sedi hirano - pré-capitalismo e capitalismo cap. 1

36
Sedi Hirano Pre-Capitalismo e Capitalismo 11111111111 CEMANJ)[A ABOLICAO 1888 -1988 mine· MeT· CNPq Program. Naciona' doCentenirio da Abolll;:lo da e.cr •.•.tur. GovarnoJos' s..n.y EDITORAHUCITEC Sao Paulo, 1988

Upload: pedro-c-rodrigues

Post on 18-Feb-2016

72 views

Category:

Documents


8 download

DESCRIPTION

Hirano Pré-Capitalismo e Capitalismo

TRANSCRIPT

Page 1: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

Sedi Hirano

Pre-Capitalismo e Capitalismo

11111111111

CEMANJ)[AABOLICAO1888 -1988

mine· MeT· CNPqProgram. Naciona' do Centenirio

da Abolll;:lo da e.cr •.•.• tur.GovarnoJos' s..n.y

EDITORA HUCITECSao Paulo, 1988

Page 2: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

Capitulo 3A FORMA<;Ao COLONIAL BRASILEIRA:

CAST AS, EST AMENTOS E CLASSES

1. A produc;ao mercantil e a ordem social 1692. A produc;ao mercantil: castas ou estamentos? 2013. A produc;ao mercantil: estamentos ou classes? 232

INTRODU<;Ao

o tema deste livro e, mutatis mutandis. urn desdobramento dedissertac;ao de mestrado que defendi nos derradeiros dias do mes dedezembro de 1972. 0 estudo que apresentei como dissertac;ao demestrado teve como tema uma discussao te6rica, sob a forma deensaio de interpretac;ao, a prop6sito de castas, estamentos e classessociais em Weber e Marx, descartando-se intencionalmente os seusepigonos.1 Resultou de proposta do orientador de tese, Dr. LuizPereira, quando estavamos ultimando, naquela oportunidade, aprimeira versao de relat6rio de pesquisa sobre a formac;ao das clas-ses medias em Sao Paulo.2 Nessa pesquisa discuti a questao da tran-sic;ao de regime de produc;ao baseado no trabalho escravo para umaproduc;ao capitalista alicerc;ada no trabalho livre e assalariado, si-tuando esta transic;ao para 0 caso brasileiro em meados do seculoXIX.3

(I) Hirano, Sedi (1975), Castas, estamentos e classes soeiais - Introdufiio ao pensamentode Marx e Weber, 2~ ed., Sao Paulo, Alfa-Omega.

(2) Relat6rio de pesquisa enviado II Fund~ao de Amparo II Pesquisa do Estado de SaoPaulo, em 1971.

(3) Este relat6rio estava estruturado da seguinte forma: CapEtuloI - Siio Paulo: um se-eulo de estagnafiio urbana, dispersiio demografiea e estagnafiio eeonomiea (de 1772 a 1872);CapEtuloII - Estamento e Sistema Colonial: a) Estamento escravo: negros e indios, b) Estamentobranco: homens livres e processo de diferencia~ao social; CapEtuloIII - Proeesso de transifiio:desagregafiio da ordem estamental e eonstituifiio do eapitalismo liberal: a) Rela~ao centro-peri-feria e transforma~ao dos mercados monopolizados em mercado mundial, b) A luta pelo mercadomundial e 0 novo estilo de dependencia, c) Desagrega~ao induzida da ordem escravocrata e cons-titui~ao do capitalismo dependente no Brasil; CapEtuloIV - Importafiio do fator de Produfiio:

Page 3: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

a livro resulta de uma tese de doutoramento elaborada juntoao Departamento de Ciencias Sociais da Universidade de Sao Paulono ana de 1986.

Esta proposta de Luiz Pereira vinha acompanhada de umasegunda que se afigurou para mim naquela epoca extremamentepenosa. Ele pedia-me que fizesse urn capitulo de reflexoes critic asem rela9ao aos conceitos de castas, estamentos e classes contidos nasobras de Florestan Fernandes, Octavio Ianni e Fernando HenriqueCardoso. Realizei agora a sugestao que me fora confiada por LuizPereira, pelo respeito intelectual que ele sempre me mereceu e pelovalor inquestionavel de sua contribui9ao academica como urn dosmais ~olidos pens adores marxistas. Ele partiu para sempre, tendoafirmado, entretanto: "-Voce tern a tese, basta completa-Ia". aque seria uma introdu9ao e agora este livro e 0 trabalho anteriorcontinua aguardando a sua introdu9ao e a sua conclusao. Deixoaqui registrado 0 meu reconhecimento pel a orienta9ao das teses demestrado e de doutorado ultimada pelo Prof. Gabriel Cohn. as vin-culos que me atam aos meus primeiros mestres continuam pro-fundos e irremoviveis e esta tese e tambem 0 resultado do exerciciode urn dever etico e academico para com 0 meu antigo orientador.

a estudo que ora apresento e urn exame da questao do pre-capitalismo e do capitalismo, dos modos de produ9ao correspon-dentes e sua realiza9ao singular numa dada forma9ao social, a for-ma9ao colonial brasileira. A discussao teorica, que se en contra nosegundo capitulo, centra-se exclusivamente em Marx porque elapretende ser marxista a partir de Marx e nao a partir de seus co-mentadores. As obras de Marx constituem 0 nucleo arrancando doqual procuramos elaborar as categorias historicas que constituem 0

pre-capitalismo e 0 capitalismo. Categorias historicas tais que 0 ca-pitalismo e as classes sociais foram constituidas no decorrer dos se-culos XVIII e XIX; a propria palavra capitalismo somente a partirde 1860, segundo Hobsbawm, come9a a ter urn uso mais difundido.E a mao-de-obra livre assalariada, necessaria porque essencial aprodu9ao capitalista, no entender de Marx somente se constitui comocategoria economica plenamente na Inglaterra do ponto de vista for-

imigrante assalariado e forma,ao da soeiedade de classes no Brasil: a) Capitalismo liberal e mi-gra~Oes internacionais, b) Imigra~Ao de povoamento: forma~Ao das camadas intermediarias nasociedade brasileira, c) Imigra~Ao massiva: forma~Ao do prolelariado rural (197 pags.).

mal em fins do seculo XVIII.4 Antecipando estas duas questoes que-remos observar que nao e possivel pensar os seculos XV, XVI eXVII com categorias historicas que pertencem aos seculos XVIII eXIX, resultando desta inversao da reflexao teorica que aconteci-mentos historicos daqueles seculos, ocorrendo em forma90es sociaisnao capitalistas, fossem reduzidos a categorias capitalistas. a mes-mo ocorre com as classes sociais, que sac categorias historicas, ela-boradas a partir dos seculos XVIII e XIX pelos economistas fran-ceses e ingleses para a analise dos fenomenos economicos resultantesde urn processo de desenvolvimento capitalista que principiara nosmeados do seculo XVIII e se intensificara cumulativamente no se-culo XIX. Capitalismo e classes sociais sac categorias historic as quepertencem a historia do capital industrial e for am elaboradas con-ceitualmente para explica-Io.

Em rela9ao as forma90es economico-sociais pre-capitalistas,as categorias que as explicam nao sac economicas, as rela90es so-ciais que as animam tambem nao sac economicas e a propria ativi-dade economica manifesta no capital mercantil, em sua forma co-mercial-usuraria, e resultante de uma vontade politica que possibi-lit a a explora9ao economica por meio do uso da violencia. Na ver-dade como se vera 0 trabalho compulsorio nao foi "reinventado"pelo capital mercantil porem resultou de uma vontade politic a quenada tinha a ver com uma exclusiva vontade economica. A rela9aomercantil, que revestiu a escraviza9ao do negro, serviu apenas paraencobrir uma rela9ao anterior, que resultava na escravidao: a re-la9ao politica. A politica colonial e mercantil, levada a cabo porintermedio da violencia, apoiava-se em institui90es juridico-ideolo-gicas medievais, que a justificavam: 0 tratado da guerra justa, es-crito por legistas e prelados, no qual a propria Igreja legitimava asujei9ao dos vencidos aos vencedores. Esta justifica9ao, legal, ideo-logic a e politica, nos a encontramos nos escritos dos seculos XIV,XV, XVI e XVII. Neles se procura mostrar que 0 trabalho compul-sorio tern como fonte de sua existencia uma subordina9ao que eexclusivamente politica e nao economica. a escravo tornava-se es-cravo em razao de guerra justa. Nao e de estranhar que, para Locke,

(4) Hobsbawm, J. E. (1982), A era do capital, Rio de Janeiro, Paz e Terra, p. 21. Marx,Karl (1972), Elementos fundamentales para la crEtieade la EconomEa PolEtica, V. 2, Argentina,Siglo Veintiuno, p. 307.

Page 4: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

a escravidao "nada mais era que a continua{:iio do estado de guerra,entre urn conquistador legal e urn cativo.". 0 cativo hobbesiano "eraconti do a forc;a; a prisao apenas grifava, no preso, a sua liberdade dehomem". Portanto, a mesma doutrina, como se vera, que justificavaa escravizac;ao dos negros da terra e da Guine nos seculos XV e XVI,prevalecia no seculo XVII, na opiniao de Locke e Hobbes. "0 es-cravo afasta-se do mundo politico, ao negar-lhe a vontade ... ". 5 Elerealiza a vontade do senhor ao ser privado da condic;ao de homemlivre. Isto quer dizer que a escravidao resulta da violencia, ou seja,de ac;ao politica, e nao de ac;ao economica. Trata-se de relac;ao quenao e capitalista, mas pre-capitalista. Entre outras, estas questoesserao focalizadas no decorrer do segundo capitulo onde procura-remos demonstrar que nas formac;oes pre-capitalistas nao florescemclasses sociais, mas castas e estamentos.

o capitulo primeiro esta destin ado a servir como uma intro-duc;ao aos problemas que serao desenvolvidos no decorrer dos capi-tulos II e III. Inicia-se 0 capitulo com 0 debate da tese do capita-lismo no Brasil colonial, na qual 0 trabalho escravo e considerado,por alguns, como uma modalidade de capital variavel, e, por outros,como uma modalidade de trabalho compulsorio subordinado aindaformalmente ao capital mercantil, que ja e considerado capitalista.Em relac;ao a tese do feudalismo na constituic;ao colonial brasileira,ha toda uma historiografia classica que analisa a estrutura juridico-politica dos documentos coloniais nas modalidades de cartas forais,cartas de doac;oes, e outras' formas legais. A tese que considera aformac;ao do Brasil colonial como sendo tipicamente pre-capitalista,nem feudal e nem capitalista, reconhece, em parte, a prevalenciadestas estruturas juridico-politicas feudais, mas enfatiza a determi-nancia do capital mercantil baseado na escravatura, na instalac;aode novo modo de produc;ao colonial-escravista. Ultima-se 0 blocodestas discussoes com a apresentac;ao da tese de orientac;ao marxistaque considera 0 Brasil colonial como sendo feudal.

Finalmente, no capitulo terceiro, discute-se a questao da pro-duc;ao mercantil em relac;ao com a ordem social estamental, produc;aoque nasce gerada pelo capital mercantil e ja endividada em relac;ao aele. A produc;ao mercantil escravista nao so e gerada no endivida-

(5) Ribeiro, Renato Janine (1984), Ao leitar sem medo, Sao Paulo, Brasiliense, pp. 153 e154(Cap. 5: "0 triunfo da vontade", pp. 132-78).

mento absoluto mas se realiza totalmente subordinada ao capitalmercantil. Esta analise nos a desenvolvemos tomando como materialhistorico os relatos de Antonil, Gandavo, Benci, Gabriel Soares deSousa, Fernao Cardim, Rocha Pita, Frei Gaspar de Madre de Deus,Frei Vicente do Salvador, que descreveram e analisaram a eco-nomia, a politic a e a sociedade colonial dos seculos XVI, XVII eXVIII. Reconstituimos a formac;ao do Brasil colonial laborandoteoricamente sobre as ideias que eles possuiam em seu tempo, pormeio do exame das estruturas mentais que orientaram a formac;aode urn pensamento da epoca no que se refere ao escravo, ao modo deproduzir nos engenhos, ao relacionamento dos senhores com os ho-mens livres, as divers as categorias de horn ens livres, a relac;ao depoder e dominac;ao na relac;ao senhor-escravo, a func;ao socializa-dora das ordens religiosas, a hierarquia social representada pelametiifora do corpo na qual 0 senhor e os prelados fazem parte dacabec;a, os feitores e os capitaes-do-mato sao 0 brac;o armado dosenhor, e os escravos, os pes. Esta imagem da ordem social corres-ponde ao imaginario feudal, que se apresenta como estrutura depensamento de uma epoca com mais de mil anos de existencia e veioa ser reproduzida no Brasil pelos prelados dos seculos XVI, XVII eXVIII (notadamente, Benci e Antoni!). Nos itens subseqiientes, pro-cura-se discutir 0 problema da estrutura de castas, 'de estamentos ede classes nas obras daqueles mais destacados sociologos da Escolade Sao Paulo, aos quais nos dedicamos esta tese: Florestan Fer-nandes, Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Pereira.

Ao encerrar a introduc;ao, quero dizer que esta tese pertence aToshimi e aos meus filhos Ana Cristina, Ana Helena, Ana Carolina,Luis Afonso, Ana Paula e Luis Felipe, a quem eu quero com muitoafeto e amor.

Agradec;o particularmente a Gabriel Cohn, que me deu todasas liberdades possiveis e impossiveis, revelando assim uma fraterna eirrestrita confianc;a. A Sergio Franc;a Adorno de Abreu, que reviutoda a tese tornando-a mais elegante em sua versao final, a minhagratidao.

Aos membros da banca examinadora, professores doutoresJose Carlos Pereira, Carlos Guilherme Motta, Octavio Ianni, Fran-cisco Correa Weffort, os nossos melhores agradecimentos pelos co-mentarios criticos e ricas sugestoes, oferecidos durante a defesa detese.

Page 5: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

Por imperativo etico, devo acrescentar que este estudo re-sultou da colabora<;ao efetiva e do alento intelectual que me pres-tar am os seguintes colegas, professores e funcionarios do Departa-mento de Ciencias Sociais: Joao Baptista Borges Pereira, Eunice Ri-beiro Durhan, Irene A. R. Cardoso, Jose Carlos Bruni, Jose CesarA. Gnaccarini, Maria Helena Oliva Augusto, Lisias Nogueira Ne-grao, Jose Carlos Pereira, Jose Jeremias de Oliveira Filho, MarioAntonio Eufrazio, Leonel Itaussu de Almeida Mello, Antonio FlavioPierucci, Jose R. N. Chiappin, Jose Reginaldo Prandi, Paulo R. A.Menezes, Cecy e Ademar K. Sato, Yasuyo Kojima e Dirce Coelho,Isabel, Vera, Luis, Farias, Geraldo, Rubens e Dorival.

Agrade<;o ainda a Vieira, Regina e Angela, que datilogra-far am a versao final; a Toshimi, Ana, Helena, Claudine, Carolina ePaulo Eduardo que colaboraram na revisao dos originais; a Tania eNelia que me indicaram os datil6grafos; aos colegas da Associa<;aodos Soci6logos do Estado de S. Paulo e, especialmente, ao Levi B.Ferrari que me substituiu na presidencia da entidade; aos colegas doIMESC e ao seu Superintendente, Carlos Vicari. A todos sou imen-samente grato pelos resultados positivos, pois que dos erros e falhasdevo dizer, como de praxe, que sao de minha inteira e exclusivaresponsabilidade.

Finalizando, aos professores Jose Cesar A. Gnaccarini, PauloSergio S. Pinheiro, Fernando A. Novais, Tamas Szmrecsanyi e JoseJobson de Andrade Arruda, amigos e incentivadores, que foram osprimeiros a se interessarem pela publica<;ao deste livro, a nos sagratidao.

CAPITALISMO EPRE-CAPITALISMO: A FORMAc;AODO BRASIL COLONIAL

Apresentam-se, no presente capitulo, as teses do capitalismo epre-capitalismo na forma<;ao do Brasil colonial. Iniciamos pel a tesedo capitalismo, passando depois a tese do nao capitalismo que sedesdobra numa variante a que chamamos feudal-tradici~nall e nou-tra que denominamos feudal-marxista-ortodoxa.2 Entre estas duasorienta<;6es de reflexao hist6rica situa-se a variante ore-capitalistaque afirma nao ser a sociedade colonial nem feuoal, nem capitalista.

No ultimo item deste capitulo exp6em-se as quest6es relaClo-nadas a estrutura social da forma<;ao colonial brasileira. analisando-se criticamente as diversas teses que apresentam as estruturas decastas, de estamentos e de classes sociais articulando-se no interiorda forma<;ao colonial brasileira. 3

(I) A visiio tradicional do feudalismo aparece na historiografia "classica" brasileira e es-trangeira nas obras de Varnhagen, Capistrano de Abreu, Rodolfo Garcia, Handelmann, Southeye outros autores que serao referidos no decorret do capitulo.

(2) t chamada ortodoxa por estar vinculada a uma especifica orienta~ao politico-parti-

(3) As quest5es sobre as estruturas de cast as, estamental e de classes serao retomadas noscapitulos 2 e 3, onde discutimos a questao central da tese: pre·capitalismo e capitalismo.

Page 6: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

2. A TESE DO CAP IT ALISMO NA FORMA<::Ao COLONIALBRASILEIRA

se ver, no 'senhor', mais urn 'empresario agrario' que a realiza<;aoabrasileirada ou tropical do nobre europeu gerindo fatores de pro-du<;ao, urn dos quais 0 'trabalho escravo'. Em que pese certa vio-H~ncia destas formula<;5es a especificidade das categorias nelas emjogo, a propria Aboli<;ao efetiva-se, por urn de seus componentes,tambem como uma a<;ao empresarial coletiva: na maior produtivi-dade e rentabilidade do 'trabalho assalariado' em confronto com a doescravo, (no fundo, duas modalidades do capital variavel) - tendoem conta os fatores de produ<;ao manipulaveis e disponiveis a fim desobretudo 'explorar' a amplia<;ao do mercado externo consumidor daepoca - deparamos com 0 fundamento ultimo e interno a sociedadebrasileira (ao setor dominante dentre os gran des proprietarios rurais)para a plena configura<;ao e expansao do ou tro polo das rela<;5es deprodu<;ao tipicas do capitalismo ja a esta altura constituido ha temposna Europa - 0 que entre nos se faz pel a precaria conversao do es-cravo em liberto e pela maci<;a importa<;ao de trabalhadores assai a-riados europeus. Justamente porque essa constituir;:iio 'parcial'do ca-pitalismo nas areas 'perifericas' brasileiras (produto do expansio-nismo capitalista dos subsistemas dominantes) se realizou desde 0

princfpio pela constituir;:iio do polo economica e politicamente domi-nante representado pelos 'senhores', a posterior configura<;ao do polodominado representado pelo trabalhador livre, tendencialmente assa-lariado, consiste num momento relativamente avan<;ado do mesmoprocesso de forma<;ao do capitalismo no Brasil e nao uma revolu<;aoburguesa local e 'periferica', historicamente desnecessaria. De fato,em bora implicando uma recomposi<;ao interna da domina<;ao econo-mica e politica exercida em conjunto pelos grandes proprietarios ru-rais, a Aboli<;ao nao significou a ascensao e consolida<;ao economica epolitica de uma 'nova' classe burguesa". 5

A controversia sobre a natureza da formac;ao colonial brasi-leira torna-se insubsistente se aceitamos 0 pressuposto do capita-lismo desde sua constituic;ao (genese), portanto, antes mesmo aoadvento da abolic;ao do escravismo. A adesao a este tipo de analisedesloca 0 conflito teorico para 0 espac;o da realizac;ao singular domodo capitalista de produc;ao no Brasil colonial.

Nesta cooptac;ao interpretativa e "inc1uida no termo capitalmuita coisa" que, "aparentemente, nao pertence ao conceito". 4 Namedida em que extrai seus argumentos da esfera da circulac;ao sim-pies de "capital", acaba embutindo, sem mais, as determinac;oes daesfera da circulac;ao ampliada do capital. Elide-se, desta maneira,do modo de produc;ao considerado capitalista, a discussao referentea produc;ao de mais-valia a qual so pode ser gerada no processo deproduc;ao capitalista, resultante da utilizac;ao do trabalho livre assa-lariado, contratado, na esfera da circulac;ao, pelo capitalista. Im-porta ressaltar que a tese capitalista da formaC;ao social colonialbrasileira reduz 0 trabalho escravo a uma modalidade de capital va-riavel:

"Apesar de contrariar interpreta<;5es comumente aceitas, parece-nosinegavel que 0 processo historico brasileiro se determina, des de 0 ini-cio, como gradativa constituir;:iio de uma formar;:iio economico-socialcapita/ista periferica. Realmente, os setores socio-geograficos onde seinstalaram as unidades de produr;:iio para 0 mercado internacionalsempre se caracterizaram ao menos parcialmente como capitalistas:as condi<;5es locais singulares do Brasil de entao, sobretudo super-abundancia de terra e superescassez de for<;a de trabalho, nao possi-bilitaram nessas areas de 'produ<;ao para 0 mercado' senao a consti-tuir;:iio 'parcial'das determinar;:oes da formar;:iio economico-social ca-pitalista que viria a configurar-se plenamente na Europa e ai expan-dir-se e tornar-se dominante somente apos transcorrida parte do pro-cesso historico brasileiro. Assim e que ate a Aboli<;ao nos ramos-chaves da divisao social do trabalho que entre nos se veio elaborandoe integrando no capitalismo dos subsistemas dominantes, ha que

Para Marx a mao de obra escrava nao era uma das modali-dades de capital variavel mas sim de "capital fixo". A caracteristicabasica do escravo-negro, enquanto mercadoria, e 0 de ser "in-natura" a fonte de energia-em-potencial capaz de gerar atividade-trabalho. Em outras palavras, 0 que dava valor ao escravo comomercadoria era a "energia-trab.alho" no sentido fisico, e 0 "valor detroca" se mensurava em termos de maior ou menor potencial ener-getico - em func;ao da idade, do sexo e do seu estado biologico.

(4) Marx, Karl (1971), Elementos fundamentales para la critica de la Economia Politica(borrador) 1857-1858, Buenos Aires, Siglo Veintiuno Argentina, v. 1, pp. 476-7.

(5) Pereira, Luiz (1965), Trabalho e desenvolvimento no Brasil, S~o Paulo, Difus~o Eu-ropeia do Livro, pp. 80-1 (grifos nossos).

Page 7: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

Conseqiientemente, 0 escravo negro ao ser adquirido no mercado, seconstituia como "mercadoria-energia-trabalho", ou seja: "for<;a",ou "maquina". Nesse sentido 0 "senhor de engenho" ou qualqueroutro proprietario rural do Brasil-Colonia, ao adquiri-lo, investiaem termos de "bens de capital fixo", comprando 0 potencial ener-getico "in-natura" que se efetivaria e se desgastaria no processo deprodu<;ao de bens economicos. Nao so a extra<;ao do excedente eco-nomico no processo de produ<;ao colonial, mas a propria trans for-ma<;ao do negro em mercadoria-escravo e "capital fixo" se reali-zavam atraves de metodos compulsorios e coativos. Se, como es-cravo, era desprovido dos meios de produ<;ao, os quais nao Ihe per-tenciam, e do controle das condi<;5es de trabalho, faltava-lhe a con-di<;ao de "ser livre" no senti do formal, e, portanto, uma legitima<;aojuridico-politica para se transformar em uma modalidade de capitalvariavel, em mao-de-obra assalariada e, enfim, em classe trabalha-dora.6

A outra variante, derivada da tese do Brasil Colonial Capita-lista, privilegia a produ<;ao voltada para 0 mercado mundial, trans-ferindo 0 locus teorico para a esfera da circula<;ao, esfera esta clas-sicamente conhecida como Capitalismo Mercantilista, as sumida pe-los teoricos como sendo uma etapaja capitalista:

(6) Marx. Carlos (1959), El capital - cdtica de la EconomEa Pol£tica, 2~ ed., Mexico.Fondo de Cultura Economica, v. II, pp. 33 e 425-6: "La compra y venta de esclavos es tambien,en cuanto su forma, compra y venta de mercancias. Pero el dinero no podria ejercer esta funcion sino existiese la esclavitud. (... ) En el sistema esclavista. el capital-dinero invertido para comprar afuerza de trabajo desempena el papel proprio de la forma-dinero del capital fijo. el cual solo vareponiendose gradual mente, al expirar el periodo de vida activa del esclavo. (... ). EI mercado detrabajo se ve constantemente surtido de mano de obra por la guerra. la pirateria, etc., y estosrobos se desarollan tambien al margen de todo proceso de circulacion, pues constituyen pura ysimplemente actos de apropiacian de la fuerza de trabajo ajena por medio de la violencia fisicadescarada". A economista Joan Robinson afirma que "En una economfa esclavista no hay ingresoderivado del trabajo. EI consumo de 10sesclavos forma parte del mantenimiento de los bienes decapital. EI total de los beneficios de la produccion - corresponde a los duenos de la propriedad (sialgunos dan a los escl.vos mas del minimo necessario para subsistir y reproducirse, esta actitudqueda fuera de las reg'las del juego, en virtud de que los esclavos no tienen derechos y, por tanto.deve considerarse Comouna indulgencia de los proprietarios mas que ganancias de los esclavos)" •in: Robinson, Joan (1960). La acumulaci6n de capital. Mexico, F. c. E., p. 16. Sobre otrabalhocompulsorio e "for~a coatora", ver Dobb. Maurice (1965), A evolu(:uo do capitalismo. Rio deJaneiro, Zahar Ed., pp. 28. 29. 34 e 52 epassim. Yer tambem Ianni, Octavio (1978), Escraviduo eracismo. Sao Paulo, Hucitec, principalmente a primeira parte denominada "Escravidao e capita,lismo" onde ele discute 0 Capitalismo Comercial, trabalho compulsorio, mercantilismo, 0 pro-cesso de acumula~ao primitiva de capital. etc .• pp. 3-50. Gorender. Jacob (1978), a escravismocolonial, Sao Paulo, Atica. Yer Cap. II - "A categoria escravidao". especialmente 0 item 6:"Escravidao. servidao da gleba e trabalho assalariado", pp. 80-7. onde 0 autor discute a questaoda "coa~ao extra-economica do produtor direto". Yer tambem Sodre. Nelson Werneck: Histariada burguesia brasileira. Rio de Janeiro, Civiliza~ao Brasileira, 1964: "No sistema escravista. afor~a de trabalho faz parte do capital e e renovada por urn simples constrangimento fisico, umaapropria~ao violenta da for~a de trabalho estrangeira e sua incorpora,ao ao sistema colonial" (p.38).

"Na perspectiva mais geral, 0 antigo regime - mais rigido ou maisflexivel de pais para pais representava 0 quadro institucional que per-mitiu a formafiio e cristalizafiio da etapa mercantil do capitalismo(capitalismo comercial); a dinamjca propria do desenvolvimento capi-talista •...... "Antigo regime, politica mercantilista, sistema colonialmonopolista sao portanto elementos da mesma estrutura global tipicada Epoca Moderna .....

"E de extrema importancia acentuar, neste passo. que Portugalnao esta de forma alguma no centro desse processo. Pelo contrario,apresenta-se defasado em rela~ao aos demais nucleos da economiaeuropeia. Isto, porem nao 0 exime de englobar-se no curso dos movi-mentos gerais .. , ... "Tanto no nivel economico quanto no plano dasrela~oes politicas internacionais, Portugal e 0 ultramar portugues,interdependentes e inseridos, pelo comercio, nos mecanismos centraisdo desenvolvimento economico, e integrando 0 sistema politico doequilibrio europeu, nao podem escapar a este movimento de longocurso e grande profundidade",

"Ora, no conjunto, a explora~ao do Ultramar organizada nosquadros do Antigo Sistema Colonial, permite distinguir nitidamentetres elementos basicos: areas ja densamente povoadas quanta ao inf-cio da expansiio maritima europeia. portadoras de civiliza~oes tradi-cionais, on de a domina~ao politica permitia 0 comercio vantajoso dealguns produtos de alto valor unitario no mercado europeu como asfamosas especiarias do mundo indiana; zonas de povoamento e colo-nizafiio europeia, onde se estruturam economias complementares aocapitalismo mercantil europeu. fornecedoras sobretudo de produtostropicais e metal nobre (a America e por excelencia 0 teatro da a~aocolonizadora europeia durante 0 primeiro sistema cQlonial); e. final-mente, a Africa fornecedora da forfa de trabalho escravizada quepermite por em funcionamento a produ~ao colonial do segundo setor.A primeira categoria configura 0 que os teoricos do colonialismo cha-maram, urn tanto impropriamente quanto a nos, 'colonias comer-ciais' ( ... ); na America, e possivel discriminar as coloni~s propria-mente de 'explora~ao' das colonias de 'povoamento', A Europa. ouantes a economia capitalista mercantil europeia. eo centro dinamico

Page 8: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

de todo 0 sistema, gerador da ac;ilocolonizadora e naturalmente be-neficiario dela".

"Absolutismo, sociedade estamental, capitalismo comercial, poli-tica mercantilista, expansiio ultramarina e colonial silo, portanto,parte de urn todo, interagem reversivamente neste complexo que sepoderia chamar, mantendo urn termo da tradic;ilo, Antigo Regime.Silo no conjunto processos correlatos e interdependentes, produtostodos das tensoes sociais geradas na desintegrac;ilo do feudalismo emcurso, para a constituic;ilo do modo de produc;ilo capitalista".

"A expansilo ultramarina e a colonizac;ilo do Novo Mundo cons-titueIil de fato urn dos trac;osmarcantes da hist6ria dos seculos XVI aXVIII. Contemporaneamente, assiste-se ao predominio das formaspoliticas do absolutismo, no plano politico, e, no social, a persistenciada sociedade estamental, fundada nos privilegios juridicos, como ele-mento diferenciador. No universo da vida economica, entre a disso-luC;ilopaulatina da estrutura feudal e a eclosilo da produc;ilo capita-lista, com persistencias da primeira e elementos peculiares da se-gunda, configura-se a etapa intermediaria que ja se vai tornandousual chamar-se capitalismo mercantil, pois e 0 capital comercial,gerado mais diretamente na circular,:iio das mercadorias que animatoda a vida economica. Estado absolutista, com extrema centrali-zac;ilodo poder real, que de certa forma unifica e disciplina uma so-ciedade organizada em 'ordens', e executa uma politica mercantilistade fomento do desenvolvimento da economia de mercado, interna eexternamente - no plano externo pela explorac;ilo ultramarina, taissilo as pec;asdo todo que convem articular". 7

reconhece que a acumulaC;ao realizada pelo "capitalismo comer-cial", com apoio no regime de 'exclusivo' metropolitano, era umaacumulaC;ao considerada "primitiva", ou seja, realizada "fora dosistema". No entender dele, 0 comercio colonial, monopolizado comexclusividade pela mdr6pole e na qualidade de "gerador de super-lucros", promove, "necessariamente, urn estimulo a acumulaC;aoprimitiva de capital na economia metropolitan a as expensas das eco-nomias perifericas coloniais". E, este regime de exclusividade co-mercial marca profundamente 0 sentido da coloniza~ao: "comerciale capitalista", constituindo 0 "processo de formac;ao do capitalismomoderno".9 A discordancia te6rica inicia-se neste ponto: 0 montantede capital-dinheiro acumulado na esfera da circulaC;ao, por ser ori-ginario/primitiva, e uma acumulaC;ao nao capitalista de capital.portanto, pre-capitalista.

o que importa, para os nossos objetivos, e que a admissao datese do Brasil Colonia Capitalista Mercantilista equivale, de urnlado, a aceitac;ao da formac;ao inexoravel da estrutura de classes e,de outro, a possibilidade con creta de ter sido realizada, no processohist6rico, a estrutura estamental (ou talvez, a de castas). Sob estaperspectiva a constituic;ao do capitalismo no Brasil teria se realizadosem transiC;ao, principiando-se com a implantac;ao ex6gena do capi-talismo mercantilista e se ultimando com 0 advento do capitalismoindustrial. Filiando-se a esta orientac;ao e discutindo a questao doponto de vista economico, loao Manuel Cardoso de Mello afirmaque a "economia colonial" foi 'reinventada' atraves da produc;aomercantil e do trabalho compuls6rio: 10

No nosso entendimento, optar por esta colocaC;ao te6rica equi-vale a aceitar a etapa de acumula~ao primitiva/originaria de capitalcomo sendo, embora nao 0 seja, capitalista. Como se vera maisadiante, dentro da concepc;ao marxista, a acumulaC;ao capitalista eoresultado da produC;ao e reprodu~ao ampliadado capital, centradana esfera da produc;ao. E nela que se produz, por meio da explo-raC;ao do trabalhador livre e assalariado, 0 valor que, ao se realizarna esfera da circulac;ao, resulta na ac~mulac;ao capitalista.8 Novais

(9) Novais, F. (1979), op. cit., ver pp. 69-72. Na pagina 70: "Examinada, pois neste con-texto, a coloniza~iio do Novo Mundo na IOpocaModerna apresenta-se como pe,a de um sistema,instrumento de acumula~iio primitiva da epoca do capitalismo mercantil. Aquilo que no iniciodessas reflexoes, afigurava·se como urn simples projeto, apresenta-se agora consoante com pro-cesso hist6rico concreto de constitui~iio do capitalismo e da sociedade burguesa. Completa-se,entrementes, a conota~iio do sentido profundo da coloniza~iio: comercia/ e capita/isla, ista e,elemenlo constitutivo no processo de forma~iio do capitalismo moderno" (antes dos dais pontos,grifos nossos). Mais adiante, Novais afirma: "0 '€Xc/usivo' metropolitano do comercio colonialconsiste em suma na reserva do mercado das colonias para a metr6pole, isto e, para a burguesiacomercial metropolitana" (p. 88).

(10) Mello, Joao Manuel Cardoso de (1986), Capitalismo tardio, 5~ ed., Sao Paulo, Bra-siliense, pp. 41, 36, 37 e 43. Vide tambem Cardoso, Fernando Henrique (1975), Autoritarismo edemocratiza~iio, Rio de Janeiro, Paz e Terra. Ver Cap. III: "Classes sociais e hist6ria: conside-ra,oes metodol6gicas" (pp. 99-134). F. H. Cardoso, apoiando-se em Genovese e Hobsbawm, afir-

(7) Novais, Fernando A. (1979), Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial(1777-1808), Slio Paulo, Hucitec, pp. 13-4, 33, 66, 62-3 (grifos nossos).

(8) Marx, Carlos (1959), £1 Capital, op. cit., Torno I. Ver Cap. V: "Proceso de trabajo yproceso de valorizaci6n", pp. 130-49.

Page 9: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

"0 capital comercial nao se limitou na America Latina a explorar osmodos de produ<;ao pre-existentes a conquista. Ao contrario, des-dobrou 0 ambito da circula<;ao que the e proprio e invadiu a esfera daprodu<;ao, constituindo a economia colonial. Imprimiu-lhe, desdelogo, seu carater mercantil, assegurando-lhe a realiza<;ao daprodu<;iiopara 0 mercado mundial". Na economia colonial "Estao presentesdois setores: um exportador e um produtor de alimentos. 0 setor ex-portador produz em larga escala, produ tos coloniais ( ... ) des tinadosao mercado mundial. A produ<;ao mercantil e organizada pelos pro-prietarios dos meios de p'rodu<;ao e 0 trabalhador direto esta sujeito acompulsao. Quer dizer, a empresa colonial de exporta<;ao assenta-seno trabalho compulsorio, servil ou escra yo. ( ... ). A economia colonialdefine-se, portanto, como altamente especializada e complementar aeconomia metropolitana. Esta complementaridade se traduz numdeterminado padrao de comercio: exportam-se produtos coloniais e seimportam produtos manufaturados e, no caso de economias fundadasna escravidao negra, escravos". "(00')' Na metropole, a liberta<;ao dotrabalho, trabalho assalariado; na colonia, a 'reinvensao' de form asde rela<;oes sociais pre-capitalistas" (reinven<;ao do trabalho servil edo trabalho escravo).

No nosso modo de ver, ha urn equivoco e urn reducionismoquanto ao uso do conceito de subordinac;ao (subsunc;ao) formal dotrabalho ao capital. Este conceito, para Marx, esta historicamentevinculado a fase manufatureira do capital industrial e nao a fasecomercial ou mercantilista, esta conhecida classicamente como deacumulac;ao primitiva de capital, na qual a relac;ao capital-dinheiro/trabalho nao s6 admite mas requer uma rela{:iio de subordina{:iiopuramente po[[tica. Quando ha subsunc;ao (subordinac;ao) formaldo trabalho ao capital, esta se baseia numa relac;ao essencial que e"puramente monetaria entre 0 que se apropria do trabalho exce-dente e 0 que 0 fornece". A subordina{:iio que surge "deriva do con-teudo determinado da venda". Esta subordina{:iio nao precede, por-tanto, a relac;ao monetaria e nem e comandada por urn ato de poderdo produtor. A relac;ao entre 0 trabalhador e 0 capitalista, na sub-sunc;ao formal do trabalho ao capital, e puramente monetaria (eco-nomic a) e nao politica. E uma relac;ao "entre possuidor de merca-doria e possuidor de mercadoria":

Quanto ao carater formalmente capitalista do regime colonialde produc;ao, 0 autor de Capitalismo Tardio (nao seria CapitalismoPrecoce?) afirma:

"E somenle na condi<;ao de possuidor das condi<;oes de trabalho que,nesse caso, 0 comprador faz com que 0 vendedor caia sob sua depen-dencia econ6mica; niio existe qualquer rela<;iiopo/ftica, fixada social-menle. de superioridade e subordinar;iio" .12

o outro aspecto, que assume a condic;ao de essencialidade emMarx, diz respeito a que, na subsunc;ao formal do trabalho ao ca-pital, 0 trabalhador ao vender a sua "capacidade de trabalho ", ven-de-a ao capital que monopoliza as "condi{:oes objetivas de trabalho(meios de produc;ao)" e as "condi{:oes subjetivas de trabalho (meiosde su bsisH~ncia)":

"Ao contrario, ha, formalmente, capitalismo porque a escravidao eescravidao introduzida pelo capital e a genese da economia colonialrecebe todo peso que the e devido. Ha capitalismo formalmente, por-que 0 capital comercial invadiu a orbita da produ<;ao, estabelecendo aempresa colonial. Indo muito alem do simples dominio direto da pro-du<;ao, 0 capital subordina 0 trabalho e esta subordina<;iio e formal,porque seu domfnio exige formas de trabalho compulsorio. Fica cla-ro, enfim, que 0 decisivo sao as articula<;oes entre 0 capitalismo e co-loniza<;ao, 0 carater de instrumento de acumula<;ao primitiva da eco-nomia colonial". 11

"Quanto mais plenamente se the defrontam tais condi<;oes de tra-balho como propriedade alheia, tanto mais plenamente se estabelececomo formal a rela<;iio entre capital e 0 trabalho assalariado, 0 quevale dizer: da-se a subsun<;ao formal do trabalho ao capital, condi<;aoe premissa da subsun<;ao real". 13

ma: "Assim, nem e de pasmar que na produ9Ao colonial nas Americas 0 capitalismo haja rein-ventado a escravidAo ou a servidAo, nem 0 fato de que as 'encomiendas' e as outras formas deutiliz~Ao do sobre-trabalho tenham existido - e as vezes, esporadicamente, persistam - des-qualifica 0 carater capitalista da produ9Aocolonial"' (p. 108).

(11) Mello, loAo Manuel Cardoso de (1986), op. cit., p. 44.

(12) Marx, Karl (1978), 0 capital. Livro I. Cap{rulo VI (Inedito), SAo Paulo, CienciasHumanas, pp. 56-7 (grifos continuos SADnossos).

(13) Id., ibid .• p. 54.

Page 10: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

No que diz repeito ao capital usurario e ao capital comercial, 0

"capital ja existe desempenhando determinadas funroes subordi-nadas, mas nao ainda em sua fun<:ao dominante, determinante daforma social geral", e, em ambas as formas, os excedentes advindosde sua atuaerao sao extraidos a partir da vioH~ncia e do uso de me-todos coercitivos que independem da relaerao monetaria propria-mente dita. Ou seja, a subordinaerao formal do trabalho ao capitalpressupoe, com anterioridade, a existencia do trabalhador livre eassalariado e nao a partir de trabalho compulsorio. A extraerao damais-valia absoluta resulta do prolongamento da jornada de tra-balho, extraerao que e realizada no interior de uma relaerao pura-mente monetaria e naopo[{tica, extern a a relaerao pessoal de domi-naerao e de dependencia. Ademais, a acumulaerao de capital na Eu-ropa nao se fazia por meio do trabalho livre como parece sugerirJoao Manuel Cardoso de Mello, tese acordada, em parte, por MariaSylvia Carvalho Franco:

mento que permita reconhecer a explora<;ao do escravo como parte emque sl! pode encontrar, nem mais nem menos que em outra do sistemaconsiderado, rela<;oes socia is em cujo curso se procede it unificar;:aodos diferentes e contraditorios elementos nele presentes. Esta propo-si<;ao leva a ver como, a partir dos seculos XV e XVI, quando a t'scra-vidao aparece suportando urn estilo de produ<;ao vinculado ao sistemacapitalista, 0 escravo surgiu redefinido como categoria puramenteeconomica, assim integrando-se as sociedades coloniais".lS

Deve-se acrescentar que a tese segundo a qual a sociedadebrasileira se erigiu, fundamentalmente, desde os primordios da co-lonizaerao, como determinaerao de processos de desenvolvimento ca-pitalista, mediante a implantaerao de urn novo modo de produeraoespecifico, no qual "0 capital constituiu-se em urn principio deter-minante das condieroes globais de existencia social, de definierao dasrelaeroes de dominaerao", esta tese, repetimos, ja havia sido elabo-rada por Maria Sylvia de Carvalho Franco no inicio dos anos 60:

"f: decisivo que a escravidao moderna tenha sido implantada articu-ladamente aos processos de mudanr;:a do mundo europeu, que seorientava progressivamente para 0 trabalko livre, coma intensifi-ca<;ao da divisao do trabalho social e com a generalizar;:ao da formamercantil dos produtos do trabalho. Na Europa, alguns setores daprodu<;ao traziam ja 0 selo do capitalismo: tinha inicio 0 desenvolvi-mento das manufaturas. Em outros termos, davam-se as condi<;oespara os mercados amplos que 0 sistema colonial dinamizou tambem.o ressurgimento da escravidao, 0 desenvolvimento do trabalko livre,a forma9ao da burguesia, a constitui9ao do empreendedor colonialsao categorias unitariamente determinadas: nos tempos modernos,uma nao existe sem a outra" .14

"0 conceito inclusivo tornado por referencia neste trabalho e 0 decapitalismo, por imprecisa que esteja, ainda, sua figura no sistemacolonial. Apesar disto, essa abordagem permite acentuar a peculiari-dade das rela<;oes de domina<;ao e de produ<;ao definidas no Brasil eafastar a ideia de que teria se implantado, aqui, urn sistema tribu-tario, essencialmente diferente do nucleo europeu, com a reatuali-za<;ao de formas pregressas de organiza<;ao social". 16

Vale destacar que a tese do Brasil Colonial ja capitalista (des-de a sua constituierao) foi esboerada com anterioridade por Caio Pra-do Junior, ha 40 anos, a proposito da formaerao social brasileira en-tendida como "urn tipo de sociedade inteiramente original", com"urn acentuado carater mercantil produzindo generos de grande va-lor comercial" e com a utilizaerao do trabalho "recrutado entre raerasinferiores" (indigenas ou negros):

Esta tese, em suas linhas gerais, ja fora exposta pela autora nasua Introdurao a Homens Livres na Ordem Escravocrata, justa-mente ao propor 0 estudo da escravidao como instituierao vinculadaao sistema capitalista:

"Desta sorte, 0 ponto de vista prevalecente neste estudo sera 0 decompreender a situa<;ao historica, seu objeto, mediante urn procedi-

(15) [d. (1969), Homens livres na ordem escravocrata, SAo Paulo, Instituto de EstudosBrasileiros, p. 11. Ver tarnbern Furtado, Celso (1961), Forma~iio economica do Brasil, 4~ ed., SAoPaulo, Nacional. Para Furtado, "na unidade escravista os pagarnentos a fatores sAo todos denatureza rnonetilria" ( ... ) sendo "urn caso extrerno de especializa<;Aoeconornica" (p. 66 e pas-sim). Furtado nega a existencia do feudalisrno no Brasil.

(16) Franco, M. S. C. (1969), op. cit., p. 13.(14) Franco, Maria Sylvia de Carvalho (1978), "Organiza<;Aosocial do trabalho no periodo

colonial", Discurso, SAoPaulo, Hucitec; Depto. de Filosofia da FFLCH/USP, 8: 1-45, p. 34.

Page 11: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

"No seu conjunto, e vista no plano mundial e internaeional, a colo-niza~ao dos tropicos toma 0 aspecto de uma vasta empresa comereial,mais complexa que a antiga feitoria, mas sempre com 0 mesmo ca-rater que ela, destinada a explorar os recurs os naturais de urn terri-torio virgem em proveito do comereio europeu" .17

Esta mesma linha de abordagem da sociedade colonial Joi an-tecipada por Caio Prado Junior na Historia Economica do Brasil(1945), onde se afirma que colonizac;ao resultou da expansao mari-tima empreendida por "empresas comerciais", portanto e urn capi-tulo da hist6ria do comercio europeu, de uma "imensa empresa co-mercial" .18

A questao central apresentada pelos autores referenciados e deque 0 "capitalismo" ja estava constituido na Europa em sua forma"comercial" e "mercantil", sendo esta elemento constitutivo doprocesso de "formac;ao do capitalismo moderno". Disto resulta 0

entendimento de que as colonias saD as realizac;6es singulares destecapitalismo, seja na 6tica de sua realizac;ao "parcial", seja na da"acumulac;ao originaria de capital", ou ainda sob 0 angulo de umaforma "derivada" (urn modo de produc;ao especifico). Nao se trata,todavia, de tese aceita sem reservas, haja vista os reparos de Laclau,quem, por exemplo, diz que a "dependencia feudal e 0 artesanatourbano continuavam a ser as formas basicas da atividade produ-tora" na Europa. E, baseado em Hobsbawn, sustenta que 0 seculoXVII caracterizou-se como periodo de crise geral da economia euro-peia, transformando-se em "ponto de transic;ao em direc;ao ao sis-tema capitalista". Mais ainda, que a expansao comercial, em certascircunstancias, "mesmo sob condir;:oesfeu dais , poderia produzir urnmontante de lucros suficientemente grande para originar a pro-duc;ao em larga escala: por exemplo, caso servisse a organizar;:iioexcepcionalmente grande como os rein os, ou a igreja ... ". Esta ex-pansao dos seculos XV e XVI, no entender de Hobsbawn, "foi essen-cialmente desse tipo; e criou dai por diante, suas pr6prias crisestanto no mercado interno como no mercado transoceanico. Crises

(17) Prado Junior, Caio (1961). Fonnat;iio do Brasil contemporiineo. 6~ ed., SAo Paulo,Brasiliense, p. 25. Vide tb. pp. 122e segs., e p. 137.

(18) Id. (1970), Hist6ria econ6mica do Brasil, 12~ed., SAoPaulo, Brasiliense, pp. 13-23.

que "os homens de negocios feudais" - os mais ricos e poderososporque melhor adaptados para ganhar muito dinheiro em uma so-ciedade feudal - nao tinham condic;6es de superar. Sua inadapta-bilidade contribuiu para intensifica-Ias. Hobsbawn chega a deno-minar estes "homens de neg6cios feudais", "capitalistas feudais",19Raymundo Faoro, inspirado em Weber, sugere "capitalistas mer-cantis" :

"A empresa de plantar;ao teve nitido cunho capitalista - dentro docapitalismo mercantil epoliticamente orientado do seculo XVIportu-gues. As relar;oes entre os capitaes governadores e 0 rei e entre os po-tentados rurais e 0 governo tiveram, de outro lado, acentuado cunhopatrimonial, pre-moderno. 0 donatario caracteriza-se pela qualidadedupla, de fazendeiro e autoridade, sem a fusao de ambas, fusao in-compativel com a ordem legal portuguesa, vigorante no seculo XVI.Opoe-se ao feudalismo a propria natureza dos favores concedidos aosdonatarios, favores de estimulo a uma empresa que 0 rei engordavapara colher benefieios futuros - e capitalismo politicamente orien-tado em aryiio. 0 rei delimitou as vantagens da colonizar;ao, reser-vando para si 0 dizimo das colheitas e do pescado, 0 monopolio docomereio do pau-brasil, das especiarias e das drogas, no quinto daspedras e metais preeiosos. 0 Governo portugues nao punha no ne-goeio 0 seu capital, ao tempo escasso e comprometido em outras aven-turas. Servia-se dos particulares - nobres e ricos, com suas clientelase parentes sem cabedal acenando-Ihes com a opuleneia eo lucro facil,moveis de a~ao tipicamente capitalistas, como capitalista seria aoferta aos pobres da faeil vida americana. A propriedade rural brasi-leira tomou folego e se expandiu para a exploraryiio de artigos expor-taveis, ligados ao mercado mundial, pela via de Lisboa. Nao encon-trou ela, ao se constituir uma camada social a que se pudesse super-por, formando a estratifica~ao de dois graus, entre senhores e vas-salos" .20

(19) Laclau, Ernesto (1979), Polltica e ideologia na teoria marxista, Rio de Janeiro, Paz eTerra, p. 30 (ver "Feudalismo e capitalismo na America Latina", pp. 19-56); Hirano, Sedi(1975), op. cit., pp. 46·64; Hobsbawm, Eric J. (1972), En Tornoa los origenes de la Revoluci6nIndustrial, 2~ ed., Buenos Aires, Siglo XXI, Argentina, p. 22; Arruda, Jose Jobson de Andrade(1982), As raizes do industrialismo moderno. (Estudo hist6rico sobre as origens da Revolu~AoIn-dustrial - na Inglaterra), SAoPaulo, Tese Livre-Docencia, FFLCH/USP. Nesta obra, afirma-se:"Em 1646foram abolidos os direitos feudais" (p. 111 e 112).

(20) Faoro, Raymundo (1977), Os donos do poder - Format;iio do patronato politicobrasileiro, 4~ ed., Porto Alegre, Globo, v. 1, pp. 130-1.

Page 12: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

Faoro, em Os Donos do Poder, filiando-se mais a uma tra-dic;ao weberiana do que a corrente marxista, reconhece na "for-mac;ao social" colonial brasileira a constituic;ao de urn capitalismomercantil oposto ao capitalismo moderno. Este ultimo e economica-mente orientado e tendo por requisitos, para que se constitua, ca-pitalfixo e organizQf;iio racional do trabalho livre, sendo especifica-mente ocidental, gestado no interior das associac;6es urbanas, admi-nistradas de uma forma racional. "Desenvolveu-se dos seculos XVIao XVIII dentro das associac;6es politic as estamentais holandesas einglesas ... ". 0 capitalismo mercantil, tambem chamado proto-capitalismo, esta intimamente ligado a dominariio patrimonial e aopoder pessoal; nestes florescem e se estabelecem os capitalismos co-mercial, de arrendamento e venda de tributos e cargos, os capita-lismos coloniais e de plantariio, mas nunca 0 capitalismo moderno,como empresa lucrativa, baseado em contabilidade racional, em re-gras de ordenamento administrativo calculavel, amparado no direitoformal-racional, lucro amealhado por meio de estabelecimento eco-nomico estavel, sem violencia, portanto, atraves de meios padficos.No capitalismo mercantil (comercial, colonial e de plantac;ao), "po-liticamente orientado", a acumulac;ao de capital e condicionadapela ordem politica, pela esfera do poder pessoal, com a utilizac;aode metodos coativos e de trabalho compulsorio (escravo ou servil),obscurecendo e dificultando a manifestac;ao da racionalidade eco-nomica pel a exagerada presenc;a da ordem politica que sufoca a livremanifestac;ao da ordem economica.21 Em vista do exposto, nestetipo de "capitalismo", nao se ve nenhuma necessidade de "rein-ventar" formas de relac;6es pre-capitalistas: estas formas de trabalhocompulsorio e de acumulac;ao origin aria de capital sac as bases nasquais se assenta 0 "capitalismo politicamente orientado"; dai, 0

"exclusivo" metropolitano, como uma modalidade de reserva demercado, mediante concess6es de monopolios e privilegios. Temos

(21) Weber, Max (1964), EeonomEa y soeiedad, 2~ ed., Mexico, Fondo de Cultura Eco-nomica, pp. 190-3. Ademais se observa que a "'orienla~ao capitalista pelo lucro' e oferecida comcarater de 'butim' at raves de determinadas associar;6es oupessoaspolfticas oupofiticamenteorien-ladas: financiamento de guerras ou revolu~Oes e financiamentos feitos aos chefes de partido pormeio de emprestimo e incentivos". Por outro lado, por "orienta~ao pel as probabilidades lucra-tivas duradouras oferecidas por uma situa~ao de dominafiio garanlida pelo poder pO[[lieo enten-dem-se: a) de Iipo eo/onEal (beneficios realizados por meio de urn comercio monopolist a e obri:gatorio), b) de lipo fiscal (beneficios realizados por meio de tributos e cargos: tanto na metropolequanto na colonia)", pp. 132-3. Vide tambem: Hirano, Sedi (1975), op. dl., pp. 40-1, 69 e 75.

como exemplo, na expressao feliz de Manuel Nunes Dias, 0 capi-talismo monarquico portugues.22

Assim, 0 "capitalismo politicamente orientado" que consolidaa monarquia portuguesa e constitui a "empresa de plantac;ao" capi-talista no Brasil colonial, chamada por Faoro capitalismo mercantildo seculo XVI, nao corresponde ao que Weber conceitua na citac;aosupra referida. Ha urn equivoco entre 0 que Weber entende por "ca-pitalismo politicamente orientado" eo que conceitua como "capita-lismo politico". Este e garantido pelo poder politico por meio deuma situariio de dominariio, sob 0- manto do Estado MonarquicoAbsolutista. Nele florescem os capitalismos de tipo colonial, de tipofiscal e de plantariio. Naquele outro, 0 capitalismo politicamenteorientado, florescem os capitalismos de financiamentos de guerrasou revoluroes e de "emprestimos de incentivos extraordinarios a de-terminadas associac;6es politicas" .23

Em suma, trabalho escravo nao e igual ao trabalho livre: nemem termos formais e nem em termos reais. Diferentes, tambem, os"capitalismos" produzidos por eles: num caso, 0 capitalismo mer-cantil (pre-capitalista, ou capitalismo politico); ai nao M sujeic;aoformal do trabalho ao capital, ao contrario, a sujeic;ao e politica, naoeconomica. Noutro caso, 0 capitalismo industrial (acumulac;ao ca-pitalista realizada pel a produc;ao capitalista) onde ocorre a sujeiriioformal do trabalho ao capital (extrac;ao da mais valia absoluta) ereal (extrac;ao da mais valia relativa); aqui a subordinac;ao do traba-lhador ao capital advem da relac;ao contratual estritamente econo-mica. A unica acumulac;ao capitalist a que e estritamente capitalistae a acumulac;ao que resulta do capital industrial. A industrializac;aoda Inglaterra no seculo XVI e improvavel, no seculo XVII, discu-tivel, e no seculo XVIII, nas ultimas decadas deste seculo, provavel.

(22) Dias, Manuel Nunes (1963), a eapila/ismo monarquieo porlugues (1415-1549).

Coimbra, s. i. e., Torno II, pp. 355 epassim.(23) Weber, Max (1964), op. eil .. pp. 132, 133, 134. 190, 191. 192. 674 e 676. Ver

tambem Faoro(l977), op. eil., Cap. II: "A Re\'olu~ao Portuguesa", pp. 34 a 68 (especialmente aspp. 33, 56, 57, 58 e 59). 0 autor adverte, apesar de seu proximo parentesco, a linha de pensa-mento de Max Weber. 0 nosso comentario nao resulta da afirma~ao de que a "consolida~ao damonarquia portuguesa foi condicionada pelo eapila/ismo polfrico" (ate aqui nao discordamos).mas resulta da observa~ao contida na nota de rodape, on de Faoro diz: "Capitalismo politica-mente orientado", e remete a leitura de Max Weber; nossa leitura e decisivamente outra. Faoro(1977), p. 33 e 68. Sublinhe-se que 0 termo mais usado pelo autor e capitalismo (mercantil/monarquico/ de Estadol politicamente orientado.

Page 13: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

A prodUl;iio industrial na Inglaterra, em termos de reprodUl;iio ca-pitalista, constituiu-se, pioneiramente, somente no decorrer do se-culo XVIII. Nos seculos anteriores 0 que ocorre e 0 processo de dis-solUl;iiodas rela90es feudais prevalecentes. 24

nados com os progressos da divisao do trabalho social e da tecno-logia, constituiram, em conjunto, as condi.;oes da transi.;ao para 0

modo capitalista de produ.;ao. Assim, para compreender em que me-dida 0 mercantilismo 'prepara' 0 capitalismo, e necessario que a ana-lise se detenha nos desenvolvimentos das for.;as produtivas e das re-la.;oes de produ.;ao. Mas para compreender esses desenvolvimen-tos e preciso situa-Ios no ambito das transforma.;oes estruturais en-globadas na categoria acumula.;ao primitiva. Nesse sentido e que aacumular;:iio primitiva expressa as condir;:6es hist6ricas da transir;:iiopara 0 capitalismo. Foi esse 0 contexto historico no qual se criou 0

trabalhador livre, na Europa, eo trabalhador escravo, no Novo Mun-do. (00')"

"Note-se, pois, que 0 funcionamento e a expansao do capital mer-cantil cria, man tern e desenvolve 0 paradoxa representado pela coe-xistencia e interdependencia do trabalho escravo e trabalho livre, noambito do mercantilismo. No limite, 0 escravo estava ajudando a for-mar-se 0 operario. Isto e, a escravatura, nas Americas e Antilhas,estava dinamicamente relacionada com 0 processo de gesta.;ao do ca-pitalismo na Europa, e principalmente na Inglaterra. Esse 'paradoxo'comer;:a a tornar-se cada vez mais explfcito a medida que ° mercanti-lismo passa a ser suplantado pelo capitalismo ".27

3. A TESE DO NAo-CAPITALISMONA FORMA<;AO COLONIAL BRASILEIRA

Finalmente, nos temos a tese do niio capitalismo na forma9iiocolonial brasileira. Esta alternativa acorda com 0 que Marx afirmaao desenvolver a tese de que a acumula9iio origin aria - primitiva -e "anterior a acumula9ao capitalista (... ), uma acumula9iio que niiodecorre do modo capitalista de Produ9iiO, mas e 0 seu ponto de par-tida". Mais adiante afirma Marx: "A chamada acumulariio primi-tiva e apenas 0 processo que dissocia 0 trabalhador dos meios deproduriio. E considerada primitiva porque constitui a pre-historiado capital e do modo de produriio capitalista. E do conhecimentoque na historia real desempenharam urn papel relevante a con-quista, a escravidiio, 0 roubo e 0 assassinato; em suma: a violen-cia".25 Nestas breves anota90es de excertos, esbo9a-se com clarezacristalina a conseqiiencia de que a ja classica etapa do CapitalismoMercantilista - capitalismo comercial - e essencialmente pre-capi-talista.26 Ela prepara a transi9iio do mercantilismo para 0 capita-lismo:

Para Octavio Ianni, na medida em que 0 mercantilismo ela-bora as condi90es para 0 surgimento do capitalismo, ele, enquantouma fase da acumula9iio originaria de capital, niio e capitalista: 0

mercantilismo e pre-capitalista, sendo por isso suplantado pelo capi-talismo. No "capitalismo mercantilista ou comercial, a esfera da cir-cula9iio aparece como momenta determinante - a instancia reali-zadora do processo hist6rico geral - seja na apropria9iio de pro-dutos result antes de modos de produ9iio pre-capitalistas, seja naapropria9iio de seres humanos para serem mercantilizados ou utili-zados como instrumento de produ9iio, seja na implanta9iio ou elabo-ra9iio de novos modos de produ9iio mantenedores do processo deacumula9iio origin aria de capital, seja na apropria9iio monopollsticade produtos elaborados. pela interferencia do capital comercial, pro-cesso esse que e historicamente anterior ao modo de produ9iio capi-

"Foi 0 capital comercial que comandou a consolida.;ao e a genera li-za.;ao do trabalho compulsorio no Novo Mundo. Toda forma.;ao so-cial escravista dessa area estava vinculada, de maneira determinante,ao comercio de prata, ouro, furno, a.;ucar, algodao e outros produtoscoloniais. Esses fenomenos, protegidos pela a.;ao do Estado e combi-

(24) Arruda, Jose Jobson de Andrade (1982), op. cit., pp. 115-6 epassim, quem se refere aaboli~ao de direitos feudais e mudan~as no conceito de propriedade (pp. 110-2); "Efetivamente, 0

arran que das for~as produtivas nao se localiza nos prim6rdios ou meados do seculo XVIII e sim,no seu final" (p. 208).

(25) Marx, Carlos (1959), op. cit., Torno I, pp. 607-8.(26) Ver na obra EI capital (1959), 0 capitulo referente a "Acumula~ao originaria de ca-

pital", pp. 607-49 (op. dt., Torno I, Capitulo XXIV: "La Hamada acumulaci6n originaria") e,nos Elementos fundamentales para la aitica de la Economia Politica (1971), op. cit., os itensreferentes a acumula~ao originaria e as formas que precedem a produ~ao capitalista (pp. 420-79).

(27) Ianni,a. (1978), op. dt., pp. 6 e 12, que na p. 13 afirma: "Vma form~ao social es-cravista era uma sociedade organizada com base no trabalho escravo (do negro, indio, mesti~o,etc.) na qual 0 escravo e 0 senhor pertenciam a duas castas distintas; ( ... )".

Page 14: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

talista. Em suma, 0 monop6lio comercial, exclusivamente direcio-nado para satisfazer os interesses metropolitanos, era a alavancaque rolava a bola de neve da acumulac;iio primitiva de capital.

Em decorrencia dessa modalidade de interpretac;iio dentro doquadro te6rico marxista que advoga a tese do niio-capitalismo naformac;iio colonial brasileira, caberia investigar a hip6tese da estru-tura social estamental (ou de castas). No nosso entendimento, e sim-plesmente inaceitavel a teoria da antecipac;iio hist6rica de uma estru-tura de classes no interior da produc;iio social pre-capitalista.28 As-sim perfilhando a tese do pre-capitalismo na produc;iio colonial bra-sileira, Florestan Fernandes afirma que 0 "desenvolvimento tardioda escravidiio acaba por converte-Ia em urn dos fatores da 'acumu-lac;iio originaria' na cena hist6rica brasileira". Atraves do "caratermercantil da escravidiio, 0 capital mercantil penetrava as formas deproduc;iio pre-capitalistas a que ela se associava". Esta escravidaocolonial e mercantil:

"Por sua estrutura e dinamismo, ( ... ) era pre-capitalista e nao tinhacomo expor, a partir de si mesma, 0 mercado colonial a uma irra-diar;ao que revolucionasse 0 seu padrao de organizar;ao e de cresci-mento. Como tentamos sugerir, ela era uma necessidade, mas naouma parte da periferia: 0 ponto onde 0 mundo colonial se distinguia,se opunha e negava 0 mundo metropolitano. Ela so tinha existenciacomo meio inevitavel para criar-se uma riqueza ou urn butim que naose encontrava pronto e acabado em estado natural. Como conexao docapitalismo comercial, ela era urn investimento de capital mercantil- investimento alias, que nao se dava apenas na escravaria - e, porvezes, de magnitude consideravel. Entretanto, esse capital nunca per-deu 0 seu carater estritamente mercantil e, ao mesmo tempo, fechadosobre si mesmo, 0 que somente poderia acontecer pela supressao daescravidao e pelo desaparecimento da exclusao que 0 estatuto colonialimpunha sobre a produr;ao escravista".29

A presenc;a destacada do capital comercial na epoca do Mer-cantilismo - capital este que se acumula, de uma forma niio capi-

(28) Hirano, Sedi, op. dr., ver capitulos I e II ("Castas como uma das modalidades deforma9Aosocial pre-capitalista" e "Estamentos: do feudalismo a Monarquia Absoluta"), pp.16-66.

(29) Fernandes, Florestan (1976), Circuito fechado, Hucitec, SAoPaulo, pp. 14, 17 e 20,Cap. I: "A sociedade escravista no Brasil", pp. 1\-63.

talista na esfera da circulac;iio, por intermedio da violencia e da coa-C;iiopolitica e, por isso, acumulac;iio origin aria - acaba se impondono pensamento de muitos alitores como sendo capitalismo comer-cial. Ademais, se 0 escravo e assimilado ao capital fixo, como ja foivisto anteriormente, como instrumento de prodUl;ii.o, portanto meiode prodUl;ii.o, ele niio e uma modalidade de capital varia vel : niio seconstitui em trabalhador livre. E com a existencia do trabalhadorlivre e aSlialariado que se configuram tanto a subsunc;iio formal (oureal) do trabalho ao capital, quanta a produc;iio da mais-valia (nasmodalidades absoluta e relativa). Mais ainda:

"I. A produr;ao capitalista e que, pela primeira vez, converte a mer-cadoria em forma geral de todos os produ tos".

"2. A produr;ao de mercadorias conduz, necessariamente, Ii pro-dur;ao capitalista, tao logo 0 operario deixe de ser parte das con-diroes de produriio (escravidiio, servidiio) au a comunidade primitiva(India) deixe de ser a base. Desde a momento em que a propria /orr;:ade trabalho se converteu de modo geral em mercadoria".

"3. A produr;ao capitalista suprime a base da produr;ao de mer-cadorias, a produr;ao isolada e independente, e a troca de possuidoresde mercadorias ou a troca de equivalentes. A troca entre 0 capital e aforr;a de trabalho torna-se formal". 30

Na produc;iio capitalista, a troca entre 0 capital e a forc;a detrabalho torna-se inicialmente formal: ela se realiza entre possui-dores de mercadorias, reduzindo-se a uma relac;iio entre possuidoresdas "condic;6es de trabalho" e "possuidores de forc;a de trabalho"(capacidade de traba-Iho). "0 escravo deixa de ser instrumento deproduc;iio pertencente ao empregador"; 0 "escravista de outrora"passa a empregar "seus ex-escravos como assalariados". 0 escravodeixa de ser parte das "condic;6es de produc;iio", tornando-se de es-cravo e servo da gleba em trahalhador.livre e assalariado. A relac;iiodominante e simplesmente entre "possuidor de capital" e "vendedorde trabalho": 0 escravo niio entra nesta relac;iio, posta que niio seapresenta como vendedor de trabalho "dotado de consciencia e von-tade". Ja, na circulac;iio simples, a relac;iio e entre possuidor de capi-tal e mercador de escravos. 0 escravo niio entra na relar;ii.opura-mente monetaria como agente dotado de vontade, falta-Ihe a condi-

Page 15: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

~ao de trabalhador livre. Para Marx, no processo de produ~ao capi-talista, 0 processo de trabalho "converte-se em instrumento do pro-cesso de valoriza~ao, do processo de autovaloriza~ao do capitalda fabrica~ao de mais-valia:

"0 processo de trabalho e subsumido ao capital (e seu proprio pro-cesso), e 0 capitalista se enquadra nele como dirigente, condutor;para este, e ao mesmo tempo, de imediato, urn processo de explo-ra~ao de trabalho alheio. E isso a que denomino subsunr,;iio formal dotrabalho ao capital. E a forma geral de todo processo capitalista deprodu~ao; mas e ao mesmo tempo uma forma particular, a par domodo de produr,;iio especificamente capitalista, desenvolvido, ja que aultima inclui a primeira, mas a primeira nao inclui necessariamente asegunda".31

Marx denomina de subsum;:iio formal do trabalho ao capital"il forma que se funda no sobrevalor absoluto (mais-valia absoluta),posta que, so se diferencia formalmente dos modos de produ~aoanteriores, sobre cuja base surge (ou e introduzida) diretamente ... ".Por conseguinte, a produ~ao da mais-valia absoluta ja apresenta a"forma geral de todo processo capitalista de produ~ao". A rela~aocoercitiva na extra~ao do excedente, produzido na forma de mais-valia absoluta, nasce de rela~6es puramente economic as e nao poli-ticas:

"A rela~ao capitalista, como relar,;iio coercitiva com 0 fim de extrairtrabalho excedente mediante 0 prolongamento da jornada de tra-balho - relar,;iiocoercitiva que niio se baseia em relar,;6espessoais dedominar,;iio e dependincia. mas que nasce simplesmente de diferentesfunr,;oes economicas - e comum a ambas modalidades; mas 0 modode produ~ao especificamente capitalista conhece, entretanto, outrasmaneiras de explorar a mais-valia. Ao contrario, a base de urn modode trabalho preexistente, ou seja de determinado desenvolvimento dafor~a produtiva de trabalho e da modalidade de trabalho correspon-dente a essa for~a produtiva, so se pode produzir mais valia atraves doprolongamento do tempo de trabalho, isto e, sob a forma de mais-valia absoluta. A essa modalidade, como forma unica de produ~ao de

mais-valia, corresponde, pois a subsunr,;iio formal do trabalho ao ca-pital".32

No nosso entendimento, 0 escravismo nao e "urn sistema deprodu~ao de mais-valia absoluta", seja ela extraida pelo prolonga-mento da jornada de trabalho devido ao controle coercitivo, seja elaresultante do "trabalho combinado", realizado atraves do "controlecoercitivo da violencia" visando uma disciplina que the seja neces-saria.33

A tese do nao-capitalismo na forma~ao economico-social bra-sileira do periodo colonial, entre os seculos XVI e XVIII, comportaduas variantes: uma tese do feudalismo e a outra do nao-feudalismonem capitalismo, constituindo tal forma~ao uma nova modalidadede produ~ao social baseada na mao-de-obra escrava e voltada para 0

mercado mundial. A variante do feudalismo e compartilhada porduas correntes historico-sociologicas, sendo a primeira aquela dahistoriografia c1assica e tradicional - Varnhagen, Capistrano deAbreu, H. Handelmann, Rodolfo Garcia, Oliveira Viana, NestorDuarte e, implicitamente, Roberto Southey e Pandia Calogeras:

"As concessoes outorgadas pelas cartas de doa~ao, passadas quasepor igual teor, sac mais latas do que se devia esperar em uma epocaem que na Europa os reis tratavam de concentrar cada dia mais a au-toridade, fazendo prevalecer 0 direito real dos imperadores, com detri-mento dos antigos senhores, ou de certas corpora~oes privilegiadas,

(32) Marx, Karl (1978), id., p. 53.(33) Entre as interpreta~Oes possiveis de Marx de que 0 escravismo enquanto "sistema de

produ~lI.o" produz mais-valia absoluta, ver: Ianni, O. (1978), Escravismo e racismo, pp. 38 esegs.: "Para explicar 0 carater repressivo e violento das rela~Oesescravistas de produ~lI.oe neces·sario compreender que 0 escravismo e urn sistema de produ~lI.ode mais-valia absoluta, sistemaesse no qual a mercadoria aparece imediata e explicitamente como produto da for~a de trabalhoalienada" (p. 38). Tambem Fernandes, F. (1976), Circuitofechado, pp. 20e segs.: "0 elementoespecifico (da forma~lI.oda mais-valia absoluta da produ~lI.oescravista) consiste no trabalho com-binado, que sem criar exigencias de interven~lI.ono nivel tecnico permitia aumentar a produti-vidade" (p. 20).

Page 16: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

mas a beneficio geral do povo. Os meios feu dais tinham sido, po-rem, os mais proficuos para colonizar os paises quase ermos degente ...••. 34

"Os fora is asseguravam aos solarengos: sesmarias com a impo-si9ao (mica do dizimo pago ao mestrado de Cristo; permissao de ex-plorar minas, salvo 0 quinto real; aproveitamento do pau-brasil. .. ;liberdade de exporta9ao para 0 Reino, exceto de escravos, limitados anumero certo, ... ; direitos diferenciais que os protegeriam da concor-rencia, estrangeira; entrada livre de mantimentos, armas, artilharia;( ...)" .

"Nas terras dos donatarios nao poderiam entrar em tempo algumcorregedor, al9ada ou outras algumas justi9as reais para exercer juris-di9ao, nem have ria direitos de sisa, nem imposi90es, nem saboarias,nem imposto de sal".

"Em suma, convicto da necessidade desta organizQI;iio feudal D.Joao III tratou menos de acautelar sua propria autoridade que de ar-mar os donatarios com poderes bastantes para arrostarem usurpa90espossiveis dos solarengos vindouros, analogas as ocorridas na historiaportuguesa da media idade". 35

Brasil, para si e para a sua descendencia, e apresentou a seguinteproposta:

"Este repartiria, COJllO antes aquelas ilhas, 0 continente sul-ameri-cano entre donatarios hereditarios, os quais entao, por suas propriasmaos e a propria custa, deveriam coloniza-lo; ele mesmo estava pron-to a tomar um desses feudos e para isso poderia angariar colonos".

"( ... ): 0 continente brasileiro seria repartido entre senhores feu-dais hereditarios, donatarios, os quais deveriam pres tar vassalagem acoroa portuguesa pelas terras concedidas, assim como coloniza-lasa sua propria custa". 38

Em outras palavras, tratava-se de urn sistema "indireto de po-voar e administrar territ6rios" quase desabitados, dando aos dona-tarios "poderes quase soberanos, vassalos regios, e pagando ao mo-narca parte das taxas e dos reditos colhidos ... ".39 Como afirmamVarnhagen e Rodolfo Garcia, os donatarios tinham poderes e direi-tos majestaticos e em face a isso "podemos dizer, segundo Viscondede Port0 Seguro, que Portugal reconhecia a independencia do Bra-sil antes dele se colonizar". 40 Este conjunto de direitos, que osd;natarios dispunham, conferia-lhes a "imunidade feudal":

"Os donatarios e os povos das capitanias continuariam, assim, a aju·dar a nascer e a crescer uma sociedade entregue principalmente aoselos e aos interesses da rela9ao territorial da propriedade, com todosos estilos proprios e 0 sentimento e a mentalidade desse tipo de orga-niza9ao feudalizante.

o solo do pais e conquistado, ocupado e povoado peloproprietarioprivado.

Donatarios, donos de sesmarias, senhores de engenhos e de fa-zenda e de currais, embora so os primeiros detivessem, por outorgalegitima, ajurisdi9ao civil e a governan9a, continuaram a desenvolverlonge e indiferentes, ou refratarios a urn poder de Estado tao distante,a indole feudal ou feudalizante da sociedade". 41

Estas terras eram concedidas, conforme Capistrano de Abreu,aos donatarios provindos da "pequena nobreza", acostumados notrato das conquistas ultramarinas portuguesas, cedendo alguns di-reitos reais, "levado pelo desejo de dar vigor ao regime ( ... ) organi-zado ... ".36 Os donatarios tinham jurisdir;:iio civil e criminal tiioampla, "que de/ato se tornava ilimitada ", e "parte deles eram fidal-gos que tin ham servido na India". 37 Handelmann, num trabalhopublicado na Alemanha, em 1860, afirma que 0 navegador portu-gues Crist6vao Jacques "Houvera ( ... ) estado nas Ilhas da Madeira eAl;ores, e conhecera muitas familias ricas e distintas, cujos avoengoshaviam iniciado, com parcos recursos, a colonizal;ao dessas ilhas,como /eudatarios da coroa. Imaginou poder esperar 0 mesmo do

(38) Handelmann. Gottfried Heinrich (1982), Hist6ria do Brasil. Sao Paulo, EOUSP; BeloHorizonte. Itatiaia. Torno I. VerCap. 11:"Os principados feudais portugueses", pp. 89-117 (Clt.:

pp.90-6). .(39) Calogeras, Pandiil (1945), Formafiio hist6rica do Brasil. 4~ ed., Sao Paulo, NaclOnal.

p. 11. .(40) Varnhagen, F. A. (1981), op. cit .• p. 152 e Garcia, Rodolfo (1956), EnsalO sobre a

hist6ria politica e administrativa do Brasil (1500-1810). Rio de Janeiro, Jose Olympio, pp. 43 e 55.(41) 0llarte, Nestor( 1966), A ordem privada e a organizafiio politica nacional, 2~ed., Sao

Paulo, Nacional, pp. 24 epassim.

(34) Varnhagem, F. A. (1981), Hist6ria geral do Brasil, Belo Horizonte, Itatiaia. Vide v.I, Torno I, pp. 150-64(cit. p. 150).

(35) Abreu, Capistrano de (1982), Capitulos da hist6ria colonial e os caminhos antigos e 0

povoamento do Brasil. Brasilia, UnB., pp. 67-72 (cit. pp. 68-9).(36) Abreu, Capistrano de (1982), op. cit., pp. 67-8.(37) Southey, Robert (1981), Hist6ria do Brasil, Sao Paulo, EOUSP; Belo Horizonte, Ita-

tiaia, pp. 64 epassim.

Page 17: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

As coloca<;oes de Nestor Duarte remetem a quesHio da domi-na<;ao a esfera privada da propriedade, dentro da qual 0 espa<;o doexercicio do poder politico se realiza plenamente, garantido pel acapitania regiamente concedida, sem a intermedia<;ao de nenhumoutro poder a nao ser 0 poder real alocado a distancia e, portanto,ausente concretamente, em bora formalmente presente. Esta condi-<;ao cria todos os elementos que articulam e estruturam 0 poderpessoal, de exercicio arbitnlrio. Neste espa<;o de poder pessoal, 0

corregedor de El-Rei somente urn seculo depois adquiriu 0 direito deentrada:

"56 urn seculo depois, em 1628 e em 1654, veem-se disposic;oes de EI-Rei mandando que em ditas terras entrassem corregedor ou alc;ada aservic;o da Coroa, mas que nao se sup rime a jurisdic;ao criminal dodonatario. ( ... )."

"Para 0 sentido moral de classe e orgulho de casta junta-se a taisrequisitos a condic;ao de nobreza que des de Portugal os donatariosportavam e traziam entre aqueles direitos senhoriais e politicos queaqui comec;aram a eric;ar de imponencia roqueira a casa fortificadacontra 0 indio e 0 flibusteiro. 0 donatario da Bahia e urn descendentede Marialva que os tupinambas comeram". 42

A condi<;ao feudal dos donatarios nao advem, apenas e tao-somente, das "concessoes perpetuas de privilegios", e, nao s6, dasoberania adscrita a propriedade hereditaria, mas da pr6pria condi-<;ao social. 0 aces so a propriedade era alimentado politicamente,beneficiando preferencialmente os servidores de EI-Rei, por rele-vantes servi<;os prestados a Coroa nas lides militares do alem-mar,especialmente nas Indias. Eles se enobreciam como chefes militarese com andantes de empresas reais, destinadas a ampliar as fronteirasterritoriais e maritimas portuguesas. Estes servidores reais ja eramsenhores de sesmarias em Portugal, e se enobreciam conquistandohonrarias sociais e titulos nobiliarquicos.43 U ns se transformaramem senhores de engenhos e outros em bandeirantes, outros mais em

(42) Duarte, Nestor (1966). op. cit .• p. 21.(43) Boxer, Charles Ralph (1973). Salvador' de Sa e a luta pelo Brasil e Angola (1602-

1686>. Sao Paulo, Nacional (c!. os Caps. I: "0 casamento com espanh6is" ell: "A expedi~ao dosvassalos", pp. 17-82). Ver tambem Fernandes. Florestan (1976), op. cit., p. 43.

estancieiros e mineradores, nobres ou nao; eles foram socializadosem Portugal nas institui<;oes feudo-estamentais, que vigiam em todaa Europa nos idos dos seculos XV, XVI e ate mesmo XVII. 44 Osbeneficios materiais garantidos por estas institui<;oes feudo-esta-mentais aprofundavam as diferen<;as sociais formalmente reconhe-cidas pelo direito consuetudinario; favorecendo as pessoas em ter-mos pessoais, os beneficios traduziam-se em privilegios pessoais,advindos dos feitos e das realiza<;oes privadas e nunca em term oscoletivos. Os privilegios e as honrarias eram apropriados pessoal-mente, eo dominio resultante, exercido pessoalmente. A esfera pri-vada, os interesses pessoais e, portanto, particulares, recobriam aesfera publica, formalmente presente, mas, na pratica, ausente docotidiano. Disto resultava estar 0 espa<;o para 0 exercicio da praticacoletiva recoberto por manto de ferro, que atuava como camisa defor<;a.

Esta caracteriza<;ao da coloniza<;ao, em que ressalta 0 arbitriopessoal, na forma de jurisdi<;ao civel e criminal dos donatarios, eratao ampla, de imensidao de tal ordem, que, de fato, no entender deSouthey, se tornava sem limites. Esta afirma<;ao de Southey foi feitaentre os anos 1810 e 1819. E Handelmann em sua Historia do Brasil(publicada em 1860) fala em "principados feu dais portugueses",denominando aos donatarios "senhores feudais hereditarios", queprestariam "vassalagem" a coroa portuguesa pel as terras recebidaspara serem colonizadas. Vale notar que estas palavras foram escri-tas por Handelmann na Prussia, considerada feudal, onde eleviveu: ali vigiam, em sua plenitude, varias institui<;oes feudo-esta-mentais, pois a servidao s6 foi abolida entre os anos 1807 a 1808 e,mesmo abolida, as "obriga<;oes senhoriais persistiram" por muitotempo, "0 controle da nobreza sobre 0 campo estava sendo efetiva-mente aumentado" (isto em meados do seculo XIX), observa<;oesconfirmadas por Perry Anderson, 45 para quem a natureza do Estadoprussiano era essencialmente feudal. Convem destacar que Handel-mann fora graduado pel a Universidade de Kiel, havia se tornadoprofessor e diretor de museus, era doutor em Filosofia e docente de

(44) Anderson, Perry (1985), Linhagens do Estado Absolutista, Sao Paulo, Brasiliense (c!.Cap. referente ao "Estado Absolutista no Ocidente/Classe e Estado e Espanha", pp. 15-83: osEstados Absolutistas da Europa dos seculos xv ao XVIII sao tidos como feudais).

(45) Anderson, Perry (1985), op. cit., ver pp. 221-78: "Nobreza e monarquia: a varianteoriental" e "Prussia".

Page 18: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

Hist6ria, vivendo numa Prussia essencialmente feudal. Com estaformal;aO e enquadrado no modo de pensar erudito da epoca, Han-delmann afirma:

que se empregam sac: poder e autoridade real, direito real dos impe-radores em "detrimento de antigos senhores" e de "certas corpora-{:oes?rivilegia~as" ~~ "benef~cio geral do povo", cartas de doa{:oes,forals, sesm~n.as, dlzlmo, q~l~to, feudos, don atarios , vassalagem,po~er~s ~ ~lr=lto~ ~os d~n~tarlOs, vassalos regios, imunidades feu-d~IS,]UrlSdl{:ao cIvil e cnmmal, enfiteuse, corregedores reais, condi-{:aode nobreza, direitos senhoriais e pof[ticos, etc. Faoro, apesar denegar a tese do feudalismo brasileiro, reconhece que a descril;ao deA~t?nil, a respeito do senhor de engenho, tern por "modelo", semd~vlda nenh~ma, "a organiza{:iio feudal, com base nas dependen-czas da terra .48 Se urn pensador religioso, da Companhia de Jesuschegando ao Brasil colonial em 1681, descreve, no seu Cultura ~Opulencia do Brasil, publicado em 1711, a condil;ao de "ser senhorde engenho" tendo por modelo a organiza{:iio feudal, esta existe,pelo menos, ~omo parte do "imaginario". A organizal;aO feudal,como ~~,conJunt.o que se articula e se ordena, existe como "repre-sental;ao , ou seJa, modos de agir e pensar, cultural mente rele-vantes:

"( ... ) eslabelecia-se, em resumo, 0 direitofeudal da [dade Media emsolo brasileiro, sob uma forma abrandada" . 46

A partir do "plano primitivo" de colonizal;aO, que se iniciouentre os anos de 1532-33, quando 0 Brasil foi dividido em "quinzeprincipados feudais quase independentes", urn seculo depois "exis-tiam quinze capitanias, porem, oito pertenciam a coroa e sobre assete feudais tinha ela, no minimo, 0 direito de alta justil;a, de ins-pel;aO administrativa e de protel;aO". Ao que Handelmann, em se-guida, acrescenta:

"0 imperio colonial brasileiro dividia-se nao somente em dois gran-des Estados, 0 Brasil propriamente dito, com doze capitanias, e 0

Maranhao, com tres, cada urn dos quais possuia urn governo com ple-tamente distinto e era somente sujeito ao governo da mae-patria; mastambem cada uma das suas subdivisoes, as capitanias feu dais, comoas reais, tinha uma administra<;ao sua, em quase todos os pontosautonoma.

Por esse modo, 0 desenvolvimento hist6rico, em bora com modifi-ca<;oes importantes, conservou 0 mesmo rumo que havia tornadodesde 0 principio, a caminho da monarquia federativa". 47

"?~scobe~to AO o~ro cuiaba?o, fundado e mantido - verdadeiro pro-dlglO de dlspendlo de energla, coragem, tenacidade e espirito de sacri-ficio - 0 arraial e a Vila Real do Senhor Born Jesus do Cuiaba, co-me<;a realmente a surgir a literatura mon<;oeira, sob a forma das nar-rativas dessas espantosas viagens em que - "Senhor! apostrofava urnde tais viandantes ao Rei Dom Jose I, os vassalos da conquista daAmerica, em nada ficam a dever aos da conquista do orien te". 49

Analisando as interpretal;oes dos autores oitocentistas, ob-serva-se que 0 foco narrativo para justificar a existencia do feuda-lismo ocorre dentro dos limites da esfera jurfdico-pof[tica. Os term os

o autor de Os Donos do Poder afirma que "nao havia nosistema brasileiro, nem feu do nem vinculo de vassalagem, tritur~dosambos pela economia mercantil, derretidos pelo al;ucar". No en-tanto, urn viandante monl;oeiro apostrofava, solicitando como vas-salo da conquista da America, 0 mesmo tratamento que se dispen-sava aos vassalos da conquista do Oriente. Nesse sentido, 0 senhoriodo Rei Dom Jose I nao se reduz a "uma figura de ret6rica" nem euma ficl;ao. A represental;aO de vassalo existia nas formas de pensa-

(461 Handelmann, H. (1982), op. cit., V. I, p. 98: "0 feudatario, ou como era designadopelo titulo olicial - •capitao e governador' - podia legar a sua capitania, nao so il.descendenciamasculina em linha reta, como tambem il.linha feminina, aos parentes colaterais e bastardos; e,no caso de perder 0 seu feudo, segundo as leis do pais. passava ele, automaticamente, ao maisproximo herdeiro, e somente em caso de alta trai9ao se reservava il.coroa 0 direito de confisco",dai resultando urn direito feudal sob forma abrandada.

(47) Handelmann, H. (1985), op. cit., pp. 164 e 165. Ele relata que 0 Rei Filipe IV daEspanha conferiu "ao portugues Bento Maciel, em recompensa por servi90s que ele havia pres-tado quando govemador do Para e em combate contra os indios, urn extenso feudo hereditario noCabo Norte (14 dejunho de 1634), 0 qual foi depois anexado il.capitania do Para" (p. 165).

(48) Faoro, R. (1977), op. cit., p. 130.(49) Taunay, Afonso de E. (1981), Relatos moncoeiros, Sao Paulo, EDUSP; Belo Hori-

zonte: ltalJala, pp. 27-8.

Page 19: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

mento da epoca setecentista (entre 1750 e 1777).50 Num outro docu-mento setecentista sobre "Noticias dos primeiros descobridores dasprimeiras minas de aura pertencentes a Estas Minas Gerais - Pes-soas mais assinaladas nestas empresas e dos mais memor{lVeis casosacontecidos des dos seus principios", temos 0 seguinte relato:

e gasto e teriam vida espiritual, conhecendo a seu Criador, e vassa-lagem a S. A., e obediencia aos cristilos, e todos viveriam melhor eabastados, e S. A. teria grossas rendas nestas terras" (Carta de No-brega para Miguel de Torres, de 8 de maio de 1558).

"Primeiramente, 0 gentio se deve sujeitar e faze-lo viver comocriaturas que silo racionais, fazendo-lhe guardar a lei natural ... Aprova disso e que estes da Baia sendo bem tratados e doutrinados comisso se fizeram piores, venda que se nilo castigavam os maus e cul-pados nas mortes passadas, e com severidade e castigo se humilham esujeitam ... Este gentio e de qualidade que nilo se quer por bern, senilopor temor e sujei~ilo, como se tern experimentado. E por isso, se S. A.os quer ver todos convertidos, mande-os sujeitar; e deve fazer es-tender os cristilos pela terra dentro e repartir-lhes 0 servii;o dos Indiosiiqueles que os ajudarem a conquistar e senhorear, como se/ez noutraspartes de terras novas ... Sujeitando-se 0 gentio, cessariio muitas ma-neiras de haver escravos mal havidos e muitos escrupulos, porqueterilo os homens escravos leg/timos, tomados em guerra justa, e teriloservii;o e vassalagem dos indios, e a terra se povoara, e Nosso Senhorganhara muitas almas, S. A. tera muita renda nesta terra, porquehavera muitas cria~i'ies e muitos engenhos, ja que nilo haja muitoDuro e prata" (Carta de Nobrega para Tome de Souza, de 5 de julhode 1559). 52

"Conhecendo os parentes e amig05 de Manuel de Borba Gato a boanatureza, prudencia e afabilidade, e carinhoso trato de Artur de Sa.se animaram a conversa-lo no sucesso da morte de D. Rodrigo. e aexpor-lhe 0 penoso desterro para os sert6es de urn vassalo born ser-vidor d'EI Rei, como era Manuel de Borba Gato, nilo sendo total-mente culpado na morte de D. Rodrigo pel as circunstancias do seuacon tecimen to".

• Este relato da a Manuel de Borba Gato 0 tratamento de fi-dalgo e diz que, como vassalo, fizera ele descobrimento de minas deouro, razao pel a qual solicitava perdao: "confirmou Sua Magestadeo perdao, e lhe fez mais merce da patente de Tenente General deuma das praryas marftimas, que primeiro vagasse, segundo as lem-bran~as". 51 Era comum, ao menos nos primeiros seculos da coloni-za~ao, considerarem-se os representantes da Coroa e donatarios, ca-pitaes e governadores, bandeirantes e sertanistas, vassalos de EI- Reide Portugal. 0 termo vassalagem era tao usual quanta vassalo. E eleutilizado por Manuel da N6brega nas Cartas do Brasil, onde se des-tacam as seguintes passagens:

. Nestas duas cartas de N6brega, de 1558-1559, apresenta-se aconcep~ao da necessidade e legitimidade do uso da for~a, comounico elemento capaz de produzir obediencia e submissao as autori-dades constituidas. Trata-se, por conseguinte, de concep~ao de poli-tica, portanto, de poder e de Estado. N6brega apela ao Rei e aopreposto governador geral reclamando da necessidade do usa legi-timo e justo da violencia, para que a vassalagem se realizasse plena-mente, tal como existia na Idade Media europeia. Nesta concep~ao,a esfera juridico-politica determina a esfera economica.

"( Os colonos) nilo ousam de se estender e espalhar pel a terra parafazerem fazendas, mas vivem nas fortalezas como fronteiros de mou-ros ou turcos, e nilo ousam de povoar e aproveitar senilo as praias, enao ousam fazer suas fazendas, cria~6es, e viver pel a terra adentro,que e larga e boa, em que poderiam viver abastadamente, se 0 gentiofosse senhoreado ou despejado, como poderia ser com pouco trabalho

(SO) Faoro, R. (1977). op. cit .• p. 131 (a frase "uma figura de ret6rica" e de Caio PradoJunior. Evolu~iiopolltica do Brasil e outros estudos. citado por Faoro). Sobre 0 reinado de D. Jose[. ver Sergio, Antonio (1972), Breve interpreta~iio da Hist6ria de Portugal, Lisboa, Sa da Costa.p.118.

(SI) Taunay, Afonso de E. (1981), Relatos sertanistas, SlI.oPaulo, EDUSP; Belo Hori-zonte; Itatiaia, pp. 55·7; na p. 71: "0 Sr. governador ... disse aos cabos que todos eram vassalosde El-Rei de Portugal ... ".

(52) Dias. J. S. Silva (1982), as descobrimentos e 0 problema cultural do seculo XVI,Lisboa. Presen9a. pp. 251-2. (Vide: "Conversll.oe sujei9l1.odo indio", pp. 248-55.) "De acordocoma teoria da guerra justa, a fonte radical e ultima do poder politico nll.o e a natureza (direitonatural). mas a [greja. por concessll.oou confirma9l1.o"(p. 173. "0 Direito Natural - Novos ho-rizontes").

Page 20: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

"A plantagem escravista colonial e uma organiza~ao economica vol-tada para 0 mercado. Sua fun~ao primordial nao consiste em prover 0

consumo imediato dos produtores, mas abastecer 0 mercado mun-dial. Este e que a traz a vida e Ihe da a razao de existencia. Baseadono trabalho escravo, 0 modo de produ~ao, que com ela se organiza,nao oferece a plantagem urn mercado interno de dimensoes compa-nveis com sua produ~ao especializada em grande escala". 53

Na tese variante de nem feudalismo nem capitalismo, temosainda as exaustivas e eruditas reflexoes de Jacob Gorender, em 0Escravismo Colonial. Segundo Gorender, a formac;ao colonial brasi-leira nao se explica com 0 conceito de "modo de produc;ao feudaldominante no Portugal da epoca", nem por intermedio da ideia depreservac;ao do "modo de produc;ao" dos povos conquistados, nemsequer resulta da sintese entre eles. Gorender adere ao entendimentode que se tratou de urn novo modo de produc;ao:

A plantation, sendo urn modo de produ{:iio historicamentenovo, e produto de urn processo instaurado numa dada formac;aosocial. Ela nao e gerada por si mesma: 0 novo nao gera 0 novo. Ela eresultado de urn conjunto de elementos preexistentes, que, na suaarticulac;ao e combinac;ao, produz urn novo modo de produc;ao.Preexiste urn conjunto de elementos que, na fase inicial, nao lhepertencem. Cabe sublinhar que, enquanto modo de produC;ao, re-quer uma acumulac;ao de capital-dinheiro, que possibilite a apro-priac;ao dos meios de produc;ao. E fundamental que haja uma acu-mulac;ao previa, acumulac;ao que seja suficiente para adquirir 0 es-cravo, 0 instrumento de trabalho. Ha, portanto, uma esfera da cir-culac;ao que determina a plantation, que "a traz a vida e the darazao e existencia". Em outras palavras, a plantation e urn produtodo processo de circulac;ao comercial pre-capitalista, mas nao visandonecessariamente uma acumulaC;ao ~riginaria de capital em sentidoestrito. Vejamos 0 que diz Gorender:

"Com efeito, ocorreu na America do Sui, mais exatamente no Brasil,a criaryiio de urn novo modo de produ~ao, cujo reconhecimento, sepens ado em suas profundas implica~oes, corrobora as modern as Ii-nhas de pesquisa e de generaliza~iio sistematica do materialismo his-torico."

"b tentador equiparar 0 escravismo colonial ao capitalismo e istonos conduz a urn beco sem saida".

A economia de plantation (Gorender prefere dizer "planta-gem") foi, para ele, "a forma de organizac;ao dominante no escra-vismo colonial":

"Dela 0 trabalho escnivo irradiou a outros setores da produ~ao e sedifundiu na generalidade da vida social. As unidades produtoras nao-plantacionistas se modelaram conforme a plantagem e todas as for-mas economicas, inclusive as nao-escravistas, giraram em torno daeconomia de plantagem. Juntamente com a escravidao, a plantagemconstituiu categoria fundamental do modo de produ~ao escravistacolonial".

"Uma vez que nos desprendamos da concep~ao teleologica de que acoloniza~iio foi montada com 0 fim ou "sentido" de propiciar a acu-mula~ao originaria de capital e gerar 0 capitalismo na Europa, pode-remos analisar 0 processo na sua objetividade, sem cair em contra-di~oes formais (sic). 0 regime de circula~ao mercantil baseado nopr~o de monopolio era 0 unico que convinha, do ponto de vista estru-tural (sic), simultaneamente ao modo de produ~ao escravista coloniale ao capital mercantil pre-capitalista da Europa. 0 escravismo co-lonial sobreviveu ao mercantilismo, mas isto so foi possivel tambemporque 0 regime de circula~ao do seu comercio exterior permaneceuna essencia inalterado".54

A estas determinac;oes gerais e, portanto, extremamente abs-tratas, da plantation, enquanto modalidade economic a dominanteno escravismo colonial, atribui-se uma tal dimensao e uma tal poten-cialidade, que as torn am elementos constitutivos de urn modo deproduc;ao, 0 escravista colonial. 0 modo de produC;ao escravista co-lonial e a plantagem, isto e, 0 conceito de plantagem dispensa 0 demodo de produc;ao. Como diz Gorender:

Page 21: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

Ao desprender-se da concepc;ao de que a colonizac;ao foramontada para possit-ilitar a acumulac;ao originaria, 0 autor de 0 Es-cravismo Colonial nao exclui aquela da circulac;ao mercantil nemconsidera a produc;ao resultante, a plantation, enquanto organiza-c;ao dominante no escravismo colonial, desvinculada do mercadomundial. Logo, a colonizac;ao, enquanto plantation, tinha comoforc;a motriz - forc;a acionada pel a correia da circulac;ao mercantil- 0 mercado mundial, que realimentava constantemente 0 processode produc;ao e reproduc;ao do escravismo colonial moderno. Estaacumulac;ao e pre-capitalista, nao originaria. Porem, cabe aqui, jus-tamente, indagar: a primeira nao sera uma forma hipostasiada dasegunda? Quanto a natureza formal e substantiva desta produc;ao,consideramo-Ia pre-capitalista. Sera ou nao feudal? Gorender reco-nhece que prevalecia em Portugal 0 "modo de produc;ao feudal" eque, na formac;ao social, vigiam os direitos feudais. Em termos deEstado, Portugal era uma monarquia absoluta fortemente centrali-zada. Realizada a colonizac;ao dentro deste quadro economico e juri-dico-politico, teria a formac;ao colonial brasileira se consolidado Icomo feudal? A resposta de Gorender e que a produc;ao escravistacolonial moderna nao produziu 0 senhor feudal, mas produziu 0

senhor de escravos, uma nova categoria social, diferente, isto e, nemfeudal nem capitalista. Para Gorender, 0 donatario era uma especiede "socio menor da Coroa", cabendo a ele "modesto quinhao da re-ceita fiscal". Se, formalmente, a estrutura juridico-politica e feudal- as donatarias, as sesmarias e as cartas de doac;ao e dos foraisassumem as caracteristicas formuladas pelo direito feudal, como dizGorender. -, qual 0 problema em admitir que esses estatutos juri-dicos se realizam de uma forma singular no Brasil colonial, meta-morfoseando 0 donatario feudal e 0 proprietario de escravos em se-nhores de engenho e 0 engenho em seu domfnio, locus onde se exer-cern poderes majestaticos e ilimitados? (d. Varnhagem: 1857 eSouthey: 1810-1819).

Esta apreciac;ao, apologhica ou nao, quanta a amplitude dopoder do donatario, por exemplo, em alguma medida extensiva aossenhores de engenho, provem da analise de documentos, tais como aCarta de Doac;ao e Forais. Todavia, nao cabe restringi-Ia ou desqua-lifica-Ia pelo tom apologetico, contrapondo-Ihe argumentos estrita-mente economicos. 0 que menos importa e 0 montante da rendaauferida por donatarios e senhores de engenho. A pouquidade do

provento ou a abundancia de recursos de uns em relac;ao a outros naoaltera a amplitude do poder dos donatarios e seus prepostos. A ma-jestade do poder nao depende necessariamente da renda auferidapelos seus detentores: pensar deste modo seria cometer urn reducio-nismo economicista.55 A plantation como urn "modo de produc;aohi~toricamente produzido" nao pode ser gerada por si mesma: 0

novo e produzido. Para produzi-Io, ha necessidade de acumulac;aode capital-dinheiro, alem de uma organizac;ao determinada paraadministrar a aquisic;ao dos meios de produc;ao e da mao-de-obraescrava. Os proprietarios de recursos monetarios, nos prim6rdios dacolonizac;ao, eram portugueses, alguns deles abastecidos pelos mer-cadores holandeses, banqueiros italianos, mercadores ingleses, etc.,ou a eles associados.56 Estes portugueses, portadores de recursos fi-nanceiros, pertenciam ao estamento comercial, e a nobreza de va-riada procedencia, e se vinculavam as instituic;6es feudais prevale-centes em Portugal. Estes colonizadores sao produtos destas institui-c;6es, nelas socializados. Na plantation e nas economias subsidia-rias, de subsistencia ou nao, os proprietarios de escravos agiam emconformidade com a "estrutura mental", ou seja, com a mentali-dade predominante da epoca, com a cabec;a e 0 cerebro da epoca;em suma, com os seus valores e representac;6es culturais. Urn histo-riador especialista em hist6ria da cultura observava que:

"S6 aos povoadores de engenho e dada carta branca mercantil; e, aomesmo tempo que se disciplina (sem 0 suprimir) 0 trafico escrava-gista, fomentam-se as actividades missionarias e os aldeamentos con-versos" .

••... os cristaos nao VaGas aldeias dos gentios a tratar com eles,salvo os senhorios e gente de engenhos ... Pel a terra firme adentro,nao podera ir a tratar pessoa alguma sem licen~a".

"0 regime de capitanias, instaurado em 1532, saldou-se na pra-tica por uma sequencia de actividades de guerra e pirataria contra osindios do Brasil. Foi equivalente, na America portuguesa, do que 0

'repartimiento', com a respectiva 'encomienda', fora na America es-panhola. A sua praxe era a dos 'conquistadores', e foi contra e.la quese procurou reagir com 0 regimento. Nao se baniram do nosso sls.t~made governo ultramarino, com este diploma, nem os processos behcos

(55) Carender, J. (1978), op. cit .• pp. 364 epassim.(56) [d., ibid .. pp. 489 epassim.

Page 22: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

de 'pacificar;:iio' politica, nem 0 assalto, dominio ou cativeiro dos in-dios pelos cristaos. Condicionaram-se, porem, distinguindo a guerraou violencia justa, da guerra ou violencia injusta".

"(. .. ) Os seus preceitos reflectem a impossibilidade de ter em su-jeil;:aomilitar 0 vasto espar;:odo Brasil, garantindo 0 dominio lusitanocontra a rebeldia do indigena e a amear;:a dos intrusos europeus. Enao reflectem menos 0 anseio - melhor a necessidade de desenvolvereconomicamente a provincia. Estavam frescas ainda na memoria dospoliticos as frustrar;:oes que originaram 0 abandono das prar;:as daAfrica, e os fumos da india desvaneciam-se a olhos vistos. 0 regi-mento preconiza, com efeito, a par de uma guerra limitada, de inti-midar;:aoe castigo, 0 condicionamento das relar;:oescomerciais com 0

gentio e a sua lusitanizar;:ao ideologica" . 57

migos da (. .. ) Santa Fe' esta no ambito das norm as Micas que re-gulam a convivencia entre as na90es onde a lei de cristo era conhe-cida, ou, pelo menos anunciada". Em sua expedi9ao a India em1550, inform ado por Vasco da Gama de que aos povos do Oriente"parecia que mais havi~ de obrar neles temor das armas que amorde boas obras", Pedro Alvares Cabral "levou sob as suas ordens mile duzentos homens, alem de dezessete ecIesiasticos para a obra evan-gelica do apostolado religioso". Entre outras coisas, loao de Barros,que recebeu Capitania Hereditaria no Brasil Colonial afirma naobra Decadas 0 seguinte: '

"E quando fossem tao contumazes que nao aceitassem esta lei de Fee negassem a lei de Paz que se deve ter entre os homens, para con:serva~ao da ~specie humana, e defendessem 0 comercio e comutar;:ao,que e 0 mew por que se concilia e trata a paz e amor entre to-dolos homens, por este comercio ser 0 fundamento de toda a humanapolicia, pero que os contratantes disseram, em lei e crenr;:a de ver-dade, que cada urn e obrigado ter e crer de Deus, em tal caso lhes pu-sessem ferro e fogo, e lhes fizessem crua guerras".

o comentario, resumido, do regimento demonstra, com cIa-reza, a violencia institucionalizada, legitim a para con stranger osgentios a se transformarem em "conversos" e "aldeados", para setornarem em mao-de-obra de senhorios e de gente de engenho. So-mente "aos povoadores de engenho e dada carta branca mercantil".Os outros colonizadores estao excIuidos: nao possuem privilegiosmercantis, distinguindo-se, desigualmente, dos senhorios e gente deengenhos. A necessidade de desenvolver economicamente as terrasdo Brasil requeria estimular e criar as condi90es indispensaveis parao surgimento dos engenhos: a planta9ao, voltada para 0 mercadoexterno, utilizando 0 trabalho compuls6rio (de indios e negros). Adominancia da estrutura jurfdico-pol£tica (as Cartas de Doa9ao e osForais) e ideol6gica (a doutrina da guerra justa e a a9ao mission ariade evangeliza9ao em nome da moral e da civilizariio cristii) foi amarca mais saliente do modo de produ9ao escravista colonial. 0exercicio da viol en cia legitimada, do poder pessoal, da sujei9ao edependencia pessoais, sob 0 signo do poder soberano e dos valoressupremos da moral crista, justificavam toda a sorte de violencia naesfera da produ9ao mercantil-escravista. Segundo loao de Barros -na obra Panegfricos -, ha legitimidade nas conquistas portuguesas,e, uma justira intrfnseca na guerra aos infieis e aos mouros. "Emseu criterio (dos portugueses), a 'guerra que se faz aos infieis e ini-

.. Silva Dias comenta que apenas "nesta moldura (. .. ) parecesuflclentemente explicavel a insistencia no primado dos meios evan-gelicos e no principio de sociabilidade que tinha nas relaroes de co-mercio uma aplicariio pol£tico-jurfdica fundamental". De que setratava, era de fate, 0 "dominio colonial, numa forma ou noutra,d~s sociedad~s infieis pelas sociedades cat6licas". 58 Em suma, 0 queaflrmamos relteradamente e que as estruturas ideol6gicas e juridico-politic as nao podem ser desqualificadas na analise da constitui9aoda forma9ao social colonial.

Ciro Flamarion S. Cardoso concord a que "certos elementos dasuperestrutura do feudalismo europeu ( ... ) tenham p.xistido efetiva-

(58) Dias. J. S. Silva (1982), op. cit., pp. 178-81. Em rela~ao ao trabalho compulsoriode ~~grO~7, i~?ios, cabe esclarecer que aos mesmos eram atribuidos 0 epiteto de "gentios" e naode mflels: Genttos eram, pois, os habitantes da Africa setentrional e do medio ou proximoOriente(e, tambem do Brasil pre-colonial), que nao professavam 0 cristianismo, ojudaismo ou 0

maometanismo. Entravam com os hereges, os judeus e os mouros na categoria dos infieis" (estadeslgna~aO e mais generica do que a primeira). Finalmente, a doutrina da Guerra Justa e deo~gem medieval, e pode ser apreendida na obra do Frei Alvaro Pais, nas primeiras decadas doseculo XIV (d. Silva Dias (1982), op. dt .• pp. 183-4, 178).

(57) Dias, J. S. Silva (1982), op. cit., pp. 183-4 (Regimento de 17 de dezembto de 1548:[nstru~oes dadas a Tome de Souza, ja designado govemador getal de Santa Cruz).

Page 23: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

mente na America colonial", com "urn senti do profundamente di-ferente do que se conheceu na Europa". Ele identifica na AmericaLatina colonial 0 modo de produ~ao escravista, dominante no Brasilcolonial e em outros paises como as Antilhas, as Guianas, 0 SuI dosEstados Unidos e em partes de America espanhola continental, coe-xistindo com "modos de produ~ao secundarios". Para este autor, 0

feudalismo era dominante e 0 capitalismo estava em forma~ao gra-dual e nao linear. No artigo sobre os "Modos de Produ~ao Coloniaisde America", Ciro Cardoso sustenta que a teoria destes modos "naodeve perder de vista um/ato central":

"0 carater subordinado das contradil;oes internas das sociedades co-loniais, e 0 carater geralmente determinante dos impulsos externosnas transformal;oes estruturais ocorridas nessas sociedades".

Esta abordagem coloca a questao das "rela~oes dial6ticas en-tre a evolu~ao das estruturas metropolitan as e das estruturas colo-niais". E, a titulo de hipotese, Ciro Cardoso sugere que as forma~oessociais da America colonial dependiam, pelo menos, de tres modosde produ~ao principais:

"urn modo de produl;ao baseado na exploral;ao da forl;a de trabalhoindigena, estabelecido na regiao nuclear de America precolombiana.o funcionamento deste tipo de sociedade se baseava nos seguintesmecanismos: 1 - integral;ao de uma parte importante da populal;aoindigena como forl;a de trabalho, mediante a introdul;ao da economiamonetaria e urn sistema de tributos, e atraves da exproprial;ao deuma parte importante das terras em proveito dos conquistadores ... ;2 - as comunidades indigenas que permaneciam "autonomas" so-freram urn processo de "homogeneizal;ao", pois a estrutura indigenade classes perdeu suas bases economicas: 0 excedente antes extraidopelas classes dominantes indigenas 0 e agora pelos espanh6is, sob aforma de tribu tos e trabalhos forl;ados ... ".

"Urn modo de prodUl;:iio escravista colonial se estabeleceu em re-gioes que, por uma parte, se caracterizavam, antes da chegada doseuropeus, por uma populal;ao indigena pouco densa, e por outra par-te apresentavam condil;oes propicias as atividades exportadoras, ba-seadas numa economia de plantar;:iio de produtos tropicais, ou naexploral;ao de jazidas de metal precioso (0 aura de Minas Gerais, emBrasil). A redul;ao dos indios em escravidao, sua expulsao, exter-

minio, e sobretudo a importal;ao de escravos negros, serviram de basea constituil;ao do territ6rio e da forl;a de trabalho. Isto foi 0 que sepassou no Brasil, nas Antilhas, nas Guianas, no sui dos Estados Uni-dos e em certas partes da America espanhola continental (Venezuela,por exemplo);"

"Enfim, na America do Norte se constituiu a economia diversifi-cada e autonoma de pequenos proprietarios, a unica entre as estru-turas coloniais que evoluiu - em parte ainda na epoca colonial - atea industrializal;ao e para urn capitalismo de tipo "metropolitano",nlio periferico". S9

!Compartilhando a teoria da "acumula~ao origin aria" de ca-pital, Cardoso afirma que 0 escravismo colonial americano e novo.Ele e resultado da empresa exportadora e se estruturou segundo osrequisitos da empresa comercial, atraves do "transplante violento" eem "propor~oes ineditas", de popula~oes africanas e da popula~aoindigena, tangendo-as a escravidao. 0 escravismo colonial "comorela~ao de produ~ao dominante" requeria, in icia1men te , que os pai-ses coloniais produzissem "artigos tropicais em grande escala e combaixos custos de produ~ao". E, em rela~ao a explora~ao de minas emetais preciosos, ela se resolve ria com 0 concurso de uma mao-de-obra numerosa e disciplinada. A terra seria 0 unico recurso dispo-nivel em abundancia no inicio da coloniza~ao. Esta questao apontapara a necessidade da "existencia de grandes reservas de escravosem potencial: as popula~oes indigenas de America e os negros afri-canos, cujas culturas tinham urn nivel tecnico que nao lhes permitiaenfrentar 0 europeu em igualdade de condi~oes". E, finalmente,havia a impossibilidade de estabelecer 0 regime de trabalho livre eassalariado, devido a escassez populacional prevalecente na Eu-ropa.60

Dois fatores centrais se articulam no funcionamento do modode produ~ao escravista colonial: a condi~ao de serem forma~oes so-ciais coloniais (perifericas e dependentes) e pressuporem a escra-

(59) Assadorian. Cardoso. Ciafardini. Garavaglia e Laclau (1973). Modos de producci6nen America Latina, Buenos Aires, Cuademos de Pasado y Presente, Argentina. Ver Cardoso.Ciro: "Sobre los modos de producci6n coloniales de America", pp. 135-59 e, especialmente, pp.141-3,152 epassim.

(60) Assadorian et alii (1973), op. cit., ("EI modo de producci6n esclavista colonial enAmerica", pp. 193·242; verpp. 210-1).

Page 24: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

vidao, focalizada "em seu funcionamento economico e como funda-mento das estruturas sociais". Ademais, como coexistem, de umaforma contraditoria, 0 feudalismo eo capitalismo nos paises da Eu-ropa ocidental, a concep<;ao que predomina nas forma<;6es coloniais,ora e a feudal, ora e a capitalista; combina<;ao contraditoria que semanifesta, adquirindo formas especificas e singulares, em cada umadas forma<;6es sociais que comp6em a America Latina. Para CiroCardoso, a forma<;ao social colonial e essencialmente escravista,passando a coexistir com "as concep<;6es capitalistas" importadas,quando 0 modo de produ<;ao capitalista se constitui nos paises euro-peus, numa rela<;ao de dependencia. Vma produ<;ao fundada na es-cravidao produz "mecanismos de controle e de manuten<;ao da or-dem escravista" tais como "a forma de tratar os escravos, a prepa-ra<;ao deles para se integrar a sociedade, a cristianiza<;ao e a re-pressao do Estado". Nestes mecanismos de controle, estao presentesa violencia pessoal (praticada na esfera privada, legitimidade na es-fera publica), 0 controle e a vigilancia no processo de trabalho (es-fera da produ<;ao), 0 comportamento moral (esfera religiosa) e a de-pendencia pessoal (esfera do poder). Em suma, para Ciro Cardoso,o modo de produ<;ao escravista colonial tern urn caniter substanti- \vamente "colonial, periferico e subordinado, das forma<;6es sociaiscorrespondentes"; e a escravidao e observada em seufuncionamentoeconomico e como fundamento das estruturas sociais.61 Ha nestacoloca<;ao, a determina<;ao e a dominancia da estrutura economica,a primazia da produ<;ao em rela<;ao a estrutura juridico-politica eideologica, A estrutura juridico-politica no que se apresenta 0 fazmais como contraponto, a justificar a predominancia da estruturaeconomic a (for<;as produtivas e rela<;6es de produ<;ao).

Finalmente, retomando as linhas centrais que haviam sidoexpostas por Gorender, por Ciro Cardoso e por Fernando Novais,Decio Saes acrescenta 0 entendimento de que no Brasil colonial naose implantou apenas "unidade de produ<;ao escravista"; ao seulado, surgiram "a pequena produ<;ao de alimentos" (proprietariosindependentes ou meeiros) e "uma pecuaria nao-escravista, fundada

numa rela<;ao pre-capitalista" (0 sistema da "quarta ", uma especiede parceria). A unidade de produ<;ao escravista, fundada no l.atifun-dio a<;ucareiro, nas pequenas e medias explora<;6es algodoelras ouexplora<;6es de tabaco, na grande pecuaria, na minera<;ao etc., colo-cava, sob a sua dependencia, as unidades de produ<;ao nao-escra-vistas. Em vista disso, Decio Saes afirma:

".,. existiu no Brasil, entre os seculos XVI e XIX, uma forma<;aosocial escravista moderna", na qual 0 "modo de produ<;ao escravistamoderno foi dominante".

"Era ( ... ) 0 setor de exporta<;ao que comandava 0 processo produ-tivo em seu conjunto. Assim, a economia nao-escravista do Brasil co-lonial assumiu urn can'lter natural ou urn carater mercantil em fum;iiodas possibilidades de comercializa<;ao, no mercado mundial, dos ge-neros tropicais produzidos pela planta<;ao escravista".

"Mas dissemos ( . .,) que a estrutura juridico-politica tambem in-tegra 0 modo de produ<;ao; portanto, se afirmamos ~ue 0 modo ~eprodu<;ao escravista moderno foi dominante no BrasIl, entre os se-culos XVI e XIX, isso quer dizer, nao apenas que as rela<;oes de pro-du<;ao/for<;as produtivas escravistas dominaram as demais, mas tam-bem que a estrutura juridico-politica teve urn carater dominante-mente escravista. Este aspecto superestrutural da dominancia domodo de produ<;ao escravista e menos conhecido e analisado que 0

aspecto infra-estrutural. .. ".

Com esta proposi<;ao, Decio Saes prop6e-se a analisar a estru-tura juridico-politica do Brasil-colonia, apenas referenciada, masnao analisada, por Gorender e Ciro Cardoso, que "reconheceramcertos tra<;os superestruturais de carater feudal". Em conflito com"os interesses das classes dos plantadores escravistas", estes tra<;os"foram neutralizados". 62 A proposito, na exposi<;ao que ate aqui vi-mos fazendo, ressaltamos, reiteradamente, a importancia das esfe-ras juridico-politica (Estado e Direito) e ideologic a (re~resenta<;6esmentais) na analise da forma<;ao colonial brasileira. Novamente essaimportancia e enfatizada, pelo autor de Formar,:iio do 1!s.tado Bur:gues no Brasil, de modo a evitar 0 reducionismo economlclsta, que eaquele pelo qual:

(61) Assadorian el alii (1973), op. Cil., "El modo de producci6n esclavista colonial enAmerica", pp. 212, 213, 219 e 222. Ver tambem: "Severo Martinez Pelaez y el carllter del regimencolonial", pp. 83-109, desta mesma obra, em que se discute 0 carllter feudal, capitalista ou n~o dosistema colonial).

(62) Saes, Decio (1985), Aforma~iio do ESlado burgues no Brasil (/888-1891), Rio de Ja-neiro, Paz e Terra, pp. 74-6 (ver "A forma~~o social escravista moderna no BraSIl - meados doseculo XVI a fins do seculo XIX", pp. 57-86).

Page 25: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

· " ... 0 modo de prodw;:ao se reduz ao conjunto da estrutura economica(rela~oes de prodw;:ao, forcyas produtivas), e e atraves do seu estudoexclusivo que se chega a descoberta cientifica das leis que regem areproducyao das relacyoes de producyao/for~as produtivas. Nesta pers-pectiva te6rica, a analise da chamada superestrutura (a estrutura ju-ridico-politica), bem como de sua articulacyao com 0 conjunto da es-trutura economica, nao tern qualquer papel relevante a desempenhar;a superestrutura e encarada como epifenomeno ou traducyao da infra-estrutura, e nao como uma estrutura dotada sempre de uma funcyaoespecifica (variavel conforme 0 modo de producyao) na reproducyao dasrelac;:oes de produ~aolforcyas produtivas". 63

de capitanias hereditarias e de concessao de sesmarias - como a im-plantacyao de uma estrutura juridico-politica feudal no Brasil". 65

No entender de Decio Saes, os partidarios da tese do feuda-lismo "estabelecem uma analogia (. .. ) entre 0 Estado absolutistaportugues e a estrutura juridico-politica implantada no Brasil-colo-nia". Segundo 0 autor, a estrutura juridico-politica foi implantadade fora para dentro. Ela foi produzida pelo Estado Absolutista feu-dal como instrumento legal de posse e de coloniza9iio, mantida asoberania do rei sobre os dominios ultramarinos. Nesse sentido, aforma9ao colonial brasileira e uma extensao territorial dos dominiosportugueses. As cartas de doa9ao e os forais sac os instrumentosjuridicos do Estado Feudal portugues que asseguram a posse do do-minio portugues eo seu governo, nao havendo no Brasil-colonia urnEstado, mas "provfncia ultramarina" (eclesiastica e politica):

Qual seria entao a especificidade da estrutura juridico-politicado modo de produ9ao escravista moderno? Segundo Saes, esta espe-cificidade, portanto, a diferen9a, localiza-se "entre 0 Estado escra-vista e 0 Estado feudal", fundando-se no "nivel do direito":

"E verdade que 0 direito escravista e 0 direito feudal se opoem igual-mente ao direito burgues (= tratamento igual dos desiguais), namedida em que ambos conferem urn tratamento desigual aos desi-guais (classe exploradora e classe explorada). Todavia, a diferencyasubsiste. A essencia do direito escravista e 0 par reconhecimentolnegacyao da capacidade de praticar atos (classificacyao dos homens empessoas ou coisas, conforme pertencyam a classe exploradora ou a clas-se explorada). Ja a essencia do direito feudal e a atribui~ao aos ho-mens de capacidades diferenciadas, desiguais, de praticar atos; ouseja, a hierarquizacyao das capacidades (camponeses, artesaos, co-merciantes, pequena nobreza, aHa nobreza)". 64

"Nesta com 0 favor divino darei conta a Vossa Reverencia da nossaviagem e missao a esta provincia do Brasil, e determino con tar todo 0

principal que nos tern sucedido, nao somente na viagem, mas tam-bem em todo 0 tempo da visita que Vossa Reverencia tenha maiorconhecimento das cousas desta provincia, e para maior consola~aominha, porque em tudo desejo de comunicar-me com Vossa Reve-rencia e mais padres e irmaos dessa provincia (Narrativa Epistolar deuma viagem e Missiio Jesultica).

"A Bahia e cidade d'EI-Rei, e a corte do Brasil; nella residem osSrs. Bispo, governador, ouvidor geral, com outros ojjiciais e justi<;:asde Sua Magestade; ... ". 66

A estrutura juridico-politica colonial nao foi burguesa. Elaseria feudal ou escravista? 0 autor reconhece "a natureza feudal doEstado portugues", mas nao a extensao dessa natureza ao Brasil-colonia:

Para 0 Padre Fernao Cardim, escrevendo em 1583, 0 Brasilera uma "provfncia" de Portugal, eo Rei exercia nela a sua sobera-nia por intermedio do governador (representando 0 poder dos quepersonificavam ajusti9a real, como 0 ouvidor geral e outros oficiais).

"Ora, a natureza feudal do Estado portugues fez com que muitosanalistas encarassem (0) processo de ocupacyao da terra - as sistemas (65) Saes, Decio (1985), op. cit., pp. 76 epassim.

(66) Cardim, Pe. Fernllo (1968), Tratados da terra e gente do Brasil, Sllo Paulo, NacionallMEC, pp. 171 e 174. Quanto ao conceito de soberania, Strayer afirma que: "Soberania implica aindependencia perante toda e qualquer potencia estrangeira e a autoridade absoluta sobre oshomens que vivem dentro de determinadas fronteiras" (Strayer, Joseph R, As origens medievaisdo Estado Modemo, Lisboa, Gradiva, sid., pp. 64·5).

(63) Saes, Decio (1985), op. cit., p. 68.(64) Id" ibid., p. 77.

Page 26: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

Gandavo, em Tratado da Terra do Brasil, assim se dirige ao Prin-cipe Dom Henrique, Cardeal e Infante de Portugal:

duzentos, trezentos escravos, como ha muitos moradores na terra quenam tern menos desta contia, e dahipera cima". 68

"Posto que os dias passados apresentei outro summario da terra doBrasil a el-Rei nosso Senhor, foi por cumprir primeiro com esta obri-ga~ao de Vassalo que todos devemos a nosso Rei: e por esta razao mepareceu cousa mui necessaria ( ... ) offerecer tambem este a V. A. aquem se devem referir os louvores e acrescentamento das terras quenestes Reinos florescem: pois sempre desejou tanto augmenta-las, econservar seus Subditos e Vassalos em perpetua paz. Como eu istoentenda, e conhe~a quam aceitos sao os bons servi~os a V. A. que aoReino se fazem imaginei comigo que podia trazer destas partes comque desse testemunho de minha pura ten~ao: e achei que nao se podiadum fraco homem esperar maior servi~o (ainda que tal nao pare~a)que lan{:ar miio desta informa{:iio da terra do Brasil (cdusa que ate-gora nao empreendeu pessoa alguma) pera que nestes Reinos se di-vulgue sua fertilidade e provoque a muitas pessoas pobres que se viioviver a esta provincia, que nisso consiste a felicidade e augmentodelia:'. 67

Gandavo, amigo de Cam6es, residiu algum tempo no Brasil efoi insigne humanista e excelente latinista: "ha nele", segundo Ca-pistrano de Abreu, "urn born observador das coisas sociais e quemestiver a par dos estudos feitos sobre as primitivas fases economicas,a economia caseira de Buecher, 0 meneio singular de Sembart; emuma palavra, a economia natural, encontrara elementos muito indis-tintos".69 0 autor da Historia da Provincia de Santa Cruz, observa-dor qualificado, era portador de forma9ao intelectual - ressalte-seser Gandavo professor de Latim. Na qualidade de urn observadormuito qualificado, afirma: "todos tern terras de Sesmarias dadas erepartidas pelos Capitaes e Governadores da terra e a primeira coisaque e1esalmejam sao os escravos". Esta observa9ao demonstra que 0acesso a terra era entao livre para os cristaos que quisessem cul-tiva-Ia. 0 criterio economico de sele9ao viria a erigir-se urn seculoadiante: ha dados que 0 indicam ja existente em fins do seculoXVIII. A afirma9ao de que

Na primeira Historia do Brasil, escrita em 1576, por Gandavo,a "terra do Brasil" aparece como "provincia" de Portugal, que de-veria ser povoada por "muitas pessoas pobres" para 0 "acrescenta-mento das terras que nestes Reinos florescem", pois havia fartura efertilidade e a sua distribui9ao nao deveria depender de nenhumcabedal:

"A sele~ao dos sesmeiros se fazia, portanto\ segundo criterios funda-mentalmente economicos"

e exagerada e, porque nao dizer, descabida; ela revela urn inques-tionavel ran90 economicista no proprio Saes.70 Por outro lado, 0 fatode 0 acesso a terra condicionar-se ao seu cultivo remonta a insti-

"Os mais dos moradores que por estas Capitanias estao espalhados,ou quasi todos, tern suas terras de sesmaria dadas e repartidas pelosCapitiies e Governadores da terra. E a primeira cousa que pretendemacquirir, siio escravos para nellas lhes fazerem suas fazendas e sihuma pessoa chega na terra a alcan{:ar dous pares, ou meia duziadelles (ainda que outra cousa nam tenha de seu) logo tern remediopara poder honradamente sustentar sua fam£lia: porque hum lhepesca e outro the ca{:a, os outros the cultiviio e grangeiio suas ro{:as edesta maneira nam fazem os homens despeza em mantimentos comseus escravos, nem com suas pessoas. Pois daqui se pode inferirquanto mais seriio acrescentadas as fazenda daquelles que teverem

(68) Id .• ibid., pp. 93-4. A cita~~o sobre as sesmarias e da Hisl6ria. No Tralado, eleadmite os mesmos conceitos: "Os moradores desta Costa do Brasil todos tern terras de Sesmariasdad as e repartidas pelos Capit~es da terra, e a primeira cousa que pretendem alcan~ar, s~o es-cravos pera Ihes fazerem e grangearem suas ro~as e fazendas. porque sem elles nao se podem sus-tentar na terra: e hum a das cousas porque 0 Brasil n~o florece muito mais, he pelos escravos quese alevantar~o e fugir~o pera suas terras e fogem cada dia: e se esses indios n~o for~o tam fugitivose muditveis, n~o tivera compara~~o a riqueza do Brasil. As fazendas donde se consegue mais pro-veito sao assucres, algodoes e plIOdo Brasil, com isto fazem pagamento aos mercadores que desteReino lhes lev~o fazenda porque 0 dinheiro he pouco na terra, e assi vendem e troc~o hum a mer-cadoria por outra em seu justo pre~o" ( ... ) "E assi ha tambem muitos escravos de Guine: estes saomais seguros que os indios da terra porque nunca fogem e nem tern pera onde" (pp. 42-3).

(69) Gandavo, P. M. (1980). op. cil .• pp. 13-6 (Introdu~~o de Capistrano de Abreu).(70) Saes, Decio (1985). op. cil., p. 78. 0 alvarit de 5110/1795 permite a conclus~o que 0

A. tira sobre a sele~~oeconomica, a partir desta data. N~o hit, porem, elementos que justifiquema generaliza~~o supra-referida.

(67) Gandavo, Pero de Maga1h~es (1980), Tralado da lerra do Brasil - HisI6ria da Pro-vincia de Sanla Cruz, S~o Paulo. EDUSP; Belo Horizonte, Itatiaia, p. 21.

Page 27: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

tui~iio da pres uria , que existiu com tal nome em Portugal no se-culo X:

o mesmo instrumento juridico que promoveu 0 adensamentodemografico de Portugal do seculo X ao XV, garantindo a posse daterra a quem a cultivasse, independente da condi~iio social, preva-leceu com as mesmas caracteristicas 75 no Brasil colonial, pelo menosate 0 seculo XVIII. Nas Memorias para a Historia da Capitaniade S. Vicente, de Frei Gaspar da Madre de Deus, publicada em1797, le-se que ...

"De tudo quanto sabemos sobre as ocupa<;oes por presuria no terri-t6rio portugues, a partir do seculo X, ressalta que '0 principio geralera ficar ao ocupante e aos seus descendentes 0 dominio do predio". 71

"( ... ) em toda a Peninsula, encontramos consignado 0 preceito dea terra vaga, a terra erma, apropriada ou doada para ser em cultivo,se permanecesse inculta era retirada ao possuidor para ser entregue aquem lavrasse". 72

" ... no Brasil, on de a todos se dava de grar,:a mais terra do que Ihesera necessario e quanta os moradores pediam, ninguem teria necessi-dade de lavrar pr/dios alheios, obrigando-se a solu<;ao de forosanuais; e por isso, ou nunca, ou s6 depois de alguns seculos, chega-riam a ser permanentes as casas ricas. A experiencia tern mostradoque discorreram otimamente pois neste Estado vive com suma indi-gencia quem nao negoceia ou carece de escravos; ( ... )".76

Posteriormente, com 0 regime das sesmarias, os povoadoresgarantiram a fixa~iio e 0 aproveitamento do solo:

HE como todas as leis que procuram remedios radicais e urgentes( ... ), as sesmarias fernandinas esbateram-se e modificaram-se pordemasiado violentas. Mas, porque nelas se procurava, como outrora,o adensamento demografico nos campos e se of ere cia ao homem des-propido de bells 0 illcelllil'() de alcul/(;ur gleba prripria. cuja posse Iheera garantida pelo cultivo, as sesmarias foram um instrumento pre-cioso - na metropole e, depois, no atem-mar - para promover a co-lonizar,:iio e aproveitamento de vastos territorios". 73

Nem em Portugal nem no Brasil-colonia 0 acesso a terra estevecondicionado a posse ·de cabedais e outros elementos diferencia-dores. Ao contrario, 0 que Gandavo afirma em 1576 e confirmadopOl' Gabriel Soares de Sousa em 1587:

Este registro de Frei Gaspar encerra de vez a questiio do acessoa terra: ele niio dependia de cabedal. Somente 0 transforma-lo emfonte de riqueza e que requeria cabedal: necessita-se de escravos,e "muita escravaria"; mas se os "senhores ( ... ) siio pouco laboriosose niio feitorizam pessoalmente aos ditos seus escravos", como afirmaFrei Gaspar, entiio, niio bastaria tel' escravos para ser rico. 77 A pro-du~iio da riqueza dependeu do papel de gestor ("feitor") que os se-nhores assumiram na relac;iio produtiva, subordinando 0 escravo aoseu poder pessoal, e da forma como eles articular am as forc;as pro-dutivas. A sesmaria, como elemento da estrutura juridico-politica,pouco tern a vel' com a produ~iio escravista. No nosso modo de en-tender, niio chegou a ~onstituir-se urn "Estado escravista colonial",como pensa Decio Saes:"Tratando-se em suma da fertilidade da terra, digo que acontece

muitas vezes valer mais a novidade de uma fazenda que a proprie-dade, pelo que os homens se man tern honradamente com pouco ca-bedal, se se querem acomodar com a terra e remediar com os manti-mentos dela, do que e muito abastada e provida". 74

"Na verdade, 0 Estado escravista moderno se formou, no territ6riocolonial, a partir da implanta<;ao do' governo geral (0 primeiro delesem 1549) e da organiza<;ao das Ciimaras Municipais; nessa estrutura

(71) Rau, Virginia (1982), Sesmarias medievaisportuguesas, Lisboa, Presenca, p. 33.(72) Id .• ibid., p. 36.(73) Rau Virginia (1982), op. cit., p. 143.(74) Sousa, Gabriel Soares de (1971), Tratado descritivo do Brasil em 1587, SAo Paulo,

Nacional, p. 163.

(75) Gorender, Jacob (1978), op. cit., pp. 361-90 (ver "Regime territorial no Brasil escra-vista").

(76) Madre de Deus, Frei Gaspar (1975), Mem6rias da Capitania de Sao Vicente, SAoPaulo, EDUSP; Belo Horizonte, ltatiaia, pp. 82-3.

(77) Madre de Deus, Frei Gaspar (1975), op. cit., p. 83.

Page 28: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

politica bipolar, 0 primeiro ramo era controlado diretamente (em ul-tima instancia, mas nao exclusivamente, atraves do mecanismo danomea9ao) pelo governo absolutista portugues e pelas classes domi-nantes da metropole, enquanto que 0 segundo ramo era controladodiretamente Ua que as Camaras Municipais se compunham exclusiva-mente de representantes dos "homens bons", definidos de modo vagoe cambiante, mas segundo criterios dominantemente censitarios) pe-las classes proprietarias locais (fazendeiros escravistas, proprietariosde terras, comerciantes)". 78

nenhuma, do dominio hereditario dos bens doados, contendo al-gumas vezes expressa a faculdade de os alienar". 79

Para demonstrar que, de fato, se constituiu no Brasil-coloniaurn Estado escravista moderno, e necessario caracterizar a especifi-cidade da estruturajuridico-politica. A comproval;ao desta especifici-dade nao e suficientemente elaborada por Decio Saes. As fontes queele utiliza se baseiam, tal como nas conc1usoes a que chegou Goren-der, em urn arrolamento de caracteristicas das instituilYoes de doa-lYiio(capitanias e sesmarias) para diferencia-Ias, no caso do Brasil,das instituil;oes portuguesas. Ao contrario, aqui se repetem, com asmesmas caracteristicas, as instituil;oes ja existentes em Portugaldesde a Idade Media, pelo menos a partir do seculo XIII. 0 mesmoocorre em relal;ao as instituil;oes municipais que foram transplanta-das de Portugal para 0 Brasil-colonial:

o autor entende que 0 Estado escravista moderno, em suaestruturajurEdico-poUtica, apresentou, ate 0 ano de 1808, "caraterescravista" e "carater colonial". Para justificar a existencia do Es-tado escravista no Brasil-colonia, concordando com Gorender, afir-ma que "0 acesso a propriedade da terra nao se estruturou como urnsistema de privilegios" (dos donatarios) e "obrigalYoes" (dos sesmei-ros) e que "as sesmarias eram distribuidas a titulo gratuito", es-tando os sesmeiros "isentos de qualquer dependencia pessoal", em-bora devessem pagar impostos e prestar servil;o militar. Este caraterera peculiar as doal;Oes regias, conhecidas ja no seculo XIII, que

"Somente nas localidades que tivessem pelo menos a categoria devila, concedida por ato regio, podiam instalar-se as camaras muni-cipais. cuja estrutura foi transplantada de Portugal, a principio, naconformidade das Ordena90es Manuelinas e, mais tarde, das Fili-pinas".80

" ... transmittiam para sempre a leigos 0 dominio de terras da coroa,nil.oindicam outra cousa mais do que a recompensa incondicional deservi90s ja prestados pelo donatario, ou a prestar ainda, ou simples-mente a benevolencia do rei para com elle; nenhuma envolve em si aobriga9il.o do servi90 da hoste ligada a posse da terra doada: taesconcessoes nao alteravam, portanto, em cousa alguma a natureza dosdeveres que 0 beneficiario tinha, em todo 0 caso, pessoal e directa-mente para com 0 monarcha, nem representavam a soldada, a remu-nera9ao fixa do servi90 militar; essa remunera9ao apparece-nos defacto, mas estabelecida de outra forma. ( ... ). De maneira que n'estescasos a acquisi9il.o da terra niio so niio trazia ao adquirente a obri-gar,:iioprincipal do feudo, mas importava antes uma negar,:iio dela".

"Vemos 0 homem nobre com direito, por costume antigo, a remu-nera9Aodo servi90 militar. Nao eram, porem, a remunera9iio as doa-90es de terras da coroa, porque estas doa90es niio impoem nunca aobriga9il.o do servi90 e transferem para 0 donatario, sem restri9iio

Como se pode constatar, os elementos da estrutura juridico-politica, apresentados para justificar 0 carater escravista, sao reme-

(79) Gama Barros, Henrique da (1945), Hist6ria da administrafiio publica em Portugalnos seculos XII ao XV, Lisboa, Sll da Costa (vide 2~ ed. corrigida, pp. 296, 297 e 349, Torno I):Em seguida Gama Barros diz que: "iaes actos da coroa apertavam sem duvida, 0 laco que pessoale diretamente prendiajll 0 donatllrio ao soberano, exigiam 0 cumprimento do dever de fidelidade,mas nada mais; as acquisicOes por esse titulo entravam no cumulo dos bens patrimoniais, sem 0

carllter de retribuicllo de certos e determinados servicos futuros" (p. 349). Ver tambem Cana-brava, Alice P., "A grande propriedade rural", in Buarque de Holanda, Sergio (1960). Hist6riageral da Civilizafiio Brasileira, Torno 1 - A !;poca Colonial, Sllo Paulo. Difusllo Europeia doLivro, pp. 192-217: "A posse e a propriedade da terra resultaram da simples doacllo, na forma desesmarias, sem restricOes de maior importancia que nllo fossem a obrigatoriedade de ocupll-Ia",p. 198. Ver Lima, Ruy Cirne (1954), Pequena hist6ria territorial do Brasil - Sesmarias e terrasdevolutas, 2~ed., Porto Alegre, Sulina. Ver os capitulos 1 ("A primitiva legislacllo portuguesa. Alei de D. Fernando. As OrdenacOes Afonsinas, Manuelinas e Filipinas") e II ("As sesmariasno Brasil. Aspectos e evolucllo, desde a criacao das capitanias ate a Revolucao de 17 de julho de1822"), pp. 9 a 44.

(80) Leal, Victor Nunes (1976), Coronelismo. enxada e voto, 3~ ed., Sao Paulo, Alfa-Omega (ver capitulos 2, "AtribuicOes municipais" e 3, "Eletividade da administracao muni-cipal"). Tambem em Gama Barros (1945), op. cit., pp. 13epassim.

(78) Saes, Decio (1985). Formafiio do Estado burgues, op. cit., p. 87. Faoro, R. (1977),op. cit., fala em urn "Estado portugues prolongado no Brasil", p. 92.

Page 29: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

tidos ao Estado Absolutista "feudal". 810 estudo destas duas insti-tuil;oes portuguesas (de doal;ao e municipal) demonstra que elaseram essencialmente "democraticas": acesso livre it propriedade daterra, sem gerar sujeil;ao politica e religiosa (sesmaria), a quem aquisesse cultivar; e as dlmaras municipais como urn instrumento dopovo (da parte livre da populal;ao), por meio das quais ele se mani-festava politicamente. Se nao, vejamos:

" ... ou seja, a definicao da relacao colonial como urn processo de par-tilha - ainda que desigual - de vantagens entre as classes domi-nantes da metropole e as da colonia".

Trata-se de urn pacto colonial que se teria realizado na vi-gencia de interesses reciprocamente interdependentes, cristalizadosno chamado exclusivo colonial, isto e, a reserva de mercados para osseus respectivos produtos: urn intercambio controlado entre os pro-dutos primarios e os produtos manufaturados. Este pacto de convi-vencia entre as classes dominantes metropolitanas e as coloniais erompido com 0 desenvolvimento de urn capital industrial. Surge,com ele, na colonia, em sua classe dominante, 0 sentimento e 0 mo-vimento de oposil;ao it eternizal;ao da relal;ao colonial. Iluminadopor esta definil;ao de relal;ao colonial, Decio Saes conceitua 0 "Es-tado escravista colonial" como

"A historia do povo e a historia das instituicoes municipaes. E porestas instituicoes que ele vem a interferir no governo da sociedade,adquirindo voto em cortes; foram ell as que auxiliaram mais efficaz-mente 0 homem de trabalho a passar da servidao para a liberdade.( ...)" .

"Na classe popular apresentavam-se tambem divers as gradua-coes. Abaixo dos homens bons, dos vizinhos, que propriamente cons-tituiam 0 elemento politico dos concelhos, 0 povo, havia uma popu-laCao numerosa, que se encontrava tanto nas terras municipais comoigualmente nos senhorios particulares e do rei. Homens de criacao,solarengos, jugueiros, mancebos, e ainda outros vocabulos, desig-navam os individuos da populaCao inferior, que habitavam em casaestranha ou cultivavam 0 predio alheio". 82

" ... urn Estado escravista cujo aparelho burocratico-militar (pre-burgues) era integrado tanto por membros das classes dominantes daColonia quanto por membros das classes dominantes da metropole,estando portanto sujeito ao comando das classes dominantes de duasformacoes sociais distintas (uma formacao social escravista modernae uma formaCao social feudal onde se desenvolvia 0 comercio)".

As instituil;oes, tanto as de doar;ao, quanta as mumc1pais,foram elaboradas para fortalecer 0 poder central. Elas sao instru-mentos de coIicentral;ao do poder real em detrimento da nobrezalatifundiaria, leiga ou eclesiastica; trazem a marca antifeudal, poisnao geram privilegios e obrigal;oes.

Quanto ao carater colonial da estrutura juridico-politica doEstado, Saes caracteriza-o por uma rela{:iio complexa de "interde-pendencia reefproca" entre "as classes dominantes brasileiras e asclasses dominantes portuguesas". Saes fundamenta sua interpret a-l;ao em Gorender e Williams, os quais formularam a ideia de urnpacta colonial,

Essa conceitual;ao conduz it conclusao de que 0 Estado escra-vista, em sua caracterlstica colonial, e, ao mesmo tempo, 0 "Es-tado das classes dominantes locais e 0 Estado das classes dominan-tes portuguesas", 83e que a unidade entre eles e construida no pactocolonial, assegurando, pela reciprocidade de interesses, a dominan-cia do bloco que se constitui, ou seja, a dominancia da fral;ao hege-monica. Observe-se, desde ja, que 0 conceito de bloco no poder foiformulado por Poulantzas,84 como urn fenomeno particular das for-mal;oes capitalistas, portanto, do Estado Capitalista. Transplantan-do 0 conceito de bloco no poder para a analise do Estado escravistacolonial, Saes entende que ele se concretizava por meio "da politica

(81) Tanto Saes quanta Gorender denotam o'Estado portugues de feudal em suas respec-tivas obras, jll citadas.

(82) Gama Barros, Henrique da (1945). op. cit., Torno Ill. Sec~ao IV: "0 povo", pp.13-123(cit. p. 13). A tradi~ao da elei~ao e uma caracteristica da institui~ao municipal. Ver Rau,Virginia (1982), op. cit. ("0 cargo de sesmeiro e a hierarquia das magistraturas municipais.Elei~ao concelhia e confirma~ao regia durante os seculos XIV e XV" ( ... ), pp. 58 e segs.); Leal.Victor Nunes (1976), op. cit., pp. 105 epassim.

(83) De Saes, Decio (1985) ver: "0 estado escravista moderno", item 2: "A fase colonialdo Estado escravista moderoo no Brasil - meados do seculo XVI ate 1808", pp. 86-96 (cita~Oesdas pp. 90 e 92).

(84) Poulantzas, Nicos (1971), Poder politico e classes sociais, Porto, Portucalense, 2 v.

Page 30: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

(de defesa externa, repressao interna, impostos, etc.) executada poresse Estado". A hegemonia, exercida de uma forma instavel, ora sefaz por urn dos sub-blocos, ora por outro. A subdivisao do bloco nopoder apresenta-se, segundo Saes, como

" ... 0 das classes dominantes locais (fazendeiros escravistas, latifun·diarios nao-escravistas, mercadores) e 0 das'classes dominantes por'tuguesas (mercadores, nobreza feuda!)". 85

No nosso entendimento, as classes sociais saD exclusivas aomodo de produ~ao capitalista.86 E nele que se detel minam as rela-~6es de apropria~ao (de propriedade) capitalista atr:ves de. su?sun:~ao formal e real do trabalho ao capital. Esta rela~ao capltahsta euma rela~ao puramente economica, ultimada na vontade de homenslivres e na sociedade de homens livres, onde 0 direito formaliza euniversaliza 0 exercicio da liberdade entre os homens livres. Nao meparece teoricamente sustenHlvel transpor as. ca~egorias ?i~toric~sque saDexclusivas ao modo de produ~ao capltahsta e _aphca-la~ asforma~6es sociais nao-capitalistas, no caso, a formaerao escravlstacolonial moderna. Voltaremos ao assunto, quando analisarmos aquestao da produ(:iio social, classes, estamentos e castas.

4. FEUDALISMO E COLONIZA<;AO:UMA TESE VARIANTE MARXIST A

Nesta apresenta~ao das principais teses sobre a forma~ao dasociedade colonial brasileira, deixamos para 0 fim a discussao feitapelo marxismo ortodoxo, que afirma a existencia da produ~ao feu-dal desde os primordios da coloniza~ao brasileira. Destacam-senesta linha teorica as teses defendidas, parcialmente, por NelsonWerneck Sodre, e, totalmente, por Alberto Passos Guimaraes.87

(85) Saes. Decio(l985), op. cit .• pp. 94-5.(86) Hirano, Sed; (1975). op. cit., pp. 81 e passim. Ver tambem Florestan Fernandes,

As classes sociais na America Latina. Rio de Janeiro, Paz e Terra, p. 173.(87) Guimarlles, Alberto Passos ( 1977), Quatro seculos de latifundio, 4~ ed.,. Rio de Ja·

neiro, Paz e Terra, pp. 28, 29, 30 e 31. Guimarlles afirma que "A passagem do feudahsmo para 0

capitalismo verificou-se quando a todas as condi~Oesacumuladas gradualmente, velo acrescentar·

Para este autor as institui~6es de doa~6es (as capitanias hereditariase as sesmarias) asseguravam aos colonizadores portugueses 0 "mono-polio territorial" de base feudal. No feudalismo colonial, 0 servo dagleba adquiriu a forma regressiva de escravo, base de toda produ~aoescravista colonial voltada para 0 mercado mundial. Alberto PassosGuimaraes prossegue, afirmando que "0 sistema de planta~ao quevarios economistas e historiadores pretendem apontar como unidadeeconomica do tipo capitalista, constituiu de fato, sem qualquer du-vida, a expressao realizada do feudalismo colonial. Para ele, 0 ca-rater comercial da produ~ao colonial escravista seria uma caracte-ristica do mercantilismo e nao do capitalismo. 88

Em contrapartida, para Nelson Werneck Sodre, na forma~aosocial colonial brasileira, a produ~ao baseada no trabalho escravoera pre-capitalista: fundamentalmente escravista e parcialmentefeudal. Esta produ~ao escravista colonial "foi uma conseqiiencia daexpansao mercantil" .89 Ao lado do carater escravista da produ~ao

se aquela que possibilitou 0 saito qualitativo: 0 fim da coa~llo feudal, da coa~llo extra·economicasobre 0 trabalhador, para que ele pudesse vender livremente sua for~a de trabalho, como assa-lariado, ao capitalista" (p. 30).

No sistema de plantafiio, como alias no conjunto da economia pre-capitalista do Brasil-Colonia, 0 elemento fundamental, a caracteristica dominante 11qual estavam subordinadas todasas demais rela~Oeseconomicas, e a propriedade agraria feudal, sendo a terra 0 principal e maisimportante dos meios de produ~llo" (pp. 30 e 31).

"0 fato de se destinarem ao mercado exterior, sob 0 controle da metropole, os produtosobtidos atraves desse mesmo sistema, so contribui para juntar IIquele urn novo elemento: a con-di~llocolonial" (p. 31).

"0 monopolio feudal e colonial e a forma particular, especifica, por que assumiu no Brasila propriedade do principal e mais importante dos meios de produ~llo na agricultura, isto e, apropriedade da terra" (p. 35).

Deve-se advertir que A. P. Guimarlles ve, na implanta~llo do "modo de produ~llo doa~u~ar" que modelou "nos primeiros tempos da coloniza~llo 0 regime de terras e, demais, toda asociedade que entaa sobre Sle se erguia", a existencia "de dais regimes economicos: ~ regimefeudal da propriedade e 0 regime escravista do trabalho", p. 45. 0 carater escravista e tambemobservado por A. P. Guimarlles, e nllo apenas por Gorender e outros,

(88) Guimarlles, Alberto Passos (1977), op. cit., pp. 28-9.(89) Sodre, Nelson Werneck, Hist6ria da burguesia brasileira, op. cit., pp. 33-6 e 37,

Sodre afirma que a empresa colonial de produ~llo so foi possivel com 0 trabalho escravo supridopelo trMico negreiro. "Ela foi montada para atender ao mercado europeu (... ): a ninguem ocor-reria a ideia de transferir-se ao Brasil, nos seculos XVI e XVII, para produzir com 0 seu propriotrabalho, 0 trabalho de seus proprios bra~os, e produzir apenas 0 necessario ao seu sustento, aosustento do proprio produtor e de seus familiares. Tratava-se, essencialmente, de produzir exce-dentes, e grandes excedentes, destinados ao consumo de outras areas, e distantes, destinados aomercado. A finalidade mercantil estava intrinseca na empresa colonial. Mas, para produzir gran-des eXFedentes, tornava-se imprescindivel, desde 0 inicio, trabalhar com escraVQS, possuir es-

Page 31: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

agroexportadora moderna, coexistem, no entender de WerneckSodre, as relal;oes de produl;ao de carater feudal:

Quanto a Alberto Passos Guimaraes, a produl;ao hist6rico-sociol6gica paulista, das decadas de 60 e 70, se encarregou de refu-tar-Ihe a interpretal;ao feudal. No nosso modo de ver, a produl;aoescravista colonial era uma produl;ao comandada pelo capital mer-cantil, que realizava uma acumulal;ao nao-capitalista, com eviden-tes tral;os pre-capitalistas, mas nao feudal.

"A amplia~ao da area em que se instalam relary6es feu dais no Brasil eurn processo que abrange a hist6ria do pais desde 0 inicio da coloni-za~ao quase, e chega aos nossos dias. ( ... ). Em torno da area a~uca-reira escravista, e constituindo 0 seu fundo, 0 seu interior, surge e seamplia a area feudal. Dai a diferen~a, que se aprofunda ao longo dotempo, entre 0 sertao e 0 litoral. Neste, predominam as rela~oes es-cravistas, de inicio absolutas; no sertao, SaD absolutas as relary6esfeudais. ( ... ). No sertao, surge uma sociedade diferente, com 0 la~o dedependencia pessoal nitido entre 0 servo e 0 senhor, alem do la~oeconomico da presta~ao de servi~o ou da contribui~ao em especie.( ... ). Nele ocorrem estratifica~oes eticas, como as que resguardam afamilia, gerando questoes de honra resolvidas pela violencia, ou asque distinguem 0 poder senhorial ( ... ). Trata-se de uma sociedadefeudal de traryos evidentes". 90

s. A FORMA<;AO COLONIAL BRASILEIRA:CASTAS, ESTAMENTOS OU CLASSES?

Estas analises sobre a formal;ao social colonial brasileira re-metem it questao das relal;oes sociais de produl;ao, e, portanto, daestrutura social correspondente. Na tese variante do capitalismocomo modo imperante, adotada por Luiz Pereira, Caio Prado Juniore Fernando Henrique Cardoso, a estrutura social que correspondeuao "modo colonial de produl;ao capitalista" era a de classes:

Em trabalho anterior, denominado Forma~ao Historica doBrasil, Sodre nao matiza a formal;ao social colonial, considerando-aescravista: " ... a conclusao a que leva 0 exame da realidade e que 0

Brasil iniciou a sua existencia colonial sob 0 modo escravista de pro-dUl;ao" .91 Esta tese nao discrepa de Gorender e de Decio Saes, razaopor que os reparos feitos as obras desses ultimos autores igualmentese aplicam it interpretal;'ao de Werneck Sodre a respeito da naturezada formal;ao social colonial brasileira.

"Nao eram pre-capitalistas, pois, foram criados pel a expansao do ca·pitalismo comercial. .. ".

"Enfim, eram, de modo especifico, uma classe definida no modocolonial de produ~ao capitalista ... ". 92

Para Octavio Ianni, as formal;oes socia is escravistas coloniaisestruturavam-se numa "sociedade fundada na casta de escravos" ena "casta de brancos". "A condil;ao de 'branco' somente se objetivaplenamente" na condil;ao de "proprietarios de escravos, ou seussubstitutos, os agregados", pois "bran co e negro saG funl;oes reci-procas: urn inexiste sem 0 outro". No entender de Ianni, "e nessesentido que emergem e se estruturam os componentes basicos de urnsistema societario de castas, dicotomizado em senhores, manc£piose negros": .

cravos, e muitos escravos. ( ... ). NAo tendo a terra, inicialmente, qualquer significa~Ao economica- havia terra em abundancia, sem precedencia de apropria~Ao - 0 escravo representava a me-dida e a caracteristica do sistema produtor" (p. 36 e 37).

"0 escravismo colonial surge dessas condi~Oes e define os tra~os da empresa a~ucareira. Aexplora~ao do trabalho escravo e a base. Essa explora~ao se processara em grande escala, ao longode todo 0 periodo em que 0 Brasil sera fornecedor unico de a~ucar ao mercado mundial. 0 tra-fico sera aiividade importante do capital comercial luso e holandes, conjugado com 0 desenvol-vimento da empresa de produ~Ao a~ucareira, pe~a essencial dela" (p. 37).

(90) Sodre, N. W., op. Cil., pp. 44-5 (grifos nossos).(91) sodre, N. W. (1962), Formafiio hisl6rica do Brasil. sao Paulo, Brasiliense. Para

Sodn~,0 carater escravista va; perdendo, com a crise da economia afucareira. 0 seu aspecto es·cravista: ..... no Brasil, 0 modo escravista, com transi~ao para 0 modo feudal em vastas zonas"(pp. 82, 162, 163 e 164: cita~Ao da p. 169). Encontramos uma analise critica a vertente leninistado marxismo em Guido Mantega (in A economia polilica brasileira. sao Paulo, Petropolis; Polis.Vozes, 1984: Cap. 4: "0 modelo democratico-burgues", pp. 158-209).

(92) Cardoso, Fernando Henrique (1975), op. cil., p. 111. Sua obra anterior, Capilalismoe escravidiio no Brasil meridional (1962), sao Paulo, Difusao Europeia do Livro, resulta de suatese de doutoramento, cujo titulo era: Formafiio e desinlegrafiio da soeiedade de casIas: 0 negrona ordem escravocrala do Rio Grande do Sui, 1961.

Page 32: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

"A propriedade privada dos meios de prodUl;ao, por membros do gru-po branco; a prodUl;ao social por individuos de uma unica rac;a, anegra, africana, ou a casta dos escravos; a posse, pelo branco, doproduto do trabalho e da propria pessoa do trabalhador negro; eis osrequisitos fundamentais do sistema social. Alem destes, outros devemser considerados, tambem essenciais ao pleno funcionamento do re-gime: urn sistema rigoroso, drastico, de controle do comportamentosocial do trabalhador cativo, impedindo-lhe qualquer tipo de evasao;mecanismos de socializac;ao proprios das camadas sociais super-'1ostas, ordenadas como segmentos socio-culturais no interior da co-munidade; impossibilidade de mobilidade social vertical; endogamiaintra-racial; regras de conduta ordenadas segundo urn padrao de obe-diencia rigida dos negros em face dos brancos, senhores ou nao". 93

Para Florestan Fernandes, a ordem social competitiva e acimade tudo "uma configurac;ao de papeis economicos, dissociados dasposic;oes sociais dos agentes e grupos humanos envolvidos e classifi-cados social mente por criterios economicos, sociais e culturais querequeriam a existencia e a combinar;:iio de estamentos e castas". Aordem social competitiva, com sua reproduc;ao ampliada de capital,e em sua especificidade historica, estrutura uma sociedade de clas-ses.9S Autores como Fernando Novais, Joao Manuel Cardoso deMello e Raymundo Faoro - este ultimo por razoes teoricas diversas- compartilham a tese de que 0 Brasil-colonia ja era capitalista e seestruturava em term os estamentais. Como ja vimos, para eles, "Ab-solutismo, sociedade estamental, capitalismo comercial, poHticamercantilista, expansao ultramarina e colonial" se interagem e searticulam formando uma totalidade complexa, denominada, pelatradic;ao, Antigo Regime. A persistencia, nesta totalidade complexa,da sociedade estamental funda-se na diferenciac;ao social e na apro-priac;ao de privilegios juridicamente reconhecidos. Carlos GuilhermeMota, no livro Nordeste 1817, fala em sociedade de ordens (esta-mental):

Para Florestan Fernandes (e Fernando Henrique Cardoso emsua tese de doutoramento), a organizac;ao da economia e sociedadeestruturou-se em termos de regime de castas e estamentos. A pro-pria colonizac;ao do Brasil coincidiu com as etapas finais da crise domundo medieval na Europa e com a elaborac;ao concomitante dasform as sociais que floresceram sobre os seus escombros, pois

" ... a propria coloniza{:iio pressupunha em terras brasileiras como emoutras plagas, a revitaliza{:iio do regime estamental, grac;as it simbioseentre grande plantac;ao, trabalho escravo e expropriac;ao colonial".

"A sociedade de ordens, que nunca se definira com clareza nas areascoloniais, permanecia fornecendo as coordenadas basicas no campojuridico para as concepc;oessociais ocorrentes no Brasil". 96

Quanto a formac;ao do Estado nacional independente desen-rolou-se, segundo Florestan Fernandes, Carlos Guilherme Mota observa que sao conhecidas as dificul-

dades de se ajustar a estrutura juridico-politica vigente nas areasmetropolitanas as novas realidades geradas pela colonizac;ao. Aepoca da revoluc;ao nordestina (1817), a separac;ao por ordens era'problematica. "Clera, nobreza e povo nem sempre aparecem comoas ordens constituidas basicas da sociedade". As categorias mais

" ... sem que se processassem alterac;oes anteriores ou concomitantesna organizac;iio da economia e da sociedade. Portanto, ela se deu semque 0 regime de castas e estamentos sofresse qualquer crise, pois eleconstituiu a base economica e social da transforma{:iio dos senhoresrurais numa aristocracia agraria". 94

(93) Ianni, Octavio (1962), As metamorfoses do escravo, SAoPaulo, DifusAo Europeia doLivro, pp. 134-5. Vide tambem Escravidiio e radsmo. op. dt., pp. 29 e passim. Ver tambemStein, Stanley J. e Stein, Barbara H. (1977), A heran~a colonial da America Latina, 2~ ed., Rio deJaneiro, Paz e Terra, Cap. III - "Sociedade e Estado"; 0 fen6tipo e a inferioridade do negro,"Iegamente sancionados, ajustaram-no de imediato a sociedade de castas" (pp. 51 epassim).

(94) Fernandes, Florestan (1968), Sociedade de classes e subdesenvolvimento, Rio de Ja-neiro, Zahar, p. 22.

(95) Zenteno, Raul Benitez (org.) (1977), As classes sociais na America Latina, Rio deJaneiro, Paz e Terra; ver Fernandes, Fiorestan: "Problemas de Conceitua~Ao das Classes Sociaisna America Latina", pp. 197 e 173. Para Florestan, "0 elemento capitalista central na eco-nomia colonial provinha do comercio colonial interno e externo, 0 qual impunha forma de apro-pria~Aoe de expropria~Ao - e, portanto, de acumula~Ao de capital - pre-capitalistas. 0 reversodo capitalismo comercial, na America Latina, era urn sistema de produ~iio colonial, estrutural edinamicamente adaptado a natureza e as fun~Oesdas col6nias de explora~Ao", pp. 185-6.

(96) Mota, Carlos Guilherme (1972), Nordeste 1817, SAa Paulo, Ed. da Universidade deSAaPaulo e Perspectiva, p. 106.

Page 33: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

freqiientes sao "Camara, Nobreza e Povo" e noutro contexto "Fida/-guia, Nobreza e Povo", Os revolucionarios de 1817, numa proc1a-ma~ao aos habitantes de Pernambuco, representavam-se na quali-dade de eleitos "entre as ordens do estado". Segundo Mota, as ins-tru~Oes militares eram sempre no sentido de dar seguran~a ao Go-verno que eles personalizavam, estendendo-a as familias e aos es-tados:

e, ao mesmo tempo, ressaltar a tecnica defeituosa de generaliza~aoque.~em leva do a impropriedade no usa desses conceitos".

. Seu .el~ment? central e a concep~ao de honra, e portanto, 0 queha de mals mextncavelmente Iigado a ideia de pessoa Ao t •.. d d' . . con rano, 0unIverso. 0 mhel.ro e do mercado estao atravessados por for~as intei-r~~ente .Impessoals e de todo estranhas a defini~ao honorifica de po-sl~ao socIal".

. "~ despeito da presen~a desses elementos (criterios economic ospla~tIcos), nao se completou 0 processo de constitui~ao de uma socie-dade de ~lasses. 0 poder pessoalla estava a impedir que isto acon-tecesse, hltrando, por seu prisma de solidao, 0 mundo material e 0mundo humano".

"OS estados (estamentos), entendidos no senti do de posi~ao social,permaneciam informando os horizontes da consciencia social nor des-tina, de maneira difusa".

"A n~ao de classe surge Iimpidamente associada as n~oes depropriedade, Iiberdade, direitos sociais e revolu~ao". 97

Em suma, para Maria Sylvia, a sociedade colonial nao apre-sentou as caractensticas tlpico-ideais da forma~ao estamental e se-quer as da so~iedade de classes, Ela se constituiu "tendo por base agrande propnedad~ ~~diaria, e todos os personagens estao presosnum .m~ndo autontano e contradit6rio: a propriedade fundiariaconstItUl sua forma especifica de riqueza, aliando-se a domina~aopessoal: Nulle terre sans seigneur e L 'araent n 'a point d Atd' b emalre,lzem os velhos adagios comentados tanto por Marx como por We-

ber". 100

Em con~raste, no seu livro Os donos do poder, Faoro revelaque estrutura Juridico-politica e administrativa de Portugal e trans-plan:a?a para 0 Brasil-colonia, colocando nele 0 estado-maior dedomml~ - _est~mento -, "dependente do rei e senhor do reino",A colomza~ao e urn empreendimento real:

Urn documento assinado por Jose Luis de Mendon~a contemas seguintes frases:

" ... brasileiros de todas as classes", isto e, "os filhos da patria demaior seguran~a e mais distinto merecimento pessoal". ( ... ) que for-mam urn "imenso povo" entrasse "na posse dos seus legitimos di-reitos sociais". 98

Mota observa que 0 documento nao mais fala em "direitosnaturais", mas em "direitos sociais", produto de a~ao coletiva.99

Estas analises sugerem que as classes sociais sao produtos da a~aocoletiva dos homens: homens comprometidos com a a~ao revolucio-naria, com a propriedade e com os direitos sociais, em suma, com aliberdade.

No entanto, nao ha consenso, entre os interpretes da forma~aocolonial brasileira, quanto a esta tese. Para Maria Sylvia de Car-valho Franco nao se constituiram, na sociedade colonial, os requi-sitos estruturais da sociedade estamental:

os navios que trouxeram os donatarios e os colonos nao trou-xeram. urn povo. que transmigra, mas funcionarios que comandam egue.rrelam, .obrelros de uma empresa comercial, cuja cabe~a ficou naspralas de Llsboa".

:'As vilas se criavam antes da povoa~ao, a organiza~ao adminis-tr~hva precedia ao afluxo das popula~oes. Pratica que e modelo daa~ao d~s eSlamenlos, repetida no Imperio e na Republica: a cria~aoda reahdade pela lei, pelo regulamento. ( ... )".

':A Ame:ica seria urn rei no a moldar, na forma dos padroes ultra-!lla~mos,. nao urn mundo a criar. A inflexibilidade dos capitaes daIndIa sera 0 modelo da dureza dos funcionarios rein6is no Brasil, com

"Procurei usar os conceitos de relacyao comunitaria, de autoridadetradicional e de sociedade estamental, con forme os requisitos dostipos ideais, para esclarecer sua inadequa~ao a sociedade brasileira

(97) ld., ibid .• pp. IOS-9.(98) ld., ibid .• p. 109.(99) ld., ibid .• ver "Novos usos e velhas palavras:'a no<;lIo de ·classe •••• pp. 104-41.

Page 34: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

a mao direita na espada e a outra no chapeu, pronto este para a wm-baia ao superior, dono, em Portugal, das masmorras e dos castigos".

baixo a linha divis6ria entre escra vos e horn ens livres. ( ... ) Jii no ambi-to dos homens livres, vigorava uma hierarquizac;ao estamental a qual,todavia, era imprescindivel a sanc;ao das relac;oes de mercado". 102

Com os donatlirios e os colon os vieram para 0 Brasil-coloniao estamento burocrlJtico: com a instituil;ao do Governo-Geral (1548),"0 fidalgo da casa real, jii graduado na burocracia do reino", 0 ou-vidor-mor e 0 provedor-mor, encarregados, 0 primeiro, pelos neg6-cios da fazenda e 0 segundo pelos neg6cios da justil;a:

Hii, portanto, segundo a variante te6rica que analisamos, as-pectos contradit6rios na estrutura social colonial brasileira: em vezde prevalecer a estrutura economic a prevalece a estrutura juridico-politica. Nem por isso, a sociedade colonial deixa de ser "sociedadede classes": ela seria de castas e, ao n1esmo tempo, de classes. Ascastas e as classes, substantivamente, seriam identicas? Para n6snao sao identicas, como veremos.103 Em suma, hii, em Gorender,uma homologia entre castas e classes e diferencial;ao entre estas e osestamentos, nao deixando de haver urn privilegiamento do eco-nomico:

"0 novo sistema durou enquanto durou a colonia. Por via dele, nasua moldura, as vezes rigida, outras vezes flutuante, a Coroa do-minou, controlou e governou sua conquista".

"A sociedade colonial nao esgota sua caracterizac;ao com 0 quadroadministrativo e 0 estado-maior de dominio. 0 eSlamenlO. Esta mi-noria comanda, disciplina e control a a economia e os nucleos hu-manos. Ela vive, mantem-se e se articula sobre uma estrutura de clas-ses, que, ao tempo que influencia 0 estamento. dele recebe 0 influxoconfigurador, no campo politico. 0 patrimonialismo, de onde brota aordem estamental e burocratica, haure a seiva de uma especial con-textura economica, definida na expansao maritima e comercial dePortugal". 10\

"Vistos tais aspectos contradit6rios da estrutura social, passemos auma apreciac;ao sumaria do privilegiamenlo economico dos planta-dores pel a Coroa portuguesa" .

A partir desse principio de homologia, nao se usa 0 termo esta-mento com freqiiencia; ele e substituido pelo termo classe: "a classedos plantadores coloniais" .104No mesmo sentido, para Decio Saes,a sociedade colonial brasileira, dos meados do seculo XVI ate os finsdo seculo XIX, "foi uma sociedade de classes e, simultaneamente,uma "sociedade de ordens", sendo, 0 primeiro, aspecto dominantee, 0 segundo, aspecto subordinado. No entender de Decio Saes, edificil "comprovar a existencia de estamentos dentro da ordem doshomens livres, no caso brasileiro":

Na tradil;ao weberiana Faoro associa, a classe, a "ordem eco-nomica" e, ao estamento, a "ordem social". Havendo capitalismopolitico, a primazia e a do"minancia recaem mais sobre os privilegiose honrarias construidos politicamente do que sobre os bens e servi-I;OS acumulados economicamente. Nao se filiando a corrente webe-riana, Gorender sugere a articulal;ao entre as estruturas juridico-politic a e ideol6gica em relal;ao a estrutura economica. Pelo fato deGorender considerar que hii determinal;ao e dominancia desta ul-tima em relal;ao as primeiras, as classes sociais deveriam prevalecersobre os estamentos e as castas:

"Os privilegios juridicamente fixados, capazes de diferenciar algunshomens livres de outros, nao lograram se irnplantar aqui: inexistiuurna nobreza hereditaria, a lei do rnorgadio se revelou inca paz deconverter a propriedade da terra no resultado exclusivo de urn privi-legio (ordern de nascimento), e nem mesrno as corporac;oes de oficio,ja permeadas pelo escravismo (os artesaos ernpregavam escravoscomo auxiliares), chegararn a estabelecer urna diferenciac;ao esta-

" ... a sociedade colonial.era uma rigida sociedade de castas - semdeixar de ser sociedade d; classes - enquanto a percorrira de alto a

(101) Faoro, R. (1977), op. cit., pp. 120, 121, 144, 146 e 203. Sobre as classes, diz Faoro:..... e um fenomeno da economia de mercado, sem que represente uma comunidade - embora aa9ao comunitaria seja possivel, provavel e freqiiente com base na situa9ao comum e em interesseshomogeneos", p. 203.

(102) Gorender, Jacob (1978), op. cit., p. 526.(103) Questao desenvolvida adiante.(104) Gorender, Jacob (1978), op. cit., pp. 526-7.

Page 35: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

mental entre mestres e aprendizes. Na verdade, as contradi95es entreas classes sociais articuladas a ordem dos horn ens livres determi-naram a forma9ao, nao de estamentos, e sim de uma diferencia9aopolitica fundada em criterios censitarios" .105

Finalmente, Alberto Passos Guimaraes fala em casta de gran-des proprietarios, instituida pelas cartas de doa<;ao, rebaixando 0

membro do povo a posi<;ao de ser urn simples arrendatario. Esteprocesso de arrendamento aos pequenos colonos criou uma classe deagregados agrfcolas: e ela "a primeira forma de trabalho livre" aolado "do trabalho escravo". Ao analisar 0 carater de classe e, dai,a desigualdade, que presidia na distribui<;ao de sesmarias, 0 autorde Quatro Seculos de Latifundio afirma:

Estes criterios censitarios, fundamentalmente economicos,serviram para impulsionar a mobilidade social e a "circula<;ao doshomens livres por entre as classes sociais articuladas a essa or-dem". Hl6 Como a tese sustenta1a por este autor preconiza a existen-cia do Estado Escravista Colonial no Brasil e a existencia de classesdominantes, que, atraves deste Estado, exercem a domina(:iio declasse, pode-se concluir que a sociedade colonial e, fundamental-mente, uma sociedade de classes. Tal conclusao equivale a dizer quea domina<;ao e a hegemonia eram exercidas pela classe dominantelocal (fazendeiros escravistas, latifundiarios nao-escravistas, merca-dores), cooptada pela classe dominante portuguesa. Assim, 0 Es-tado Escravista Colonial e estruturalmente, tanto para Decio Saes,como para Gorender, urn Estado de classes.

Temos classes na estrutura social vigente, tanto na produ<;aobaseada no escravismo quanto naquela baseada em rela<;6esfeudais:dominantes e dominados. Ha, de acordo com Werneck Sodre, ini-cialmente, uma "associa<;ao de interesses entre a classe dominantecolonial, de que os senhores de engenho representam a fra<;aomaisimportante, e a classe dominante metropolitan a" . Esta associa<;aoinicial e tornada contradit6ria e conflituosa, quando os interesses deuma classe dominante em rela<;aoa outra particularizam-se: dai sur-gem os movimentos nativistas de alteridade politica, colocando aquestao da independencia. Em conseqiiencia da antiga "contradi-<;aointerna entre a classe de senhores de terras e de escravos e apopula(:iio colonial, agravada pelo fato de ter sido aquela mandata-ria e procuradora da Metr6pole em longa fase, e que as manifesta-<;6esde rebeldia se operam mais entre as camadas niio senhoriais doque dentro da classe senhorial, camadas fracas e condenadas a der-rota, porque suas reivindica<;6esnao interessavam a classe senho-rial, quando nao se voltavam contra ela". 107

Em rela<;aoa outra tese variante marxista, personificada emGorender e Saes, a enfase e no carater escravista e colonial da pro-du<;aosocial brasileira, havendo no interior da forma<;ao social se-qiielas de tra(:os feu dais , mas predominando, em ultima instancia,

"Nao chegaria a distribui9ao das sesmarias, por mais desigual e in-justa que fosse, a se afastar dos limites da classe dos senhores. Apenasa injusti9a consistia, para a epoca, em criar a desigualdade dentro daclasse dominante, composta de nobres eplebeus ricos ou remediados,os 'homens bans' de qualidades ou de posses, unicos, por sua con-di9aO, a merecerem 0 dignificante titulo de senhores da terra".

Na medida em que as analises de Werneck Sodre e PassosGuimaraes se fundam na primazia da produ<;ao, centradas na formade propriedade (sesmaria) e na organiza<;ao da economia a<;ucareira(engenho), ou seja, na unidade produtora, a estrutura correspon-dente a mesma e fundamentalmente de classes. Preside a concep<;aode luta de classes. 0 monop6lio da terra e a organiza<;ao de enge-nhos refor<;am "0 poder absoluto dos grandes senhores", ao mesmotempo em que as popula<;6es"menos providas encontram-se em difi-culdades" agravadas. A Metr6pole interessaria "colocar-se ao ladodos senhores mais poderosos, respeitar-Ihes os privilegios antes quecontraria -Ios":

"Nem se com preen de ria que fosse de outro modo, conhecidas as con-di90es economicas e politicas do Reino. A medida em que agravava 0

processo de desagregar;iio da sociedade portuguesa, desenvolviam-se,igualmente, no Brasil Colonial, os antagonismos de classe". 108

(105) Saes, Decio (1985), op. cit., pp. 82-3.(106) Saes, Decio (1985), op. cit., pp. 81-3.(107) Sodre, N. W. (1962), op. cit., p. 171. Ver tambem Mantega, Guido, e Cardoso,

Ciro, para criticas as teses feudais e, especialmente. ao contelido dogmatico delas.

Page 36: Sedi Hirano - Pré-capitalismo e Capitalismo cap. 1

a rela~ao escravista colonial, ate os primordios do seculo XIX. Wer-neck Sodre ressalta a predominancia do carater escravista e, subor-dinada a ele, a emergencia de produriio marcadamente feudal (porexemplo na pecuaria), produ~ao esta que, nos momentos de crise daprodu~ao a~ucareira, se torna dominante, penetrando em todos osporos da forma~ao colonial brasileira. Em Alberto Passos Guima-raes, a primazia e posta na dominancia da estrutura juridico-poli-tica feudal na Metropole, e sua transposi~ab a forma~ao colonial.Nesta forma~ao, implantou-se uma produ~ao baseada fundamen-talmente no trabalho escravo, resultando em relariio escravistadominante no interior de uma relariio de produriio feudal subordi-nada, mas 0 elemento determinante, em ultima instancia, e a su-perestruturajuridico-politica. "No sistema de planta~ao" e "no con-junto da ec,onomia pre-capitalista do Brasil-Colonia", diz ele, "0

elemento fundamental, a caracteristica dominante a qual estavamsubordinadas todas as demais relaroes economicas, e a propriedadeagraria feudal" .

Em Gorender e Saes, a estrutura economica, de carMer escra-vista, e determinante e dominante, e a superestrutura juridico-poli-tica e por ela determinada. A superestrutura juridico-politica e aprodu~ao feudais preexistentes na Europa nao se implantam noBrasil colonial. Aqui e gerado urn novo modo de produ~ao, escra-vista e colonial, e uma superestrutura correspondente, 0 Estado es-cravista moderno. A estru.tura social correspondente e, fundamen-talmente, uma estrutura de classes. Uma forma~ao economico-socialpre-capitalista determina uma sociedade de classes.

Fizemos neste capitulo uma revisao critica das varias tesessobre a forma~ao colonial brasileira - a tese do feudalismo, do pre-capitalismo, do capitalismo comercial, do capitalismo industrial.Esta revisao possibilitou esbo~ar os grandes contornos de urn de-bate, a proposito de nossa principal questao: as estruturas sociaiscorrespondentes a forma~ao colonial sao de classes? Ou, ao con-trario, sao de castas? Ou, ainda, de estamentos?

No proximo capitulo discutiremos a problematica teorica docapital mercantil (comercial e usurario) e do capital industrial, e os"capitalismos" resultantes, alem das estruturas sociais correspon-dentes: classes, estamentos e castas.

PRODU<;Ao E CIRCULA<;AoPRE-CAPITALISTA E CAPITALISTA:CASTAS, ESTAMENTOSE CLASSES

Procura-se discutir no presente capitulo, do ponto de vistamarxista, 0 papel do capital comercial e usurario no processo deacumula~ao origin aria de capital, processo este que resulta na disso-cia~ao do trabalhador em rela~ao as condi~oes materiais de produ-~ao, bem como discutir a estrutura juridico-politica correspondente.Posteriormente, analisa-se a constitui~ao do modo de produ~aocapitalista e, no interior dele, a questao das classes sociais. Ultima-se 0 capitulo, discutindo-se a questao do estamento e das classessociais como urn problema adscrito ao marxismo.

1. ACUMULA<;.AO ORIGIN.ARIA, PRE-CAPIT ALISMOE ESTRUTURA SOCIAL ESTAMENTAL (OU DE CASTAS)

o trabalho, na concep~ao de Marx, "e uma condi~ao naturaleterna da existencia humana". Sem 0 trabalho, nao haveria a pro-du~ao e a reprodu~ao (historico-social) da vida humana. "0 pro-cesso de trabalho nao e outra coisa senao 0 proprio trabalho, vistono momento de sua atividade criadora". 0 homem, sendo 0 porta-dor consciente da atividade criadora, que se realiza por meio doexercicio propositado da for~a vital, das energias do cerebro, bra~ospernas e musculos, utilizados conscientemente no processo de con-formar e moldar a natureza segundo as necessidades humanas, estehomem e agente de transforma~ao, colocando em pratica 0 projeto