo de trabalho e o

tempo da vida – pois, para o autor, não é possível compatibilizar trabalho assalariado,

fetichizado e estranhado com tempo verdadeiramente livre.

Na luta pela redução da jornada (ou tempo) pode-se articular efetivamente tanto a ação contra algumas formas de opressão e exploração do trabalho como também às formas contemporâneas do estranhamento, que se realizam fora do mundo produtivo, na esfera do consumo material e simbólico, no espaço reprodutivo, na esfera do consumo material e simbólico, no espaço reprodutivo fora do trabalho (produtivo). Pode-se articular a ação contra o controle opressivo do capital no tempo de trabalho e contra o controle opressivo do capital no tempo de vida. (ANTUNES, 1999, p.174)

É a partir dessa reflexão sobre um tempo verdadeiramente livre que nos propomos a

discutir a questão do lazer. Conforme já explicitamos, a tendência do capital em racionalizar

todas as instâncias da vida operou uma fragmentação do tempo e dos processos cotidianos da

vida do mesmo modo que impôs um conjunto de comportamentos ajustados ao modelo de

produção fabril. O lazer, enquanto forma de apropriação do chamado tempo livre surge de

uma dinâmica entre o poder do capital e a resistência dos trabalhadores, estando ligado ao

aspecto da diversão, da festa, do consumo, do entretenimento, do jogo, etc. Segundo Padilha

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(2003), investigar a história do lazer certamente nos remete à história dos tempos sociais, seus

usos, suas percepções, representações e às lutas para impor seu controle.

O lazer caracteriza-se como o principal instrumento de apropriação do tempo livre na

sociedade tardo-burguesa, nesse processo – lazer – podemos facilmente identificar, pelo

menos duas significativas vertentes que elevam o lazer a um status de emancipação. Na

primeira delas, as atividades de lazer traduzem-se por si próprias como um tempo de

liberdade, o que acaba por tornar sinônimos os conceitos de lazer, tempo livre e liberdade. Na

segunda vertente, observamos uma identificação entre o lazer moderno e a prática do ócio da

antiguidade.

3.2 O lazer e a liberdade

A primeira constatação a se fazer é a de que o lazer é uma prática social associada ao

desenvolvimento da sociedade urbano-industrial. Surge, originalmente como meio de

identificação e diferenciação de classe, figurando como estratégia de controle e

disciplinamento sobre o tempo livre dos trabalhadores. Hoje, seja concebido como

oportunidade de descanso para a recuperação da força de trabalho ou como um tempo para o

consumo fetichizado das mercadorias, o lazer cumpre uma funcionalidade imprescindível ao

metabolismo do capital.

A gestação do fenômeno lazer, como esfera própria e concreta, dá-se, paradoxalmente, a partir da Revolução Industrial, com os avanços tecnológicos que acentuam a divisão do trabalho e a alienação do homem do seu processo e do seu produto. O lazer é resultado dessa nova situação histórica – o progresso tecnológico, que permitiu maior produtividade com menos tempo de trabalho. Nesse aspecto, surge como resposta a reivindicações sociais pela distribuição do tempo liberado do trabalho, ainda que, num primeiro momento, essa partilha fosse encarada apenas como descanso, ou seja, recuperação da força de trabalho. (MARCELLINO, p.14, 2003)

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É, portanto, na apropriação do tempo livre que está dada a possibilidade de ocorrência

do lazer. De acordo com Dumazedier23 (1979), esse processo de centrar no lazer o uso do

tempo liberado é decorrente de uma nova necessidade social do indivíduo a dispor de si para

si mesmo, com a finalidade de gozar de um tempo sem a imposição das diversas instituições:

O lazer é um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se ou, ainda para desenvolver sua informação ou formação desinteressada, sua participação social voluntária ou uma livre capacidade criadora após livrar-se ou desembaraçar-se das obrigações profissionais, familiares e sociais. (DUMAZEDIER, 2004, p.34)

Como se vê, ao lado da identificação de quando, ou seja, o tempo em que ocorre a

atividade de lazer, para além das obrigações, é a livre entrega dos indivíduos a esta mesma

atividade que o caracteriza, portanto, trata-se de uma atitude caracterizada pela liberdade, que

se constitui como um dos principais traços definidores do lazer. Para outro autor, Bramante

(1998), percebido como uma experiência pessoal que se desenvolve num tempo

individualmente conquistado, a definição de lazer também aparece vinculada à percepção de

liberdade.

O lazer se traduz por uma dimensão privilegiada da expressão humana dentro de um tempo conquistado, materializada através de uma experiência pessoal criativa, de prazer e que não se repete no tempo/espaço, cujo eixo principal é a ludicidade. Ela é enriquecida pelo seu potencial socializador e determinada, predominantemente, por uma grande motivação intrínseca e realizada dentro de um contexto marcado pela percepção de liberdade. É feita por amor, pode transcender a existência e, muitas vezes, chega a aproximar-se de um ato de fé. (BRAMANTE, 1998, p. 9).

23

De acordo com o sociólogo Joffre Dumazedier, pesquisas realizadas na França no período de 1975-1985, revelaram que primeira vez na história das sociedades tecnológicas a duração semanal média do tempo livre ultrapassou a do trabalho, ou seja, foi estabelecida uma nova hierarquia dos tempos sociais.

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Já na “Carta Internacional de Educação para o Lazer”, subscrita pela Associação

Mundial de Recreação e Lazer24 – WLRA, quando de suas considerações sobre os benefícios

do lazer, encontra-se a seguinte definição:

Lazer se refere a uma área específica da experiência humana com seus próprios benefícios, incluindo liberdade de escolha, criatividade,satisfação, diversão e aumento de prazer e felicidade. Abrange formas amplas de expressão e de atividades cujos elementos são tanto de natureza física quanto intelectual, social, artística ou espiritual. O lazer promove a saúde e o bem-estar geral oferecendo uma variedade de oportunidades que possibilitam aos indivíduos e grupos escolherem atividades e experiências que se adequem às suas próprias necessidades, interesses e preferências. (WLRA, 1993, p.01).

Bacal (2003) sustenta que a principal característica do lazer é a de constituir-se em

ação livre, de atuar como forma de evasão da fadiga psicológica gerada pelo trabalho

fragmentado. Tudo indica que com tais atividades o homem busque reencontrar-se com ações

que atendem ao nível de seu ritmo natural, isto é, biológico, psicológico e cultural. Isso quer

dizer que, respeitadas as diferenças individuais, as pessoas sentem nos lazeres, quer ativos,

quer passivos, formas de resgatar a própria liberdade comportamental atuando em função dos

próprios desejos e predisposições.

A “civilização tecnicista”, apresentada por Friedmann (1968), multiplica em qualidade

e em quantidade enormes massas de instrumentos de produção e de bens de consumo, suscita

um tempo liberado, nitidamente separado, ao menos aparentemente, do tempo de trabalho.

Contudo, essa separação é comandada pela organização do trabalho e sua severa disciplina,

pela divisão das tarefas e pela estrutura das empresas, por outras palavras, a distinção entre

tempo de trabalho e tempo liberado é inseparável da produção em série e da organização

científica do trabalho. Para o autor, o futuro dos homens está em suas mãos, pode ser atroz ou,

24

A WLRA – Associação Mundial de Lazer e Recreação – é uma organização internacional não-governamental cujo objetivo é promover o lazer para o desenvolvimento humano e o bem-estar social. A cada dois anos, a associação promove Congressos Mundiais visando o elaborar propostas de lazer aos governos, às organizações não governamentais e às instituições de ensino.

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graças às ciências, magnífico, porém é preciso humanizar nosso mundo de máquinas, de

autômatos, de comunicações de massa.

Na visão de Friedman (1968), por exemplo, esse tempo liberado não significa

necessariamente tempo livre. O desafio é criar condições na sociedade tecnicista para a

realização do “homem do lazer”, capaz de usufruir da felicidade e da boa vida proporcionados

pelas mais variadas experiências: de cultura, de divertimento e de desenvolvimento da

personalidade. “Quem diz lazer, diz, essencialmente, escolha, liberdade. O lazer corresponde

às disposições, aos gostos individuais, a um complexo de tendências abrigadas no próprio

coração da personalidade. (FRIEDMANN, 1968, p.114)

De acordo com Dumazedier (1979), a partir de 1970, na obra “O Poder e a

Sabedoria”, Friedmann rejeita a ideia de uma eventual civilização do lazer, afirmando: “Está

claro, doravante, que a civilização técnica não pode ser uma civilização do lazer”. Para o

autor, o processo de desenvolvimento pós-industrial, pautado somente na redução do tempo

de trabalho consecutivo ao progresso técnico, não implica o estabelecimento das atividades e

dos valores do lazer. Considerar a produção do lazer apenas em relação ao tempo liberado do

trabalho é um equívoco; deve-se considerar, também, o controle social exercido pelas

instituições básicas da sociedade – familiar, socioespirituais e sociopolíticas.

Com efeito, nossa hipótese é que a produção do lazer é o resultado de dois movimentos simultâneos: a) o progresso científico-técnico apoiado pelos movimentos sociais libera uma parcela do tempo de trabalho profissional e doméstico; b) a regressão do controle social pelas instituições básicas da sociedade (familiais, sócio-espirituais e sócio-políticas) permite ocupar o tempo liberado principalmente com atividades de lazer. (DUMAZEDIER, 1979, p.55)

Percebe-se uma tendência geral no debate sobre o lazer, qual seja: diferentes autores e

instituições assinalam seus benefícios como sinônimos de livre escolha, de autonomia, de

prazer, enfim, como legítima aspiração do indivíduo. Como adverte Munné (1980), o

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subjetivismo aparece como uma característica comum às concepções burguesas e liberais de

lazer, pois é concebido como a vivência de um estado subjetivo de liberdade e expressão da

personalidade. Enfim, esse tipo de leitura, ao desconsiderar as determinações sociais que

envolvem o lazer, toma o significado que os indivíduos atribuem à liberdade como expressão

autêntica daquilo que realmente é ser livre.

Marcellino (2003), ao superar o subjetivismo inerente a tais concepções, define o lazer

conjugando o duplo aspecto da atitude de quem o vivencia e do tempo de sua ocorrência. Em

relação ao tempo, em lugar da noção de tempo livre, opta pela denominação tempo

disponível, alertando que tempo algum está livre de coações ou normas de conduta social. No

tempo disponível, identifica a possibilidade da “Revolução Cultural do Lazer”, considerando

que aquilo que marca sua prática é a busca do humano no homem, enveredando-se por uma

leitura de viés humanista.

É nesse novo tempo que são vivenciadas as situações de lazer geradoras dos valores que sustentam a chamada Revolução Cultural do Lazer. São reivindicadas novas formas de relacionamento social mais espontâneas, a afirmação da individualidade e a contemplação da Natureza. Observam-se mudanças nas relações afetivas, nas considerações sobre o próprio corpo, no contato com o belo, em síntese, na busca do prazer. (MARCELLINO, 2003, p. 15).

Ocorre, todavia, que a alienação não está restrita somente ao momento da produção,

do tempo de trabalho, abrange também o tempo livre, no qual ocorre o lazer. Não é só o

tempo livre que não está livre de coações e normas, o mesmo acontece com o lazer. Valer-se

de outra definição, neste caso, tempo disponível, não anula a alienação também presente no

lazer. Marx sinaliza que “a produção não se limita a fornecer um objeto material à

necessidade, fornece ainda uma necessidade ao objeto material”. (MARX, 1982, p.09).

Dentro dessa perspectiva, na esfera do lazer, o capital cria uma necessidade.

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O lazer, sim, pode se constituir como um tempo e um espaço de humanização, é uma

possibilidade. Entretanto está fortemente vinculado ao controle social, na perspectiva da

produção e reprodução física e moral da força de trabalho, e ao consumo, inserindo-se no

mercado de bens e serviços da chamada Indústria Cultural. Ao afirmarmos idealmente o lazer

como um tempo de liberdade e escolha, como uma alternativa positiva frente ao trabalho

alienado, consequentemente, incorremos no erro de identificá-lo como espécie de um “outro”

separado do trabalho, desconsiderando-o em sua totalidade relacional, portanto imbricado à

esfera da produção.

De acordo com Cunha (1987), as atividades de lazer, em decorrência das injunções do

trabalho e da fragmentação do tempo, têm sido vistas como ações compensatórias às próprias

relações de trabalho, recuperando a integridade humana do indivíduo em momentos e

situações particulares. Ou seja, o trabalho, da forma como se configura, não apresenta a

possibilidade de emancipação do homem. Construímos, de tal modo, uma falsa impressão de

liberdade que pode ser alcançada nos momentos de lazer.

É como se o tempo de lazer nos transmitisse uma sensação de liberdade ou no possibilitasse exercer as nossas aspirações e desejos mais simples e imediatos ou mais profundos. Os objetos parecem se desvestir do caráter instrumental e alheio que os tempos primordiais nos impõe. O mar não é mais uma rota comercial. Readquire a atração simples do contato corporal. (CUNHA, 1987, p. 19).

Sobre essa inadvertência, assevera Chauí (1999):

A sociedade administrada também controla as conquistas proletárias sobre o tempo de descanso, ou chamado “tempo livre”. A indústria cultural, a indústria da moda e do turismo, a indústria do esporte e do lazer estarão estruturadas em conformidade com as exigências do mercado capitalista e são elas que consomem todo o tempo. (CHAUÍ, 1999, p.48)

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Tanto no denominado “reino da necessidade” como no “pseudoreino da liberdade” –

isto é, no tempo livre –, o lazer opera na criação das falsas necessidades. Sobre isso, Lafargue

já demonstrava que a criação de falsas necessidades e da obsolescência programada das

mercadorias é uma das formas para solucionar o problema da superprodução de mercadorias.

O grande problema da produção capitalista não é mais encontrar produtores e redobrar suas forças, mas descobrir consumidores, excitar seus apetites e neles criar falsas necessidades [...]. Em Lyon, em vez de deixar a fibra da seda com sua simplicidade e flexibilidade naturais, sobrecarregam-na com sais minerais que, aumentando-lhe o peso, tornam-na quebradiça e de pouca utilidade. Todos os nossos produtos são adulterados a fim de facilitar seu escoamento e encurtar sua existência. Nossa época será chamada de a idade da falsificação. (LAFARGUE, 1999, p. 83).

Para Padilha (2000), as atividades de lazer estão perfeitamente integradas ao sistema

do qual ele faz parte, por conta disso a relação entre consumo e lazer é inevitável. A

felicidade e o bem-estar, na sociedade capitalista, são atrelados ao consumo, seja de

mercadorias ou de entretenimento e o uso manipulado do tempo livre possui diferentes

características de acordo com a classe social. Essa afirmação pode ser resumida em três

pontos:

1º. se as atividades de lazer são transformadas em mercadorias a serem consumidas, o lazer está perfeitamente integrado ao sistema do qual ele faz parte; 2º. se este sistema econômico tem o consumo de mercadorias como pilar de sustentação e momento de realização do lucro não só as atividades de lazer se tornam mercadorias, como o próprio tempo de lazer se configura em tempo para consumir mercadorias e; 3º. se é real a tendência de aumento do tempo livre em função das transformações tecnológicas, parece provável que aumentará consideravelmente o número de serviços especializados em entretenimento (viagens, recreação, lazer). (PADILHA, 2000, p.68- 69).

Contudo, quando pensamos numa sociedade dividida em classes sociais, são as classes

dominantes que se aproveitam para ampliar seu lazer, consumo e cultura, restando, então, às

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classes produtivas lutar para participarem de maneira modesta e muitas vezes ilusória desse

progresso. O lazer, enquanto fenômeno social, está permeado pelas contradições de uma

sociedade divida em classes antagônicas, na qual perpassam relações de hegemonia e contra-

hegemonia.

Mascarenhas (2005) desenha uma pirâmide na qual o lazer transformado em

mercadoria é por ele denominado de “mercolazer”. Na ponta da pirâmide, o que existe para

uma pequena parcela da população é o lazer-mercadoria. Havendo cada vez menos tempo

livre e um ritmo de vida cada vez mais acelerado, busca-se, justamente o prazer imediato, a

compensação concentrada para o estresse provocado pelo dia a dia intenso, “[...] Daí, que a

forma mais avançada que construíram de mercolazer foi apelidada de ‘êxtase-lazer’. Trata-

se do esporte de aventura, como o body-jump, onde o indivíduo dá vazão à adrenalina de

forma bastante rápida”. (MASCARENHAS, 2005, p.22).

No nível intermediário da pirâmide, uma classe média da população que não tem

acesso ao lazer-mercadoria sofisticado, recorre a versões mais baratas de “êxtase-lazer”. Já

para a grande maioria da população, o que sobra é o pouco de lazer gratuito, principalmente a

televisão. “[...] Outra forma de lazer que chega a esta população é o filantrópico, como por

exemplo, dentro de políticas sociais voltadas para afastá-la das drogas e da violência”.

(MASCARENHAS, 2006, p.23).

3.3 A Economia do Ócio?

É corrente encontrarmos nos estudos dedicados à conceituação e explicação do lazer a

sua identificação com o Ócio, como se fossem um mesmo fenômeno. Assim, efetua-se uma

ligação evolutiva entre o lazer e seu ancestral, o ócio, seja pelo caminho da etimologia, pela

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revisão de valores imanentes ou, ainda, pela construção de elementos voltados para a crítica

da sociedade contemporânea. Como bem observou Mascarenhas (2006), no conjunto dos

estudos que se remetem à questão do ócio, empreende-se uma espécie de “busca do ócio

perdido”, o lazer entendido como a finalidade histórica do ócio.

Segundo Mascarenhas (2006), quando olhamos para o lazer não é possível enxergá-lo

sem ver nele os reflexos do ócio. Dessa forma, não podemos negar as determinações que o

ócio ainda exerce no presente: “Embora o ócio se apresente como uma forma residual de

apropriação do tempo livre, sendo amplamente hostilizado pelo sistema de metabolismo

social estruturado pelo capital, algo tendente ao desaparecimento, ele ainda pesa como uma

enorme tradição”. (MASCARENHAS, 2006, p.76).

No entanto o autor é categórico: lazer e ócio são fenômenos distintos. Para tanto

utiliza-se dos apontamentos contidos na obra de Munné (1980) a fim de sumariar uma

contextualização do que representou o ócio no desenvolver da história:

• Ideal clássico de ócio: o ócio, neste período histórico, apresentava-se como

fim em si mesmo, baseado na contemplação e reflexão dos supremos valores

da época: a verdade, a bondade, a beleza etc. Era tido como atividades

desenvolvidas num tempo social de não trabalho – o que difere de um tempo

livre de trabalho -, sendo realizadas apenas por homens livres.

• O ótium Romano: o ócio aparece em oposição ao negócio – o negócio

entendido como atividades como o comércio, exército ou governo -, tido como

tempo de descanso do corpo e recreação do espírito, pela primeira vez assume

um significado de tempo livre do trabalho. É nesse período que surge a

recreação de massas, a política de Pão e Circo, meio de despolitização,

manipulação e controle ideológico em favor do Estado.

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• O ócio como Ideal de nobreza: somando-se ao dito ócio popular, que se

caracterizava por ser um tempo de descanso e comemorações sob o controle

teológico e dos senhores feudais, o ócio apresenta-se eminentemente classista,

tendo como característica a repulsa pelo trabalho, associada ao significado de

um tempo de nada para se fazer. A expressão dessa ociosidade encontra-se na

demonstração de posse e riquezas, deixando, assim, de ser interiorizada e

subjetiva; por fim, há uma identificação entre ócio e ociosidade.

• O ócio como vício: tal manifestação do ócio é condenada pelo puritanismo

religioso – em decorrência da reforma protestante -, visto como o próprio

antitrabalho. Improdutivo, o ócio torna-se sinônimo de degradação, de tempo

perdido. De horror, o trabalho passa a ser enxergado como virtude, necessário

para a acumulação de riqueza capitalista, além de legitimar a ascensão

burguesa, a busca pela falsa liberdade se encontra no e pelo trabalho alienado.

• O lazer ou o ócio burguês: com a Revolução Industrial, e ante a conquista do

tempo livre pela classe trabalhadora, o lazer emerge como estratégia de

controle desse tempo arduamente conquistado, não se restringindo tão somente

ao controle do tempo, mas também do controle do corpo e da mente dos

proletários, difundindo e internalizando o modo de vida burguês, já que nesse

momento, as tradicionais manifestações do ócio precisavam ser erradicadas. O

lazer, paulatinamente, vai subsumindo a forma mercadoria.

A síntese apresentada anteriormente é elucidativa para a compreensão de como o ócio

foi adquirindo novos significados e abandonando outros, até se tornar o lazer, numa relação

dialética em que o lazer nega e incorpora o ócio. Nesse sentido, Mascarenhas (2006),

seguindo o raciocínio de Marx, de que não podemos explicar a anatomia do homem através a

anatomia do macaco, formula uma importante inversão do problema: “Sendo assim, a

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anatomia do lazer é a chave interpretativa para a anatomia do ócio, pois não se pode

identificar no ócio os sinais anunciadores do lazer senão quando este já é conhecido”

(MASCARENHAS, 2006, p.93) Afinal, hoje, o que persiste do ócio se não o consideramos

representativo do tempo livre?

[...] o ócio continua a existir, certamente não é com a força de outrora. Ao contrário, constitui hoje muito mais um ideal do que propriamente uma realidade. Entretanto, por mais afastados que possamos estar na história de sua concreta e dominante experiência, o ócio continua a exercer a função de preservar valores já alcançados, cultivando acesa a possibilidade de um tempo e espaço em que o tempo possa reconciliar-se consigo e com a natureza, entregando-se integralmente ao desenvolvimento multilateral de suas capacidades físicas e intelectuais. (MASCARENHAS, 2006, p. 98).

Para Marcassa (2002), na realidade, ócio já se transformou em uma abstração,

esvaziado de seu conteúdo concreto, e apenas subsiste como uma possibilidade que só se faz

presente se nos remetermos a formas de sociabilidade quase superadas. A fundamentação

dessa afirmação, segundo a autora, deriva da observação de que, nas sociedades anteriores ao

Capitalismo, inexiste uma fragmentação do tempo social e das atividades nele desenvolvidas.

Não há dúvidas de que no passado o ócio, como um hábito intimamente vinculado à organização da vida cotidiana do mundo pré-capitalista, significava o desenvolvimento das capacidades humanas em si mesmas e se configurava como uma prática social relacionada às necessidades do homem, em determinada época e conforme a organização cultural da sociedade. Com o desenvolvimento do capitalismo, sua manifestação tende a desaparecer, embora permaneça como uma possibilidade imersa no conjunto dos valores e significados atribuídos às práticas sociais. (MARCASSA, 2002, p. 189)

Em sintonia com as análises anteriores, Dumazedier (1979) também não compartilha a

ideia de que o lazer tenha existido em todos os períodos, em todas as civilizações; o lazer

possui traços característicos da civilização industrial. Para o autor a ociosidade nega o

trabalho e o lazer o supõe: “O lazer não é a ociosidade, pois que ele supõe, antes de mais

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nada, a presença do trabalho profissional, ao passo que a ociosidade supõe em primeiro

lugar a negação deste”. (DUMAZEDIER, 1979, p.236). O lazer é um conceito inadaptado

para explicar as manifestações de organizações pré-industriais, a ociosidade nunca se definiu

em relação ao trabalho, como forma de complemento ou qualquer tipo de compensação.

De acordo com Mascarenhas (2006), o diálogo com as produções a respeito do tema

lazer e ócio revela-nos que eles convergem basicamente para duas vertentes, a primeira de

base idealista e a segunda condizente à razão instrumental25. Para a tendência idealista, o

verdadeiro lazer é a própria expressão da ideia grega de skholé – condição ou estado de

abstenção da atividade produtiva: “ao denunciar o afastamento do lazer da noção clássica de

ócio, dá sua humanidade como perdida, reclamando modos de vida do passado como chave

para autodeterminação do indivíduo no presente”. (MASCARENHAS, 2006, p.76). A

segunda tendência também se volta para os valores do passado, mas, alinhada à razão

instrumental, incorre numa valorização exacerbada do ócio como panaceia para os problemas

econômicos da sociedade atual.

Além dos problemas e equívocos já enumerados, podemos aludir duas consequências

que julgamos questionáveis dessas tentativas de conjugar lazer e ócio. Em primeiro lugar a

negação da categoria trabalho e a consequente valorização do ócio como uma categoria

central para a explicação da vida, pois, assim, desconsidera-se o trabalho em sua dimensão

concreta, enquanto elemento estruturante do intercâmbio social entre homem e natureza. Em

segundo lugar, observamos uma sintonia entre a lógica presente nos novos preceitos do

mundo do trabalho – flexibilidade - e a celebração de valores inerentes ao ócio, numa

tentativa de suprimir todas as contradições e demarcações de tempo e espaço e, ainda,

25 Segundo Mascarenhas (2005), no campo do lazer, a razão instrumental – valores utilitaristas e compensatórios – é imputada à noção de ócio criativo, sendo percebida, primeiramente, em pesquisas realizadas por Nelson Carvalho Marcelino.

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imprimir a ideia de um novo mundo de possibilidades acessível a todos. Vejamos, então,

seguindo as pistas de Mascarenhas, como os autores estabelecem a relação entre lazer e ócio.

Werneck (2000) argumenta que a noção de lazer não é um produto da Revolução

Industrial, mas como todo o saber produzido no mundo ocidental, tem a influência e o selo da

Antiguidade Clássica. Partindo dessa tese, a autora julga imprescindível retomar a trajetória

histórica dos significados do lazer desde os tempos mais antigos, para demonstrar que os

distintos contextos sociopolíticos imprimiram os mais variados sentidos ao termo. Assim, o

lazer tem seus sentidos primeiros atribuídos ao ócio praticado nas sociedades antigas. A noção

de ócio implicava o afastamento das atividades produtivas e denotava, acima de tudo, um

privilégio relegado aos homens livres, representando os ideais da contemplação, reflexão e

sabedoria. O lazer dos gregos era a manifestação do ócio.

Os primeiros sentidos de lazer estavam relacionados com o ócio que significava, para os gregos, desprendimento das tarefas servis, condição propícia à contemplação, à reflexão e à sabedoria. No entanto, apesar de assumir caráter contemplativo e reflexivo, lazer não significa passividade. Ao contrário, representava um exercício em forma elevada, atribuído à alma racional: os tesouros do espírito eram frutos do ócio. (WERNECK, 2000, p.21)

Percebemos que para Werneck o lazer/ócio tem seu percurso evolutivo deformado

quando adentra na sociedade contemporânea. Dessa forma, enquanto prática social atrelada ao

moderno mundo do trabalho, o lazer cumpre uma funcionalidade útil a interesses sociais,

políticos e econômicos, perde sua característica de atividade que traz em si a própria razão do

seu fim. O que outrora representava o repouso, o prazer, a liberdade e a reflexão passa a

significar compensação das frustrações, recuperação de energias exigidas para o exercício

laboral, bem como um momento de consumo de bens e serviços.

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[...] Além de ser concebido como ócio, momento de descanso, o lazer representa uma fonte de prazer, satisfação, liberdade, deleite, reflexão e realização, noção intimamente vinculada aos significados de cultura e educação. Entretanto, esse sentido de lazer veio sendo revestido de outros valores após o declínio da civilização helênica, que ocorreu paralelamente à ascensão romana. (WERNECK, 2000, p.22)

Na passagem anterior, a autora opera um tipo estranho de inversão, como bem

sinalizou Mascarenhas (2006), que lhe faz ver o ócio como a própria manifestação do lazer,

embora com diferentes significados. Nesse mesmo percurso, Bacal (2003) sustenta que a

principal característica do lazer é a de constituir-se em ação livre, atuar como forma de evasão

da fadiga psicológica gerada pelo trabalho fragmentado. Para chegar a essa conclusão, afirma

a autora que, no mundo contemporâneo, o termo ócio foi substituído, no francês, por loisir, e,.

no português, por lazer. O ócio é uma condição ou estado – o estado de estar livre da

necessidade de trabalhar, “a capacidade de empregar devidamente o ócio é a base do homem

livre e da felicidade humana” (BACAL, 2003, p.42).

Segundo Mascarenhas (2006), esse elogio ao ócio aponta, muitas vezes, ao

desencantamento com a realidade via três diferentes posturas: da negação do presente -

como o lazer não consegue romper com os determinantes sociais, ele é negado, pois muito

distante da forma idealizada do ócio; do refúgio no passado, uma tendência a buscar sentido

no ócio, uma explicação e crítica à forma do lazer contemporâneo; e do refúgio no

afastamento - a saída seria uma ruptura do indivíduo com os valores do mundo, um modo de

viver encerrado em si mesmo.

Esse último aspecto, do refúgio no afastamento, revela-nos, ainda, os anseios do

indivíduo frente a uma sociedade altamente individualizada, na qual a felicidade é

considerada um projeto subjetivo. O ócio circunscrito à experiência cuja finalidade se esgota

em si evoca, sobretudo, o princípio da subjetividade face as relações concretas, está

relacionado com o sentido atribuído por quem vive, ou seja, não depende nem do tempo, nem

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do nível socioeconômico, muito menos das relações sociais. Dessa premissa reside a

possibilidade individual do exercício da liberdade.

“Bem-Vinda Subjetividade”26. Essa expressão de contentamento pode ser descrita nos

trabalhos do sociólogo italiano Domenico De Masi, autor muito influente no Brasil na década

de 1990, que está entre os defensores da tese do fim da centralidade do trabalho e da criação

da sociedade do tempo livre a partir de uma verdadeira exaltação do ócio. Para De Masi

(2000a), apesar de anacrônico, se desejamos um modelo, este é ainda o da Atenas de Péricles,

no qual o ócio criativo incluía equilíbrio e beleza ou, ainda, pautado na concepção de Platão,

no qual as principais matérias a serem ensinadas aos jovens eram, sobretudo, a ginástica, que

harmonizava o corpo, e a música, que harmonizava o espírito.

A trajetória milenar da espécie humana caminha do trabalho dor ao não trabalho

prazer. Na nova sociedade, graças à tecnologia e às ciências organizacionais, somos capazes

de produzir trabalhando cada vez menos, o que significaria, finalmente, alterar a hierarquia

das atividades humanas. Hoje advoga o autor que, precisamos nos adaptar a um modelo de

vida e de sociedade do tempo livre. As condições materiais, políticas e econômicas já

estariam dadas, restando apenas mudar as mentalidades:

[...] Há trabalhadores hiperativos alienados, que estão contentes por trabalhar sempre mais e quando conversam conosco dizem: “É, infelizmente o meu trabalho não me permite tirar férias”. São pessoas perigosíssimas! Não tão perigosas para si mesmas, mas muito mais para os outros. São pessoas para as quais existe um só remédio: aconselhar e induzir ao suicídio. Porque, trabalhando muito, fazem trabalhar as pessoas que trabalham com elas e tornam-se escravistas de tipo moderno. Existem ainda os trabalhadores hiperativos que se queixam, aqueles que, quando falam a respeito do seu trabalho, dizem: “Infelizmente, infelizmente, sou obrigado a trabalhar muito”, mas nunca mudam o seu modelo de vida. Finalmente, existem os hiperativos arrependidos, isto é, aqueles poucos “managers” que deixam o trabalho e dão inicio a uma nova vida, levando um tipo de vida mais introspectivo, mais humano. O problema é que nós incorporamos a idéia de que o trabalho é um dever e o ócio, um pecado. (DE MASI, 2000c, p.132-133)

26 Título do sexto capítulo do livro “Ócio Criativo” de Domenico de Masi.

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Na realidade, De Masi vislumbra na reestruturação produtiva e consequente crise do

mundo do trabalho no final do século XX, do qual já abordamos as raízes e consequências, a

possibilidade de construir uma nova sociabilidade desvinculada da necessidade de trabalhar.

No temor do desemprego e do risco social, o autor vislumbra um mundo novo, baseado na

crença de que a máquina liberou o corpo do trabalho e hoje a sociedade pós-industrial

completou o ciclo, liberou a mente. Alega que a transformação cultural desta fase histórica

que atravessamos nos permitiria voltar nossa atenção no desenvolvimento da dimensão lúdica

e criativa, resumido na ideia de ócio criativo, um modelo a ser perseguido por pessoas e

organizações na busca de um novo modo de viver, como base numa nova economia centrada

no tempo livre.

O marco dessa transformação é determinado com a superação do modelo de produção

industrial estipulado por Henry Ford, no início do século XX. Muito embora tenha

proporcionado um incomensurável ganho no tocante à produção de bem-estar, tal modelo foi

desastroso quanto à massificação dos gostos - produção em massa - e na supressão de valores

estéticos. Com relação ao projeto organizacional de Taylor, o autor considera-o extremamente

original e libertador, pois, na realidade, construímos uma imagem caricata desse excepcional

engenheiro: “Na verdade, ele nasceu rico, trabalhava por hobby e estudava a organização do

trabalho porque era a sua paixão” (DE MASI, 2000a, p.50). Dessa forma, para De Mais,

contra os fatos há argumentos absurdos:

Na realidade, o projeto organizacional e existencial de Taylor, a longo prazo, não tende absolutamente a tornar mais cruel o trabalho, mas sim a liberar as pessoas do cansaço e lhes permitir um lazer criativo. Quanto a ele, pessoalmente, retirou-se em sua mansão, aos quarenta e cinco anos, passando a dedicar-se aos seus jardins, que eram cuidados por trinta e cinco jardineiros. Para Taylor, o trabalho é uma coisa que pode ser evitada. Entre as visões do trabalho que se confrontavam naquele período, a sua era a mais libertadora e cheia de vitalidade. (DE MASI, 2000a, p.50)

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Seria então Taylor o precursor do ócio criativo? Se não o considerarmos numa

perspectiva estreita, unilateral e caricata, sim. Para De Masi (2000a), entre as visões do

trabalho que se confrontavam no período industrial, a de Taylor era a mais libertadora e cheia

de vitalidade. “No final das contas, pensando bem, Taylor é mais próximo ao Lafargue do

“direito ao ócio” do que ao sogro deste, Karl Marx27, com o seu “direito ao trabalho” (DE

MASI, 2000a, p.51). Argumentos ou referências para sustentar essa afirmação não são

apresentados pelo autor, na verdade, se nos remetermos aos “Princípios de Administração

Científica”, constatamos que Taylor jamais proporcionou um lazer criativo, muito pelo

contrário travou uma luta ferrenha contra o que chamou de preguiça, ociosidade e vadiagem.

Assim afirma, De Masi, sonho da humanidade de acabar com a maldição do trabalho

está cada vez mais próximo de ser realizado, graças às facilidades criadas pela Terceira

Revolução Industrial. Em virtude do progresso tecnológico e da difusão cultural, é possível

construir uma sociedade na qual sejam abolidos os limites entre tempo livre, trabalho e

estudo, de modo que essas três atividades acabem coincidindo; em outras palavras, no

passado, foi o trabalho que colonizou o tempo livre e nos anos futuros será o tempo livre a

colonizar o trabalho.

Hoje, finalmente, a organização industrial e os seus acatados princípios de padronização, economia de escala e estruturas piramidais são postos em discussão pela base. A prática organizativa está experimentando formas completamente diferentes, mais desestruturadas, mais ágeis, mais motivadoras e quentes; a tecnologia favorece essas inovações com instrumentos capazes de encontrar, obter, confiscar, elaborar e divulgar as informações como nunca antes. Permanece o mesmo apenas o modo de conservadores ignorantes planejarem suas organizações. (DE MASI, 2001, p.25)

27

No que concerne à elaboração da teoria social de Karl Marx (1818-1883), esta compreende o esforço de toda uma vida dedicada a um determinado objeto de investigação: a ordem burguesa. Marx dispôs-se a investigar a gênese, o desenvolvimento, a consolidação e as crises da dinâmica de organização social que se funda, prioritariamente, com base na exploração do trabalho.

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De Masi (2000a), sugere que a competitividade destrutiva deveria ser substituída pela

concorrência leal e solidária, pois sobreviriam novos valores e uma nova divisão internacional

do trabalho. Na nova divisão internacional do trabalho, alguns países produzirão bens

imateriais e outros bens materiais, e alguns países ou grupos de indivíduos, sejam eles ricos

de países pobres ou pobres de países ricos não farão absolutamente nada. “Não farão nada

além de passar o tempo com as tarefas cotidianas (quando pobres) e com uma atividade de

lazer mais ou menos evoluída segundo o próprio refinamento cultural (quando ricos)”. (DE

MASI, 2000a, p.132)

Na nova sociedade regida pela economia do ócio, essa distinção dos tempos sociais

típica da sociedade industrial vai perdendo o seu significado. A separação entre lar e trabalho,

a vida das mulheres da vida dos homens e o cansaço da diversão e, ainda, a importância dada

ao trabalho em relação à família, ao estudo e ao tempo livre, acaba por inexistir. A plenitude

da atividade humana é alcançada somente quando nela coincidem, acumulam-se, exaltam-se e

mesclam-se o trabalho, o estudo e o jogo, isto é, quando nós trabalhamos, aprendemos e nos

divertimos tudo ao mesmo tempo. Eis o chamado “Ócio Criativo”.

A noção de ócio criativo faz repercutir os princípios da nova organização para a gestão

da força de trabalho, baseada na disseminação de ideologia da flexibilização em todos os

âmbitos: a produção é flexível porque o mercado é instável, a força de trabalho é flexível

porque deve se adaptar constantemente ao uso das novas tecnologias e à ideia de fábrica

mínima, a legislação trabalhista é flexível porque cada um é o gestor de si mesmo, o tempo é

flexível porque a liberdade é subjetiva, porém apenas dois aspectos não podem ser flexíveis: a

acumulação do capital e a maximização das taxas de lucro.

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Mas a subjetividade aflora também em outros campos. Desmoronam as lutas coletivas. Reconhece-se a inutilidade dos contratos coletivos. Cada um, seja um pequeno grupo ou indivíduo, realiza a sua própria batalha e faz o seu contrato. Difunde-se uma maior flexibilidade. E cada um estabelece o seu próprio programa: lê de noite, depois escolhe um vídeo ou escuta um disco, bate um papo com um parente ou com o vizinho, dá uma olhada em algum jornal televisivo (DE MASI, 2000a, p.150)

Segundo Alves (2006), essa perspectiva de uma sociedade do tempo livre ou do ócio

criativo, como sugere o ideólogo Domenico De Masi, pode ser descrita como um enorme

contrassenso, pois não condiz com uma realidade repleta de contradições objetivas, sendo as

mais pungentes a apropriação privada da produção social e a divisão social do trabalho.

[...] Ora, a sociedade do ócio criativo baseado na propriedade privada e na divisão hierárquica do trabalho é não apenas uma impossibilidade histórica irremediável, mas um grande blefe ideológico. O capitalismo tardio, afetado de negações, é uma imensa fábrica de ilusões, que possui, por um lado, um lastro concreto (o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social), mas que oculta, como toda ideologia complexa, a condição de sua própria irrealização estrutural (o sistema do capital). (ALVES, 2006, p.30)

Na economia do ócio, para os trabalhadores ocupados com a produção imaterial, a

criatividade exige tempo integral. Como afirma De Masi (2001), o cérebro do criador, uma

vez empenhado em determinado problema, trabalha sempre, pois a intuição não escolhe o

lugar nem o tempo – no escritório, em casa, no descanso, no sono e até na sonolência.

Conforme Mascarenhas (2005), essa noção de quebrar os limites espaciais e temporais é

falaciosa. Na realidade, ao observarmos a presença totalizadora do trabalho abstrato,

nosso tempo livre passa a ser mera extensão da empresa. A força de trabalho intelectual vem

sendo intensa e extensivamente explorada pelo capital a fim de dar maior flexibilidade,

fluidez e inovação aos bens e serviços de consumo.

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A propalada junção entre trabalho e vida proporcionada pela produção flexível, em tese, portadora da grande vantagem de transformar o ambiente doméstico em espaço de trabalho e, mais, de possibilitar àqueles que trabalham com ideias o benefício de carregarem consigo durante as 24 horas do dia os desafios impostos pelo trabalho, exercitando full-time sua criatividade, não passa mesmo é de um enorme engodo (MASCARENHAS, 2005, p. 217)

A fundamentação teórica da nova economia do ócio, se assim pudéssemos chamar,

está em sintonia com as teorias elaboradas a partir dos anos 1950, por autores como Daniel

Bell, em O advento da sociedade pós-industrial; de Alain Touraine, em A sociedade pós-

industrial; e na de Alvin Toffler, em A terceira onda. Por exemplo, Daniel Bell, em seu livro,

pergunta-se qual seria a possível data do nascimento da sociedade pós-industrial e escolhe

1956. Nesse ano, pela primeira vez num país do mundo - os Estado Unidos -, o número de

“colarinhos brancos" superou a soma do número de trabalhadores do setor industrial e

agrícola. É essa constatação empírica que faz com que De Masi sentencie o fim da sociedade

do trabalho e defina os novos contornos da sociedade criativa.

A ideia do desenvolvimento sem trabalho conduz à passagem de uma sociedade

industrial para pós-industrial e isso pode ser percebido nas seguintes tendências: a passagem

da produção de bens para a produção de serviços; a crescente importância dos profissionais

liberais e técnicos em relação à classe operária; o primado das ideias; o advento das máquinas

inteligentes que substituem os homens em trabalhos intelectuais e a gestão do

desenvolvimento técnico. Esses são os cinco princípios axiais, segundo Bell, da nova

sociedade.

Amparado nessas noções, De Masi (2000a) argumenta que a nova sociedade privilegia

a produção de ideias, o que, por sua vez, exige um corpo quieto e uma mente irrequieta, pois

predominam, hoje, as tarefas mais flexíveis e, por assim dizer, mais criativas. Os valores que

fundamentam a nova sociedade seriam, então, libertadores: intelectualização, emotividade,

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estética, subjetividade, confiança, hospitalidade, feminilização, qualidade de vida,

desestruturação do tempo e do espaço e virtualidade.

Nesse emaranhado de valores, a intelectualização representaria a predominância do

intelectual sobre o esforço físico. E, entre as atividades tidas como intelectuais, a criatividade

é considerada o valor central da sociedade pós-industrial: Dessa forma, ao se aventurar na

busca por trabalho, o jovem deverá ser capaz de oferecer um leque de serviços intelectuais,

científicos e artísticos adequados às necessidades sempre variáveis dos consumidores. Nesse

ponto, podemos inferir que De Masi compartilha do discurso ideológico de que o desemprego

é fruto da falta de qualificação e de competências em habilidades comportamentais como a

criatividade, o trabalho em grupo, a resolução de conflitos, a comunicação, a capacidade de

inovação, entre outros requisitos balizadores da chamada empregabilidade.

Nesse sentido, a crítica empreendida por Mascarenhas (2006) é pertinente:

[...] Além disso, apesar de algumas pitadas neo-keynesianas de preocupação social, não propriamente contrassistêmicas, fica devendo a apresentação de alternativas mais convincentes de mudanças no quadro de injustiça social. Limita-se a afirmar que o desemprego, por um lado, e o excesso de trabalho, por outro, são resultantes de um descompasso entre os avanços das forças produtivas – uma base material tecnologicamente incrementada que, por si só, seria capaz de nos libertar do trabalho – e uma anacrônica cultura do trabalho que ainda nos aprisiona ao reino das necessidades. (MASCARENHAS, 2006, p.83)

Outro valor central destacado por De Masi seria a estética, garantida com a perfeição

dos produtos manufaturados. O design é o diferencial, é ele que torna o produto especial e

mais valorizado. É esse aspecto estético que garantiria o exercício da subjetividade, essa

possibilidade de escolher entre diferentes produtos alimenta o desejo humano de ser diferente,

ou seja, o autor vincula a noção de subjetividade ao fetichismo das mercadorias. Em

contraposição à massificação e ao fim do coletivo e das modas, hoje em dia cada um quer

vestir-se como bem entende. Isso acontece, simplesmente, porque as máquinas o permitem.

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Os modismos não servem mais, pelo contrário, de benéficos tornaram-se prejudiciais às vendas. Produzir carros com cores diferentes implica vender mais carros. Eis então dois fenômenos muito importantes: os robôs permitem a produção de bens muito mais variados que os precedentes e, enquanto a empresa Omega era obrigada a produzir só relógios iguais, a empresa Swatch pode produzi-los com as formas e cores mais variadas. Os consumidores mais aculturados, graças aos livros, ao rádio e à televisão, podem escolher o relógio, o suéter, o carro, a moto, as férias, o filme, tudo com base no gosto pessoal, sobretudo o estético. A escolha torna-se infinita. E assim cada um cultiva a própria subjetividade. Este novo modelo de produção, significativamente vem sendo chamado de marketing oriented, ou seja, orientado para o mercado. (DE MASI, 2000a, p.77)

De acordo com Alves (2006), os nexos socioprodutivos e reprodutivos do capital, suas

contradições e forma como articula lazer, consumo e produção, ocorrem via manipulação da

subjetividade. Para o autor, a produção da subjetividade ocorre no plano da reprodução social,

surge no interior de uma totalidade concreta histórico-social, ou seja, não existe sujeito sem

objeto: “a ‘subjetividade’ é o complexo de relações sociais do homem com outros homens (na

instância da produção, circulação e consumo) e do homem consigo mesmo (na instância do

seu pré-consciente, consciente ou inconsciente)” (ALVES, 2006, p.23). Assim, tendo em

vista o processo produtivo e sociorreprodutivo do capital em seu devir histórico é possível

estabelecer uma “crítica do fetiche da subjetividade”.

Portanto, podemos dizer que um dos elementos cruciais desta desmedida do capital é a exacerbação da subjetividade, cuja ampliação é maior do que o capital como forma social pode conter. Nesse sentido, é esta exacerbação da subjetividade estranhada que poderia explicar, no decorrer do século XX, os mais diversos fenômenos estético-culturais que dilaceram o imaginário ocidental. Incapaz de conter a ampliação da alma e da inteligência humana, o capital a oblitera, inverte e perverte através de suas múltiplas manifestações de irracionalismos sócio-culturais. Estamos diante de formas de fetichização e reificação da subjetividade. O próprio lazer (ou a precarização do tempo livre) é um dos campos de obliteração/inversão da subjetividade exacerbada. (ALVES, 2006, p.29)

Ao vislumbrarmos outro tipo de sociedade, muitas vezes aceitamos teses como as de

Domenico de Masi, que, travestidas de um teor emancipatório, forjam um mundo sem

contradições, sem classes sociais, sem propriedade privada, sem injustiças, em suma, pós-

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industrial, pós-fordista, pós-moderno, pós-trabalho, etc. Numa espécie de antinomia ao

trabalho de maneira geral, as concepções de lazer coadunam-se com uma crítica ao trabalho

abstrato – forma de trabalho alienado da sociedade burguesa -, porém consideram possível

conciliar um trabalho que avilta com o lazer que liberta. Na concepção de “ócio criativo”, a

crítica ao trabalho é mais limitada, restringe-se à organização do processo de trabalho típica

do modelo fordista/taylorista. Assim, tendo vista sua conversão em sociedade pós-industrial,

automaticamente decreta-se a utopia da sociedade sem trabalho e a plena realização da

liberdade.

Analisando minuciosamente as teses sobre a perda da centralidade da categoria

trabalho na sociedade contemporânea, Antunes (2011) adverte que a crise do trabalho

abstrato não pode ser confundida com o fim do trabalho concreto como dimensão primária

para a realização das necessidades humanas e sociais. A realização plena das necessidades e

da liberdade é inseparável do trabalho.

O que pretendemos, em verdade, foi demonstrar que, mesmo no campo daqueles que

se colocam numa posição contra-hegemônica, alguns equívocos em relação à compreensão de

trabalho têm sido cometidos. Muitas vezes, ao que parece, tem sido tomada a manifestação do

trabalho alienado como o equivalente a trabalho em geral. Assim, não há possibilidade de se

ver liberdade no trabalho. Cabe colocarmo-nos a seguinte questão: onde a liberdade se

encontra? Para responder a essa questão, é necessário reconhecer a centralidade ontológica

do trabalho, pois a sua análise nos demonstrará que o reino da liberdade só pode ocorrer tendo

como base o reino da necessidade e não em oposição a ele.

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CAPITULO IV

4.1 O trabalho e o ser social: a liberdade e a necessidade

O homem não se contenta com um elemento. Usa todos os elementos como objeto e instrumento do seu trabalho; no entanto, não só os usa como ainda os embeleza, tal como o cultivo embeleza a terra. Só lhe

falta o «material celeste» para se tornar um deus. (Agnes Heller – O Homem do Renascimento)

Nos capítulos precedentes, mostramos, em primeiro lugar, como as reflexões que

antecederam a ideologia liberal burguesa colocaram no centro do pensamento as indagações

sobre o homem, visando a determinar a essência e a especificidade de suas ações. Nesse

percurso, conferiram ao trabalho a via para a materialização da liberdade, inaugurando, assim,

uma ética condizente com os valores e aspirações mais universais. Conforme Heller (2008), o

trabalho, a sociabilidade, a universalidade, a consciência e a liberdade são os componentes,

assinalados por Marx, da essência humana, no entanto a história é um processo de construção

ou degeneração desses valores, o que significa que a essência humana não é o que esteve

sempre presente na humanidade, a sua realização deve ser entendida sempre como

possibilidade.

[...] Por vezes, o valor atingido subsiste como norma abstrata, jamais satisfeita da realidade; em outros casos, o valor pode conservar-se em suas objetivações – nas epopeias homéricas, por exemplo – esperando ser novamente descoberto. Por mais duradouras que sejam as fases históricas estéreis com relação a essa ou aquela esfera ou substância axiológicas, sempre existirão “preservadores” dos valores alcançados. O ser segundo a mera possibilidade é um desaparecimento relativo; após épocas estéreis do ponto de vista do valor em questão, começa a redescoberta e, com ela, a continuação da construção do velho valor, o qual pode novamente entrar em colapso – já depois de ter alcançado um nível superior - e voltar ao plano da mera possibilidade. Nem um só valor conquistado pela humanidade se perde de modo absoluto; tem havido, continua a haver e haverá sempre ressurreição. Chamaria isso de invencibilidade da substância humana, a qual só pode sucumbir com a própria humanidade, enquanto houver história, haverá também desenvolvimento axiológico no sentido acima descrito. (HELLER, 2008, p.22)

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Em Heller, os valores imanentes do homem apresentam-se enquanto potencialidades

constitutivas da essência da história. Portanto, o desafio seria criar as condições objetivas e

materiais para liberar essas potencialidades históricas, pois observamos hoje que, em virtude

das relações sociais burguesas, valores como a liberdade operam numa lógica formal e

abstrata.

A liberdade é exaltada, cantada em prosa e verso, homenageada com hinos, porém não adquire contornos precisos no plano conceitual. Na medida em que não consegue ser pensada em termos concretos e universais, acaba por se restringir a determinados níveis de experiência humana ou a determinados setores da sociedade. (KONDER, 2000, p. 30)

Segundo Heller (1882), os fundamentos do trabalho, discutidos no decurso da história,

têm sido um objeto de estudo por excelência, assim diferentes pontos de vista foram

elaborados em consonância com uma determinada época e, invariavelmente, sujeitos à

exigência de classe. Em síntese, a questão do trabalho foi abordada considerando-se diferentes

pontos: análise da estrutura, interpretação ética, sua função social na sociedade, como

categoria principal da Antropologia, seus efeitos contraditórios no homem, enquanto um

conceito econômico até a elaboração de um conceito sintético e histórico de todos os aspectos

precedentes. Para autora, é a partir das investigações de Marx que surge uma análise

historicamente sintetizadora do trabalho. Marx, ao mesmo tempo em que desenvolve os

conceitos sobre a exploração capitalista, das classes sociais, da ideologia, da alienação, da

formação do valor, do capital, etc., nunca perdeu de vista a importância do trabalho na

constituição do ser social.

Marx, nos seus manuscritos parisienses de 1844, elaborou uma concepção do homem extremamente original e vigorosa. Convencido de que o ser humano se manifestava por meio da sua atividade, transformando o mundo e se transformando a si mesmo através da sua práxis, e certo de que a forma fundamental da práxis era o trabalho, a atividade teleológica na qual pela primeira vez apareceu a relação sujeito-objeto, o pensador socialista alemão indagava: por que o trabalho, de

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atividade essencial da autocriação humana, transformou-se naquela realidade abominável que podia ser vista, quotidianamente, nas fábricas do século XIX? (KONDER, 2000, p.19)

De acordo com Braz e Netto (2006), a teoria clássica do valor-trabalho, disposta a

investigar a questão da riqueza social, foi providencial à burguesia na elaboração de sua

crítica ao parasitismo da nobreza feudal, objetivando uma intervenção política e social. O

estudo da produção econômica proporcionou aos economistas clássicos, notadamente Adam

Smith e David Ricardo, o embasamento necessário para entender o conjunto de relações que

emergiam com a crise do Antigo Regime. Esses autores colocam em evidência questões

relativas ao trabalho, à criação de valores, ao dinheiro, à propriedade privada, e, o mais

importante, à descoberta do vínculo indissociável entre valor e trabalho.

Contudo, o único legado dos clássicos que permaneceu vivo no pensamento burguês,

que expurgou mais tarde a teoria do valor-trabalho, foi o caráter natural e imutável das

categorias e instituições econômicas, tais como a propriedade privada, o dinheiro, o lucro, o

salário, etc. Sendo assim, o objeto da economia política clássica foram as relações sociais

próprias à atividade econômica, que tem em sua base o trabalho - mas a essência subjetiva da

riqueza está contida no interior da propriedade privada.

Marx apropria-se dessa teoria e subverte-a ao historicizar as categorias fundamentais

da Economia Política Clássica28. Logo, os pressupostos de análise devem estar calcados na

realidade, no reconhecimento dos indivíduos reais, de suas ações e de suas condições

materiais de vida. Tal apropriação se refere aos elementos que a burguesia pós-revolução

abandonou deliberadamente, trata-se, conforme assinalou Braz e Netto (2006), de um período

28

Sobre a crítica que Marx empreendeu à Economia Política Clássica vale o excerto de Netto e Braz (2006): “A crítica marxiana à Economia Política não significou a negação teórica dos clássicos; significou sua superação, incorporando suas conquistas, mostrando seus limites e desconstruindo seus equívocos. Antes de mais, Marx historicizou as categorias manejadas pelos clássicos, rompendo com a naturalização que as pressupunha como eternas; e pôde fazê-lo porque empregou na sua análise um método novo (o método crítico dialético, conhecido como materialismo histórico). Realizando uma autêntica revolução teórica”. (BRAZ e NETTO, 2006, p.25).

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– 1825/1830 e 1848 - de nítida decadência ideológica, de negação de pesquisas da vida social

fundadas no estudo da produção econômica e, principalmente, dos ideais de emancipação

humana.

Os Manuscritos de 1844 são a expressão teórica desse primeiro contato de Marx com a

economia política. De acordo com Húngaro (2008), nesta obra de 1844, partindo de uma

crítica aos elementos éticos, foram abordadas três categorias: a propriedade privada, o

dinheiro e o trabalho, sendo o mais importante a discussão sobre a categoria trabalho que é

levada a um nível de análise totalmente diverso. “Marx, nesse texto, opera uma antropologia

radical, pois coloca o homem como centro de sua análise e o trabalho aparece como a

‘essência’ do homem”. (HÚNGARO, 2008, p.45).

Em Marx, o trabalho não é entendido simplesmente como um processo que envolve a

produção de bens que satisfazem às necessidades individuais ou coletivas. O trabalho é o

elemento central da produção material da vida social, ou seja, o homem, ao produzir a sua

própria existência, produz a si mesmo. Isso significa que o trabalho consiste em uma condição

inexorável da existência humana, pois se observa ao longo de anos de história, que o trabalho

foi o meio pelo qual o homem se diferenciou da sua condição de animal e constituiu-se como

ser humano.

Segundo Lukács (1978), a oposição entre liberdade e necessidade só vai adquirir

sentido quando se atribui um papel ativo à consciência como um poder ontológico efetivo. A

atividade produtiva humana possui intencionalidade, é uma atividade subordinada a um fim, é

teleológica, pois o objeto em sua forma final é pré-figurado na mente do trabalhador.

Contudo, a finalidade idealizada – teleologia – só poderá ser efetivada se o trabalhador

colocar em ação as relações causais – as quais são pré-determinadas pelo

autodesenvolvimento da natureza – no objeto sobre o qual atua. Portanto, “O trabalho é

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formado por posições teleológicas que em cada oportunidade, põem em funcionamento séries

causais”. (LUKÁCS, 1978, p. 18).

O animal é imediatamente um com sua atividade vital. Não se distingue dela. É ela. O homem faz da sua atividade vital mesma um objeto de sua vontade e da sua consciência. Ele tem a atividade vital consciente. Esta não é uma determinidade (Bestmmtheit), com a qual ele coincide imediatamente. A atividade vital consciente distingue o homem imediatamente da atividade vital animal [...] Eis porque a sua atividade é livre. (MARX, 2004, p. 84).

O trabalho aparece como um complexo formado por uma unidade de teleologia e um

quanto de causalidade, mas também é composto pelos seguintes momentos: objetivação,

exteriorização e alienação29.

Citando diretamente de Marx, Lukács argumenta que três são os momentos decisivos da categoria trabalho: a objetivação, a exteriorização (Entäusserung) e a alienação (Entfremdung). A objetivação é o complexo de atos que transforma a prévia ideação, a finalidade previamente construída na consciência, em um produto objetivo. Pela objetivação, o que era apenas uma ideia se consubstancia em um novo objeto, anteriormente inexistente, o qual possui uma história própria. Se em alguma medida o novo objeto continua submetido aos desejos do seu criador (este pode quase sempre, por exemplo, destruir aquilo que construiu), não raramente gera consequencias muito distintas daquelas finalidades presentes na sua construção (LESSA, 1996, p. 10).

Objetivação e exteriorização são dados universais, são determinantes do ser social –

são ontológicos – diferentemente da alienação, que é um entrave para o desenvolvimento

humano, existindo em detrimento das relações burguesas e fazendo com que o homem – ser

consciente – tenha em sua atividade vital apenas um meio para satisfazer a sua existência.

Conforme Lukács a objetivação vai articular teleologia – uma ideia abstrata e singular – com

29 A alienação é um produto histórico, resultante da forma capitalista de produção. “[...] é justamente essa radical historicidade do ser social que possibilitou a Marx sua crítica radical ao trabalho abstrato, demonstrando que o estranhamento (Entfremdung) produzido pela exploração do capital não corresponde a nenhuma essência a-histórica dos homens, podendo portanto ser superada pela constituição da sociabilidade comunista”. (LESSA, 2002, p. 34).

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a gênese de um novo ente, objetivo que será diferente da consciência que o concebeu e que

carrega em si uma história distinta.

O homem, antes de construir um objeto, tem um projeto – prévia ideação – isto é, a

finalidade dos atos já está construída previamente enquanto ideia abstrata, porém quando o

homem efetiva a gênese de um novo ente, através da objetivação, o resultado será sempre

distinto da sua consciência; “não há duas finalidades exatamente iguais porque a história não

se repete”. (LESSA, 1996, p. 10).

Tais considerações colocam-nos elementos para se pensar a dinâmica da realidade,

pois, com a gênese de um ente diferente da consciência – do seu criador – o objeto criado vai

obrigar o homem a responder a essa nova realidade. Através do trabalho, o homem não só

transforma a natureza, mas também se transforma, pois, de acordo com Lukács, a cada

objetivação o homem também desenvolve novas habilidades e conhecimentos, já que é

preciso compreender a dinâmica – nexos causais – da natureza para transformá-la.

A produção de um objeto não contém apenas o processo de objetivação, mas é

também a exteriorização do sujeito. A exteriorização (Entausserung) constitui a ação de

retorno do ente objetivado sobre o sujeito – criador – e, conforme as reflexões de Lukács, a

exteriorização é o momento em que ocorre a ação de retorno da objetivação sobre o sujeito,

impulsionando a individuação – e, por conseguinte também a sociabilização – a patamares

genéricos crescentes. (LESSA, 2002).

O complexo objetivação-exteriorização leva o indivíduo a se confrontar com a

realidade posta e com o objeto novo ontologicamente distinto dele – sujeito que o concebeu –,

sendo que esse novo objeto vai adquirir uma história autônoma e exercer uma ação de retorno

ao sujeito que o criou. “Por isso, a exteriorização da individualidade é também uma

exteriorização de um dado patamar específico de desenvolvimento social”. (LESSA, 1996, p.

11).

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Objetivação e exteriorização são momentos que impulsionam a humanidade a

patamares superiores de sociabilidade, pois, argumenta Lukács (1978), o complexo

objetivação-exteriorização desencadeia um processo de generalização dos seus resultados. O

novo objeto é inserido na realidade e vai sofrer influência da causalidade posta e influenciar a

totalidade.

[...] ao se transformar em uma particularidade partícipe de uma totalidade já existente, a história desse ente adquire uma indelével dimensão genérica: sua história absorve determinações da totalidade do existente e, por sua vez, retroage sobre o desenvolvimento da totalidade do real enquanto um seu ente particular. Desse modo, todo processo de objetivação necessariamente resulta em um processo objetivo de generalização dos resultados alcançados [...]. (LESSA, 1996, p. 14).

A categoria liberdade está circunscrita ao homem, o ser social, pois, quando não há

interação entre consciência e mundo objetivo, a existência vai se limitar à mera reprodução

biológica. Nesse contexto, é impossível falar em liberdade (LUKÁCS, 1978). A liberdade

apresenta-se como uma questão de alternativa, que, no trabalho, aparece com a relação

teleológica – causalidade posta. Isso porque, segundo Lukács (1978), o momento de

desenvolvimento da liberdade aparece no interior do processo de objetivação, pois toda práxis

é uma decisão entre alternativas. “Todo ato social, portanto, surge de uma decisão entre

alternativas acerca de posições teleológicas futuras”. (LUKÁCS, 1978, p. 19).

Lukács (1978) afirma que o homem é um ser que dá respostas, ao entender, fundado

em Marx, (1) que a consciência é um produto tardio do desenvolvimento do ser material e (2)

que os homens fazem a sua história, porém em circunstâncias que não são por eles escolhidas.

Por esses motivos as decisões teleológicas entre alternativas não podem se desvincular das

relações causais postas. Trata-se de:

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Um “querer”, portanto, que se consubstancia no fluxo da práxis social como uma decisão alternativa concreta, uma resposta concreta a uma situação concreta. Um “querer” que tem como escopo de sua realização a própria realidade que deseja transformar; um desejo de transformação do real que é tudo menos uma “especulação vazia”. (LESSA, 2002, p. 189).

A generalização decorre do fato de que os atos singulares transformam a realidade –

como totalidade – agindo sobre todos os outros indivíduos, por isso dizemos que o homem

produz universalmente. Há outro momento de ação de retorno das objetivações sobre o sujeito

– a alienação –, mas operando de maneira distinta à exteriorização, é um obstáculo

historicamente posto que, em verdade, reproduzirá a desumanidade.

A alienação é um fenômeno que se desenvolve a partir da estrutura econômica de uma

determinada sociedade, estando articulada a esta como expressão do modo de ser das relações

de produção capitalista. A alienação tem como determinantes genéticos a propriedade privada

dos meios de produção, a divisão social das classes, a exploração econômica e a dominação

política de uma classe social por outra.

O ser estranho ao qual pertence o trabalho e o produto do trabalho, para o qual o trabalho está a serviço e para a fruição do qual [está] o produto do trabalho, só pode ser o homem mesmo. Se o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, um poder estranho [que] está diante dele, então isto só é possível pelo fato de [o produto do trabalho] pertencer a um outro homem fora o trabalhador. Se sua atividade lhe é martírio, então ela tem de ser fruição para um outro e a alegria de viver para um outro. Não os deuses, não a natureza, apenas o homem mesmo pode ser este poder estranho sobre o homem. (MARX, 2004, p. 86).

Neste sistema de produção – capitalista –, o trabalhador produz bens que não lhe

pertencem, sendo assim o trabalho alienado faz com que o trabalhador não se reconheça no

produto de seu trabalho, não há a percepção de que o objeto é fruto de sua intervenção na

realidade. A criação do produto apresenta-se diante do sujeito como algo estranho e hostil,

fazendo com que ele não perceba que o objeto é resultado de sua atividade, de seu poder de

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transformar livremente a natureza. Isso significa que o homem não se reconhece como o

construtor da história.

O estranhamento do trabalhador em seu objeto se expressa, pelas leis nacional-econômicas, em que quanto mais o trabalhador produz, menos tem para consumir; que quanto mais valores cria, mais sem-valor e indigno ele se torna; quanto mais bem formado o seu produto, tanto mais deformado ele fica; quanto mais civilizado seu objeto, mais bárbaro o trabalhador; que quanto mais poderoso o trabalho, mais impotente o trabalhador se torna; quanto mais rico de espírito o trabalho, mais pobre se espírito e servo da natureza se torna o trabalhador. (MARX, 2004, p. 82).

Porém, o estranhamento não está circunscrito a relação imediata do trabalhador com

os resultados da sua produção, conforme, pontuou Marx (2004), o estranhamento permeia a

própria atividade produtiva. Isso explica, por exemplo, porque o trabalho se apresenta de

forma negativa, enquanto uma atividade de auto-sacrifício, imposta e coercitiva, ao mesmo

tempo, que qualquer outra atividade fora do trabalho, aparentemente, se apresentaria como um

tempo de possibilidades e exercício de valores e de potencialidades.

Primeiro, que o trabalho é externo (äusserlich) ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser, que ele não se afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele, que não se sente bem, mas infeliz, que não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica-se sua prhysis e arruína o seu espírito. O trabalhador só se sente, por conseguinte e em primeiro lugar, junto a si [quando] fora do trabalho e fora de si [quando] no trabalho. Está em casa quando não trabalha e, quando trabalha, não está em casa. O seu trabalho não é portanto voluntário, mas forçado, trabalho obrigatório. O trabalho não é, por isso, a satisfação de uma carência, mas somente um meio para satisfazer necessidades fora dele. (MARX, 2004, p.82)

De acordo com Húngaro (2008), o trabalho é a objetivação privilegiada que funda a

condição humana, porém, Marx observou que na sociedade civil-burguesa o trabalhador vive

uma relação de oposição em três níveis: em relação ao seu produto; em relação a si próprio; e

em relação aos outros seres humanos.

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Nessas condições, o trabalho é a própria negação de sua essência. A impossibilidade existencial do desenvolvimento de sua omnilateralidade. Nessas condições sociais, impostas pela ordem burguesa, certas objetivações adquirem um caráter tão alienado que a criatura ganha tanta autonomia de seu criador que passa a oprimi-lo. Em outras palavras, nessas circunstâncias históricas o trabalho não se apresenta como uma objetivação criativa, mas como alienação – como trabalho alienado. A alienação é, para ele, tudo aquilo que impede o desenvolvimento humano historicamente construído; que impede, portanto, o desenvolvimento singular e genérico dos homens. (HÚNGARO, 2008, p.52)

Por mais que o homem submeta a natureza ao seu domínio, seu intercâmbio com ela

permanecerá, pois o homem é natureza. Para Marx, os reinos da liberdade e da necessidade

são indissociáveis, pois, por mais que o homem tenha o controle sobre a natureza, seu esforço

estará situado no reino das necessidades. Predominantemente, o trabalho permanece atado à

esfera da necessidade, mas observa-se que é justamente no e pelo trabalho combinado, cuja

organização e finalidades são coletivamente reguladas, que os homens poderão se ver

progressivamente afastados de suas necessidades mais imediatas, entregando-se à livre fruição

das experiências lúdicas e estéticas. Como princípio central e fundante da vida humana, o

trabalho tanto antecede práticas como a arte, a música, o ócio, o lazer etc., como as torna

possíveis.

De fato, o reino da liberdade começa onde o trabalho deixa de ser determinado por necessidades e por utilidade exteriormente imposta; por natureza, situa-se além da esfera da produção material propriamente. O selvagem tem de lutar com a natureza para satisfazer as necessidades, para manter e reproduzir a vida, e ao mesmo tempo, tem de fazer o civilizado, sejam quais forem a forma de sociedade e o modo de produção. Acresce, desenvolvendo-se, o reino do imprescindível. É que aumentam as necessidades, mas, ao mesmo tempo, ampliam-se as forças produtivas para satisfazê-las. A liberdade nesse domínio só pode consistir nisso: o homem social, os produtores associados regulam racionalmente o intercâmbio material com a natureza, controlam-na coletivamente, sem deixar que ela seja força cega que os domina; efetuam-no com o menor dispêndio de energias e nas condições mais adequadas e mais condignas com a natureza humana. (MARX, 1974, p.942 apud ANTUNES, 1999)

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Segundo Heller (1982), o desenvolvimento ilimitado do trabalho - técnica - torna

possível a criação de instrumentos e materiais - objetos - para satisfação das carências e

também para a fruição, pois a luta do homem transcende a satisfação e os desejos dos cinco

sentidos, suas necessidades são estendidas para o mundo da imaginação e da fantasia. A

autora, então, indaga-nos, qual é o resultado do desenvolvimento da técnica e do trabalho? O

aumento dos prazeres e da variedade de satisfações: objetos de uso, objetos de luxo, beleza,

etc.

Conforme Braz e Netto (2006), o ser social não se reduz ao trabalho, projeta-se e

realiza-se em objetivações materiais e ideais, em virtude da existência de esferas de

objetivação que se automatizaram das exigências imediatas do trabalho, é o caso da ciência,

da filosofia, da arte, etc. Entre essas possibilidades, a fruição espiritual, a estética etc.,

ocupam, sem dúvida, um lugar importante. Mas sua satisfação é condicionada pela satisfação

anterior das necessidades elementares de alimentação, de proteção, de saúde, das necessidades

sexuais, de educação, de acesso à cultura etc.

[...] os produtos e as obras resultantes da práxis podem objetivar-se materialmente e/ou idealmente: no caso do trabalho, sua objetivação é necessariamente algo material; mas há objetivações (por exemplo, os valores éticos) que se realizam sem realizar transformações numa estrutura material qualquer (BRAZ E NETTO, 2006, p.44)

Dessa forma, reconhecer a produção material vinculada intrinsecamente e

ontologicamente ao reino das necessidades não significa incidir num determinismo, no qual a

liberdade se opõe ao que é condicionado externamente. Sobre a relação liberdade e

necessidade, a constatação de Engels, citada por Lukács é elucidativa: “A liberdade não está

na independência sonhada com relação às leis naturais, mas no reconhecimento dessas leis e

na possibilidade, assim oferecida, de fazê-las agir de modo planejado para determinados

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fins” (ENGELS, 1990 apud LUKÁCS, 2010, p.52-53). Para Lukács, a liberdade assim

entendida não está restrita a possibilidade de escolha entre alternativas, significa, acima de

tudo, por em ação, ou seja, utilizar os conhecimentos sobre a natureza para a realização de

determinados objetivos sociais. Quando situamos a questão da liberdade nesses termos,

conseguimos responder aos intrigados problemas e contradições dos pensadores do fim da

Idade Média e do Renascimento, conforme apresentamos no primeiro capítulo.

Ser livre não significa estar desobrigado do confronto com as coisas, contudo, em

virtude de processos de trabalho que visam à valorização do capital, o indivíduo só se sente

livre quando está fora dessa atividade, ou seja, quando liberado de sua atividade obrigatória,

preenche o seu tempo fora do trabalho com inúmeras outras atividades, entre elas o lazer. No

capitalismo contemporâneo, observamos, porém, uma tendência dissimulada em suprimir

essas contradições – capital e trabalho - e demarcações temporais - trabalho e lazer.

O lazer hoje, como é concebido, grosso modo, acaba por legitimar o trabalho alienado,

pois a genuína liberdade, que tem sua gênese ontológica no trabalho, não pode ser alcançada

na e através das práticas do lazer. Assim, o lazer proporciona uma falsa noção de liberdade

que consiste em ter que escolher entre as necessidades criadas pelo capital. A liberdade do

homem não pode se desenvolver senão com a destruição das barreiras entre o tempo de

trabalho e o tempo livre, algo resultante de uma atividade autodeterminada, situada para além

da divisão do trabalho estruturada pelo capital, portanto, sobre bases inteiramente novas que,

par-a-par, autorizam o surgimento de uma sociabilidade também nova.

Enfim, por mais que o lazer seja associado ao “reino da liberdade”, a base objetiva

para a irrestrita e generalizada efetivação da genuína liberdade assenta-se no trabalho

emancipado, algo somente possível num novo sistema de metabolismo social, “um novo

modo de produção fundado na atividade autodeterminada, baseado no tempo disponível para

produzir valores de uso socialmente necessários” (ANTUNES, 1999, p. 179). Assim, quando

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superadas as barreiras entre tempo de trabalho e tempo livre, veremos uma sociedade

inteiramente nova. E aí, seja qual for a expressão conceitual daquilo que se poderá vivenciar

no tempo livre, o ócio, a educação, a arte, o lazer etc., uma coisa é certa, será uma prática

social essencialmente ligada aos interesses humanos, porque o trabalho igualmente o será.

Entendemos que, mais uma vez, os filósofos e os economistas utilizam-se do discurso

de enaltecimento do progresso, isto é, das novas tecnologias de automação de base

microeletrônica, com a finalidade de restabelecer uma conjuntura favorável à acumulação do

capital. O que outrora: “Vasculhavam nos séculos passados, entre a poeira e a miséria

feudais, a fim de oferecer sombrios altares às delícias dos tempos presentes” (HUBERMAN,

1979, p.73). Hoje, esses ideólogos, vasculham as próprias misérias, formulam críticas aos

processos de trabalho repetitivos, alienantes e degradantes, característicos do sistema fordista-

taylorista, para estabelecer novas formas de poder e gestão da força de trabalho.

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