trabalho Ética e aborto amiga

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1. INTRODUÇÃO Ocorrências como os abortos são qualificados conforme as circunstâncias que o determinam, e conforme a valorização ética que a pessoa lhe dá em certo momento. Reconhecer a existência de várias interpretações éticas significa igualmente respeitar os posicionamentos e as ações de pessoas com as quais não concordamos. Para que isso se torne possível, é necessário aceitar a diferença: nós não somos todos iguais nem, necessariamente, pensamos de forma igual. Nesse sentido, se fizermos um esforço poderemos ver que ocorrências como o aborto não são boas nem más em si; a ocorrência é qualificada conforme as circunstâncias que a determinaram e conforme a valorização ética que a pessoa lhe dá em certo momento. Reconhecimento da outra pessoa: A ética sugere sempre a idéia de reconhecermos nossa humanidade e também a humanidade das outras pessoas. O mais difícil ainda é reconhecer-se no outro. Isso implica o difícil exercício de nos pormos na situação concreta em que se encontra a outra pessoa (com todos os fatores que intervêm 1

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Page 1: TRABALHO ÉTICA E ABORTO AMIGA

1. INTRODUÇÃO

Ocorrências como os abortos são qualificados

conforme as circunstâncias que o determinam, e conforme a

valorização ética que a pessoa lhe dá em certo momento.

Reconhecer a existência de várias interpretações

éticas significa igualmente respeitar os posicionamentos e as ações

de pessoas com as quais não concordamos. Para que isso se torne

possível, é necessário aceitar a diferença: nós não somos todos

iguais nem, necessariamente, pensamos de forma igual. Nesse

sentido, se fizermos um esforço poderemos ver que ocorrências

como o aborto não são boas nem más em si; a ocorrência é

qualificada conforme as circunstâncias que a determinaram e

conforme a valorização ética que a pessoa lhe dá em certo

momento.

Reconhecimento da outra pessoa: A ética sugere

sempre a idéia de reconhecermos nossa humanidade e também a

humanidade das outras pessoas. O mais difícil ainda é reconhecer-se

no outro. Isso implica o difícil exercício de nos pormos na situação

concreta em que se encontra a outra pessoa (com todos os fatores

que intervêm na situação), para considerar o problema a partir do

posicionamento da outra pessoa. Isso o é o que sucede, em

reiteradas ocasiões da vida cotidiana, quando dizemos que nos

pomos no lugar do outro, quando exercemos a empatia.

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Page 2: TRABALHO ÉTICA E ABORTO AMIGA

Respeito à outra pessoa: Quando conseguimos

reconhecer o outro e conseguimos nos pôr no seu lugar, devemos

respeitar suas decisões, atitudes e opiniões. Só assim poderemos,

efetivamente, reconhecer o outro. Caso contrário, o esforço será

inútil e só poderá ser entendido como uma boa intenção ou uma boa

tentativa.

Tolerância/Aceitação da outra pessoa: Finalmente,

devemos tolerar a decisão do outro. A tolerância é uma condição

necessária para a relação entre seres humanos em um mundo

plural. A partir da tolerância reconhecemos e respeitamos a outra

pessoa, e podemos conviver no mundo onde as múltiplas decisões

sobre um mesmo acontecimento nos demonstram dia a dia que os

seres humanos são diferentes.

O reconhecimento da individualidade e liberdade de

consciência das pacientes, o respeito a elas e às suas decisões, e a

tolerância à diferença podem redundar positivamente na qualidade

do atendimento às mulheres que abortaram e, obviamente, na

qualidade de toda a nossa prática profissional.

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Page 3: TRABALHO ÉTICA E ABORTO AMIGA

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Page 4: TRABALHO ÉTICA E ABORTO AMIGA

2. ABORTO E ÉTICA

A discussão sobre o aborto é matéria recente na

sociedade brasileira. E essa talvez seja a principal razão pela qual

sempre que o assunto está em pauta imperem as posições radicais

e, raramente, o bom senso. Essas posições radicais, sejam elas

favoráveis ou contrárias à prática do aborto, têm impedido uma

reflexão mais ponderada por parte da sociedade, o que é

comprovado por resultados incoerentes em pesquisas de opinião

que se realizam sobre o assunto, e que abordaremos logo a seguir.

Afirmações do tipo "o aborto é o método mais eficiente para evitar

ou controlar uma explosão demográfica" ou "o aborto é um método

excelente de planejamento familiar" ou "o aborto é pecado" ou "o

aborto é crime", veiculadas com elevada carga de emotividade pelas

pessoas que radicalizam suas posições a favor ou contra, têm

confundido a sociedade em geral e retardado uma reflexão mais

racional por parte das pessoas.

Em recente pesquisa do Instituto Datafolha

(setembro/93), a maioria absoluta - 65% - dos entrevistados foi

contrária à legalização do aborto. As primeiras razões apontadas por

esses entrevistados, que defenderam a manutenção da lei atual,

foram:

- A criança tem direito à vida: 42%

- Deve-se prevenir e não abortar: 25%

- Aborto é crime: 22%

- Mulher tem de assumir a gravidez: 14%

- E contra a lei de Deus: 14%

Page 5: TRABALHO ÉTICA E ABORTO AMIGA

De posse apenas desses dados poderíamos concluir

que a sociedade brasileira é tradicionalista, evita assumir posições

avançadas e é fortemente influenciada pela Igreja Católica. Tem

padrões morais rígidos e severos nessa questão. Poderíamos ainda

afirmar, com um pouco de ironia, que infelizmente esses padrões

não se aplicam com igual rigor para corrigir as desigualdades

sociais, a falta de ética de muitos políticos, a exploração do pobre

pelo rico, os preconceitos sociais e raciais etc.

Todavia, nesse mesmo inquérito, 71% dos

entrevistados declaram-se favoráveis à legalização do aborto

quando a gestante tem AIDS. Esse resultado pareceria natural em

uma sociedade que tem uma visão avançada na questão do direito

da mulher em interromper a gestação. Mas confrontando esses dois

aspectos abordados na pesquisa Datafolha, fica clara a incoerência

das respostas: a criança com risco de adquirir o vírus da AIDS pela

via transplacentária não tem direito à vida? A mulher só tem que

assumir a gravidez se esta irá resultar numa criança sem risco de

portar o vírus da AIDS?

A sociedade brasileira tem muito ainda que refletir

sobre a questão do aborto. Esta reflexão precisa ser pautada no bom

senso e na solidariedade. Esta reflexão precisa confrontar os rigidos

padrões morais das pessoas contrárias à descriminalização do

aborto com os padrões que essas mesmas pessoas adotam em

outras matérias bem mais corriqueiras de seu dia a dia, como, por

exemplo, o menor abandonado, a discriminação racial e social, o

preconceito contra a AIDS etc.

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Page 6: TRABALHO ÉTICA E ABORTO AMIGA

2.1 Aborto

A palavra "aborto" vem do latim ab-ortus, étimo que

transmite a idéia de privação do nascimento. Assim, a prática do

aborto, pode ser definida sinteticamente como: "interrupção da

gravidez, com a morte do produto da concepção".

Dentre os diversos tipos de aborto existentes, torna-

se importante ressaltar aqui os mais discutidos atualmente, a fim de

facilitar o entendimento de considerações posteriormente expostas

neste trabalho: aborto terapêutico ou necessário, que é aquele feito

porque a gravidez põe em risco a vida da gestante; honoris causa,

honroso ou moral, que consiste em abortar o feto por ser a gestação

resultante de estupro; eugênico ou profilático, representado o aborto

feito pois o feto apresenta alguma anomalia grave; e, por fim, o

social, que é realizado por questão de controle de natalidade.

Além desses tipos citados, há um critério de

classificação que o divide em dois grupos principais: espontâneo e

provocado. O primeiro consiste naquele em que o próprio organismo

se encarrega de realizar. Assim, independente da vontade da

mulher, o organismo expulsa o feto (pode acontecer pelos motivos

mais diversos) impossibilitando, então, a continuidade da gestação.

Já o aborto provocado, é aquele feito intencionalmente, ocasionando,

então, a morte do feto por vontade própria.

2.2 Tipos de aborto

2.2.1 Aborto provocado

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Page 7: TRABALHO ÉTICA E ABORTO AMIGA

Para a execução do aborto provocado, há variados

métodos que podem ser empregados. Os mais utilizados ,

entretanto, são os mais perigosos e mais precários, pois a maioria da

população não dispões de condição financeira para fazer de outra

forma. Dentre estes meios lastimáveis, encontra-se a utilização de

vegetais, tais como: cravagem, centeio, arruda, sabina, thuia

(arranjo ornamental), tanaceto e até o teixo, bem como a introdução

de objetos (agulhas de tricô, tesouras, antenas, etc.), esquartejando

o feto ainda dentro do ventre materno. Há também injeções de

sabão ou sal e, ainda, apelo às paramédicas (vulgarmente

conhecidas como cachimbeiras) , que praticam banhos quentes,

massagens e fricções no baixo ventre, duchas ferventes no colo

uterino e rolhões vaginais (utilização de algodão ou gaze levado até

o final da vagina), além das famosas golfadas de fumaça de

cachimbo, com substâncias estupefacientes, para causar torpor

mental na "paciente", o que lhes rendeu a alcunha de cachimbeiras.

Outras pessoas, optam pelas drogas químicas, fato

que também ocorre em grandes quantidades. Neste método,

percebe-se a imensa incidência da utilização do tão conhecido

Cytotec. Esse medicamento é próprio para o tratamento da úlcera

gástrica e absolutamente contra-indicado a mulheres grávidas, pois

tem como princípio ativo o misoprostol, substância com o condão de

provocar o aborto. O uso do Cytotec facilitou a prática do aborto,

pois ele é encontrado facilmente nas farmácias, de forma ilegal.

Além dos métodos já citados, encontram-se

presentes ainda aqueles usados por médicos, que são procurados

pelas pessoas de maior poder aquisitivo, já que constituem práticas

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Page 8: TRABALHO ÉTICA E ABORTO AMIGA

caras, feitas em geral por clínicas clandestinas. As principais

"táticas" usadas são:

• Karman: Faz-se uma aspiração do conteúdo uterino,

que dependendo da resistência da mulher, pode ser feito sem

anestesia. O bebê termina despedaçado, da mesma forma que

acontece quando a mãe o expele por conseqüência de algum

remédio ingerido.

• Parto Parcial : É uma cirurgia que parece com a

cesariana. Realizada com anestesia geral ou peridural. Nesse caso,

puxa-se o bebê para fora, deixando apenas a cabeça dentro, já que

ela é grande demais. Daí, introduz-se um tubo em sua nuca, que

sugará a massa cerebral, levando-o à morte. Só então o bebê

consegue ser totalmente retirado.

• Curetagem: Faz-se uma raspagem das paredes do

útero para deslocar o embrião e a placenta, que são retirados com

uma pinça especial.

2.2.2 Aborto Terapêutico ou Eugênico

O aborto terapêutico que é legalmente permitido,

apesar de que o progresso da ciência tende a diminuir os casos em

que se considerará a prática abortiva como de salvamento de vida

ou da integridade física da gestante. Inúmeras complicações vão

sendo afastadas pelos métodos da medicina moderna, sem maiores

agravamentos à interessada e ao nascituro.

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Page 9: TRABALHO ÉTICA E ABORTO AMIGA

Além disso, há em relação ao aborto eugênico opiniões

das mais diversificadas, havendo posições favoráveis e contrárias.

Mas é preciso dar liberdade de escolha aquela pessoa que traz

consigo um ser, que nem mesmo as mais avançadas técnicas da

medicina conseguirão fazer sobreviver após os 9 meses de gravidez

ou até mesmo que possa vir a desencadear o óbito da mesma e esta

é uma constatação de uma realidade que não se pode ignorar.

Deve-se também conduzir ao aborto eugênico, com

evidente exclusão de ilicitude, pois há casos dramáticos de graves

anomalias físicas ou mentais do feto, em torno do qual já foram

concedidas centenas de alvarás como, além da anencefalia

(ausência de cérebro), agenesia renal (ausência de rins), abertura da

parede abdominal e síndrome de Patou ( onde há problemas renais,

gástricos e cerebrais gravíssimos), todos estes casos citados por

Mirabete.

Deve-se levar em conta que estas anomalias impedem

a vida do feto de forma definitiva, portanto, justifica-se o aborto

eugênico, nos casos comprovados da inviabilidade da vida

extrauterina, além do desgaste emocional da mãe, justificando desta

forma a exclusão de antijuridicidade do fato.

Na Constituição, o art. 3º considera a vida como um

direito fundamental do homem, subentendida fica então a proibição

do aborto, pois o conceito de vida abrange o embrião e o feto.

Também entre os direitos e garantias individuais está a

inviolabilidade do direito à vida e estes direitos não podem ser

objeto de proposta de emenda. Diante do rigor constitucional só há

dois caminhos lícitos: convocar plebiscito ou colocar o aborto

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Page 10: TRABALHO ÉTICA E ABORTO AMIGA

eugênico como sub-espécie do aborto necessário, espécie de estado

de necessidade.

2.3 Conseqüências físicas e psicológicas.

O aborto pode comprometer a saúde da mulher em

graus variáveis. A gravidade das complicações mórbidas advindas

do abortamento tendem a aumentar com a duração da gravidez, por

exemplo, um aborto no segundo trimestre da gestação é mais

perigoso que um no primeiro trimestre. Embora também possam

ocorrer nos casos de aborto espontâneo, as complicações são mais

graves e mais freqüentes quando o aborto é provocado.

A hemorragia, nos casos de aborto espontâneo,

raramente é profusa. Já no aborto provocado, ela é mais intensa e

pode até levar ao choque. Já as infecções, apresentam-se

relativamente raras e benignas no aborto espontâneo, mas podem

ser graves e mortais no aborto provocado.

O traumatismo mais perigoso associado ao aborto

provocado é a perfuração uterina, que poderá ocasionar peritonite e

morte. O colo do útero também pode ser lesado durante as práticas

abortivas e, mais raramente, outros órgãos vizinhos, como bexiga e

alças intestinais, podem ser comprometidos. O aborto provocado

executado em clínicas clandestinas, é feito em geral sem

acompanhamentos e cuidados médicos adequados, o que

igualmente poderá ocasionar inúmeras complicações.

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Page 11: TRABALHO ÉTICA E ABORTO AMIGA

Apesar de ser uma questão polêmica que admite

diferentes posicionamentos, todos os que se manifestam contra ou a

favor do aborto estão de acordo em um ponto: os impactos

negativos do aborto poderiam ser minorados hoje com os

aperfeiçoamentos desenvolvidos pela medicina, tanto ao nível da

técnica quanto da pesquisa ou da preparação pessoal. Poderia,

então, constituir uma cirurgia simples, de pouco risco e de baixo

custo, afinal, o aborto é uma realidade.

Além das possíveis conseqüências físicas , um aborto

costuma provocar crises de arrependimento e culpa, e reações

psiconeuróticas ou mesmo psicóticas graves.

A maioria das mulheres pratica o aborto em uma

situação desesperadora de medo ou insegurança. Depois disso,

muitas deixam de se cuidar e, sem apoio psicológico para lidar com

seus sentimentos, acabam engravidando de novo.

Por mais liberta que a mulher esteja dos padrões

morais e religiosos, por mais consciente da impossibilidade de levar

a termo sua gestação, por mais indesejada que tenha sido a

gravidez, abortar é uma decisão que, na grande maioria das vezes,

envolve angústia. Esse sentimento é aguçado quando o aborto é

efetuado em clínicas clandestinas, pois a estrutura e o aparato que

envolvem a clandestinidade acabam provocando uma sensação de

culpa.

Para alguns psiquiatras, cada aborto representa uma

experiência carregada de riscos seríssimos para a saúde mental,

devendo ser proibido. Por outro lado, há estudiosos que afirmam que

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Page 12: TRABALHO ÉTICA E ABORTO AMIGA

a reação psicológica adversa acarretada pelo aborto provocado é

menos grave frente à reação ao nascimento de uma criança

indesejada. Enfim, o que se percebe é que realmente o assunto é

complexo, admitindo as mais diversas opiniões a respeito.

2.4 Ética médica e aborto clandestino

A partir de um raciocínio direto - porém simplista –

pode-se afirmar que em sendo o aborto ilegal, o médico que o

pratica está violando os artigos 42 e 43 do Código de Ética Médica.

Segundo esses artigos, é vedado ao médico "praticar ou indicar atos

médicos desnecessários ou proibidos pela legislação do pais" (art.

42) e "descumprir legislação específica nos casos de transplante de

órgãos ou tecidos, esterilização, fertilização artificial e abortamento"

(art. 43) - grifos nossos. Exceção seria feita ao médico que

interrompe uma gestação, com anuência da mulher, quando a

gravidez implica em risco de vida para a gestante ou é decorrente

de estupro.

Os médicos que praticam o aborto com fins lucrativos

estarão violando também os artigos 9°: "A medicina não pode, em

qualquer circunstância ou de qualquer forma, ser exercida como

comércio"; e 89: É vedado ao médico: "Deixar de se conduzir com

moderação na fixação de seus honorários, devendo considerar as

limitações econômicas do paciente, as circunstâncias do

atendimento e a prática local".

Além disso, fere também o Código de Ética Médica o

médico que fornece a uma mulher endereço de clínica de aborto ou

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Page 13: TRABALHO ÉTICA E ABORTO AMIGA

que a orienta a adquirir em farmácias medicamentos abortivos,

mesmo sem prescrevê-los. Pois o artigo 38 do referido Código reza

que é vedado ao médico "acumpliciar-se com os que exercem

ilegalmente a Medicina, ou com profissionais ou instituições médicas

que pratiquem atos ilícitos".

Mas não são apenas esses os médicos que

desrespeitam o Código de Ética Médica. Qualquer médico que tenha

conhecimento da existência de uma clínica de aborto ou de colegas

que fornecem endereços dessas clínicas ou que orientam suas

clientes para o uso de práticas abortivas - e não os denuncia - estará

violando os seguintes dispositivos do Código:

a) Preâmbulo, inciso IV: "A fim de garantir o

acatamento e cabal execução deste código, cabe ao médico

comunicar ao Conselho Regional de Medicina, com discrição e

fundamento, fatos de que tenha conhecimento e que caracterizem

possível infringência do presente Código e das Normas que regulam

o exercício da Medicina".

b) Artigo 19: "O médico deve ter, para com seus

colegas, respeito, consideração e solidariedade, sem, todavia,

eximir-se de denunciar atos que contrariem os postulados éticos à

Comissão de Ética da instituição em que exerce seu trabalho

profissional e, se necessário, ao Conselho Regional de Medicina".

No contexto desta interpretação, quantos médicos

estariam hoje violando o Código de Ética, quer porque encaminham

suas clientes para clínicas de aborto, quer porque as orientam para o

uso de Misoprostol ou conhecem quem o faça e não os denunciam?

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Page 14: TRABALHO ÉTICA E ABORTO AMIGA

Seguramente não são poucos. Mas cabe aqui outra

indagação: estariam esses médicos agindo de má fé? Permitimo-nos

afirmar que, na grande maioria das vezes, não. A intenção, nesses

casos, é proteger a mulher, - frente a uma decisão irreversível - do

risco de vida a que se exporia se buscasse clínicas de "fundo de

quintal".

Nesse sentido, duas outras questões merecem ser

formuladas:

a) Que razões levam um médico a tornar-se

"aborteiro"?

b) Poderia existir uma interpretação alternativa do

Código de Ética?

Antes de abordar essas questões queremos abrir um

parêntese e traçar um paralelo com a questão da cesária

desnecessária. Praticá-la, auxiliá-la, conhecer e não denunciar quem

a pratica viola, em termos gerais, os mesmos artigos do Código de

Ética citados na questão do aborto. É sintomático perceber que a

prática da cesária sem indicação médica - que impõe riscos maiores

de morbimortalidade materna e perinatal em comparação com o

parto vaginal - é aceita com muito mais naturalidade e com muito

menor censura, tanto pela classe médica quanto pela sociedade em

geral.

2.5 O ponto de vista contra o aborto

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Page 15: TRABALHO ÉTICA E ABORTO AMIGA

As pessoas que condenam a prática do aborto, em

sua grande maioria, fundamentam-se na afirmação de que o feto é

uma vida humana. Assim, admitem como marco inicial da vida a

concepção, ou seja, o momento em que o óvulo é fecundado pelo

espermatozóide. Alegam que não se pode considerar outro ponto

pois, na verdade, ocorre um processo gradativo, que se inicia na

fecundação e se encerra com a morte, seguindo ininterruptamente,

não existindo períodos de não vida. Assim, a partir da fecundação,

outra criatura se inicia.

Colocam os conservadores, ainda, que pelo instinto

de preservação da vida, deve-se manter vivo o feto, pois tem vida

própria e jamais se confundirá com o corpo da mãe. O raciocínio é

bastante lógico, constituindo-se por duas premissas fundamentais,

que originam uma conclusão:

É errado matar um ser humano inocente;

Um feto humano é um ser humano inocente;

Conclusão: É errado matar um feto humano.

Realmente, esta representa uma linha de

pensamento bastante fechada, que quase não admite contestações,

principalmente no que diz respeito à concepção como indicador do

início da vida humana. Mesmo assim, houve algumas tentativas em

se apresentar outro ponto que iniciasse a vida, mas foram em vão.

Além disso, vale salientar também o argumento da

religião católica, que condena a prática do aborto, e é também

bastante aceito pela sociedade atual, já que esta tem muitas de suas

raízes nesta religião. Consiste, basicamente, em afirmar que só a

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Page 16: TRABALHO ÉTICA E ABORTO AMIGA

Deus cabe o poder de retirar a vida de alguém. Assim, percebe-se

que os cristãos admitem também que o feto seja um ser vivo,

dotado, inclusive, de alma , proibindo terminantemente o aborto,

quaisquer que sejam os motivos. Para os católicos em geral, o

aborto é um crime e pode ser taxado de assassinato.

A religião espírita, da mesma forma, considera o feto

como um ser vivo, dotado de corpo, alma, e, portanto, de direito à

vida. Dizem ainda que quando o espírito(que é imortal) redunda em

aborto, fica frustrado e pode, inclusive, se tornar um obsessor

daquele que o provocou. Mostram-se, porém, um pouco diferentes

dos católicos na medida em que consentem o aborto terapêutico,

conforme se percebe na seguinte passagem do "Livro dos Espíritos"(

Questão 359):

"Dado o caso em que o nascimento da criança

pusesse em perigo a vida da mãe dela, haverá crime em sacrificar-

se a primeira para salvar a segunda?

- Preferível é que se sacrifique o ser que ainda não

existe a sacrificar-se o que já existe"

Vistos os principais argumentos contra o aborto,

percebe-se claramente o embasamento destes na afirmação de que

o feto é uma vida humana, discutida apenas por uma pequena parte

dos liberais, como ver-se-á agora.

2.6 O ponto de vista a favor do aborto

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Page 17: TRABALHO ÉTICA E ABORTO AMIGA

De acordo com Peter Singer (1998:148), houve

tentativas para se indicar outro ponto como início da vida humana,

mas o próprio autor mostrou a fragilidade destas, contestando-as

ferrenhamente, conforme se pode ver a seguir. As principais divisões

encontradas foram:

Primeiramente o nascimento, que é aderido por

alguns liberais por estar bem inserido na questão sensível do

homem, já que se fica menos comovido com a morte de um feto do

que com a morte de um bebê. Mesmo assim, essa linha de raciocínio

que afirma ser o marco inicial da vida o nascimento torna-se falha,

por não haver nenhuma diferença notável entre o feto e o bebê, a

não ser a localização. Segundo Peter, "Parece estranho admitir que

não podemos matar o bebê prematuro mas que podemos matar o

feto mais desenvolvido, prestes a nascer".

A segunda linha divisória para originar a vida humana

propriamente dita é a viabilidade, que cobre essa questão do feto

desenvolvido e do bebê prematuro, visto que seria vivo o feto que

tivesse a possibilidade de se manter com vida exteriormente ao

corpo de sua mãe. Só que, este argumento também se torna falho

ao se verificar que a viabilidade pode variar em cada época ou lugar,

dependendo dos avanços tecnológicos. Então, em uma cidade

desenvolvida o feto poderia ser viável devido aos recursos

existentes, enquanto que outro feto de mesma idade, em um

interior, não teria tal viabilidade. É, realmente, bastante contestável

tal afirmação.

Outro marco apontado por Singer constitui-se no

surgimento dos primeiros sinais de vida, ou seja, quando a mãe

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Page 18: TRABALHO ÉTICA E ABORTO AMIGA

sente seu feto se mexer, concepção que foi aceita pelos antigos

católicos, que consideravam este momento como a chegada da

alma. Apesar disso, não mais consideram assim esses religiosos e os

estudos já mostraram que os próprios movimentos fetais existem

antes de que possam ser sentidos pela mãe, e que portanto é mais

uma divisão falha.

Por último, uma linha divisória que considera a

consciência como indicadora do início da vida humana. Torna-se,

porém, arriscado se recorrer a esta pois os estudos vão se

modificando, não se podendo afirmar ao certo quando o feto passa a

possuir a consciência. Há quem diga que é desde a 14a semana de

gestação, enquanto que outros afirmam que "a partir da fecundação

o ovo tem a capacidade de guardar eventos (memória) e de sentir

dor (se puncionarmos o ovo, ele apresentará a nítida tendência de

fugir da agressão com movimentos amebóides)"

Mesmo com todas essa objeções, parece mais

plausível a idéia dos que são contra por afirmarem que o

desenvolvimento do feto é um processo gradual e que não possui

nenhuma divisão moralmente significante. Vista a dificuldade para

se estabelecer outra linha divisória, os liberais passaram então a

questionar outros pontos e não mais a opinião de que o feto é um

ser humano.

Dentre os argumentos liberais melhores elaborados,

encontra-se o das feministas, que consiste em afirmar que a vida é

realmente importante para o ser humano, mas sem liberdade perde

todo e qualquer significado. Acreditam, então, que deve ser

respeitado o direito subjetivo de liberdade de escolha da mulher,

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Page 19: TRABALHO ÉTICA E ABORTO AMIGA

cabendo apenas à ela a decisão de levar ou não adiante uma

gravidez. Assim, as feministas afirmam que, na maioria dos

ordenamentos jurídicos, considera-se o direito do feto, em

detrimento do princípio de autonomia da mulher, com estrutura

ontológica bem mais completa. Elas consideram, portanto, que

ninguém tem mais direito à vida do que os que a possuem em

plenitude. Essa questão da liberdade é combatida pelos

conservadores ao ressaltarem que liberdade alguma é atingida

através do sacrifício de vidas inocentes.

Outra linha de pensamento que se coloca a favor do

aborto é aquela que associa seu argumento às conseqüências

sociais geradas por uma alta taxa de natalidade. Ressaltam que, em

sociedades super-populosas, seria necessária a prática do aborto

com finalidade de controle de natalidade, visto que uma explosão

demográfica provavelmente provocaria uma queda no poder

aquisitivo da população, aumentando fome, miséria e marginalidade.

Por fim, um outro posicionamento a respeito é o

assumido pelo autor Peter Singer, neo-utilitarista bastante conhecido

atualmente. Segundo ele, o feto não é uma vida humana

propriamente dita, mas sim em potencial. Diz , então, que o

argumento que atribui ao feto direitos de um ser humano adulto é

equivocado , já que um ser em potencial não é um ser real, e jamais

deveria possuir os mesmos direitos. Assim, num dilema ético a

respeito da prática ou não do aborto, devem prevalecer os

interesses da mulher e não do feto, por serem estes mais

rudimentares e menos complexos. Faz, ainda uma observação

bastante importante: da mesma forma que o feto é ser humano em

potencial, o espermatozóide também é, resguardando-se as devidas

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Page 20: TRABALHO ÉTICA E ABORTO AMIGA

proporções. Então, para ele, representa uma grande incoerência se

condenar o aborto, mas permitir práticas como o uso de

anticoncepcionais, comportamento de abstinência sexual, e até

mesmo o celibato.

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Page 21: TRABALHO ÉTICA E ABORTO AMIGA

3. CONCLUSÃO

A Ética, por ser uma ciência preocupada em mostrar

aos homens a forma correta de se portar diante das situações

impostas pela vida, tem tentado fundamentar os homens, da mesma

forma, a respeito da prática do aborto. Portanto, as discussões

morais relativas a esta são inúmeras, mas o consenso ainda se

encontra distante. Por isso, a melhor forma para estudá-la é

verificando as opiniões divergentes, para que assim se possa partir

para uma conclusão própria coerente e, sobretudo, plausível acerca

do assunto.

Esses são os elementos que, a nosso ver, devem

nortear a prática médica frente à problemática da gravidez

indesejada e do aborto. Esperamos que a sociedade brasileira tenha

sensibilidade para essa questão e que essa sensibilidade se reflita

em modificações dos dispositivos legais que regem a matéria.

A classe médica que, de um modo geral, tem

avançado mais do que a média da sociedade em questões morais e

humanitárias poderá desempenhar um papel de vanguarda na

solução desse problema. Discutir modificações no Código de Ética

Médica, pressionar - quer individualmente quer por meio da força da

classe - as instâncias competentes, visando modificar as leis

atualmente vigentes no País em relação ao aborto, é obrigação de

todo médico que alguma vez já se sentiu solidário com uma mulher

que vivenciou o drama da gravidez indesejada.

Page 22: TRABALHO ÉTICA E ABORTO AMIGA

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Page 23: TRABALHO ÉTICA E ABORTO AMIGA

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Ricardo Luis Santa’Anna de. Aborto e Direito à vida.

Recuperado em 18 nov 1999. Disponível na

Internet:http://www.pgj.ce.br/aborto.htm

NALINI, José Renato. Ética Geral e Profissional. 4 ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1997.

NOVAES, Adauto. (org). Ética. São Paulo: Cia das Letras, 1992.

SINGER, Peter. Ética Prática. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São

Paulo: Martins Fontes, 1998

VERARDO, Maria Tereza . Aborto: um direito ou um crime?: São

Paulo: Moderna, 1997.

Page 24: TRABALHO ÉTICA E ABORTO AMIGA

5. ANEXO

Page 25: TRABALHO ÉTICA E ABORTO AMIGA

MAPA ABORTIVO

O mapa abaixo demonstra quais os países que permitem ou

não o aborto.

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