trabalho ielp1 - 2014

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1 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS ANDREA NATANAEL SILVA DANIEL SILVEIRA BUENO KETHYLLIN SANTOS DA SILVA Análise corpora: manuscrito de Jacareí e corpus oral São Paulo 2014

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Língua Portuguesa, Filologia, Sociolinguística variacionista

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1

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

ANDREA NATANAEL SILVA

DANIEL SILVEIRA BUENO

KETHYLLIN SANTOS DA SILVA

Análise corpora: manuscrito de Jacareí e corpus oral

São Paulo

2014

2

ANDREA NATANAEL SILVA

DANIEL SILVEIRA BUENO

KETHYLLIN SANTOS DA SILVA

Análise corpora: manuscrito de Jacareí e corpus oral

Dissertação apresentada à Faculdade de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas da

Universidade de São Paulo para aprovação na

disciplina de Introdução ao Estudo da Língua

Portuguesa (IELP) 1

Área de Concentração: Filologia

Orientador: Prof. Dr. Manoel Mourivaldo

Santiago Almeida

São Paulo

2014

3

RESUMO

SILVA, A. N.; BUENO, D. S.; SILVA, K. S. da. Análise corpora:

manuscrito de Jacareí e corpus oral. 2014. ≈30 f. Dissertação – Faculdade

de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São

Paulo, 2014.

O presente trabalho visa discorrer sobre a evolução estrutural do Português

ao longo do tempo através da análise comparativa de documentos

manuscritos e transcrições de voz de falantes nativos. Para melhor

desenvolver os conceitos linguísticos envolvidos nesta empresa,

inicialmente, será apresentada uma síntese do processo de surgimento da

Língua Portuguesa no mundo e sua fixação no Brasil, em seguida, o restante

do trabalho será apresentado em duas partes. A primeira parte fará a análise

de um documento manuscrito, originalmente, no Brasil do século XVIII e, a

partir da comparação dele com outros datados do mesmo período, descrever

aspectos linguísticos relevantes de caráter morfológico, ortográfico e de

acentuação gráfica; além disso, tentará propor as possíveis origens

geográficas e estratos sociais de seu autor. A segunda parte fará a análise da

transcrição fonética de um falante brasileiro do século XX, tentando

identificar as possíveis regiões de origem de sua variedade linguística e as

variáveis sociais que possibilitam seu emprego; além disso, fará uma

descrição sistemática da realização do fonema /s/ por este falante.

Palavras-chave: Língua portuguesa; Português no mundo; Variação

linguística.

4

LISTA DE QUADROS

Quadro 01 – termo: trastes ............................................................................. 17

Quadro 02 – termo: rasgada ........................................................................... 18

Quadro 03 – termo: oculta .............................................................................. 18

Quadro 04 – termo: concistorio ...................................................................... 19

Quadro 05 – termo: capitular .......................................................................... 19

Quadro 06 – termo: confessor ........................................................................ 19

Quadro 07 – termo: acodido ........................................................................... 20

Quadro 08 – termo: arranchou ........................................................................ 20

Quadro 09 – nº de ocorrências do fonema /s/ em início de sílaba .................. 25

Quadro 10 – nº de ocorrências do fonema /s/ em final de sílaba.................... 25

5

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................. 6

CONTEXTO HISTÓRICO ............................................................................... 7

1. O MANUSCRITO DE JACAREÍ ................................................................ 14

1.1. DA TRANSCRIÇÃO ......................................................................................... 15

1.2. DO AUTOR ..................................................................................................... 16

1.3. DA ANÁLISE DO MANUSCRITO ...................................................................... 17

1.3.1. ASPECTO SEMÂNTICO-LEXICAL ................................................................ 17

1.3.2. ORTOGRAFIA E ACENTUAÇÃO GRÁFICA ................................................... 21

2. CORPUS ORAL ............................................................................................ 23

2.1. DO FALANTE ................................................................................................. 24

2.2. A CONSOANTE FRICATIVA /s/ ....................................................................... 25

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 28

REFERÊNCIAS ................................................................................................ 29

ANEXOS ............................................................................................................ 30

6

INTRODUÇÃO

Os manuscritos são “considerados de suma importância para o resgate histórico de

várias áreas de estudo, principalmente no que diz respeito à escrita, pois, tais documentos

trazem à tona a natureza do texto: seus argumentos, os propósitos, as intenções, o vocabulário

e principalmente as características da escrita da época”. (LINI; BARONAS, 2008)1

Nesse contexto, este trabalho visa identificar a evolução estrutural do Português

ao longo do tempo através de um manuscrito setecentista e de um corpus oral, buscando

compreender as características da escrita do século XVIII e identificar as possíveis regiões de

origem da variedade linguística de um falante brasileiro do século XX. Para, assim, atender às

demandas de avaliação do curso de Introdução ao Estudo da Língua Portuguesa, que tem por

objetivo oferecer ao aluno um estudo descritivo da situação do Português no mundo e, em

particular no Brasil, além de fornecer noções sobre a formação histórica da Língua

Portuguesa.

O estudo está estruturado em três importantes seções. A primeira, denominada

CONTEXTO HISTÓRICO, apresenta o surgimento e as fases da formação da Língua Portuguesa

apontando características dos períodos Arcaico, Médio e Moderno. Além disso, retomam-se

alguns aspectos históricos no processo de fixação do Português no Brasil.

A segunda parte tem por objetivo analisar e compreender o corpus escrito, ou seja,

o manuscrito de Jacareí, elaborado no Brasil do século XVIII, através do aspecto semântico-

lexical e dos aspectos ortográficos e de acentuação gráfica.

A terceira parte, busca identificar as possíveis regiões de origem da variedade

linguística e as variáveis sociais de um falante brasileiro do século XX, através da descrição

realização do fonema /s/. Por fim, a última seção traz as considerações finais do trabalho.

1 In: DONAT, M.; IVANO, R. (org.) VII Seminário de Pesquisa em Ciências Humanas. Londrina: Eduel, 2008.

Disponível em: <http://www.uel.br/eventos/sepech/sepech08/anais_capa.htm>. Acesso em: 13/07/2014.

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CONTEXTO HISTÓRICO

— Papai, por que é que mesa chama mesa?

— Ah, Marcelo, vem do latim.

— Puxa, papai, do latim? E latim é língua de cachorro?

— Não, Marcelo, latim é uma língua muito antiga.

(ROCHA, Ruth. Marcelo, martelo, marmelo e outras histórias. 34 ed. Rio de

Janeiro: Salamandra, 1976. p. 10)

A história da evolução da Língua Portuguesa confunde-se com a própria história

da formação do estado português. Após as guerras púnicas ocorridas no século III a.C., Roma

toma controle da Península Ibérica impondo o latim sobre seus habitantes que o adotam como

língua padrão. Esta se manteve, até a Idade Média, como a língua escrita oficial; entretanto, a

variante oral do latim evoluiu de forma independente e sofreu influências e acréscimos dos

outros povos que tentaram dominar a região, como bárbaros germânicos, de permanência

breve, e árabes muçulmanos. Esses últimos permaneceram na península do século VIII ao

XIII quando as últimas terras ao sul foram reconquistadas pelos reis católicos e os “infiéis”

foram expulsos.

Aquele momento marca o primeiro exemplo do pioneirismo português na Europa

quando Portugal surge como um reino unificado. O passo seguinte foi a descoberta de novos

territórios, a partir das grandes navegações, que fez com que a Língua Portuguesa, agora

também oficialmente constituída, atingisse a América, África, Ásia e Oceania.

Tratando especificamente de uma descrição diacrônica da língua, os autores não

são unânimes ao indicar as fases evolutivas do Português. Alguns consideram haver apenas

dois períodos, português arcaico e português moderno. Já outros estudiosos consideram um

terceiro período, intermediário aos anteriores, denominado português médio. Vamos fazer

nossa análise a partir dessa última afirmação.

O PORTUGUÊS ARCAICO – Desde o início da invasão muçulmana, no ano 711, do

extremo sul em direção ao norte, a Península Ibérica estava ocupada por árabes em mais de

50% de seu território, isso levou os cristãos da parte mais ocidental a refugiarem-se a

noroeste, na região da Galícia, e determinou seu isolamento linguístico tanto em relação aos

árabes, quanto em relação aos castelhanos do leste. Este isolamento permitiu o

8

desenvolvimento das derivações do latim que originaram o galego-português, entre os séculos

IX a XIII, quando surgem os primeiros textos escritos nessa língua, que é descrita por

Teyssier (1997) como uma forma extremamente incorreta do latim tida, tradicionalmente,

como “latim bárbaro”.

Dentre as inovações fonéticas galaico-portuguesas, duas merecem destaque: (1) a

transformação dos dígrafos iniciais pl-, cl- e fl-: nos vocábulos de uso corrente houve

tendência à palatalização, sendo realizada oralmente pela africada [tʃ] e transcrita por ch,

temos, por exemplos: plaga > chaga [tʃaga], clave > chave [tʃave] e flamma > chama [tʃama];

entretanto nos grupos de palavras de uso menos popular ocorreu apenas rotacismo do l, como

em placere > prazer, clavu > cravo e flaccu > fraco, mesma evolução que ocorreu com bl-,

blandu > brando; (2) a queda do -l- e do -n- intervocálicos: o primeiro caso contribuiu para

formação dos hiatos vocálicos, com ou sem monotongação posterior, exemplos: salire > sair,

palatiu > paaço > paço, calente > caente > quente, dolore > door > dor, filu > fio, nebula >

névoa etc; o segundo caso é um pouco mais complexo e decorre da nasalização da vogal que

precedia o -n- intervocálico como em: vinu > vĩo, manu > mão, seminare > semẽar, lana >

lãa, homines > homẽes, bonu > bõo etc, lembrando que a vogal nasal e as que sucediam-lhe

faziam parte de duas sílabas distintas.

Além disso, em relação aos aspectos morfológicos e sintáticos do galego-

português, diz Teyssier (1997, p. 16):

A declinação nominal simplifica-se e acaba por desaparecer: sobrevivem

apenas formas oriundas do acusativo [...] as desinências causais são agora expressas

por preposições. Os gêneros [...] reduzem-se a dois. O futuro simples (ex.: amabo) é

substituído [...] por uma perífrase construída com habere – amare habeo –, donde se

origina o futuro galego-português amarei. Um artigo definido forma-se com base no

demonstrativo ille [...] E, por fim, para compensar o empobrecimento da morfologia

nominal, a ordem das palavras torna-se mais rígida.

O PORTUGUÊS MÉDIO – Com os movimentos de expulsão dos muçulmanos, as

regiões ao sul da Península Ibérica foram sendo retomadas, disseminando a nova língua que,

ao entrar em contato com os dialetos marcados pelo arabismo dos invasores, passa a ter um

formato mais próximo ao que usamos atualmente.

A luta contra os árabes, que durou muitos séculos, ajudou a criar um espírito de

nacionalidade entre os cristãos lusitanos. Após a constituição do Reino de Portugal, o sexto

monarca a ocupar o trono, D. Dinis I, promoveu atos que visaram a manutenção da unidade

9

política do país, adotando o Português como língua oficial do reino e fundando a

Universidade de Coimbra para o desenvolvimento da cultura acadêmica.

Com a incorporação da Galícia pelo reino espanhol, o galego inicia seu processo

de derivação influenciado pelo castelhano e passa a ser visto pelos portugueses como uma

língua arcaica e rústica. Entretanto, ainda era possível perceber a presença de vocábulos

espanhóis na literatura, provavelmente devido às questões políticas que envolveram a

sucessão da coroa portuguesa, no século XVI, e a União Ibérica.

O aparecimento da imprensa em Portugal coincide com a guerra da Restauração

contra Espanha, no século XVII, quando aparecem os primeiros periódicos portugueses com

objetivo de relatar as notícias daquele período, marcando o início da propaganda política da

nação (em menor escala, os artigos também relatavam a vida cotidiana da capital). Estes

periódicos permitiam aos que estavam longe do reino conhecer os rumos da administração

pública portuguesa e alimentavam seu patriotismo. Além disso, eram ricos em notícias do

estrangeiro, o que, provavelmente, estimulou o exercício do Português através das traduções

de artigos franceses e holandeses, o que, por sua vez, pode ter levado ao interesse em

instrumentalizar a língua com o desenvolvimento de gramáticas e dicionários.

Cabe também dizer, aqui, que é essa a variante do Português que foi disseminada

pelo mundo através das grandes navegações.

O PORTUGUÊS MODERNO (OU CONTEMPORÂNEO) – Uma vez definidas a

morfologia e a sintaxe, a língua entra na sua fase moderna: na época da publicação de Os

Lusíadas (Camões, 1572), o Português já é muito próximo do atual. Daí para frente, o que

acontece são mudanças menores: a influência francesa sobre a Europa no século XVIII

(sentida principalmente em Portugal), além do empréstimo de novas palavras, faz a língua da

metrópole afastar-se daquela praticada nas colônias.

Em Portugal, formam-se três dialetos principais: o do norte, o centro-meridional e

o lisboeta. Os dialetos do norte são os mais próximos do antigo galego-português, seja na

manutenção da realização africada [tʃ] para o dígrafo ch-, seja na realização do fonema /z/

como [s] em palavras como rosa e fazer. Além disso, percebe-se uma tendência para a

realização do v gráfico como [b] (caso de binho, abó por vinho, avó). Esses dialetos também

se mostram conservadores em relação à monotongação dos ditongos [ow] e [ej] em palavras

como ouro e ferreiro.

Os dialetos centro-meridionais são os mais abrangentes no país e tidos como as

formas da “pronúncia padrão” portuguesa. Diferente dos primeiros, esses dialetos realizam o

10

ch- naturalmente em [ʃ] e o /z/ em [z]; as vogais átonas o e u são elevadas para [y], assim

como o e átono é elevado para [ɨ], quando em posição postônica ou em final absoluto de

palavras, quase se aproximando do u realizado no francês menu. Também já se admite a

monotongação dos ditongos [ow, ej] para [o, e].

O terceiro dialeto português é aquele praticado no trajeto Lisboa-Coimbra que,

além de admitir as variações da pronúncia padrão, incluem novidades como o abaixamento do

e do ditongo [ej] para [ɐj], ex.: beijo [ˈbɐjʒy] ou, quando nasal, para [ãj], ex.: tem [tãj]. Além

disso, quando em posição postônica ou em sílabas finais de palavras, as oclusivas /t, d/ são

realizadas como fricativas dentais [θ, ð] e, não raro, causam supressão das vogais que as

acompanham, exemplos: vontade [võˈtɐð], gosto [ g̍oʃθ].

Quanto ao léxico, entre os séculos XIX e XX o vocabulário português recebeu

novas contribuições:

[...] com o Renascimento, o latim volta a ter muito prestígio. Restauram-se [...]

formas latinas que já haviam sido modificadas [...] e recuperam-se as formas

nominais sintéticas, tais como comparativos e superlativos eruditos (maior, menor,

inferior, superior, fidelíssimo, paupérrimo) [...] outras vezes, substituem as formas

populares: fremoso foi substituído por formoso, os ordinais do tipo onzeno, dozeno,

trezeno cedem lugar a décimo primeiro ou undécimo etc [...] o português moderno,

assim como as outras línguas românicas, criou muitas palavras com base em radicais

eruditos (gregos e latinos): automóvel e telefone. (CARDOSO, 2008)2

Nas colônias, o Português Europeu se mistura aos dialetos locais e gera dialetos

crioulos que contribuem com o repertório da língua pelo empréstimo de palavras como:

caipira, mingau, pipoca, banana, batuque, turbante, odalisca, bule, bambu, chá, leque,

pagode etc. Recentemente, termos técnicos em inglês de áreas como as ciências médicas e a

informática foram agregados (por exemplo, check-up e software). Então, em 1990, para evitar

o agravamento do fenômeno da introdução de termos diferentes para os mesmos objetos e,

assim, garantir a uniformidade da língua, uma comissão composta por representantes dos

países de Língua Portuguesa, assinou um Acordo Ortográfico. O primeiro acordo foi assinado

por todos os países que têm o Português como língua oficial, exceto pelo Timor Leste, que

ainda não havia alcançado a independência. Um segundo acordo contou com a participação

do Timor, agora independente, mas não com Portugal. O terceiro acordo teve participação de

Portugal, sendo esse o último a acatar as mudanças da ortografia, com prazo até 2016 para

adequar-se ao novo padrão.

2 In: SILVA, L. A. da. (org.) A língua que falamos. Português: história, variação e discurso. São Paulo: Globo,

2008. p. 173

11

O PORTUGUÊS DO BRASIL – Do mesmo modo que ocorreu em Portugal, no Brasil,

também não é possível pensar em aquisição e desenvolvimento da língua que praticamos hoje,

desvinculando a história da colonização e as relações sociais que dela derivam.

Se é que Cabral gritou alguma coisa quando avistou os contornos do Monte

Pascoal, certamente não foi “terra ã vishta”, assim com o “a” abafado e o “s” chiado

que associamos ao sotaque português. No século XVI, nossos primos lusos não

engoliam vogais nem chiavam nas consoantes – essas modas surgiram no século

XVII. Cabral teria berrado um “a” bem pronunciado e dito “vista” com o “s”

sibilante igual ao dos paulistas de hoje. Na verdade, nós, brasileiros, mantivemos os

sons que viraram arcaísmos empoeirados para os portugueses.

Só que, ao mesmo tempo, acrescentamos à língua mãe nossas próprias

inovações. Demos a ela um ritmo roubado dos índios, introduzimos subversões à

gramática herdadas dos escravos negros e temperamos com os sotaques de milhões

de imigrantes europeus e asiáticos. Deu algo esquisito: um arcaísmo moderno.

(BURGIERMAN, D. R. “Falamos a língua de Cabral?” Superinteressante, São

Paulo, v. 151, p. 46-49, abril 2000.)

Nos primeiros anos de ocupação, os portugueses tomaram as áreas litorâneas no

qual viviam populações de índios tupis, muitas das quais foram dizimadas e forçadas a se

refugiar no interior do continente. Pelo fato de os nativos se encontrarem em maior número,

os colonizadores acharam, por bem, aprender o idioma tupi ainda inspirados pelos jesuítas que

assim faziam para catequizar os índios. Esse idioma é tido como a língua geral usada na

colônia até o século XVIII.

Ao mesmo tempo, foram trazidos aproximadamente 20 milhões de escravos

negros, que ao contrário dos índios, mantinham contato mais estreito com os brancos. Muitas

vezes os negros eram misturados aos índios para dificultar a confraternização dos escravos e

diminuir a possibilidade de rebeliões. Dessa exposição às línguas africanas e indígenas é que

surgem as primeiras variações da pronúncia, morfologia e sintaxe do Português Brasileiro.

Como diz Teyssier (1997, p. 94): “as populações de origem indígena, africana ou mestiça

aprendem o português, mas manejam-no de uma forma imperfeita. Ao lado do português

existe a língua geral, que é o tupi [...] mas um tupi simplificado, gramaticalizado pelos

jesuítas.”

Apesar do que se possa supor: que a mistura do Português Europeu com as línguas

dos negros e índios daria uma nova língua, o fato é que isso só foi decisivo para a formação

dos diferentes dialetos que temos hoje no Brasil. É verdade que os dialetos do interior do país

são remanescentes dos crioulos do período colonial, porém vale lembrar alguns fatos: na

metade do século XVIII, por causa das reformas pombalinas, foram decretadas leis que

expulsaram os jesuítas e proibiram o uso da língua geral; além disso, a mudança da corte

12

portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, levou o país a um processo de relusitanização que

acelerou a difusão do Português para o interior e sul do país iniciada pelos Bandeirantes.

Segundo Pires (2009)3:

Este processo de expansão já havia começado de maneira lenta com a

literatura desde o século XVI. Desde então, através do trabalho conjunto da

expressão literária, proibição do uso da língua geral e ensino sistemático da língua

portuguesa nas escolas, esta língua ganhou o reconhecimento de língua nacional, e

oficial devido à sua difusão por todo o território brasileiro.

Isso teria concorrido para a uniformização da língua por todo o território

brasileiro, de modo que, mesmo com sotaque (ou mesmo vocabulário) diferentes, nada há que

impeça a comunicação. Em relação a isso, diz Serafim da Silva Neto4 (1963 apud CUNHA;

CINTRA, 2000, p. 9, grifo do autor): “é preciso ter na devida conta que unidade não é

igualdade; no tecido linguístico brasileiro há, decerto, gradações de cores [...] O que é certo,

porém, é que o conjunto dos falares brasileiros se coaduna com o princípio da unidade na

diversidade e da diversidade na unidade”.

A partir daí, segue-se um novo processo dialetológico com a fixação do Português

no interior do país e as interações que decorreram do contato da língua com os novos

imigrantes que desembarcaram no Brasil, nos séculos XIX e XX. Em 2012, de acordo com as

prerrogativas do Acordo Ortográfico de 1990, ratificado em 2009, todo material impresso no

país passa a utilizar as novas regras de ortografia.

3 PIRES, C. R. da S. O uso da língua geral e sua restrição na América portuguesa. In: Revista Espaço

Acadêmico, UEM, n. 93, fevereiro 2009. Disponível em:

<http://www.espacoacademico.com.br/093/93pires.htm> Acesso em: 05/05/2014. 4 Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro, MEC/INL, 1963, p. 271

13

PARTE 1

14

1. O MANUSCRITO DE JACAREÍ

15

1.1. DA TRANSCRIÇÃO

Illm. o eEx. m o o r ECapp. a m Gn.a l

Doup. t e a VEx.a que quando chegey deSsa cid. e

achey o vigario daAldeẏa nesta V.a quejá havia bastan-

tes dias q nella estava; por Cuja Cauza morreo hua

India Sem Confiçaõ eos mais Sacram. tos; edezem

p a r a n d o , a A l d e ẏ a , h a v e n d o n a ò c a z i a õ S e t e

Enf er moz Emp rig o; Co mma ligna s for t i ss imas

aos quais tenho aCodido Com Remedioz na milhor

forma que poSso; E tem od.o deCostume deẏxar

a A l d e ẏ a S e m c o n f e s s o r ; p . a h i r a S a n t o z e

Va r ia s V ez es a E S s a C id . e ; e ta m b e m V a r ia s

V i a g e n s p o r E s t a s V i l l a s , E o u t r a s p . a a S u a

RoS sa; d eyxa ndo a gen te S em M iS sa m o s Do -

mi n g o s ed ia s S a n to z .

Mudou todoz os Seus trastes p.a aVilla deẏ

xando aIgr.a; depois Escreveo ao Capitular oq

lhe pareSseo; e te omandou/ Segundo dizem/

q’ tornaSse pa aIgr.a p.a mor daSua Regidençia,

eo e to hé q’ Cle igoz emp e saõ hũs pelloz

o u t o z / a m u d a ç a q ’ f e z e a R a c h o u

noConcistorio fechando as portas daIgr.a edos corre

dores Servindo-çe pella Sácrestia por hua gine-

lla Rasgada, upo ho q’po Estar aSua vontade

ho de eu o aõ veja; E te mos tais q’ te ho os co e

dores fechadoz p.a fazer m.a Oraçaõ oculta, e omao

Exemplo de Estar aRanchado na Irg. a/ Enfim

S . r / e u n a õ m e e n t e n d o C o m t a l P . e V E x . a

d a r à a P r o v id en c i à q u e f o r S er v id o a p e S so a

De vEx.a D.os G.e Com Sude mos anos p.a omas que o have

mos mister V.a deIacareẏ 14 de Dezvro d1766.

D VExa Umilde Servo

Joséd eAr . o Coimbr a

16

1.2. DO AUTOR

O signatário da carta, José de Araujo Coimbra, a escreveu no Brasil do século

XVIII, mais precisamente, em 14 de dezembro de 1766, período em que só havia

alfabetizados, na América portuguesa, os próprios imigrantes portugueses ou os filhos destes.

Além disso, o fato de a colônia não dispor de instituições de ensino forçava os interessados

em adquirir formação acadêmica a fazê-lo em Portugal, de onde supõe-se, por isso, que ele

dispunha dos recursos necessários para arcar com tais custas; pertencia à elite, portanto.

Sendo imigrante nativo de Portugal ou brasileiro filho de imigrantes, sua

formação se deu na Europa, provavelmente, em Coimbra ou na capital do império, Lisboa,

onde se praticava o Português Europeu, dentro das variantes centro-meridionais ou lisboetas,

fato esse que está marcado, por exemplo, na ortografia de palavras como milhor (melhor)

[mɨ ʎ̍ɔɾ], ginella (janela) [ʒɨˈnɛɫɐ] e [em]prigo (perigo) [pɨ ɾ̍ ɪgʊ], no qual se verifica a

elevação das vogais átonas comum aos falantes daquelas variantes e que evoluiu do Português

quinhentista disseminado nas colônias durante as grandes navegações, justamente em meados

daquele século.

17

1.3. DA ANÁLISE DO MANUSCRITO

1.3.1. ASPECTO SEMÂNTICO-LEXICAL

Com o objetivo de compreender o sentido do uso dos vocábulos utilizados pelo

autor em seu discurso, assim como suas relações com outras expressões dentro do contexto

histórico ao qual o falante está inserido, optou-se, como objeto da análise linguística da carta,

pelos aspectos semântico-lexicais. Para isso, foi feito um levantamento das palavras que mais

nos causaram impacto, ou seja, que nos gerou curiosidade, ao analisar a transcrição do

manuscrito.

A partir desse levantamento, para prosseguir com o estudo semântico-lexical dos

termos selecionados, elaborou-se um critério de pesquisa constituído de três itens:

(1) significado do termo: que está relacionado ao sentido contextual registrado no documento;

(2) verificação do registro do termo em dicionários de Língua Portuguesa no período

setecentista e atual;

(3) conclusão no que se diz respeito à manutenção, desuso ou neologismo do termo.

Quadro 01 – termo: trastes

Significado no texto

“pertences”

“Mudou todoz os Seus trastes p.a a Villa deyxando algr.a”

Dicionário de 1789

(Bluteau – vol2)

Dicionário HOUAISS

Séc XXI

s.m. 1 alfaia de pouco valor 2 indivíduo sem caráter; velhaco,

tratante 3 pessoa imprestável 4 mús. cada uma das divisões do

espelho de vários instrumentos de corda[...]

CONCLUSÃO Verifica-se que o significado do termo se manteve, porém com

tom pejorativo.

18

Quadro 02 – termo: rasgada

Significado no texto

“aberta”

“...fechando as portas da Igr.a edos Corredores Servindo-çe pella

Sacrestia por hua ginella Rasgada”

Dicionário de 1789

(Bluteau – vol2)

Dicionário HOUAISS

Séc XXI

adj. 1 que rasgou 2 dividido em pedaços[...] 9 sem obstáculos ou

barreiras; acessível de todos os lados; aberto[...] CONCLUSÃO Verifica-se que o significado do termo se manteve.

Quadro 03 – termo: oculta

Significado no texto

“em particular”

“...tenho os Corredores fechadoz p.a

fazer m.a Oraçaõ oculta,”

Dicionário de 1789

(Bluteau – vol2)

Dicionário HOUAISS

Séc XXI adj. 1 que está escondido, encoberto[...] 3 que não se revela[...]

CONCLUSÃO Verifica-se que o significado do termo se manteve.

19

Quadro 04 – termo: concistorio

Significado no texto

“Consistório”

“...na mudança q fez Se aRanchou noConcistorio,”

Dicionário de 1789

(Bluteau – vol1)

Dicionário HOUAISS

Séc XXI

s.m. 1 assembleia solene; conselho 2 dir. can. assembleia dos

cardeais da Cúria Romana[...]

CONCLUSÃO Verifica-se que o significado do termo sofreu derivação.

Quadro 05 – termo: capitular

Significado no texto

“título que designa superioridade hierárquica”

“...depois Escreveo ao Capitular oq lhe pareSseo;”

Dicionário de 1789

(Bluteau – vol1)

Dicionário HOUAISS

Séc XXI

adj.2g. [...] 2 relativo ou pertencente a capítulo (‘assembleia’) 3 com

voz em capítulo (‘assembleia’); capitulante[...] CONCLUSÃO Verifica-se que o significado do termo se manteve.

Quadro 06 – termo: confessor

Significado no texto

“confessor”

“...deyxar aAldeẏa Sem confessor;”

Dicionário de 1789

(Bluteau – vol2)

Dicionário HOUAISS

Séc XXI

s.m. [...] 4. rel. diz-se de ou padre que detém o poder de absolver os

pecados dos penitentes, que ministra o sacramento da penitência[...]

CONCLUSÃO Verifica-se que o significado do termo se manteve.

20

Quadro 07 – termo: acodido

Significado no texto

“ajudado”, “socorrido”, “tratado com remédios”

“...Commalignas fortiSsimas aos quais tenho aCodido com

Remedioz na milhor forma que poSso;”

Dicionário de 1789

(Bluteau – vol1)

Dicionário HOUAISS

Séc XXI

adj. 1 que se acudiu; que recebeu amparo; auxiliado, socorrido,

favorecido.

CONCLUSÃO Verifica-se que o significado do termo se manteve.

Quadro 08 – termo: arranchou

Significado no texto

“instalou-se”

“...namudança q fez Se aRanchou noConcistorio.” Dicionário de 1789

(Bluteau – vol1) Não há registro.

Dicionário HOUAISS

Séc XXI

v. 1 t.d. e pron. reunir(-se) ou distribuir(-se) em ranchos;

agregar(-se), associar(-se) 2 int. e pron. estabelecer(-se)

provisoriamente[...]

CONCLUSÃO

Não é possível efetuar comparação, porém o dicionário Houaiss

define a primeira ocorrência do vocábulo no ano 1665, de onde

se pode concluir que manteve o mesmo significado.

De acordo com a análise semântica-lexical, verificou-se que, dentre os oito termos

descritos, seis estão em manutenção desde o período em que o manuscrito foi redigido sendo

empregados com o mesmo sentido de então. O termo “concistorio” nos leva a supor que tenha

sofrido derivação semântica, pois através da pesquisa de seu registro nos dicionários pode-se

perceber que, hoje, possui valor erudito. Já o termo “trastes” manteve seu sentido (de objetos

pessoais, incluindo jóias), porém, atualmente adquiriu valor pejorativo.

21

1.3.2. ORTOGRAFIA E ACENTUAÇÃO GRÁFICA

Em relação ao aspecto ortográfico puderam-se verificar alguns fenômenos, como

os que ocorreram, por exemplo, nas palavras morreo e escreveo: a conservação do ditongo e a

elevação de o para u – morreu/escreveu.

Nos verbos achey, cheguey e deyxar que têm origem castelhana, ocorreu

metafonia, ou seja, alteração do timbre ou da altura vocálica – achei/cheguei/deixar. No

documento 10, Bahyas e maẏores tem y no lugar de i, mostrando a metafonia.

Nos vocábulos com -ll-, que tem origem latina, ocorre a assimilação total,

transformação de um fonema igual ou semelhante a outro existente na mesma palavra: villa >

vila, nella > nela, pella > pela. Nos documentos 10, 13, 15 e 25, vila é escrito com ll – villa.

No documento 25, há a presença da palavra pillares, illustrissima, o que também demonstra

uma origem latina.

Nos vocábulos com z, em contexto de final de sílaba, ocorreu sonorização,

transformação da palavra sonora para surda: cauza, enfermoz, todoz, Santoz, pelloz etc.

Na acentuação do grupo nasal ão, ocorreu nasalização no fim da palavra, sendo

marcado com diacríto (o til que representava tal nasalização): o fonema [õ], como por

exemplo, nos vocábulos confiçaõ e ócaziaõ. Isso pode ser encontrado em algumas cartas do

século XVIII, como no documento 10, em que o vocábulo taõ tem o anasalado e o vocábulo

cinaõ também apresenta tal ortografia. (VASCONCELOS, 2013)

Já o acento agudo tinha valor fônico, marcava a tonicidade das vogais ou o timbre

aberto das vogais médias, como em ócaziaõ.

22

PARTE 2

23

2. CORPUS ORAL

24

2.1. DO FALANTE

Observando a transcrição fonética de uma entrevista cedida por um falante nativo

do Português do século XX, imediatamente, já se pode perceber que ele utiliza uma variante

oral de sujeitos não-escolarizados, marcada em seu discurso por alguns exemplos de

metaplasmos, que podem aparecer combinados no mesmo vocábulo, e que são comuns a

todos os falantes do Português, em maior ou menor grau, desde os tempos do Português

Arcaico, como indicados abaixo:

fechamento da vogal média átona final (-e > -i, o > u)5: baile > [ b̍ajlɪ], frente > [ f̍ɾẽtɪ],

que > [ki], gosto > [ g̍ɔʃtʊ], do > [dʊ], disso > [ d̍isʊ] etc

monotongação: outro > [ o̍tɾʊ]

apócope: cantor > [kɐ t̍o], pisar > [pi z̍a], não > [nũ], para > [pa] etc

síncope: mesma > [ˈmemɐ], porque > [pu̍ ke], cantando > [kɐ t̍ɐ nʊ], não é > [nɛ] etc

metátese: terminar > [tɾimĩˈna], termina > [tɾiˈmĩnɐ]

despalatização: senhor > [sĩ o̍]

nasalação: assim > [ɐ s̍ĩ]

elisão: está ali > [ t̩a̍ li], minha é > [ˌmĩ ɲ̍ɛ], festa aí > [ f̩ɛʃta i̍] etc

Outras características fonológicas, facilmente verificáveis, podem dar uma pista

da provável origem desse falante, através da análise combinatória das características a seguir:

(1) o fato de que esse falante nunca palataliza o par oclusivo /t, d/, mesmo diante de i,

realização natural em Portugal (assim como nos países africanos e asiáticos de Língua

Portuguesa) e nas regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste brasileiras; (2) a alofonia do /s/ que,

em contexto de coda silábica, é realizado como fricativa [ʃ], realização comum em Portugal, e

também nos estados brasileiros do Rio de Janeiro, Mato Grosso e em parte da região

Nordeste; (3) bem como o par /ʃ, ʒ/, que é realizado de modo africado [tʃ, dʒ] e ocorre no

norte de Portugal e, igualmente, no estado brasileiro do Mato Grosso.

Vale lembrar que as formas [nɛ], [ˈmemɐ] < mesma e “o cara” estão amplamente

distribuídos no Português Brasileiro, independentemente da escolaridade do falante.

5 CASTILHO, A. T. In: ILARI, R. Linguística Românica. São Paulo: Ática, 1992. p. 245

25

2.2. A CONSOANTE FRICATIVA /s/

A partir do inventário dos vocábulos utilizados pelo falante, quando da entrevista,

pôde-se verificar uma homogeneidade nas realizações do fonema /s/, em todas as suas 25

ocorrências, claramente marcadas, que se deram em duas situações de alofonia:

quando em situação de ataque silábico ou em início de palavra, graficamente marcado por

s, ss e c, é realizado normalmente como fricativa alveolar [s]:

Quadro 09 – nº de ocorrências do

fonema /s/ em início de sílaba

vocábulos nº de

ocorrências

disso d̍isu 1

senhor sĩ o̍ 3

sua sua 1

certo s̍ɛɻtʊ 2

seu sew 2

assim ɐ s̍ĩ 3

esse e̍si 1

passa p̍asa 1

siriri siɾi ɾ̍i 1

“esse é” e̩sˈɛ 2

quando em posição de coda silábica ou final absoluto de palavra, graficamente marcado

por s, precedido ou não de semi-vogal [j], sofre palatalização sendo realizado como

fricativa palato-alveolar [ʃ]:

Quadro 10 – nº de ocorrências do

fonema /s/ em final de sílaba

vocábulos nº de

ocorrências

gosto g̍ɔʃtʊ 1

mais maʃ 1

enrosco ĩ r̍oʃkʊ 1

mas maʃ 1

dois doʃ 1

festa ˈfɛʃtɐ 2

“festa aí” ˌfɛʃta̍ i 1

26

Além dessas 25 ocorrências, claramente marcadas, existem mais duas que são

passíveis de um estudo aprofundado:

no vocábulo trás [tɾaj] usado pelo falante na expressão “na frente nem para trás”, apesar do

fonema /s/ existir em contexto de final absoluto de palavra, ele não foi realizado como

fricativa pós-alveolar [ʃ]. Isso sugere, como hipótese, que este falante diferencia trás

(numa posição posterior, atrás) de traz (verbo trazer), mas não de maneira a realizar cada

vocábulo de uma forma diferente, pois ele tem internalizado o fato de ambos serem

homófonos, porém os realiza com o /s/ final como fricativa alveolar [s], a partir do

seguinte processo de metaplastia: [tɾas] > [tɾajs] > [tɾaj], no qual o par trás/traz, num dado

momento histórico, teria sofrido epêntese para, num segundo momento, sofrer supressão

do /s/ final. Levando-se em conta que não há como efetuar uma contraprova que valide a

teoria apresentada, pelo fato de este falante não ter utilizado nenhuma outra palavra que

seja grafada com z, além do fato de não haver outras amostras de áudio que possam ser

confrontadas, deve-se levar em consideração a frequência com que os processos de

epêntese e apócope ocorrem no Português.

no vocábulo mesma [ˈmeɻmɐ], usado pelo falante na expressão “é mesma coisa”, apesar do

fonema /s/ ocorrer em contexto de coda silábica, também não foi realizado como fricativa

pós-alveolar [ʃ] mas sim como aproximante retroflexo [ɻ]. Mesmo que neste caso,

aparentemente, o processo de transformação pareça ter ocorrido de forma direta, há que se

levarem em conta dois pontos: (1) na mesma amostra ocorre a realização [ˈmemɐ] com

síncope da consoante não-nasal; (2) a partir da afirmação anterior pode-se deduzir que a

realização com retroflexo deriva da realização sincopada que, de outra forma, seria

realizada da maneira que é comum a este falante em condições similares, [ˈmeʃmɐ],

pronúncia idêntica a realizada pelos cariocas. Nesse sentido vale lembrar que, tendo em

consideração esse vocábulo específico, a realização [ˈmemɐ] é comum em todo o país, não

apenas em regiões rurais mas também nas áreas urbanas.

Síncopes assistemáticas desse som [do /s/], como na forma [ˈmemu] por

mesmo, ocorrem no PE [português europeu], PB [português brasileiro], no CPI

[crioulo indo-português] de Daman e no CEP [palenquero, crioulo de base

portuguesa falado em Palenque de San Basilio, na Colômbia]. Nessa mesma palavra

ocorre no PB [s] > [ɾ], fenômeno também atestado no PE. (VIARO, 2008)6

6 In: SILVA, L. A. da. (org.) A língua que falamos. Português: história, variação e discurso. São Paulo: Globo,

2008. p. 230

27

Embora haja precedentes registrados na literatura, este fenômeno da troca do /s/

por um fonema rótico ainda não passou por uma análise diacrônica detalhada que pudesse

explicar sua causa. Ainda assim, no caso do falante da amostra, uma hipótese possível para o

uso do aproximante retroflexo pode ter haver com a velocidade com que aquela palavra (já

sob efeito da síncope) é pronunciada: se mais lenta, surge a retroflexa e, quanto maior a

ênfase que o falante queira dar (marcando cada sílaba da palavra ou em uma situação de

leitura em voz alta), logo se partiria para a realização com fricativa, segundo este modelo:

[ˈmemɐ] > [ˈmeɻmɐ] > [ˈmemɐ] > [ˈmeʃmɐ]

Nesse sentido, o uso do aproximante retroflexo pode estar relacionado com uma

melhor acomodação dos articuladores envolvidos na realização do [ʃ], de modo que o som

seja produzido ao deixar um articulador próximo do outro, “mas sem a turbulência provocada

nas fricativas.” (SANTOS; SOUZA, 2012)7

7 In: FIORIN, J. L. (org.) Introdução à Linguística II. São Paulo: Contexto, 2012. p. 21

28

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta dissertação baseou-se no estudo diacrônico do Português, ao analisar duas

amostras dessa língua produzidas por falantes nativos em épocas distintas. Antes de iniciar

esta análise, foi feito um breve resumo das fases da formação daquele idioma, desde a adoção

do latim como língua oficial nos territórios da Península Ibérica (ainda nos tempos do Império

Romano) até a sua configuração moderna. Além disso, tentou-se descrever o processo de

fixação do Português no Brasil, bem como o contexto em que se deram suas variações

dialetológicas.

A seguir, apresentou-se a análise de um manuscrito de 1766, escrito no Brasil, no

qual se buscou averiguar o sentido de alguns termos no contexto histórico em que o falante

estava inserido. O critério de avaliação escolhido foi de comparar duas definições em

dicionários de épocas diferentes e descrever sua manutenção nos dialetos atuais. Um segundo

critério de análise referiu-se à descrição dos aspectos ortográficos e de acentuação em

evidência no século XVIII.

A próxima análise foi realizada sobre a transcrição de uma entrevista gravada,

também no Brasil, na década de 1990. Primeiro tentou-se sugerir as possíveis origens daquele

falante para, em seguida, descrever sistematicamente a realização de um fonema qualquer,

sendo escolhido o /s/. As hipóteses levantadas, em ambos os casos, surgiram a partir da

pesquisa em fontes epistemológicas relacionadas ao tema, além de trabalho empírico, e

relacionadas em ordem crescente.

Os resultados obtidos fazem pensar que a evolução de um idioma nada mais é que

uma sequência de repetições de processos metaplásmicos, sempre derivados da dinâmica do

uso da língua pelos seus falantes nativos, ou seja, suas inter-relações socioculturais, étnicas e

espaciais.

Apesar da distância que as separa, as variações dialetológicas existentes entre o

Português Europeu (incluindo as ex-colônias portuguesas na África e Ásia, que são mais

diretamente influenciadas por ele) e o Português Brasileiro, pelo menos por enquanto, não

foram suficientes para determinar uma deriva completa. É verdade que existem diferenças

claras de fonologia, vocabulário e sintaxe; porém, se considerarmos o intercâmbio entre as

pessoas dos diferentes países, assim como os esforços conjuntos de incentivo ao trabalho

acadêmico para análise e descrição da atual situação linguística do Português no mundo, bem

como projeções sobre sua evolução, é possível apostar na manutenção da sua unidade.

29

Além disso, deve-se considerar o esforço coletivo da comunidade linguista em

abolir a prática do preconceito linguístico e ao tentar descrever cientificamente o maior

número possível de variantes do Português. Basta considerar que os falantes nativos

reconhecem os sotaques uns dos outros, tanto regionalmente, quanto internacionalmente. Um

paulistano sabe quando fala com um português, assim como um angolano reconhecerá o

acento carioca como sendo do Brasil. As diferenças, quando houver, tenderão a diminuir

conforme se intensifiquem as aproximações culturais decorrentes da globalização e do uso da

internet.

30

REFERÊNCIAS

CASTILHO, A. T. “O português do Brasil”. In: ILARI, R. Linguística Românica. São Paulo:

Ática, 1992.

COUTINHO, I. de L. Pontos de gramática histórica. 6 ed. Rio de Janeiro: Livraria

Acadêmica, 1974.

CUNHA, C.; CINTRA, L. “Domínio atual da Língua Portuguesa”. In: Nova Gramática do

Português Contemporâneo. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

FIORIN, J. L. (org.) Introdução à Linguística II. São Paulo: Contexto, 2012.

Imprensa em Portugal até ao século XVII. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora,

2003-2014. Disponível em: <http://www.infopedia.pt/$imprensa-em-portugal-ate-ao-seculo-

xvii>. Acesso em 27/04/2014.

LINI, V.; BARONAS, J. “Manuscritos: uma contribuição para o ensino da língua

portuguesa”. In: DONAT, M.; IVANO, R. (org.) VII Seminário de Pesquisa em Ciências

Humanas. Londrina: Eduel, 2008. Disponível em:

<http://www.uel.br/eventos/sepech/sepech08/anais_capa.htm>. Acesso em: 13/07/2014.

PAGOTTO, E. G. Variedades do português no mundo e no Brasil. Ciência e Cultura, São

Paulo, v. 57, n. 2, junho 2005 . Disponível em:

<http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-

67252005000200017&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 10/04/2014.

SILVA, L. A. da. (org.) A língua que falamos. Português: história, variação e discurso. São

Paulo: Globo, 2008.

TEYSSIER, P. História da língua portuguesa. 7 ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1997.

VASCONCELOS, C. A. Estudo semântico-lexical do vocabulário setecentista em

Paranaguá. Manuscritos. São Paulo, Universidade de São Paulo. 2013.